26.04.2013 Views

Revista Palavra 2012 - Sesc

Revista Palavra 2012 - Sesc

Revista Palavra 2012 - Sesc

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Entende-se, portanto, que a memória do escritor<br />

não recuperou os fatos exatamente como aconteceram,<br />

pois não seria isso possível, dada a distância<br />

temporal entre o momento em que os fatos ocorreram<br />

e o momento em que estão sendo rememorados<br />

por meio da escritura. É possível mesmo que<br />

haja, no trabalho de rememoração, lapsos, omissões,<br />

acréscimos, recriação sobre o vivido. Da matéria<br />

de vida de tal modo reelaborada derivariam<br />

temas essenciais para construção da prosa poética<br />

tecida por Bartolomeu Campos de Queirós.<br />

Em Indez, por exemplo, acompanha-se um narra-<br />

dor em terceira pessoa a rememorar passagens da<br />

infância como em um exercício de reencontrá-la.<br />

Assim, o leitor testemunha passagens cortantes do<br />

nascimento de um menino que nasceu fora do tempo,<br />

sem ao menos pedir licença.<br />

NASCER<br />

Foi na estação das águas que Antônio chegou.<br />

Dizem que nasceu antes do tempo. Pediram<br />

galinhas gordas emprestadas aos vizinhos.<br />

Secaram suas roupas no canto do fogão.<br />

Jogaram seu umbigo na correnteza. Nasceu tão<br />

fraco que recebeu o batismo em casa, na correria<br />

sem festas. Para padrinho, escolheram casal<br />

de amigos bem próximos, com muitas desculpas.<br />

A morte sem batismo condenaria o menino,<br />

mesmo inocente, a viver eternamente no<br />

limbo, lugar sem luz (QUEIRÓS, 2004, p. 10).<br />

No transcorrer desta narrativa, descobrem-se de maneira<br />

semelhante momentos inaugurais do delicado relacionamento<br />

entre pai e mãe. Passagens reveladoras,<br />

por assim dizer, do modo como o narrador sublinha a<br />

existência simbólica das figuras de um pai e de uma<br />

mãe, que trouxeram o menino Antonio ao mundo.<br />

PAI E MÃE<br />

Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo<br />

no cuidado da mãe enxaguando as roupas<br />

nas águas de anil. Era silencioso, mas via-se<br />

o amor entre seus dedos cortando a couve,<br />

desfolhando repolhos, cristalizando figos,<br />

bordando flores de canela sobre o arroz-doce<br />

nas tigelas.<br />

Lia-se o amor no corpo forte do pai, em seu<br />

prazer pelo trabalho, em sua mansidão para<br />

com os longos domingos. Era silencioso, mas<br />

escutava-se o amor murmurando – noite<br />

adentro – no quarto do casal. A casa, sem<br />

forro, deixava vazar esse murmúrio com aroma<br />

de fumo e canela, que invadia lençóis e<br />

dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas<br />

(QUEIRÓS, 2004, p. 25).<br />

A escrita de si à maneira elaborada por Bartolomeu<br />

Campos de Queirós se intensifica por meio do trabalho<br />

estético conduzido pelo autor ao longo de sua<br />

produção literária. Em distintas narrativas, personagens<br />

fundamentais para a constituição da subjetividade<br />

de um narrador paradigmático, ora desenhado<br />

em primeira pessoa, ora em terceira, parecem<br />

deslocar-se de um romance a outro como se, em<br />

cada paragem, o autor recuperasse as energias para<br />

seguir em direção aos enigmas de si.<br />

O romance Por parte de pai, por exemplo, constitui<br />

caso emblemático da construção simbólica de um<br />

avô, personagem multifacetado em sua obra. De sua<br />

construção infere-se uma das bases essenciais para<br />

a apreensão da estrutura subjetiva do narrador por<br />

ele desenhado.<br />

AVÔ<br />

Eu podia ser um menino arado, atentado,<br />

esperto, mas birrento nunca fui. Dormia feliz<br />

e acordava na manhã com as asas do nariz<br />

pretas de fumaça e cheiro. Não contava meus<br />

sonhos, por cisma de meu avô adivinhar errado<br />

e perder no jogo. Meu pai viajava nas estradas<br />

noites seguidas, semanas inteiras sem<br />

Julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA • trinta e um

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!