Revista Palavra 2012 - Sesc
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si: alguns se embriagam de tal maneira com a en-<br />
dorfina prazerosa das lembranças que abdicam da<br />
festa, da libertação deste cativeiro insólito em que a<br />
infância pode se transformar.<br />
Mas não foi isso que Bartô fez. De fato, mergulhou<br />
na memória, desde Ciganos, e, dos vazios e soluços,<br />
dos sobressaltos e perdas, fez literatura. Com ela,<br />
ficcionalizou a vida, isto é, tornou-se autor de sua<br />
história: em uma palavra, deu a volta por cima. Na<br />
aula de clausura da pós-graduação em Leitura, da<br />
Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, confessava o<br />
ardil: “sem a morte precoce de minha mãe eu não<br />
me teria tornado escritor”.<br />
Foi assim, alçando voo das misérias cotidianas da<br />
infância, que lançou um olhar do alto sobre a paisagem<br />
humana, para desenhá-la no marco de outros<br />
horizontes. Com um título que escamoteia a literatura<br />
para os que pensam a leitura apenas entre<br />
as quatro paredes da sala de aula, Ler, escrever e<br />
fazer conta de cabeça mobiliza leitores e críticos<br />
para aproximarem-se desse universo da memória.<br />
Universo que, em autobiografias explícitas ou ficcionais,<br />
podemos visitar em Proust e Virgínia Woolf,<br />
em Graciliano Ramos e Machado de Assis, em Paul<br />
Auster e Margarithe Youcenar, em Lygia Bojunga e<br />
Bartolomeu Campos de Queirós.<br />
A memória, na formulação freudiana, tem suas<br />
raízes no esquecimento – ou melhor, não as tem<br />
na lembrança – e no espaço das percepções involuntárias<br />
de que o tempo faz matéria, como explicita<br />
Bergson, em Tempo e memória. O exercício<br />
da recordação, imperfeito por excelência, serve à<br />
perfeição para construir, com todas as correções,<br />
a biografia de nossos sonhos ou pesadelos. Sobre<br />
os lapsos, lançamos pontes; sobre os recalques,<br />
compomos imagens, e vamos montando, à luz<br />
do desejo e do imaginário, a narração com que<br />
queremos nos ver identificado. Por isso, memória<br />
e identidade andam juntos e nem sempre nos<br />
damos conta, com argúcia, do paradoxo e das<br />
meias-verdades que se engendram nessa relação.<br />
Não é à toa que nomes como José Lins do Rego<br />
e Oswald de Andrade escreveram mais de uma<br />
biografia – a documental, menos para corrigir a<br />
romanceada e mais para atestar a condição impalpável<br />
do real.<br />
A memória, cujo texto é grafado pela emoção e pelo<br />
sentimento, torna-se opaca por força da razão ordenadora<br />
do discurso lógico. Assim, recordar – colocar<br />
de novo no coração – é apresentar, presentificar o<br />
que se desconhece, e não revelar o que se sabe.<br />
A identidade não é, pois, coincidência; é referência<br />
que se constrói, e só quando se assume a memória<br />
como referente seletivo, combinado a modo secreto,<br />
inclusive para o sujeito, ela pode ter alguma utilidade<br />
e verossimilhança para o memorialista. Como<br />
a memória opera com os ocos, com as sombras,<br />
com as faltas, será necessariamente o cheio, a luz,<br />
o pleno que se lhes atribuir, que lhes dará sentido.<br />
Às vezes, somente pela escrita o sujeito se constrói<br />
e liberta – a menos que opte deliberadamente e misteriosamente<br />
por não se ler, isto é, destruir-se, para<br />
não “lembrar-se”.<br />
É extremamente fértil o ciclo da memória na obra de<br />
Bartolomeu, até chegar a este inadvertido e denso<br />
Vermelho amargo. O olhar do narrador não perde de<br />
vista um menino entre seus 6 e 10 anos, que aparece<br />
em Ciganos. Ali, debruçado sobre a praça onde<br />
eles estendiam suas tendas e faziam brilhar seus<br />
cobres, o menino teme o rapto e o deseja para preocupar<br />
o pai e ser por ele resgatado. O martelo burila<br />
o metal e a solidão, o menino. Do fundo silencioso<br />
de seu poço, o ódio, a revolta, a autocompaixão são<br />
batidos também, mas pelos sonhos. O menino fala<br />
de sua dor sem se comprazer nela: vai aos poucos<br />
atravessando o prisma do tempo e decompondo os<br />
desafetos, os medos e as fantasias. Ciganos (1982)<br />
é o tributo à fantasia de um menino cuja vida bebeu<br />
desta fonte dos desejos.<br />
Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • trinta e sete