Revista Palavra 2012 - Sesc
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Entende-se, portanto, que a memória do escritor<br />
não recuperou os fatos exatamente como aconteceram,<br />
pois não seria isso possível, dada a distância<br />
temporal entre o momento em que os fatos ocorreram<br />
e o momento em que estão sendo rememorados<br />
por meio da escritura. É possível mesmo que<br />
haja, no trabalho de rememoração, lapsos, omissões,<br />
acréscimos, recriação sobre o vivido. Da matéria<br />
de vida de tal modo reelaborada derivariam<br />
temas essenciais para construção da prosa poética<br />
tecida por Bartolomeu Campos de Queirós.<br />
Em Indez, por exemplo, acompanha-se um narra-<br />
dor em terceira pessoa a rememorar passagens da<br />
infância como em um exercício de reencontrá-la.<br />
Assim, o leitor testemunha passagens cortantes do<br />
nascimento de um menino que nasceu fora do tempo,<br />
sem ao menos pedir licença.<br />
NASCER<br />
Foi na estação das águas que Antônio chegou.<br />
Dizem que nasceu antes do tempo. Pediram<br />
galinhas gordas emprestadas aos vizinhos.<br />
Secaram suas roupas no canto do fogão.<br />
Jogaram seu umbigo na correnteza. Nasceu tão<br />
fraco que recebeu o batismo em casa, na correria<br />
sem festas. Para padrinho, escolheram casal<br />
de amigos bem próximos, com muitas desculpas.<br />
A morte sem batismo condenaria o menino,<br />
mesmo inocente, a viver eternamente no<br />
limbo, lugar sem luz (QUEIRÓS, 2004, p. 10).<br />
No transcorrer desta narrativa, descobrem-se de maneira<br />
semelhante momentos inaugurais do delicado relacionamento<br />
entre pai e mãe. Passagens reveladoras,<br />
por assim dizer, do modo como o narrador sublinha a<br />
existência simbólica das figuras de um pai e de uma<br />
mãe, que trouxeram o menino Antonio ao mundo.<br />
PAI E MÃE<br />
Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo<br />
no cuidado da mãe enxaguando as roupas<br />
nas águas de anil. Era silencioso, mas via-se<br />
o amor entre seus dedos cortando a couve,<br />
desfolhando repolhos, cristalizando figos,<br />
bordando flores de canela sobre o arroz-doce<br />
nas tigelas.<br />
Lia-se o amor no corpo forte do pai, em seu<br />
prazer pelo trabalho, em sua mansidão para<br />
com os longos domingos. Era silencioso, mas<br />
escutava-se o amor murmurando – noite<br />
adentro – no quarto do casal. A casa, sem<br />
forro, deixava vazar esse murmúrio com aroma<br />
de fumo e canela, que invadia lençóis e<br />
dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas<br />
(QUEIRÓS, 2004, p. 25).<br />
A escrita de si à maneira elaborada por Bartolomeu<br />
Campos de Queirós se intensifica por meio do trabalho<br />
estético conduzido pelo autor ao longo de sua<br />
produção literária. Em distintas narrativas, personagens<br />
fundamentais para a constituição da subjetividade<br />
de um narrador paradigmático, ora desenhado<br />
em primeira pessoa, ora em terceira, parecem<br />
deslocar-se de um romance a outro como se, em<br />
cada paragem, o autor recuperasse as energias para<br />
seguir em direção aos enigmas de si.<br />
O romance Por parte de pai, por exemplo, constitui<br />
caso emblemático da construção simbólica de um<br />
avô, personagem multifacetado em sua obra. De sua<br />
construção infere-se uma das bases essenciais para<br />
a apreensão da estrutura subjetiva do narrador por<br />
ele desenhado.<br />
AVÔ<br />
Eu podia ser um menino arado, atentado,<br />
esperto, mas birrento nunca fui. Dormia feliz<br />
e acordava na manhã com as asas do nariz<br />
pretas de fumaça e cheiro. Não contava meus<br />
sonhos, por cisma de meu avô adivinhar errado<br />
e perder no jogo. Meu pai viajava nas estradas<br />
noites seguidas, semanas inteiras sem<br />
Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • trinta e um