Revista Palavra 2012 - Sesc
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Se para ter gratidão é preciso copiar exemplos, o<br />
menino Antônio/Bartolomeu faz um corte arqueológico<br />
para encontrar a memória familiar, social, histórica<br />
das Gerais que lhe permitisse assentar – como<br />
explica Halbwach em A memória coletiva – a outra,<br />
pessoal e lírica. Quer dispô-la em novos arranjos,<br />
reescrita sem pudores, até mostrar a face que, longe<br />
da harmonia sem trincos, exibe as distorções do<br />
afeto. No entanto, procura afastar a sombra de desalento<br />
que insiste em não deixá-lo.<br />
Talvez este seja o “efeito” da obra de Bartolomeu que<br />
lhe permite contar, entre seus receptores, com gente<br />
que ainda habita o país da infância. Os narradores,<br />
distanciados ou próximos, em 3ª ou 1ª pessoa, não<br />
abdicam da esperança, não se paralisam com as tragédias,<br />
apesar de elas estarem cada vez mais presentes,<br />
como em Até passarinho passa, premiado pela<br />
Academia Brasileira de Letras. Um texto – bem na<br />
medida das recomendações de Calvino para o próximo<br />
milênio: “exato, rápido, leve, múltiplo, dá visibilidade”<br />
visível imaginária ao corpo da experiência humana,<br />
insondável apesar das linguagens. Qualquer excesso<br />
seria mortal e piegas – Ah!, “Meu pé de laranja lima”!<br />
Qualquer escassez seria pretensiosa e impessoal –,<br />
Ah!, “Minha vida de menino” entre os Nabuco!<br />
Fazer literatura para Bartolomeu é inventar a vida<br />
sem a fantasia ingênua de estar falando realmente<br />
dela ou do vivido: “este acontecimento é finito” –<br />
lembra-nos Benjamim em Reflexões: a criança, o<br />
brinquedo a educação –, e para que ele seja sem<br />
limites deve ser “lembrado”, destituído da preocupação<br />
da verdade. Esta, nem o sujeito do inconsciente<br />
acessa: a verdade existe, mas não é nomeável<br />
– seu nome é impronunciável apesar de ser tudo o<br />
que existe, existiu ou existirá. O exercício da escrita<br />
depende exaustivamente do exercício das leituras:<br />
quanto mais lermos os pingos da nossa história, melhores<br />
serão as letras com que a escreveremos.<br />
Enfim, seu último livro, Vermelho amargo, que foi en-<br />
tregue pessoalmente à edição, atinge-nos simultane-<br />
amente com um soco no estômago – diria outro autor<br />
de memórias na literatura de jovens, Ari Quintella –<br />
em seu Cão danado – e uma doçura melancólica.<br />
Dificilmente outro livro sobre a dor da infância nos<br />
tomará tão profundamente de assalto como este<br />
do menino Bartolomeu Campos de Queirós. Com o<br />
olhar de criança, ele nos entrega um livro adulto semelhante<br />
ao que Guimarães Rosa fez em Manuelzão<br />
e Miguilim. Tomates vermelhos cortados à faca afiada<br />
são imagem que corta o coração no sentimento<br />
inarredável dos amores perdidos desde a mais tenra<br />
idade. Mas da melancolia ele fez poesia e da amargura,<br />
literatura.<br />
Com Vermelho amargo, a obra memorialista do es-<br />
critor, iniciada com Ciganos, percorre longos anos<br />
com narrativas enxutas, precisas, até atingir a confissão<br />
profunda, amarga, das perdas que marcaram<br />
por toda a vida de uma personagem que só foi mudando<br />
de nome, mas não de memórias!<br />
Bartolomeu Campos Queirós aprendeu uma lição<br />
que o avô nunca lhe deu como tal e esqueceu todas<br />
as que não lhe deram exemplaridade, todas<br />
aquelas das quais não pôde guardar gratidão.<br />
Rememorando o grato apenas – doce ou amargo –<br />
nos lega uma leitura da infância com densidade só<br />
comparável às de Graciliano Ramos e Guimarães<br />
Rosa na ficção brasileira e, em muitos momentos,<br />
mais poética que elas.<br />
Eliana Yunes formou-se em Filosofia e Letras. É mestre em Letras, doutora em Linguística e em Literatura,<br />
e fez pós-doutorado em Leitura. É coordenadora adjunta da Cátedra Unesco de Leitura, na PUC-Rio, onde leciona.<br />
É professora visitante em diversas universidades no Brasil e no exterior.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • trinta e nove