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1 AS QUESTÕES DO ATEÍSMO E DO MATERIALISMO EM ... - DFE

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<strong>AS</strong> <strong>QUESTÕES</strong> <strong>DO</strong> <strong>ATEÍSMO</strong> E <strong>DO</strong> <strong>MATERIALISMO</strong> <strong>EM</strong> COMTE<br />

Sergio Tiski 1<br />

RESUMO: O objetivo deste trabalho é esclarecer se, ou quanto, e como Comte foi ateu e<br />

materialista, e a sua concepção em relação ao ateísmo e ao materialismo; e assim contribuir<br />

questionando as afirmações não tão corretas sobre o assunto. As fontes são os escritos de<br />

Comte. Recolhemos, indutivamente, em vista de chegar à síntese (sinteticamente), todas as<br />

referências comtianas relevantes a respeito do ateísmo e do materialismo; recolhemos,<br />

dedutivamente (posicionando-nos, portanto, analiticamente), o seu posicionamento indireto; e<br />

fazemos a síntese, que é a “descrição” do seu posicionamento vital e da sua concepção a<br />

respeito deles. Naturalmente, esse processo metodológico indutivo-dedutivo, sintéticoanalítico,<br />

é dirigido pela nossa reflexão filosófica. Concluímos que Comte admitiu um<br />

ateísmo “etimológico” em relação ao Deus sobrenatural e afirmou um teísmo no qual Deus é a<br />

humanidade. Mas se exigirmos, como é necessário, que a Divindade deve ser eterna, então<br />

podemos afirmar que Comte é inteiramente, e não apenas etimologicamente ateu. Ele<br />

considerou o ateísmo como uma solução insuficiente, tanto intelectual quanto moral e<br />

politicamente, e nesse sentido trabalhou para superá-lo com o seu positivismo. Concluímos<br />

também que ele nunca admitiu para si nenhum materialismo. Mas como afirmou (afirmação<br />

bastante mitigada, porém, pelo seu agnosticismo, fenomenalismo e fenomenismo) a<br />

perpetuidade da matéria e a possibilidade de sua existência sem a vida, pode ser considerado<br />

materialista. Apesar disso, é melhor considerá-lo “ordem-ista”, afirmador da anterioridade da<br />

ordem que, para ele, é material e humana. “Ordem-ista” de uma ordem da qual pelo menos a<br />

base material é perpétua. “Ordem-ista” panteísta humanista, porque o vértice mais nobre<br />

dessa ordem, apesar de ser mortal, é divino. A humanidade é deusa e os homens igualmente,<br />

pois são seus agentes. E, enfim, que o materialismo (em suas três formas, prática, teórica e<br />

concreta), para Comte, é a opção pela acentuação do menos nobre, pela dominação do<br />

inferior, porque eterno, mais forte, em relação ao superior. Em termos teóricos ele é a<br />

explicação do superior pelo inferior.<br />

Palavras-chave: Comte, Ateísmo, Materialismo, Religião, Filosofia, História.<br />

ATHEISM AND MATERIALISM QUESTIONS IN COMTE<br />

ABSTRACT: The purpose of this work is to clear up whether or how much and how Comte<br />

was an atheist and a materialist, and his conception in relation to atheism and materialism;<br />

and thus contribute by questioning the not so correct statements about the subject. The sources<br />

are Comte’s writings. It was gathered, inductively, in order to get to the synthesis<br />

(synthetically), all relevant Comte’s references about atheism and materialism. It was<br />

gathered, deductively (taking an analytical position), his indirect position and a synthesis is<br />

made which is the “description” of his vital positioning as well as of his conception about<br />

them. Naturally this inductive-deductive, synthetic-analytical methodological process, is<br />

guided by our philosophical reflection. It is concluded that Comte admitted an “etymological”<br />

atheism in relation to the supernatural God and stated a theism in which God is humanity. But<br />

if we demand, as it is necessary, that the Divinity must be eternal, so it is possible to state that<br />

1 Professor do Deptº de Filosofia da UEL. Graduado em filosofia pela PUC de Curitiba e em teologia pela<br />

PUG de Roma; especialista em filosofia pela UEL; mestre em filosofia pela PUC de SP; doutor em filosofia pela<br />

UNICAMP.<br />

1


Comte is completely, and not just etymologically, atheist. He considered atheism as an<br />

insufficient solution, not only intellectually but also morally and politically, and in this sense<br />

he strove to overcome it with his positiveness. It is also concluded that he never admitted to<br />

himself any materialism. But as he stated (a rather mitigated statement, however, by his<br />

agnosticism, phenomenalism and phenomenism), the perpetuation of the material and the<br />

possibility of its existence without life, he can be considered a materialist. Despite that, it is<br />

better to consider him an “order-ist”, affirmer of the anteriority of order that, for him, is<br />

material and human. “Order-ist” of an order of which, at least, the material basis is perpetual.<br />

“Order-ist” pantheist humanist, because the most noble vertex of this order, despite being<br />

mortal, is divine. The humanity is a goddess and so are the men, for they are its agents. And,<br />

finally, that the materialism (in its three forms: practical, theoretical and concrete), for Comte,<br />

is an option by the stressing of the least noble, by the dominion of the inferior one because<br />

he/she is eternal, stronger in relation to the superior one. In theory it is the explanation of the<br />

superior by the inferior one.<br />

Key words: Comte, Atheism, Materialism, Religion, Philosophy, History.<br />

Introdução<br />

Primeiramente vamos situar o ateísmo e o materialismo na vida de Augusto Comte<br />

(filósofo francês, criador do termo “sociologia”, fundador do positivismo: Montpellier, 1798 –<br />

Paris, 1857). Depois vamos apresentar a posição de Comte a respeito do ateísmo e do<br />

materialismo. Quando acharmos conveniente, vamos colocar também a nossa própria posição.<br />

Utilizamos os termos ateísmo e materialismo no seguinte sentido, respectivamente:<br />

posição que nega a existência de Deus ou deuses e posição que afirma a anterioridade da<br />

matéria.<br />

O ateísmo e o materialismo na vida de Comte<br />

Comte nasceu de uma família católica. Em aproximadamente 1812 teve um primeiro<br />

afastamento que mais tarde referiu como “emancipação”, e em fins de maio de 1817 sofreu o<br />

que depois chamou de “conversão relativista” 2 . Passou ao ou a um ateísmo (ele diz<br />

“etimológico”) que reconheceu em Carta a Stuart Mill. Esse último escreve que a Carta<br />

filosófica sobre a comemoração social, de 2/6/1845, acarretará para Comte a denúncia de ser<br />

ateu. Comte responde:<br />

“... confesso-vos que gostaria muito de que tal debate público começasse logo e<br />

claramente; então eu escreveria uma carta pública sobre o ateísmo, na qual<br />

desenvolveria as diversas indicações incidentais que se encontram, a esse respeito, em<br />

duas ou três passagens de minha obra fundamental [o Curso]. Será necessário terminar<br />

explicando a fundo sobre essas absurdas ou maldosas insinuações. Em verdade, a<br />

qualificação de ateus não nos convém senão remontando estritamente à etimologia, o<br />

que é quase sempre um modo vicioso de interpretação dos termos mais usados; pois não<br />

2 Sobre isso ver o nosso texto intitulado A questão da religião em A. Comte.<br />

2


temos verdadeiramente em comum com os assim chamados senão o fato de não crer em<br />

Deus, sem, aliás, compartilhar de nenhuma maneira seus vãos delírios metafísicos sobre<br />

a origem do mundo ou do homem, e ainda menos suas estreitas e perigosas tentativas de<br />

sistematizar a moral. Se essa coincidência puramente negativa bastasse para nos fazer<br />

emparelhar racionalmente com essa ordem de espíritos, seria quase tão judicioso nos<br />

chamarem também de cristãos, pelo fato de concordarmos com esses últimos em não<br />

acreditar em Minerva ou Apolo. Assim, mesmo devendo ver historicamente os<br />

chamados ateus como sendo, com efeito, dentre todos os metafísicos, os menos<br />

afastados do estado verdadeiramente positivo, como já proclamei, devemos, creio, dar<br />

hoje muita importância em rejeitar comumente essa caracterização, fazendo aparecer,<br />

em toda ocasião favorável, pública ou privada, as diferenças radicais que separam<br />

evidentemente o verdadeiro positivismo sistemático desse simples negativismo<br />

provisório. Quanto a mim, já tive ocasião de convencer confidencialmente muitas<br />

pessoas de boa fé, e inclusive senhoras, de que se pode hoje não crer em Deus sem ser,<br />

contudo, um ateu propriamente dito. (...). (...). (...) [creio que Marrast & Cia. acharam]<br />

minha epístola [a Carta filosófica sobre a comemoração social] muito católica. (...)<br />

mostra que o positivismo é tão odioso à metafísica negativa quanto à teologia<br />

retrógrada.” 3 .<br />

Reconheceu, portanto, um ateísmo “etimológico” e jamais negou, mas diferia do<br />

ateísmo desde 1817, pelo fato de desde essa época já reconhecer o valor sociopolítico e moral<br />

do teísmo sobrenaturalista, e por tudo o mais que esse reconhecimento implicava. Essa crítica,<br />

esse antiateísmo (apesar de defender um ateísmo “etimológico”) também aparece nesse trecho<br />

acima a Stuart Mill.<br />

A partir de 1847 Comte reconheceu um Deus (theós), isto é, uma deusa, a<br />

humanidade, e a partir de 1848 fundou a religião dela. Continuou ateísta em relação ao Deus<br />

sobrenatural, mas tornou-se teísta em relação à deusa humanidade. Continuou ateísta quanto à<br />

Divindade sobrenatural, mas passou a propor um theós (deus) natural, isto é, uma divindade<br />

natural, a humanidade.<br />

Comte nunca se disse “teísta” ou “teologista”. Ele se disse “humanista” e realizador de<br />

“teoria” sobre a humanidade, e não teísta ou realizador de teologia a respeito da deusa<br />

humanidade. Ele se distanciou tanto do ateísmo quanto do teísmo: “Essas diferentes<br />

aberrações, atéias ou teístas, ...” 4 .<br />

Portanto, resumindo, ele começou teísta sobrenaturalista católico, passou a ateísta, mas<br />

passou também a valorizar o aspecto sociopolítico e moral do teísmo; depois retomou um<br />

teísmo imanentista e, enquanto tal tornou-se também antiateísta. Ateísta quanto ao<br />

sobrenatural, teísta quanto à humanidade e, ao mesmo tempo, antiateísta em relação aos que<br />

não reconhecem a divindade da humanidade 5 .<br />

Comte nunca se disse materialista, nunca assumiu intencionalmente nenhum<br />

materialismo. A época na qual ele esteve mais próximo do materialismo parece ter sido até<br />

1819. De 1817 a 1819, influenciado por Saint-Simon, ele pensava as teorias sociais, morais e<br />

3 Carta a Stuart Mill, 14/7/1845, Correspondência III, p. 58-59. A Carta filosófica sobre a comemoração<br />

social se encontra nas p. 27-33. Em todo este trabalho a tradução é sempre nossa. Nas citações transcrevemos os<br />

grifos dos próprios autores sempre em itálico. O que colocamos entre colchetes é acréscimo nosso.<br />

4 Sistema III, 1853, p. 73. Na p. 164 ele fala de “... pensadores plenamente libertados de toda crença teológica<br />

ou metafísica.” e de “... todo leitor libertado tanto do ateísmo quanto do teísmo.”.<br />

5 Como para Comte a humanidade é mortal, apesar de ser o Ser superior, isto é, Deus; e se exigirmos que a<br />

idéia de Deus implique imortalidade, então Comte, no limite, isto é, tirando a conseqüência, pode ser dito<br />

inteiramente ateu, e não apenas “etimologicamente” ateu. O nosso teísmo é sobrenaturalista, transcendente, ao<br />

contrário do de Comte (desde 1847/1848) que é naturalista, intranatural, imanentista, porque no nosso teísmo<br />

Deus não é do universo, não está no universo. Pelo contrário, de algum modo é o universo que está em Deus,<br />

dentro de Deus.<br />

3


políticas em vista da produção, com um acento aparentemente bastante materialista que<br />

posteriormente não reaparecerá mais 6 .<br />

Se houve, por um lado, essa proximidade com o materialismo, houve também, por<br />

outro lado, e também desde 1817, uma revalorização do aspecto sociopolítico da religião e a<br />

proposta de manutenção do poder moral, do poder espiritual vigente (mas já propondo<br />

também um novo poder espiritual). E desde 1818 Comte começou a criticar o fato da “ordem<br />

social” estar fundada na “força” 7 e a reivindicar uma política moral 8 .<br />

Coerentemente com a sua preocupação principal de fundar uma nova teoria e um novo<br />

poder teórico, separado e independente do poder temporal, a posição de Comte tornou-se cada<br />

vez mais afirmadora da necessidade de cultivo da vida teórica, “espiritual”, e de afastamento<br />

da vida “materialista”, isto é, vivida principalmente acentuando os aspectos materiais. Um<br />

bom exemplo pode ser visto em uma sua Carta a Gustave d’Eichthal, de 10/12/1824, na qual<br />

ele critica “... a fusão geral do espiritual no temporal operada desde Lutero.”, “... a enorme<br />

dificuldade em conservar o caráter espiritual em toda a sua pureza no meio de uma sociedade<br />

toda temporal, ...”, e o “governo do dinheiro”:<br />

“... não há doutrina, nem paixão, que possa unir os espíritos nesta época de anarquia. O<br />

governo domina sem contestação; cada um procura fazer seus negócios com ele ou de<br />

outro modo. O sistema político (se podemos dar-lhe esse nome) próprio ao estado<br />

presente da sociedade, isto é, o governo do dinheiro, toma de mais em mais seu caráter<br />

preponderante e se estabelece por toda parte. Isso é inevitável enquanto não há idéias<br />

sociais, doutrina geral, pois o interesse pessoal é o único procedimento para agir<br />

politicamente sobre indivíduos que não sabem mais o que é o bem e o mal em política;<br />

que não têm, em uma palavra, nenhuma moralidade política organizada. Cabe a nós<br />

mudar esta situação deplorável.” 9 .<br />

Comte nunca se disse materialista, e se até 1819 esteve próximo de uma posição<br />

materialista, a partir de então o seu afastamento foi crescente. E a partir do Curso, que<br />

começou a ser exposto oralmente em 1826, o materialismo é dito “aberração”, assim como o<br />

espiritualismo: “... o antigo antagonismo filosófico entre o materialismo e o espiritualismo.<br />

Pois essas duas tendências inversas, mas igualmente viciosas, (...): dupla aberração ...” 10 . A<br />

rejeição explícita do materialismo reaparece em todas as obras posteriores ao Curso.<br />

Enfim, do mesmo modo Littré admite para o seu positivismo apenas um materialismo<br />

mitigado, quase com os mesmos termos com os quais Comte, na Carta a Stuart Mill, acima,<br />

admite só o ateísmo “etimológico”: “Na verdade, a filosofia positiva não precisa nem rejeitar<br />

a qualificação de materialista, nem assumi-la; pois, ao mesmo tempo, ela pensa como o<br />

materialismo sobre a sobrenaturalidade, e ela pensa totalmente diferente dele sobre a<br />

concepção do mundo.” 11 .<br />

Intencionalmente antimaterialista, explicitamente antimaterialista, mas afirmador da<br />

existência ontológica anterior e independente do inorgânico, em relação ao orgânico, ao vivo,<br />

que, por sua vez, aparece e desaparece sempre dependente do inorgânico. Existência<br />

ontológica independente que permite afirmar a posição comtiana como substancialmente<br />

materialista, apesar de Comte nunca ter assumido intencionalmente nenhum materialismo 12 .<br />

6<br />

Sobre isso ver no primeiro caderno, escrito por Comte, da Revista A Indústria (de Saint-Simon), de<br />

setembro de 1817. In: R. TEIXEIRA MENDES, Evolução original, p. 108-109 e 125.<br />

7<br />

Carta a Valat, 17/11/18, Correspondência I, p. 47.<br />

8<br />

Carta de um antigo aluno da Escola Politécnica aos Senhores autores da revista O Político, 27/12/1818. In:<br />

Écrits de jeunesse ..., p. 109-111.<br />

9<br />

Correspondência I, respectivamente p. 141, 141 e 146.<br />

10<br />

Curso VI, 60ª lição, p. 773.<br />

11<br />

Augusto Comte e a filosofia positiva, p. 83.<br />

12<br />

Como para Comte a ordem não é apenas material e sim também vital e humana, então, no limite, isto é,<br />

tirando de novo a conseqüência, pode-se dizer que Comte acaba não sendo simplesmente materialista e sim<br />

4


O que é o ateísmo para Comte<br />

Comte abandonou o teísmo a partir de 1812/1817; revalorizou o seu aspecto<br />

sociopolítico e moral a partir de 1817; em 1845 reconheceu o seu ateísmo como apenas<br />

“etimológico”; e retomou uma espécie de teísmo, imanentista, naturalista, humanista, a partir<br />

de 1847/1848, como alternativa ao teísmo sobrenaturalista. A partir dessa data surgiu,<br />

portanto, em Comte, um teísmo não sobrenaturalista. Tudo isso já vimos.<br />

No trecho da Carta a Stuart Mill, de 1845, acima, Comte se refere às “diversas<br />

indicações incidentais que se encontram”, sobre o ateísmo, “em duas ou três passagens” do<br />

seu Curso. Trata-se de quatro trechos (p. 394-395, 441, 446 e 458) da 55ª lição do Curso V e<br />

de dois trechos do Curso VI (lição 56, p. 568-569 e lição 57, p. 612).<br />

Nesses trechos Comte caracteriza o ateísmo pré-sadio em relação ao seu, o<br />

“etimológico”, considerado o ateísmo sadio.<br />

Ele foi indispensável, mas imperfeito. Tratou-se apenas da última fase da filosofia<br />

metafísica:<br />

“Quanto ao caráter próprio dessa filosofia transitória, cuja intervenção crescente,<br />

durante os três últimos séculos, está agora demonstrada, em princípio, como não menos<br />

inevitável do que indispensável, ele [o caráter] é claramente determinado pela própria<br />

natureza da destinação que reconhecemos para ela [para a filosofia transitória], e cuja<br />

