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unidade i - UFPB Virtual - Universidade Federal da Paraíba

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Todos os direitos e responsabili<strong>da</strong>des são dos organizadores.<br />

L755 Linguagens: Usos e refl exões. /Ana Cristina de Sousa Aldrigue, Evangelina<br />

Maria Brito de Faria (Coordenadoras. – João Pessoa: Editora Universitária, 2008.<br />

V<br />

1. Linguagem – Estudo e ensino.<br />

2. Lingüística – Fun<strong>da</strong>mentos. 3. Estudos Clássicos – Introdução. 4. Estudos<br />

Literários – Introdução. I. Aldrigue, Ana Cristina de Sousa. II. Faria, Evangelina<br />

Maria Brito de.<br />

UFBP/BC CDU: 800.85


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA<br />

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES<br />

CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS VIRTUAL<br />

LINGUAGENS: USOS E REFLEXÕES<br />

João Pessoa/2008


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA<br />

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES<br />

CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS VIRTUAL<br />

Informações técnicas:<br />

Material Didático Letras <strong>Virtual</strong><br />

Coordenadoras:<br />

Ana Cristina de Sousa Aldrigue<br />

Evangelina Maria Brito de Faria<br />

Colaboradores:<br />

Milton Marques Jr.<br />

Arturo Gouveia de Araújo<br />

Jan Edson Rodrigues Leite<br />

Regina Celi Mendes Pereira <strong>da</strong> Silva<br />

Maria Ester Vieira de Sousa<br />

Luiz Gonzaga Gonçalves<br />

Apoio Técnico:<br />

Juan Downig<br />

Lidyane Lima


SUMÁRIO<br />

LETRAS EM MODALIDADE VIRTUAL ........................................................................................... 7<br />

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS .............................................................................. 17<br />

Os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> literatura como construção artística .................................................................. 21<br />

A teoria dos gêneros literários ............................................................................................................... 37<br />

A especifi <strong>da</strong>de do gênero narrativo ...................................................................................................... 49<br />

LEITURA E PRODUÇAO DE TEXTO I.............................................................................................. 67<br />

Noções de leitura e sua relação com o ensino ...................................................................................... 69<br />

Conceito de gênero: descrição e funcionali<strong>da</strong>de ................................................................................. 85<br />

Os gêneros textuais e o ensino <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita ........................................................................ 91<br />

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS .............................................................................. 103<br />

Uma introdução aos estudos clássicos ................................................................................................ 105<br />

Estudo de homero – O Canto I Da Ilía<strong>da</strong> ........................................................................................... 123<br />

Visão genérica dos autores do teatro trágico ......................................................................................131<br />

Estudo de Virgílio – O Livro I Da Enei<strong>da</strong>. ......................................................................................... 141<br />

FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO .............................................. 163<br />

A fi losofi a grega antiga: pressupostos e preocupações .................................................................... 167<br />

A fi losofi a na moderni<strong>da</strong>de: necessi<strong>da</strong>des e horizontes ..................................................................189<br />

A pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência: novas bases para a educação ............................................................... 199<br />

FUNDAMENTOS DE LINGÜÍSTICA ............................................................................................. 215<br />

Linguagem língua e lingüística ............................................................................................................ 217<br />

A lingüística e o seu objeto de estudo ................................................................................................. 227<br />

A dimensão escrita, oral e gestual <strong>da</strong> linguagem .............................................................................. 241<br />

A norma lingüística ............................................................................................................................... 251<br />

Uni<strong>da</strong>de e diversi<strong>da</strong>de na língua ......................................................................................................... 259<br />

A lingüística como ciência .................................................................................................................... 269<br />

INTRODUÇÃO A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA .......................................................................... 277<br />

Uma introdução aos fun<strong>da</strong>mentos teóricos metodológicos <strong>da</strong> educação a distância ...................... 287<br />

Apresentação e ambientação <strong>da</strong> sala de aula virtual: moodle ........................................................ 297<br />

O aluno virtual ....................................................................................................................................... 307<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais de aprendizagem ........................................................................................... 317<br />

Avaliaçaõ em ambientes virtuais apoiados pela internet ............................................................... 327<br />

histórico <strong>da</strong> EAD .................................................................................................................................... 335


LETRAS EM MODALIDADE VIRTUAL<br />

Caro (a) aluno (a)<br />

ANA CRISTINA DE SOUSA ALDRIGUE<br />

EVANGELINA MARIA BRITO DE FARIA<br />

A necessi<strong>da</strong>de de aprimorar a qualifi cação é uma exigência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

moderna. Pensando nisso, a <strong>UFPB</strong>, em parceria com o MEC e as Prefeituras<br />

Municipais, vem oferecer o Curso de Licenciatura Plena em Letras, Habilitação<br />

em Língua Portuguesa, na Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de Educação <strong>Virtual</strong>.<br />

Esse curso, ao ser concebido pela <strong>UFPB</strong>, incorpora as práticas de<br />

formação dessa universi<strong>da</strong>de e acrescenta a metodologia <strong>da</strong> EAD para atender<br />

à necessi<strong>da</strong>de de uma formação específi ca para os que atuam no Ensino<br />

Fun<strong>da</strong>mental e Médio, visando o resgate <strong>da</strong> qualifi cação profi ssional.<br />

Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de ensino permite desenvolver uma ação pe<strong>da</strong>gógica mais<br />

complexa e coletiva em que todos os sujeitos do processo ensino e aprendizagem<br />

estão envolvidos direta ou indiretamente: de quem vai conceber e elaborar o<br />

material didático a quem irá cui<strong>da</strong>r para que este chegue às mãos do estu<strong>da</strong>nte,<br />

do coordenador de curso ao tutor acadêmico. Segundo R. Marsden (apud<br />

BELLONI, 1999, p. 80), EAD é um “processo complexo, multifacetado, que inclui<br />

muitas pessoas, to<strong>da</strong>s podendo reivindicar sua contribuição ao ensino”.<br />

Com o advento <strong>da</strong> tecnologia, a revisão crítica dos instrumentos de<br />

estudo, de pesquisa e de prática de aulas impõe-se como uma exigência social de<br />

adequação aos novos tempos e aos novos contextos e contornos do mercado, do<br />

sujeito e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Foi dessa leitura de mundo que surgiu o Projeto <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta<br />

do Brasil/ UAB. O Projeto foi criado pelo Ministério <strong>da</strong> Educação, em 2005, no<br />

âmbito do Fórum <strong>da</strong>s Estatais pela Educação, para a articulação e integração<br />

de um sistema nacional de educação superior virtual, em caráter experimental,<br />

visando sistematizar as ações, programas, projetos, ativi<strong>da</strong>des pertencentes às<br />

políticas públicas volta<strong>da</strong>s para a ampliação e interiorização <strong>da</strong> oferta do ensino<br />

superior gratuito e de quali<strong>da</strong>de no Brasil. Para a consecução do Projeto UAB, o<br />

Ministério de Educação, através <strong>da</strong> Secretaria de Educação a Distancia — SEED<br />

— lançou o Edital N° 1, em 20 de dezembro de 2005, com a Chama<strong>da</strong> Pública<br />

para a seleção de pólos municipais de apoio presencial e de cursos superiores de<br />

Instituições Federais de Ensino Superior na Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de Educação a Distância<br />

para a UAB.<br />

Com o DECRETO N° 5.800 de 8 de junho de 2006, estabeleceram-se as<br />

normas para o Sistema <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil, que tem como objetivos:<br />

7


É no pólo onde você vai<br />

encontrar o Ambiente<br />

<strong>Virtual</strong> de Aprendizagem.<br />

O AVA é visto como um<br />

conjunto de elementos<br />

tecnológicos, disponíveis<br />

na internet e utilizados<br />

para fi ns educacionais.<br />

O AVA é um lugar no<br />

mundo virtual que você<br />

e sua turma têm para se<br />

reunir e aprender.<br />

8<br />

I oferecer, prioritariamente, cursos de licenciatura e de formação inicial e<br />

continua<strong>da</strong> de professores <strong>da</strong> educação básica;<br />

II oferecer cursos superiores para capacitação de dirigentes, gestores e<br />

trabalhadores em educação básica dos Estados, do Distrito <strong>Federal</strong> e dos<br />

Municípios;<br />

III oferecer cursos superiores nas diferentes áreas do conhecimento;<br />

IV ampliar o acesso à educação superior pública;<br />

V reduzir as desigual<strong>da</strong>des de oferta de ensino superior entre as diferentes<br />

regiões do País;<br />

VI estabelecer amplo sistema nacional de educação superior a distância; e<br />

VII fomentar o desenvolvimento institucional para a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação<br />

a distância, bem como a pesquisa em metodologias inovadoras de ensino<br />

superior apoia<strong>da</strong>s em tecnologias de informação e comunicação.<br />

Pelos objetivos, é possível perceber que a criação <strong>da</strong> UAB é, antes de tudo,<br />

um projeto político de incremento ao acesso à <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>.<br />

O parágrafo 1º do Decreto Nº5.800 de junho de 2006 caracteriza o pólo<br />

de apoio presencial como <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> operacional para o desenvolvimento<br />

descentralizado de ativi<strong>da</strong>des pe<strong>da</strong>gógicas e administrativas relativas aos<br />

cursos e programas ofertados a distância pelas instituições públicas de ensino<br />

superior. Em que ca<strong>da</strong> pólo deverá dispor de infra-estrutura e recursos<br />

humanos adequados às fases presenciais dos cursos e programas do Sistema<br />

UAB.<br />

Como você está vendo, vai ser um curso diferente, mas não se preocupe,<br />

pois você receberá to<strong>da</strong>s as instruções para operar com essa nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de. É<br />

importante ressaltar que a quali<strong>da</strong>de não diminui na EAD. Entre as experiências<br />

em EAD já bem estabeleci<strong>da</strong>s no mundo, destacamos a Open University Britânica<br />

(UKOU), fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1971 e com 230.000 alunos; Universi<strong>da</strong>d Nacional de<br />

Educación a Distância espanhola (UNED), de 1972, com mais de 200.000 alunos;<br />

a Anadolu/Turqula, de 1982, mais de 550.000 estu<strong>da</strong>ntes; Fern Universitât alemã,<br />

de 1974, mais de 58.000 alunos, e a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta de Portugal.<br />

A UKOU é considera<strong>da</strong> pioneira. O seu fun<strong>da</strong>dor, Sir Harold Wilson,<br />

explicou que a decisão de criar a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta, então conheci<strong>da</strong> como<br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> do Ar, foi um ato político, pois tiveram de enfrentar a oposição do<br />

mundo acadêmico e <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des tradicionais. Entretanto, a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />

Aberta está defi nitivamente grava<strong>da</strong> como uma <strong>da</strong>s idéias de progresso que<br />

ilumina a imaginação do meio educacional.<br />

Em mais de 80 países do mundo, segundo Lisseanu (1988),o ensino<br />

a distância vem sendo empregado em todos os níveis educativos, desde<br />

o primeiro grau até a Pós-Graduação, assim como também na educação<br />

permanente. Na Europa, são oferecidos mais de 700 programa de diferentes<br />

níveis, nos mais variados campos do saber. Segundo o Conselho Internacional<br />

de Ensino a Distância/ CIED, em 1988, mais de 10 milhões de estu<strong>da</strong>ntes<br />

acompanhavam seus cursos a Distância (apud KAYE, 1988, p.57) e, em nível<br />

superior e de Pós-Graduação, essa formação é reconheci<strong>da</strong> legal e socialmente<br />

(IBAIZJEZ, 1989). O Parlamento Europeu reconheceu a importância <strong>da</strong> EAD<br />

para a Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> Européia ao adotar uma Resolução sobre as <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>s


Abertas, em julho de 1987, e ao desenvolver diversos programas comunitários,<br />

a partir de 1991. Na China, a televisão cultural universitária, desde 1977, oferece<br />

cursos a distância, enquanto na Africa os programas educativos a distância<br />

ain<strong>da</strong> são incipientes, face às limitações de recursos econômicos. A Austrália,<br />

por outro lado, é o país que mais desenvolve programas a distância integrados<br />

com as universi<strong>da</strong>des presenciais. Na América Latina, há países tomando a<br />

iniciativa de consoli<strong>da</strong>ção e institucionalização <strong>da</strong> EAD, como a Universi<strong>da</strong>d<br />

Nacional Abierta <strong>da</strong> Venezuela, a Umversi<strong>da</strong>d Estatal a Distancia de Costa<br />

Rica e o Sistema de Educación Abierto y a Distancia <strong>da</strong> Colômbia. No Brasil,<br />

a EAD começa a ser posta como uma alternativa já “possível e viável” para<br />

solucionar a “falta” de instrução e educação <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong> população adulta<br />

e trabalhadora. É importante lembrar que as universi<strong>da</strong>des especializa<strong>da</strong>s não<br />

substituem as tradicionais, nem com elas concorrem, tendo essencialmente<br />

caráter complementar e cooperativo.<br />

Agora que você já conhece um pouco mais <strong>da</strong> EAD, vamos conhecer o seu<br />

curso.<br />

CURSO PROPOSTO<br />

HISTÓRICO<br />

O compromisso <strong>da</strong> educação brasileira com a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia traz como<br />

conseqüência a ampliação <strong>da</strong> oferta do ensino para o engajamento efetivo na<br />

socie<strong>da</strong>de do ci<strong>da</strong>dão letrado. Para tanto, a criação de políticas públicas nacionais<br />

volta<strong>da</strong>s para o fomento do ensino à distância possibilitam o acesso efetivo e<br />

quantitativo ao bem cultural que é o conhecimento formal construído em agências<br />

de letramento, como a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Neste sentido, a articulação de pólos à distância de ensino superior, tendo<br />

à frente Instituições de Ensino Superior, garante o compromisso com a quali<strong>da</strong>de<br />

do conhecimento formal ofertado.<br />

O curso de Licenciatura Plena em Letras, Habilitação Língua<br />

Portuguesa, aprovado pelo CONSEPE com a RESOLUÇÃO N° 20/ 2007, na<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de semipresencial, incorpora as práticas de formação <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong> e<br />

amplia a discussão <strong>da</strong>s diretrizes, ao apontar a necessi<strong>da</strong>de de uma formação<br />

específi ca para os que atuam no Ensino Fun<strong>da</strong>mental e Médio, visando o<br />

resgate <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de profi ssional e o atendimento aos objetivos destas etapas<br />

educativas.<br />

A socie<strong>da</strong>de brasileira atual exige do graduado em Letras uma atuação<br />

social e profissional comprometi<strong>da</strong> com a construção <strong>da</strong> consciência de<br />

ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. A multiplici<strong>da</strong>de de papéis que o graduando em Letras exerce ou<br />

pode vir a exercer solicita, além do compromisso ético, fun<strong>da</strong>mentado em<br />

princípios humanísticos, um compromisso com a construção e reconstrução<br />

do conhecimento, capaz de fomentar a própria reflexão acerca dessa<br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

9


10<br />

QUANTITATIVO DE VAGAS<br />

Prevê-se um total de 220 vagas no primeiro semestre e 476 no segundo<br />

semestre, distribuí<strong>da</strong>s entre os pólos municipais de apoio presencial dos estados<br />

<strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, <strong>da</strong> Bahia e do Ceará.<br />

Primeiro Semestre<br />

PÓLOS N DE VAGAS<br />

Araruna/PB 30<br />

Campina Grande/PB 40<br />

Conde/PB 30<br />

Cuité de Mamaguape/PB 20<br />

Pombal/PB 50<br />

João Pessoa/PB 50<br />

Segundo Semestre<br />

PÓLOS N DE VAGAS<br />

Itabaiana/PB 50<br />

Itaporanga/PB 50<br />

Livramento/PB 26<br />

Lucena/PB 30<br />

Mari/PB 50<br />

Pintimbu/PB 30<br />

Jacaraci/BA 40<br />

Pratinga/BA 40<br />

Camaçari/BA 40<br />

Itapiçuru/BA 40<br />

Mundo Novo/BA 40<br />

Ubajata/CE 40


OBJETIVOS<br />

O Curso de Licenciatura Plena em Letras tem por objetivo geral promover<br />

a formação de professores para o Ensino Fun<strong>da</strong>mental e o Ensino Médio, cujas<br />

práticas estejam sintoniza<strong>da</strong>s com as necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Esta formação busca, especifi camente, capacitar o aluno para:<br />

1 refl etir sobre a importância do domínio <strong>da</strong> linguagem (em suas várias<br />

formas de manifestação e registro) como fun<strong>da</strong>mental não apenas para a<br />

interação social, mas também para o julgamento crítico <strong>da</strong>s relações sociais e<br />

do contexto em que o aluno está inserido, capacitando-o para as ativi<strong>da</strong>des<br />

de ensino, pesquisa, visando a sua formação como agente produtor e não<br />

mero transmissor do conhecimento;<br />

2 promover a extensão como forma de articular o ensino e a pesquisa com a<br />

reali<strong>da</strong>de social <strong>da</strong> qual ele faz parte.<br />

3 ler, analisar e produzir textos em diferentes linguagens, em diferentes<br />

varie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> língua e em diferentes contextos.<br />

4 dominar um repertório representativo <strong>da</strong> literatura em língua portuguesa<br />

e ser capaz de estabelecer as relações de intertextuali<strong>da</strong>de com a literatura<br />

universal;<br />

5 desempenhar o papel de agente multiplicador, visando à formação de<br />

leitores críticos, intérpretes e produtores de textos de diferentes gêneros.<br />

DURAÇÃO DO CURSO<br />

O Curso terá a duração mínima de quatro anos, divididos em 8 (oito) e<br />

máxima de 12 (doze) períodos letivos, organizados em módulos semestrais.<br />

Será permiti<strong>da</strong> a matrícula em no máximo 28 (vinte e oito) e no mínimo 18<br />

(dezoito) créditos por período letivo.<br />

11


A estrutura curricular<br />

está dividi<strong>da</strong><br />

em:Componentes<br />

curriculares de<br />

fun<strong>da</strong>mentação teórica<br />

em língua vernácula e<br />

literatura; Componentes<br />

curriculares específi cos<br />

de língua vernácula e<br />

literatura vernácula;<br />

Componentes básicos de<br />

formação profi ssional:<br />

Prática Curricular e<br />

Estágio Supervisionado<br />

de Ensino; Componentes<br />

complementares:<br />

Optativos: serão<br />

responsáveis pelos eixos<br />

de aprofun<strong>da</strong>mento<br />

nas diversas áreas<br />

do curso – Língua,<br />

Lingüística e Literatura<br />

–, a fi m de possibilitar<br />

ao aluno uma escolha<br />

profi ssional adequa<strong>da</strong><br />

e uma ampliação de<br />

seus horizontes de<br />

conhecimento.Flexíveis:<br />

compreenderão a<br />

participação em eventos<br />

(congressos, simpósios,<br />

seminários, colóquios) e<br />

em projetos de ensino,<br />

pesquisa e extensão. O<br />

aproveitamento <strong>da</strong> carga<br />

horária dessas ativi<strong>da</strong>des<br />

será regulamentado pelo<br />

Colegiado do Curso,<br />

em conformi<strong>da</strong>de com<br />

a legislação vigente na<br />

<strong>UFPB</strong>. Perfazendo um<br />

total de 2.820 horas.<br />

12<br />

Estrutura Curricular<br />

1º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DE Introdução à EAD 60 30 30<br />

DLCV Fun<strong>da</strong>mentos de Lingüís ca 60 30 30<br />

DLCV Introdução aos Estudos Clássicos 60 30 30<br />

DLCV Leitura e produção de Texto (I) 60 30 30<br />

DLCV Introdução aos Estudos Literários 60 30 30<br />

DFE Fund. Antropo-fi losófi cos <strong>da</strong> Educação 60 30 30<br />

Total 360 180 180<br />

A Int. à EAD será ministra<strong>da</strong> antes <strong>da</strong>s outras disciplinas<br />

2º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Teorias Lingüís cas I 60 30 30<br />

DLCV La m 60 30 30<br />

DLCV Foné ca e fonologia <strong>da</strong> língua portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Teoria Literária I 60 30 30<br />

DFE Fund. Sócio-históricos <strong>da</strong> Educação 60 30 30<br />

DLCV Metodologia do trabalho cien fi co 60 30 30<br />

Total 360 180 180<br />

3º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Teorias Lingüís cas II 60 30 30<br />

DLCV Teoria Literária II: 60 30 30<br />

DLCV Leitura e produção de Texto (II) 60 30 30<br />

DLCV Morfologia <strong>da</strong> Língua Portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Opta va (Educação) 60 30 30<br />

DFE Fun<strong>da</strong>mentos Psicológicos <strong>da</strong> Educação 60 30 30<br />

Total 360 180 180<br />

4º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Sintaxe <strong>da</strong> Língua Portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Literatura Brasileira I 60 30 30<br />

DLCV Literatura portuguesa I 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado I: Ling Aplid ao<br />

Ensino de Lin Port (Fun<strong>da</strong>mental) 60 30 30<br />

DFE Polí ca e Gestão <strong>da</strong> Educação 60 30 30<br />

DLCV Opta va (Educação) 60 30 30<br />

Total 360 180 180


5º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Semântica <strong>da</strong> Língua Portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Literatura Brasileira II 60 30 30<br />

DLCV Literatura Portuguesa II 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado III:<br />

Literatura Infanto-juvenil 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado II: Ling<br />

Aplid ao Ensino de Lin Port (EM) 60 30 30<br />

DLCV Didática do Ensino de Língua Port 60 30 30<br />

Total 360 180 180<br />

6º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Pragmática Língua Portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Literatura Brasileira III 60 30 30<br />

DLCV Literatura portuguesa III 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado IV:<br />

Literatura no Ensino Médio 60 30 30<br />

DLCV Pesquisa em à Língua Potug. 60 30 30<br />

DLCV Optativa 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado V:<br />

Vivência em Língua Port. Ens. Fun<strong>da</strong>mental 60 30 30<br />

Total 420 210 210<br />

7º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Est. Supervisionado VI:<br />

Vivência de Língua Portuguesa: Ensino Médio 60 30 30<br />

DLCV Est. Supervisionado VII: Vivência<br />

de Literatura: Ensino Fun<strong>da</strong>mental e Médio 60 30 30<br />

DLCV Literatura Brasileira IV 60 30 30<br />

DLCV Optativa 60 30 30<br />

DLCV Conteúdos fl exiveis 60 30 30<br />

DLCV Lingüística Textual 60 30 30<br />

Total 360 180 180<br />

8º Semestre<br />

Código Disciplinas CHT T P E<br />

DLCV Literatura Brasileira V 60 30 30<br />

DLCV História <strong>da</strong> Língua Portuguesa 60 30 30<br />

DLCV Conteúdos fl exiveis 60 30 30<br />

DLCV Monografi a (TCC) 60 30 30<br />

DLCV Optativa 60 30 30<br />

Total 300 150 150<br />

13


14<br />

O nosso corpo docente:<br />

Amador Ribeiro Neto - Doutorado em Literatura/PUC-SP<br />

Ana Cristina de Sousa Aldrigue – Doutorado em Lingüística/UNESP<br />

Arturo Golveia de Araújo - Doutorado em Literatura/USP<br />

Beliza Áurea de Arru<strong>da</strong> Mello – Doutorado em Letras/<strong>UFPB</strong><br />

Dermeval <strong>da</strong> Hora Oliveira – Pós-Doutorado em Lingüística/U. Livre de Amsterdã<br />

Eliane Ferraz Alves- Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Evangelina Maria Brito de Faria - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Ivone Tavares Lucena - Doutorado em Lingüística/UNESP<br />

Jan Edson Rodrigues Leite - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Lucienne Claudete Espíndola - Doutorado em Lingüística/UFSC<br />

Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Maria <strong>da</strong>s Graças Carvalho Ribeiro - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Maria de Fátima Melo - Doutorado em Lingüística/UFRJ<br />

Maria de Fátima Almei<strong>da</strong> - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Maria Elizabeth Aff onso Christiano - Doutorado em Lingüística/UNESP<br />

Maria Ester Vieira de Sousa - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Maria Regina Baracuhy Leite - Doutorado em Lingüística/UNESP<br />

Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante - Doutorado em Lingüística/UNICAMP<br />

Marli Paz de Souza – Doutora em Letras/<strong>UFPB</strong><br />

Milton Marques Júnior - Doutor em Letras/<strong>UFPB</strong><br />

Mônica Nóbrega – Doutora em Lingüística/ PUCRS<br />

Pedro Francelino – Mestre em Letras/<strong>UFPB</strong> (Doutorando em Lingüística/UFPE)<br />

Regina Celi Mendes Perreira <strong>da</strong> Silva - Doutorado em Lingüística/UFPE<br />

Rinaldo Nunes Fernandes – Doutorado em teoria <strong>da</strong> Literatura/UNICAMP<br />

Socorro de Fátima Pacífi co Barbosa - Doutorado em Literatura/USP<br />

Wilma Martins de Lima – Doutorado em Literatura/UFPE


O Curso de Letras <strong>Virtual</strong> tem a mesma estrutura que o presencial e conta<br />

com os mesmos professores. O que mu<strong>da</strong> é o uso <strong>da</strong> metodologia EAD, que tem<br />

como pontos fortes: a disciplina, ou seja, os alunos devem cumprir um calendário<br />

com diversas ativi<strong>da</strong>des; a multiplici<strong>da</strong>de de atores, em que o número de pessoas<br />

envolvi<strong>da</strong>s na realização do curso ultrapassa o do presencial. As videoaulas, os<br />

Cds, essas apostilas impressas e as interações com os tutores e com os professores<br />

<strong>da</strong>rão sustentabili<strong>da</strong>de do curso. A EAD propõe um novo perfi l de professor e<br />

de aluno e uma nova maneira pe<strong>da</strong>gógica de ensinar e aprender. É necessário<br />

o desenvolvimento de habili<strong>da</strong>des: desenvolver autonomia de estudo e grande<br />

disciplina, gerenciar o tempo, comprometer-se com a própria aprendizagem e<br />

com a conclusão do seu curso. Você percebeu que o perfi l do aluno a distância<br />

requer uma postura diferente. Nós nos esforçaremos para ajudá-lo a construir<br />

esse perfi l através <strong>da</strong>s indicações metodológicas presentes nas disciplinas e <strong>da</strong>s<br />

interações via internet.<br />

Fique atento ao calendário acadêmico, na plataforma Moodle e marque as<br />

<strong>da</strong>tas-chaves:<br />

1- o início <strong>da</strong> disciplina<br />

2 - os dias para participar <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des programa<strong>da</strong>s<br />

2 - o dia do envio <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

3 - o dia <strong>da</strong> avaliação presencial ( você fará pelo menos uma avaliação por<br />

disciplina)<br />

Além disso, tenha sempre à mão um dicionário (ou use o do computador),<br />

lembre-se de que a principal forma de comunicação num curso a distância é a<br />

escrita.<br />

Nesse volume, vocês receberão o material <strong>da</strong>s seguintes disciplinas:<br />

Introdução à EAD, em que aprenderão como usar as ferramentas <strong>da</strong> internet<br />

para ter acesso ao curso, Fun<strong>da</strong>mentos de Lingüística, Introdução aos Estudos<br />

Clássicos, Leitura e Produção de Texto (I), Introdução aos Estudos Literários e<br />

Fun<strong>da</strong>mentos Antropo-fi losófi cos <strong>da</strong> Educação.<br />

Todo o material foi construído com o objetivo de formar um todo coeso<br />

que pudesse sustentar o princípio fun<strong>da</strong>mental de condução desse projeto:<br />

o compromisso de atuar com responsabili<strong>da</strong>de, construindo um curso de<br />

quali<strong>da</strong>de.<br />

A Coordenação e o competente corpo docente assumem a responsabili<strong>da</strong>de<br />

de oferecer um curso coerentemente estruturado e se orgulham de possibilitar à<br />

<strong>UFPB</strong> a entra<strong>da</strong> no sistema UAB, abrindo espaço no cenário nacional para uma<br />

educação de maior inclusão.<br />

Seja bem vindo ao Curso de Letras <strong>Virtual</strong><br />

15


INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS<br />

Caro Aluno,<br />

Arturo Gouveia<br />

A disciplina que você vai cursar comigo, a partir de agora, é Teoria <strong>da</strong><br />

Literatura. Trata-se de um conjunto de princípios fun<strong>da</strong>mentais para você<br />

conhecer a natureza, os meios e a fi nali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> literatura. Convém esclarecer<br />

que a literatura é muito mais antiga do que a teoria e, obviamente, só depois<br />

<strong>da</strong> existência de um certo fenômeno é que o homem pode construir um<br />

conhecimento e começar a teorizar. Em geral, no senso comum, existe muito<br />

preconceito em relação à teoria, como se ela não tivesse nenhuma conexão com a<br />

prática real. A literatura, como um tipo de arte, de fi cção, também comummente<br />

é vista com preconceito, com certa reserva, na medi<strong>da</strong> em que se cristaliza a idéia<br />

de que não serve para na<strong>da</strong>. Mas será mesmo que uma arte não serve para na<strong>da</strong>?<br />

Você aceita esse tipo de concepção? Será que a arte, por mais simbólica que seja,<br />

não serve sequer para a gente refl etir um pouco sobre a condição humana, o diaa-dia,<br />

a situação tão brutal vivi<strong>da</strong> pelo ser humano em seu contexto histórico?<br />

É preciso, desde já, criar condições para evitar esse tipo de visão distorci<strong>da</strong>.<br />

