a dança do movimento hip-hop eo movimento da dança ... - Embap
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ANAIS<br />
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE<br />
Escola de Música e Belas Artes <strong>do</strong> Paraná. Curitiba, 2005<br />
A DANÇA DO MOVIMENTO HIP-HOP<br />
E O MOVIMENTO DA DANÇA HIP-HOP<br />
Mauricio Priess <strong>da</strong> Costa *<br />
RESUMO: O presente trabalho trata <strong>da</strong>s manifestações <strong><strong>da</strong>nça</strong>ntes de ca<strong>da</strong> escola <strong>do</strong> Hip-<br />
Hop: o Break e o Street Dance. Para observar-se a linguagem corporal <strong>do</strong>s indivíduos que<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>m, foram filma<strong>da</strong>s as entrevistas, além <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> em si. A análise<br />
<strong>do</strong>s <strong>da</strong><strong>do</strong>s foi feita mediante a técnica de análise temática de conteú<strong>do</strong>. O diálogo com a<br />
literatura buscou historicizar essas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de <strong><strong>da</strong>nça</strong>, bem como o próprio <strong>movimento</strong><br />
Hip-Hop quanto ao contexto de sua origem. Após a coleta de <strong>da</strong><strong>do</strong>s, foi realiza<strong>da</strong> a análise<br />
<strong>do</strong>s mesmos, objetivan<strong>do</strong> o contraste entre as duas culturas (a velha e a nova). Buscou-se<br />
encontrar as origens destes contrastes, bem como apontar meios para preservar a Cultura<br />
Hip-Hop original sem “massacrar” a Nova Escola.<br />
INTRODUÇÃO<br />
O <strong>movimento</strong> negro Hip-Hop 1 está ca<strong>da</strong> vez mais evidente na mídia. O jeito negro de se<br />
vestir, de falar, de cantar, de <strong><strong>da</strong>nça</strong>r deixou de ser algo discriminável e passou a ser símbolo<br />
de status. Segun<strong>do</strong> Assumpção, 2 “somos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s e coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s por uma engrenagem<br />
capitalista, que nos sugere a ca<strong>da</strong> minuto como devemos nos vestir, morar, trabalhar e até nos<br />
mover”.<br />
Parece que esta socie<strong>da</strong>de capitalista descobriu um novo “filão cultural”: o Hip-Hop. É<br />
necessário esclarecer o que é, ou melhor, o que não é o Hip-Hop: ele não é um estilo musical<br />
ou um estilo de <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Também não pode ser considera<strong>do</strong> um “estilo de vi<strong>da</strong>” ou uma mo<strong>da</strong>,<br />
* Gradua<strong>do</strong> em Licenciatura em Educação Física pela Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Paraná. Coreógrafo e <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino <strong>do</strong><br />
grupo Street Soul; professor de Break, Hip-Hop e Street Dance.<br />
1 Hip = Cintura / Hop = Saltar.<br />
2 ASSUMPÇÃO, Andréa Cristhina Rufino. O balé clássico e a <strong><strong>da</strong>nça</strong> contemporânea na formação humana:<br />
caminhos para a emancipação. Curitiba, 2002. 39f. Monografia (Graduação em Licenciatura em Educação Física).<br />
UFPR. p. 1.<br />
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um jeito de se vestir, como a mídia insiste em apresentá-lo. É um <strong>movimento</strong> muito maior que<br />
tu<strong>do</strong> isso.<br />
Gente pobre, com empregos mal remunera<strong>do</strong>s, baixa escolari<strong>da</strong>de, pele escura. Jovens pelas<br />
ruas, desocupa<strong>do</strong>s, aban<strong>do</strong>naram a escola por não verem o porquê de aprender sobre democracia e<br />