[destinação] só podia ser convenientemente satisfeita por uma doutrina sistemática de<br />

negação absoluta, sucessivamente estendida às principais questões morais e sociais,<br />

como já estabeleci suficientemente, embora com outra intenção, desde o início do<br />

volume precedente. É o que a razão pública já reconheceu, essencialmente, há muito<br />

tempo, de uma maneira implícita mas irrecusável, consagrando, unanimemente, a<br />

denominação muito expressiva de protestantismo, que, se bem que restrita normalmente<br />

ao primeiro estado de tal doutrina, não convém menos, no fundo, ao conjunto total da<br />

filosofia revolucionária. Com efeito, essa filosofia, desde o simples luteranismo<br />

primitivo, até ao deísmo do século passado, e mesmo sem excetuar o que chamam de<br />

“ordem-ista”, e em um sentido panteísta (já que a vitalidade humana, a humanidade é deusa, além também da<br />

divindade da terra e do espaço), lembrando Hegel, Spinoza etc. A ordem anterior não é simplesmente material.<br />

A anterioridade é da ordem (que é ao mesmo tempo material e humana, essa última incluindo a vitalidade), cuja<br />

materialidade inclusive deve se contrair, retrair, para depois voltar a se expandir novamente (“Sabemos,<br />

efetivamente, que apenas pela resistência contínua do meio geral, nosso mundo deve, a longo tempo, reunir-se<br />

inevitavelmente à massa solar de onde emanou, até que uma nova dilatação dessa mesma massa venha, na<br />

imensidão dos tempos futuros, organizar, da mesma maneira, um mundo novo, destinado a fornecer uma carreira<br />

análoga.”: Curso II, 1835, 27ª lição, de 9/1834, p. 439.). Não há, para Comte, criação da matéria: “A criação<br />

absoluta, na qual tudo viria do nada, deve ser descartada como incompatível com o conjunto dos conhecimentos<br />

reais, a partir do qual não podemos conceber um grama de matéria verdadeiramente introduzido ou suprimido.”<br />

(Carta a Robinet, 27/2/1855, Correspondência VIII, p. 32). Na Síntese subjetiva I, de 1856, p. 11, ele diz: “Não<br />

temos mais a necessidade do que a faculdade de conceber alguma criação absoluta, cuja noção é diretamente<br />

contraditória, desde que a ciência demonstrou que a quantidade total de matéria permanece sempre inalterável ao<br />

meio das mutações.”. Apesar da afirmação da perpetuidade e da anterioridade da ordem e da matéria, Comte<br />

opta pelo humanismo e pelo vitalismo contido nele: “É melhor estudar no próprio mestre [Barthez] o vitalismo<br />

provisório que deve agora vos servir como corretivo em relação ao materialismo parisiense, até que o vitalismo<br />

definitivo prevaleça a partir da escola sintética que o positivismo fará surgir plenamente, ...” (a Audiffrent,<br />

17/1/1856, Correspondência VIII, p. 204). Na Carta a Audiffrent, de 16/1/1857, ele diz “Esses vitalistas [de<br />

Montpellier] são, no fundo, mais próximos do positivismo do que os materialistas daqui, pois sempre sentiram a<br />

indivisibilidade da natureza humana, ...” (p. 383). Na de 18/7/1857, ele diz “Caracterizastes admiravelmente a<br />

principal comparação entre o vitalismo e o positivismo e sua comum rejeição do materialismo.” (p. 529).<br />

5


ateísmo sistemático, que constitui a sua fase mais extrema *, historicamente jamais pôde<br />

ser senão um protesto crescente e cada vez mais metódico contra as bases intelectuais da<br />

antiga ordem social, ulteriormente estendido, por uma seqüência necessária de sua<br />

natureza absoluta, a toda e qualquer organização verdadeira. Quaisquer que tenham sido<br />

os graves perigos a que esse espírito radicalmente negativo expôs, é preciso reconhecer<br />

nele uma condição fundamental da grande transição intelectual e social que tal filosofia<br />

devia finalmente dirigir.” 13 .<br />

* Embora essa fase final da filosofia metafísica deva ser, por isso mesmo, segundo<br />

nossa teoria, a mais próxima do estado positivo, e formar assim, sobretudo hoje, uma<br />

última preparação indispensável ao verdadeiro regime definitivo do entendimento<br />

humano, somente uma apreciação superficial ou maldosa pode fazer confundir com a<br />

filosofia positiva uma doutrina assim eminentemente negativa, necessariamente mais<br />

transitória do que qualquer outra, que condena, de uma maneira dogmaticamente<br />

absoluta, toda cooperação essencial das crenças religiosas para a evolução geral da<br />

humanidade, na qual a filosofia positiva lhes aponta racionalmente, ao contrário, a partir<br />

da sua lei mais fundamental [a lei dos três estados], uma função inicial, indispensável<br />

durante muito tempo, em todos os sentidos, se bem que necessariamente provisória. A<br />

preponderância de tal sistema não poderia chegar, no fundo, na prática, substituindo o<br />

culto da natureza ao culto do criador, senão a organizar uma espécie de panteísmo<br />

metafísico, do qual o espírito poderia retrogradar facilmente para as diversas fases<br />

sucessivas do sistema teológico mais ou menos modificado, de maneira a constituir logo<br />

uma situação ainda mais afastada, de fato, do que a fase puramente católica, do<br />

verdadeiro regime positivo. Acreditei conveniente indicar, de passagem, essa explicação<br />

especial, que se dirige exclusivamente aos juízes de boa fé: quanto aos outros, seria<br />

evidentemente supérfluo ocupar-nos.<br />

Essa limitação a ser apenas “panteísmo metafísico” é a mesma do tempo das “escolas<br />

gregas”:<br />

“... a tendência notável de certas escolas gregas, sob a decadência do regime politéico, a<br />

superar especulativamente os limites gerais do simples monoteísmo. Um esforço assim<br />

claramente prematuro, em um tempo no qual toda sã concepção de filosofia natural era<br />

evidentemente impossível, não podia, sem dúvida, chegar senão a uma espécie de<br />

panteísmo metafísico, no qual a natureza era, no fundo, abstratamente divinizada: mas<br />

tal doutrina diferia pouco, na realidade, do que depois se qualificou abusivamente de<br />

ateísmo; ela se aproximava dele principalmente quanto à oposição radical em relação a<br />

todas as crenças religiosas suscetíveis de uma verdadeira organização, o que é aqui o<br />

mais importante, pois se trata de idéias essencialmente negativas.” 14 .<br />

Comte fala também de “panteísmo ontológico” e de “panteísmo sistemático”:<br />

“Essa doutrina [hobbesiana], tão impropriamente qualificada de ateísmo, não é senão,<br />

no fundo, uma última fase essencial da antiga filosofia, que foi, no início, puramente<br />

teológica, depois de mais em mais metafísica, com os mesmos atributos essenciais, um<br />

espírito não menos absoluto, (...). (...): de modo que esse pretenso ateísmo quase se<br />

reduz, no fundo, a inaugurar uma deusa [a natureza] no lugar de um deus, (...). (...) um<br />

último preâmbulo crítico. (...). [faz parte da] filosofia plenamente negativa da qual se<br />

trata neste momento, e que ela [a filosofia verdadeiramente positiva] não pode ver senão<br />

como uma última transformação preparatória da filosofia primitiva, já igualmente<br />

elaborada (...), e enfim às diversas fases graduais da teologia metafísica, da qual essa<br />

espécie de panteísmo ontológico constitui somente a mais extrema modificação. (...),<br />

13 Curso V, 55ª lição, escrita de 10/1 a 26/2/1841, p. 394-395.<br />

14 Ibidem, p. 441.<br />

6


não mais decisiva que o deísmo propriamente dito, (...). (...) panteísmo sistemático ...”<br />

15 .<br />

Além da doutrina hobbesiana, Comte cita também a escolástica:<br />

“... assim deve causar pouca surpresa que o instinto popular tenha então perseguido<br />

tantos doutores [escolásticos] com a acusação de ateísmo; pois a doutrina transitória,<br />

assim qualificada ulteriormente, não pôde consistir senão, no fundo, em impelir até a<br />

inteira entronização da Natureza, primeira restrição escolástica da concepção monotéica<br />

[da total majestade de Deus ... pois assim Ele não poderia mais nada contra a Natureza<br />

à qual teria dado mecanismo independente], como já expliquei no capítulo precedente.”<br />

16 .<br />

Mas, de qualquer modo, tratou-se de “emancipação religiosa”, de “plena libertação<br />

teológica”:<br />

“Quanto à decadência intelectual da organização teológica, a crise revolucionária a<br />

agravou profundamente, propagando junto a todas as classes a inteira emancipação<br />

religiosa. Uma nação que, durante muitos anos, ao invés de reclamar seriamente contra<br />

a supressão legal do culto público por uma assembléia eminentemente popular, escutou<br />

pacificamente, nas suas velhas catedrais, a predileção direta por um audacioso ateísmo<br />

ou um deísmo não menos hostil às antigas crenças, certamente constatou<br />

suficientemente sua plena libertação teológica; ...” 17 .<br />

O texto fundamental de Comte sobre o ateísmo é, sem dúvida, o Discurso preliminar,<br />

de julho de 1848 18 . Assim como o materialismo, o ateísmo é dito um erro grave, muito<br />

freqüente e muito perigoso (p. 46).<br />

Comte afirma que a plena emancipação teológica é uma preparação indispensável,<br />

uma condição prévia para o estado positivo. Que se tratou e que se trata de uma situação<br />

puramente negativa que apresentava um caráter verdadeiramente progressista, mas que agora<br />

se torna obstáculo, naqueles nos quais se torna permanente. E que confundir o verdadeiro<br />

positivismo com o que chamam ateísmo constitui uma falsa apreciação: “Embora eu tenha<br />

rejeitado formalmente, há muito tempo, toda solidariedade, seja dogmática, seja histórica,<br />

entre o verdadeiro positivismo e o que chamam ateísmo, devo aqui indicar ainda, sobre essa<br />

falsa apreciação, alguns esclarecimentos sumários, mas diretos.” (p. 46).<br />

Todo o conjunto dos esclarecimentos se concentra em um só e longo parágrafo, que<br />

vai do final da p. 46 até o final da p. 49. Primeiro Comte analisa longamente o ateísmo sob o<br />

aspecto intelectual (p. 46-48); depois o analisa, em apenas duas frases, sob os aspectos moral<br />

e político ou social (p. 48); enfim, faz uma longa conclusão (p. 48-49).<br />

Comte opta, teoricamente, pelo agnosticismo e pelo fenomenalismo (e, praticamente,<br />

apenas praticamente, também pelo fenomenismo, como aparecerá mais adiante) 19 : “Mesmo<br />

sob o aspecto intelectual, o ateísmo não constitui senão uma emancipação muito insuficiente,<br />

porque ele tende a prolongar indefinidamente o estado metafísico buscando sem cessar novas<br />

soluções para os problemas teológicos, ao invés de descartar como radicalmente vãs todas as<br />

pesquisas inacessíveis.” (p. 46-47).<br />

15 Ib., p. 446.<br />

16 Curso VI, 56ª, escrita de 20/5 a 17/6/41, p. 568-9.<br />

17 57ª, escrita de 25/6 a 14/7/41 e de 23/12/41 a 15/1/42, p. 612.<br />

18 Utilizamos o texto republicado como primeira metade do Sistema I, em 1851, p. 46-49.<br />

19 Agnosticismo é a posição que declara a impossibilidade de conhecimento seguro a respeito de um assunto<br />

em pauta; fenomenalismo é a posição que afirma que só conhecemos “fenômenos”, isto é, só conhecemos o que<br />

se nos aparece e que de algum modo pode ser mensurado. Fenomenismo, por sua vez, é a posição que afirma que<br />

só existem “fenômenos”, isto é, só há o que aparece e de algum modo pode ser mensurado. Sobre isso ver no<br />

nosso texto A questão da religião em A. Comte, Introdução, notas 5 e 7.<br />

7


Contra os espíritos teológicos e metafísicos, que explicam através de causas e<br />

abstrações, e que querem “penetrar o mistério inacessível da produção essencial dos<br />

fenômenos”, Comte propõe o agnosticismo e o fenomenalismo:<br />

“O verdadeiro espírito positivo consiste principalmente em substituir sempre o estudo<br />

das leis invariáveis dos fenômenos ao estudo de suas causas propriamente ditas,<br />

primeiras ou finais, em uma palavra, a determinação do como àquela do por que. Ele é,<br />

portanto, incompatível com os orgulhosos delírios de um tenebroso ateísmo sobre a<br />

formação do universo, a origem dos animais, etc. Em sua apreciação geral de nossos<br />

diversos estados especulativos, o positivismo não hesita em ver essas quimeras<br />

doutorais como muito inferiores, mesmo em racionalidade, às inspirações espontâneas<br />

da humanidade. Pois o princípio teológico, consistindo em explicar tudo por vontades,<br />

não pode ser plenamente descartado senão quando, tendo reconhecido como inacessível<br />

toda pesquisa das causas, limitamo-nos a conhecer as leis. Enquanto se persiste em<br />

resolver as questões que caracterizaram nossa infância, faz-se mal em rejeitar o modo<br />

ingênuo que nossa imaginação aplica em relação a elas, e que é o único que convém,<br />

com efeito, à sua natureza. Essas crenças espontâneas não podiam se extinguir<br />

radicalmente senão na medida em que a humanidade, mais bem esclarecida sobre seus<br />

meios e suas necessidades, mudasse irrevogavelmente a direção geral de suas pesquisas<br />

contínuas. Quando se quer penetrar o mistério inacessível da produção essencial dos<br />

fenômenos, não se pode supor nada mais satisfatório do que os atribuir a vontades<br />

interiores ou exteriores, pois assim são assimilados aos efeitos diários das afeições que<br />

nos animam. Só o orgulho metafísico ou científico pôde persuadir os ateus, antigos ou<br />

modernos, de que suas vagas hipóteses sobre tal assunto são verdadeiramente superiores<br />

a essa assimilação direta, única que devia exclusivamente satisfazer nossa inteligência<br />

até que se tivesse reconhecido a inanidade radical e a inteira inutilidade de toda pesquisa<br />

absoluta.” (p. 47-48) 20 .<br />

Mas, teoricamente, Comte não propõe o fenomenismo: “Embora a ordem natural seja,<br />

em todos os sentidos, muito imperfeita, sua produção se conciliaria bem melhor com a<br />

suposição de uma vontade inteligente do que com um cego mecanismo.” (p. 48) 21 .<br />

Por isso e pelo anterior, “Os ateus persistentes podem ser vistos, portanto, como os<br />

mais inconseqüentes dos teólogos, porque eles perseguem as mesmas questões, mas rejeitando<br />

o único método que se adapta a elas.” (p. 48).<br />

Mas o “ateísmo puro” é muito raro: “Contudo o puro ateísmo é, mesmo hoje, muito<br />

excepcional.” (p. 48).<br />

O ateísmo ao qual estamos acostumados, Comte continua, não passa de última fase de<br />

destruição, de dissolvente, ateísmo pré-sadio:<br />

“Freqüentemente se chama assim um estado de panteísmo, que não é, no fundo, senão<br />

uma retrogradação doutoral para um fetichismo vago e abstrato, de onde podem<br />

20 No Catecismo positivista, de 1852, Comte diz que a solução dos “pensadores teologistas, e mesmo<br />

fetichistas” , era a “única possível”, naquele tempo e naquela situação, e “... muito superior em relação às<br />

tenebrosas ficções de nossos ateus ou panteístas, cujo estado mental se aproxima mais da loucura do que da<br />

ingênua situação dos verdadeiros fetichistas.” (p. 88).<br />

21 Sobre a opção prática pelo fenomenismo, vejamos, por exemplo, no Capítulo 1, de 1/1851, do Sistema II,<br />

1852, p. 57: “Ora, tal convicção autoriza suficientemente cada um de nós a dirigir para a Humanidade todo seu<br />

justo reconhecimento, mesmo se existisse uma providência ainda mais eminente, da qual emanaria a potência de<br />

nossa mãe comum. O conjunto dos estudos positivos exclui radicalmente essa última hipótese. Mas, no fundo,<br />

sua discussão especial tornou-se ociosa, tanto para o coração quanto para o espírito; ou melhor, ela oferece<br />

perigos equivalentes aos dois. Nossas verdadeiras necessidades intelectuais, teóricas e práticas, exigem somente<br />

o conhecimento da ordem universal, que devemos sofrer e modificar. Se sua fonte nos pudesse ser conhecida,<br />

deveríamos nos abster de procurá-la, a fim de não desviar nossos esforços especulativos de sua verdadeira<br />

destinação, o aperfeiçoamento contínuo de nossa condição e de nossa natureza. Sob o aspecto moral se dá o<br />

mesmo, e em um grau mais alto.”.<br />

8


enascer, sob novas formas, todas as fases teológicas, quando o conjunto da situação<br />

moderna cessa de conter o livre desenvolvimento das aberrações metafísicas. Tal regime<br />

indica, aliás, naqueles que o adotam como definitivo, uma valorização muito exagerada,<br />

ou mesmo viciosa, das necessidades intelectuais, e um sentimento demasiado imperfeito<br />

das necessidades morais ou sociais. Ele se combina freqüentemente com as perigosas<br />

utopias do orgulho especulativo quanto ao pretenso reino do espírito.” (p. 48) 22 .<br />

