Revista Palavra 2012 - Sesc
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Criança lendo: [...] Ela está misturada entre<br />
os personagens muito mais de perto que o<br />
adulto. É indivisivelmente concernida pelo<br />
acontecer e pelas palavras trocadas e, quando<br />
se levanta, está toda coberta pela neve do<br />
lido (BENJAMIM, 1987, p. 37).<br />
Bartolomeu Campos de Queirós foi bastante habilidoso<br />
na construção de enredos marcados por componentes<br />
lúdicos, perceptíveis nos jogos de palavras e em<br />
narrativas simples, mas nada simplórias. Ao contrário,<br />
podem-se acompanhar essas construções bem elaboradas,<br />
por exemplo, em Raul, Estória em 3 atos, O<br />
guarda-chuva do guarda e Isso não é um elefante.<br />
Estória em 3 atos é emblemática. Nesta obra, observam-se<br />
as aventuras do gato, do pato e do rato em três<br />
jogos de cena. Eles brincam até não poder mais, virando<br />
as palavras pelo avesso: “No segundo ato o gato<br />
vira pato, o pato vira gato. O quá, quá é do gato que<br />
nada no rio. O miau é do pato que passeia no teto.”<br />
Verifica-se nestes trechos a maestria do autor por meio<br />
da utilização de jogos fonéticos e semânticos com as<br />
palavras. Observa-se, sobretudo, recurso sui generis<br />
na troca das identidades dos animais.<br />
Nesta mesma vertente, pode ser lido Isso não é um<br />
elefante. Por acreditar na capacidade que tem a<br />
criança de “fantasiar coisas bonitas e sérias”, o au-<br />
tor inventa um bicho raro, transmutação de formiga<br />
em elefante, ou vice-versa, que só pode ser compreendido<br />
por meio da chave deliberada da ficção. Para<br />
esta tarefa, convoca a criança a fazer uso de sua<br />
capacidade de inventar uma realidade nova para<br />
habitar o mundo em que vive. Essa dimensão pode<br />
ser alcançada, especialmente, por meio da arte literária<br />
associada ao brinquedo. 3<br />
O elefante ocupou a formiga inteira. Sua barriga<br />
ficou na barriga da formiga, suas pernas,<br />
nas pernas da formiga, suas orelhas da formiga.<br />
A formiga se espichou, se esticou inteira<br />
para caber o elefante e pensou: “Não preciso<br />
mais comer pela vida toda.” Só ficaram de fora<br />
os dois dentes de marfim. E da soma dos dois<br />
bichos nasceu uma terceira coisa indigesta,<br />
exageradamente desconhecida, pesando dois<br />
milhões e um grama (QUEIRÓS, 2009, p. 10).<br />
De maneira intencional, o autor promove a suspensão<br />
da realidade, permitindo que a criança examine-a por<br />
ângulos diferenciados, incomuns. Tal recurso possibilitará<br />
ao professor dos anos iniciais, por exemplo, envolver<br />
as crianças nestas e em outras transfigurações<br />
da realidade. Exercício criativo com a fantasia para o<br />
qual Bartolomeu esteve sempre atento nos livros que<br />
comentamos e no conjunto de sua obra.<br />
Restaria convidá-los à leitura dos livros por in-<br />
teiro, para muito além dos limites deste ensaio.<br />
Bartolomeu Campos de Queirós, artesão da palavra<br />
escrita, aprovaria o gesto com simplicidade e com<br />
muita alegria. Vamos à leitura?<br />
3 Neste sentido, conferir, em especial, as reflexões tecidas em<br />
PARREIRAS, Ninfa. O brinquedo na literatura infantil: uma leitura<br />
psicanalítica. São Paulo: Biruta, 2008.<br />
Márcia Cabral da Silva é professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Educação na UERJ.<br />
Atua na Linha de Pesquisa “Instituições, Práticas Educativas e História” e coordena o Grupo de Pesquisa<br />
Infância, Juventude, Leitura, Escrita e Educação na mesma instituição.<br />
Foto: arquivo pessoal.<br />
Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • trinta e três