liber<strong>da</strong>de se vivem apanhan<strong>do</strong> <strong>da</strong> polícia e sen<strong>do</strong> discrimina<strong>do</strong>s no merca<strong>do</strong> de trabalho. Ruas sujas e<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>s, poucos espaços para o lazer. Alguns, revolta<strong>do</strong>s ou acovar<strong>da</strong><strong>do</strong>s, partem para a violência, o<br />
crime, o álcool, as drogas; muitos buscam na religião a esperança para suportar o dia-a-dia; outros ouvem<br />
música, <strong><strong>da</strong>nça</strong>m, desenham nas paredes. Por incrível que pareça, não é o Brasil. Falamos <strong>do</strong>s guetos<br />
negros de Nova York nos anos 70, tempo e lugar onde nasceu o mais importante <strong>movimento</strong> negro e jovem<br />
<strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, o Hip-Hop. 3<br />
Este trecho <strong>do</strong> Livro vermelho <strong>do</strong> Hip-Hop aju<strong>da</strong> a esclarecer o que é o Hip-Hop: um<br />
<strong>movimento</strong> sócio-cultural, que visa à emancipação <strong>do</strong> negro e <strong>do</strong> pobre na socie<strong>da</strong>de,<br />
mediante a educação e a revolução. Porém, esse <strong>movimento</strong> vem sofren<strong>do</strong> transformações a<br />
ponto de apresentar duas faces, duas culturas Hip-Hop distintas: a Old School 4 e a New<br />
School, 5 ou a Velha e a Nova Escolas. “As manifestações artísticas e culturais estão histórica e<br />
socialmente liga<strong>da</strong>s à organização social em que foram produzi<strong>da</strong>s”. 6<br />
Nessa perspectiva, enfocaremos a <strong><strong>da</strong>nça</strong> como objeto de estu<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> <strong>movimento</strong><br />
como um to<strong>do</strong>, destacan<strong>do</strong> e contrapon<strong>do</strong> as duas formas de manifestações <strong><strong>da</strong>nça</strong>ntes: o<br />
Break, que faz parte <strong>da</strong> Old School, e o Street Dance, como representante <strong>da</strong> New School.<br />
Neste artigo serão trata<strong>do</strong>s os seguintes problemas: quais as diferenças entre as<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de <strong><strong>da</strong>nça</strong> Break e Street Dance? Quais as conseqüências <strong>da</strong> formação <strong>do</strong><br />
indivíduo que <strong><strong>da</strong>nça</strong> em ambas as práticas? Qual o impacto <strong>da</strong>s diferenças entre as<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des para a cultura Hip-Hop? E para a socie<strong>da</strong>de? Qual a origem dessas diferenças?<br />
Pretendemos, nesta pesquisa, desmistificar o Hip-Hop como bem de consumo <strong>da</strong><br />
indústria cultural, colocan<strong>do</strong>-o como <strong>movimento</strong> sócio-cultural. Esperamos estabelecer as<br />
diferenças e a origem dessas diferenças na Velha e na Nova Escolas, bem como observar<br />
como essas diferenças atingem a socie<strong>da</strong>de.<br />
Fizemos um diálogo com a literatura buscan<strong>do</strong> historicizar essas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>, bem como o próprio <strong>movimento</strong> Hip-Hop quanto ao contexto de sua origem. Porém,<br />
devi<strong>do</strong> à falta de literatura sobre o tema, foram utiliza<strong>do</strong>s fragmentos de entrevistas feitas com<br />
os próprios praticantes <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des, situan<strong>do</strong> as práticas em seu tempo. Além disso,<br />
“diferente <strong>da</strong> t<strong>eo</strong>ria teórica – discurso profético ou programático que tem em si mesmo o seu<br />
próprio fim e que nasce e vive <strong>da</strong> defrontação com outras t<strong>eo</strong>rias –, a t<strong>eo</strong>ria científica<br />
3<br />
PIMENTEL, Spensy. O livro vermelho <strong>do</strong> Hip-<strong>hop</strong>. Disponível em: .<br />