Na seqüência Comte passa ao julgamento desse ateísmo sob o aspecto moral: “Na<br />

moral propriamente dita, ele propicia uma espécie de consagração dogmática aos ignóbeis<br />

sofismas da metafísica moderna sobre a dominação absoluta do egoísmo.” (p. 48).<br />

Como se vê, para Comte esse ateísmo condena o homem a não enxergar a<br />

possibilidade de superar a lei do mais forte, insuperável no caso dos outros animais e dos<br />

vegetais. No caso do homem os instintos sociocêntricos civilizam e a civilização é exigida<br />

pela vida prática. Essa civilização é o antídoto contra a especialização produzida pela divisão<br />

social do trabalho. A cooperação exigida pela necessidade de satisfazer as necessidades<br />

práticas, concretas, materiais, fazem o abandono do egoísmo, da simples lei do mais forte. Os<br />

revolucionários ateus da época, segundo Comte, exageravam a divisão e agravavam a<br />

anarquia. Faziam o inverso, portanto, do que era necessário, isto é, a desunião: se existe “a<br />

dominação absoluta do egoísmo”, não nos resta senão continuar na guerra de todos contra<br />

todos. Em 1848 Comte, invertendo essa inversão, começa a afirmar a sua religião, que<br />

definirá na seqüência como sendo essencialmente unidade, síntese e conciliação.<br />

E a acusação se repete sob o aspecto político e social: “Em política, ele tende<br />

diretamente a tornar indefinida a situação revolucionária, pelo ódio cego que inspira em<br />

relação ao conjunto do passado, do qual ele impede toda explicação verdadeiramente positiva,<br />

própria a nos desvelar o futuro humano.” (p. 48).<br />

Esse ateísmo impede o término da Revolução. Impede a unidade, a síntese e a<br />

conciliação positivas. Bem ao contrário de Marx, por exemplo, Comte fala de “incorporação”<br />

do proletariado na sociedade moderna, e não de “tomada do poder” pelo proletariado, o que<br />

justificaria a continuidade da Revolução 23 .<br />

Enfim, Comte começa a concluir:<br />

“O ateísmo não pode dispor hoje, portanto, à verdadeira positividade senão aqueles nos<br />

quais ele constitui somente uma situação muito passageira, a última e a menos durável<br />

de todas as fases metafísicas. Como a propagação atual do espírito científico facilita<br />

bastante essa extrema transição, aqueles que chegam à idade madura sem tê-la<br />

espontaneamente cumprido anunciam assim uma espécie de impotência mental,<br />

22 Socialmente a utopia do reino do espírito é a “sofocracia”, isto é, o governo dos sábios. Individualmente é<br />

o governo do intelecto, da inteligência, da razão, ou, simplesmente, do espírito. Comte separa três partes tanto no<br />

indivíduo quanto no coletivo: sentimento (sete sentimentos ou instintos egocêntricos, que normalmente<br />

governam desde dentro, e três sentimentos ou instintos sociocêntricos, que devem tender sempre a governar, mas<br />

sem nunca conseguir plenamente), inteligência (é e deve ser sempre apenas conhecimento, esclarecimento) e<br />

caráter ou praticidade (vontade), que governa “fora”, a vida prática. À inteligência e ao caráter correspondem os<br />

dois principais poderes sociais, respectivamente, o poder espiritual e o poder temporal, material, político.<br />

23 Sobre esse aspecto sociopolítico e moral, vejamos o que Comte escreve no Sistema IV, 1854, p. 388:<br />

“Deve-se doravante relegar ao último lugar dos teologistas, os deistas, os panteístas, e os ateus, que, não menos<br />

incapazes de juntar do que de regrar, nunca puderam criar igreja, e perderam toda função depois do século da<br />

demolição.”. E no Apelo, 1855, p. 74-75: “Deve-se hoje situar no último lugar da escala teológica todas as seitas<br />

indisciplináveis que, sob as vagas denominações de deísta, panteísta, e mesmo atéia, não concordam, mantendo a<br />

síntese absoluta, senão em privá-la de todas as garantias mentais e morais. Quando essas crenças sem culto se<br />

tornam suficientemente intensas para evitar o estado puramente negativo, elas permanecem tão impróprias a<br />

juntar quanto a regrar, e não chegam senão a consagrar o individualismo completo. Mais hostis do que todas as<br />

outras à religião positiva, essas almas, felizmente excepcionais, aspiram à mais profunda retrogradação,<br />

sonhando a confusão dos dois poderes.”.<br />

9


freqüentemente ligada à insuficiência moral, e pouco conciliável com o positivismo.”<br />

(p. 48-49).<br />

Começa a concluir, e duramente, como se vê. Chegar à idade madura sem tê-lo<br />

superado revela impotência intelectual e insuficiência moral.<br />

Se no Curso Comte mostrava que a filosofia revolucionária foi historicamente<br />

inevitável e indispensável, agora o acento é na provisoriedade e, portanto, superação:<br />

“As afinidades puramente negativas sendo sempre fracas ou precárias, a verdadeira<br />

filosofia moderna não pode se contentar mais com a não-admissão do monoteísmo do<br />

que com aquela do politeísmo ou do fetichismo, que ninguém julgaria suficientes para<br />

motivar relações simpáticas. Semelhante preparação não tinha importância, no fundo,<br />

senão para aqueles que tiveram que tomar a iniciativa na tendência direta da<br />

humanidade para uma renovação radical. Ela já cessou de ser verdadeiramente<br />

indispensável, pois a caducidade do regime antigo não deixa mais nenhuma dúvida<br />

essencial sobre a urgência da regeneração.” (p. 49).<br />

Deve-se superar do monoteísmo apenas o sobrenatural, e não a unidade, a síntese e a<br />

ordem que ele conseguiu. Tudo o que o monoteísmo católico fez em termos de “relações<br />

simpáticas” deve ser mantido e continuado, aprofundado 24 .<br />

Politicamente a persistência desse ateísmo acaba, agora, para Comte, sendo pior do<br />

que a manutenção do sobrenaturalismo monoteísta católico:<br />

“A persistência anárquica, caracterizada principalmente pelo ateísmo, constitui<br />

doravante uma disposição mais desfavorável ao espírito orgânico, que já deveria<br />

prevalecer, do que pode ser um sincero prolongamento dos antigos hábitos. Pois esse<br />

último obstáculo não impede mais a verdadeira colocação direta da questão<br />

fundamental, e ele até tende muito a provocá-la, obrigando a nova filosofia a não<br />

combater as crenças atrasadas senão a partir de sua aptidão geral a satisfazer melhor<br />

todas as necessidades morais e sociais. Ao invés dessa salutar concorrência, o<br />

positivismo não poderá receber senão uma estéril reação da oposição espontânea que o<br />

ateísmo lhe apresenta hoje em tantos metafísicos e sábios, cujas disposições<br />

antiteológicas não chegam mais senão a entravar, por uma rejeição absoluta, a<br />

regeneração que prepararam, em certos sentidos, no século precedente.” (p. 49).<br />

Enfim, a última frase do trecho volta ao aspecto intelectual (“opiniões”) e ao aspecto<br />

moral (“orgulho”, um dos sete instintos egocêntricos): “Longe de contar com o apoio dos<br />

ateus atuais, o positivismo deve, portanto, encontrar neles adversários naturais, embora o<br />

pouco de consistência de suas opiniões permita, aliás, converter facilmente aqueles cujos<br />

erros não são devidos essencialmente ao orgulho.” (p. 49).<br />

Depois do Discurso preliminar Comte só voltou a escrever sobre o ateísmo<br />

incidentalmente, de passagem. Dessas passagens, vejamos quatro que nos permitem esclarecer<br />

certa irmandade entre o ateísmo e o materialismo, em Comte 25 .<br />

24 Os três sentimentos ou instintos sociocêntricos, veneração, apego e bondade, voltados, respectivamente, ao<br />

passado, presente e futuro, são resumidos por Comte no amor, ou altruísmo, ou, como nesse trecho, na simpatia.<br />

25 Dos quatro textos o primeiro é da Introdução fundamental, escrita de 10/1849 a 24/2/1850: “É<br />

principalmente lá [na cosmologia atual] que reside o ateísmo propriamente dito, mais hostil hoje à verdadeira<br />

filosofia do que qualquer outro teologismo, como o meu Discurso preliminar explicou. O materialismo também<br />

apanha nela as suas principais forças intelectuais, apesar de que a biologia desenvolve mais os seus perigos<br />

morais. É, portanto, em cosmologia, que a religião demonstrada deve cumprir as mais vastas eliminações e as<br />

retificações mais difíceis e mais urgentes.” (Sistema I, p. 456). O segundo é do Catecismo positivista, p. 101-<br />

102: “Percebo espontaneamente os perigos intelectuais e morais próprios dessa cultura objetiva, enquanto ela<br />

permanece desprovida da disciplina subjetiva que acabais de me explicar. Então a sucessão necessária das<br />

diversas fases enciclopédicas obriga provisoriamente o gênio científico a seguir um regime de especialização<br />

dispersiva, diretamente contrário à plena generalidade que deve caracterizar as visões teóricas. De lá resultaram<br />

cada vez mais, sobretudo entre os sábios, e na seqüência até no público, por um lado o materialismo e o ateísmo,<br />

e por outro lado o desprezo pelas afeições ternas e o esquecimento das belas-artes. Há muito tempo sei quanto,<br />

10


Os dois primeiros textos permitem ver que o ateísmo e o materialismo surgiram e<br />

surgem, para Comte, na medida em que se abandona a sociologia e a moral, isto é, a “filosofia<br />

moral”, e o “caminho descendente” do homem ao mundo, para fazer o caminho inverso,<br />

ascendente do mundo ao homem, a partir da “filosofia natural” (matemática, astronomia,<br />

física, química). Nesse encontro com a realidade mundana aparece a materialidade, a matéria,<br />

o fenômeno, e a sua mensurabilidade. Eis que despontam o materialismo e o ateísmo em<br />

relação à vida e à vida humana, e em relação ao sobrenatural.<br />

Os dois últimos textos mostram que se antes se explicava o físico pelo moral, o<br />

materialismo e o ateísmo materialista cometem o erro inverso, explicando o moral (o homem)<br />

pelo físico (o mundo), e, no fundo, eliminam igualmente um dos pólos do dualismo irredutível<br />

(o teísmo e o espiritualismo acabam negando o mundo; o ateísmo e o materialismo acabam<br />

negando o homem).<br />

Uma última questão em relação ao ateísmo de Comte, quanto às razões dessa opção.<br />

Pelo aspecto teórico, em primeiro lugar devemos levar em conta o seu posicionamento<br />

agnóstico-fenomenalista e fenomenista: Deus não se nos aparece e, portanto, também não<br />

pode ser mensurado. Conseqüentemente, na ótica de Comte, Ele, no mínimo, não existe para<br />

nós 26 .<br />

Ele foi e é criatura da humanidade:<br />

“A teoria subjetiva de Deus nos permite conciliar tudo sem concessão, mostrando que as<br />

crenças teológicas foram instituições espontâneas da Humanidade, para se criar, em sua<br />

infância, guias imaginários, que a espécie preponderante não podia encontrar na ordem<br />

real. Nossos precursores imediatos, os enciclopedistas do século passado, retidos, pela<br />

metafísica, no ponto de vista puramente individual e, desde ele, incapazes de<br />

sentimentos históricos, tinham viciosamente atribuído essas crenças a legisladores<br />

incrédulos, que as tinham forjado para dominar. Contudo podemos passar desse falso<br />

sistema à apreciação normal substituindo a espécie ao indivíduo, de maneira a<br />

representar o pretenso Criador como uma verdadeira criatura, não do homem, mas da<br />

Humanidade, cujas instituições têm o poder de submeter a razão pessoal com tanta força<br />

quanto as leis exteriores do Destino universal. Assim, os positivistas honram, segundo<br />

os tempos e os lugares, primeiro os deuses, depois o seu único herdeiro, como criações<br />

provisórias do Grande-Ser. Em relação ao último estado do catolicismo, eles devem<br />

glorificar especialmente a Virgem como a precursora mística da Humanidade. Seu culto<br />

será facilmente transformado de maneira a agregar as almas católicas, sobretudo<br />

femininas, à adoração positivista. É sobretudo dirigindo essa transição que os jesuítas,<br />

regenerados como inacianos, poderão nos ajudar a reorganizar o Ocidente, contanto que<br />

sob todos os aspectos, o verdadeiro positivismo, longe de oferecer qualquer solidariedade real com seu<br />

preâmbulo científico, constitui, ao contrário, o melhor corretivo em relação a ele.”. Os dois últimos são do<br />

Sistema III, p. 73: “Essas diferentes aberrações, atéias [postular um positivismo primitivo] ou teístas [postular<br />

um monoteísmo primitivo], não resultam senão do empirismo que, sobretudo sob o regime do absoluto, dispõe<br />

cada um a aplicar em todas as questões as suas próprias opiniões.” e p. 91: “... os ateus e panteístas, que,<br />

parodiando a positividade, são, no fundo, os últimos representantes do espírito teológico. Tornados, sem<br />

nenhuma desculpa social, os mais inconseqüentes órgãos do regime das causas, eles continuam a pesquisa do<br />

absoluto, mas proscrevendo a única solução que ela permite. Eles desnaturam profundamente a síntese inicial,<br />

fazendo-a perder sua feliz subjetividade, e tornando-a inutilmente objetiva, a partir de seu materialismo<br />

característico, que se esforça por explicar a natureza moral pelo mundo físico, abusando da verdadeira<br />

subordinação enciclopédica.”.<br />

26 O aspecto teórico, na citação a seguir, da Carta a George Frederick Holmes, de 10/3/1853, aparece nos<br />

termos filosofia e dúvida. Os aspectos morais e políticos, que aparecem, respectivamente, nos termos moral e<br />

política, corrupção e anarquia, serão abordados adiante: “Qualquer um que creia em Deus, nos nossos dias,<br />

torna-se, por isso mesmo, incapaz de construir qualquer coisa seriamente em filosofia, em moral e em política;<br />

pois todas as crenças sobrenaturais não fazem senão desenvolver, há muito tempo, a dúvida, a corrupção e a<br />

anarquia, tanto na prática quanto na teoria.” (Correspondência VII, p. 51).<br />

11


econheçam a superioridade normal da Religião fundada sobre a existência natural das<br />

inclinações benevolentes, que o catolicismo foi forçado a negar para fazer prevalecer<br />

plenamente o Egoísmo divino.” 27 .<br />

Em segundo lugar, a própria idéia de deuses ou Deus sobrenatural, para Comte, é uma<br />

noção autocontraditória. Os três assim chamados atributos de Deus, onipotência, onisciência e<br />

bondade total são contraditórios entre eles. Do seguinte modo: se Ele pode tudo e mantém a<br />

imperfeição no mundo, é porque não vê ou não quer; se vir e não pode, não é onipotente; se<br />

vir, se pode aperfeiçoar, completar, mas não quer, isto é, mantém a imperfeição (e, portanto, o<br />

mal, a dor, a morte, etc.), então não é total bondade 28 .<br />

Como se pode ver parece que essa posição comtiana não leva em conta principalmente<br />

a noção de liberdade da criatura humana (e outras possíveis criaturas racionais ou até mais<br />

que racionais, se isso for possível), e a noção de criação não terminada, ainda em processo<br />

(condição da liberdade). Supondo isso, parece então que Deus pode e vê, mas não quer,<br />

porque quer antes a liberdade que criou; e mantém a incompletude para que a liberdade possa<br />

ser exercida. E isso indefinidamente ou com um término.<br />

Pelo aspecto moral Comte diz que o Deus do monoteísmo é um Deus caprichoso (que<br />

age por capricho, isto é, sem necessidade), arbitrário (pode fazer assim ou inversamente,<br />

conforme o seu arbítrio, sem nenhuma submissão a nenhuma lei ou leis, obedecendo somente<br />

a si próprio) e egoísta. Capricho e arbitrariedade que acabam funcionando como testemunhos<br />

de sua inexistência, pois o universo tem regularidade legal, de tal modo que, por exemplo,<br />

sempre chove para baixo e evapora para cima. A espontaneidade e a liberdade previstas pelo<br />

determinismo, muito maiores para a humanidade e para os homens, sempre segundo Comte,<br />

não chegam até o ponto de permitir caprichos e arbitrariedades 29 .<br />

Entretanto, infelizmente para Comte e felizmente para nós, contamos com a<br />

possibilidade dos milagres, se não no sentido de negação do determinismo, ao menos no<br />

sentido de inspirar para o aproveitamento das oportunidades, para escapar da trajetória de um<br />

projétil, etc., sem que no cômputo geral tenha havido interferência. Mas de fato afirmamos<br />

27 Carta a John Metcalf, 28/2/1856. In: Correspondência VIII, p. 231-232.<br />

28 Quanto aos teologismos em geral, vejamos no Discurso preliminar: “A natureza absoluta, indefinida e<br />

imutável dos tipos teológicos nunca permitiu conciliar neles as condições essenciais de bondade, sabedoria e<br />

poder, ...” (In: Sistema I, p. 341). Em relação ao monoteísmo, vejamos no Sistema III, p. 431-432: “Mas o<br />

monoteísmo, (...), cumpriu uma concentração necessariamente contraditória. Pois ele teve que conceder ao motor<br />

supremo uma onipotência incompatível com os outros atributos intelectuais e morais que tal tipo exigia. (...).<br />

