Revista Palavra 2012 - Sesc
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A palavra ao leitor<br />
O grande patrimônio que temos é a memória. A<br />
memória guarda o que vivemos e o que sonhamos.<br />
E a literatura é esse espaço onde o que sonhamos<br />
encontra o diálogo. Com a literatura, esse mundo<br />
sonhado consegue falar. O texto literário é um texto<br />
que também dá voz ao leitor. Isso é o que há de<br />
mais importante para mim na literatura.<br />
Formação de leitor<br />
Meu avô morava em Pitangui, uma cidade perto de<br />
Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca<br />
mais trabalhou. Ele cultivou uma preguiça absoluta.<br />
Levantava pela manhã, vestia terno, gravata e se debruçava<br />
na janela. Todo mundo que passava falava:<br />
“Ô, seu Queirós!”. Ele falava: “Tem dó de nós”. Só<br />
isso. O dia inteiro. Tudo o que acontecia na cidade,<br />
ele escrevia nas paredes de casa. Quem morreu,<br />
quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado<br />
nas paredes do meu avô. Eu perguntava que<br />
palavra é essa, que palavra é aquela. Eu escrevia no<br />
muro a palavra com carvão, repetia. Ele ia lá para<br />
ver se estava certo. Na parede da casa dele, somente<br />
ele podia escrever. Eu só podia escrever no muro.<br />
Esse meu avô tinha um gosto absoluto pela palavra<br />
e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele.<br />
Criado com a metáfora<br />
Meu avô tinha um encantamento com as palavras. Eu<br />
fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento.<br />
Lembro que na casa dele tinha uma copa muito<br />
grande. Ele ficava sentado na ponta da mesa fazendo<br />
cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado<br />
na parede. De vez em quando, ele levantava a<br />
cabeça e falava para mim: “Sofreu, né? Sofreu demais.<br />
Sofreu tanto. Mas morreu gordo, você não acha?” Era<br />
toda uma trama que me deslocava. Já fui criado com<br />
a metáfora. Tive uma infância junto com as metáforas.<br />
A minha mãe era uma leitora. Não havia em casa literatura<br />
infantil. Eu lia os livros que a minha mãe lia.<br />
Também ficou uma coisa que hoje conto sem problemas.<br />
Quando a minha mãe morreu, eu tinha seis para<br />
dezesseis • julho <strong>2012</strong> REVISTA PALAVRA<br />
sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Minha<br />
mãe cantava muito bonito, ela era soprano. Quando<br />
a dor era muito forte, sabíamos que a morfina não<br />
era suficiente, a minha mãe cantava. A voz dela atravessava<br />
a casa e o quintal. Então, a gente sabia que<br />
ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando<br />
que eu também, quando dói muito, escrevo. É a<br />
mesma coisa. Hoje, não fico na janela como meu avô<br />
ficava. Mas fico o tempo todo em frente ao Windows.<br />
Trocamos os lugares, mas continuamos na janela.<br />
Construir o mundo com letras<br />
O meu avô brincava muito comigo usando as palavras.<br />
Ele escrevia “azul” e me pedia para escrever outra<br />
palavra na frente. Eu escrevia “preto”. Ele falava:<br />
“O azul hoje é quase preto”. Ele fazia uma frase usando<br />
as duas palavras. Eu ficava incomodado como<br />
ele, com toda a palavra, dava conta de fazer uma frase.<br />
Com duas palavras, construía uma oração. A metáfora<br />
é muito interessante para o escritor. A metáfora<br />
é onde o escritor se esconde e põe asas no leitor. [...]<br />
Acho que o leitor é tão criador quanto o escritor. [...]<br />
Literatura afetiva<br />
[...] Aprendi com Merleau-Ponty que a primeira leitura<br />
que a criança faz na sala de aula é a do olhar<br />
do professor. Há pessoas que quando nos olham nos<br />
afastam. Outras, quando nos olham, nos acariciam.<br />
Há crianças que não aprendem porque o olhar do<br />
professor não deixa. Há criança que não usa a liberdade<br />
porque tem medo do olhar do professor.<br />
O olhar do professor imobiliza. Muitas vezes, jogamos<br />
nas costas dos métodos a não aprendizagem<br />
da criança, quando, às vezes, a aprendizagem da<br />
criança é interditada pelo olhar do professor, que é<br />
a primeira leitura que ela faz. Merleau-Ponty descobriu<br />
uma coisa fundamental. Um dia, ele olha muito<br />
tempo para o sol e descobre que olhar dói. [...]<br />
Formação do professor<br />
Estou muito afastado dos processos educacionais.<br />
O homem é o único animal que pode ser educado.