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Revista Palavra 2012 - Sesc

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pânico, arrepios ou lanternas. Fui feito para<br />

pensar além do vivido – falava eu – apertando<br />

os olhos para esquecer, apagar, anular tudo.<br />

Depois, a palavra caía no meu ouvido e levava<br />

dias para doer. Eu tinha o amor do meu avô, e<br />

para que mais? Seu carinho me encharcava os<br />

olhos quando me oferecia dinheiro, um tostão<br />

por fio, para arrancar seus cabelos brancos.<br />

Ele gostava era da minha mão de neto, passeando<br />

sobre ele, mansa, eu sabia (QUEIRÓS,<br />

1995, p. 19-20).<br />

ESCRITA<br />

A escrita consiste em outra chave importante para a<br />

apropriação da ficção autobiográfica elaborada pelo<br />

autor. Longe de definições mortas e vazias, a escrita<br />

torna-se, em sua obra, um meio para falar de si e apreender<br />

o mundo. O avô emerge do núcleo desse processo<br />

como o artesão, aquele que tece a escrita de cada<br />

dia. As passagens referidas a seguir podem ser lidas<br />

outra vez em Por parte de pai. Primeiro, destaca-se o<br />

esmero do exercício artístico em relação à escrita.<br />

Joaquim tinha uma letra bonita. Parecia com<br />

escrita fechada em livro de cartório antigo.<br />

Letra de certidão de nascimento, guardada<br />

em baú de lata em cima do armário. [...]<br />

Letra alta, tombada para a direita, quase<br />

deitando, mas sem preguiça. Letra farta,<br />

cheia de dois efes, dois emes, dois pês. Meu<br />

avô nunca falou de grupo escolar, tabuada,<br />

ditado, leitura silenciosa, prova, castigo.<br />

Falava de um mestre-escola, de colete e<br />

gravata-borboleta. (QUEIRÓS, 1995, p. 10)<br />

Acompanha-se ainda no transcorrer desta narrativa<br />

o exercício da escrita como prática histórica e cultural<br />

de valor inestimável. Conforme sublinha Philippe<br />

Artières, na obra Arquivar a própria vida (Rio de<br />

Janeiro: FGV, 1997), o gesto de recolher e ordenar<br />

trinta e dois • julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA<br />

objetos como fotografias, cartas, acontecimentos diz<br />

respeito à reconstituição de um arquivo íntimo, um<br />

modo de entender melhor quem somos. Trata-se da<br />

tentativa de arquivar a própria vida. O personagem<br />

Joaquim/avô traz para o primeiro plano da narrativa<br />

a escrita com esses traços íntimos, cotidianos e, por<br />

assim dizer, arquiva formas de sociabilidade à época,<br />

permite-nos ler aquele modo de vida:<br />

Todo acontecimento da cidade, da casa do vizinho,<br />

meu avô escrevia nas paredes. Quem<br />

casou, morreu, fugiu, caiu, matou, traiu,<br />

comprou, juntou, chegou, partiu. Coisas simples<br />

como a agulha perdida no buraco do<br />

assoalho, ele escrevia. A história do açúcar<br />

sumido durante a guerra, estava anotado.<br />

Eu também não sabia por que os soldados<br />

tinham tanta coisa a adoçar. Também desenhava<br />

tesouras desaparecidas, serrotes sem<br />

dentes, facas perdidas. E a casa, de corredor<br />

comprido, ia ficando bordada, estampada de<br />

cima a baixo. As paredes eram o caderno<br />

do meu avô (QUEIRÓS, 1995, p. 10-11).<br />

BRINCAR COM AS PALAVRAS E REINVENTAR<br />

CONSTRUÇÕES PELO AVESSO SÃO PARTE IM-<br />

PORTANTE DE SUA OBRA<br />

As crianças pequenas demonstram forte inclinação<br />

para o jogo com as palavras. 2 Elas são especialmente<br />

próximas do lúdico e, no momento da leitura, parecem<br />

aproximar-se dos enredos pela gratuidade que<br />

o jogo oferece. Walter Benjamim, no texto “Magia e<br />

Técnica, Arte e Política”, compartilhava dessa percepção<br />

e acrescentava:<br />

2 Conferir a este respeito os resultados da pesquisa realizada pela<br />

autora a partir do exame de 15 livros de literatura infantil voltados<br />

para a criança na fase da alfabetização (SILVA, Márcia Cabral da.<br />

Infância e literatura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010).

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