Mas a unidade divina forçou a instituir um tipo de perfeição absoluta, englobando ao mesmo tempo os três<br />

atributos da humanidade, a afeição, a especulação e a ação. Ora, essa concepção se torna necessariamente<br />

contraditória, por causa da impossibilidade de conciliar a onipotência de tal chefe com sua inteligência e sua<br />

bondade igualmente infinitas. Para que esse ser todo poderoso não fosse inferior a nós pelo coração e pelo<br />

espírito, o mundo que ele tinha construído não deveria oferecer nenhuma dessas imperfeições radicais que os<br />

sofismas monotéicos jamais puderam dissimular.”.<br />

29 Quanto ao “capricho”, vejamos, por exemplo, no Discurso preliminar: “... a sublime inércia do antigo Ser<br />

Supremo, cuja existência passiva não era suspensa senão por inexplicáveis caprichos.” (Sistema I, p. 335); no<br />

Catecismo positivista, p. 116: “O que seria dessa ordem admirável, (...), se fosse preciso introduzir uma potência<br />

infinita, cujos caprichos, não comportando nenhuma previsão, ameaçariam-na sempre de uma inteira<br />

subversão?”; no Sistema III, p. 125-126: “Se (...), as espécies (...) pudessem se substituir mutuamente ao bel<br />

prazer das potências divinas, os acontecimentos poderiam comportar alguma outra fixidez senão aquela que<br />

conviria aos supremos caprichos?” e p. 446: “Seus desejos estando sempre realizados, não se pode conceber-lhes<br />

outra fonte senão puros caprichos, ...”. Com relação à “arbitrariedade”, vejamos, por exemplo, no Sistema III, p.<br />

197: “Pois o coração e o espírito deviam acolher melhor uma nobre hierarquia de divindades independentes [do<br />

politeísmo] do que a arbitrária dominação de um só deus.” e p. 495: “... e substituir as vontades arbitrárias pelas<br />

leis imutáveis.”. Quanto ao “capricho” e à “arbitrariedade” juntos, vejamos, por exemplo, na Carta a Henry Dix-<br />

Hutton, de 8/12/1853: “Ao contrário, os segundos [isto é, os adoradores de Deus] adoram um Ser absoluto, cujo<br />

poder é sem limites, de tal sorte que suas vontades permanecessem necessariamente arbitrárias. Se eles fossem<br />

realmente conseqüentes, deveriam ver-se, portanto, como a verdadeiros escravos, submetidos aos caprichos de<br />

uma potência impenetrável.” (Correspondência VII, p. 147-148).<br />

12


mais do que essa última possibilidade; achamos que o próprio determinismo pode ser mudado<br />

pelo Criador: de fato achamos que Deus criou o universo assim e poderia, pode recriá-lo<br />

inversamente. Deus, se quiser, pode refazer toda a lógica, totalmente. Pode, por exemplo,<br />

refazer, inverter a lógica moral, digamos, tornando bom punir o inocente e premiar o culpado<br />

30 .<br />

O que para Comte é “capricho”, para nós é liberdade e ou poder; e o que é “arbítrio”,<br />

para ele, para nós é prerrogativa totalmente legítima do Criador que, como tal, é também<br />

Árbitro ou Juiz.<br />

Mas pior é a afirmação do egoísmo. O monoteísmo, segundo Comte, prega um Deus<br />

auto-suficiente, majestoso, impassível (no sentido de não precisar ser ativo), inerte (no sentido<br />

de não precisar se mover), que orienta os seus fiéis a serem individualmente como Ele. Cada<br />

fiel é sozinho com Deus. E eles não têm em si mesmos as tendências benevolentes. Precisam<br />

que a graça de Deus venha puxá-los do externo. Isso, segundo Comte, inviabiliza o coletivo, a<br />

comunidade, a sociedade. Mas, sempre segundo Comte, como a cooperação é exigida pela<br />

divisão social do trabalho, e ocorre (o que prova a existência natural dos instintos<br />

sociocêntricos), superamos o egoísmo, seu Deus e sua religião 31 .<br />

Dizer que Deus é necessário, que continua imprescindível, não é negar que sejamos<br />

naturalmente bons, que tenhamos os instintos benevolentes. É só dizer que sem Deus não dá,<br />

que sem Ele voltamos ao nada. E o monoteísmo não é tão “mono”: falamos em um Deus em<br />

três pessoas, e ou, de Deus com anjos, homens, animais, vegetais, outras tantas possíveis<br />

criaturas. Mas o mais importante, na nossa concepção, é exatamente a negação do egoísmo: o<br />

motivo para o Deus completo e feliz criar não teria sido senão criar felizes em torno a si,<br />

30 Bem ao contrário, portanto, desta afirmação de Comte: “Essas anomalias [isto é, poder suspender as leis<br />

naturais] eram espontaneamente restritas às leis físicas, mais indutivas do que dedutivas, sem poder superar a<br />

indivisibilidade da economia humana, nenhuma ficção tendo ousado dispensar Deus até em relação às leis<br />

lógicas.” (Sistema III, p. 434).<br />

31 Quanto ao egoísmo e às inclinações benevolentes, vejamos, por exemplo, no Sistema III, p. 446: “... a<br />

fórmula metafísica viver em si e por si convém igualmente aos dois modos extremos da vitalidade. O tipo divino<br />

se aproxima assim do último degrau de animalidade, o único no qual a existência, reduzida à vida nutritiva,<br />

permanece inteiramente individual. Essa sublime consagração do egoísmo absoluto tende diretamente a<br />

neutralizar o desenvolvimento simpático do crente monoteísta, cuja saúde eterna deve consistir em tal<br />

contemplação, à qual cada um se prepara durante a vida temporária. Mas, mais ainda, a existência terrestre<br />

estando então voltada para a sua destinação celeste, as inclinações altruístas produzem nela uma distração<br />

culpável, proibida ao verdadeiro devoto em nome de seus melhores interesses, sempre necessariamente pessoais.<br />

Além da impotência geral do teologismo para representar o ponto de vista social, o monoteísmo se encontra<br />

assim impelido especialmente a negar a espontaneidade das afeições benevolentes, compatíveis com o<br />

politeísmo.” e p. 447: “Nem o egoísmo absoluto do tipo supremo, nem a negação dogmática das afeições<br />

desinteressadas, nem a consagração direta de uma insuperável personalidade puderam, todavia, impedir o<br />

catolicismo de participar admiravelmente na evolução afetiva da idade média.”. Com relação à graça, vejamos,<br />

por exemplo, na Carta a Barbot de Chement, de 23/8/1850: “... o positivismo se apodera definitivamente do<br />

antigo domínio da graça, (...). Esse terreno outrora sobrenatural (...). (...). (...), inicialmente como regidos por<br />

vontade impenetráveis, depois como sujeitos a leis demonstráveis. (...). Para ele [o catolicismo] a graça, isto é,<br />

no fundo, o amor (segundo o admirável autor da Imitação ‘gratia sive dilectio’) não dependia senão dos<br />

caprichos divinos; teria sido mesmo um sacrilégio buscar as suas leis. Nós, ao contrário, vemos essas sublimes<br />

funções cerebrais como ainda mais susceptíveis do que todas as outras de ser dignamente regradas, porque elas<br />

devem em seguida servir de regulador normal para o resto do organismo nervoso.” (Correspondência V, p. 180-<br />

181) e no Sistema II, p. 378: “Segundo os pressentimentos cavaleirescos, ele [o sexo afetivo] deve possuir para<br />

sempre o departamento supremo da graça, que a antiga divindade tinha se reservado especialmente em suas<br />

últimas concessões.”. Enfim, quanto à vida prática e material exigir o coletivo, vejamos no Sistema III, p. 444:<br />

“Mas o monoteísmo, exclusivamente ocupado em ligar cada homem a Deus, fez completa abstração de nossa<br />

existência material, na qual a colaboração social não pode jamais ser descartada. (...). O verdadeiro tipo da<br />

existência cristã sanciona diretamente a inércia prática, especialmente recomendada a partir da maldição divina<br />

do trabalho e da reprovação absoluta da guerra.”.<br />

13


expandindo e repartindo a felicidade, coletivizando, fazendo “eklesia”, isto é, comunidade. Só<br />

que isso, ao que parece, ainda está em processo.<br />

Politicamente, segundo Comte, os monoteísmos e suas inúmeras ramificações estão<br />

desunindo (lembremo-nos de que religião, para Comte, é unidade!) cada vez mais a<br />

humanidade. Promovendo a anarquia. Isso leva Comte a rejeitar Deus em nome da religião 32 .<br />

Esse é um problema, a nosso ver, dos homens e não de Deus. Cada grupo descobre,<br />

experiencia algo de Deus ou em relação a Deus e acaba reduzindo-o a essa parte que<br />

privilegiou. E quer impor isso (e outras coisas!) aos demais. Mas parece que isso não pode ser<br />

debitado para Deus! E essa situação acaba justificando que em nome do Deus completo ou, ao<br />

menos em nome de outra “parte” de Deus, se faça um ateísmo legítimo contra o ídolo e a<br />

guerra contra ele. Acabamos construindo ídolos em relação ao Deus completo e verdadeiro e<br />

isso acaba justificando que os outros, apoiando-se nele ou em outra experiência em relação a<br />

Ele, em outra “parte” dele, tenham que denunciar nossa imposição (e nosso deus falso, um<br />

ídolo, portanto). Nesse sentido a idéia de Deus como um ser perfeito acaba sendo uma idéia<br />

altamente positiva, como subversiva das situações imperfeitas.<br />

Mas ainda há mais. Além de tudo isso, desse lado, digamos, “negativo”, há ainda o<br />

lado positivo do ateísmo de Comte. Ele diz que, mesmo que não houvesse esses problemas, e<br />

mesmo se houvesse o Deus do monoteísmo, nós devíamos nos abster de encontrá-lo, em<br />

nome da moral, do aperfeiçoamento moral. Devemos trabalhar por nós mesmos, sem<br />

interferência externa. Esse é o nosso dever e essa é a nossa felicidade. Nossa obrigação é com<br />

o Ser superior mais próximo de nós, isto é, os outros, a humanidade:<br />

“Ora, tal convicção autoriza suficientemente cada um de nós a dirigir para a<br />

Humanidade todo o seu justo reconhecimento, mesmo se existisse uma providência<br />

ainda mais eminente, de onde emanasse a potência de nossa mãe comum. (...). Nossas<br />

verdadeiras necessidades intelectuais, teóricas e práticas, exigem somente o<br />

conhecimento da ordem universal, que devemos sofrer e modificar. Se sua fonte nos<br />

pudesse ser conhecida, deveríamos nos abster de procurá-la, a fim de não desviar nossos<br />

esforços especulativos de sua verdadeira destinação, o melhoramento contínuo de nossa<br />

condição e de nossa natureza. E o mesmo se dá, e em um grau mais alto, sob o aspecto<br />

moral. Nosso reconhecimento, pessoal ou coletivo, pelos benefícios da ordem real deve<br />

se limitar ao seu autor imediato, cuja existência e atividade nos são continuamente<br />

apreciáveis. Assim dirigido, ele se expandirá de maneira a desenvolver plenamente o<br />

grande melhoramento moral que essas justas homenagens devem nos oferecer. Mesmo<br />

que nossa mãe comum encontrasse, na ordem real, uma providência superior à sua, não<br />

caberia a nós fazer chegar diretamente a ela nossa gratidão. Pois tal descontinuidade<br />

moral, além de sua injustiça evidente, tornar-se-ia logo contrária à principal destinação<br />

de nosso culto, desviando-nos da adoração imediata, única plenamente conforme a<br />

nossa natureza afetiva. O regime provisório que termina nos nossos dias manifestou<br />

32 Quanto à promoção da anarquia, vejamos, por exemplo, no Discurso preliminar: “O monoteísmo se<br />

encontra hoje, no Ocidente, tão esgotado e corruptor quanto se encontrava o politeísmo quinze séculos atrás. (...).<br />

Cada tendência teológica, católica, protestante ou deísta, colabora realmente para prolongar e agravar a anarquia<br />

moral, impedindo o ascendente decisivo do sentimento social e do espírito de conjunto, únicos que podem<br />

reproduzir convicções fixas e costumes seguros. Não há atualmente nenhuma utopia subversiva que não apanhe<br />

sua base ou sua sanção no monoteísmo.” (Sistema I, p. 397-398). Quanto a descartar Deus em nome da religião,<br />

vejamos nas Cartas a Pierre Laffitte, de 26/9/1849: “... pude constatar enfim que o emprego sistemático do<br />

indispensável termo religião com seus derivados não ofusca mais Littré, bastante tocado até pela esperança de<br />

descartar finalmente Deus como irreligioso.” e de 18/10/1849: “Enquanto que os protestantes e os deístas sempre<br />

atacaram a religião em nome de Deus, nós devemos, ao contrário, descartar finalmente Deus em nome da<br />

religião.” (Correspondência V, p. 87 e 98), e na Carta a Benedetto Profumo, de 17/5/1851: “Essa plena harmonia<br />

com as principais necessidades atuais nos permite uma atitude extremamente firme em relação a Deus, que não<br />

hesito em descartar claramente em nome da religião, pois ele não apresenta, há três séculos, senão uma<br />

influência corruptora e perturbadora.” (Correspondência VI, p. 89).<br />

14


astante esse grave perigo, pois nele a maior parte dos agradecimentos dirigidos ao ser<br />

fictício constituía atos de ingratidão em relação à Humanidade, única autora real dos<br />

benefícios correspondentes.” (Sistema II, p. 57-58).<br />

O que é o materialismo para Comte<br />

Como já vimos, para Comte, o materialismo, assim como o ateísmo, é um erro grave,<br />

muito freqüente e muito perigoso. Eles foram e são desvios, efeitos colaterais do caminho<br />

ascendente da escala enciclopédica. Quando se fazia e se refaz a matemática, a astronomia, a<br />

física e a química, isto é, a “filosofia natural”, foi e é comum enxergar só o mundo, e,<br />

sobretudo, a sua materialidade, a matéria.<br />

Se em relação ao ateísmo a contraposição era o teísmo, o deísmo e outros correlatos,<br />

aos quais Comte opõe um teísmo específico seu, em relação ao materialismo o contraposto<br />

principal, em Comte, é o espiritualismo 33 , aos quais ele opõe o seu humanismo, o seu<br />

positivismo humanista.<br />

Como também já vimos, desde a 60ª e última lição, escrita de 9 a 13/7/1842, do Curso,<br />

Comte já fala do “antigo antagonismo filosófico entre o materialismo e o espiritualismo”<br />

como coisa superada. Se o espiritualismo é a acentuação da independência e da dignidade das<br />

ciências ou estudos superiores em relação às ciências ou estudos inferiores, o materialismo é a<br />

tendência das ciências ou estudos inferiores a absorver, a impedir a independência das<br />

ciências ou estudos superiores:<br />

“Embora esse regime definitivo deva evidentemente aumentar bastante a independência<br />

e a dignidade de todas as ciências, o estudo dos corpos vivos é, contudo, aquele que<br />

deve naturalmente tirar mais vantagens, pois foi até agora o mais exposto a desastrosas<br />

usurpações, contra as quais ele não parece poder encontrar garantias efetivas senão sob<br />

a proteção, ainda mais perigosa, e, todavia, muito insuficiente, das concepções<br />

teológico-metafísicas. O deplorável conflito que resulta, em biologia, de tal oposição,<br />

constitui hoje a única influência séria que o antigo antagonismo filosófico entre o<br />

materialismo e o espiritualismo ainda pôde conservar. Pois essas duas tendências<br />

inversas, mas igualmente viciosas, cuja íntima correlação as destina a desaparecer<br />

simultaneamente sob a preponderância final do verdadeiro espírito positivo, não<br />

representam senão, no fundo, uma, a disposição natural das ciências inferiores a<br />

absorver abusivamente as superiores, a outra, o entusiasmo espontâneo dessas últimas<br />

em supor a manutenção de sua justa dignidade, sempre ligada à tenebrosa conservação<br />

da antiga filosofia: dupla aberração que agora não tem mais gravidade profunda senão<br />

em relação aos estudos biológicos, nos quais ela será necessariamente superada pela<br />

feliz aptidão da filosofia final para regrar convenientemente cada constituição científica,<br />

ao mesmo tempo sem opressão e sem anarquia.” 34 .<br />

33 O nosso espiritualismo vê o humano, o vital, o vegetal e o material como criaturas. Do contrário, teríamos<br />

que aceitar a divindade deles e do universo, ou de algo ou alguém dele, como Comte faz.<br />

34 Curso VI, p. 772-773. No Discurso, de 1844, ele diz que se trata de acentuar, respectivamente, a realidade<br />

ou a dignidade: “Em seu desenvolvimento preliminar, único cumprido até agora, o espírito positivo, tendo se<br />

estendido gradualmente dos estudos inferiores aos estudos superiores, esses últimos foram inevitavelmente<br />

expostos à opressiva invasão dos primeiros, contra cujo ascendente a indispensável originalidade deles não<br />

encontrava inicialmente garantias senão em um prolongamento exagerado da tutela teológico-metafísica. Essa<br />

deplorável flutuação, muito sensível ainda em relação à ciência dos corpos vivos, caracteriza hoje o que contêm<br />

de real, no fundo, as longas controvérsias, aliás, tão vãs em todo outro sentido, entre o materialismo e o<br />

espiritualismo, como representantes, de maneira provisória, sob formas igualmente viciosas, das necessidades,<br />