A literatura é uma arte e, como arte, como um tipo especial de conhecimento,<br />

pode nos fazer refl etir sobre as coisas mais banais do cotidiano, assim como sobre<br />

coisas que nós não percebemos numa vi<strong>da</strong> mecaniza<strong>da</strong>. Uma <strong>da</strong>s principais<br />

fi nali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura, portanto, é mostrar o quanto a arte literária<br />

pode nos proporcionar um tipo diferente de percepção, seja em relação às<br />

coisas mais concretas, seja em relação ao que parece mais abstrato e de difícil<br />

compreensão.<br />

Esta disciplina em que você está se iniciando, portanto, tem esse objetivo<br />

primordial. Ela será exposta em três <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, ao longo <strong>da</strong>s quais se estabelecerá<br />

um diálogo produtivo sobre os seus conceitos, o que resultará na avaliação.<br />

Não pretendo, como professor, fazer uma avaliação tradicional, mas através <strong>da</strong><br />

produção de pequenas re<strong>da</strong>ções, porém apropria<strong>da</strong>s, para que se perceba o nível<br />

de assimilação dos conteúdos disseminados ao longo do curso.<br />

As três <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s do curso serão:<br />

1. Os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> literatura como construção artística;<br />

2. A teoria dos gêneros literários como forma de classifi cação dos textos <strong>da</strong><br />

tradição literária;<br />

3. Um estudo sobre o gênero narrativo, especialmente o conto e suas<br />

categorias, ou seja, seus elementos estruturais (enredo, personagem, tempo,<br />

espaço, narrador etc.).<br />

Essas três <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, assim distribuí<strong>da</strong>s, vão proporcionar um conhecimento<br />

bastante interessante dos conceitos mais genéricos <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura. Além<br />

disso, constituirão três etapas interliga<strong>da</strong>s pela temática e por um procedimento<br />

que vai do geral ao específi co. Assim, a parte que diz respeito aos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong><br />

literatura criará condições para que o aluno sinta a importância <strong>da</strong> arte literária,<br />

17


18<br />

de sua distinção de outras formas de arte e de discurso; também aju<strong>da</strong>rá o aluno<br />

a compreender que a teoria é uma prática humana fun<strong>da</strong>mental à existência, pois<br />

não existe na<strong>da</strong> bem planejado que não seja fruto de alguma refl exão teórica,<br />

seja lá em que nível for. Nessa primeira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, o aluno será levado a ir se<br />

familiarizando, aos poucos, com os conceitos que servem para explicar, descrever<br />

e gerar um conhecimento especializado, enriquecendo o seu patrimônio<br />

cultural. O objetivo mais importante nessa primeira etapa é uma refl exão sobre<br />

a literatura, comparando-a com o que não é literatura e mostrando por que essa<br />

distinção é tão importante para o aluno quanto para o professor ou qualquer<br />

pessoa que queira compartilhar desse tipo de conhecimento. Assim, um soneto de<br />

Augusto dos Anjos, “Van<strong>da</strong>lismo”, entre outros exemplos citados, levará o aluno<br />

a ir diferenciando, do ponto de vista qualitativo, o que efetivamente é literatura<br />

<strong>da</strong>quilo que não é, não tem nenhuma importância em termos de arte, mas pode<br />

até se fazer passar por tal. Mostraremos esses exemplos no momento preciso.<br />

Na segun<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, o estudo começa a ser mais específi co. Vamos abor<strong>da</strong>r<br />

a teoria dos gêneros literários, imprescindível à classifi cação dos tipos mais<br />

diferentes de texto que a tradição, ao longo dos milênios, oferece. Por exemplo, a<br />

história de Sansão e Dalila, relata<strong>da</strong> no Livro dos Juízes, <strong>da</strong> Bíblia, é conta<strong>da</strong> em<br />

forma de narrativa. Mas ela poderia ser narra<strong>da</strong> em forma de poesia, com versos,<br />

com estrofes. Da mesma forma, poderia ser vivi<strong>da</strong> por personagens em um texto<br />

voltado para a encenação teatral. Isso signifi ca que um determinado enredo pode<br />

assumir várias formas. Os fatos aterradores do 11 de Setembro, em Nova York,<br />

poderiam ser transformados em conto, romance, crônica, poema lírico, texto<br />

dramático (teatral). Poderíamos ter os mesmos personagens, os mesmos fatos, o<br />

mesmo tempo, o mesmo espaço, mas com formas diferencia<strong>da</strong>s que distinguem<br />

ca<strong>da</strong> gênero. Nesse sentido, percebe-se a relevância dessa teoria para levar<br />

o aluno a não ver os textos literários pelo que eles têm apenas de semelhante,<br />

mas principalmente pelas diferenças. A teoria dos gêneros explica em que<br />

consistem tais diferenças e a necessi<strong>da</strong>de de conhecer os devidos meios teóricos e<br />

conceituais para identifi cá-las.<br />

Na terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, o aluno perceberá que o curso fi cará ain<strong>da</strong> mais<br />

específi co. Depois de expostos os conceitos sobre gênero lírico, gênero dramático<br />

e gênero narrativo (também chamado, tradicionalmente, de gênero épico), o<br />

estudo vai se deter mais sobre este último. Várias categorias serão conceitua<strong>da</strong>s, o<br />

que constitui ca<strong>da</strong> uma delas, sempre com exemplos bem representativos. Alguns<br />

exemplos serão mostrados para que o aluno tenha uma percepção adequa<strong>da</strong><br />

do gênero em questão. Depois, serão apresentados alguns contos de Machado<br />

de Assis, considerado pela crítica um dos maiores escritores brasileiros. Serão<br />

sugeri<strong>da</strong>s leituras dos contos, mas, a título de didática, será feito um resumo de<br />

alguns contos, assim como um comentário crítico <strong>da</strong> situação representa<strong>da</strong> no<br />

enredo e vivi<strong>da</strong> pelos personagens. Acredito que esse trajeto aqui proposto, do<br />

geral ao específi co, aju<strong>da</strong>rá a facilitar a compreensão <strong>da</strong> natureza e dos objetivos<br />

<strong>da</strong> disciplina em curso.<br />

ATENÇÃO: A teoria <strong>da</strong> literatura é um conjunto de princípios que exigem de<br />

você uma refl exão. Por exemplo: como distinguir a literatura e saber reconhecer<br />

se um texto é literário ou não?


REFLITA: Sem a leitura dos textos literários, de jornais, de livros e outras<br />

fontes, não adianta fi car na teoria pela teoria. A teoria é importante, mas<br />

depende do objeto de estudo, que são os próprios textos literários.<br />

AGORA É SUA VEZ: Vá agora, imediatamente, ler o poema “Van<strong>da</strong>lismo”,<br />

de Augusto dos Anjos. Ele pode ser encontrado em alguma edição do Eu, mas<br />

pode também ser buscado pela Internet. Leia várias vezes esse soneto e procure<br />

entender o que existe de diferente no sentido dos versos, em comparação com<br />

a vi<strong>da</strong> real.<br />

19


UNIDADE I<br />

OS FUNDAMENTOS DA LITERATURA COMO<br />

CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA<br />

Em primeiro lugar, vamos fazer uma breve refl exão sobre a teoria. Como<br />

você já deve ter ouvido falar, a teoria é algo muito distinto <strong>da</strong> prática. Entretanto,<br />

a situação real não é bem assim. O que se entende por teoria no senso comum<br />

é algo muito preconceituoso. O senso comum é um tipo de comunicação muito<br />

importante no dia-a-dia, mas um conhecimento mais qualifi cado é aquele<br />

que passa a duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s generalizações do senso comum. E a teoria tem um<br />

papel muito relevante nessa direção. No cotidiano você já ouviu falar diversas<br />

vezes coisas assim: “O brasileiro é preguiçoso”; ou então: “A fome sempre<br />

existiu e não tem jeito”; ou então: “Os artistas não contribuem em na<strong>da</strong> para o<br />

desenvolvimento nacional”. Essas três frases são tipicamente do senso comum.<br />

Elas circulam em nossa socie<strong>da</strong>de com o objetivo de fazer com que você<br />

também se apegue às generalizações que ela propaga<strong>da</strong>. O que signifi ca uma<br />

generalização desse tipo? Vamos analisar a primeira frase. Ora, preste ATENÇÃO:<br />

ela afi rma que todos os brasileiros são preguiçosos, pois o sentido singular dela<br />

está se referindo, na ver<strong>da</strong>de, ao plural. Ora, você acredita que a preguiça é tão<br />

grande assim no Brasil? Se o brasileiro fosse preguiçoso mesmo, você acha que as<br />

maiores empresas multinacionais do mundo estariam funcionando aqui? Se você<br />

fosse dono de uma empresa como uma fábrica ou um banco, você a instalaria<br />

num lugar onde o povo é totalmente preguiçoso? Observe que, com essa<br />

brevíssima refl exão, a gente começa a discutir a frase e duvi<strong>da</strong> do conteúdo dela.<br />

Se formos para a prática, veremos que milhões de pessoas nesse país trabalham<br />

em condições péssimas, mal pagas, mas trabalham intensamente, inclusive<br />

crianças e mulheres grávi<strong>da</strong>s. Assim, quanto mais refl etirmos criticamente, menos<br />

aceitaremos as generalizações.<br />

O que está exposto na segun<strong>da</strong> frase é algo muito semelhante: ela afi rma<br />

que a fome sempre existiu e, por isso, a gente não deve se indignar com ela. Nesse<br />

sentido, o senso comum é levado a acreditar que a fome é algo até natural, normal,<br />

o que não deve gerar preocupações. Mas será que os fatos são assim mesmo?<br />

Encontrei um dia na Internet uma matéria curiosa que dizia o seguinte: Bill<br />

Gates, o homem mais rico do mundo, ganha mil dólares por segundo, enquanto<br />

populações inteiras na África têm uma ren<strong>da</strong> per capita de um dólar por mês.<br />

Você acha que isso é natural? Será que esse abismo imenso que separa pobreza de<br />

riqueza é algo que não tem jeito? Uma refl exão mais apropria<strong>da</strong> sobre o assunto<br />

mostrará que a pobreza é produzi<strong>da</strong> pela riqueza e vice-versa. É o trabalho dos<br />

pobres, explorados, miserabilizados, que gera a riqueza dos poderosos. Portanto,<br />

não existe na<strong>da</strong> de natural nesse processo. Trata-se de uma questão social de<br />

estratifi cação e appartheid econômico. O mundo atual, com enormes tecnologias,<br />

poderia produzir alimentos para to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de, o que acabaria de vez<br />

com a fome. Portanto, o problema <strong>da</strong> fome não é de natureza técnica nem é uma<br />

maldição do destino; o problema é essencialmente sócio-econômico. Os políticos<br />

não têm interesse em acabar com a fome porque ela gera subordinação. A África<br />

21


22<br />

tem enormes populações famintas, mas Nova York também tem, conforme<br />

última pesquisa feita pela ONU, trinta e cinco mil mendigos! Isso signifi ca que<br />

a fome coexiste, em Nova York, com o maior volume de dinheiro do planeta. E<br />

esse problema não provém de nenhuma destinação maldita, mas <strong>da</strong> falta de uma<br />

política capaz de integrar as pessoas a terem uma vi<strong>da</strong> digna na socie<strong>da</strong>de.<br />

As refl exões acima também servem para desmontar a terceira frase. Ela<br />

afi rma que os artistas são vadios, inúteis, imprestáveis, como se não servissem<br />

para na<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong>de capitalista, tão caracteriza<strong>da</strong> pelo imediatismo e pela<br />

ambição de ter as coisas materiais em abundância. Ora, será que apenas os<br />

bens materiais são importantes para a formação do ser humano? Será que o ser<br />

humano não precisa de um bom fi lme, uma boa música, um bom livro, visitar<br />

exposições de arte, para se enriquecer intelectualmente? Refl ita bem sobre isso:<br />

o preconceito que se tem em relação à arte está baseado na idéia de que a arte<br />

não dá lucro, não tem importância para o seu crescimento, não leva a na<strong>da</strong> de<br />

proveitoso. Os textos que vamos expor em segui<strong>da</strong> demonstrarão o contrário do<br />

que está tão banalizado no senso comum.<br />

AGORA É SUA VEZ: Leia de novo, com mais calma, o poema indicado<br />

de Augusto dos Anjos. Ele mostrará a você um tipo de linguagem que é<br />

impossível na lógica e no senso comum que utilizamos no dia-a-dia. Em<br />

segui<strong>da</strong>, passe a ler com mais apego os conceitos que serão apresentados sobre<br />

a natureza <strong>da</strong> literatura.<br />

1.1 A Natureza <strong>da</strong> Literatura<br />

Refl etir sobre a natureza <strong>da</strong> literatura é verifi car como a arte <strong>da</strong>s palavras<br />

se constrói. Literatura não é documento, não é jornal, não é texto científi co.<br />

Literatura é fi cção, criação imaginária, embora liga<strong>da</strong> à reali<strong>da</strong>de concreta.<br />

Acontece que ela não é uma cópia nem uma mera retratação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que<br />

vivemos. A literatura é uma transfi guração artística <strong>da</strong>s experiências humanas,<br />

mas nunca se reduz a estas. Para entendermos com mais vigor essa diferença,<br />

trabalharemos aqui, inicialmente, com três fun<strong>da</strong>mentos básicos <strong>da</strong> literatura: a)<br />

A necessi<strong>da</strong>de de ruptura com o senso comum; b) A ilogici<strong>da</strong>de conceitual; c) A<br />

combinação <strong>da</strong>s palavras.<br />

1.1.1 A Necessi<strong>da</strong>de de Ruptura com o Senso Comum<br />

Um dos fun<strong>da</strong>mentos mais constantes na literatura, como na arte em geral,<br />

é a ruptura com o senso comum. Ora, se a literatura é um procedimento artístico,<br />

ela tem que ser elabora<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> uma criativi<strong>da</strong>de capaz de se distinguir do<br />

que já se conhece. Se o texto literário se limitar a reproduzir o que já existe e já<br />

se conhece, qual o tipo de contribuição que ele estará <strong>da</strong>ndo ao conhecimento?<br />

Além disso, como já evidenciamos no início, a arte tem que despertar as pessoas<br />

para uma nova percepção <strong>da</strong>s coisas, que não seja meramente o que já se sabe na<br />

experiência vulgar. Veja você esse verso de Augusto dos Anjos:


A podridão me serve de Evangelho.<br />

Em que é que esse verso pode contribuir para que você tenha uma<br />

percepção diferente dos conteúdos que ele transmite? Em primeiro lugar,<br />

vivemos numa civilização ocidental, ju<strong>da</strong>ico-cristã, que historicamente teve<br />

muita infl uência do poder <strong>da</strong> Igreja católica. Por tal infl uência, aprendemos<br />

que o Evangelho é uma palavra que signifi ca “boa nova”, “boa notícia”, que é<br />

a notícia de salvação proporciona<strong>da</strong> por Cristo. A salvação foi prega<strong>da</strong> ao longo<br />

dos séculos como a maior esperança em que a humani<strong>da</strong>de deveria acreditar.<br />

Nossa formação religiosa, que implica outros valores éticos, até hoje dissemina<br />

tais idéias: a salvação é o que garante a vi<strong>da</strong> eterna, o descanso perpétuo com<br />

Deus, longe de todos os tormentos <strong>da</strong> história. No verso de Augusto dos Anjos,<br />

entretanto, to<strong>da</strong> essa pregação religiosa sofre uma transformação radical.<br />

Ele inverte radicalmente o sentido original de Evangelho. Segundo o verso,<br />

o Evangelho não contém na<strong>da</strong> de puro e magnânimo, mas de podridão. O<br />

sentido de decomposição, inerente ao de podridão, é o extremo oposto de uma<br />

eterni<strong>da</strong>de feliz e guar<strong>da</strong><strong>da</strong> por Deus. Independentemente dos valores religiosos<br />

do autor (pois essa questão biográfi ca não interessa aqui), pode-se deduzir do<br />

verso que ele se afasta do sentido milenar <strong>da</strong> Bíblia e, portanto, do sendo comum<br />

que se formou no Ocidente desde a disseminação do cristianismo. Nesse sentido,<br />

a podridão é sinônimo de boa nova, como se, ironicamente, a salvação fosse a<br />

decomposição, que é rigorosamente sinônimo <strong>da</strong> morte. Esse verso, de fato, não<br />

quer transmitir nenhuma esperança, nenhuma sensação de otimismo em relação<br />

ao futuro. O futuro, para ele, já está prefi gurado na podridão. Observe como o<br />

verso se apropria de outro sentido <strong>da</strong> Bíblia (a previsão, a projeção antecipa<strong>da</strong><br />

do futuro, no caso a certeza de um futuro fi rme e garantido ao lado de Deus)<br />

para desmanchar, desfi gurar, desconstruir. Esse procedimento de desconstrução<br />

é próprio <strong>da</strong> literatura para que ela delibera<strong>da</strong>mente se afaste do senso comum e<br />

gere novos signifi cados, novos sentidos, mesmo que seja em torno do que é mais<br />

conhecido e aceito convencionalmente. Assim, o destaque de Augusto dos Anjos à<br />

arte e à refl exão, nesse verso, é acrescentar à tradição de valores religiosos e éticos<br />

uma leitura que comumente não se faz dos chamados símbolos sagrados. Nessa<br />

medi<strong>da</strong>, Augusto dos Anjos procede à dessacralização do convencional. Vejamos<br />

agora o verso em um contexto mais amplo:<br />

A podridão me serve de Evangelho.<br />

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques,<br />

E o animal inferior que urra nos bosques<br />

É com certeza meu irmão mais velho!<br />

Na continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura, vamos percebendo que o grau de ruptura com<br />

o senso comum aumenta. Por exemplo, a voz poética (eu-lírico) afi rma que ama<br />

o esterco. Ora, esterco é excremento, sentido que se estende às fezes e ao que<br />

é rejeitado pela cultura como algo nojento, desprezível, horroroso, que causa<br />

repugnância. Mas, ao contrário dessa sensação negativa, repugnante, o eu-lírico<br />

afi rma uma aproximação afetiva com os excrementos, “os resíduos ruins dos<br />

quiosques”. Nesse verso também se nota que a lógica do senso comum é abala<strong>da</strong><br />

com muita veemência. Os dois últimos versos também reforçam isso. Eles já não<br />

23


24<br />

revelam nenhuma crença em valores religiosos do cristianismo, como, por exemplo,<br />

a Criação divina do homem. Ao contrário: enfatiza-se que existe um parentesco<br />

muito próximo entre o ser humano e “o animal inferior que urra nos bosques”,<br />

colocados no poema como irmãos. Existe aí muito mais uma propensão a ver o<br />

homem como um animal tosco, bruto, de natureza selvagem, do que uma criatura<br />

de origem divina. É nesse sentido que o texto de Augusto dos Anjos merece o<br />

estatuto de literatura, por conter esse fun<strong>da</strong>mento de negação do que é mais<br />

corrente na cultura e por utilizar determinados meios poéticos, como os versos<br />

decassílabos e as rimas, para atingir o objetivo de estabelecer novos sentidos.<br />

Lembremos agora de uma música de Roberto Carlos que tem um valor<br />

religioso muito forte: “Jesus Cristo”. Essa canção, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> dos anos 70, abre-se com<br />

a seguinte afi rmação:<br />

Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.<br />

Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.<br />

Como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai.<br />

Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai.<br />

Essa canção também apresenta rima e musicali<strong>da</strong>de. Mas ela é muito pobre<br />

do ponto de vista do signifi cado. Ela não é capaz de criar um sentido novo para<br />

na<strong>da</strong>. Limita-se ao que já se sabe ou se acredita. Ela não consegue ultrapassar o<br />

senso comum. Vejamos bem: olhar para o céu e ver nuvem branca, isso é o óbvio!<br />

A nuvem branca “vai passando”, está em movimento, o que também é o óbvio.<br />

As demais linhas também não acrescentam na<strong>da</strong> que mereça o reconhecimento<br />

de arte, pois não tem criativi<strong>da</strong>de necessária para se distinguir do que já se<br />

convencionou há séculos. Por exemplo, se formos consultar o Evangelho de João,<br />

veremos que Jesus afi rma ser o caminho, a vi<strong>da</strong> e a ver<strong>da</strong>de, sendo o único meio<br />

para se chegar a Deus. Independentemente de quem acredite nisso ou não, o<br />

importante aqui é verifi car que Roberto Carlos apenas reproduz um sentido já<br />

muito utilizado em nossa cultura. Portanto, comparando Augusto dos Anjos<br />

com Roberto Carlos, observamos uma grande diferença entre os dois no que diz<br />

respeito à criativi<strong>da</strong>de artística.<br />

ATENÇÃO: A grandeza poética de Augusto dos Anjos não está no fato de ele<br />

romper com uma crença religiosa. Não é isso, pense bem! O que importa para<br />

a teoria <strong>da</strong> literatura é verifi car a existência de ruptura com o senso comum, o<br />

que pode ser observado em relação a quaisquer valores culturais, não apenas<br />

os religiosos.<br />

REFLITA: Roberto Carlos é pobre não por estar apresentando uma crença<br />

religiosa na salvação, mas por fazer isso de uma forma muito simplória, que<br />

não atinge qualquer quali<strong>da</strong>de poética. É a linguagem dele que não satisfaz às<br />

exigências <strong>da</strong> arte.<br />

AGORA É SUA VEZ: Quando você escutar alguma música dessas ban<strong>da</strong>s<br />

de “forró” que estão na mo<strong>da</strong>, procure verifi car a quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem<br />

utiliza<strong>da</strong>. Você vai observar se a combinação <strong>da</strong>s palavras gera algum<br />

signifi cado novo ou se elas apenas reproduzem o senso comum.


Um dos objetivos dessa comparação sugeri<strong>da</strong> acima é levar você a observar,<br />

com maior consciência crítica, o que você ouve, lê e vê no dia-a-dia. Só assim<br />

você será capaz de distinguir mais as coisas e não achar que tudo tem o mesmo<br />

valor. A criativi<strong>da</strong>de artística não está presente em tudo. A fi nali<strong>da</strong>de desse<br />

curso é aprimorar a sua capaci<strong>da</strong>de crítica diante dos fatos e <strong>da</strong>s coisas mais<br />

correntes <strong>da</strong> existência.<br />

1.1.2 A Ilogici<strong>da</strong>de Conceitual<br />

Ilogici<strong>da</strong>de signifi ca falta de lógica. Se eu digo que dois mais dois são<br />

quatro, isso é perfeitamente conceitual. Mas, se eu digo que dois mais dois<br />

são cinco ou zero, já estou me afastando do que é considerado lógico. A lógica<br />

é fun<strong>da</strong>mental para os conceitos, para a fi losofi a, para a ciência, para a técnica,<br />

não para a arte. A arte tem que desenvolver uma lógica própria, um sentido<br />

que seja exclusivamente seu, sem se reduzir à forma de nenhum outro tipo de<br />

conhecimento. Veja, por exemplo, a seguinte frase:<br />

O Brasil é o maior país <strong>da</strong> América Latina e seus recursos naturais são dos<br />

mais variados do planeta.<br />

Essa frase é inteiramente lógica. Tudo o que ela diz pode ser comprovado<br />

na prática. De fato, o Brasil possui o maior território <strong>da</strong> América Latina, a qual<br />

se estende do México à Argentina. Os recursos naturais do Brasil também já<br />

foram muito estu<strong>da</strong>dos pela ciência e são, de fato, dos mais privilegiados de<br />

todo o mundo. Essa frase, portanto, tem um valor conceitual que merece crédito.<br />

Vejamos agora o seguinte verso, do poeta paraibano André Ricardo:<br />

O vôo é o alicerce do pássaro.<br />

Esse verso é uma realização literária exatamente por não conter nenhuma<br />

lógica e, com isso, se distanciar do senso comum. O vôo é um fenômeno que<br />

só pode ocorrer numa certa altura, em sentido ascendente, o que é totalmente<br />

incompatível com alicerce. Ain<strong>da</strong> mais, o pássaro é leve, consegue desafi ar a<br />

força <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de, o que não aconteceria se ele carregasse em sua base (em<br />

suas patas) um alicerce de ver<strong>da</strong>de. O alicerce, tal como se conhece na cultura,<br />

é uma base de concreto, pedra, ferro, areia, de material bruto e pesado. Na<strong>da</strong><br />

disso pode servir de alicerce para um pássaro voar. Além disso, o alicerce, por<br />

seu peso e por servir de base a construções, é algo próprio do solo, do subsolo,<br />

em sentido descendente, o que contraria o sentido do vôo do pássaro. Um leitor<br />

menos preparado vai dizer, reproduzindo o senso comum, que esse verso de<br />

André Ricardo não tem lógica e por isso não tem valor. Ora, o que a teoria<br />

literária diz é exatamente o contrário: a pertinência dele está na impertinência,<br />

na incoerência, na ausência de lógica. Se o eu-lírico afi rmasse “O pássaro voa<br />

no céu”, não teria nenhum valor literário exatamente por ser o óbvio. Observe<br />

como a falta de lógica é essencial à criação de novos signifi cados. É o que pode<br />

ser observado nesse quarteto de Augusto dos Anjos a respeito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

inteligência:<br />

25


26<br />

A vi<strong>da</strong> vem do éter que se condensa.<br />

Mas o que mais no Cosmos me entusiasma<br />

É a esfera microscópica do plasma<br />

Fazer a luz do cérebro que pensa!<br />

É impossível comprovar na prática que a vi<strong>da</strong> é um fenômeno formado<br />

do éter condensado. Isso é uma imagem poética que não condiz com a reali<strong>da</strong>de<br />

palpável. Também é impossível explicar, por conceitos lógicos, o que é uma<br />

expressão como “esfera microscópica do plasma” e como ela gera o pensamento<br />

humano. Do ponto de vista científi co e conceitual, isso tudo afi rmado no quarteto<br />

acima carece de valor. Do ponto de vista <strong>da</strong> arte, o seu valor reside exatamente<br />

na impossibili<strong>da</strong>de de ser detectado na prática. Essa mesma impertinência pode<br />

ser verifi ca<strong>da</strong> nos versos seguintes, do poema “Noturno”, <strong>da</strong> autoria de Sérgio de<br />

Castro Pinto:<br />

Nas fronhas <strong>da</strong> infância<br />

ensaquei meus sonhos.<br />

Hoje, ensaco pesadelos.<br />

E a ca<strong>da</strong> noite, mais que a cabeça,<br />

pesa-me o travesseiro.<br />

Observe que a inversão de sentidos é tão grande, que o eu-lírico acaba<br />

concluindo que o travesseiro pesa mais do que a cabeça. Tal conclusão só tem<br />

coerência dentro do poema, que mostra a angústia de quem passa de uma infância<br />

feliz para uma vi<strong>da</strong> adulta de experiências negativas. Fora do texto, entretanto,<br />

essa combinação de palavras não tem o menor sentido. Daí a tendência do senso<br />

comum de reprovar esse tipo de procedimento, na medi<strong>da</strong> em que a arte não<br />

apenas se destaca por uma diferença proposital, como também exige esforço de<br />

raciocínio para a compreensão dessa diferença.<br />

Convém falar um pouco <strong>da</strong> diferença entre literatura e reali<strong>da</strong>de em relação<br />

ao valor <strong>da</strong>s coisas e dos fatos. Na nossa reali<strong>da</strong>de cotidiana, sabemos que existem<br />

determina<strong>da</strong>s coisas que são bem mais importantes do que outras. O mesmo se dá<br />

quando avaliamos os fatos do ponto de vista histórico. Por exemplo, aquele roubo<br />

fabuloso que ocorreu na agência do Banco Central, em Fortaleza, por debaixo do<br />

chão, é um fato muito mais importante para um historiador ou um jornalista do<br />

que umas cigarras que estejam cantando numa tarde. Qual o jornalista que iria<br />

se interessar por umas cigarras? O interesse pelo roubo é infi nitamente maior.<br />

Assim, há uma hierarquia muito rígi<strong>da</strong> entre os fatos reais. Mas o aluno tem que<br />

entender que nas artes essa hierarquia se desfaz. Eu poderia criar um poema<br />

sobre o roubo ao Banco Central e o texto não ter quali<strong>da</strong>de literária. Da mesma<br />

forma, eu poderia criar um poema sobre o canto <strong>da</strong>s cigarras e, a depender <strong>da</strong><br />

combinação <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong>s imagens, resultar em um texto apreciável. É o que<br />

se observa nesse poema de Sérgio de Castro Pinto:


as cigarras<br />

são guitarras trágicas.<br />

plugam-se/se/se/se<br />

nas árvores<br />

em dós sustenidos.<br />

kipling recitam a plenos pulmões.<br />

gargarejam<br />

vidros<br />

moídos.<br />

o cristal dos verões.<br />

ATENÇÃO: É importante você relacionar qualquer texto literário com outros e<br />

também com fatos implicados em seu tema. É o que você deve fazer a partir de<br />

agora, pois não existe nenhum texto que seja isolado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de ou de outros<br />

textos.<br />

PESQUISAR: No poema acima aparece o nome de um poeta britânico:<br />

Kipling. Leia atentamente a informação a seguir, tira<strong>da</strong> <strong>da</strong> Internet, e procure<br />

relacioná-la com o signifi cado do texto:<br />

Rudyard Kipling, autor britânico<br />

Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, Índia, 30 de Dezembro<br />

de 1865 - 18 de Janeiro de 1936) foi um autor e poeta britânico.<br />

Em 1907 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.<br />

Foi educado em Bideford, na Inglaterra. Em 1882 voltou à<br />

Índia, onde trabalhou para jornais britânicos. Começou sua carreira<br />

literária em 1886 e tornou-se conhecido como escritor de contos.<br />

Foi o poeta do Império Britânico e seus sol<strong>da</strong>dos, que<br />

retratou em vários contos, alguns deles reunidos no volume<br />

Plain Tales from the Hills’, de 1888.<br />

Em 1894 lançou O livro <strong>da</strong> selva, que se tornou internacionalmente um<br />

clássico para crianças, também conhecido pelo seu personagem principal: o<br />

pequeno Mowgli.<br />

Muito conhecido também é um de seus poemas: “If” (Se), no qual um pai<br />

dá conselhos a seu fi lho sobre como ser um homem de bem.<br />

htt p://pt.wikipedia.org/wiki/Rudyard_Kipling<br />

REFLITA: Você compreenderá melhor o poema de Sérgio de Castro Pinto, “as<br />

cigarras”, se ler o poema “Se”, de Kipling, que vem logo abaixo:<br />

27


28<br />

SE<br />

Se és capaz de manter tua calma, quando,<br />

todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.<br />

De crer em ti quando estão todos duvi<strong>da</strong>ndo,<br />

e para esses no entanto achar uma desculpa.<br />

Se és capaz de esperar sem te desesperares,<br />

ou, enganado, não mentir ao mentiroso,<br />

Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,<br />

e não parecer bom demais, nem pretensioso.<br />

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,<br />

de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.<br />

Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,<br />

tratar <strong>da</strong> mesma forma a esses dois impostores.<br />

Se és capaz de sofrer a dor de ver mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />

em armadilhas as ver<strong>da</strong>des que disseste<br />

E as coisas, por que deste a vi<strong>da</strong> estraçalha<strong>da</strong>s,<br />

e refazê-las com o bem pouco que te reste.<br />

Se és capaz de arriscar numa única para<strong>da</strong>,<br />

tudo quanto ganhaste em to<strong>da</strong> a tua vi<strong>da</strong>.<br />

E perder e, ao perder, sem nunca dizer na<strong>da</strong>,<br />

resignado, tornar ao ponto de parti<strong>da</strong>.<br />

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,<br />

a <strong>da</strong>r seja o que for que neles ain<strong>da</strong> existe.<br />

E a persistir assim quando, exausto, contudo,<br />

resta a vontade em ti, que ain<strong>da</strong> te ordena: Persiste!<br />

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,<br />

e, entre Reis, não perder a naturali<strong>da</strong>de.<br />

E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,<br />

se a todos podes ser de alguma utili<strong>da</strong>de.<br />

Se és capaz de <strong>da</strong>r, segundo por segundo,<br />

ao minuto fatal todo valor e brilho.<br />

Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,<br />

e - o que ain<strong>da</strong> é muito mais - és um Homem, meu fi lho!<br />

Rudyard Kipling<br />

Tradução de Guilherme de Almei<strong>da</strong><br />

OBJETIVO: Um dos principais objetivos <strong>da</strong> literatura é levar você a conhecer<br />

um mundo mais amplo. Assim, depois dos poemas de Sérgio de Castro Pinto e<br />

de Kipling, você chegará a outros textos de tema aproximado, como o de José<br />

Paulo Paes, que você verá a seguir.