Acesso em: fev. 2003. p. 1.<br />
4<br />
Velha Escola.<br />
5<br />
Nova Escola.<br />
6<br />
ASSUMPÇÃO, Andréa Cristhina Rufino. O balé clássico e a <strong><strong>da</strong>nça</strong> contemporânea na formação humana:<br />
caminhos para a emancipação. Curitiba, 2002. 39f. Monografia (Graduação em Licenciatura em Educação Física).<br />
UFPR. p. 2.<br />
89
apresenta-se como um programa de percepção e de ação só revela<strong>do</strong> no trabalho empírico<br />
que se realiza”. 7<br />
REVISÃO DE LITERATURA<br />
Faz-se necessário esclarecer alguns termos nortea<strong>do</strong>res <strong>da</strong> pesquisa, como as<br />
diferentes concepções sobre os termos New School e Old School <strong>do</strong> Hip-Hop.<br />
Os termos em questão têm diferentes concepções na literatura e entre os próprios<br />
praticantes <strong>do</strong> Hip-Hop. Existem pelo menos três significa<strong>do</strong>s: para alguns praticantes, a Old<br />
School se refere à época <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>do</strong> Hip-Hop ao Brasil, quan<strong>do</strong> a maioria <strong>da</strong>s pessoas não<br />
tinha informação sobre o que era o <strong>movimento</strong>, nem mesmo os praticantes <strong>da</strong> cultura tinham<br />
muitos conhecimentos sobre os aspectos sociais <strong>do</strong> mesmo. Um divisor de águas é o MH2O,<br />
ou Movimento Hip-Hop Organiza<strong>do</strong>, que se apresentou em um show comemorativo ao<br />
aniversário de São Paulo, promovi<strong>do</strong> pela prefeitura em 1989 e organiza<strong>do</strong> pela própria escola<br />
velha <strong>do</strong> Hip-Hop.<br />
Andrade 8 observa que: “a Nova Escola [que veio depois <strong>do</strong> MH2O] forma<strong>da</strong> por garotos<br />
negros, em sua grande maioria – o que difere <strong>da</strong> Velha Escola forma<strong>da</strong> por ‘jovens adultos’ de<br />
outras etnias –, [...] organiza posses 9 para atender a compromissos de aperfeiçoamento e<br />
desenvolvimento de ações políticas e comunitárias”.<br />
Outras significações surgem dessa divisão <strong>do</strong> <strong>movimento</strong>, como a conheci<strong>da</strong> nas ruas<br />
de Curitiba: para alguns B. Boys, 10 a Old School é forma<strong>da</strong> por <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos mais velhos e com<br />
mais experiência, que levam a <strong><strong>da</strong>nça</strong> mais a sério e a executam de uma maneira mais<br />
completa, como era executa<strong>da</strong> em sua gênese, nos guetos americanos. Já a New School é<br />
forma<strong>da</strong> pelos novos <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos, que se pr<strong>eo</strong>cupam mais com a performance e executam,<br />
muitas vezes, apenas as partes <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> que lhes interessam.<br />
Quan<strong>do</strong> pergunta<strong>do</strong> em entrevista, qual a sua opinião sobre as diferenças entre a Nova<br />
e a Velha Escolas, o B. Boy Paulistão fez o seguinte comentário: “Que nem o pessoal <strong>do</strong><br />
Street 11 <strong><strong>da</strong>nça</strong> mais quebra<strong>do</strong>, né?! A gente não, a gente <strong><strong>da</strong>nça</strong> Boogie faz o Wave, 12 os<br />
passos, coisa que a galera não sabe, né?! No Street os passos são tu<strong>do</strong> tipo, é tu<strong>do</strong> passo cru.<br />
7<br />
BOURDIEU Pierre. O poder simbólico. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 59.<br />
8<br />
ANDRADE, cita<strong>da</strong> em: AMARAL, Marina; ANDRADE, Eliane Nunes. Mais de 50.000 manos. In: Revista Caros<br />
Amigos, São Paulo, n. 3, p. 4, 2003.<br />
9<br />
Posse: tem o mesmo significa<strong>do</strong> de gangue ou crew, que são os grupos que se reunem para discutir ações, tomar<br />