15


O primeiro texto mais completo de Comte sobre o materialismo foi o trecho das p. 49<br />

a 54 do Discurso preliminar, de 1848.<br />

Nesse texto o materialismo é o ascendente exagerado do método e da doutrina própria<br />

da ciência anterior em relação à seguinte: “É em tal exageração que consiste, aos meus olhos,<br />

a aberração científica à qual o instinto público aplica sem injustiça a qualificação de<br />

materialismo, pois ele tende, efetivamente, a degradar sempre as mais nobres especulações<br />

assimilando-as nas mais grosseiras.” (In: Sistema I, 1851, p. 50).<br />

Nesse sentido, continua Comte, “… o materialismo constitui um perigo inerente à<br />

iniciação científica, tal como até agora ela se cumpriu, cada ciência tendendo a absorver a<br />

seguinte em nome de uma positividade mais antiga e melhor estabelecida.” (p. 50-51).<br />

Ele existe, além de entre as ciências fundamentais, também entre as partes de cada<br />

uma delas:<br />

“Um verdadeiro filósofo reconhece o materialismo tanto na tendência comum dos<br />

matemáticos atuais em absorver a geometria ou a mecânica pelo cálculo, quanto na<br />

usurpação mais acentuada da física pelo conjunto da matemática, ou da química pela<br />

física, sobretudo da biologia pela química, e enfim na disposição constante dos mais<br />

eminentes biologistas em conceber a ciência social como um simples corolário ou<br />

apêndice da sua. Trata-se do mesmo vício radical, o abuso da lógica dedutiva; e do<br />

mesmo resultado necessário, a iminente desorganização dos estudos superiores sob a<br />

cega dominação dos inferiores. Todos os sábios propriamente ditos são, portanto, hoje,<br />

mais ou menos materialistas, conforme a simplicidade e a generalidade mais ou menos<br />

acentuada dos fenômenos correspondentes.” (p. 51).<br />

Esse abuso da dedução impede as induções que fundam a especificidade da ciência<br />

seguinte: “Mas os biologistas, que mais reclamam contra tal usurpação [dos sábios das<br />

ciências anteriores, e principalmente dos geômetras] merecem, por sua vez, as mesmas<br />

repreensões, quando pretendem, por exemplo, explicar tudo em sociologia pelas influências<br />

puramente secundárias de clima ou de raça, pois então eles desconhecem as leis fundamentais<br />

que apenas uma combinação direta das induções históricas pode desvelar.” (p. 51).<br />

O espiritualismo tem tentado inutilmente barrar o materialismo:<br />

“Até agora o mal não foi contido senão pela resistência espontânea do espírito<br />

teológico-metafísico; e esse ofício provisório tem constituído a destinação,<br />

indispensável embora insuficiente, do espiritualismo propriamente dito. Mas tais<br />

obstáculos não podiam impedir a enérgica ascensão do materialismo, assim investido,<br />

aos olhos da razão moderna, de certo caráter progressista, por sua ligação prolongada<br />

com a justa insurreição da humanidade contra um regime que se tornou retrógrado.<br />

Assim, apesar desses impotentes protestos, a opressiva dominação das teorias inferiores<br />

compromete muito, hoje, a independência e a dignidade dos estudos superiores.<br />

Satisfazendo, para além de toda possibilidade anterior, ao que há de legítimo nas<br />

pretensões opostas do materialismo e do espiritualismo, o positivismo os descarta<br />

irrevogavelmente de uma só vez, um como anárquico, e o outro como retrógrado. Esse<br />

duplo serviço resulta espontaneamente da simples fundação da verdadeira hierarquia<br />

enciclopédica, que assegura para cada estudo elementar seu livre desenvolvimento<br />

indutivo, sem alterar sua subordinação dedutiva.” (p. 52).<br />

igualmente graves, embora infelizmente opostas entre si, de realidade e de dignidade das nossas especulações.<br />

Chegado agora à sua maturidade sistemática, o espírito positivo dissipa de uma só vez essas duas ordens de<br />

aberrações terminando esses estéreis conflitos, pela satisfação simultânea dessas duas condições viciosamente<br />

contrárias, como indica já à primeira vista nossa hierarquia científica combinada com nossa lei de evolução, pois<br />

cada ciência não pode chegar a uma verdadeira positividade a não ser que a originalidade de seu caráter próprio<br />

esteja plenamente consolidada.” (In: Traité philosophique d’astronomie populaire, p. 108-109). Na Carta a<br />

Stuart Mil, de 21/1/1846 ele diz “... estéril antagonismo ainda subsistente entre a escola materialista ou físicoquímica<br />

e a escola espiritualista ou teológico-metafísica.” (Correspondência III, p. 298).<br />

16


Além dessa necessidade de superação filosófica, Comte passa à crítica do<br />

materialismo sob o aspecto político: ele dispõe a desconhecer o princípio mais fundamental da<br />

política (“arte social”), isto é, a “divisão sistemática dos dois poderes, espiritual e temporal”<br />

(p. 53). O materialismo acentua o mundo, e, portanto, o temporal, em detrimento do homem,<br />

do espiritual. Desse modo, continua ele, “Reconhecer-se-á assim que o positivismo não é<br />

menos radicalmente oposto ao materialismo por sua destinação política do que por seu caráter<br />

filosófico.” (p. 53).<br />

Moralmente, enfim, o materialismo dispõe a descartar ou desconhecer os fenômenos<br />

afetivos:<br />

“A partir de sua relação provisória com o conjunto do movimento de emancipação, as<br />

aberrações materialistas foram, ao contrário, freqüentemente ligadas, entre os modernos,<br />

às mais generosas inspirações. Mas, além de que essa solidariedade passageira já<br />

cessou, é preciso reconhecer hoje que, mesmo nos melhores casos, tal tendência<br />

intelectual sempre alterou, em certo grau, o desenvolvimento espontâneo de nossos mais<br />

nobres instintos, dispondo a descartar ou a desconhecer os fenômenos afetivos que essas<br />

grosseiras hipóteses não podiam representar.” (p. 53).<br />

Resumindo o que vimos até agora sobre o que é o materialismo para Comte, já temos<br />

uma distinção importante, entre materialismo prático e materialismo teórico, apesar de até<br />

agora ele usar somente o termo “materialismo”, sem nenhum dos dois adjetivos. Eles<br />

aparecem juntos apenas em 1856: “Quando o estado normal tiver prevalecido assaz, (...). Tal<br />

maturidade dispensará o sacerdócio dos cuidados contínuos que ele deve tomar ainda para<br />

preservar os Ocidentais do materialismo teórico e prático, ao qual eles são espontaneamente<br />

inclinados a partir do conjunto de seus antecedentes, e mesmo de sua existência.” (Síntese<br />

subjetiva I, p. 372). Isolada, a expressão “materialismo teórico” aparece desde a Sétima<br />

Circular anual, de 15/1/1856 (Correspondência VIII, p. 197), e desde o começo da Síntese<br />

subjetiva I (p. 83, 102, 106, 117, etc.).<br />

O materialismo prático é simplesmente o modo de viver que acentua os aspectos<br />

materiais, imediatos, concretos, tal como aparece, por exemplo, na expressão “...<br />

preponderância crescente do ponto de vista puramente material e imediato ...” 35 . Trata-se de<br />

viver quase sem levar em conta os aspectos subjetivos, espirituais, teóricos e afetivos. Tratase<br />

de viver acentuando apenas os objetos das ciências inferiores, ou, de viver acentuando<br />

apenas o lado mais objetivo, mais prático, mais concreto do objeto de qualquer ciência ou<br />

estudo. Ou de impor o objeto específico de uma ciência inferior, por exemplo, o objeto da<br />

biologia, estando situado na sociologia, ocasião na qual se deve acentuar o objeto específico<br />

da sociologia (manipular um fenômeno social como se fosse biológico, ou um fenômeno<br />

moral como se fosse social). Segundo Comte, é o modo de vida mais normal dos práticos, do<br />

poder temporal, justamente do qual ele deve sair a partir do trabalho sócio-moralizador,<br />

civilizador do poder espiritual.<br />

O materialismo teórico, por sua vez, é o que acabamos de ver até o Discurso<br />

preliminar, de 1848. Trata-se do conteúdo teórico, da teoria em relação ao materialismo<br />

prático. Se esse último acentua os objetos das ciências ou estudos inferiores em detrimento<br />

dos objetos das ciências ou estudos superiores, o materialismo teórico acentua as ciências ou<br />

estudos inferiores em detrimento das ciências ou estudos superiores, como vimos 36 .<br />

35 Curso IV, escrito de 1/3 a 1/7/1839, lição 46, p. 56. Na Carta a Audiffrent, de 21/2/1856, Comte fala “... a<br />

tendência crescente a tudo materializar. (...), a religião que deve superá-la, ...” (Correspondência VIII, p. 226).<br />

Rever, sobre o materialismo prático, os parágrafos referentes às notas 6 a 9, acima.<br />

36 Falamos de ciências e de estudos, porque Comte faz toda uma diferenciação: as coisas particulares são<br />

estudadas e temos conhecimento delas, mas não ciência (manipulamos as coisas e situações conscientemente:<br />

técnica?); quanto às nossas práticas (a educação, por exemplo: arte?), elas estão a meio caminho em relação a<br />

poderem ser científicas; ciência ou filosofia (ou filosofia da ciência, ou filosofia científica) só é possível das<br />

semelhanças e similitudes, das regularidades dos fenômenos e, portanto, são abstratas, abstrações,<br />

17


Nesse sentido, como se pode falar de materialismo prático em relação aos objetos de<br />

todas as ciências e estudos, isto é, viver acentuando os objetos das ciências ou estudos<br />

inferiores, ou, viver acentuando os lados mais inferiores de todos os objetos, pode-se falar<br />

também de materialismo teórico matemático, materialismo teórico astronômico, físico,<br />

químico, biológico (ou “materialismo médico”: Sistema IV, p. 319; Síntese subjetiva I, p. 722;<br />

Prefácio, da Síntese subjetiva I, p. X), sociológico, e, até, digamos, no limite, isto é, tirando a<br />

conseqüência, de materialismo teórico moral (em relação à prática) e prático (em relação ao<br />

concreto), sempre a ciência ou o conhecimento anterior usurpando a especificidade da ciência<br />

ou do conhecimento posterior. Ou, pode-se falar de materialismo (“empirismo”) teórico<br />

material, em relação ao espiritual, de materialismo (“empirismo”) teórico científico, em<br />

relação à filosofia, e de materialismo teórico filosófico, em relação à religião, como se pode<br />

inferir da seguinte passagem do Sistema IV, p. 532: “Aspirando à reorganização material<br />

isoladamente da reconstrução espiritual, o empirismo prático se torna mais vão e mais<br />

perturbador do que o empirismo teórico que se esforça para instituir a ciência<br />

independentemente da filosofia, ou essa sem a religião.” 37 .<br />

Na Síntese subjetiva I, de 1856, na qual Comte faz a síntese subjetiva da matemática,<br />

superando o materialismo teórico matemático, ele distingue nesse materialismo teórico<br />

matemático um materialismo teórico matemático abstrato (ou algébrico) e um materialismo<br />

teórico matemático concreto (ou mecânico), como veremos. Antes percorramos os escritos de<br />

Comte do Discurso preliminar, de 1848, até 1857.<br />

Nesses escritos o materialismo (teórico, mas também prático, obviamente) e o<br />

espiritualismo aparecem também em sinônimos. Na Introdução fundamental, escrita de<br />

10/1849 a 24/2/1850, Comte usa “empirismo” e “dogmatismo” (In: Sistema I, 1851, p. 427), e<br />

“empirismo” e “misticismo” (p. 518).<br />

No Sistema III, de 1853, o empirismo é dito excesso de objetividade e idiotismo,<br />

enquanto o misticismo é dito excesso de subjetividade e loucura. É excesso, respectivamente,<br />

de matéria (“objeto”, “ordem exterior”) e forma (“sujeito”, “representar”), entre as quais se<br />

localiza a normalidade, o equilíbrio:<br />

“Sem dúvida a antiga preponderância da subjetividade tenderia agora para a loucura,<br />

negligenciando os dados exteriores, em nome da dignidade. Mas, apesar de nossos<br />

preconceitos científicos, é preciso igualmente reconhecer que o moderno ascendente da<br />

objetividade impele atualmente ao idiotismo, reprimindo a espontaneidade mental, sob<br />

pretexto de realidade. Entre esse empirismo e esse misticismo, escolhos permanentes da<br />

razão humana, o verdadeiro espírito positivo institui hoje a via normal, a partir de uma<br />

generalizações: “Só uma judiciosa abstração gradual permitiu e pode manter o desenvolvimento contínuo do<br />

verdadeiro espírito filosófico, descartando de início as exigências práticas, a seguir as impressões estéticas e,<br />

enfim, as condições concretas, para organizar pouco a pouco o ponto de vista mais simples, mais geral e mais<br />

elevado, para além do qual não se poderia reduzir mais a apreciação racional sem cair logo em uma vã<br />

ontologia.” (Curso VI, 58ª lição, escrita de 17/5 a 16/6/1842, p. 739). Comte segue Aristóteles no sentido de não<br />

ser possível ciência do particular, do concreto. Então as ciências fundamentais são generalizações. E do mais<br />

geral para o menos: a matemática é a mais geral e a mais abstrata. Este conhecimento desta árvore que está na<br />

minha frente é só meu. Ciência do concreto, portanto, é maneira imprópria de falar do conhecimento que os<br />

práticos efetivamente têm dos seus objetos concretos. Ciência das práticas já é mais possível, mas apenas<br />

imperfeitamente.<br />

37 Dissemos acima que os adjetivos “prático” e “teórico” só aparecem juntos, em Comte, a partir de 1856.<br />

Aqui, nessa citação de trecho de 1854, eles aparecem aplicados a “empirismo”, que estamos considerando como<br />

sinônimo de “materialismo”, em Comte. Eles podem ser considerados sinônimos dos que aparecem na expressão<br />

“... os prejuízos morais do materialismo industrial e científico.”, da Sexta [7ª, segundo R. T. Mendes] Confissão<br />

anual para Clotilde de Vaux, começada a 30/5, terminada a 2/6, mas com acréscimos de 10 e 11/6/1851<br />

(Correspondência VI, p. 101). No Sistema III, de 1853, p. 524, Comte inverte a ordem, colocando primeiro a<br />

ciência e em segundo a indústria: “Ela [a influência estética] modificou, contudo, as influências materialistas<br />

emanadas do movimento científico e as tendências egoístas resultadas do desenvolvimento industrial.”.<br />

18


exata apreciação da natureza e da destinação de nossas sãs teorias. Subordinando<br />

sempre a imaginação à observação, esse regime final desenvolve, todavia, toda a<br />

atividade de nossa inteligência, única que pode instituir um comércio no qual o exterior<br />

não fornece senão os materiais. Afastado do absoluto tanto em relação ao objeto quanto<br />

em relação ao sujeito, ele reduz todos os nossos esforços teóricos a representar<br />

suficientemente a ordem exterior, para que nossa sabedoria prática possa melhorá-la<br />

sistematicamente.” (p. 24-25) 38 .<br />

O Sistema IV, de 1854, traz “materialismo” e “ontologismo” (p. 436). E também<br />

“materialismo analítico” e “espiritualismo sintético”, respectivamente anárquico e retrógrado,<br />

democrático e aristocrático, entre os quais Comte declara preferir o segundo:<br />

“Embora mais positiva do que qualquer ciência, a religião universal saberá teoricamente<br />

preferir o espiritualismo sintético, vago quanto seja, ao materialismo analítico, mais<br />

afastado do verdadeiro regime especulativo. Do mesmo modo ela fará as disposições<br />

retrógradas prevalecerem praticamente sobre as tendências anárquicas, até que ela possa<br />

dignamente transformar umas e outras, convertendo os aristocratas e os democratas em<br />

sociocratas.” (p. 533-534) 39 .<br />

Enfim, na Síntese subjetiva I, de 1856, Comte fala de “materialismo anárquico” e<br />

“espiritualismo retrógrado”: “... única que pode superar os preconceitos suscitados há muito<br />

tempo por um espiritualismo retrógrado, inutilmente dirigido contra um materialismo<br />

anárquico.” (p. 674).<br />

Nesses escritos de Comte do Discurso preliminar, de 1848, até 1857, também, o<br />

materialismo (teórico, mas também prático) recebe vários adjetivos: “materialismo científico”<br />

(Discurso preliminar, 1848, Sistema I, 1851, p. 258; Síntese subjetiva I, p. 365 e 367);<br />

“materialismo sistemático”, “materialismo empírico” e “materialismo cosmológico”<br />

(Introdução fundamental, Sistema I, p. 472, 569 e 593); “materialismo industrial e científico”<br />

(Sexta Confissão anual, Correspondência VI, p. 101); “materialismo acadêmico” (Catecismo<br />

positivista, 1852, p. 212; Síntese subjetiva I, p. 172; Carta a Alexander J. Ellis, 6/4/1857,<br />

Correspondência VIII, p. 437); “empirismo materialista” (Carta a Audiffrent, 11/12/1854,<br />

Correspondência VII, p. 278); “materialismo científico, estético e político” (Sétima Circular<br />

Anual, 15/1/1856, Correspondência VIII, p. 191); “materialismo universal” (Oitava Circular<br />

Anual, 15/1/1857, Correspondência VIII, p. 380).<br />

Enfim, na Síntese subjetiva I, Comte usa os adjetivos “especulativo” e “geral” para o<br />

materialismo:<br />

“... as pretensões da álgebra à presidência enciclopédica constituem a fonte<br />

despercebida do materialismo especulativo. Ele não surge em aritmética, (...). (...).<br />