Kipling revisitado<br />

Se etc,<br />

se etc,<br />

se etc,<br />

Serás um teorema, meu fi lho.<br />

AGORA É SUA VEZ: Você deve fazer uma pesquisa de imediato: ir a algum<br />

livro de poesia e destacar um verso (ou uma estrofe) que lhe pareça muito<br />

estranha, fora de compreensão, deslocado do senso comum. Transcreva o<br />

verso (ou a estrofe) para as linhas abaixo e procure argumentar com as pessoas<br />

(amigos, alunos, familiares) o que é que o texto tem de diferente, que não se<br />

encaixa na lógica comum.<br />

1.1.3. A Combinação <strong>da</strong>s palavras<br />

Como você já deve ter percebido, a ruptura com o senso comum e a<br />

ilogici<strong>da</strong>de conceitual só são alcança<strong>da</strong>s com uma combinação de palavras<br />

muito singular. Esse terceiro fun<strong>da</strong>mento do texto literário, portanto, já pode<br />

ser detectado nos dois anteriores, na medi<strong>da</strong> em que são inseparáveis. Mas é<br />

preciso chamar a atenção para esse aspecto: a forma como as palavras são<br />

dispostas e se relacionam no texto é o que determina a sua condição artística.<br />

Aristóteles, um pensador grego <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de, já havia notado isso nos<br />

seguintes termos:<br />

a) O historiador tem um limite: os fatos históricos;<br />

b) O fi lósofo tem um limite: os conceitos;<br />

c) O poeta não tem nenhum limite: é mais universal que o fi lósofo e o<br />

historiador.<br />

O que signifi ca, propriamente, essa distinção feita por Aristóteles? Para<br />

ele, o historiador, em seu trabalho de registrar e interpretar a história, não<br />

pode fugir do que os fatos históricos impõem; o fi lósofo também tem que<br />

seguir to<strong>da</strong> uma linha de raciocínio lógico que o pensamento sistemático<br />

<strong>da</strong> fi losofi a impõe; já o poeta (nome generalizado, na época, para o que<br />

hoje chamamos de escritor) é muito mais universal e livre por não ter que<br />

se submeter a na<strong>da</strong> disso. Assim, cabe ao artista usufruir dessa liber<strong>da</strong>de<br />

imaginativa e criar as combinações de palavras mais estranhas, que levem as<br />

pessoas a pensar de uma forma diferente dos ensinamentos históricos e <strong>da</strong>s<br />

premissas conceituais. Vejamos nesses versos de Zé Ramalho como essa teoria<br />

de Aristóteles até hoje se mantém:<br />

Meu treponema não é pálido nem viscoso<br />

Os meus gametas se agrupam no meu som.<br />

29


30<br />

No primeiro verso, Zé Ramalho cria uma voz que faz um jogo de<br />

palavras com o termo “treponema”. Treponema é o micróbio que transmite<br />

a sífi lis, chamado cientifi camente de treponema pallidum. O verso aproveita<br />

o sentido científi co de “pálido” para lhe atribuir um outro sentido, ao lado<br />

do adjetivo “Viscoso”. Em segui<strong>da</strong>, o jogo de palavras, que gira em torno de<br />

relações sexuais e doenças sexualmente transmissíveis, estabelece um outro<br />

campo de refl exão, um outro universo de valores, na medi<strong>da</strong> em que tudo<br />

passa a ser desfi gurado por uma meditação em torno <strong>da</strong> própria música.<br />

Assim, os “gametas”, que são espermatozóides responsáveis pela reprodução<br />

humana, se agrupam não no óvulo, que é o seu receptáculo natural, mas<br />

no “meu som”. Você percebe, portanto, que a combinação de um campo<br />

semântico com outro cria um choque de sentidos que não é comum na<br />

linguagem cotidiana. Observe o efeito semântico desse verso de Augusto dos<br />

Anjos:<br />

A Consciência Humana é este morcego!<br />

Ora, qualquer dicionário (comum ou específi co, como os de psicologia)<br />

defi ne a consciência como uma facul<strong>da</strong>de humana, uma parte especial<br />

do cérebro, uma capaci<strong>da</strong>de humana apropria<strong>da</strong> para a refl exão e o<br />

entendimento. Jamais, porém, um dicionário ou um livro científi co vai dizer<br />

que a consciência é um morcego. O que você pode detectar nesse verso?<br />

Como o eu-lírico de Augusto dos Anjos chegou a essa distorção notável de<br />

sentido? Ora, estu<strong>da</strong>ndo o verso com mais calma, você vai averiguar que a<br />

consciência pertence a um campo semântico e o morcego pertence a outro<br />

campo semântico. São dois campos semânticos totalmente diferentes,<br />

díspares, incompatíveis, mas que se encontram com to<strong>da</strong> pertinência na<br />

lógica interna do poema. Na ver<strong>da</strong>de, o célebre soneto “O morcego” não trata<br />

propriamente de morcego, mas <strong>da</strong>s turbulências <strong>da</strong> consciência humana, <strong>da</strong><br />

culpa, do remorso, <strong>da</strong> sensação que se tem de estar sempre sendo vigiado por<br />

si mesmo. Nessa medi<strong>da</strong>, a comparação fi nal entre a perturbação do morcego,<br />

que interfere no seu quarto e tira sua privaci<strong>da</strong>de, e a imagem <strong>da</strong> consciência<br />

revela-se estritamente lógica na arte poética, mas sem o menor sentido fora <strong>da</strong><br />

expressão artística.<br />

É preciso acrescentar, a essa altura, a seguinte informação: não existe<br />

nenhuma regra defini<strong>da</strong> para a literatura ou para qualquer arte. O texto<br />

literário pode atingir a condição de arte pelos meios mais imprevisíveis.<br />

Por exemplo, há textos que exploram muito as repetições, os exageros, os<br />

excessos de detalhes, as aproximações fonéticas entre palavras de sentidos<br />

distantes, entre outros recursos. Tais recursos são reconhecidos como<br />

artísticos na medi<strong>da</strong> em que não são utilizados na comunicação comum. Eles<br />

oferecem um destaque em termos de criativi<strong>da</strong>de, refutando o uso comum<br />

e previsível <strong>da</strong> linguagem. Observe, por exemplo, os grifos dessa canção de<br />

Chico Buarque,:


Basta um dia<br />

Pra mim<br />

Basta um dia<br />

Não mais que um dia<br />

Um meio dia<br />

Me dá<br />

Só um dia<br />

E eu faço desatar<br />

A minha fantasia<br />

Só um<br />

Belo dia<br />

Pois se jura, se esconjura<br />

Se ama e se tortura<br />

Se tritura, se atura e se cura<br />

A dor<br />

Na orgia<br />

Da luz do dia<br />

É só<br />

O que eu pedia<br />

Um dia pra aplacar<br />

Minha agonia<br />

To<strong>da</strong> a sangria<br />

Todo o veneno<br />

De um pequeno dia<br />

Só um<br />

Santo dia<br />

Pois se beija, se maltrata<br />

Se come e se mata<br />

Se arremata, se acata e se trata<br />

A dor<br />

Na orgia<br />

Da luz do dia<br />

É só o que eu pedia, viu<br />

Um dia pra aplacar<br />

Minha agonia<br />

To<strong>da</strong> a sangria<br />

Todo o veneno<br />

De um pequeno dia<br />

É notória a presença <strong>da</strong> repetição nessa letra, o que constitui um elemento<br />

relevante na composição. Além disso, a seqüência de verbos procura enfatizar<br />

aquilo que se pode praticar em um único dia. Observe que maior parte <strong>da</strong><br />

seqüência é forma<strong>da</strong> por verbos que denunciam a violência que impera na<br />

socie<strong>da</strong>de. Em termos de condição poética, um dos destaques revelados pela<br />

seqüência é que os verbos não seguem rigorosamente uma linha reta e lógica.<br />

Ou seja: a seqüência poderia ser altera<strong>da</strong>, sem afetar a signifi cação do texto.<br />

31


32<br />

Ao contrário do raciocínio lógico, que tem que ter uma seqüência rígi<strong>da</strong>, a voz<br />

poética cria<strong>da</strong> por Chico Buarque tem a liber<strong>da</strong>de de dispor os verbos à sua<br />

vontade. A posição <strong>da</strong>s palavras poderia ser troca<strong>da</strong>, o que não acontece num<br />

enunciado lógico que apresenta causa e efeito.<br />

Esse mesmo procedimento poético aparece na seguinte canção “O índio”,<br />

de Caetano Veloso. Veja esses trechos:<br />

Um índio descerá de uma estrela colori<strong>da</strong> brilhante<br />

De uma estrela que virá numa veloci<strong>da</strong>de estonteante<br />

E pousará no coração do hemisfério sul, na América,<br />

Num claro instante<br />

Depois de extermina<strong>da</strong> a última nação indígena<br />

E o espírito dos pássaros <strong>da</strong>s fontes de água límpi<strong>da</strong><br />

Mais avançado que a mais avança<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mais avança<strong>da</strong>s<br />

Das tecnologias<br />

(...)<br />

Um índio preservado em pleno corpo físico<br />

Em todo sólido, todo gás e todo líquido<br />

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em<br />

som magnífi co (...)<br />

A temática dessa letra é uma notável utopia: o retorno de um índio,<br />

plenamente restaurado, depois de séculos de extermínio que o avanço do<br />

capitalismo provocou. Detendo-se, por enquanto, nas partes grifa<strong>da</strong>s, observe<br />

que ninguém fala dessa forma nos diálogos diários. A seqüência de substantivos<br />

também é incomum e sem ordem previa estabeleci<strong>da</strong>, uma vez que suas posições<br />

poderiam ser alterna<strong>da</strong>s. É essa liber<strong>da</strong>de artística que o texto poético apresenta<br />

como uma <strong>da</strong>s rupturas necessárias com o que é convencional.<br />

PESQUISAR: Essa letra de Caetano Veloso faz referência a quatro nomes<br />

importantes: Mohamed Ali, Peri, Bruce Lee e Gandhi. Faça uma pesquisa na<br />

Internet sobre eles, para você ampliar os seus conhecimentos em história e<br />

literatura.<br />

Observe agora, com muita calma, essa letra aparentemente irracional de Zé<br />

Ramalho:<br />

Oh eu não sei se eram os antigos que diziam<br />

Em seus papiros Papillon já me dizia<br />

Que nas torturas to<strong>da</strong> carne se trai<br />

E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente<br />

O nervo se contrai<br />

Com precisão<br />

Nos aviões que vomitavam pára-que<strong>da</strong>s<br />

Nas casamatas, casas vivas, caso morras,<br />

E nos delírios meus grilos temer<br />

O casamento, rompimento, sacramento, documento, como um passatempo


Quero mais te ver<br />

Com afl ição<br />

Meu treponema não é pálido nem viscoso<br />

Os meus gametas se agrupam no meu som<br />

E as querubinas meninas rever<br />

O compromisso, submisso, reboliço, no cortiço, chama o Padre Ciço para<br />

benzer<br />

Com devoção<br />

To<strong>da</strong>s as seqüências grifa<strong>da</strong>s revelam excessos de palavras que poderiam<br />

ser evita<strong>da</strong>s, uma vez que é impossível manter uma comunicação desse tipo, no<br />

imediatismo do cotidiano. Mas é pela insistência no excesso que a letra atinge<br />

o objetivo de uma linguagem estética. Note um recurso parecido, aproximando<br />

palavras pela semelhança sonora, no seguinte soneto satírico de Gregório de<br />

Matos:<br />

Neste mundo é mais rico o que mais rapa.<br />

Quem mais limpo se faz, tem mais carepa.<br />

Com sua língua ao nobre o vil decepa.<br />

O Velhaco maior sempre tem capa.<br />

Mostra o patife <strong>da</strong> nobreza o mapa.<br />

Quem tem mãos de agarrar, ligeiro trepa.<br />

Quem menos falar pode, mais increpa.<br />

Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.<br />

A fl or baixa se inculca por tulipa.<br />

Bengala hoje na mão, ontem garlopa.<br />

Mais isento se mostra o que mais chupa.<br />

Para a tropa do trapo vazo a tripa<br />

E mais não digo porque a Musa topa<br />

Em apa, epa, ipa, opa, upa.<br />

Esse poema satírico faz uma crítica a fi guras do nosso período colonial,<br />

estendendo-se <strong>da</strong>quele que fala <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> alheia à autori<strong>da</strong>de do Papa. No fi nal,<br />

observe que o eu-lírico procede a um esvaziamento de sentido, pois a última<br />

seqüência nem sequer é forma<strong>da</strong> por palavras. Será que você iria se comunicar<br />

com as pessoas através de seqüências sonoras sem sentido?<br />

PESQUISAR: Esse poema de Gregório de Matos tem um vocabulário muito<br />

complexo. Destaque to<strong>da</strong>s as palavras que você não conhece e vá procurar o<br />

sentido delas no dicionário. Assim, mais uma vez, você estará investindo em<br />

seu patrimônio intelectual.<br />

33


34<br />

Como último exemplo dessas combinações tão diferentes de palavras,<br />

gostaria de lhe apresentar um trecho do conto “A hora e vez de Augusto<br />

Matraga”, de Guimarães Rosa. O conto retrata a vi<strong>da</strong> de um homem que, por<br />

várias mal<strong>da</strong>des cometi<strong>da</strong>s, é vítima de uma vingança: uma surra violentíssima<br />

que ele sofre de vários homens. Depois de anos de recuperação física, Augusto<br />

Matraga se mu<strong>da</strong> para um lugar onde ele não quer ser mais reconhecido, o<br />

vilarejo do Tombador. Um dia, o vilarejo é inespera<strong>da</strong>mente visitado por um<br />

jagunço muito temido: Joãozinho Bem-Bem. Veja agora como o narrador descreve<br />

o jagunço:<br />

(...) o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fechatreta,<br />

o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: seu<br />

Joãozinho Bem-Bem.<br />

Obviamente, você sabe que não é necessário descrever o perfi l de uma<br />

pessoa com nove qualifi cações, ain<strong>da</strong> mais com palavras compostas, o que<br />

seria muito difícil de pronunciar e seqüenciar na linguagem comum. O mais<br />

interessante desse trecho de Guimarães Rosa é a possibili<strong>da</strong>de de atingir a<br />

quali<strong>da</strong>de artístico utilizando palavras comuns, pois todos esses epítetos são<br />

clichês <strong>da</strong> linguagem sertaneja, <strong>da</strong> gíria popular. A diferença está no excesso do<br />

uso dessas expressões.<br />

AGORA É SUA VEZ: Você está convi<strong>da</strong>do a ler um texto muito especial: “A<br />

hora e vez de Augusto Matraga”. Ele faz parte do livro Sagarana, de Guimarães<br />

Rosa, e é um dos contos mais perfeitos que eu já li em to<strong>da</strong> a minha formação.<br />

Quer tentar? Garanto que você não vai se arrepender.<br />

Com esses exemplos riquíssimos <strong>da</strong>s combinações poéticas, concluímos<br />

essa primeira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.Resumindo: os três fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> literatura que aqui<br />

apresentamos são intrinsicamente ligados, não podendo ser separados. A ruptura<br />

com o senso comum gera expressões ilógicas; as expressões ilógicas, fora dos<br />

padrões <strong>da</strong> linguagem convencional, são revela<strong>da</strong>s por combinações de palavras<br />

que causam estranheza nas pessoas. Aquele que tem gosto por arte e literatura<br />

deve amadurecer no sentido de identifi car esses três fun<strong>da</strong>mentos em determinado<br />

texto, com o intuito de averiguar se ele pertence à arte literária ou não.<br />

REFLITA: Transcreva para si mesmo a letra de alguma canção desses grupos de<br />

“forró” que estão tanto na mo<strong>da</strong>: Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Aviões do<br />

Forró etc. Analise se pelo menos alguma frase tem um sentido diferente do senso<br />

comum. Comente isso com seus amigos mais próximos, alunos e familiares.


ATENÇÃO: Leve essa tarefa a sério: procure ler qualquer livro de Paulo Coelho,<br />

que é considerado um grande escritor <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de, e transcreva abaixo alguma<br />

frase dele que tenha consistência artística. Ora... você acha que isso é possível?<br />

PESQUISAR: Procure ler para alguns amigos um trecho de alguma obra de<br />

Paulo Coelho e um soneto de Augusto dos Anjos. Em segui<strong>da</strong>, pergunte a eles<br />

qual é o mais estranho e por quê.<br />

AGORA É SUA VEZ: Vá direto ao Eu, de Augusto dos Anjos, e leia mais de<br />

uma vez o poema “O morcego”. Em segui<strong>da</strong>, vá a um dicionário e procure<br />

ver a defi nição de “semântica”, para você entender o que é campo semântico e<br />

combinação poética de palavras.<br />

35


UNIDADE II<br />

A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS<br />

A teoria literária faz uma classifi cação <strong>da</strong> literatura em três grandes gêneros:<br />

a) o gênero épico (ou narrativo); b) o gênero lírico; c) e o gênero dramático. Ca<strong>da</strong><br />

gênero tem sua própria confi guração, suas características, suas particulari<strong>da</strong>des.<br />

Mas um determinado texto literário pode revelar características de mais de um<br />

gênero, como veremos logo adiante. Vejamos, nesse momento, como se faz a<br />

classifi cação:<br />

2.1 O Gênero Épico<br />

O gênero épico (também chamado de narrativo) é caracterizado por<br />

um conjunto de categorias, tais como: um narrador, um enredo, personagens,<br />

tempo, espaço, entre outras. Segundo uma concepção tradicional, to<strong>da</strong> narrativa<br />

é centra<strong>da</strong> em um enredo, ou seja, em alguma história fi ctícia que é relata<strong>da</strong> ao<br />

leitor. Aquele que conta a história é o narrador, responsável pela transmissão<br />

dos conteúdos e pela escolha do ponto de vista. Os personagens são aqueles que<br />

vivenciam a ação no tempo e no espaço. Observe o seguinte comentário sobre o<br />

conto “Missa do galo”, de Machado de Assis:<br />

Nogueira, jovem de dezessete anos, mora provisoriamente na casa de<br />

Conceição, segun<strong>da</strong> mulher de Meneses. Este costuma dormir fora de casa<br />

uma vez por semana, dizendo que vai ao teatro. Conceição fi ca sabendo que<br />

o marido tem outra mulher, mas se acostuma com a idéia. Ela, de trinta anos,<br />

tem um temperamento moderado, sendo uma pessoa simpática. Numa noite<br />

de Natal, o marido vai ao teatro e Nogueira fi ca lendo em seu quarto Os três<br />

mosqueteiros, enquanto aguar<strong>da</strong> a missa do galo. Às onze horas, Nogueira<br />

encontra-se com Conceição na sala escura <strong>da</strong> casa. Conversam sobre sono e<br />

paciência, romances lidos, assuntos simples. Achando que está aborrecendo<br />

Conceição, Nogueira quer ir logo à missa, mas ela não deixa. Conceição levantase,<br />

an<strong>da</strong> pela sala e ele passa a ter uma impressão mais sensual dela. O que<br />

passa a atrair Nogueira são os gestos sutis dela, despertando nele curiosi<strong>da</strong>des<br />

e desejos. Ela chama a atenção pelos detalhes do corpo, como as mãos, os olhos,<br />

os dentes. Senta-se ao lado dele e ambos cochicham. A partir <strong>da</strong>í, não sente nela<br />

apenas uma pessoa simpática, mas lindíssima. Ele quer se levantar, mas ela<br />

não permite. Ela reclama dos quadros que tem em casa, que exibem mulheres;<br />

preferiria ter quadros de santas. Ela fala a Nogueira de suas devoções de moça e<br />

casos vividos na juventude. Depois fi cam calados por um tempo e, em segui<strong>da</strong>,<br />

Nogueira é chamado lá fora por um amigo para a missa do galo. Na missa, ele<br />

só pensa em Conceição. No outro dia a encontra natural, sem na<strong>da</strong> de especial<br />

que lhe lembrasse as vésperas. Depois, não torna mais a vê-la.<br />

Ora, quando você for fazer a leitura do conto, vai perceber que o principal<br />

aspecto do texto é o clima de desejos mútuos que se cria entre os dois, sem que<br />

nenhum dos dois parta para alguma ação concreta e comprometedora. Esta é<br />

37


38<br />

a grande tensão gera<strong>da</strong> pelo narrador e vivi<strong>da</strong> pelos personagens. O fato de o<br />

marido de Conceição ter uma mulher fora poderia servir de pretexto para ela ter<br />

algum caso amoroso com o jovem estu<strong>da</strong>nte. E o que se espera durante to<strong>da</strong> a<br />

leitura do conto é alguma forma de traição, pelo menos por alguns minutos. A<br />

tensão aumenta na medi<strong>da</strong> em que Conceição mais se aproxima de Nogueira e<br />

estreita as relações de intimi<strong>da</strong>de com ele. Mas na<strong>da</strong> de extraordinário acontece.<br />

E a i<strong>da</strong> do jovem para a missa do galo é a confi rmação <strong>da</strong>s convenções, a vitória<br />

<strong>da</strong> ordem moral e do comedimento, ao invés do proibido que se espera a todo<br />

instante.<br />

Machado de Assis, nesse conto, cria um enredo que gera uma expectativa<br />

e a esvazia. A transgressão espera<strong>da</strong> não chega a ocorrer. Tudo acaba dentro<br />

<strong>da</strong>s atitudes mais aceitas pela moral social. O personagem Nogueira, por isso,<br />

que é o narrador em primeira pessoa, transmite ao leitor uma certa sensação de<br />

frustração.<br />

Como se percebe, “Missa do galo” pertence ao gênero narrativo por<br />

preencher as condições básicas dessa forma literária. Esse mesmo enredo,<br />

entretanto, poderia ser passado ao leitor não através de um narrador, mas<br />

em forma de teatro, onde os personagens iriam agir de forma autônoma, sem<br />

necessi<strong>da</strong>de de ninguém para relatar a história. A presença do narrador, portanto,<br />

é uma diferença fun<strong>da</strong>mental entre o gênero narrativo e os demais gêneros.<br />

ATENÇÃO: Você precisa ler os principais contos de Machado de Assis<br />

que estão indicados na bibliografi a. Machado de Assis destaca-se como o<br />

maior escritor brasileiro do século dezenove e um dos maiores de todos os<br />

tempos. Portanto, a leitura dos textos dele é fun<strong>da</strong>mental para a formação de<br />

professores e alunos de Letras.<br />

O OBJETIVO <strong>da</strong> literatura é criar novos sentidos pela arte, mas não levar as<br />

pessoas a imitar aquilo que se lê.<br />

REFLITA: O que você faria se estivesse na situação de Nogueira? Você<br />

acha que a mulher traí<strong>da</strong> tem o mesmo direito de trair o marido? Será que a<br />

mensagem do conto é essa?<br />

2.2 O Gênero Lírico<br />

Um texto lírico é o que chamamos modernamente de poesia. Ele não<br />

precisa ter nenhum narrador. Pode até ter um narrador e um enredo, mas não<br />

necessariamente. Isso signifi ca que o gênero lírico apresenta outras características.<br />

Ele se distingue por uma voz poética que é chama<strong>da</strong> de “eu-lírico”. Este não deve<br />

ser confundido com o eu do autor, mas entendido como uma voz fi ctícia que<br />

emite sentimentos. A interiori<strong>da</strong>de é o ponto distintivo do gênero lírico. Enquanto


o gênero épico (ou narrativo) tende a relatar acontecimentos, o gênero lírico tende<br />

a manifestar o interior do ser humano. Trata-se <strong>da</strong> representação de sentimentos<br />

como o amor, o medo, a morte, a paixão, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, entre<br />

muitos. Assim, o eu-lírico pode até partir de algum fato histórico objetivo, mas o<br />

que vai predominar na sua voz é o sentimento em torno desse fato. Por exemplo,<br />

o fi nal <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, em 1945, é marcado pelas explosões atômicas<br />

sobre o Japão. Isso é um fato histórico concreto. Mas o poema abaixo, de Vinícius<br />

de Moraes, não está bem interessado em relatar o fato histórico, tal como ocorreu<br />

no fi nal do confl ito. O principal objetivo dele é retratar a sensação de per<strong>da</strong>s<br />

irremediáveis e os efeitos terríveis deixados pela irradiação nuclear. Leia com<br />

bem calma o poema:<br />

ROSA DE HIROXIMA<br />

Pensem nas crianças<br />

mu<strong>da</strong>s telepáticas<br />

pensem nas meninas<br />

cegas inexatas<br />

pensem nas mulheres<br />

rotas altera<strong>da</strong>s<br />

pensem nas feri<strong>da</strong>s<br />

como rosas cáli<strong>da</strong>s<br />

mas oh não se esqueçam<br />

<strong>da</strong> rosa <strong>da</strong> rosa<br />

<strong>da</strong> rosa de Hiroxima<br />

a rosa hereditária<br />

a rosa radioativa<br />

estúpi<strong>da</strong> e inváli<strong>da</strong><br />

a rosa com cirrose<br />

a anti-rosa atômica<br />

sem cor sem perfume<br />

sem rosa sem na<strong>da</strong><br />

Existem duas teorias básicas, com posições diferentes, a respeito <strong>da</strong><br />

condição do eu-lírico. Para a primeira teoria, o poema lírico é centrado em uma<br />

voz individual que exprime to<strong>da</strong> uma visão de mundo muito particular. Para<br />

a outra teoria, a voz do poema lírico não é jamais individual, mas produzi<strong>da</strong><br />

socialmente. Portanto, conforme essa segun<strong>da</strong> teoria, o lirismo é a expressão de<br />

sentimentos sociais, históricos, objetivos, por mais que eles assumam a aparência<br />

de algo individual. Tomando como base esse texto de Vinícius de Moraes,<br />

observamos que a preocupação do eu-lírico não é propriamente expressar o que<br />

ele tem em si, de problema particular, mas um sofrimento humano que vai muito<br />

além de qualquer indivíduo. Veja agora alguns fragmentos de Augusto dos Anjos,<br />

para averiguar se essa teoria se confi rma:<br />

Como uma cascavel que se enroscava,<br />

A ci<strong>da</strong>de dos lázaros dormia...<br />

Somente, na metrópole vazia,<br />

Minha cabeça autônoma pensava.<br />

39


40<br />

Mordia-me a obsessão má de que havia<br />

Sob os meus pés, na terra em que pisava,<br />

Um fígado doente que sangrava<br />

E uma garganta de órfã que gemia.<br />

Como se pode perceber, as duas teorias podem ser aproveita<strong>da</strong>s no<br />

seguinte sentido: a visão individual de mundo existe, prepondera no texto lírico,<br />

mas os seus valores são objetivos, ou seja, não escapam às imposições <strong>da</strong> história<br />

e <strong>da</strong>s questões sociais. Essa contradição ocorre com qualquer texto lírico, pois a<br />

expressão individual também tem to<strong>da</strong> uma conotação social que não pode ser<br />

despreza<strong>da</strong>.<br />

PESQUISAR: Você tem duas tarefas urgentes: a) Ler sobre o contexto <strong>da</strong><br />

Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, especialmente sobre Hiroxima, para entender<br />

melhor as conseqüências <strong>da</strong> explosão atômica revela<strong>da</strong>s no poema de Vinícuis<br />

de Moraes; b) Identifi car no mesmo poema o signifi cado <strong>da</strong> expressão “antirosa<br />

atômica”.<br />

REFLITA: Por que Vinícius de Moraes não coloca nenhuma <strong>da</strong>ta no seu<br />

poema? Em que aspecto isso corresponde à natureza do gênero lírico?<br />

Leia (sempre com calma) esses quartetos de Mário Quintana:<br />

DA REALIDADE<br />

O sumo bem só no ideal perdura...<br />

Ah! Quanta vez a vi<strong>da</strong> nos revela<br />

Que ‘a sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ama<strong>da</strong> criatura’<br />

É bem melhor do que a presença dela...<br />

DA AMIZADE ENTRE MULHERES<br />

Dizem-se amigas... Beijam-se... Ms qual!<br />

Haverá quem nisso creia?<br />

Salvo se uma <strong>da</strong>s duas, por sinal,<br />

For muito velha, ou muito feia...<br />

DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA<br />

Como o burrico mourejando à nora,<br />

A mente humana sempre as mesmas voltas dá...<br />

Tolice alguma nos ocorrerá<br />

Que não a tenha dito um sábio grego outrora...