decisões e treinar a prática <strong>do</strong> break, <strong>do</strong> grafite ou <strong>do</strong> rap. (AMARAL, Marina; ANDRADE, Eliane Nunes. Mais de<br />
50.000 manos. In: Revista Caros Amigos, São Paulo, n. 3, p. 4, 2003)<br />
10<br />
Break Boy, <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino de Break.<br />
11<br />
Denominação utiliza<strong>da</strong> para definir a <strong><strong>da</strong>nça</strong> <strong>do</strong> Hip-Hop New School.<br />
12 Passos <strong>do</strong> Break.<br />
90
A gente aprende os passos básicos pra poder criar em cima, <strong>da</strong>í a gente aprende o Wave, pra<br />
colocar, pra criar a parte mais <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte”. 13<br />
Porém, a mais importante conotação <strong>do</strong>s termos New e Old School é a que será<br />
utiliza<strong>da</strong> neste trabalho: refere-se mais ao indivíduo <strong>do</strong> que ao <strong>movimento</strong> propriamente dito.<br />
“Ah sobre isso eu tenho pra falá uma coisa só. Eu acho que o Hip-Hop New School é tipo<br />
assim um jeito, um estilo que eles inventaram pra ficar mais fácil a com... comec...<br />
comercialização <strong>do</strong> Break, né?!”. 14<br />
Assim a Old School seria forma<strong>da</strong> por qualquer membro <strong>da</strong> cultura Hip-Hop que esteja<br />
liga<strong>do</strong> aos fatos históricos que construíram essa cultura, enquanto que a New School seria<br />
forma<strong>da</strong> pelos <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos de academia, que não se interessam nem pelos fatos históricos nem<br />
pelos aspectos sociais promovi<strong>do</strong>s pelo significa<strong>do</strong> <strong>da</strong> cultura Hip-Hop. São, em sua maioria,<br />
fruto <strong>do</strong> que a indústria cultural impõe como padrão, na maneira de vestir, pensar e agir.<br />
Essa distorção de uma cultura que nasceu nas ruas para conscientizar o povo negro,<br />
transforma<strong>da</strong> em uma cultura de consumo de massa e altamente elitiza<strong>da</strong>, é fruto <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de-merca<strong>do</strong> em que vivemos. Tu<strong>do</strong> pode ser transforma<strong>do</strong> em produto. A necessi<strong>da</strong>de<br />
de criar estereótipos é uma <strong>da</strong>s maneiras de vender mais. Assim, cria-se uma socie<strong>da</strong>de<br />
basea<strong>da</strong> em modelos impostos aos indivíduos, geran<strong>do</strong> grandes desigual<strong>da</strong>des sociais. “Por<br />
que pra mim o Break, tu<strong>do</strong> é Street Dance, mas foi um jeito, assim, que eles arranjaram pra<br />
comercializar, que nem no New School não tem muito, assim, as técnicas de chão”. 15<br />
Marcelo comenta sobre as principais diferenças entre a Nova e a Velha Escolas <strong>do</strong> Hip-<br />
Hop. Neste trecho <strong>da</strong> entrevista o <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino comenta sobre as técnicas deixa<strong>da</strong>s de la<strong>do</strong>, a fim<br />
de tornar o Break mais atraente para as massas.<br />
De fato, o Street Dance, não se pr<strong>eo</strong>cupa com as raízes <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> original: é constituí<strong>do</strong><br />
de passos inventa<strong>do</strong>s por um coreógrafo e imita<strong>do</strong> pelos outros <strong><strong>da</strong>nça</strong>rinos, crian<strong>do</strong> um<br />
processo de aprendiza<strong>do</strong> por repetição.<br />
ASPECTOS DA HISTÓRIA DO HIP-HOP<br />
Nas déca<strong>da</strong>s de 1960 e 1970, proliferou uma grande discussão sobre direitos humanos<br />
nos EUA. Os marginaliza<strong>do</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de Nova Iorque se articularam para fazer valer suas<br />