Vemos assim começar em álgebra a disposição a tratar as especulações superiores como<br />

simples conseqüências das inferiores, abusando da subordinação dedutiva e<br />

desconhecendo a independência indutiva, por falta de ligação subjetiva. Sob esse<br />

aspecto, os geômetras mais retrógrados se tornaram freqüentemente, a partir dos seus<br />

próprios trabalhos, os promotores especiais do materialismo geral do qual eles<br />

deploravam cegamente a influência anárquica.” (p. 169-170).<br />

38 No Apelo, de 1855, Comte fala da conciliação entre “corpo” e “cérebro” (p. 75-76): “Instituindo o<br />

dualismo entre o corpo e o cérebro, a nova síntese supera igualmente o materialismo e o espiritualismo, cujas<br />

pretensões legítimas são assim conciliadas sem nenhuma consagração de seus respectivos vícios.”. Sobre a<br />

conciliação entre “exterior” e “interior”, “matéria” e “forma”, ver também no Cap. 1 do Sistema II, p. 32-33.<br />

Vejamos ainda, enfim, no Catecismo positivista, p. 85: “... todas as nossas concepções resultam necessariamente<br />

de um comércio contínuo entre o mundo, que lhes fornece a matéria, e o homem, que lhes determina a forma.”.<br />

39 Na Carta a Audiffrent, de 20/10/1856, Comte diz: “A partir da preponderância que agora a síntese deve<br />

obter, o espiritualismo é menos afastado do positivismo do que o materialismo, em qualquer um que tenha feito<br />

os estudos científicos.” (Correspondência VIII, p. 325).<br />

19


Nesses escritos de Comte do Discurso preliminar, de 1848, até 1857, finalmente, a<br />

definição de materialismo (teórico) reaparece várias vezes. Vejamos na Introdução<br />

fundamental: “Meu discurso preliminar já assinalou a tendência materialista que se liga<br />

necessariamente às especulações inferiores desprovidas de toda disciplina superior.” (p. 421).<br />

No Sistema III, p. 43: “Ela [a hierarquia das ciências] sistematiza a nobre mentalidade<br />

que sempre adverte, sob o justo título de materialismo, a tendência espontânea das ciências<br />

inferiores a dominar e mesmo absorver as superiores, em nome da influência dedutiva.”, e p.<br />

333, onde o materialismo aparece com a nuance de ser a tentativa irrealizável de uma síntese<br />

objetiva:<br />

“Alguns pensadores muito abstratos puderam, entretanto, dar crédito, de início, à síntese<br />

objetiva, que, desde seu início astrolátrico, esforçava-se gradualmente para explicar<br />

todos os fenômenos a partir das leis já surgidas em relação à existência matemática,<br />

base necessária de todas as outras. Mas essa sistematização materialista logo se tornou,<br />

como entre os modernos, o refúgio dos espíritos incapazes de esperar e de duvidar. Sua<br />

insuficiência necessária foi ordinariamente reconhecida pelos verdadeiros diretores do<br />

movimento científico e filosófico. Eles sentiram prontamente que sua extensão mais<br />

hipotética não poderia jamais englobar a ordem humana, e mesmo que ela fracassaria<br />

sempre em relação à ordem vital, permanecendo limitada ao domínio inorgânico, no<br />

qual sua preponderância persistiu longo tempo, com certa utilidade. (...). Mas eles não<br />

tentaram instituir, entre essas várias apreciações, uma ligação objetiva, da qual<br />

pressentiam a frivolidade.”.<br />

Na Síntese subjetiva I a definição de materialismo reaparece cinco vezes. A primeira<br />

na p. 83: “Todos os prejuízos da anarquia matemática resultaram do ofício científico, que<br />

suscitou o materialismo teórico, que consiste em fazer prevalecer os estudos inferiores sobre<br />

os superiores, invocando a universalidade das leis mais grosseiras.”. A segunda na p. 102: “...<br />

a irracionalidade radical do materialismo teórico, que tende sempre a subordinar o superior ao<br />

inferior.”. A terceira na p. 361: “Baseada sobre as leis gerais da evolução intelectual, a teoria<br />

positiva do materialismo o faz consistir sempre em violar a independência enciclopédica<br />

impelindo os estudos inferiores a dominar os superiores, em nome da influência dedutiva e da<br />

prioridade necessária.”. A quarta na p. 366: “Atentamente considerado, o materialismo teórico<br />

deve consistir, portanto, em fazer sempre prevalecer o ponto de vista matemático, por causa<br />

de sua generalidade científica e de sua simplicidade lógica. Comum aos dois modos, abstrato<br />

e concreto, de tal aberração, sua presidência objetiva não podia ser racionalmente superada<br />

senão pela supremacia subjetiva do ponto de vista moral, ...”. A quinta, enfim, na p. 728: “...<br />

materialismo teórico, que dispunha a reduzir todos os fenômenos às condições geométricas e<br />

mecânicas.”.<br />

O maior e mais importante conjunto de textos de Comte sobre o materialismo se<br />

encontra na Síntese subjetiva I, de 1856, última grande obra que conseguiu escrever antes de<br />

falecer, em 5/9/1857.<br />

Segundo Comte, a origem do materialismo (prático e teórico) é espontânea 40 . Trata-se<br />

de um desvio natural da evolução da consciência humana, na medida em que se começou e<br />

desenvolveu o caminho ascensional da tomada de consciência na direção que vai do mundo<br />

para o homem; na medida em que se começou e desenvolveu o caminho ascensional de posse<br />

cognoscitiva quantitativa na direção que vai do exterior para o interior, isto é, para o homem.<br />

O início do materialismo teórico coincide com o início do materialismo teórico matemático.<br />

Por sua vez, o materialismo teórico é principalmente o materialismo teórico matemático e,<br />

40 “Limitado durante muito tempo ao domínio matemático, no qual reside sua fonte espontânea, o<br />

materialismo prevaleceu gradualmente, durante esses cinco séculos, em todas as partes da filosofia natural.”<br />

(Síntese subjetiva I, p. 362-363).<br />

20


essencialmente, o seu primeiro modo, o abstrato ou algébrico (veremos adiante os modos do<br />

materialismo matemático).<br />

O começo, o início efetivo é na álgebra: “Restrita ao seu domínio independente, a<br />

aritmética se encontra constantemente preservada dos contatos que dispuseram a álgebra às<br />

usurpações científicas, em que o meio era tomado por fim. Desse ponto de vista, reconhece-se<br />

que, embora o materialismo teórico tenha emanado necessariamente do cálculo, é da álgebra<br />

que ele resultou, sem que a aritmética tenha jamais participado nisso; seu caráter a aproxima<br />

da teologia, enquanto que a álgebra se inclina para a metafísica.” (p. 106).<br />

E o motivo é o abuso da subordinação dedutiva e o desconhecimento da independência<br />

indutiva, por falta de ligação subjetiva:<br />

“Bem apreciadas, as pretensões da álgebra à presidência enciclopédica constituem a<br />

fonte despercebida do materialismo especulativo. Ele não surge em aritmética, apesar da<br />

universalidade direta das noções numéricas, pois todos sentem que, embora aplicáveis<br />

por toda parte, elas permanecem por toda parte subordinadas aos atributos<br />

correspondentes. Elas não aspiram a dominar senão quando a álgebra, tornando-as<br />

indeterminadas, tira delas o único caráter que lhes fornecia uma positividade subalterna<br />

mas direta. Vemos assim começar na álgebra a disposição a tratar as especulações<br />

superiores como simples conseqüências das inferiores, abusando da subordinação<br />

dedutiva e desconhecendo a independência indutiva, por falta de ligação subjetiva.” (p.<br />

169-170).<br />

Da álgebra o materialismo se alastra, avança adiante:<br />

“Pode-se assim qualificar de metafísico o modo direto do materialismo matemático [isto<br />

é, o abstrato]; ele é o mais antigo e o mais difundido, sem ser o mais perigoso, pois nele<br />

os termos são freqüentemente tomados como coisas. Ligada à geometria pela renovação<br />

cartesiana, a álgebra fez surgir logo um modo mais especial, embora indireto [isto é, o<br />

concreto], fundando sua presidência enciclopédica sobre a universalidade necessária das<br />

leis da extensão e do movimento. Ela desde então ligou o materialismo matemático<br />

àquele que as diversas partes da filosofia natural desenvolvem, as quais cada uma tende<br />

a dominar as seguintes, a partir de uma viciosa apreciação da subordinação normal dos<br />

fenômenos correspondentes. Sob essa impulsão, própria ao desenvolvimento empírico<br />

das especulações positivas, os dois modos sucessivos da usurpação algébrica finalmente<br />

se combinaram, quando a álgebra tentou absorver a geometria e a mecânica, de cujos<br />

teóricos os outros teóricos não ousavam contestar a supremacia. Estendido por toda<br />

parte, e mesmo sistematizado, a partir de sua dupla fonte matemática, o materialismo<br />

teórico permaneceu diretamente insuperável até surgimento da religião da<br />

Humanidade.” (p. 171-172) 41 .<br />

41 Na p. 360 Comte fala da “... utopia matemática na qual todas as explicações científicas resultariam das leis<br />

da extensão e do movimento, que só a álgebra podia desenvolver.”. A principal fonte do materialismo teórico<br />

concreto é a mecânica (p. 607), como veremos. Nas p. 623-624 ele escreve: “Examinadas a partir do conjunto da<br />

preparação normal, as tendências materialistas naturalmente ligadas aos estudos mecânicos serão facilmente<br />

superadas pelo sacerdócio iniciador. (...). (...) graves perturbações intelectuais e morais. Examinando com mais<br />

precisão o desenvolvimento histórico dessas aberrações, vê-se que elas não emanaram diretamente da mecânica,<br />

mas do espírito algébrico, que, sempre agente, quer dirigir tudo. Durante o grande século (...) a mecânica<br />

permaneceu pura dos desvios que em seguida ela fez surgir, (...). Ela, contudo, foi disposta, desde o início, a<br />

fazer penetrar por toda parte um materialismo audacioso, mas progressista e mesmo orgânico, sempre fundado<br />

sobre uma irracional apreciação da universalidade necessária das leis matemáticas. (...).Bem apreciado, o<br />

materialismo matemático não se tornou essencialmente prejudicial senão quando a álgebra prevaleceu, por causa<br />

da insuficiência da disciplina (...). Examinada filosoficamente, a mecânica celeste ajudou esses desvios (...). (...).<br />

Todavia, o principal desenvolvimento das aberrações teóricas resultou do crédito que a elaboração da mecânica<br />

celeste deu à álgebra, e das irracionais esperanças surgidas assim em relação à extensão universal do espírito<br />

matemático. Então o materialismo geométrico e mecânico, que foi, no século XVII, orgânico e progressista,<br />

tornou-se irrevogavelmente anárquico e retrógrado, mesmo na teoria geral do movimento e do equilíbrio,<br />

21


A história do materialismo tem no seu começo e no seu final a ciência, mas com o<br />

início e o final intermediados pela metafísica e pela teologia; os três estados intelectuais<br />

contribuíram:<br />

“A fim de apreciar melhor um vício cuja natureza e gravidade são desconhecidas por<br />

aqueles que o deploram mais, é preciso reconhecer de início que os três estados<br />

intelectuais contribuíram com ele, cada um a sua maneira, durante todo o curso da<br />

evolução teórica. O espírito científico sempre foi a sede direta do materialismo, a partir<br />

da sua marcha necessária do mundo para o homem, até que sua preparação objetiva foi<br />

inteiramente terminada. Todavia, o espírito metafísico tendeu espontaneamente a<br />

desenvolver essa aberração, mesmo a combatendo, porque ele constituiu o método<br />

isoladamente da doutrina, e consagrou o abuso da dedução. Deve-se enfim ver o espírito<br />

teológico como tendo involuntariamente secundado, sobretudo depois do monoteísmo,<br />

um desvio hostil à sua supremacia, impelindo a construir uma síntese objetiva, e<br />

suscitando uma falsa apreciação de unidade teórica. Sob essa tripla influência, o<br />

materialismo cresceu sempre até que o Ocidente cumpriu a transição necessária entre a<br />

teocracia e a sociocracia inaugurando o positivismo, que fez cessar as duas aberrações<br />

opostas.” (p. 361-362).<br />

Como a Síntese subjetiva inteira devia englobar, em dez volumes, toda a filosofia (1ª:<br />

15 leis universais, instituição da teoria da abstração e da escala enciclopédica; 2ª: matemática,<br />

astronomia, física, química, biologia, sociologia, moral teórica ou moral propriamente dita,<br />

moral prática ou educação; 3ª: regras práticas, ação), certamente ela deveria refutar o<br />

materialismo em todos os níveis, já que ele “... constitui o sintoma teórico da doença<br />

ocidental, essencialmente caracterizada, desde o desenvolvimento grego, por uma tendência<br />

crescente a rejeitar a subordinação fundamental do espírito ao coração.” (Síntese subjetiva I,<br />

p. 362), e já que “Pode-se verdadeiramente reduzir a regeneração final a superar essa<br />

disposição [ao materialismo teórico e prático], que resume todos os vícios próprios da<br />

transição, de mais em mais revolucionária, entre a teocracia e a sociocracia.” (p. 372-373).<br />

Como o materialismo é um excesso de objetividade, nada melhor do que o “espaço”<br />

da Síntese subjetiva para analisá-lo e o superar. Como a usurpação das especulações inferiores<br />

em relação às superiores acontece “por falta de ligação subjetiva” (p. 169-170 42 ), nada<br />

melhor do que o espaço do estabelecimento, segundo Comte, da subjetividade verdadeira,<br />

para corrigi-la. Igualmente, se o materialismo é “uma aberração necessariamente resultada da<br />

indisciplina teórica” (p. 359; na p. 365 ele escreve “degeneração espontaneamente ligada à<br />

iniciação teórica”), nada melhor do que o espaço do disciplinamento da subjetividade para<br />

superá-lo 43 . Do mesmo modo, como ele é uma tentativa de síntese objetiva, nada melhor do<br />

radicalmente viciada pela invasão algébrica.”. A inevitabilidade do aspecto quantitativo, segundo Comte, suscita<br />

as pretensões da álgebra: “Apreciada filosoficamente, a noção abstrata de equação coincide com a idéia concreta<br />

de lei, que não pode se tornar jamais assaz precisa senão adquirindo um caráter hipoteticamente numérico.<br />

Geralmente impossível de realizar para além do domínio puramente matemático, esse princípio suscita as<br />

pretensões da álgebra à presidência enciclopédica, e conseqüentemente o materialismo teórico, até o surgimento<br />

da religião universal. Só ela pode superar irrevogavelmente os sofismas e as usurpações algébricas, ...” (p. 687).<br />

42 Ver o texto inteiro acima. Na p. 359 Comte fala de “inconseqüência”: “Vê-se então cessar a<br />

inconseqüência que dispunha cada ciência a dominar a seguinte protestando contra as usurpações da<br />

precedente.”.<br />

43 “Convenientemente apreciada, a disciplina positivista do desenvolvimento abstrato resulta da hierarquia<br />

enciclopédica, que subordina cada ciência objetivamente à precedente e subjetivamente à seguinte. Com tal<br />

regime, supera-se de uma só vez o materialismo e o espiritualismo, dando às suas aspirações respectivas uma<br />

satisfação mais completa e mais estável. Se, por um lado, os estudos superiores devem repousar sempre sobre os<br />

inferiores, por outro lado, só eles podem determinar a destinação, e mesmo regrar a extensão. Toda aplicação de<br />

cada ciência à seguinte deve ser normalmente dirigida por essa última, que permanece exclusivamente juíza do<br />

modo e do grau de tal assistência. Resulta dessa disciplina uma plena conciliação entre a independência indutiva<br />

que os estudos mais complicados exigem e a influência dedutiva que convém às teorias mais gerais. Regrada<br />

22


que o espaço da Síntese subjetiva para superá-lo, pois “... só a síntese subjetiva desacreditou a<br />

busca da síntese objetiva.” (p. 360).<br />

Como o materialismo impõe a subordinação objetiva das ciências posteriores às<br />

anteriores, impelindo a construir uma síntese objetiva, a sua superação implica a subordinação<br />

subjetiva das anteriores às posteriores e a construção da supremacia subjetiva do ponto de<br />

vista moral:<br />

“É preciso sempre referir a apreciação do materialismo à determinação do elemento<br />

enciclopédico ao qual a presidência científica e lógica pertence. (...). À ciência<br />

matemática pertence o único ponto de vista objetivamente universal, (...). Sempre a<br />

ciência moral possui o privilégio da universalidade subjetiva, que lhe permite superar a<br />

impulsão materialista gradualmente emanada (...). (...). Atentamente considerado, o<br />

materialismo teórico deve consistir, portanto, em fazer sempre prevalecer o ponto de<br />

vista matemático, por causa de sua generalidade científica e de sua simplicidade lógica.<br />

Comum aos dois modos, abstrato e concreto, de tal aberração, sua presidência objetiva<br />

não podia ser racionalmente superada senão pela supremacia subjetiva do ponto de vista<br />

moral, desde que o positivismo a livrou dos entraves teológicos e metafísicos.” (p. 366)<br />

44 .<br />

Comte, na Síntese subjetiva I, utiliza vários sinônimos para falar da superação, do<br />

superador ou superadora do materialismo. Ele fala da “religião da Humanidade”, da “filosofia<br />

surgida da ciência”, do “positivismo”, do “coração”, de “uma atitude diretamente religiosa”,<br />

de “síntese” e de “doutrina”:<br />

“Estendido por toda parte, e mesmo sistematizado, a partir de sua dupla fonte<br />

matemática, o materialismo teórico permaneceu diretamente insuperável até o<br />

surgimento da religião da Humanidade. (...), sua dominação especulativa não foi<br />

verdadeiramente desenraizada senão pelo positivismo. (...), essa luta íntima entre o<br />

empirismo científico e a filosofia surgida da ciência, (...). Todavia, quando o<br />

positivismo se tornou completo, tomando, sob o impulso do coração, uma atitude<br />

diretamente religiosa, o materialismo acadêmico, sentindo o fim do interregno<br />

espiritual, não soube senão protestar contra uma síntese moral, teórica e prática que ele<br />

era incapaz de impedir. Atacado em sua fonte pela única doutrina apta a julgá-lo, ele<br />

renuncia tacitamente a dominar, e se contenta em entravar ...” (p. 172) 45 .<br />