DAS UTOPIAS<br />

Se as coisas são inatingíveis... ora!<br />

Não é motivo para não querê-las...<br />

Que tristes os caminhos, se não fora<br />

A presença distante <strong>da</strong>s estrelas!<br />

Mário Quintana fi cou conhecido como “Poeta <strong>da</strong>s coisas simples”. Essa<br />

alcunha se deve à predominância de temas triviais e de uma linguagem poética<br />

sem rebuscamento. Tal acessibili<strong>da</strong>de, conheci<strong>da</strong> como transparência semântica,<br />

confi rma-se em quase todos os seus textos líricos. Como você deve já ter<br />

precebido, vários versos apresentam um tom de crítica e deboche à hipocrisia<br />

humana; outros criticam a pretensão de originali<strong>da</strong>de intelectual; e todos<br />

combinam elementos clássicos (rimas, decassílabos, ritmo) com a concisão <strong>da</strong><br />

poesia modernista, que prima muito por textos curtos. Mas, independentemente<br />

de o poema ser longo ou conciso, o que o insere no gênero lírico é a representação<br />

simbólica de sentimentos, sejam eles de origem pessoal ou social.<br />

AGORA É SUA VEZ: Esses quartetos se encontram no livro Os melhores<br />

poemas de Mário Quintana. É um livro com poemas curtos e vários deles são<br />

irônicos e cômicos. Você precisa conhecer esse poeta desde já, como na leitura<br />

atenta do soneto abaixo:<br />

Menininho doente<br />

Na minha rua há um menininho doente.<br />

Enquanto os outros partem para a escola,<br />

Junto à janela, sonhadoramente,<br />

Ele ouve o sapateiro bater sola.<br />

Ouve também o carpinteiro em frente<br />

Que uma canção napolitana engrola.<br />

E pouco a pouco, gra<strong>da</strong>tivamente,<br />

O sofrimento que ele tem se evola...<br />

Mas nesta rua há um operário triste.<br />

Não canta na<strong>da</strong> na manhã sonora<br />

E o menino nem sonha que ele existe.<br />

Ele trabalha silenciosamente...<br />

E está compondo este soneto agora,<br />

Pra alminha boa do menino doente...”<br />

A leitura do poema autoriza a interpretação de que o tema subjetivo<br />

<strong>da</strong> solidão infantil é a refl exão central do eu-lírico. A solidão não afeta<br />

exclusivamente a criança, uma vez que os adultos trabalham e não dispõem de<br />

tempo para a meditação sobre suas condições subjetivas e existenciais. O texto<br />

pode provocar uma discussão a respeito de uma grande divisão de trabalho<br />

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42<br />

no mundo capitalista: a desproporção entre a produção material e a produção<br />

de bens simbólicos. O operário citado nos tercetos tem apenas uma conotação<br />

simbólica, uma vez que se trata do próprio eu-lírico ou <strong>da</strong> representação de um<br />

poeta, o que exclui o sentido denotativo do trabalhador inserido na produção<br />

em série. Com isso, você está abrindo um novo campo de refl exões sobre a sua<br />

própria vi<strong>da</strong>, na condição de aluno ou de professor.<br />

REFLITA: Um dos quartetos de Mário Quintana tem por título “Das utopias”.<br />

Você já pensou para refl etir o signifi cado de uma utopia? Se já, o que<br />

signifi caria, no mundo atual, o conceito de utopia? O que seria, para você, um<br />

pensamento utópico?<br />

Os poemas de Mário Quintana revelam frases sarcásticas. momentos<br />

de nostalgia, sem padrão rígido e modelar. A triviali<strong>da</strong>de temática não exclui<br />

temas tão importantes no mundo moderno como a solidão pessoal e, sobretudo,<br />

a solidão social nas ci<strong>da</strong>des grandes, onde milhões de pessoas são renega<strong>da</strong>s,<br />

têm uma vi<strong>da</strong> muito expolora<strong>da</strong> e têm constantemente um sentimento de<br />

insignifi cância. Além disso, Mário Quintana tem um estilo heterogêneo que<br />

contempla versos em branco e, como vimos, também decassílabos clássicos. Sua<br />

poética, portanto, é fascinante por ser múltipla, abrangendo várias formas, como<br />

a produção de sonetos e poemas curtos com versos de feição modernista. Ele<br />

procura combinar o mais tradicional com o mais moderno, o que resulta em uma<br />

mistura muito singular de traços românticos, como a nostalgia e a solidão, com<br />

temas mais cruciais do século vinte, como a violência <strong>da</strong>s metrópoles.<br />

2.3 O Gênero Dramático<br />

O gênero dramático é aquele feito para ser encenado no teatro. A palavra<br />

“dramático” provém de “drama”, que signifi ca “ação”. Assim, o sentido desse<br />

gênero é fun<strong>da</strong>mentado na ação direta do personagem, que não requer nenhum<br />

narrador para o relato. Outro fun<strong>da</strong>mento do texto dramático são os diálogos<br />

entre os personagens, como nessa passagem do Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>, de Ariano<br />

Suassuna:<br />

João Grilo – (...) Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava<br />

me ensinando catecismo, leu um pe<strong>da</strong>ço do Evangelho. Lá se dizia que<br />

ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem,<br />

nem os anjos que estão no céu, sem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está<br />

escrito lá assim mesmo?<br />

Manuel – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo<br />

trinta e dois.<br />

João Grilo – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?<br />

Manuel – Sou não, João, sou católico.<br />

João Grilo – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que<br />

entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção,


minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segun<strong>da</strong> i<strong>da</strong> ao<br />

mundo?<br />

Manuel – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém<br />

entenderia na<strong>da</strong>, se eu explicasse. Nem posso explicar na<strong>da</strong> agora, porque<br />

você vai voltar e isso faz parte de minha vi<strong>da</strong> íntima com meu Pai.<br />

Veja que o diálogo entre João Grilo e Jesus não precisa ser apresentado<br />

por um narrador. É como se os dois estivessem no palco e falassem diretamente<br />

um ao outro, sem ninguém para mediar as suas ações. Mas Ariano Suassuna<br />

cria, além dos personagens propriamente do enredo, a fi gura do Palhaço, que<br />

desempenha várias funções artísticas, entre elas a de intervir nas cenas para as<br />

devi<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças de cenário e continui<strong>da</strong>de dos acontecimentos. Observe as<br />

passagens que destacamos abaixo, to<strong>da</strong>s pertencentes à fala do Palhaço:<br />

I – Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um<br />

sacristão, um padre e um bispo, para exercício <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de.<br />

II – A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo <strong>da</strong><br />

misericórdia. Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>!<br />

III – Ao escrever esta peça, onde combate o mun<strong>da</strong>nismo, praga de sua igreja,<br />

o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais<br />

do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de<br />

solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo,<br />

baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo<br />

sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimi<strong>da</strong>des.<br />

Pode-se concluir que as duas primeiras passagens fazem anúncio antecipado<br />

do enredo e a terceira é uma refl exão sobre o mun<strong>da</strong>nismo <strong>da</strong> Igreja. Elas oscilam<br />

entre a gravi<strong>da</strong>de do pecado, a severi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> punição divina e a vitória fi nal <strong>da</strong><br />

misericórdia sobre o mal. Apenas a terceira diz respeito à autoria <strong>da</strong> peça, cuja<br />

temática, de infl uência erudita, é basea<strong>da</strong> no espírito <strong>da</strong> cultura popular.<br />

Veja agora um comentário sobre a peça O pagador de promessas, de Dias<br />

Gomes, para você verifi car os traços do gênero dramático. O enredo que você<br />

vai conhecer agora poderia lhe chegar através de um texto narrativo, ou seja, de<br />

um texto que apresentasse uma voz contando a história. No entanto, to<strong>da</strong>s as<br />

informações que você vai ler chegam, originalmente, através <strong>da</strong>s ações diretas<br />

dos personagens. Preste atenção ao seguinte relato:<br />

Zé do Burro, um homem simples de uma ci<strong>da</strong>de pequena <strong>da</strong> grande Salvador,<br />

faz uma promessa e quer pagá-la com uma cruz a ser deposita<strong>da</strong> na Igreja de<br />

Santa Bárbara, na capital <strong>da</strong> Bahia. An<strong>da</strong> quarenta e dois quilômetros com a<br />

esposa, Rosa, para essa tarefa. Rosa não agüenta passar a madruga<strong>da</strong> na porta<br />

<strong>da</strong> Igreja e é atraí<strong>da</strong> por Bonitão, um explorador de mulheres, para um “hotel”.<br />

Quando a Igreja se abre pela manhã, o Padre Olavo se opõe a Zé do Burro e não<br />

permite que ele entre carregando a cruz. A essa altura, Rosa já tem traído Zé<br />

do Burro com Bonitão. Zé do Burro, ao saber <strong>da</strong> traição, entra em confl ito com<br />

a esposa, prometendo-lhe um ajuste em casa, mas não se desfaz <strong>da</strong> promessa.<br />

Bonitão arranja motivos para chamar a polícia para o local. Várias pessoas,<br />

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44<br />

de grupos sociais diferentes, vão chegando para o local. Num confl ito que se<br />

desencadeia, Zé do Burro é assassinado pela polícia, amarrado na cruz por uns<br />

lutadores de capoeira e colocado no altar de Santa Bárbara, à semelhança de<br />

Cristo.<br />

Ora, o conjunto de fatos aí citados constitui o enredo <strong>da</strong> peça. Mas este<br />

enredo é desenvolvido em ação concreta, sem narrador. Portanto, a diferença<br />

entre o texto dramático e o narrativo não é o enredo, mas a predominância<br />

quase absoluta dos diálogos. São os diálogos que encaminham a retratação<br />

<strong>da</strong> intransigência <strong>da</strong> Igreja, representa<strong>da</strong> pelo Padre Olavo, que não defende<br />

o diálogo <strong>da</strong> Igreja com as tradições afroculturais. Zé do Burro representa a<br />

mentali<strong>da</strong>de arcaica de religiosos cristãos à margem <strong>da</strong> Igreja, o que fi ca<br />

patente na ingenui<strong>da</strong>de dele. Há um confl ito entre o ecletismo religioso e a<br />

ortodoxia católica, o que não resulta em entendimento harmônico. Nesse<br />

sentido, os diálogos são importantíssimos para acentuar o desentendimento<br />

entre o Padre e Zé do Burro. Um jornalista também tenta se aproveitar <strong>da</strong><br />

situação para fazer matéria sensacionalista. Assim, a presença <strong>da</strong> imprensa,<br />

que capitaliza o acontecimento como um “furo” jornalístico a serviço <strong>da</strong><br />

informação transparente <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, é pura mentira. A presença de tipos<br />

populares <strong>da</strong> Bahia como prostitutas, poetas cordelistas, negras do acarajé,<br />

lutadores de capoeira, oferece um panorama <strong>da</strong> situação social de Salvador.<br />

Mas jamais teríamos esse quadro social, na peça, se não fossem os diálogos<br />

entre os personagens mais variados. A intenção política de Dias Gomes não é<br />

atacar apenas a Igreja católica, mas vários segmentos sociais que são fl agrados<br />

em torno <strong>da</strong> questão de Zé do Burro. Essa estratégia artística corresponde à<br />

ausência de maniqueísmo, superando a visão ingênua <strong>da</strong> relação entre o bem<br />

e o mal. Podemos interpretar a ação de Zé do Burro como um ato simbólico<br />

de sacrifício humano, uma vez que há per<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong> em função de ideais<br />

religiosos. O percurso sacrifi cial dele é muito relevante na simbologia do texto,<br />

uma vez que seu deslocamento com a cruz nas costas lembra uma passagem<br />

fun<strong>da</strong>mental dos ensinamentos evangélicos. Para o padre, entretanto, o que<br />

Zé do Burro faz é heresia, pois a visão ofi cial <strong>da</strong> Igreja é a única que deve<br />

valer. Dias Gomes consegue congregar na peça tendências as mais diversas,<br />

como elementos trágicos misturados a elementos cômicos, elaboração erudita<br />

e cultura popular, linguagem coloquial e linguagem formal, facili<strong>da</strong>de<br />

de assimilação e simbologia complexa. Zé do Burro é vítima de falsas<br />

interpretações ao longo do enredo, o que convém às necessi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong><br />

acusador. Esse processo de criação de estereótipos fi ca evidente na passagem<br />

em que o jornalista o chama de “revolucionário”, homem que luta contra o<br />

capitalismo, baseado nas idéias do socialismo. Dedé Cospe-Rima, o cordelista,<br />

vê em Zé do Burro um representante ideal <strong>da</strong> cultura popular, um herói<br />

adequado para o seu cordel, que se baseia em fontes recolhi<strong>da</strong>s nas ruas. O<br />

Padre, ao saber que Zé do Burro benzera sua cruz em um terreiro, considera<br />

isso uma profanação inadmissível pela consciência católica centra<strong>da</strong> em Cristo<br />

e nos santos canonizados pela Igreja, <strong>da</strong>í sua rejeição a Iansã. Os lutadores<br />

de capoeira defendem Zé do Burro por causa de sua simpatia à fé popular<br />

mais ingênua e eclética, fi cando a favor <strong>da</strong>s práticas religiosas dos terreiros<br />

de Salvador. Rosa vê em seu marido um intransigente, sendo este o principal<br />

motivo de aceitar as ofertas de Bonitão, sem perceber que vai ser prostituí<strong>da</strong>.


Mas... é bom refl etir mais uma vez... Por que essa peça de Dias Gomes<br />

pertence ao gênero dramático e não narrativo? Isso se dá por causa <strong>da</strong> sua<br />

estrutura dialogal. Todo o confl ito entre o protagonista e o mundo externo<br />

chega ao leitor pelos atos dos personagens. A intolerância entre Zé do Burro<br />

e Padre Olavo é um recurso dramático que concorre para o efeito de aumento<br />

<strong>da</strong>s tensões do enredo, o que cresce na medi<strong>da</strong> em que Zé do Burro não desiste<br />

de sua promessa e o Padre Olavo também não abre mão de suas convicções<br />

religiosas. Antes do desfecho, vão ocorrendo uns fatos que aumentam a tensão<br />

<strong>da</strong> peça. Por exemplo, o “secreta”, um espião a serviço <strong>da</strong> polícia, intervém no<br />

confl ito em frente à Igreja para prejudicar Zé do Burro. Bonitão manipula o<br />

“secreta” para causar tumultos e justifi car a prisão do camponês. O jornalista<br />

caracteriza o pagador de promessas como a favor <strong>da</strong> reforma agrária. O Padre<br />

Olavo não procede a nenhuma refl exão crítica de seus procedimentos. E alguns<br />

tipos populares têm simpatia pela causa de Zé do Burro, fi cando contra o Padre<br />

e contra a polícia. No fi nal, o desfecho <strong>da</strong> peça pode ser compreendido como<br />

um martírio típico do cristianismo primitivo, mas não é reconhecido pelas<br />

autori<strong>da</strong>des clericais. Fica clara a utilização <strong>da</strong> tirania – abuso de poder – pela<br />

polícia, quando age contra as classes sociais mais simples. Há, no fi nal de tudo,<br />

uma aliança sutil entre o Estado e a Igreja para aniquilarem inimigos comuns,<br />

considerados perturbadores <strong>da</strong> ordem estabeleci<strong>da</strong>.<br />

PESQUISAR: Você deve consultar no dicionário o signifi cado de to<strong>da</strong>s as<br />

palavras grifa<strong>da</strong>s acima, para aperfeiçoar seu vocabulário.<br />

Veja agora essa cena muito especial do Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>, para entender<br />

melhor o gênero dramático. Após a procissão e a missa em latim para o enterro<br />

do cachorro, o Palhaço faz a seguinte intervenção:<br />

Palhaço – Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas<br />

neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra ‘em latim’, imaginemos<br />

o que se passa na ci<strong>da</strong>de. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba<br />

de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está<br />

inspecionando a sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em<br />

primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afi nal de contas,<br />

representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e<br />

transigências, pois Antônio Morais é dono de to<strong>da</strong>s as minas <strong>da</strong> região e é um<br />

homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, o que<br />

já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge.<br />

De modo que lá vem o bispo. Peço todo silêncio e respeito do auditório, porque<br />

a grande fi gura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador<br />

e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe <strong>da</strong> Igreja,<br />

prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.<br />

Esta longa fala pode ser interpreta<strong>da</strong> de várias formas. Por exemplo, o<br />

Palhaço exerce o papel de um narrador camufl ado, uma vez que o texto dramático<br />

não tem propriamente narrador e é ele que preenche essa lacuna nos momentos de<br />

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46<br />

apresentação, mu<strong>da</strong>nça e encaminhamento <strong>da</strong>s cenas. As informações veicula<strong>da</strong>s<br />

pelo Palhaço contribuem para um efeito fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> estrutura do gênero<br />

dramático: a economia de meios. O Palhaço emite juízo, ain<strong>da</strong> que breve, sobre as<br />

contradições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social do bispo, submetido a obrigações sacerdotais que visam à<br />

autoconservação <strong>da</strong> Igreja e ao mesmo tempo agindo dentro de conveniências diante<br />

do poder econômico <strong>da</strong> região. O Palhaço comporta-se de forma humilde diante<br />

<strong>da</strong> passagem do bispo, o que não deixa de ter ressonâncias irônicas. O Palhaço tem<br />

participação ativa no conteúdo do texto e na apreciação crítica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Você deve se lembrar que no Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong> ocorre um julgamento<br />

para saber se as pessoas vão para o inferno, para o purgatório ou diretamente<br />

para o céu. Na cena que precede o julgamento, ocorrem os assassinatos do<br />

Bispo, do Padre, do Sacristão, do Padeiro e a Mulher, de Severino de Aracaju, do<br />

Cangaceiro e de João Grilo. Sucede, então, nova intervenção do Palhaço:<br />

Palhaço – Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa<br />

pequena carnifi cina, mas ela era necessária ao desenrolar <strong>da</strong> história. Agora<br />

a cena vai mu<strong>da</strong>r um pouco. João, levante-se a ajude a mu<strong>da</strong>r o cenário.<br />

Chicó! Chame os outros.<br />

Chicó – Os defuntos também?<br />

Palhaço – Também.<br />

Chicó – Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro! (Aparecem todos.)<br />

Palhaço – É preciso mu<strong>da</strong>r o cenário, para a cena do julgamento de vocês.<br />

Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entra<strong>da</strong> para<br />

o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas<br />

cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de<br />

uma cena comum no sertão do Nordeste. (É claro que essas falas serão<br />

corta<strong>da</strong>s ou a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s pelo encenador, de acordo com a montagem que se<br />

fi zer.) Agora os mortos. Quem estava morto?<br />

Bispo – Eu.<br />

Palhaço – Deite-se ali.<br />

Padre – Eu também.<br />

Palhaço – Deite-se junto dele. Quem mais?<br />

João Grilo – Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra.<br />

Palhaço – Deitem-se todos e morram.<br />

João Grilo – Um momento.<br />

Palhaço – Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar!<br />

João Grilo – Espere, quer man<strong>da</strong>r no meu morredor?<br />

Palhaço – O que é que você quer?<br />

João Grilo – Já que tenho de fi car aqui morto, quero pelo menos fi car longe<br />

do sacristão.<br />

Palhaço – Pois fi que. Deite-se ali. E você, Chicó?<br />

Chicó – Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo.


Essas intervenções do Palhaço servem para evidenciar que to<strong>da</strong> a peça é um<br />

artifício estético. O fi ngimento artístico tem primazia sobre a reali<strong>da</strong>de histórica, pois<br />

esta é apenas um referencial que o teatro não consegue reproduzir integralmente,<br />

mas apenas alguns aspectos recriados em forma fi ccional. O Palhaço distribui os<br />

papéis e as funções e promove a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> peça, funcionando como uma<br />

espécie de autor fi ctício <strong>da</strong> obra. O enredo é constituído de um conjunto de cenas<br />

que têm um desenvolvimento descontínuo, ou seja, sofre interrupções do Palhaço,<br />

o que caracteriza uma refl exão sobre a própria montagem <strong>da</strong> peça. Vários planos<br />

<strong>da</strong> peça se cruzam e se confundem, como o fato de Chicó estar vivo entre os mortos<br />

que serão imediatamente julgados e afi rmar que estava rezando pela alma do<br />

amigo.<br />

ATENÇÃO: No Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>, o Palhaço apenas faz papel de narrador,<br />

mas não é um narrador propriamente dito, como aparece no texto narrativo. A<br />

diferença é que o Palhaço fala diretamente ao público e vive ações diretas junto<br />

com os outros personagens.<br />

AGORA É SUA VEZ: Leia o primeiro texto do livro de Anatol Rosenfeld,<br />

indicado na bibliografi a, para você entender a diferença de tempo nos gêneros<br />

literários.<br />

REFLITA: Preste atenção às três proposições abaixo:<br />

I. Num texto dramático como o Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>, não existe<br />

propriamente um narrador, mas rubricas (informações entre<br />

parênteses) que situam o leitor entre os fatos e a evolução <strong>da</strong>s<br />

cenas<br />

II. Nos textos poéticos de Mário Quintana, o eu-lírico é uma voz<br />

fi ctícia que simboliza a expressão de sentimentos como sau<strong>da</strong>de,<br />

nostalgia, tristeza, solidão, entre outros, mas essa voz não é o<br />

pronunciamento real do autor sobre sua reali<strong>da</strong>de particular<br />

III. Num texto narrativo como os contos de Machado de Assis,<br />

o narrador é de importância central, pois provêm dele as<br />

informações a que o leitor tem acesso<br />

O principal OBJETIVO deste estudo é levar você a diferenciar os gêneros<br />

literários. Para demonstrar conhecimento já adquirido, tente identifi car o gênero<br />

do texto abaixo.<br />

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48<br />

Janelas abertas Nº2<br />

(Caetano Veloso)<br />

Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro<br />

Percorrer correndo, corredores em silêncio<br />

Perder as paredes aparentes do edifício<br />

Penetrar no labirinto<br />

O labirinto de labirintos dentro do apartamento<br />

Sim, eu poderia procurar por dentro a casa<br />

Cruzar uma por uma as sete portas, as sete mora<strong>da</strong>s<br />

Na sala receber o beijo frio em minha boca<br />

Beijo de uma deusa morta<br />

Deus morto, fêmea, língua gela<strong>da</strong>, língua gela<strong>da</strong> como na<strong>da</strong><br />

Sim, eu poderia em ca<strong>da</strong> quarto rever a mobília<br />

Em ca<strong>da</strong> um matar um membro <strong>da</strong> família<br />

Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia<br />

O que aconteceria de qualquer jeito<br />

Mas eu prefi ro abrir as janelas<br />

Pra que entrem todos os insetos


UNIDADE III<br />

A ESPECIFIDADE DO GÊNERO NARRATIVO<br />

Diferente do gênero lírico e do dramático, o texto narrativo necessariamente<br />

tem um narrador: aquela voz responsável pela enunciação e pelo encaminhamento<br />

dos fatos relatados. O narrador pode ser o próprio personagem central (primeira<br />

pessoa) ou alguma voz de fora que não se envolve com o enredo (terceira pessoa).<br />

A compreensão desse fenômeno é fun<strong>da</strong>mental para situar as demais categorias<br />

<strong>da</strong> narrativa, como tempo, espaço, ação, personagem, enredo, pois todos estão<br />

subordinados à forma como o narrador os apresenta, descreve e relata. Para você<br />

ter uma visão mais clara desse fun<strong>da</strong>mento teórico, na<strong>da</strong> melhor que ler um texto<br />

narrativo. Escolhemos para você o conto “A cartomante”, de Machado de Assis.<br />

Em segui<strong>da</strong> são feitos uns comentários como forma de facilitar a compreensão.<br />

Mas ATENÇÃO: você é que tem que desenvolver suas próprias habili<strong>da</strong>des para<br />

ler, interpretar e saber comentar criticamente um texto literário. Os comentários<br />

que vamos indicar são apenas pontos de parti<strong>da</strong> para uma leitura mais original<br />

que você mesmo deve fazer.<br />

AGORA É SUA VEZ: Leia com bastante calma o conto “A cartomante” e<br />

procure identifi car nele os principais elementos que constituem um texto<br />

narrativo.<br />

A cartomante<br />

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a<br />

nossa fi losofi a. Era a mesma explicação que <strong>da</strong>va a bela Rita ao moço Camilo,<br />

numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido<br />

na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras<br />

palavras.<br />

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em na<strong>da</strong>. Pois saiba que fui,<br />

e que ela adivinhou o motivo <strong>da</strong> consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o<br />

que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma<br />

pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinouas,<br />

e no fi m declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que<br />

não era ver<strong>da</strong>de...<br />

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.<br />

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho an<strong>da</strong>do, por sua<br />

causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...<br />

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fi xo. Jurou que lhe queria<br />

muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse<br />

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algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselhe<br />

que era imprudente an<strong>da</strong>r por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois..<br />

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.<br />

- Onde é a casa?<br />

- Aqui perto, na rua <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Velha; não passava ninguém nessa ocasião.<br />

Descansa; eu não sou maluca.<br />

Camilo riu outra vez:<br />

- Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.<br />

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que<br />

havia muita coisa misteriosa e ver<strong>da</strong>deira neste mundo. Se ele não acreditava,<br />

paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova<br />

é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.<br />

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.<br />

Também ele, em criança, e ain<strong>da</strong> depois, foi supersticioso, teve um arsenal<br />

inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram.<br />

No dia em que deixou cair to<strong>da</strong> essa vegetação parasita, e fi cou só o tronco <strong>da</strong><br />

religião, ele, como tivesse recebido <strong>da</strong> mãe ambos os ensinos, envolveu-os na<br />

mesma dúvi<strong>da</strong>, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava<br />

em na<strong>da</strong>. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;<br />

limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ain<strong>da</strong> afi rmar, e ele não<br />

formulava a increduli<strong>da</strong>de; diante do mistério, contentou-se em levantar os<br />

ombros, e foi an<strong>da</strong>ndo.<br />

Separaram-se contentes, ele ain<strong>da</strong> mais que ela. Rita estava certa de ser ama<strong>da</strong>;<br />

Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às<br />

cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se<br />

lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava<br />

uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua <strong>da</strong>s Mangueiras, na direção<br />

de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Velha, olhando de<br />

passagem para a casa <strong>da</strong> cartomante.<br />

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação <strong>da</strong>s<br />

origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu<br />

a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do<br />

pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser na<strong>da</strong>,<br />

até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou<br />

Vilela <strong>da</strong> província, onde casara com uma <strong>da</strong>ma formosa e tonta; abandonou<br />

a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para<br />

os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.<br />

- É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu<br />

marido é seu amigo; falava sempre do senhor.<br />

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,<br />

Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas<br />

do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fi na e<br />

interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela<br />

vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o<br />

parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vi<strong>da</strong>


moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal,<br />

que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência,<br />

nem intuição.<br />

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimi<strong>da</strong>de. Pouco depois morreu<br />

a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes<br />

amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita<br />

tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.<br />

Como <strong>da</strong>í chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A ver<strong>da</strong>de é que gostava<br />

de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã,<br />

mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele<br />

aspirava nela, e em<br />

volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a<br />

teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as <strong>da</strong>mas e o xadrez e jogavam às noites;<br />

- ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora<br />

a ação <strong>da</strong> pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os<br />

dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes<br />

insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de<br />

presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi<br />

então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do<br />

bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgari<strong>da</strong>des sublimes, ou, pelo menos,<br />

deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a<br />

mulher ama<strong>da</strong>, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,<br />

assim são as coisas que o cercam.<br />

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se<br />

acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingoulhe<br />

o veneno na boca. Ele fi cou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos,<br />

desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus,<br />

escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomo<strong>da</strong>sse ao pé, e aí foram ambos, estra<strong>da</strong><br />

fora, braços <strong>da</strong>dos, pisando folga<strong>da</strong>mente por cima de ervas e pedregulhos, sem<br />

padecer na<strong>da</strong> mais que algumas sau<strong>da</strong>des, quando estavam ausentes um do outro.<br />