propostas na eliminação <strong>da</strong>s suas inquietações. Nessa época grandes líderes negros, como<br />
Martin Luther King e Malcom X, bem como muitos grupos, como os Panteras Negras, 16<br />
13<br />
PAULISTÃO, B. Boy. Entrevista ao autor. Curitiba, set. 2003.<br />
14<br />
BORRACHA, Marcelo, B. Boy. Entrevista ao autor. Curitiba, set. 2003.<br />
15<br />
BORRACHA, Marcelo, B. Boy. Entrevista ao autor. Curitiba, set. 2003.<br />
16<br />
Black Panthers, <strong>movimento</strong> anti-segregacionista que usava, estratégia e violência para reivindicar o lugar <strong>do</strong> negro<br />
na socie<strong>da</strong>de.<br />
91
surgiram com propostas diferentes, mas com um mesmo objetivo: lutar pelos direitos humanos<br />
<strong>do</strong>s negros.<br />
Esse ambiente influenciou os primeiros praticantes <strong>do</strong> Movimento, principalmente<br />
artistas como Grand Master Flash, que faziam os habitantes <strong>do</strong> gueto <strong><strong>da</strong>nça</strong>rem músicas que<br />
eles mesmos intitulavam de Raps, compostas por uma base musical <strong><strong>da</strong>nça</strong>nte acompanha<strong>da</strong><br />
de rimas fala<strong>da</strong>s que seguiam o ritmo. Além disso, a mensagem conti<strong>da</strong> nas letras era<br />
informativa e de alto t<strong>eo</strong>r político-social.<br />
Sobre a denominação Hip-Hop, Macari 17 escreveu: "o termo foi estabeleci<strong>do</strong> por Afrika<br />
Bambaataa, em 1978, inspira<strong>do</strong> em duas motivações distintas. A primeira delas estava na<br />
forma cíclica pela qual se transmitia a cultura <strong>do</strong> gueto. A segun<strong>da</strong> estava justamente na forma<br />
de <strong><strong>da</strong>nça</strong> mais popular na época, ou seja, saltar (<strong>hip</strong>), movimentan<strong>do</strong> os quadris (<strong>hop</strong>)”.<br />
O Hip-Hop não custou a chegar no Brasil. Em 1982, a juventude <strong>da</strong>s periferias <strong>da</strong>s<br />
grandes ci<strong>da</strong>des já <strong><strong>da</strong>nça</strong>va o Break e escutava os primeiros Raps, mesmo sem ter muita<br />
informação sobre o potencial social que permeava os elementos <strong>da</strong> cultura Hip-Hop. 18<br />
No entanto e acima de tu<strong>do</strong>, o Hip-Hop é um <strong>movimento</strong> sócio-cultural, que busca a<br />
emancipação e a inserção <strong>do</strong> negro na socie<strong>da</strong>de, não como pária, mas como ci<strong>da</strong>dão.<br />
Na entrevista Hip-Hop é revolução, Robson, membro <strong>do</strong> mesmo grupo, afirma: “Mas é<br />
isso mesmo, nós somos contra a paz, essa que está aí é paz de cemitério, <strong>do</strong>s guetos”. 19 Há<br />
quem busque outras formas de revolução mais pacíficas dentro <strong>do</strong> próprio Movimento, mas a<br />
maioria é condizente com a máxima de Robson.<br />
Além de constituir um forte <strong>movimento</strong> social, o Hip-Hop é também arte, é a junção de<br />
formas distintas de representação cultural, que são denomina<strong>da</strong>s elementos. Existem duas<br />
vertentes no que diz respeito aos elementos <strong>do</strong> Movimento, uma delas defende a idéia de que<br />
existem três elementos, a “trilogia sagra<strong>da</strong> <strong>do</strong> Hip-Hop”: a música (Rap), a plástica (o grafite) e<br />
a <strong><strong>da</strong>nça</strong> (o Break). Essa divisão se baseia na forma com que os elementos são transmiti<strong>do</strong>s.<br />
Porém, segun<strong>do</strong> Pimentel, 20 há outra divisão, que se baseia nos praticantes dessas<br />
formas de transmissão. Assim, o Hip-Hop teria quatro divisões: O MC (Mestre de Cerimônias),<br />
que canta o Rap e apresenta as ativi<strong>da</strong>des e os shows, o DJ (Disc Jockey), responsável pela<br />