Ele fala de “remédio moral” e do “espírito positivo” tornar-se “religioso” como<br />

superação: “... a disciplina prematura da idade média tinha desacreditado tanto o remédio<br />

assim, a cultura teórica obtém de uma só vez mais realidade do que a impulsão materialista comporta e mais<br />

dignidade do que a resistência espiritualista consegue. (...). Vista convenientemente, essa solução deve, contudo,<br />

ser julgada mais conforme ao verdadeiro espiritualismo, não metafísico, mas teológico, do que ao materialismo<br />

científico. É preciso, efetivamente, vê-la como sendo caracterizada principalmente pela presidência<br />

enciclopédica que ela tem cedido normalmente à moral.” (p. 365). Na p. 370 ele diz “Toda a disciplina que o<br />

espírito matemático exige foi espontaneamente preparada pela influência contínua do princípio cartesiano, que<br />

fez prevalecer irrevogavelmente, em Lógica, o ponto de vista humano, tornando subjetiva uma coordenação<br />

anteriormente objetiva.”.<br />

44 Na p. 368 Comte escreve: “É preciso preferir normalmente a supremacia do ponto de vista humano à<br />

aptidão objetivamente universal do espírito matemático. Diretamente considerada, a universalidade teórica da<br />

moral não pode ser contestada de nenhum modo, (...). (...). Se esse regime normalmente faz o sujeito prevalecer,<br />

ele jamais dispõe a negligenciar o objeto, que é o único que pode tornar as concepções emanadas do princípio<br />

universal, suficientemente determinadas. (...). Em conformidade com o conjunto das necessidades humanas, a<br />

síntese subjetiva institui a unidade teórica, viciosamente apreciada e inutilmente buscada a partir da síntese<br />

objetiva.”.<br />

45 Quanto ao “positivismo”, na p. 359 Comte diz “... positivismo, único capaz de explicar e de extirpar uma<br />

aberração necessariamente resultada da indisciplina teórica que só ele superou.”. Na p. 362 ele diz que “... o<br />

materialismo cresceu sempre até que o Ocidente cumpriu a transição necessária entre a teocracia e a sociocracia<br />

inaugurando o positivismo, que fez cessar as duas aberrações opostas.”. Ver também nas p. 363, 364, 367 e no<br />

Prefácio, p. X-XI.<br />

23


moral, que ele não podia prevalecer senão quando o espírito positivo tivesse sido conduzido,<br />

por sua própria evolução, a se subordinar livremente ao coração tornando-se religioso.” (p.<br />

363) 46 .<br />

Ele fala também, no sentido de superá-lo, de afetividade e poesia, de sentimento e arte<br />

e de adoração íntima:<br />

“Deve-se, portanto, ver os primeiros séculos do estado normal como exigindo, nesse<br />

sentido, uma solicitude sacerdotal que não será mais necessária quando o conjunto da<br />

iniciação enciclopédica se encontrar plenamente sentido desde seu início, a partir de sua<br />

preparação afetiva e poética. Uma evolução teórica cuja disciplina não pode<br />

sistematicamente resultar senão de sua fase final tende a reproduzir, no indivíduo, a<br />

degeneração que ela suscitou para a espécie. Nada poderia dispensar de prevenir ou de<br />

retificar, nela, pelo exame filosófico, as aberrações naturalmente próprias da cultura<br />

científica até que ela se torne completa. Nesse intervalo, o sentimento e a arte<br />

fornecerão, a partir da adoração íntima, uma garantia espontânea, que protegerá o<br />

coração e o espírito contra o materialismo teórico melhor do que jamais se pôde esperar<br />

de sua reprovação teológica e metafísica.” (p. 360-361).<br />

E também, enfim, da Revolução Francesa e da fundação da sociologia como condições<br />

de superação: “Sem o abalo político do povo central, a sociologia não podia irrevogavelmente<br />

surgir para fundar a hierarquia enciclopédica, superando o duplo materialismo teórico,<br />

matemático e médico.” (p. 722).<br />

Uma última questão em relação à Síntese subjetiva I é a questão específica do<br />

materialismo teórico matemático. Ele é abstrato ou concreto: “Um exame decisivo do<br />

materialismo matemático deve normalmente separar seus dois modos, abstrato e concreto, um<br />

essencialmente metafísico, o outro parecendo positivo.” (p. 172).<br />

O primeiro, o materialismo teórico matemático abstrato, como já afirmamos, é o<br />

materialismo teórico propriamente dito, o algébrico. O concreto é o geométrico-mecânico:<br />

“Pode-se assim qualificar de metafísico o modo direto do materialismo matemático [isto<br />

é, o abstrato]; ele é o mais antigo e o mais difundido, sem ser o mais perigoso, pois nele<br />

os termos são freqüentemente tomados como coisas. Ligada à geometria pela renovação<br />

cartesiana, a álgebra fez surgir logo um modo mais especial, embora indireto [isto é, o<br />

concreto], fundando sua presidência enciclopédica sobre a universalidade necessária das<br />

leis da extensão e do movimento. (...). Sob essa impulsão, própria ao desenvolvimento<br />

empírico das especulações positivas, os dois modos sucessivos da usurpação algébrica<br />

finalmente se combinaram, quando a álgebra tentou absorver a geometria e a mecânica,<br />

...” (p. 171-172 47 ).<br />

O abstrato trata todos os fenômenos como susceptíveis de equações 48 ; fazendo a<br />

cultura da álgebra isoladamente, propõe-se abstratamente resolver antecipadamente todas as<br />

46 Nas p. 365 e 366 Comte fala, respectivamente, de “presidência enciclopédica” da “moral” e de<br />

“supremacia subjetiva do ponto de vista moral”. Quanto à religião, na p. 687 ele escreve “até o surgimento da<br />

religião universal”. Na p. 607 ele fala de “espiritualidade positiva”: “... fazendo prevalecer irrevogavelmente a<br />

espiritualidade positiva sobre o materialismo científico e o espiritualismo metafísico, ...”. Na p. 623 de<br />

“sacerdócio”: “... as tendências materialistas naturalmente ligadas aos estudos mecânicos serão facilmente<br />

superadas pelo sacerdócio iniciador.”. Na p. 746, enfim, de “investidura religiosa”: “... o espírito matemático,<br />

sempre indisciplinado durante a preparação ocidental, recebeu convenientemente a investidura religiosa<br />

gradualmente instituída por este volume.”. Vejamos também, finalmente, um trecho da Oitava Circular Anual, de<br />

15/1/1857, no qual Comte fala da “reorganização espiritual” feita pelo “positivismo”: “A reorganização<br />

espiritual é tão urgente que o positivismo deverá logo obter o apoio contínuo de todas as almas verdadeiramente<br />

religiosas que, principalmente femininas, sem partilhar nossa fé, secundarão nossos esforços para preservar o<br />

Ocidente do materialismo universal.” (Correspondência VIII, p. 380).<br />

47 Ver o texto inteiro acima, no parágrafo referente à nota número 41.<br />

48 “Considerados como susceptíveis de equações, os fenômenos de toda espécie não poderiam, contudo, ser<br />

jamais absorvidos pelo domínio algébrico.” (p. 173).<br />

24


equações imagináveis, a fim de que aquelas dos diversos fenômenos se encontrem<br />

necessariamente tratadas (p. 174) 49 .<br />

O concreto continua o abstrato. Se<br />

“No modo abstrato do materialismo matemático, a álgebra, isoladamente cultivada, e<br />

desprovida de toda disciplina, aspira à dominação aberta e direta do conjunto das teorias<br />

positivas, em nome da lógica universal. É preciso ver o modo concreto como<br />

consistindo em transferir a presidência enciclopédica ao domínio geométrico e<br />

mecânico, no qual a álgebra se erige a reguladora geral, de maneira a conservar as<br />

mesmas pretensões sob uma nova forma. Tal transformação, embora tendo inicialmente<br />

desenvolvido a usurpação algébrica, anuncia a sua extinção normal, pelo rascunho<br />

matemático da subordinação subjetiva de cada ciência em relação à seguinte.” (p. 357-<br />

358).<br />

O abstrato é mais racional e mais consistente, mas mais quimérico; ambos são<br />

usurpadores em relação aos estudos superiores:<br />

“Toda a diversidade dos dois modos consiste em que a preponderância matemática é<br />

dada, no primeiro, à álgebra erigida a lógica universal, e, no segundo, por causa da<br />

generalidade das leis correspondentes, à geometria completada pela mecânica. É preciso<br />

ver o materialismo abstrato como sendo, apesar de seu caráter metafísico, mais racional<br />

do que o materialismo concreto, porque ele repousa sobre a incontestável equivalência<br />

entre a idéia de equação e a idéia de lei. Eis como o materialismo concreto apresenta,<br />

com mais positividade, menos consistência do que o materialismo abstrato, porque ele<br />

começa a regeneração que combate, dando à geometria a supremacia que recusa à<br />

álgebra. Examinado especialmente, ele proclama a presidência do ponto de vista<br />

matemático em virtude da universalidade das leis da extensão e do movimento, sempre<br />

superiores em relação à ordem mais nobre e menos simples. Sob esse aspecto a<br />

influência dedutiva, cujo abuso caracteriza o materialismo, é mais bem constituída; a<br />

irracionalidade se reduz ao exagero da contribuição necessária das condições<br />

geométricas e mecânicas para o cumprimento dos fenômenos quaisquer. A partir de sua<br />

comparação geral, os dois modos do materialismo teórico são igualmente, mas<br />

diversamente opressivos em relação a todos os estudos físicos e morais; um é mais<br />

quimérico, o outro menos conseqüente. Rejeita-se a dominação algébrica, reconhecendo<br />

a impossibilidade de instituir equações próprias aos fenômenos mais complicados, e<br />

reconhecendo nossa impotência para resolver a maior parte daquelas que podemos<br />

estabelecer. A supremacia geométrica é rejeitada como incapaz de dirigir especulações<br />

nas quais as leis da extensão e do movimento exercem uma influência<br />

proporcionalmente decrescente na medida em que os fenômenos se elevam. Essas duas<br />

tendências se tornam igualmente contrárias aos estudos superiores, ...” (p. 366-367) 50 .<br />

49 “Tendo reconhecido que a instituição abstrata do cálculo e sua cultura isolada se tornaram finalmente tão<br />

irracionais quanto imorais, fez-se o passo mais decisivo para se livrar do materialismo matemático. Melhor<br />

apreciada, a elaboração geral das equações é assim subordinada ao seu estabelecimento especial, único que pode<br />

indicar aquelas das quais a álgebra deve se ocupar. Para qualquer ciência, a cultura direta serve sempre de base<br />

ao desenvolvimento algébrico, mesmo em relação à geometria e à mecânica. A pretensão do cálculo a pôr os<br />

fundamentos dos diversos estudos positivos, encontra-se radicalmente descartada e a época de sua intervenção<br />

permanece indecisa. Subordina-se a consideração do instrumento àquela de seu uso, sempre regrado a partir das<br />

condições próprias a cada caso. (...). Sob a presidência universal da religião positiva, cada ciência se encontra<br />

reduzida à cultura que a sua destinação enciclopédica exige, exatamente apreciada a partir da síntese subjetiva<br />

que coordena todos os estudos reais. (...). A partir dessas indicações, poder-se-á normalmente prevenir ou<br />

superar as tendências ao materialismo abstrato, sempre ligadas à cultura algébrica quando ela permanece isolada,<br />

mesmo por pouco tempo.” (p. 176-177).<br />

50 Nas p. 595-596 Comte escreve: “É preciso, então, ver o materialismo matemático, outrora progressista e<br />

mesmo orgânico, como tendo se tornado irrevogavelmente tão retrógrado quanto anárquico. Menos disciplinado<br />

do que desenvolvido, por sua destinação ilusória, os seus dois modos, abstrato e concreto, opuseram entraves<br />

25


O abstrato é mais subjetivo e o concreto mais objetivo: “Estudado sob o aspecto<br />

concreto, o materialismo matemático não se torna realmente sofístico senão quando exagera a<br />

influência objetiva que lhe serve de base, como o fez o seu modo abstrato em relação à<br />

potência subjetiva que ele invoca.” (p. 608).<br />

Se o modo concreto é geométrico-mecânico, há uma passagem na qual ele aparece<br />

muito mais mecânico do que geométrico-mecânico: “A geometria permanece sempre pura,<br />

por causa de sua posição, do materialismo abstrato suscitado pela álgebra e do materialismo<br />

concreto que a mecânica desenvolve.” (p. 613).<br />

Assim como em relação a cada ciência fundamental ou estudo se pode falar do<br />

materialismo, assim também em relação às partes de cada uma delas. Nesse sentido, Comte<br />

fala dos materialismos de cada uma das três partes da matemática ou lógica: “Elaborada<br />

empiricamente, a mecânica fez necessariamente surgir o terceiro e principal modo do<br />

materialismo matemático, inicialmente algébrico, depois geométrico, enfim dinâmico.” (p.<br />

708). Eles aparecem também no Prefácio, de 22/9/1856:<br />

“Todavia, essa reação normal não poderia surgir plenamente se os dois elementos do<br />

público teórico não tivessem sido inicialmente purificados do materialismo fatalmente<br />

inerente ao conjunto da filosofia natural, e principalmente à suas duas extremidades. Eis<br />

porque me esforcei especialmente, em todas as partes deste volume, para desenraizar,<br />

em sua verdadeira fonte, o materialismo teórico, que só o positivismo podia julgar e<br />

superar. Examinei sucessivamente os três modos, algébrico, geométrico e mecânico,<br />

naturalmente próprios do materialismo matemático, menos ativo, mas mais tenaz que o<br />

materialismo médico; o segundo é muito inconseqüente para perturbar os espíritos<br />

suficientemente livrados do primeiro. Apesar dessa solicitude especial e contínua do<br />

único filósofo que pôde normalmente instituir a teoria e a refutação do materialismo, a<br />

malquerença e a deslealdade dos declamadores metafísicos me são tão conhecidas que<br />

espero novas calúnias em retorno desse serviço. Um de seus corifeus assistiu, durante<br />

meu curso público de 1850, no Palais-Cardinal, à aula diretamente consagrada ao<br />

julgamento sistemático do materialismo; o que não o impediu, algumas semanas depois,<br />

de reproduzir as diatribes convenientes.” (Síntese subjetiva I, p. X-XI).<br />

Finalmente, terminada a análise da questão do materialismo na Síntese subjetiva I,<br />

retomemos, como última questão deste trabalho, a alternativa comtiana ao materialismo, já<br />

acenada na nota 12.<br />

Em primeiro lugar, como vimos, Comte intencionalmente nunca se disse ou se<br />

considerou materialista.<br />

Mas ele pode ser dito substancialmente materialista enquanto afirma uma<br />

anterioridade ontológica da matéria em relação à vida e à vida humana. Afinal, diz ele, vemos<br />

matéria sem nenhuma vida, mas nunca o contrário. E ele afirma também a perpetuidade da<br />

matéria, conforme os textos da nota 12, apesar dessa afirmação dever ser entendida mitigada<br />

pelo seu posicionamento agnóstico, fenomenalista e fenomenista (ver notas 19 e 21, acima).<br />

crescentes ao desenvolvimento decisivo da positividade racional, que eles tinham secundado espontaneamente<br />

no século XVII. À medida que o espírito matemático obtinha crédito a partir de suas aplicações científicas, sua<br />

degeneração lógica o tornava cada vez mais indigno da presidência teórica que ele tinha oficialmente obtido.”.<br />

Na p. 609 ele diz: “Ao mesmo tempo anárquico e retrógrado, o materialismo matemático [concreto] se esforçava<br />

assim para prolongar sob forma objetiva, o reino do absoluto, enquanto entravava a elaboração da relatividade<br />

subjetiva.”. Vejamos também na p. 615: “... o materialismo abstrato, diretamente desacreditado, tendeu a se<br />

perpetuar sob o materialismo concreto.”, e na p. 696: “Após ter assim fundado a sistematização geométrica, a<br />