A confi ança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.<br />

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral<br />

e pérfi do, e dizia que a aventura era sabi<strong>da</strong> de todos. Camilo teve medo, e, para<br />

desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe<br />

as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.<br />

Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram<br />

inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio,<br />

uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a<br />

aleivosia do ato.<br />

Foi por esse tempo que Rita, desconfi a<strong>da</strong> e medrosa, correu à cartomante para<br />

consultá-la sobre a ver<strong>da</strong>deira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a<br />

cartomante restituiu-lhe a confi ança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o<br />

que fez. Correram ain<strong>da</strong> algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três<br />

cartas anônimas, tão apaixona<strong>da</strong>s, que não podiam ser advertência <strong>da</strong> virtude,<br />

mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras<br />

palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e<br />

avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.<br />

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Nem por isso Camilo fi cou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter<br />

com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era<br />

possível.<br />

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a <strong>da</strong>s cartas<br />

que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...<br />

Nenhuma apareceu; mas <strong>da</strong>í a algum tempo Vilela começou mostrar-se<br />

sombrio, falando pouco, como desconfi ado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao<br />

outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à<br />

casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confi dência de<br />

algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses<br />

era confi rmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrifi candose<br />

por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso<br />

de necessi<strong>da</strong>de, e separaram-se com lágrimas.<br />

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:<br />

“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia.<br />

Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao<br />

escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse<br />

reali<strong>da</strong>de ou ilusão, afi gurou-se-lhe trêmula. Ele combinou to<strong>da</strong>s essas coisas<br />

com a notícia <strong>da</strong> véspera.<br />

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, -repetia ele com os olhos<br />

no papel.<br />

Imaginariamente, viu a ponta <strong>da</strong> orelha de um drama, Rita subjuga<strong>da</strong> e<br />

lacrimosa, Vilela indignado, pegando <strong>da</strong> pena e escrevendo o bilhete, certo de<br />

que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo:<br />

depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi<br />

an<strong>da</strong>ndo. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de<br />

Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou na<strong>da</strong>, nem ninguém. Voltou à rua, e a<br />

idéia de estarem descobertos parecia-lhe ca<strong>da</strong> vez mais verossímil; era natural<br />

uma denúncia anônima, até <strong>da</strong> própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser<br />

que Vitela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão <strong>da</strong>s suas visitas, sem<br />

motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confi rmar o resto.<br />

Camilo ia an<strong>da</strong>ndo inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras<br />

estavam decora<strong>da</strong>s, diante dos olhos, fi xas; ou então, - o que era ain<strong>da</strong> pior,<br />

- eram-lhe murmura<strong>da</strong>s ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já,<br />

à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro,<br />

tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma<br />

hora <strong>da</strong> tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que<br />

se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou<br />

a cogitar em ir armado, considerando que, se na<strong>da</strong> houvesse, na<strong>da</strong> perdia, e a<br />

precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia,<br />

picando o passo, na direção do largo <strong>da</strong> Carioca, para entrar num tílburi.<br />

Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.<br />

- Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...<br />

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,<br />

e ele não tar<strong>da</strong>ria a entestar com o perigo. Quase no fi m <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong><br />

Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravanca<strong>da</strong> com uma carroça, que


caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fi m de cinco<br />

minutos, reparou que ao lado, à esquer<strong>da</strong>, ao pé do tílburi, fi cava a casa <strong>da</strong><br />

cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer<br />

na lição <strong>da</strong>s cartas. Olhou, viu as janelas fecha<strong>da</strong>s, quando to<strong>da</strong>s as outras<br />

estavam abertas e peja<strong>da</strong>s de curiosos do incidente <strong>da</strong> rua. Dir-se-ia a mora<strong>da</strong><br />

do indiferente Destino.<br />

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver na<strong>da</strong>. A agitação dele era grande,<br />

extraordinária, e do fundo <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s morais emergiam alguns fantasmas de<br />

outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe<br />

voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que<br />

esperasse. E inclinava-se para fi tar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:<br />

era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe,<br />

com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no<br />

cérebro; mas <strong>da</strong>í a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns<br />

giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:<br />

-An<strong>da</strong>! agora! empurra! vá! vá!<br />

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em<br />

outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras <strong>da</strong><br />

carta: ‘’Vem,já,já...’’ E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava<br />

para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um<br />

longo véu opaco... pensou rapi<strong>da</strong>mente no inexplicável de tantas coisas. A voz<br />

<strong>da</strong> mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do<br />

príncipe de Dinamarca reboava-lhe<br />

dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a fi losofi a...” Que<br />

perdia ele, se...?<br />

Deu por si na calça<strong>da</strong>, ao pé <strong>da</strong> porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido<br />

enfi ou pelo corredor, e subiu a esca<strong>da</strong>. A luz era pouca, os degraus comidos dos<br />

pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu na<strong>da</strong>. Trepou e bateu.<br />

Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosi<strong>da</strong>de<br />

fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,<br />

três panca<strong>da</strong>s. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultála,<br />

ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma esca<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> pior que a<br />

primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumia<strong>da</strong> por uma<br />

janela, que <strong>da</strong>va para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias,<br />

um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.<br />

A cartomante fê-lo sentar diante <strong>da</strong> mesa, e sentou-se do lado oposto, com<br />

as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no<br />

rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compri<strong>da</strong>s e<br />

enxovalha<strong>da</strong>s. Enquanto as baralhava, rapi<strong>da</strong>mente, olhava para ele, não de<br />

rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,<br />

morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre<br />

a mesa, e disse-lhe:<br />

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...<br />

Camilo, maravilhado, fez um gesto afi rmativo.<br />

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...<br />

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-A mim e a ela, explicou vivamente ele.<br />

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez<br />

<strong>da</strong>s cartas e baralhou-as, com os longos dedos fi nos, de unhas descura<strong>da</strong>s;<br />

baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a<br />

estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.<br />

- As cartas dizem-me...<br />

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declaroulhe<br />

que não tivesse medo de na<strong>da</strong>. Na<strong>da</strong> aconteceria nem a um nem a outro;<br />

ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela;<br />

ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, <strong>da</strong> beleza de<br />

Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e<br />

fechou-as na gaveta.<br />

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima<br />

<strong>da</strong> mesa e apertando a <strong>da</strong> cartomante.<br />

Esta levantou-se, rindo.<br />

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...<br />

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se<br />

fosse a mão <strong>da</strong> própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômo<strong>da</strong>,<br />

sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a<br />

despencá-las e comê-las, mostrando duas fi leiras de dentes que desmentiam as<br />

unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,<br />

ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.<br />

- Passas custam dinheiro, disse ele afi nal, tirando a carteira. Quantas quer<br />

man<strong>da</strong>r buscar?<br />

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.<br />

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos <strong>da</strong> cartomante<br />

fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. .<br />

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do<br />

senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a esca<strong>da</strong>, é escura; ponha o chapéu...<br />

A cartomante tinha já guar<strong>da</strong>do a nota na algibeira, e descia com ele, falando,<br />

com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a esca<strong>da</strong><br />

que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,<br />

cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava<br />

livre. Entrou e seguiu a trote largo.<br />

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu<br />

estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou<br />

pueris; recordou os termos <strong>da</strong> carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos<br />

e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que<br />

eram urgentes, e que fi zera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio<br />

grave e gravíssimo.<br />

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.<br />

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece<br />

que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga


assidui<strong>da</strong>de... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras <strong>da</strong><br />

cartomante. Em ver<strong>da</strong>de, ela adivinhara o objeto <strong>da</strong> consulta, o estado dele, a<br />

existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se<br />

ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do<br />

rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.<br />

Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as<br />

palavras secas e afi rmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no<br />

fi m, ao longe, a barcarola <strong>da</strong> despedi<strong>da</strong>, lenta e graciosa, tais eram os elementos<br />

recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.<br />

A ver<strong>da</strong>de é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes<br />

de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para<br />

o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço<br />

infi nito, e teve assim<br />

uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.<br />

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou aporta de ferro do<br />

jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal<br />

teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.<br />

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?<br />

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram<br />

para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de<br />

terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüenta<strong>da</strong>. Vilela<br />

pegou-o pela gola,e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.<br />

REFLITA: Leia agora informações e comentários sobre Machado de Assis e sua<br />

obra.<br />

3.2 Machado de Assis(1839-1908)<br />

Machado de Assis continua sendo considerado o maior escritor <strong>da</strong> literatura<br />

brasileira. Apesar de pertencer, inicialmente, ao Romantismo, acabou optando<br />

pelo Realismo, com os seus romances <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de: Memórias póstumas de Brás<br />

Cubas, Quincas Barba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Tem ain<strong>da</strong><br />

uma larga produção que envolve teatro,crônicas, poesia e contos, defi nindo-se,<br />

assim, como um autor de vários gêneros.<br />

Os contos de Machado de Assis são tão representativos quanto os seus<br />

romances <strong>da</strong> fase madura. Abrangem inúmeros temas, o que não é tão comum<br />

para a sua época. No século dezenove, a literatura brasileira não tinha uma<br />

tradição de contos signifi cativa. Machado é o primeiro grande contista brasileiro,<br />

abrindo um caminho que será seguido depois por outros. Após um breve<br />

comentário sobre “A cartomante”, apresentamos o resumo de outros contos e<br />

algumas dicas que devem eluci<strong>da</strong>r a compreensão dos textos.<br />

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Comentário<br />

Machado de Assis, entre outros aspectos, enfoca a fragili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> chama<strong>da</strong><br />

“racionali<strong>da</strong>de humana”. Ele desfaz o mito do homem comedido, seguro pela<br />

razão, como se idealizava no século dezenove. Ora, Rita e Camilo, no momento de<br />

consulta à velha, estão tão agitados, tão confusos, tão sensíveis, que não percebem<br />

que a cartomante, suposta sábia e conhecedora <strong>da</strong>s coisas, só lhes diz coisas<br />

óbvias. Não há na<strong>da</strong> de extraordinário e de realmente importante nas palavras <strong>da</strong><br />

velha. Mas os dois amantes associam ca<strong>da</strong> palavra dela a previsões excepcionais,<br />

o que é uma grande ironia. Observe que Camilo não. crê em na<strong>da</strong> de mistério,<br />

mas, sentindo-se ameaçado, é vítima de crendices <strong>da</strong> infância, lembra<strong>da</strong>s<br />

a contragosto. Trata-se do medo, do horror à morte, que leva a essas cama<strong>da</strong>s<br />

psicológicas profun<strong>da</strong>s do ser humano, relativizando ao máximo a atuação <strong>da</strong><br />

consciência racional. E na<strong>da</strong> do que a velha diz para tranqüilizá-los se confi rma.<br />

Eles são tranqüilizados pela superstição, o que é outra grande ironia. E com isso<br />

perdem até o medo, as suspeitas, o que poderia, instintivamente, levá-los a algum<br />

gesto de defesa. É como se eles recuperassem a racionali<strong>da</strong>de e o equilíbrio pela<br />

superstição, o que é inteiramente paradoxal e ridículo, em na<strong>da</strong> compatível com a<br />

reali<strong>da</strong>de. Essa confusão entre razão e loucura, tensão mortal e falso alívio, tudo<br />

gerado por paixões proibi<strong>da</strong>s. é um dos temas prediletos de Machado de Assis. É<br />

o que ocorre em Quincas Borba, Dom Casmurro e outros contos, como “O relógio<br />

de ouro”.<br />

AGORA É SUA VEZ: Leia com atenção os resumos e comentários abaixo,<br />

mas só depois de ler os próprios contos de Machado de Assis.<br />

ATENÇÃO: Nunca se limite a ler resumos <strong>da</strong>s obras literárias. O ideal é ir ao<br />

texto diretamente! Os resumos e comentários servem apenas como explicações<br />

e pontos de parti<strong>da</strong> para alguma análise.<br />

SUGESTÕES DE LEITURA: Resumos e comentários de alguns contos de<br />

Machado de Assis<br />

“A Igreja do Diabo”<br />

O Diabo tem a idéia de fun<strong>da</strong>r uma igreja. Cansado de desorganização e<br />

obscuri<strong>da</strong>de,quer uma igreja com cânone, hinos, novena, rituais, todo o aparelho<br />

eclesiástico. E uma igreja que seja uni<strong>da</strong>, sem divisões, para ser mais forte que<br />

to<strong>da</strong>s as existentes. Tem certeza de que seduzirá as pessoas e em breve esvaziará<br />

o céu. Comunica suas intenções a Deus, que o chama de retórico e vulgar. Deus<br />

quer saber por que o Diabo só agora está pensando em se organizar. O Diabo fala<br />

de “negócios mais altos”, ou seja, promessas mais sedutoras que as de to<strong>da</strong>s as<br />

religiões, como, por exemplo, a inversão <strong>da</strong>s virtudes. Eis as promessas do Diabo:


as delícias <strong>da</strong> terra, to<strong>da</strong>s as glórias, os deleites mais íntimos. Ele confessa aos<br />

homens, em suas pregações, que é o Diabo, para que ninguém tenha mais medo<br />

ou faça imagem distorci<strong>da</strong> dele. Assim, multidões vão ao Diabo e seguem os seus<br />

princípios:<br />

a) substituição <strong>da</strong>s virtudes aceitas;<br />

b) reabilitação <strong>da</strong> soberba, <strong>da</strong> luxúria e <strong>da</strong> preguiça;<br />

é) valorização <strong>da</strong> avareza, mãe <strong>da</strong> economia;<br />

d) defesa <strong>da</strong> ira e <strong>da</strong> gula, virtudes superiores;<br />

e) substituição <strong>da</strong> vinha do Senhor pela vinha do Diabo, fruto <strong>da</strong>s mais belas<br />

cepas do mundo;<br />

f) prática <strong>da</strong> inveja, principal virtude, origem de infi nitas prosperi<strong>da</strong>des;<br />

g) amor às coisas perversas;<br />

h) valorização <strong>da</strong> fraude, braço esquerdo do homem;<br />

i) legitimação <strong>da</strong> venali<strong>da</strong>de, direito superior a todos os direitos;<br />

j) combate ao perdão, à brandura e à cordiali<strong>da</strong>de;<br />

I) prática <strong>da</strong> calúnia mediante retribuição;<br />

m) condenação de to<strong>da</strong>s as formas de respeito;<br />

n) abolição de to<strong>da</strong> a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de humana;<br />

o) amor às <strong>da</strong>mas alheias: única forma permiti<strong>da</strong> de amor ao próximo.<br />

Essa nova doutrina se propaga e logo o Diabo triunfa. Mas um dia ele<br />

faz uma descoberta chocante: as pessoas, às escondi<strong>da</strong>s, estavam praticando<br />

as antigas virtudes. O Diabo vê que ain<strong>da</strong> precisa conhecer bem o mal. Sem<br />

compreender de todo o fenômeno, recorre a Deus e lhe relata os fatos. E<br />

Deus lhe explica que o que está acontecendo faz parte <strong>da</strong> eterna contradição<br />

humana.<br />

Comentário<br />

“A igreja do Diabo” é um conto que não aceita o maniqueísmo cristão. Não<br />

existem pessoas exclusivamente boas ou exclusivamente más. Virtudes e pecados<br />

se cruzam, se confundem e fazem parte <strong>da</strong> ação <strong>da</strong>s pessoas. que agem conforme<br />

interesses, circunstâncias etc. Machado de Assis não tem intenção de criar uma<br />

fábula moralista, até mesmo porque a conclusão do conto é contraditória. No<br />

entanto, ao <strong>da</strong>r relevância à “eterna contradição humana”, ele mais uma vez é<br />

cético e negativista, sem acreditar em mu<strong>da</strong>nças qualitativas no homem. O conto<br />

tem conteúdo fi losófi co, é pessimista, querendo mostrar que a história do homem<br />

não tem solução nenhuma. Ain<strong>da</strong> mais, o narrador tem intenção universalista:<br />

ao invés de examinar os fatos em sua particulari<strong>da</strong>de histórica, ou seja, em seu<br />

contexto social, <strong>da</strong>ndo maior relevância à socie<strong>da</strong>de, ele só vê as contradições nas<br />

“pessoas”, individualizando os casos, como se tudo fosse uma questão apenas<br />

de opção pessoal Nesse sentido, ele reforça o velho livre arbítrio do cristianismo.<br />

Mas essa aparente incoerência do escritor tem um sentido: não é ele propriamente<br />

que está contando a saga do Diabo, mas um velho manuscrito beneditino, corno.é<br />

dito logo na primeira página do conto. Com isso, consegue livrar-se de críticas e<br />

atribuir a responsabili<strong>da</strong>de dos ensinamentos <strong>da</strong> fábula a elementos <strong>da</strong> própria<br />

Igreja.<br />

57


58<br />

3.2.1 Características Gerais Dos Contos De Machado De Assis<br />

I. Críticas Ao Romantismo<br />

No conto ‘’Noite de almirante”, ocorre uma ridicularização do amor<br />

idealizado e a mulher que age por interesse e com personali<strong>da</strong>de maligna. Há a<br />

critica à inocência e à falta de senso crítico do protagonista. Há também a quebra<br />

<strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> mulher perfeita e do amor como puro valor espiritual, acima de<br />

to<strong>da</strong>s as questões materiais. É a paródia de um tema comum ao Romantismo: o<br />

pacto <strong>da</strong>. eterna fi deli<strong>da</strong>de, como acontece em A moreninha, de Joaquim Manoel<br />

de Macedo, na aliança fi rma<strong>da</strong>, desde a infãncia, entre Augusto e Carolina. Em<br />

“O espelho”, Jacobina diz: “A melhor defi nição de amor não vale um beijo de<br />

moça namora<strong>da</strong>”. Ou seja: importante é praticar o amor, não apenas sentir ou<br />

fi car defi nindo e especulando em sonhos. Isso contraria os românticos, sobretudo<br />

os <strong>da</strong> fase byroniana, que acreditavam num amor platônico e fantasiado.<br />

“A igreja do Diabo” é um conto de conteúdo anticristão. A defesa dos<br />

males é acompanha<strong>da</strong> de princípios lógicos, como se as pessoas pudessem<br />

agir de qualquer forma e com naturali<strong>da</strong>de. É a destruição dos personagens<br />

delicados, gentis e comedidos do Romantismo. Aliás, a escola romântica tem<br />

muita infl uência cristã, porque a fuga para o passado, imitando os europeus<br />

que queriam voltar à I<strong>da</strong>de Média, quer reaver asrajzes brasileiras, misturando<br />

indianismo com a formação católica do Brasil.<br />

II. Passagem do Singular para O Universal<br />

Isso se dá <strong>da</strong> seguinte forma: ocorre um certo caso particular, muito<br />

defi nido e num contexto bem específi co. No entanto, o escritor procura extrair<br />

desse caso algumas características comuns ao ser humano em geral, como se<br />

aquele caso particular pudesse ocorrer em qualquer lugar, em qualquer tempo.<br />

Essa é uma <strong>da</strong>s características centrais de Machado de Assis.<br />

No conto “O enfermeiro”, Procópio, depois de matar o Coronel, cria<br />

coragem para ver o velho e ouve “a eterna palavra dos séculos”: “Cairo, que<br />

fi zeste de teu irmão?”. Ao comparar fatos de épocas bem diferentes, o autor<br />

procura identifi car algo em comum entre os acontecimentos, mostrando que a<br />

perseguição do sentimento de culpa independe de épocas históricas.<br />

Em “Um apóIogo”, todo o diálogo entre a agulha e a linha é para ilustrar<br />

a conclusão de que uns abrem caminho a vi<strong>da</strong> inteira para outros passarem. É a<br />

desigual<strong>da</strong>de que está em jogo, o que pode ser lido como metáfora de to<strong>da</strong>s as<br />

socie<strong>da</strong>des e relações exploradoras até hoje.<br />

Em “O espelho”, Jacobina diz que os amigos estão curiosos para ouvirem<br />

seu relato e vê nisso uma tendência universal do homem:”Santa curiosi<strong>da</strong>de! tu<br />

és não só a alma <strong>da</strong> civilização, és também o pomo <strong>da</strong> concórdia, fruta divina, de<br />

outro sabor que não aquele pomo <strong>da</strong> mitologia”.<br />

Em “A cartomante”, Camilo recebe de Rita um cartão sem muita<br />

importância. Camilo, entretanto, não tira os olhos dele. E o procedimento do<br />

narrador é no sentido de generalizar a questão: “Palavras vulgares;mas há<br />

vulgari<strong>da</strong>des sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça,


em que pela primeira vez passeaste com a mulher ama<strong>da</strong>, fechadinhos ambos,<br />

vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.<br />

Nos comentários sobre as cartas anônimas, aparecem frases que poderiam<br />

ser destaca<strong>da</strong>s do texto e li<strong>da</strong>s em qualquer circunstância, como as famosas<br />

declarações <strong>da</strong>s tragédias de Shakespeare. Aliás, o conto começa exatamente<br />

com um dos pensamentos mais conhecidos de Hamlet: “Há mais coisas no céu<br />

e na terra do que sonha a nossa fi losofi a”. É preciso fi car atento ao fato de que os<br />

motivos centrais <strong>da</strong> tragédia, como dúvi<strong>da</strong>, traição, mistério, ambigüi<strong>da</strong>de, são<br />

retrabalhados no conto de Machado de Assis, mantendo sua vali<strong>da</strong>de universal.<br />

III. Tensão Psicológica dos Personagens<br />

A tensão psicológica pode ter várias origens: a) o que se passa entre as<br />

normas estabeleci<strong>da</strong>s e a transgressão; b) o momento entre um objetivo e a<br />

realização dele; c) confusões que geram sentimento de culpa e trazem ameaça à<br />

situação normal dos personagens. Seja como for, a tensão é sempre o que ocorre<br />

entre a ruptura com aquilo que é jugado certo e a reação que pode vir dessa<br />

ruptura.<br />

Maior parte <strong>da</strong> “Missa do galo” e de “A cartomante” é de tensões. No<br />

primeiro, há o confl ito entre a hora de ir à missa, o prazer gerado pela conversa<br />

com a mulher e a possibili<strong>da</strong>de de ter alguma relação íntima com a dona <strong>da</strong> casa.<br />

A mulher, casa<strong>da</strong>, está dentro <strong>da</strong>s normas sociais; a missa é uma convenção muito<br />

séria, ain<strong>da</strong> mais a do galo, que só ocorre uma vez por ano; mas a conversa com a<br />

mulher, que pode derivar para a intimi<strong>da</strong>de sexual, poderia quebrar a norma do<br />

casamento e a fi deli<strong>da</strong>de ao ritual <strong>da</strong> Igreja.<br />

Já Camilo tem um comportamento muito tenso: ora está seguro, ora está<br />

an<strong>da</strong>ndo na sombra <strong>da</strong> morte. Isso cria um clima de permanente confl ito, sendo<br />

tudo reforçado por sentidos duplos e vagos, o que quebra to<strong>da</strong>s as certezas dos<br />

personagens.<br />

IV. Ironia<br />

A ironia é, basicamente, uma inversão proposital de sentidos. Afi rma-se<br />

algo querendo se dizer o oposto. Visando a alguma forma de crítica ou sarcasmo,<br />

a ironia machadiana, uma <strong>da</strong>s maiores características de sua obra, aparece de<br />

várias formas:<br />

a) por pistas e antecipações falsas<br />

Ao contar à esposa de Fortunato que ele cuidou, sem interesse, do ferido,<br />

Garcia, em “A causa secreta”, dá a entender que Fortunato é muito fi lantrópico<br />

e solidário. O leitor também fi ca com essa impressão. Só depois, ao longo do<br />

conto, é que fi camos sabendo do sadismo e <strong>da</strong> perversão de Fortunato: sua frieza<br />

cientifi cista no ato de dissecação dos ratos. Desse choque de contrastes é que se<br />

instaura a ironia.<br />

Em “Pai contra mãe”, as amigas de Clara não negam a gentileza de Cândido<br />

Neves, “nem o amor que lhe tinha, nem ain<strong>da</strong> algumas virtudes”. Ora, Cândido<br />

59


60<br />

não tem virtude alguma, não se a<strong>da</strong>pta a nenhuma profi ssão e se revela, no fi nal,<br />

um crudelíssimo perseguidor de escravos fugidios. Mas as opiniões <strong>da</strong>s amigas<br />

de Clara vêm antes <strong>da</strong> revelação fi nal de Cândido e o choque com o que ocorre<br />

depois é que produz o efeito irônico.<br />

Em “O enfermeiro”, o primeiro encontro entre Procópio e o Coronel é<br />

resumido assim: “(...) a minha resposta deu uma melhor idéia do coronel. Ele<br />

mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos<br />

enfermeiros que tivera. A ver<strong>da</strong>de é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias”.<br />

Na<strong>da</strong> disso, a partir <strong>da</strong>í, se confi rma. O Coronel Felisberto é insuportável e<br />

Procópio o mata.<br />

“Noite de almirante” e “Umas férias” já têm ironia no próprio título.<br />

A introdução dos contos é de um entusiasmo enorme para os personagens,<br />

caindo violentamente depois. Deolindo, no primeiro, é traído e humilhado por<br />

Genoveva; no segundo, as “férias” acabam sendo na escola: com horror do clima<br />

sombrio de casa, que se instaura com a morte do pai, as crianças, libera<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

aulas e felizes por isso, acabam tendo sau<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escola. As “férias”, portanto,<br />

são os estudos.<br />

b) através do humor negro<br />

O primeiro parágrafo de “Pai contra mãe” é a descrição dos instrumentos<br />

<strong>da</strong> escravidão. O narrador não se limitar a descrever, pontuar, constatar. Ele<br />

investe em opiniões radicais, tentando naturalizar a.violência <strong>da</strong> escravidão e,<br />

com isso, justifi car o que ele mesmo chama de “grotesco”. É como se a violência<br />

dos senhores fosse um mal necessário e inevitável para se atingir a “ordem”.<br />

Ordem que não precisa de defi nição ou esclarecimento. Ordem que é ordem<br />

e pronto. Isso não quer dizer que o narrador seja a favor <strong>da</strong> escravidão e <strong>da</strong>s<br />

torturas. Ao contrário: ele procura representar a mentali<strong>da</strong>de dos escravistas:<br />

“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos<br />

gostavam <strong>da</strong> escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem panca<strong>da</strong>, e nem<br />

todos gostavam de apanhar panca<strong>da</strong>”. Na cena de casamento de Cândido Neves<br />

com Clara, o narrador comenta com humor negro o sofrimento e a pobreza <strong>da</strong><br />

casa <strong>da</strong> Tia Mônica: “A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de<br />

tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não<br />

<strong>da</strong>vam que comer, mas <strong>da</strong>vam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Cândido<br />

é cristão e perseguidor de escravos ao mesmo tempo: “- Deus não me abandona.<br />

e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste. Muitos<br />

entregam-se logo”. A profi ssão violenta de Cândido nega todos os atributos<br />

de Deus: amor, paz, proteção, salvação etc. Na descrição que o narrador faz do<br />

trabalho de Cândido Neves: “(...) perdera já o ofício de entalhador(...) abrira<br />

mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxelhe<br />

um novo encanto. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia<br />

força, olho vivo, paciência e um pe<strong>da</strong>ço de cor<strong>da</strong>”, ele nivela propositalmente<br />

tudo, como se paciência e cor<strong>da</strong>, por exemplo, fossem bens morais e tivessem<br />

a mesma quali<strong>da</strong>de. Ora, a paciência é um bem espiritual do homem, algo que<br />

se adquire com educação para tolerância e fi ns elevados. Isso é incompatível<br />

com a cor<strong>da</strong>, instrumento de captura de escravos. A ironia, portanto, está nessa<br />

contradição.


c) através dos nomes<br />

Em Machado de Assis, é freqüente o seguinte: nomes dos personagens não<br />

condizem com os atos deles; nomes de lugares são o oposto ou a negação do que<br />

ocorre lá. Pelo descompasso entre uma coisa e outra, produz-se a ironia. É uma<br />

ironia muito sutil, que exige às vezes atenção dobra<strong>da</strong> para ser identifi ca<strong>da</strong>. Por<br />

exemplo, Cândido é sinônimo de brando, dócil, delicado; Neves e Clara remetem<br />

para o branco, a pureza, e no entanto vivem de caçar pessoas. Mesmo que Neves<br />

remeta para frieza, não combina com Cândido. Além disso, a escrava é captura<strong>da</strong><br />

na Rua <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>; ela está grávi<strong>da</strong> e Cândido, à procura dela, passa pela Rua do<br />

Parto. Mas o resultado do arrastão é o aborto. .<br />

Em “O enfermeiro”, o Coronel, extremamente depressivo, mal-humorado<br />

e rejeitado por todos na ci<strong>da</strong>de, chama-se Felisberto. Em “Noite de almirante”, o<br />

nome Deolindo pode desdobrar-se, possivelmente, em dois: Deus e lindo. Nem por<br />

isso deixa de ser traído por Genoveva, que é o nome de uma santa que, segundo a<br />

tradição católica, casou-se com Deus e dedicou to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> a ele. O conto, no<br />

entanto, é sobre uma mulher que não espera o noivo, que é marinheiro, voltar e<br />

se casa com outro, apesar <strong>da</strong> promessa inicial de ser absolutamente fi el a ele.<br />