música que serve de base para o MC cantar, o Grafiteiro, que expõe suas mensagens nas<br />
paredes e o B. Boy, o <strong><strong>da</strong>nça</strong>rino.<br />
17 MACARI. In: Revista DJ Sound, 94, s. p.<br />
18 PIMENTEL, Spensy. O livro vermelho <strong>do</strong> Hip-<strong>hop</strong>. Disponível em: .<br />
Acesso em: fev. 2003.<br />
19 GNOMO. Entrevista à revista Caros Amigos, 2003. p. 7.<br />
20 PIMENTEL. Op. cit., p. 1.<br />
92
INDÚSTRIA CULTURAL E A ORIGEM DAS DIFERENÇAS<br />
Nesta etapa <strong>do</strong> trabalho procuramos estabelecer a principal causa <strong>da</strong> grande diferença<br />
entre a Velha e a Nova Escola.<br />
Começamos este capítulo, utilizan<strong>do</strong> o texto sobre a ginástica e o circo, pois exprime<br />
também a essência <strong>do</strong> que diferencia a Velha <strong>da</strong> Nova Escola.<br />
Volta<strong>da</strong> para o conjunto de populações urbanas, objeto central de pr<strong>eo</strong>cupação <strong>do</strong> poder, a<br />
ginástica garante seu lugar na opinião pública e constitui-se como um saber a ser assimila<strong>do</strong>, pois se ajusta<br />
aos preceitos científicos e é por eles explica<strong>da</strong>. Aparece despi<strong>da</strong> de marcas originárias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> circo,<br />
<strong>da</strong> gestuali<strong>da</strong>de característica <strong>do</strong>s acrobatas e <strong>do</strong>s que possuíam o corpo como espetáculo. Em seu<br />
discurso e prática, alarga-se o temor que o imprevisível <strong>do</strong> circo, aparentemente, apresenta com seus<br />
artistas de arena em suspensões e gestos impossíveis e antinaturais, a mutação constante de seus corpos<br />
que representam ameaça ao mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> fixidez que se desejava afirmar. 21<br />
A Velha Escola representa a rua, os guetos e favelas e tem “a sua cara”. Como seria<br />
possível realizar as acrobacias e as peripécias executa<strong>da</strong>s no Break dentro de uma sala e<br />
aula? E se fosse possível executá-las, como tornar atraente uma cultura <strong>da</strong> rua, para a elite?<br />
Como observa a autora <strong>da</strong> citação menciona<strong>da</strong>, Carmem Lúcia Soares, quanto à ginástica e ao<br />
circo, também o Street Dance aparece despi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s marcas originárias <strong>do</strong> Break e <strong>da</strong><br />
gestuali<strong>da</strong>de característica <strong>do</strong>s B. Boys.<br />
Marcelo Borracha comenta: “as técnicas de Boogie que nem a gente faz, eles pegam<br />
assim só o grosso, na minha opinião eles pegam só o grosso pra poder comercializar”. 22 De<br />
fato, na fusão feita <strong>do</strong> Break com o Balé e o Jazz, muito <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong>s características<br />
originais <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong> se perderam em nome <strong>da</strong> comercialização.<br />
Outro fator importante na diferenciação <strong>da</strong> Cultura Hip-Hop é o <strong>da</strong> técnica corporal.<br />
Para Mauss, 23 “to<strong>da</strong> técnica propriamente dita tem sua técnica. Mas o mesmo acontece<br />
com to<strong>da</strong> a atitude corporal. Ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de tem hábitos que lhe são próprios”.<br />
Assim podemos tentar esclarecer o por que <strong>da</strong>s diferenças, não só nos pensamentos e<br />
atitudes <strong>do</strong>s praticantes, mas também nos próprios <strong>movimento</strong>s <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Como o Street<br />
Dance é uma variação <strong>do</strong> Break a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> para fins de comercialização, este cria suas próprias<br />