álgebra deve naturalmente reanimar as viciosas esperanças de dominação enciclopédica emanadas inicialmente<br />

de seu desenvolvimento isolado. Daí resulta o primeiro modo ou degrau de materialismo concreto, mais<br />

perigoso, embora menos conseqüente, do que o materialismo abstrato, porque ele liga as pretensões algébricas à<br />

irrecusável universalidade das leis geométricas.”.<br />

26


Apesar disso é melhor vê-lo como “ordem-ista”, isto é, afirmador da anterioridade da<br />

ordem, ordem que não é só material, mas também humana (a vida humana sintetizando toda a<br />

vida). Trata-se de uma ordem com dois reinos irredutíveis entre si, o morto e o vivo, o<br />

inorgânico e o homem, o inerte e o organizado:<br />

“Ao contrário, esse gênero de unidade [isto é, objetiva] é incompatível com o contraste<br />

radical da vida com a morte. O conjunto dos corpos naturais cessa então de formar um<br />

todo absoluto. Pois os seres organizados não podem resultar mais dos seres inertes do<br />

que estes daqueles. É preciso assim conceber duas ordens radicalmente distintas, que<br />

permanecem irredutíveis a uma só, enquanto a natureza for considerada nela mesma,<br />

sem referi-la à Humanidade. Não devemos julgá-las inseparáveis uma da outra senão no<br />

nosso mundo, ou melhor, sobre o nosso planeta. Em outros lugares a existência<br />

inorgânica pode ser concebida sem a existência orgânica, embora o inverso nos seja<br />

impossível.” 51 .<br />

Não há o organizado sem o inerte, e não seria contraditório se o organizado derivasse<br />

do inerte 52 , mas aquele não resulta deste, o que garante a independência das ciências<br />

superiores, isto é, o não-materialismo:<br />

“A vitalidade fundamental, única comum a todos os seres organizados, consiste em sua<br />

contínua renovação material, único atributo que os separa universalmente dos corpos<br />

inertes, nos quais a composição é sempre fixa. Todas as outras propriedades vitais,<br />

mesmo a inteligência e a moralidade, repousam inicialmente sobre a existência nutritiva,<br />

resultada de um suficiente conflito entre a absorção e a exalação que cada massa vivente<br />

exerce sem cessar sobre o meio correspondente. Todavia, tentar-se-ia inutilmente<br />

explicar essa inflexível conexão que sempre faz os mais nobres atributos depender das<br />

mais grosseiras funções. Pois nenhuma contradição necessária nos impede de sonhar o<br />

pensamento e a sociabilidade em seres cuja substância permaneceria inalterável. (...).<br />

Por toda parte onde a composição material permanece invariável, não existe nenhum<br />

traço de pensamento ou de afeição, nem somente o menor rudimento de sensibilidade ou<br />

de contratilidade. Na verdade a renovação contínua acontece em muitas substâncias que<br />

não manifestam mais esses fenômenos superiores. Isso prova assaz que as mais altas<br />

51 Introdução fundamental, Sistema I, p. 579. No Catecismo positivista os termos do dualismo são “mundo” e<br />

“homem”: “Vós deveis, para isso, renunciar desde o início, minha filha, a toda pretensão de unidade absoluta,<br />

exterior, em uma palavra, objetiva; o que vos será mais fácil do que aos nossos doutores. Tal propósito,<br />

compatível com a pesquisa das causas, torna-se contraditório com o estudo das leis, isto é, das relações<br />

constantes apanhadas ao meio de uma imensa diversidade. Essas últimas não comportam senão uma unidade<br />

puramente relativa, humana, em uma palavra, subjetiva. Efetivamente, as leis são necessariamente múltiplas, por<br />

causa da impossibilidade notória de fazer jamais entrar um no outro os dois elementos gerais de todas as nossas<br />

concepções reais, o mundo e o homem. Mesmo que se chegasse a condensar cada um desses dois grandes<br />

estudos em torno de uma só lei natural, a unidade científica permaneceria interditada por sua inevitável<br />

separação. Embora o mundo suponha o homem para ser conhecido, ele poderia existir sem esse último, como<br />

isso talvez aconteça em muitos astros desabitados. Igualmente, o homem depende do mundo, mas não resulta<br />

dele. Todos os esforços dos materialistas para anular a espontaneidade vital exagerando a preponderância dos<br />

meios inertes sobre os seres organizados não conseguiram senão desacreditar essa pesquisa, tão vã quanto<br />

ociosa, abandonada aos espíritos anticientíficos.” (p. 82); e “cosmologia” e “sociologia”: “Quando estiveres mais<br />

avançada, reduzireis freqüentemente todo o feixe enciclopédico ao simples dualismo entre a cosmologia e a<br />

sociologia; o que de início vos exporia ao vago. Mas jamais o contrairá mais, por causa da evidente<br />

impossibilidade de fazer objetivamente entrar um no outro, dois grupos principais que só a apreciação subjetiva<br />

pode unir, quando nos situamos diretamente no verdadeiro ponto de vista religioso.” (p 111).<br />

52 “Pois nenhuma contradição impediria conceber de outro modo a conservação das espécies, se os corpos<br />

organizados emanassem diretamente dos materiais inorgânicos.” (p. 590). Na p. 735 Comte escreve: “... o mundo<br />

e a vida. Os dois termos gerais desse dualismo teórico não podem jamais se reduzir um ao outro, pois o<br />

organismo não resulta do meio, embora o suponha.”. No nosso espiritualismo tanto o humano quanto o inerte do<br />

nosso universo são criaturas, como já dissemos, e a matéria só pode ser dita eterna no sentido de poder ter sido<br />

criada desde sempre pela Divindade eterna, ou no sentido de que será mantida para sempre por Ele.<br />

27


propriedades vitais não resultam necessariamente das menores. Contudo elas dependem<br />

delas certamente, pois elas não surgem jamais senão com tal base, na qual toda alteração<br />

suficiente as faz, aliás, cessar imediatamente. Em uma palavra, vemos freqüentemente<br />

corpos sem alma, mas não se vê nenhuma alma sem corpo. Assim, a vida não é somente<br />

particular a certas substâncias, organizada sob certos modos. Em mais, ela se mostra<br />

sempre temporária nas moléculas que a comportam; de modo que todo organismo se<br />

torna inerte e logo se dissolve se seus materiais não são suficientemente renovados. Nós<br />

não podemos explicar mais essa instabilidade do que essa especialidade. É preciso<br />

conceber uma e outra como simples fatos gerais, cuja realidade é incontestável, mas que<br />

permanecerão irredutíveis a outros. Não saberemos jamais porque o oxigênio, o<br />

hidrogênio, o nitrogênio e o carbono são susceptíveis de viver, enquanto que o cloro, o<br />

enxofre, o iodo não vivem de nenhum modo. Igualmente, não podemos saber por que a<br />

vitalidade não persiste indefinidamente nos materiais susceptíveis de adquiri-la. Mas<br />

esses dois mistérios são felizmente tão ociosos quanto impenetráveis. É suficiente aqui<br />

apreciar esse duplo fato primordial como a garantia dogmática da independência das<br />

noções biológicas, as quais não poderiam, assim, emanar jamais das teorias<br />

cosmológicas que preparam a sua elaboração direta.” (p. 586-587).<br />

Portanto, entre o reino da matéria inerte e o reino da vida universal só é possível a<br />

síntese subjetiva:<br />

“Descartando toda vã discussão sobre as origens absolutas, é preciso reconhecer,<br />

portanto, como uma noção essencial de filosofia relativa, que todo ser vivente emana<br />

sempre de um outro semelhante. (...). Pois, para seres imortais, sua reprodução seria<br />

inútil; ela se tornaria até contraditória, por causa das dificuldades resultadas de uma<br />

multiplicação indefinida. (...). (...), todo vivo vem do vivo, (...). Essa última lei<br />

fundamental da vida universal acaba de separar radicalmente a menor existência<br />

orgânica de toda existência inorgânica. (...). Em uma palavra, a propriedade de nascer é<br />

tão particular aos seres viventes quanto aquela de morrer. A biologia encontra nisso a<br />

fonte de uma nova garantia geral contra a usurpação cosmológica. Quanto mais se<br />

sistematiza os estudos vitais, mais se sente quanto são irracionais e opressivas todas as<br />

tentativas para constituir a unidade objetiva, concebendo a natureza como um todo<br />

absoluto, independentemente de sua relação com a humanidade, única fonte possível de<br />

uma verdadeira unidade. (...). Essa aberração [isto é, a afirmação da variabilidade<br />

indefinida, da instabilidade das espécies, perigosa emanação do materialismo<br />

cosmológico, que exagera a reação vital dos meios inertes] seria diretamente contrária à<br />

independência normal da biologia, que é preciso hoje consolidar antes de tudo. (...). A<br />

sucessão normal dessas duas apreciações forma o sistema das três grandes leis<br />

biológicas sobre a renovação material, a destruição individual e a conservação<br />

específica. (...). Essa vida universal, embora limitada apenas à materialidade, constitui o<br />

primeiro fundamento das mais altas funções, mesmo humanas. Por ela o organismo<br />

começa também suas relações necessárias, ativas e passivas, com o meio<br />

correspondente, que fornece os materiais absorvidos e recebe os produtos exalados.” (p.<br />

591-594) 53 .<br />

53 Vejamos também no Catecismo positivista, p. 116-117: “... pois um abismo intransponível me [à Mulher]<br />

parece separar o domínio da vida e o da morte. (...). (...), as mais nobres funções vitais (...), como repousando<br />

sobre as mais grosseiras, segundo a lei geral da ordem real. A animalidade se subordina à vegetalidade, ou a vida<br />

de relação à vida de nutrição. Esse luminoso princípio conduz a reconhecer que os únicos fenômenos<br />

verdadeiramente comuns a todos os seres viventes consistem nessa decomposição e recomposição que sua<br />

substância experimenta sem cessar com o meio. O conjunto das funções vitais repousa assim sobre atos muito<br />

análogos aos efeitos químicos, dos quais eles não diferem essencialmente senão pela instabilidade das<br />

combinações, aliás, mais complexas.”, e p. 120: “Não só nenhuma existência orgânica jamais emana da natureza<br />

inorgânica. Mas, além disso, nenhuma espécie resultaria de outra, nem superior nem inferior, salvo as variações<br />

28


Enfim, é melhor classificá-lo como “ordem-ista” panteísta, pois a ordem é a<br />

contemplada pela Trindade comtiana: o Grande Meio é o Espaço, o Grande Fetiche é a Terra,<br />

e o Grande Ser é a Humanidade. “Ordem-ista” panteísta humanista: por opção ele se afirma<br />

humanista (e não “ordem-ista”), mas vendo o humano como resumo, vértice de toda a ordem.<br />

Trata-se da superacentuação do segundo mandamento do resumo, feito por Jesus Cristo, dos<br />

dez mandamentos do Antigo Testamento: o altruísmo!<br />

Trata-se de uma opção, de uma decisão livre, permitida pelo determinismo relativo:<br />

“O dogma positivista institui, ao contrário, nossa verdadeira dignidade, composta de uma<br />

nobre resignação e de uma sábia atividade, cuja marcha não é jamais arbitrária. Referindo<br />

diretamente à Humanidade cada existência parcial, ele representa essa unidade relativa como<br />

subordinada ela própria a uma ordem universal, evidentemente objetiva, e que, por sua<br />

preponderância necessária, torna-se nosso regulador fundamental.” (Introdução fundamental,<br />

p. 416). Trata-se do amor “potentemente secundado pela fatalidade comum”: “Por isso o amor<br />

constitui o princípio fundamental da existência do Grande Ser. Mas essa ligação direta e<br />

universal, que nada pode substituir, encontra-se potentemente secundada pela fatalidade<br />

comum, exterior e interior, à qual as convicções teóricas das quais examino a eficácia<br />

religiosa se referem.” (p. 417).<br />

Conclusão<br />

Comte admitiu um ateísmo “etimológico” em relação ao Deus sobrenatural e afirmou<br />

um teísmo no qual Deus é a humanidade. Mas se exigirmos, como é necessário, que a<br />

Divindade tem que ser eterna, então se pode afirmar que Comte é inteiramente, e não apenas<br />

etimologicamente ateu.<br />

Ele considerou o ateísmo como uma solução insuficiente, tanto intelectual quanto<br />

moral e politicamente, e nesse sentido trabalhou para superá-lo com o seu positivismo.<br />

Ele nunca admitiu para si nenhum materialismo. Mas como afirmou (afirmação<br />

mitigada pelo seu agnosticismo, fenomenalismo e fenomenismo) a perpetuidade da matéria e<br />

a possibilidade de sua existência sem a vida, pode ser considerado materialista. Apesar disso,<br />

é melhor considerá-lo “ordem-ista”, afirmador da anterioridade da ordem que, para ele, é<br />

material e humana. “Ordem-ista” de uma ordem da qual pelo menos a base material é<br />

perpétua. “Ordem-ista” panteísta humanista, porque o vértice mais nobre dessa ordem, apesar<br />

de ser mortal, é divino. A humanidade é deusa e os homens igualmente, pois são seus agentes.<br />

O materialismo, para Comte, é a opção pela acentuação do menos nobre, pela<br />

dominação do inferior, porque eterno, mais forte, em relação ao superior. Em termos teóricos<br />

ele é a explicação do superior pelo inferior.<br />

Referências bibliográficas<br />

COMTE, Auguste. Écrits de jeunesse 1816-1828: suivis du Memoire sur la cosmogonie de<br />

Laplace, 1835. Textes établis par P. E. de B. Carneiro et P. Arnaud. Paris: Mouton, 1970.<br />

Coll. Archives positivistes, 5. 608 p.<br />

muito limitadas, embora muito pouco conhecidas ainda, que cada uma delas comporta. Existe, portanto, um<br />

abismo verdadeiramente intransponível entre o mundo vivente e a natureza inerte, e mesmo, em menores graus,<br />

entre os diversos modos de vitalidade. Confirmando a impossibilidade de toda síntese puramente objetiva, essa<br />

apreciação não altera de nenhum modo a verdadeira síntese subjetiva, resultada por toda parte de uma ascensão<br />

suficientemente gradual em direção ao tipo humano.”.<br />

29


_____. _____. Cours de philosophie positive. Paris: Hermann, 1975. Leçons 1-45 [primitivos<br />

vols. I-III]. 882 p. Abreviaremos Curso.<br />

_____. _____. Paris: Hermann, 1975. Leçons 46-60 [primitivos vols. IV-VI]. 800 p.<br />

_____. Traité philosophique d’astronomie populaire [1844] précédé du Discours sur l’esprit<br />

positif [1844]. Paris: Fayard, 1985. 492 p. Abreviaremos esse último por Discurso.<br />

_____. Système de politique positive ou Traité de sociologie Instituant la religion de<br />

l’humanité [1851]. Tome premier Contenant le Discours Préliminaire [1848] et<br />

l’Introduction fondamentale [1849-1850]. Troisième éd. Paris: Imp. Moderne, 1890. 748 p.<br />

Abreviaremos Sistema, Discurso preliminar e Introdução fundamental.<br />

_____. _____. Tome deuxième Contenant la statique sociale ou le Traité abstrait de l’ordre<br />

humain [1852]. Quatrième éd. Paris: Imp. de la société typographique, 1907. 472 p.<br />

_____. _____. Tome troisième Contenant la dynamique sociale ou le Traité général du<br />

progrès humain (Philosophie de l’Histoire) [1853]. Troisième éd. Paris: Imp. Larousse,<br />

1895. 624 p.<br />

_____. _____. Tome quatrième et dernier, Contenant le Tableau synthétique de l’avenir<br />

humain. Ce volume final est terminé para un Appendice Général, qui reproduit tous les<br />

opuscules primitifs de l’auteur sur la philosophie sociale [1854]. Troisième éd. Paris: Imp.<br />

Larousse, 1895. 800 p.<br />

_____. Catéchisme positiviste ou Sommaire exposition de la religion universelle en onze<br />

entretiens systématiques entre une femme et un prêtre de l’humanité [1852]. Chronologie,<br />

introduction et notes par P. Arnaud. Paris: Garnier-Flammarion, 1966. 314 p.<br />

Abreviaremos Catecismo positivista.<br />

_____. Appel aux conservateurs. Paris: E. Thunot, 1855. 136 p. Abreviaremos Apelo.<br />

_____. La synthèse subjective d’Auguste Comte ou Système universel des conceptions propres<br />

à l’état normal de l’humanité. Tome premier (seul publié): Système de logique positive ou<br />

Traité de philosophie mathématique [1856]. Seconde éd. Paris: Fonds typographique de<br />

l’exécution testamentarie d’Auguste Comte, 1900. 775 p. Abreviaremos Síntese subjetiva I.<br />

_____. Correspondance générale et confessions; Tome I (1814-40). Textes établis et<br />

présentés par P. E. de B. Carneiro et P. Arnaud. Paris / La Haye: Ephe / Mouton, 1973.<br />

Coll. Archives Positivistes. 437 p. Abreviaremos Correspondência.<br />

_____. _____; T. III (avril 1845 – avril 1846). Textes établis et présentés par P. E. de B.<br />

Carneiro et P. Arnaud. Paris / La Haye: Ehess / Mouton, 1977. Coll. Archives Positivistes.<br />

445 p.<br />

_____. _____; T. V (1849-1850). Textes établis et présentés par P. E. de B. Carneiro et P.<br />

Arbousse-Bastide. Paris / La Haye: Ehess / Vrin / Mouton. 1982. Coll. Archives<br />

Positivistes. 352 p.<br />

_____. _____; T. VI (1851-52). Textes établis par P. E. de B. Carneiro et présentés par P.<br />

Arbousse-Bastide. Paris: Ehess / Vrin, 1984. Coll. Archives Positivistes. 491 p.<br />

_____. _____; T. VII (1853-54). Textes établis par P. E. de B. Carneiro et présentés par A.<br />

Kremer-Marietti. Paris: Ehess / Vrin, 1987. Coll. Archives Positivistes. 326 p.<br />

_____. _____; T. VIII (1855-57). Textes établis par P. E. de B. Carneiro et présentés par A.<br />

Kremer-Marietti. Paris: Ehess / Vrin, 1990. Coll. Archives Positivistes. 606 p.<br />

LITTRÉ, Èmile. Auguste Comte et la philosophie positive. Paris: Typ. Lahure, 1877. 671 p.<br />

TEIXEIRA MENDES, Raimundo. Auguste Comte – Évolution originale; Documents publiés<br />

jusqu’ici montrant la parfaite continuité de cette évolution sans pareille, malgré les troubles<br />

profonds dus à la funeste liaison avec Saint-Simon. Premier vol. (1798-1820). RJ:<br />

Apostolat positiviste du Brézil, 1913. 655 p. Abreviaremos Evolução original.<br />

TISKI, Sergio. A questão da religião em Auguste Comte. Londrina: Eduel, 2006. 364 p.<br />

30

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