Em “A cartomante”, o principal lugar é a Rua <strong>da</strong> Velha Guar<strong>da</strong>, onde fi ca<br />

a casa <strong>da</strong> cartomante. O nome <strong>da</strong> rua, sutilmente, remete para a velha Guar<strong>da</strong><br />

Imperial, ao mesmo tempo em que se refere à “velha” enigmática que lê o destino<br />

alheio. Ora, guar<strong>da</strong> é sinônimo de proteção, defesa. É como se a cartomante fosse<br />

a guardiã de Rita e Camilo. No entanto, as previsões dela resultam no oposto.<br />

Tanto é que Camilo, um pouco antes de chegar à casa de Vilela e ser morto, passa<br />

pela praia <strong>da</strong> Glória, que é outra ironia, e tem a seguinte sensação: “(...) Camilo<br />

olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um<br />

abraço infi nito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável”.<br />

A ironia é uma forma de exercer o pensamento critico e revogar to<strong>da</strong> e<br />

qualquer inocência. Em Machado de Assis, ela está muito associa<strong>da</strong> ao ceticismo<br />

e a uma visão de mundo negativista por excelência. As últimas palavras de Brás<br />

Cubas parecem confi rmar tudo o que vimos em seus contos:<br />

Soma<strong>da</strong>s umas causas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve<br />

míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vi<strong>da</strong>. E imaginará<br />

mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno<br />

saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive fi lhos,<br />

não transmiti a nenhuma criatura o legado <strong>da</strong> nossa miséria.<br />

Proposta de ativi<strong>da</strong>des<br />

1. Leia atentamente os parágrafos abaixo, que versam sobre a teoria <strong>da</strong><br />

literatura, especialmente no que diz respeito à relação do texto literário com o<br />

momento histórico:<br />

61


62<br />

Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta<br />

o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identifi car,<br />

na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma socie<strong>da</strong>de<br />

determina<strong>da</strong>; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;<br />

mas como fator <strong>da</strong> própria construção artística, estu<strong>da</strong>do, no nível explicativo<br />

e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos <strong>da</strong> sociologia,<br />

ou <strong>da</strong> história sociologicamente orienta<strong>da</strong>, para chegar a uma interpretação<br />

estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se<br />

dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e<br />

a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social<br />

se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos<br />

psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que<br />

a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois<br />

tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a<br />

diversi<strong>da</strong>de coesa do todo.<br />

Está visto que, segundo esta ordem de idéias, o ângulo sociológico adquire<br />

uma vali<strong>da</strong>de maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto<br />

como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de ca<strong>da</strong> fator<br />

depende do caso a ser analisado. Uma crítica que se queira integral deixará<br />

de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar<br />

livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente.<br />

Mas na<strong>da</strong> impede que ca<strong>da</strong> crítico ressalte o elemento <strong>da</strong> sua preferência, desde<br />

que o utilize como componente <strong>da</strong> estruturação <strong>da</strong> obra. E nós verifi camos<br />

que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre<br />

possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo<br />

explicar por meio dos fatores sociais.<br />

(Antonio Candido, Literatura e socie<strong>da</strong>de)<br />

2. Procure identifi car no texto abaixo os traços essenciais do gênero narrativo<br />

e tente encontrar uma forma de relacioná-los a algum conto de Machado de<br />

Assis.<br />

O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente<br />

imaginário), com suas paisagens, ci<strong>da</strong>des e personagens (envolvi<strong>da</strong>s em<br />

certas situações), emancipa-se em larga medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de do narrador.<br />

Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de<br />

outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos<br />

e está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios<br />

personagens começam a dialogar em voz direta é ain<strong>da</strong> o narrador que lhes dá<br />

a pa1avra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações<br />

como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc.<br />

No poema ou canto líricos um ser humano solitário - ou um grupo - parece<br />

exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes ou<br />

interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim<br />

melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação<br />

a outrem. Já no caso <strong>da</strong> narração é difícil imaginar que o narrador não esteja<br />

narrando a estória a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si


mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa<br />

a outros que, provavelmente, estão sentados em tomo dele e lhe pedem que<br />

lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra<br />

estórias que aconteceram a outrem, falará com certa sereni<strong>da</strong>de e descreverá<br />

objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu<br />

- a voz é do pretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” ( João, Maria)<br />

e em geral não” eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo<br />

narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma<br />

estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado<br />

dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude<br />

distancia<strong>da</strong> e objetiva, contrária à do poeta lírico.<br />

A função mais comunicativa que expressiva <strong>da</strong> linguagem épica dá ao narrador<br />

maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo.<br />

Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um<br />

conteúdo de vasto assunto.” Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem<br />

mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.<br />

É sobretudo fun<strong>da</strong>mental na narração o desdobramento em sujeito (narrador)<br />

e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos<br />

personagens (pois to<strong>da</strong> a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais<br />

vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o<br />

do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existe só o horizonte<br />

do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma<br />

estória aconteci<strong>da</strong> a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu<br />

narrado e ain<strong>da</strong> envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.<br />

(Anatol Rosenfeld, O teatro épico)<br />

ATENÇÃO: Terminamos por aqui esse material, mas isso é apenas o começo dos<br />

seus estudos sobre teoria <strong>da</strong> literatura. Vamos apresentar um pequeno glossário<br />

abaixo, para que você consulte e reforce seus conhecimentos.<br />

OBJETIVOS: Um glossário tem a fi nali<strong>da</strong>de básica de apresentar alguns<br />

conceitos fun<strong>da</strong>mentais vistos ao longo do curso, para facilitar a compreensão<br />

dos mesmos.<br />

REFLITA: Um glossário é apenas um meio rápido de consulta, mas você jamais<br />

deve se limitar a ele.<br />

AGORA É SUA VEZ: Procure ter sempre disposição para consultar o glossário<br />

na medi<strong>da</strong> em que for lendo os conceitos na parte teórica e aplicando-os à sua<br />

leitura dos textos literários.<br />

63


64<br />

GLOSSÁRIO<br />

ANÁLISE LITERÁRIA – É o estudo de textos literários de uma forma<br />

objetiva, com base em conceitos fornecidos pela teoria <strong>da</strong> literatura. O estudo de<br />

um texto para classifi car a sua forma, por exemplo, exige leituras sistemáticas <strong>da</strong><br />

teoria dos gêneros literários.<br />

CATEGORIA – É qualquer componente <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> narrativa. Por<br />

exemplo, o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço são categorias<br />

que, em seu conjunto, constituem uma narrativa.<br />

CONCEITO – É o instrumento básico de to<strong>da</strong> formulação teórica. O<br />

conceito só se sustenta se for objetivo e demonstrar respaldo na reali<strong>da</strong>de<br />

estu<strong>da</strong><strong>da</strong>, seja esta material ou simbólica. Caso o conceito não correspon<strong>da</strong> a<br />

essa exigência, sua formulação é falha e muitas vezes não passa de uma simples<br />

opinião sobre as coisas. O estudo sistemático <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura exige que os<br />

conceitos tenham proprie<strong>da</strong>de para serem aproveitados nas análises literárias.<br />

ENREDO – Conjunto dos fatos que se sucedem em uma narrativa. Os fatos<br />

que acontecem geram outros fatos, que se relacionam com outros, criando uma<br />

determina<strong>da</strong> tensão na situação dos personagens. A tensão gera uma expectativa<br />

que pode ser confi rma<strong>da</strong> ou não no fi nal <strong>da</strong> narrativa.<br />

GÊNERO LITERÁRIO – São as formas literárias mais amplas, abrangendo<br />

várias subformas ou subgêneros. A teoria literária mais clássica apresenta a<br />

divisão <strong>da</strong> literatura em três gêneros essenciais: o épico (ou narrativo), o lírico<br />

(o que modernamente convencionou-se chamar “poesia”) e o dramático (texto<br />

voltado para a encenação teatral).<br />

IRONIA – É um recurso muito utilizado na literatura, a exemplo <strong>da</strong><br />

narrativa de Machado de Assis. A ironia é uma inversão de sentido <strong>da</strong>s coisas. O<br />

discurso irônico é aquele que afi rma algo querendo dizer o oposto. A fi nali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ironia é varia<strong>da</strong>: pode ser o humor, o sarcasmo, a ridicularização de certas<br />

situações, mas pode ser também a intenção de provocar uma refl exão sobre o que<br />

parece natural e correto.<br />

LITERATURA – É um tipo de arte que se caracteriza pelo uso e combinação<br />

<strong>da</strong>s palavras de uma forma muito específi ca, capaz de ultrapassar o senso comum.<br />

Assim como a pintura é uma combinação de cores e a música é uma combinação<br />

de sons, o que distingue a literatura é a sua capaci<strong>da</strong>de de criar sentidos novos,<br />

ain<strong>da</strong> que utilizando as mesmas palavras forneci<strong>da</strong>s pela língua. A criativi<strong>da</strong>de<br />

literária também pode instaurar palavras novas, conheci<strong>da</strong>s como “neologismos”,<br />

que tornam o texto literário mais imprevisível e mais distanciado <strong>da</strong> comunicação<br />

cotidiana. A literatura, com essa preocupação volta<strong>da</strong> para o estabelecimento de<br />

sentidos diferentes, singulares, desconhecidos, não se confunde com um mero<br />

documento histórico ou com um texto jornalístico e de uso comum. A literatura<br />

proporciona outro tipo de refl exão sobre as relações humanas, que não se<br />

confunde com a ciência, com o misticismo, com a informação ou outras formas de<br />

conhecimento.<br />

NARRADOR – É uma <strong>da</strong>s categorias centrais do texto narrativo. É o<br />

responsável pela visão e pelos valores transmitidos ao longo do enredo. O<br />

narrador pode ser em primeira pessoa (o próprio personagem principal) ou


em terceira pessoa (um narrador externo, que não faz parte do enredo nem se<br />

envolve com os acontecimentos relatados). Existem outras formas de narrador,<br />

como o narrador-testemunha (conta a história, mas não é o personagem central),<br />

porém são formas mais raras.<br />

PERSONAGEM – É todo aquele que desenvolve ou sofre a ação do enredo.<br />

O personagem pode ser principal (protagonista) ou secundário, mas é necessário<br />

buscar a importância de sua ação na estrutura do enredo.<br />

SENSO COMUM – É aquilo que é comumente aceito em uma determina<strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de ou uma cultura. É a comunicação no nível mais simples e necessário,<br />

pois sem ela não haveria compreensão básica entre as pessoas. A importância<br />

do senso comum para a literatura e para as artes é que ele serve de referencial<br />

negativo ou a ser negado. Sem essa ruptura com o senso comum, a literatura e as<br />

artes tendem a se realizar em um nível muito pobre.<br />

TEORIA – Um conjunto de princípios lógicos que norteiam a compreensão<br />

de um determinado fenômeno, seja ele real ou imaginário. A teoria só tem valor<br />

se for averigua<strong>da</strong> por uma demonstração. Caso a demonstração falhe, a teoria<br />

tem que ser repensa<strong>da</strong> e refeita. Na literatura, por exemplo, a teoria não pode ser<br />

aplica<strong>da</strong> mecanicamente ao texto. Cabe ao exame minucioso do texto verifi car se<br />

a teoria pode ser ou não aplica<strong>da</strong>. Isso depende de como o conceito corresponde<br />

(ou não) à construção específi ca de um determinado texto literário.<br />

65


66<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ASSIS, Machado de. Os melhores contos. Seleção de Domício Proença Filho. 14. ed.<br />

São Paulo: Global, 2002.<br />

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de fi cção. São Paulo: Perspectiva, 1988.<br />

CANDIDO, Antonio. Literatura e socie<strong>da</strong>de. 6. ed. São Paulo: Nacional, 1980.<br />

GOMES, Dias. Os heróis vencidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. (Coleção<br />

Dias Gomes, volume 1)<br />

GOTLIB, Nádia Batt ela. Teoria do conto. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série<br />

Princípios)<br />

GOUVEIA, Arturo e MELO, Anaína Clara de. Machado de Assis: Literatura, música<br />

e barbárie. João Pessoa: Idéia, 2006.<br />

GULLAR, Ferreira. To<strong>da</strong> a poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />

1977.<br />

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1988. (Série<br />

Princípios)<br />

MESQUITA, Samira Nahid. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. (Série<br />

Princípios)<br />

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978.<br />

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.<br />

PINTO, Sérgio de. Zôo imaginário. São Paulo: Escrituras, 2005.<br />

QUINTANA, Mário. Os melhores poemas. Porto Alegre: L & PM Pocket, 2004.<br />

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.<br />

SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas <strong>da</strong> liberação do<br />

erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.<br />

SUASSUNA, Ariano. Auto <strong>da</strong> Compadeci<strong>da</strong>. 23.ed. Rio de janeiro: Agir, 1988.<br />

SANT’ ANNA, Aff onso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1982.<br />

(Série Princípios)<br />

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria <strong>da</strong> literatura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.<br />

(Série Princípios)


LEITURA E PRODUÇAO DE TEXTO I<br />

Do texto para o mundo e do mundo para o texto:<br />

movimentos de leitura e de escrita<br />

Apresentação<br />

Caro Aluno!<br />

Maria Ester Vieira de Sousa<br />

Regina Celi Mendes Pereira<br />

A disciplina Leitura e Produção de Texto I tem como foco principal<br />

introduzir, desde o primeiro semestre do Curso, uma discussão sobre a leitura<br />

e a produção de texto, aliando teoria e prática, para que, através <strong>da</strong> revisão de<br />

conceitos básicos que informam essa disciplina, o educando possa repensar a sua<br />

prática de leitura e de produção de texto, ao mesmo tempo em que refl ete sobre<br />

esse conteúdo de ensino.<br />

Nesse sentido, essa disciplina encontra-se divi<strong>da</strong> em três <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s. A<br />

primeira pretende <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> discussão acerca <strong>da</strong>s noções de leitura e <strong>da</strong>s<br />

perspectivas teóricas que sustentam essas noções, enfocando a relação leitor/<br />

texto/autor. Serão prioriza<strong>da</strong>s três perspectivas teóricas: Cognitivista, Sóciointeracionista,<br />

Discursiva. A segun<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tem como objetivo apresentar<br />

uma visão geral do conceito de gênero – partindo <strong>da</strong> tradição literária até os dias<br />

atuais –, bem como sua descrição e funcionali<strong>da</strong>de. A terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tratará<br />

<strong>da</strong> importância <strong>da</strong> utilização dos gêneros textuais para o ensino <strong>da</strong> leitura e<br />

<strong>da</strong> escrita e de suas implicações, enquanto procedimento metodológico, para o<br />

desenvolvimento dessas competências.<br />

67


UNIDADE I<br />

NOÇÕES DE LEITURA E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO<br />

1.1 Breve introdução<br />

Atualmente torna-se ain<strong>da</strong> mais presente, dentro e fora <strong>da</strong> escola, um<br />

discurso de valorização <strong>da</strong> leitura. Contraditoriamente, também é comum um<br />

discurso que alega a sua ausência. Iniciemos, então, esclarecendo essa contradição.<br />

A expressão “é preciso ler” faz parte do dia-a-dia <strong>da</strong> escola e é uma exigência <strong>da</strong><br />

nossa socie<strong>da</strong>de; paralelamente, afi rma-se constantemente que o aluno não gosta<br />

de ler, que o brasileiro não lê e, em conseqüência, não possui uma visão crítica do<br />

mundo que o cerca. Ler passou a ser um imperativo dos nossos tempos, do qual<br />

não podemos fugir. Ou seja, parece que não podemos não ler. Mas o que é ler?<br />

O que lemos? Qual o objeto <strong>da</strong> leitura e para que lemos? Apesar de essas serem<br />

perguntas excessivamente repeti<strong>da</strong>s, precisamos voltar a elas. Isso talvez porque<br />

a resposta não seja tão óbvia quanto, em geral, supõe o senso comum.<br />

Podemos dizer que a noção de leitura esteve quase sempre associa<strong>da</strong> à<br />

escrita, contudo esse não tem sido um ponto de vista unânime sobre o assunto.<br />

Paulo Freire (1983, p. 11-12) formula uma frase sobre a leitura que se tornou<br />

recordista em número de citações e aqui vamos, mais uma vez, citá-la: “A<br />

leitura do mundo precede a leitura <strong>da</strong> palavra, <strong>da</strong>í que a posterior leitura desta<br />

não possa prescindir <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>quele.” Qual, então, o objeto<br />

<strong>da</strong> leitura? Para Paulo Freire, esse objeto é amplo: o mundo e a palavra. Ler o<br />

mundo signifi ca compreender a reali<strong>da</strong>de que nos cerca, media<strong>da</strong> não apenas<br />

pela palavra, mas por objetos, pessoas, gestos, imagens. Ler o mundo é um ato,<br />

uma ação do sujeito, uma “ativi<strong>da</strong>de perceptiva” de construção do sujeito no<br />

mundo, de reconhecimento do seu ser no mundo, do seu lugar no mundo e de<br />

sua relação necessária com o outro. De início, é o mundo <strong>da</strong>/com a família, com os<br />

amigos, com os vizinhos que nos é <strong>da</strong>do a ler. Esse é um mundo de leitura: eu leio<br />

o sorriso nos lábios do outro e o julgo sincero ou falso, amistoso ou sarcástico; o<br />

sertanejo (homem do campo) olha para o céu a espera de um sinal de que a chuva<br />

virá e dependendo <strong>da</strong> leitura que faça se encherá de esperança ou debulhará o<br />

seu rosário de preces em dias melhores; o homem <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des, atento<br />

à metereologia, ao saber que vem chuva, prepara-se para o encontro com ruas<br />

alaga<strong>da</strong>s, trânsito engarrafado, transtorno, enfi m.<br />

Ler, nesse sentido, é “atribuir sentidos” ao mundo. Sendo assim,<br />

essa noção, além de, em princípio, não estar necessariamente liga<strong>da</strong> a uma<br />

aprendizagem <strong>da</strong> palavra escrita, supõe que qualquer objeto ou situação sejam<br />

passíveis de leituras. Nesse sentido, o homem conhece o mundo e com ele<br />

interage a partir <strong>da</strong>s leituras que vai desenvolvendo. Ou seja, lemos o mundo,<br />

antes de aprender a ler a palavra. Mas, voltando à frase de Paulo Freire, temos<br />

que essa leitura de mundo é fun<strong>da</strong>mental para a leitura <strong>da</strong> palavra, a qual não<br />

pode se esgotar em si mesma, ou seja, a leitura <strong>da</strong> palavra não pode ser a mera<br />

decodifi cação dessa palavra, é preciso compreendê-la em seu contexto, devolvê-<br />

69


70<br />

la ao mundo, inclusive, para melhor entender esse mundo: a leitura <strong>da</strong> palavra<br />

escrita apóia-se no conhecimento adquirido ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ao mesmo tempo<br />

em que amplia e modifi ca esse conhecimento.<br />

Vamos agora limitar a nossa refl exão à leitura <strong>da</strong> palavra escrita. Para<br />

tanto, fi xaremos como fi o condutor os sujeitos (leitor e autor) e o objeto <strong>da</strong> leitura<br />

(o texto escrito). Antes, porém, propomos uma refl exão inicial.<br />

REFLITA: Como se deu a sua aprendizagem de leitura <strong>da</strong> palavra escrita?<br />

Você lembra como aprendeu a ler? Qual a importância <strong>da</strong> escola para essa<br />

aprendizagem? Alguém em especial contribuiu para essa aprendizagem?<br />

Propomos que você utilize a ferramenta diário e registre lá as suas memórias de<br />

leitor <strong>da</strong> palavra escrita.<br />

Voltemos, então, a falar <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> palavra escrita, especifi camente,<br />

problematizando o objeto <strong>da</strong> leitura, o texto escrito.<br />

1.2 O que é um texto?<br />

Vamos partir de um exemplo:<br />

A Água<br />

A água é uma substância fria e mole. Não tão fria quanto o gelo<br />

nem tão mole quanto gema de ovo porque a gema de ovo arrebenta<br />

quando a gente molha o pão e a água não. A água é fria mas só<br />

quando a gente está dentro. Quando a gente está fora nunca se sabe a<br />

não ser a <strong>da</strong> chaleira, que sai fumaça. A água do mar mexe muito mas<br />

se a gente põe numa bacia ela pára logo. Água serve pra beber mas eu<br />

prefi ro leite e papai gosta de cerveja. Serve também pra tomar banho e<br />

esse é o lado mais ruim <strong>da</strong> água. Água é doce e é salga<strong>da</strong> quando está<br />

no rio ou no mar. A água doce se chama assim mas não é doce, agora<br />

a água salga<strong>da</strong> é bastante. A água de beber sai <strong>da</strong> bica mas nunca vi<br />

como ela entra lá. Também no chuveiro a água sai fi ninha mas não<br />

entendo como ela cai fi ninha quando chove pois o céu não tem furo.<br />

A água ain<strong>da</strong> serve também pra gente pegar resfriado que é quando<br />

ela escorre do nariz. Fora isso não sei mais na<strong>da</strong> <strong>da</strong> água<br />

Esse exemplo poderá levar o leitor a formular algumas in<strong>da</strong>gações: tratase<br />

realmente de um texto ou de um amontoado de frases óbvias sobre a água?<br />

Isso só pode ser coisa de quem não sabe escrever, coisa de criança. É isso! É uma<br />

re<strong>da</strong>ção que o aluno escreveu na aula de ciência quando a professora pediu<br />

para ele falar sobre a água, suas proprie<strong>da</strong>des e utili<strong>da</strong>de. O problema é que ele<br />

nem sabe escrever, nem sabe o que dizer. Imagine! Onde já se ouviu dizer que<br />

fria, quente, mole, inquebrável (não arrebenta), doce, salga<strong>da</strong> são proprie<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> água? E dizer que a água serve para pegar resfriado? O texto está muito


uim mesmo – se é que isso pode ser chamado de texto! Vamos então chamar o<br />

professor de português e ver o que ele pode fazer.<br />

O professor de português, diante desse exemplar, pensará: não sei nem por<br />

onde começar a correção: o autor repete incansavelmente a palavra água; há frases<br />

incompreensíveis, truncamentos sintáticos, anacolutos, comparações absur<strong>da</strong>s...<br />

quem já viu comparar água com gema de ovo? Como eu vou explicar uma frase<br />

como essa: “Quando a gente está fora nunca se sabe a não ser a <strong>da</strong> chaleira, que<br />

sai fumaça.”? Aliás, quem disse que isso é uma frase? Veja que faltam termos:<br />

“quando a gente está fora” ... fora de quê? “Nunca se sabe” de quê?<br />

Vamos fazer um exercício de compreensão desse texto, iniciando por<br />

essa frase. A primeira questão a observar é que um texto não é um amontoado<br />

de frases e que existem aspectos que não se esclarecem nos limites de uma frase<br />

toma<strong>da</strong> isola<strong>da</strong>mente de seu contexto. Senão vejamos. Vamos inserir essa frase<br />

em um maior fragmento do texto:<br />

A água é fria mas só quando a gente está dentro. Quando a gente está fora<br />

nunca se sabe a não ser a <strong>da</strong> chaleira, que sai fumaça.<br />

A frase agora não nos parece tão incoerente ou tão lacônica, se a<br />

relacionarmos com o sentido <strong>da</strong> antecedente. Antes nós acusamos o autor de ser<br />

repetitivo. Agora notemos que ele usou o recurso lingüístico <strong>da</strong> elipse para evitar<br />

repetição, caso contrário esse trecho fi caria:<br />

A água é fria mas a gente só sabe que a água é fria quando a gente está dentro<br />

<strong>da</strong> água. Quando a gente está fora <strong>da</strong> água a gente nunca sabe se a água é fria<br />

ou se é quente a não ser a água <strong>da</strong> chaleira, porque <strong>da</strong> água <strong>da</strong> chaleira sai<br />

fumaça e a fumaça denuncia (mostra pra gente) que a água é quente.<br />

Observe que, para chegar a essa paráfrase, usamos o princípio <strong>da</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de entre as frases no texto: uma frase se articulando à outra,<br />

completando, explicitando seus termos. Expliquemos: só pudemos explicitar<br />

a articulação sintática entre os termos na primeira oração porque levamos em<br />

conta o verbo saber (“nunca sabe”) que está explícito na segun<strong>da</strong> oração e porque<br />

repetimos as expressões a gente, a água é fria e <strong>da</strong> água. A explicitação dos termos<br />

ausentes na segun<strong>da</strong> oração foi possível a partir de dois processos: novamente a<br />

repetição dos termos “água” e “a gente” e a inferência do adjetivo “quente”, a<br />

partir do adjetivo “fria” e do substantivo “fumaça”. O leitor inconformado dirá:<br />

ora, mas isso não resolve o problema. O texto continua sendo um amontoado de<br />

bobagens sobre a água e muitas vezes incoerentes. Pois é. Então, relembremos a<br />

observação anteriormente feita e acrescentemos uma outra lição sobre o texto:<br />

O texto não é um somatório de frases, nem o seu sentido se constrói pelo<br />

somatório dos sentidos de suas frases.<br />

Aliás, não podemos nos esquecer de que o texto pode ser composto de<br />

uma única palavra. A palavra “Silêncio!”, por exemplo, escrita na entra<strong>da</strong> de um<br />

hospital ganha ares de um texto, cumpre uma função comunicativa, qual seja:<br />

71


72<br />

lembrar ao visitante de que aquele é um lugar de pessoas doentes que precisam<br />

repousar e para isso o silêncio é fun<strong>da</strong>mental. Mas isso não diz tudo. Uma mesma<br />

e só palavra pode construir sentidos diferentes. A mesma palavrinha “Silêncio!”,<br />

escrita na entra<strong>da</strong> de um campo de futebol, provavelmente, será entendi<strong>da</strong> como<br />

uma brincadeira do torcedor, visto que esse é um dos lugares menos prováveis<br />

para que ocorra silêncio. Mas e quando o jogador faz um gol e se vira para<br />

sua torci<strong>da</strong> ou para a torci<strong>da</strong> adversária e faz um gesto semelhante àquele que<br />

também encontramos em portas de hospitais, substituindo a palavra silêncio, será<br />

que estamos diante do mesmo texto? Certamente, não. Então, vamos acrescentar<br />

algo mais a nossa formulação anterior sobre o texto:<br />

O texto não é um somatório de frases, nem o seu sentido se constrói pelo<br />

somatório dos sentidos <strong>da</strong>s suas frases. A coerência de um texto não depende<br />

apenas de elementos lingüísticos.<br />

Dito isso, voltemos ao texto “A água” e passemos a explicitar alguns<br />

elementos fun<strong>da</strong>mentais para a construção do sentido <strong>da</strong>quele texto. O texto “A<br />

água” foi escrito por Millor Fernandes e compõe o livro “Compozissõis imfãtis”,<br />

publicado em 1975. Fazem parte desse livro outros tantos textos que seguem o<br />

mesmo estilo: “A banana”, “O leão” ... O leitor, sabendo quem é Millor Fernandes,<br />

e atentando para o título do livro do qual foi retirado esse texto, será levado a<br />

imaginar que o autor escreveu aquele texto imitando a escrita de uma criança.<br />

Imaginamos ser desnecessário dizer que essas informações – que remetem para o<br />

contexto de produção do texto – obrigarão o leitor a fazer outra leitura. Então, a<br />

coerência de um texto depende tão somente dos recursos lingüísticos empregados<br />

e do seu autor? Não só. Depois voltaremos a esse texto para enfocar as condições<br />

de produção <strong>da</strong> leitura. Por hora, gostaríamos de concluir esse item dizendo:<br />

O texto é um todo signifi cativo, é uma <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de sentido que não depende<br />

apenas do seu autor, mas <strong>da</strong> relação entre leitor-texto-autor.<br />

1.3. Noções de leitura<br />

No item anterior, priorizamos a noção de texto, com o objetivo de responder<br />

à pergunta: O que se lê? Nesse item vamos tentar responder à questão: O que é<br />

ler? O percurso será traçado tendo como foco a aprendizagem formal <strong>da</strong> leitura<br />

na escola.<br />

1.3.1 A leitura como decodifi cacão<br />

A importância <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> palavra escrita para a educação formal é<br />

inegável. Afi nal, é através dela que se fun<strong>da</strong>menta todo o processo educacional,<br />

desde os primeiros anos de escolari<strong>da</strong>de. Desde que o aluno ingressa na escola,<br />

todos (escola, pais, socie<strong>da</strong>de) esperam que ele “apren<strong>da</strong> a ler”. Aprender a ler,<br />

no entanto, muitas vezes, nas séries iniciais é sinônimo de “decodifi car a palavra<br />

escrita”.