técnicas, diferencian<strong>do</strong>-se ca<strong>da</strong> vez mais de seu “irmão mais velho”; isso aju<strong>da</strong> a criar duas<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des distintas de <strong><strong>da</strong>nça</strong>.<br />
E as idéias e ideais, por que tantas diferenças?<br />
“Poder quase mágico, que permite obter o equivalente <strong>da</strong>quilo que é obti<strong>do</strong> pela força<br />
[física ou econômica], só se exerce se for reconheci<strong>do</strong>, quer dizer, ignora<strong>do</strong> como arbitrário“. 24<br />
21<br />
SOARES, Carmem Lúcia. Imagens <strong>da</strong> retidão: a ginástica e a educação <strong>do</strong> corpo. In: Educação física e ciências<br />
humanas. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 53.<br />
22<br />
BORRACHA, Marcelo, B. Boy. Entrevista ao autor. Curitiba, set. 2003.<br />
23<br />
MAUSS, Marcel. Noção de técnica corporal. In: Sociologia e Antropologia, São Paulo, EDUSP, 1974, v. 2. p. 213.<br />
24<br />
BOURDIEU Pierre. O poder simbólico. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. s. p.<br />
93
O trecho cita<strong>do</strong> refere-se ao poder simbólico, conceito de Pierre Bourdieu, que explica<br />
como a indústria cultural se apropria <strong>do</strong> conhecimento a fim de gerar bens de consumo.<br />
Acreditamos ser este um <strong>do</strong>s principais motivos gera<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s diferenças entre as escolas <strong>do</strong><br />
Hip-Hop.<br />
CONCLUSÃO<br />
Então, porque diferenças tão grandes entre duas faces <strong>da</strong> mesma cultura?<br />
Em resumo o merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bens simbólicos tem suas leis, que não são as <strong>da</strong> comunicação<br />
universal entre sujeitos universais: a tendência para a partilha indefini<strong>da</strong> <strong>da</strong>s nações que impressionou<br />
to<strong>do</strong>s os observa<strong>do</strong>res compreende-se se se vir que, na lógica propriamente simbólica <strong>da</strong> distinção [...]<br />
qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente, encerra o princípio <strong>da</strong> <strong>do</strong>minação de uma<br />
identi<strong>da</strong>de sobre outra, <strong>da</strong> negação de uma identi<strong>da</strong>de por outra. 25<br />
Analisan<strong>do</strong> o texto de Pierre Bourdieu, podemos perceber como a origem <strong>da</strong>s<br />
diferenças pode estar na lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. Ora, se tu<strong>do</strong> pode ser apropria<strong>do</strong> a fim de gerar<br />
bens de consumo, por que não o Hip-Hop? Com isso, pode-se compreender por que uma<br />
cultura que já foi despreza<strong>da</strong>, vítima <strong>do</strong> preconceito, transforma-se em um fenômeno <strong>da</strong> mídia.<br />
Outros conceitos <strong>do</strong> mesmo autor podem explicar como ca<strong>da</strong> escola se torna única, como o<br />
conceito de habitus: “o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquiri<strong>do</strong> e também<br />
um haver, um capital [...] o habitus, a hexis indica disposição incorpora<strong>da</strong>, quase postural”. 26<br />
Ou o <strong>do</strong> poder simbólico: “O poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser<br />
exerci<strong>do</strong> com a cumplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo<br />
que o exercem”. 27<br />
O habitus seria a razão para o “seguir por seguir” constata<strong>do</strong> em muitos fragmentos de<br />
reportagens <strong>da</strong> pesquisa, como o <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>rina Beatriz; quan<strong>do</strong> pergunta<strong>da</strong> sobre o por que de<br />