É preciso refl etir sobre essa noção de leitura como decodifi cação.<br />

Naturalmente, para que se leia a palavra, é necessária que se tenha acesso a um<br />

conhecimento sobre a língua escrita o qual supõe a aprendizagem do sistema <strong>da</strong><br />

escrita. Mas, como vimos anteriormente, a leitura nem começa e nem acaba com<br />

essa aprendizagem. Decodifi car (reconhecer) as letras, as sílabas que compõem a<br />

palavra é apenas um meio (necessário, imprescindível) para se efetivar a leitura <strong>da</strong><br />

palavra, que, repito, não se esgota nesse gesto de identifi cação/reconhecimento. 1<br />

Torna-se interessante observar que, quando a própria escola toma a leitura<br />

como fonte para a aprendizagem de outros conteúdos de ensino (História,<br />

Geografi a, Matemática etc.), deveria ter como pressuposto básico o fato de que<br />

ler não é apenas decodifi car, mas envolve, fun<strong>da</strong>mentalmente, compreensão,<br />

refl exão. Contudo, a noção de leitura como decodifi cação se faz presente na<br />

escola em vários momentos. Basta verifi car, por exemplo, o livro didático,<br />

através, principalmente, de suas ativi<strong>da</strong>des de “compreensão de texto”. Em geral<br />

são ativi<strong>da</strong>des que solicitam tão somente que o aluno identifi que aspectos que<br />

estão visivelmente representados na materiali<strong>da</strong>de do texto, que passa a ser visto<br />

como possuindo um sentido único que cabe ao aluno apreender. Quando isso<br />

ocorre, também se está supondo a leitura como mera decodifi cação do escrito<br />

e o leitor como um sujeito passivo a quem compete tão somente recuperar um<br />

sentido que está objetivamente <strong>da</strong>do no texto. Em outras palavras, a leitura é<br />

reduzi<strong>da</strong> a uma ativi<strong>da</strong>de mecânica: exige-se do aluno apenas que respon<strong>da</strong> às<br />

questões formula<strong>da</strong>s sobre o texto, as quais, em geral, visam levá-lo a depreender<br />

(identifi car) o sentido lingüisticamente marcado no texto.<br />

Quais as conseqüências dessa noção para a aprendizagem? Essa<br />

compreensão de leitura, ao transferir o sentido para o texto e limitar o papel do<br />

leitor a um mero decodifi cador <strong>da</strong> escrita, tem como base uma concepção de<br />

linguagem como um mero sistema de signos que o falante/leitor deve dominar<br />

e uma concepção de texto como um somatório de palavras e frases. Ou seja, se o<br />

leitor não consegue compreender o texto, conclui-se que a culpa é dele que ain<strong>da</strong><br />

não domina o código lingüístico, porque se dominasse iria ver que tudo estava ali<br />

dito claramente.<br />

Há duas atitudes comuns a essa perspectiva: uma consiste na sacralização<br />

do texto que diz tudo. Por isso, o leitor não pode fugir “do que o texto quis<br />

dizer”, ou seja, qualquer leitura precisa ser comprova<strong>da</strong> no texto. Outra atitude,<br />

não necessariamente excludente, consiste na sacralização do autor. “Não foi isso<br />

que o autor quis dizer” é uma frase que traduz muito bem essa postura diante<br />

de qualquer leitura com a qual não se concorde. Em qualquer <strong>da</strong>s duas atitudes,<br />

nega-se o lugar do leitor, anula-se a sua função de leitor. Desconhece-se, de um<br />

lado, a história do leitor e, de outro, a historici<strong>da</strong>de do texto, do seu autor e <strong>da</strong>(s)<br />

sua(s) leitura(s).<br />

Mas, afi nal, o que é a leitura? Ou de outro modo: como lemos? Como<br />

aprendemos a ler? 2 Que gesto é esse? Centremos, por um momento, a nossa<br />

atenção no ato de aprender a ler, a partir de um breve resgate <strong>da</strong>quilo que o<br />

conhecimento sobre a leitura produziu nos últimos anos.<br />

Pesquisas desenvolvi<strong>da</strong>s aqui no Brasil, principalmente a partir <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s<br />

de 80 e 90 do século XX, têm retomado o problema <strong>da</strong> recepção, enfocando o<br />

papel do leitor na ação de ler.<br />

1 Esse conhecimento<br />

básico, elementar –<br />

primeiro no sentido<br />

<strong>da</strong> educação formal –<br />

nem sempre ocorre na<br />

escola. Pesquisas têm<br />

demonstrado que, numa<br />

socie<strong>da</strong>de como a nossa<br />

(rodea<strong>da</strong> <strong>da</strong> palavra<br />

escrita por todos os<br />

lados), o aluno, quando<br />

chega à escola, ain<strong>da</strong><br />

que não decodifi que<br />

as letras, já possui um<br />

conhecimento sobre os<br />

usos sociais <strong>da</strong> escrita,<br />

sabe, no mínimo, que<br />

existe o texto escrito e<br />

que ele é usado em várias<br />

situações no cotidiano<br />

dos sujeitos. Apesar<br />

disso, esse conhecimento,<br />

advindo <strong>da</strong> experiência<br />

cotidiana do aluno, nem<br />

sempre é levado em<br />

consideração pela escola.<br />

2 Conforme Manguel<br />

(1997, p. 42), “A leitura<br />

começa com os olhos.”<br />

Apenas para demonstrar<br />

como é antiga essa<br />

preocupação, lembramos,<br />

ain<strong>da</strong> seguindo Manguel,<br />

que a maneira como<br />

o sujeito percebe o<br />

objeto é um gesto que já<br />

preocupava os antigos<br />

fi lósofos, dentre os quais<br />

Aristóteles (384 – 322<br />

a.C.). Essa ain<strong>da</strong> é uma<br />

preocupação bastante<br />

atual, principalmente,<br />

quando, do ponto de<br />

vista do ensino e <strong>da</strong><br />

aprendizagem, a leitura<br />

permanece como uma<br />

temática tão presente.<br />

73


74<br />

1.3.2 A leitura numa perspectiva cognitivista<br />

Numa perspectiva cognitivista, as pesquisas se voltaram para a análise dos<br />

mecanismos envolvidos no processamento cognitivo <strong>da</strong> informação recebi<strong>da</strong> pelo<br />

leitor, a partir <strong>da</strong> percepção visual do objeto (texto). Essas pesquisas aju<strong>da</strong>ram<br />

a entender, por exemplo, por que o aluno na fase inicial de alfabetização lê tão<br />

devagar, se comparado a um leitor que já domina o código lingüístico. O aluno<br />

que ain<strong>da</strong> não domina o código lingüístico tende a fi xar os olhos nos elementos<br />

mínimos (letras, sílabas, palavras), numa leitura absolutamente linear, diferente<br />

do leitor experiente que não lê palavra por palavra. O movimento do olho na<br />

página, quando o leitor já passou <strong>da</strong> fase de mera identifi cação (decodifi cação)<br />

<strong>da</strong> palavra escrita, é descrito, por um lado, como um movimento sacádico: o<br />

olho fi xa-se em pontos; pula de um trecho para outro. Por outro lado, ao mesmo<br />

tempo em que avança, segue para frente, o leitor, dependendo do processamento,<br />

do nível de compreensão que vai sendo estabelecido, <strong>da</strong> sua relação com o<br />

material textual, também recua, volta para testar uma informação, para confi rmar<br />

a suspeita de uma palavra decodifi ca<strong>da</strong> indevi<strong>da</strong>mente, por exemplo, e que pode<br />

levar a uma compreensão indevi<strong>da</strong>.<br />

Esse conhecimento permitiu concluir que o leitor desenvolve diferentes<br />

habili<strong>da</strong>des e estratégias para li<strong>da</strong>r com o objeto (no nosso caso, o texto<br />

escrito). Dessa forma, foi possível compreender que quanto mais o leitor tiver<br />

familiari<strong>da</strong>de com o texto (em relação aos seus aspectos formais e de conteúdo)<br />

mais rapi<strong>da</strong>mente ele irá ler. A relação leitor/ texto, portanto, passa a ser pensa<strong>da</strong><br />

a partir de habili<strong>da</strong>des do leitor e de estratégias de leitura, dentre as quais se<br />

destacam: as estratégias de antecipação ou predição, de inferência e de testagem.<br />

Ocorre, no entanto, que as hipóteses e as estratégias formula<strong>da</strong>s pelo leitor<br />

não são fruto do acaso. Antes, elas resultam do conhecimento prévio do leitor<br />

(conhecimento lingüístico e de mundo) e de uma série de fatores que motiva(ra)<br />

m o seu encontro com o texto, dentre os quais se destacam os objetivos <strong>da</strong> leitura,<br />

os interesses pela leitura, as expectativas em relação ao que se lê, as necessi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> leitura etc.<br />

Segundo Kato (1985), as hipóteses acerca do texto são construí<strong>da</strong>s a partir de<br />

esquemas mentais (frames, na denominação de outros estudiosos) que os sujeitos<br />

dominam acerca de eventos os mais diversos. Vejamos um exemplo que esclareça<br />

essa questão. Suponhamos que, no jornal diário, lemos a seguinte manchete:<br />

“Cresce o número de acidentes nas estra<strong>da</strong>s brasileiras no último feriado”. Essa<br />

manchete já fará com que o leitor construa uma série de antecipações acerca<br />

do texto que irá ler e conseqüentemente rejeite outras. Especifi camente nesse<br />

exemplo, do ponto de vista <strong>da</strong> articulação entre o conhecimento lingüístico e de<br />

mundo, o leitor será levado a perceber que o substantivo “acidentes” remete para<br />

um conjunto de suposições bastante amplas, a partir do que ele sabe sobre esse<br />

evento. Nesse sentido, atendo-se apenas a essa marca textual, ele será levado a<br />

formular hipóteses bastante amplas, por exemplo, acerca do tipo de acidente, <strong>da</strong>s<br />

vítimas do acidente, dos possíveis feridos ou mortos. Já a expressão “estra<strong>da</strong>s<br />

brasileiras” o levará a limitar o campo de compreensão do esquema “acidentes”,<br />

restringindo ao universo dos acidentes automobilísticos, especifi camente no<br />

Brasil, e a rejeitar as demais formulações anteriores.<br />

Essas são estratégias cognitivas de leitura de que todo leitor, considerado<br />

profi ciente, lança mão, mesmo inconscientemente. Nesse sentido, os autores


defendem que, embora a leitura seja um ato individual de construção de<br />

signifi cado, é possível ensinar a ler. Esse ensino deveria centrar-se no ensino<br />

de estratégias de leitura, enquanto operações regulares capazes de permitir uma<br />

aproximação do texto, de modo que o leitor passasse a controlar a sua leitura.<br />

Para desenvolver essas habili<strong>da</strong>des no aluno, o professor – que passa a ser<br />

tido como um mediador dessa aprendizagem – poderá trabalhar com modelos<br />

de estratégias específi cas de leitura que levem o aluno a refl etir conscientemente<br />

sobre essas estratégias que ele utiliza inconscientemente. Essa seria uma<br />

forma de desautomatizar essas estratégias cognitivas, transformando-as em<br />

estratégias meta-cognitivas, enquanto operações que levariam os sujeitos leitores<br />

a dois procedimentos básicos: uma auto-avaliação constante <strong>da</strong> sua própria<br />

compreensão do texto e a defi nição clara de objetivos de leitura3 .<br />

Passemos a um outro exemplo a partir do qual pretendemos demonstrar<br />

como o professor poderá propor uma ativi<strong>da</strong>de de leitura que leve o alunoleitor<br />

a desenvolver uma abor<strong>da</strong>gem do texto, utilizando, simultaneamente, as<br />

estratégias de predição e de checagem, a partir do seu conhecimento <strong>da</strong> língua e<br />

do mundo. Propomos, então, uma simulação e convi<strong>da</strong>mos o leitor a entrar nesse<br />

jogo, porque apresentaremos o texto por etapas.<br />

Iremos, agora, ler um texto cujo título é O aeroporto, de autoria de Carlos<br />

Drummond de Andrade. A partir desse título e do que sabemos sobre o autor,<br />

poderemos fazer inferências que vão desde o Gênero (será uma poesia, será uma<br />

crônica, será um conto?) até o conteúdo do texto (o texto tratará de um encontro<br />

no aeroporto, de uma despedi<strong>da</strong>, de um acidente? 4 ). Vamos, então, ao primeiro<br />

parágrafo do texto para que possamos testar essas inferências:<br />

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu<br />

quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,<br />

embora não falássemos <strong>da</strong> vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito<br />

assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente<br />

parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando<br />

muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz<br />

entender admiravelmente. É o seu sistema.<br />

Duas <strong>da</strong>s nossas hipóteses são confi rma<strong>da</strong>s: temos um texto em prosa e<br />

parece tratar de um evento de despedi<strong>da</strong> em um aeroporto. Ao mesmo tempo,<br />

fi camos sabendo de várias outras coisas: há um narrador em primeira pessoa<br />

que vai deixar no aeroporto um amigo que se chama Pedro. Novamente somos<br />

convocados a levantar outras hipóteses: o narrador sugere que ele e o amigo<br />

falaram muito, mas, contraditoriamente, afi rma que seu amigo não pronuncia<br />

nenhuma palavra. Então, o amigo não é humano? E agora? Quem é esse amigo<br />

que se entretém com tantos assuntos, explora-os a fundo e, ao mesmo tempo,<br />

“Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos<br />

quais se faz entender admiravelmente”? Se o amigo se faz entender admiravelmente<br />

por gestos e expressões, então, devemos supor que ele é humano? Se humano, é<br />

surdo-mudo, esse amigo? Vamos ao segundo parágrafo do texto:<br />

3 Para saber mais sobre<br />

“estratégias de leitura”,<br />

leia o capítulo 4 do Livro<br />

Ofi cina de leitura de<br />

Ângela Kleiman.<br />

4 Certamente surgirão<br />

muitas idéias as quais o<br />

professor poderá listar<br />

no quadro-negro para<br />

que posteriormente<br />

possa ir checando.<br />

75


76<br />

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os<br />

moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta,<br />

porque ostensiva. A vista <strong>da</strong> pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi<br />

logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o<br />

mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores,<br />

vizinhos e desconhecidos, gratifi cados com esse sorriso (encantador, apesar <strong>da</strong><br />

falta de dentes), abonam a classifi cação.<br />

O que sabemos agora? O amigo é simpático, carismático (conquista a todos)<br />

e não tem dentes. Será isso sufi ciente para descartar as nossas hipóteses anteriores<br />

ou deveríamos mantê-las e acrescentar outras? Deci<strong>da</strong> você, leitor, o que fazer. E,<br />

para ajudá-lo, vamos ao terceiro parágrafo:<br />

Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários<br />

especiais, comi<strong>da</strong>s especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados<br />

especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências<br />

e privilégios maiores. Recebia tudo com naturali<strong>da</strong>de, sabendo-se merecedor<br />

<strong>da</strong>s distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas<br />

horas de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia<br />

- eram respeita<strong>da</strong>s como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz<br />

para não acordá-lo. Acor<strong>da</strong>ria sorrindo, como de costume, e não se zangaria<br />

com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus<br />

sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para<br />

violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à<br />

tortura <strong>da</strong> tevê. An<strong>da</strong>ndo na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no<br />

escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.<br />

Observemos que no parágrafo anterior o narrador afi rmou que o nosso<br />

amigo fora um hóspede ameno. Agora, ele nos diz que esse hóspede ameno foi um<br />

visitante que deu trabalho: “tinha horários especiais, comi<strong>da</strong>s especiais, roupas<br />

especiais, sabonetes especiais, criados especiais.” Um visitante, cheio de melindres,<br />

que impôs tantas restrições aos seus anfi triões e, ain<strong>da</strong> assim, é considerado<br />

merecedor de tantos mimos. Quem é esse visitante? Deixemos o narrador falar e<br />

agora vamos apresentar um trecho maior:<br />

Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheio (e<br />

não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de<br />

escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta <strong>da</strong>s coisas<br />

para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pôlas<br />

na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido<br />

que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas<br />

pupilas azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta<br />

qualquer suspeita ou acusação apressa<strong>da</strong>, sobre a razão íntima de seus atos.<br />

Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os<br />

cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com<br />

ele porque destruiu a lâmpa<strong>da</strong> do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro<br />

que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria<br />

desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas<br />

eram indiferentes à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhe conferia<br />

caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.


Já é possível dizer quem é esse hospede merecedor de tanta distinção? Não<br />

pronuncia palavras, não tem dentes, não usa óculos, gosta de pegar tudo que está<br />

ao seu alcance, leva tudo à boca, faz suas necessi<strong>da</strong>des fi siológicas em qualquer<br />

lugar ([...] “o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte”) e continua digno de<br />

amor, de atenção e a quem tudo se desculpa. Esses indícios aju<strong>da</strong>m a desven<strong>da</strong>r o<br />

mistério? Vamos ao fi nal do texto:<br />

Viajou meu amigo Pedro. Fico refl etindo na falta que faz um amigo de um ano<br />

de i<strong>da</strong>de a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto fi cou<br />

vazio.<br />

Para que você, leitor, possa fazer a sua leitura, construir os seus sentidos e<br />

apreciar a escrita de Drummond, apresentamos o texto sem cortes:<br />

O aeroporto<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas<br />

o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,<br />

embora não falássemos <strong>da</strong> vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito<br />

assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente<br />

parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando<br />

muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz<br />

entender admiravelmente. É o seu sistema.<br />

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para<br />

os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta,<br />

porque ostensiva. A vista <strong>da</strong> pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo<br />

considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo<br />

ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos<br />

e desconhecidos, gratifi cados com esse sorriso (encantador, apesar <strong>da</strong> falta de<br />

dentes), abonam a classifi cação.<br />

Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários<br />

especiais, comi<strong>da</strong>s especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados<br />

especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e<br />

privilégios maiores. Recebia tudo com naturali<strong>da</strong>de, sabendo-se merecedor <strong>da</strong>s<br />

distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas<br />

de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia - eram<br />

respeita<strong>da</strong>s como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para<br />

não acordá-lo. Acor<strong>da</strong>ria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a<br />

gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.<br />

Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e<br />

orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura <strong>da</strong><br />

tevê. An<strong>da</strong>ndo na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas<br />

sendo por amor de Pedro não tinha importância.<br />

Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheio<br />

(e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de<br />

escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta <strong>da</strong>s coisas<br />

para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las<br />

77


78<br />

na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que<br />

mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas<br />

azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer<br />

suspeita ou acusação apressa<strong>da</strong>, sobre a razão íntima de seus atos.<br />

Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os<br />

cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele<br />

porque destruiu a lâmpa<strong>da</strong> do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que<br />

ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado<br />

com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes<br />

à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter necessário de<br />

prova; ou gratuito, de poesia e jogo.<br />

Viajou meu amigo Pedro. Fico refl etindo na falta que faz um amigo de um<br />

ano de i<strong>da</strong>de a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto fi cou<br />

vazio.<br />

ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia<br />

completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p.1107-1108<br />

Não fecharemos a leitura, ao contrário, convocamos ca<strong>da</strong> um a produzir<br />

sentidos para esse texto. Esperamos que essa simulação tenha demonstrado que,<br />

do ponto de vista do ensino, esse conhecimento permite ao professor elaborar<br />

ativi<strong>da</strong>des de abor<strong>da</strong>gem do texto que levem o aluno a li<strong>da</strong>r com as estratégias<br />

cognitivas de leitura de uma forma mais consciente. Inclusive, esperamos que a<br />

ativi<strong>da</strong>de tenha demonstrado que nem to<strong>da</strong> leitura é autoriza<strong>da</strong> pelo texto.<br />

Evidentemente não podemos negar que pode haver a suposição de que essa<br />

estratégia de abor<strong>da</strong>gem do texto leve o aluno a um controle total do seu processo<br />

de leitura e a um conseqüente acesso ao sentido do texto, como se esse tivesse<br />

apenas um sentido, objetivamente controlável. Essa é uma ilusão com a qual não<br />

compartilhamos. Além disso, é preciso acrescentar que nem todo texto se presta a<br />

esse método de abor<strong>da</strong>gem.<br />

A crítica que se faz à perspectiva cognitivista consiste no fato de limitar<br />

a leitura aos seus aspectos mais técnicos, focados principalmente nas pistas do<br />

texto, sem considerar o caráter sócio-histórico <strong>da</strong> leitura enquanto prática que<br />

coloca em jogo uma relação entre sujeitos – o autor e o leitor – media<strong>da</strong> pelo texto.<br />

Nesse sentido, essa concepção nem sempre dá conta do imprevisível, <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de<br />

que se constrói nessa relação, inclusive, jogando com a quebra de expectativas do<br />

leitor.<br />

Contudo, é preciso reconhecer a contribuição que ela traz para o ensino <strong>da</strong><br />

leitura, na medi<strong>da</strong> em que oferece ao professor um conhecimento que permite<br />

a formulação de metodologias que respeitem o modo como, do ponto de vista<br />

cognitivo, o sujeito se apropria do conhecimento.<br />

PESQUISA: Procure ler mais sobre a leitura do ponto de vista <strong>da</strong> relação<br />

cognitiva do leitor com o texto. Leia mais sobre os processamentos ascendente<br />

e descendente de leitura. Sugerimos como leitura complementar os livros de<br />

Mary Kato (1985 e 1987) e Ângela Kleiman (1993). Use a ferramenta Fórum e<br />

participe do debate que lá propomos.


1.3.3 A leitura numa perspectiva sociointeracionista<br />

Numa perspectiva sociointeracionista, a leitura tem sido considera<strong>da</strong> a<br />

partir <strong>da</strong> concepção de linguagem como interação, oriun<strong>da</strong>, principalmente, dos<br />

estudos de Bakhtin, para quem a palavra “é determina<strong>da</strong> tanto pelo fato de que<br />

procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém.” (BAKHTIN,<br />

1986 [1929], p. 113). A concepção de linguagem que embasa essa perspectiva é,<br />

portanto, a de linguagem como interação entre sujeitos determinados sócio e<br />

historicamente. Isso signifi ca dizer que o sentido <strong>da</strong>s palavras é determinado por<br />

seu contexto, em sentido amplo, pela situação social mais imediata e pelo meio social<br />

mais amplo. Dessa forma, a leitura passa a ser concebi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> relação entre<br />

os sujeitos leitor e autor, media<strong>da</strong> pelo texto. Falando de forma bem sempre,<br />

podemos dizer que – semelhante ao que ocorre com um diálogo que supõe a<br />

presença de um locutor e de um ouvinte – a escrita supõe, sempre e ao mesmo<br />

tempo, alguém que escreve e alguém que lê.<br />

Evidentemente, do ponto de vista <strong>da</strong> aprendizagem, não se desconsideram<br />

os processos mentais que o leitor desenvolve no seu encontro com o texto. Mas<br />

defende-se que é preciso ir mais além. Em conseqüência, acredita-se que não<br />

há lugar para a separação entre leitor e texto e entre leitor e autor. O processo<br />

interativo supõe a relação entre interlocutores construí<strong>da</strong>, media<strong>da</strong> pelo texto,<br />

que também impõe limites.<br />

Voltemos ao texto “A água”, citado no início dessa <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Se o leitor<br />

não souber que o autor <strong>da</strong>quele texto é Millor Fernandes ou se ele não<br />

souber na<strong>da</strong> sobre esse autor, certamente fará a leitura <strong>da</strong>quele texto tãosomente<br />

a partir dos elementos lingüísticos que o constituem e fatalmente<br />

chegará à conclusão de que se trata de um texto mal escrito e cheio de<br />

bobeiras. Se, por outro lado, ele conhecer Millor, estiver familiarizado com<br />

a sua escrita e se souber que esse texto faz parte de um livro cujo título é<br />

“Conpozissõis imfatis”, ele deverá considerar esses aspectos para a construção<br />

de outras leituras. Verifi quemos que o texto não se modifi cou enquanto<br />

mera materiali<strong>da</strong>de, mas essa materiali<strong>da</strong>de foi altera<strong>da</strong> (afeta<strong>da</strong>) pelo<br />

reconhecimento de um outro elemento <strong>da</strong> relação interlocutiva: o autor, aqui<br />

considerado como alguém responsável pelo dizer, pela coerência interna e<br />

externa do texto. Como o sujeito-autor desse texto é reconhecido como alguém<br />

que sabe escrever (tem vários livros publicados, tem uma legião de leitores<br />

que o admiram, é considerado como um autor que usa o humor e a ironia<br />

como ingredientes para a crítica social), os problemas do texto não podem ser<br />

atribuídos à incompetência do autor.<br />

Observe que novamente entra em cena o leitor: seu conhecimento de<br />

mundo, suas leituras de outros textos. Dentre as possíveis leituras, haverá a<br />

possibili<strong>da</strong>de de que, por um lado, esse texto possa ser lido como uma crítica às<br />

composições infantis – cheias de erros ortográfi cos (tal como se revela no título<br />

do livro), plenas de construções absur<strong>da</strong>s – e, por outro, como uma crítica à<br />

escola, que leva os alunos a produzirem textos <strong>da</strong>quela natureza. Mas há ain<strong>da</strong><br />

a possibili<strong>da</strong>de de que o texto seja um reconhecimento de que essas composições<br />

não são tão absur<strong>da</strong>s quanto se imagina. Afi nal, não podemos nos esquecer de<br />

que elas lembram o humor e non-sense que também está presente na pena de<br />

escritores, tidos como bons, competentes, inspirados, criativos e tantos outros<br />

adjetivos que usamos para qualifi car o bom escritor.<br />

79


5 Na segun<strong>da</strong> e terceira<br />

<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, você irá<br />

encontrar uma discussão<br />

mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

sobre a descrição e o<br />

funcionamento dos<br />

gêneros textuais<br />

80<br />

Dessa forma, o nosso exemplo demonstra que o texto – apesar de não impor<br />

uma única leitura – na sua relação com o autor, impõe um modo de recepção que<br />

limita a leitura, ou seja, a leitura não pode ser qualquer uma: não podemos, por<br />

exemplo, dizer que o texto demonstra que Millor Fernandes não sabe escrever.<br />

E o que nos permite afi rmar isso é o conhecimento que nós leitores temos sobre<br />

esse autor. Ou seja, o mesmo exemplo ain<strong>da</strong> nos ensina que as possíveis leituras<br />

do texto dependerão do leitor. Sendo assim, torna-se necessário considerar no ato<br />

de ler a tríade: leitor, texto, autor.<br />

1.3.4 A leitura numa perspectiva discursiva: o confronto entre sujeitos<br />

Numa perspectiva discursiva, a leitura é considera<strong>da</strong> como produção de<br />

sentidos. Semelhante à perspectiva anterior, também se ressalta a leitura como um<br />

processo dinâmico que envolve sujeitos (leitor e autor) mediados pelo texto, mas<br />

enfatiza-se principalmente a leitura como práticas históricas, sociais e culturais.<br />

Nessa perspectiva, interessa-nos pensar que existem diferentes modos de leitura,<br />

decorrentes de vários fatores, dentre os quais destacamos:<br />

a) O leitor, seus objetivos de leitura (ler para quê: para cumprir uma tarefa<br />

escolar, para se informar, para se distrair, para interagir com outros leitores,<br />

para fugir do mundo?), suas histórias de leitura, suas experiências com o<br />

texto escrito (como ele lê, o que lê, onde, quando, com que freqüência lê?);<br />

b) O texto, sua historici<strong>da</strong>de (quando foi escrito, como foi lido antes (se foi<br />

lido), a sua relação com o conteúdo do dizer, com outros textos que tratam<br />

do mesmo assunto);<br />

c) O autor, suas histórias de leitura, suas histórias de escritor que vali<strong>da</strong>m<br />

as possíveis leituras (escritor de vários textos, de vários leitores, escritores<br />

anônimos, “mercadores de coisas nenhuma”);<br />

d) As instituições (dentre as quais a Escola, a Igreja, a Família) que impõem leituras,<br />

obrigam o leitor a ler de tal maneira e proíbem ou limitam outras leituras;<br />

e) Os gêneros textuais/discursivos que já impõem uma maneira de ler o<br />

texto. Sabemos, por exemplo, que uma pia<strong>da</strong> não pretende, em princípio,<br />

provar o choro em ninguém; que uma lista telefônica possui um objetivo<br />

bem específi co; que uma carta já possui objetivos os mais diversos (fazer rir,<br />

fazer chorar, solicitar algo, informar algo) etc5 .<br />

f) Os suportes (o livro, a revista, o jornal, o outdoor, o e-mail etc.) que também<br />

determinam diferenças maneiras de circulação e modos de recepção do texto.<br />

Todos esses fatores demonstram que o leitor não é totalmente livre para ler<br />

o que quiser ou como quiser ou, até mesmo, onde quiser. Lembremos, para efeito<br />

de ilustração, que, durante uma aula, a leitura permiti<strong>da</strong> é aquela determina<strong>da</strong><br />

pelo professor; durante uma missa ou um culto, difi cilmente será permitido que<br />

alguém leia um romance, um livro de pia<strong>da</strong>, ou mesmo uma receita de bolo.<br />

Evidentemente, esses exemplos também demonstram que o leitor procura brechas<br />

para burlar as imposições <strong>da</strong>s instituições.<br />

Esperamos ter deixado claro que compreender a leitura como prática<br />

signifi ca conceber a articulação entre a leitura e a escrita. Quem escreve produz<br />

sentidos e quem lê produz sentidos. Quem escreve constrói do seu lugar de<br />

escritor um leitor (ou a imagem de um leitor) que pode corresponder ou não


ao leitor real. O leitor real, por sua vez, depara-se com um objeto de leitura (o<br />

texto) com o qual estabelece uma relação complexa, quer seja de identifi cação, de<br />

estranhamento, de indiferença, de alheamento. O confronto entre esses sujeitos<br />

– aquele que escreve e aquele que lê – constrói possibili<strong>da</strong>des de sentidos. É por<br />

isso que vários autores, dentre os quais Orlandi (1986), afi rmam que a leitura não<br />

é uma questão de tudo ou na<strong>da</strong>, ou seja, não existe um grau zero de leitura, assim<br />

como não existe um grau dez. Trata-se de níveis de leitura.<br />

Essas considerações nos levam a destacar que o texto tem sido pensado<br />

ca<strong>da</strong> vez mais em relação às suas condições de produção de escrita e de leitura.<br />