<strong><strong>da</strong>nça</strong>r o Street Dance, ela responde o seguinte: “Ah, porque é alegre”.<br />
A falta de pr<strong>eo</strong>cupação com a própria prática corporal pode ter origem no esta<strong>do</strong> de<br />
habitus. Assim como o poder simbólico seria a máquina por traz <strong>da</strong> industrialização <strong>do</strong> Hip-<br />
Hop. Os ideais <strong>do</strong> Movimento se espalharam rapi<strong>da</strong>mente pelo mun<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> comuni<strong>da</strong>des<br />
de determina<strong>da</strong>s regiões <strong>da</strong>s periferias se reestruturarem em busca de conhecimento. Esta<br />
disseminação não agra<strong>do</strong>u a alguns setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Então, “matam-se <strong>do</strong>is coelhos com<br />
uma caja<strong>da</strong><strong>da</strong> só”: a socie<strong>da</strong>de estabeleci<strong>da</strong> apropria-se <strong>do</strong> <strong>movimento</strong>, despin<strong>do</strong>-o de seus<br />
valores e, ao mesmo tempo, coloca um novo produto no merca<strong>do</strong>. Isso se transforma em<br />
“lucro”, com o “consentimento inconsciente” <strong>do</strong>s próprios praticantes <strong>da</strong> nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de.<br />
25 BOURDIEU. Op. cit., p. 129.<br />
26 BOURDIEU. Op. cit., p. 61.<br />
27 BOURDIEU. Op. cit., s. p.<br />
94
Existem diferenças imensas entre as técnicas <strong>da</strong>s duas escolas. Sua origem não é,<br />
simplesmente, um produto de mecanismos individuais; essas diferenças têm origem social: “de<br />
fato, a mo<strong>da</strong> <strong>do</strong> caminhar americano, graças ao cinema chegavam até nós. Era uma idéia que<br />
eu poderia generalizar. A posição <strong>do</strong>s braços, <strong>da</strong>s mãos caí<strong>da</strong>s enquanto se an<strong>da</strong>, formam<br />
uma idiossincrasia social e não simplesmente produtos de não sei que agenciamentos e<br />
mecanismos individuais, quase que inteiramente psíquicos”. 28<br />
Conforme Vaz afirma, a técnica corporal é um produto, sim, <strong>do</strong> meio social em que o<br />
indivíduo convive: se este está em um ambiente erudito, vai seguir as maneiras de trabalhar de<br />
acor<strong>do</strong> com este ambiente. O mesmo ocorre se o seu contexto é <strong>da</strong> periferia ou contesta<strong>do</strong>r.<br />
Daí as diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>do</strong> Hip-Hop.<br />
O impacto dessas diferenças nos praticantes <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des é deveras visível nas<br />
entrevistas. Praticantes <strong>da</strong> Nova Escola, com pouco conhecimento sobre a socie<strong>da</strong>de em que<br />
vivem, mostram-se estagna<strong>do</strong>s dentro de um processo de repetição indefini<strong>da</strong> e sem abertura<br />
para discussão. Mesmo assim, os praticantes estagna<strong>do</strong>s continuam desta maneira por opção<br />
própria. Afinal, “o corpo é o primeiro e mais natural instrumento <strong>do</strong> homem”. 29<br />
Referências<br />
ABRÃO, Ana Eliza. A per<strong>da</strong> <strong>da</strong> cultura no processo de esportivização <strong>da</strong> <strong><strong>da</strong>nça</strong>. Curitiba, 2002. 35f.<br />
Monografia (Graduação em Licenciatura em Educação Física). UFPR.<br />
AMARAL, Marina; ANDRADE, Eliane Nunes. Mais de 50.000 manos. In: Revista Caros Amigos, São<br />
Paulo, n. 3, p. 4, 2003.<br />
ASSUMPÇÃO, Andréa Cristhina Rufino. O balé clássico e a <strong><strong>da</strong>nça</strong> contemporânea na formação<br />
humana: caminhos para a emancipação. Curitiba, 2002. 39f. Monografia (Graduação em Licenciatura em<br />
Educação Física). UFPR.<br />
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