Do ponto de vista do ensino <strong>da</strong> leitura, essa perspectiva nos permite reconhecer<br />

algumas questões básicas. Quanto à perspectiva do autor, temos que considerar:<br />

quem (o autor) escreve o que (o texto) sobre o que (o conteúdo do dizer) para<br />

quem (o leitor virtual) como (o modo de dizer) onde (o suporte do texto). Quanto<br />

à perspectiva do leitor, torna-se imprescindível considerar: quem (quem é esse<br />

leitor) ler o que (o texto), sobre o que (o conteúdo do dizer) para que (os objetivos<br />

de leitura), como (os modos de ler) etc.<br />

Notemos que, nessa perspectiva, do ponto de vista do ensino <strong>da</strong> leitura,<br />

é preciso considerar a história de leitura do leitor (leitor de primeira viagem,<br />

leitor de um texto só, de vários textos de um só gênero, de vários textos de<br />

diferentes gêneros?). Dito em outras palavras, as possibili<strong>da</strong>des de leitura do<br />

texto dependem não apenas do conhecimento lingüístico do leitor, mas também<br />

de suas experiências de leitura, de suas histórias de leitor. Nesse sentido, o papel<br />

do professor ganha uma outra dimensão. Como afi rma Geraldi (1993), cabe ao<br />

professor entender a “caminha<strong>da</strong> interpretativa” do aluno-leitor e contribuir para<br />

ampliar essas possibili<strong>da</strong>des de leitura. Quando esse professor coteja leituras<br />

diferentes de um mesmo texto, quando trabalha com diferentes textos, diferentes<br />

gêneros, explora diferentes suportes, certamente estará contribui para ampliar a<br />

história de leitura de seus alunos.<br />

Passaremos à leitura de um texto para que possamos observar vários dos<br />

aspectos até aqui discutidos. Partiremos de um texto apresentado em um livro<br />

didático (LD) do Ensino Médio. A opção por recorrer ao LD deve-se, em primeiro<br />

lugar, ao fato de esse<br />

ser um instrumento<br />

de ensino a que o<br />

professor, direta<br />

ou indiretamente,<br />

sempre recorre;<br />

segundo, gostaríamos<br />

de observar como o<br />

professor poderá ir<br />

além do que propõe o<br />

LD. Passemos, então,<br />

ao texto apresentado<br />

no LD e às ativi<strong>da</strong>des<br />

propostas pelos<br />

autores do manual:<br />

81


6 Essa seria uma<br />

oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> para<br />

desenvolvermos outras<br />

ativi<strong>da</strong>des, por exemplo,<br />

nos informar mais acerca<br />

desse autor, caso já não<br />

saibamos, e para ler<br />

outros textos seus.<br />

82<br />

Inicialmente chamamos a sua atenção para as questões 1 e 2 formula<strong>da</strong>s<br />

pelos autores do LD acerca <strong>da</strong> tira de Angeli. Consideramos não ser exagero<br />

afi rmar que essas questões têm como objetivo simplesmente verifi car se o aluno<br />

domina os conceitos de conotação e denotação. Esse nos parece um objetivo<br />

extremamente limitador, à medi<strong>da</strong> que restringe a leitura do texto à identifi cação<br />

<strong>da</strong> dicotomia: sentido denotativo/sentido conotativo e isso é muito pouco para<br />

a leitura de um texto. Na ver<strong>da</strong>de, não se pode sequer dizer que os autores do<br />

LD propõem uma leitura do texto. Além disso, o texto que aparece ao lado <strong>da</strong>s<br />

perguntas passa a não ter nenhuma função, a menos que o professor amplie a<br />

leitura proposta pelos autores do LD. Vejamos, então, que, caso o professor não<br />

perceba essa limitação, perderá uma ótima oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de realizar com os<br />

alunos vários modos de ler esse texto.<br />

Façamos um exercício de leitura. Primeiro iniciemos observando os aspectos<br />

lingüísticos do texto. A expressão “Yes, nós temos...” se completa lingüisticamente<br />

a ca<strong>da</strong> quadrinho apresentado, e ca<strong>da</strong> vez traz novos elementos ao texto e<br />

constrói a possibili<strong>da</strong>de de novas leituras. Vejamos esquematicamente como se<br />

apresentam os complementos do verbo ter:<br />

“Yes, nós temos ... um corrupto a ca<strong>da</strong> esquina.”<br />

“Yes, nós temos...um assalto a ca<strong>da</strong> segundo.”<br />

“Yes, nós temos...um analfabeto a ca<strong>da</strong> metro quadrado.”<br />

“Yes, nós temos...um desempregado em ca<strong>da</strong> família”<br />

“Yes, nós temos...bilhões de eleitores e contribuintes.”<br />

Não podemos nos esquecer de que a ca<strong>da</strong> ocorrência a linguagem nãoverbal<br />

reforça a signifi cação <strong>da</strong> linguagem verbal. Ademais, precisamos também<br />

registrar a importância <strong>da</strong> reticência para o encadeamento sintático que se dá<br />

sempre diferente a ca<strong>da</strong> retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> expressão “Yes, nós temos...”. O leitor vê<br />

passar diante de si um fi lme sobre as mazelas do Brasil. Do Brasil, como assim<br />

se esses são problemas comuns a vários outros países? E como sabemos se em<br />

lugar nenhum do texto aparece a palavra Brasil? Vamos ao último quadrinho ou<br />

à última cena para ver se encontramos alguma resposta. Há alguma palavra que<br />

nos ajude? O leitor apressado dirá: Não, lá aparecem três personagens: dois – que,<br />

pela caricatura <strong>da</strong>s roupas, <strong>da</strong>s máquinas fotográfi cas, pode-se inferir tratar-se de<br />

turistas – e um outro – que, caso se aceite a inferência sobre os turistas, poderá<br />

ser considerado como um guia turístico. O leitor atento verá que, no canto direito<br />

do último quadro, aparece o nome do autor: Angeli6 . E fora do quadro, aparece<br />

o nome do jornal (o suporte) do qual foi retirado o texto de Angeli e a <strong>da</strong>ta de<br />

sua publicação. Esses <strong>da</strong>dos – o autor, o suporte do texto, a <strong>da</strong>ta de publicação<br />

– nos informam que o texto trata dos problemas do Brasil, retratados em 2000. O<br />

leitor, que lê em 2007, atento à reali<strong>da</strong>de política, econômica, cultural e social do<br />

país, reconhece as mazelas enumera<strong>da</strong>s e é capaz de recuperar a ironia presente<br />

no último quadrinho. Mas não só isso.<br />

O autor do texto – quando usa a expressão Yes, nós temos... – cria uma<br />

relação intertextual explicita, remetendo diretamente para um outro texto: “Yes,<br />

Nós temos banana”, canção de Braguinha e Alberto Ribeiro, criado no fi nal <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 30 e bastante conheci<strong>da</strong> até hoje, visto que atualiza<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> carnaval.


Observemos que os autores do LD, embora não explorem essa relação entre os<br />

dois textos, reconhecem essa intertextuali<strong>da</strong>de, visto que colocam informações<br />

sobre esse outro texto em um quadro ao lado <strong>da</strong>s perguntas elabora<strong>da</strong>s. Nesse<br />

caso, o que signifi ca ler esse texto de Angeli – recheado de ironia e humor –<br />

confrontando-o com o texto de Braguinha – que, na voz de Carmem Miran<strong>da</strong>,<br />

foi cantado e decantado como uma “ingênua” marchinha de carnaval? Signifi ca,<br />

dentre outras possibili<strong>da</strong>des, confrontar maneiras diferentes de ler o Brasil, o seu<br />

povo e seus problemas. Esse confronto, necessário para a compreensão do texto<br />

de Angeli – nos levaria a perceber que são vários os sentidos que poderíamos<br />

atribuir às bananas e aos bananas em diferentes épocas e lugares.<br />

Esse exemplo nos mostra, por um lado, que a construção de sentidos<br />

para o texto depende <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de do leitor de estabelecer relações de sentido<br />

entre o que é dito em um texto e o que é dito em outros textos. Por outro lado,<br />

nos ensina que existem sentidos, mas esses não podem ser qualquer um, já que<br />

existem determinações (lingüísticas, sociais, culturais e históricas), relaciona<strong>da</strong>s<br />

aos textos, aos leitores e aos autores, que limitam os sentidos.<br />

Na escola, muitas vezes, o aluno lê apenas para dizer que sabe ler (que<br />

sabe decodifi car ou vocalizar o escrito). As perspectivas aqui apresenta<strong>da</strong>s<br />

demonstram que é possível ensinar a ler e que esse ensino não se encerra no<br />

mero reconhecimento do código lingüístico. Os objetivos de leitura, ain<strong>da</strong> que<br />

na escola, podem e devem ser ampliados; as estratégias de leitura podem ser<br />

múltiplas. Enfi m, as possibili<strong>da</strong>des de leitura se ampliam quando reconhecemos<br />

que os textos não possuem um sentido, mas sentidos; quando confrontamos<br />

leituras, textos; quando sabemos que não se lê o mesmo texto <strong>da</strong> mesma maneira,<br />

ain<strong>da</strong> que o leitor seja o mesmo; quando reconhecemos que, a ca<strong>da</strong> vez que<br />

voltamos a um texto, o lemos de modo diferente, exatamente porque já não<br />

somos os mesmos: mudou nosso conhecimento lingüístico, nosso conhecimento<br />

de mundo, nossos objetivos já não são os mesmo, até nosso humor alterou-se.<br />

AGORA É SUA VEZ: Escolha um livro didático de Língua Portuguesa<br />

(de preferência um que seja adotado em escolas do seu município, quer seja<br />

do Ensino Fun<strong>da</strong>mental ou Médio) e analise uma seção dedica<strong>da</strong> à leitura.<br />

Comente a natureza <strong>da</strong>s perguntas formula<strong>da</strong>s. Você considera que elas<br />

exigem do aluno uma compreensão efetiva do texto? São questões que<br />

priorizam a refl exão do aluno ou simplesmente uma colagem do texto <strong>da</strong>do<br />

para leitura? Para aprofun<strong>da</strong>r a sua análise, leia o texto Política de leitura<br />

para o ensino médio: o PNLEM e o LD, de autoria de Maria Ester Vieira<br />

de Sousa, que se encontra disponível na plataforma moodle, os textos sobre<br />

leitura, disponíveis no site www.cchla.ufpb.br/leituranapb, e os três primeiros<br />

capítulos do livro Do mundo <strong>da</strong> leitura para a leitura do mundo de Marisa<br />

Lajolo.<br />

83


UNIDADE II<br />

CONCEITO DE GÊNERO: DESCRIÇÃO E FUNCIONALIDADE<br />

Conforme esclarecemos no início deste capítulo, a II <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tem como<br />

objetivo apresentar uma visão geral do conceito de gênero – partindo <strong>da</strong><br />

tradição literária até os dias atuais –, bem como sua descrição e funcionali<strong>da</strong>de.<br />

Comecemos então, por uma revisão <strong>da</strong> literatura sobre a noção de gênero.<br />

2.1 Uma breve retrospectiva<br />

No campo dos estudos <strong>da</strong> linguagem, os gêneros textuais talvez sejam um<br />

dos objetos de estudo que melhor representem a interdisciplinari<strong>da</strong>de entre as<br />

áreas de conhecimento envolvi<strong>da</strong>s com fenômenos sócio-culturais, cognitivos<br />

e lingüísticos.<br />

O sentido do termo gênero na acepção utiliza<strong>da</strong> na lingüística esteve<br />

originalmente ligado à tradição <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de greco-latina e vinculado<br />

aos gêneros literários. Iniciou-se com Platão com o estabelecimento <strong>da</strong>s três<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de mimésis: a tragédia, a épica e a lírica. Firmou-se com Aristóteles,<br />

quando sistematizou uma teoria de gêneros e <strong>da</strong> natureza do discurso, na qual<br />

há uma estreita relação entre autor, ouvinte e gênero, <strong>da</strong>ndo origem às três<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de discurso retórico: o deliberativo, o judiciário e o epidítico. Passa<br />

pela I<strong>da</strong>de Média, Renascimento, Moderni<strong>da</strong>de até chegar aos dias atuais. Nesse<br />

percurso, a sua área de abrangência, antes restrita aos textos literários, ampliouse<br />

bastante passando a incorporar to<strong>da</strong>s as esferas de uso <strong>da</strong> língua.<br />

Nas duas últimas déca<strong>da</strong>s do século passado, era freqüente a utilização do<br />

termo gênero para se referir ao que hoje convencionamos identifi car como<br />

tipos textuais: narração, descrição, argumentação, exposição e injunção. Essa<br />

imprecisão terminológica tem persistido nos dias atuais, pois ain<strong>da</strong> é possível<br />

encontrar livros didáticos tanto na área de literatura, como nas coleções de<br />

língua portuguesa adota<strong>da</strong>s para a 2ª fase do ensino fun<strong>da</strong>mental que<br />

apresentam contradições no emprego do termo: ora utilizado em referência<br />

a um exemplar prototípico de texto como carta, resumo ou entrevista, ora<br />

em referência às seqüências ou mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des discursivas que se revelam nas<br />

estruturas do texto – descritiva, narrativa e argumentativa, representantes <strong>da</strong><br />

tipologia triádica tradicional (cf. BIASI-RODRIGUES, 2002, p.50).<br />

Até mesmo entre os especialistas <strong>da</strong> área existem problemas de caráter<br />

terminológico. A diversi<strong>da</strong>de no emprego dos termos está condiciona<strong>da</strong> à<br />

orientação teórica segui<strong>da</strong> pelos grupos de estudo. Assim, gêneros do<br />

discurso – para alguns teóricos (BAKHTIN, 1992 [1979]) - correspondem aos<br />

gêneros textuais (BRONCKART, 1999; SCHNEUWLY, 1994,1996; DOLZ,1996;<br />

MARCUSCHI, 2002) para outros. Os tipos textuais também são reconhecidos<br />

como seqüências textuais ou mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des retóricas. O que parece ter-se tornado<br />

consensual é a utilização <strong>da</strong> expressão tipo ou mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de retórica para se<br />

referir às estruturas mínimas responsáveis pela composição textual, cabendo<br />

portanto ao gênero a designação do exemplar concreto de texto.<br />

85


86<br />

Depois <strong>da</strong> divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) entre<br />

os professores do ensino público e privado, os gêneros textuais, em sua<br />

nova acepção, tornaram-se mais populares e surgiu a necessi<strong>da</strong>de de conhecêlos<br />

melhor. Existe uma forte orientação conti<strong>da</strong> nos PCN (1997) na direção<br />

de trabalhar a produção e interpretação de textos usando os gêneros como<br />

ferramenta metodológica. Para que essa orientação seja de fato adota<strong>da</strong>, e<br />

implementa<strong>da</strong> com êxito, faz-se necessário um conhecimento maior sobre os<br />

gêneros para entender melhor sua natureza social e sua constituição.<br />

2.2 Afi nal, o que vem a ser gênero?<br />

2.2.1 O conceito de gênero e tipo<br />

Schneuwly (2004) avalia que a mo<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tipologias cedeu lugar à dos<br />

gêneros. Contudo, acrescenta que, apesar de não dispensar uma grande atenção<br />

à classifi cação de tipologias, admite a necessi<strong>da</strong>de e a utili<strong>da</strong>de do conceito de<br />

tipo de texto para uma teoria do desenvolvimento <strong>da</strong> linguagem. A respeito <strong>da</strong><br />

distinção entre tipo e gênero textual, Marcuschi (2002, p.22-23) esclarece:<br />

(a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie<br />

de construção teórica defi ni<strong>da</strong> pela natureza lingüística de sua<br />

composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações<br />

lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia<br />

de categorias conheci<strong>da</strong>s como: narração, argumentação, exposição,<br />

descrição, injunção.<br />

(b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente<br />

vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa<br />

vi<strong>da</strong> diária e que apresentam características sócio-comunicativas defi ni<strong>da</strong>s<br />

por conteúdos, proprie<strong>da</strong>des funcionais, estilo e composição característica.<br />

Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros.<br />

Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta<br />

comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula<br />

expositiva, reunião de condomínio, notícia [...] carta eletrônica, bate-papo<br />

por computador, aulas virtuais e assim por diante.<br />

PESQUISAR: Para você saber mais, consulte Marcuschi (2002) e Schneuwly &<br />

Dolz, 2004, p. 37-38).<br />

2.2.1 A noção de suporte<br />

Além <strong>da</strong> distinção entre gênero e tipo, também é importante destacar a<br />

noção de suporte. Um mesmo gênero pode circular em diferentes suportes. Uma<br />

notícia pode circular em jornais ou na internet, uma crônica pode ser publica<strong>da</strong><br />

em um livro ou revista literária. Temos como exemplos de suporte: livro, jornal,<br />

revista, dicionário, televisão, outdoor, cd-rom etc.


2.3 As bases de uma teoria<br />

Vejamos se você entendeu. Um e-mail se<br />

apresenta como um gênero específi co, apresenta<br />

características particulares? Ou funciona como<br />

um suporte, por meio do qual podem circular<br />

diferentes gêneros?<br />

Um dos primeiros estudiosos a sistematizar uma teoria sobre os gêneros<br />

foi Bakhtin (1992 [1979]), que continua sendo uma referência para este tema.<br />

A sua idéia dos “tipos relativamente estáveis de enunciados”, certamente,<br />

inspirou muitos outros teóricos que a ele sucederam. Ele defendeu esta idéia,<br />

argumentando que se to<strong>da</strong> vez em que fôssemos nos comunicar, tivéssemos<br />

de criar ou inventar meios para agir lingüisticamente, a comunicação não seria<br />

possível. Caberia, então, à socie<strong>da</strong>de criar essas formas relativamente estáveis<br />

de textos – que se apresentam sob a forma de gêneros do discurso – para que<br />

servissem como elemento mediador nas interações lingüísticas. Para o autor,<br />

as pessoas se comunicam usando gêneros:<br />

Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados [...]. Os gêneros do<br />

discurso organizam a nossa fala <strong>da</strong> mesma maneira que a organizam<br />

as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a mol<strong>da</strong>r nossa fala às<br />

formas de gênero, e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem<br />

nas primeira palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a<br />

extensão) aproxima<strong>da</strong> do todo discursivo, a <strong>da</strong><strong>da</strong> estrutura composicional,<br />

prever-lhe o fi m, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo<br />

que, em segui<strong>da</strong>, no processo <strong>da</strong> fala, evidenciará suas diferenciações<br />

(BAKHTIN, 1992 [1979], p. 302).<br />

Bakhtin reconhece a grande diversi<strong>da</strong>de dos gêneros (orais e escritos),<br />

mas não apresenta uma tipologia propriamente dita. Para o autor, os gêneros<br />

discursivos dividem-se em primários (simples) – a conversação oral cotidiana<br />

e a carta pessoal – “que são constituídos em circunstâncias de comunicação<br />

verbal espontânea ” – e os gêneros secundários (complexos) – o romance, o<br />

teatro, o discurso científi co e o ideológico, e outros mais – que “aparecem em<br />

circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente<br />

mais evoluí<strong>da</strong>, principalmente escrita: artística, científi ca, sócio-política”<br />

(BAKHTIN, 1992 [1979], p. 82).<br />

Mesmo admitindo essa grande diversi<strong>da</strong>de que reveste os gêneros<br />

(já que os gêneros estão relacionados às diferentes ativi<strong>da</strong>des humanas<br />

e ao conseqüente uso <strong>da</strong> língua que é feito nessas diferentes esferas de<br />

ativi<strong>da</strong>de), Bakhtin defende que essas ativi<strong>da</strong>des – que se efetivam através<br />

de enunciados (orais e escritos) – não são aleatórias, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as condições de<br />

constituição dos enunciados.<br />

87


88<br />

Os gêneros não defi nem as situações de comunicação, são as práticas<br />

de linguagem que determinam a utilização de um determinado gênero. Estão<br />

envolvidos nesta situação de comunicação todos os elementos constitutivos de<br />

uma ativi<strong>da</strong>de de produção discursiva (lugar e papel social dos interlocutores,<br />

evento comunicativo e o objetivo <strong>da</strong> interação) que vão defi nir a natureza e<br />

constituição do gênero.<br />

Talvez seja essa uma <strong>da</strong>s contribuições bakhtinianas à teoria gêneros mais<br />

consensualmente aceita entre os teóricos que a ele sucederam: a dimensão<br />

constitutiva dos gêneros composta de três elementos (conteúdo temático, estilo<br />

e construção composicional). Estes três elementos referem-se, respectivamente,<br />

ao tema abor<strong>da</strong>do em um determinado texto; à seleção feita pelo autor sobre<br />

os recursos lingüísticos disponíveis nas línguas em geral: lexicais, gramaticais,<br />

expressivos etc e, fi nalmente, à estrutura típica de ca<strong>da</strong> gênero específi co. Ou seja,<br />

um convite apresenta uma construção composicional diferente de uma carta de<br />

apresentação, por exemplo.<br />

Como uma decorrência <strong>da</strong> evolução dos estudos sobre o tema, na<strong>da</strong> mais<br />

natural, então, que o estudo dos gêneros extrapolasse a esfera dos textos<br />

literários – tradicionalmente predominante até bem pouco tempo atrás. De<br />

acordo com Freedman & Medway (1994, p.1), as análises recentes enfocam a<br />

vinculação dessas regulari<strong>da</strong>des lingüísticas e substantivas às regulari<strong>da</strong>des<br />

nas esferas de ativi<strong>da</strong>des humanas.<br />

Portanto, essa nova maneira de enfocar o estudo sobre gênero busca uma<br />

vinculação entre a identifi cação de traços de regulari<strong>da</strong>de nos tipos de<br />

discurso com uma compreensão social e cultural mais ampla <strong>da</strong> língua<br />

em uso. Diante <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de de gêneros disponíveis na socie<strong>da</strong>de,<br />

justifi cam-se também as várias tendências encontra<strong>da</strong>s entre os grupos de<br />

estudo que se ocupam desses legítimos representantes <strong>da</strong> ação social.<br />

AGORA É SUA VEZ: Leia os exemplares de gênero abaixo e refl ita<br />

sobre seus elementos constitutivos (conteúdo temático, estilo, construção<br />

composicional) e função sócio-comunicativa. Iremos debater sobre estes<br />

questionamentos no chat.


Texto 1<br />

CRÍTICA<br />

“Seja feliz! Isto é uma ordem!”<br />

EUGÊNIO BUCCI<br />

[...] Será possível que alguém seja feliz por obediência? A felici<strong>da</strong>de pode<br />

ser produzi<strong>da</strong> por um comando, por uma ordem?<br />

Claro, qualquer um responderá que não. A idéia de felici<strong>da</strong>de, por mais<br />

precária que seja entre nós, supõe um grau mínimo de liber<strong>da</strong>de. A gente é feliz<br />

quando faz o que quer, mesmo quando ninguém consiga saber direito o que quer<br />

e o que deseja. Felia é quem sabe o que quer e o que deseja (querer e desejar são<br />

níveis diferentes do ser e se concilia com isso.<br />

[...] Pode até haver algum tipo de prazer em deixar-se dominar, mas não há<br />

felici<strong>da</strong>de nisso. A felici<strong>da</strong>de, pensamos e pensamos com razão, não se impõe.<br />

Não obstante, a felici<strong>da</strong>de nos é imposta como obrigação. Digo isso a<br />

propósito <strong>da</strong> massa ca<strong>da</strong> vez mais avassaladora <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de natalina e <strong>da</strong><br />

programação “felicidifi cante” que toma conta <strong>da</strong> TV quando chegam as festas<br />

de fi m de ano. As criancinhas produzidinhas multiculturaizinhas e devi<strong>da</strong>mente<br />

multiétnicas entoam em torno <strong>da</strong> árvore de Natal a velhíssima canção “hoje é<br />

um novo dia de um novo tempo” etc. A moça lin<strong>da</strong> chora porque ganhou um<br />

anel. Roberto Carlos geme num acorde perfeito maior. Os astros têm dentes<br />

alvos modelados na ortodôntica indústria de entretenimento e sorriem seus<br />

sorrisos pré-fabricados. Os embrulhos de Natal e os votos de feliz Ano Novo se<br />

confundem num único e ininterrupto imperativo: “Seja feliz! Isso é uma ordem!”.<br />

É incrível como o discurso que reprime se esconde por trás do discurso<br />

que vende a felici<strong>da</strong>de como a mais preciosa <strong>da</strong>s mercadorias. O discurso <strong>da</strong><br />

TV, que é o discurso do comércio disfarçado de informação e diversão, que<br />

procura estabelecer os padrões de comportamento, obriga o telespectador a ser<br />

feliz. Como se fosse um general ou um feitor de escravos, de chicote na mão.<br />

Um coman<strong>da</strong>nte que ordena: “Goze, seja feliz seu verme inútil e tristonho!” O<br />

inferno quem diria?, é feito de votos de felici<strong>da</strong>de comercial. Que não são votos,<br />

mas ordens: “Compre, embriague-se de mercadorias. E depois ache tudo ótimo,<br />

inenarrável.”[...]<br />

Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 dez. 2002. (Fragmento)<br />

89


90<br />

Ao shopping center<br />

Pelos teus círculos<br />

Vagamos sem rumo<br />

Nós almas pena<strong>da</strong>s<br />

Do mundo do consumo<br />

De elevador ao céu<br />

Pela esca<strong>da</strong> ao inferno:<br />

Os extremos se tocam<br />

No castigo eterno.<br />

Ca<strong>da</strong> loja é um novo<br />

Prego em nossa cruz.<br />

Por mais que compremos<br />

Estamos sempre nus<br />

Nós que por teus círculos<br />

Vagamos sem perdão<br />

À espera (até quando?)<br />

Da grande liqui<strong>da</strong>ção<br />

José Paulo Paes<br />

Prosas segui<strong>da</strong>s de odes mínimas.<br />

SãoPaulo: Cia. Das Letras, 2001.


UNIDADE III<br />

OS GÊNEROS TEXTUAIS E O ENSINO DA LEITURA E DA<br />

ESCRITA<br />

Finalmente, nesta terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> trataremos <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> utilização<br />

dos gêneros textuais para o ensino <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita e de suas implicações,<br />

enquanto procedimento metodológico, para o desenvolvimento dessas<br />

competências.<br />

3.1. O gênero na sala de aula<br />

Conforme já mencionamos anteriormente, a publicação dos PCN (1997)<br />

representou um signifi cativo avanço no direcionamento <strong>da</strong>do aos estudos de<br />

língua portuguesa nas escolas brasileiras.<br />

Esse documento foi elaborado dentro de uma orientação enunciativo –<br />

discursiva, respal<strong>da</strong><strong>da</strong> nas concepções teóricas bakhtinianas de língua e gênero,<br />

e alicerça<strong>da</strong> nas propostas metodológicas do grupo de Genebra, nota<strong>da</strong>mente<br />

nos trabalhos de Bronckart, Schneuwly e Dolz, já mencionados aqui e que serão<br />

melhor aprofun<strong>da</strong>dos ao longo de nossa exposição.<br />

Os PCN receberam críticas, vin<strong>da</strong>s de alguns setores <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

acadêmica e escolar, em relação ao nível de aprofun<strong>da</strong>mento teórico nele<br />

presente. O seu conteúdo foi considerado insufi ciente para <strong>da</strong>r conta de to<strong>da</strong><br />

a complexi<strong>da</strong>de conti<strong>da</strong> no conceito de gênero e na concepção de linguagem –<br />

enquanto ativi<strong>da</strong>de discursiva concebi<strong>da</strong> nas relações interpessoais – mas, ain<strong>da</strong><br />

assim, sua repercussão foi notável. Pois foi defl agra<strong>da</strong>, a partir desse momento,<br />

uma maior motivação para buscar meios efi cientes que pudessem promover uma<br />

transposição didática entre as propostas teórico-metodológicas e as ativi<strong>da</strong>des de<br />

ensino desenvolvi<strong>da</strong>s em sala de aula.<br />

Segundo Rojo (2000), um dos aspectos positivos nesse documento é que<br />

eles não foram concebidos como grades de objetivos e conteúdos pré-fi xados,<br />

mas como diretrizes que devem nortear os currículos e seus conteúdos mínimos,<br />

adequados às necessi<strong>da</strong>des e características culturais e políticas regionais,<br />

procurando fomentar a refl exão sobre os currículos estaduais e municipais.<br />

A proposta presente nos PCN opõe-se ao ensino tradicional de língua, de<br />

caráter mais normativo, sugerindo práticas alternativas de trabalho e refl exão<br />

lingüística que se apóiam, substancialmente, na interpretação e produção de<br />

textos diversos.<br />

Pode-se depreender desses princípios norteadores que os gêneros textuais<br />

são eleitos como legítimos objetos de ensino escolar, intensifi cando, portanto, os<br />

debates sobre o tema. O interessante nesses debates é que eles trazem à tona<br />

uma refl exão sobre uma prática que nunca esteve ausente <strong>da</strong> escola, nem<br />

de qualquer outra instância de vi<strong>da</strong> social. Os gêneros estão tão incorporados<br />

à nossa vi<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong>de que muitas vezes não nos <strong>da</strong>mos conta de sua<br />

existência materializa<strong>da</strong>.<br />

91


1 No original: “School is a<br />

rather peculiar place. Its<br />

mission is peculiar and<br />

so are the discoursive<br />

forms which optimaly<br />

carry that mission. It<br />

is at once a refl ector<br />

of the outside world<br />

and discursively very<br />

diff erent from the outside<br />

world. Because school<br />

needs to concentrate<br />

the outside world into<br />

the generalizations<br />

that constitute school<br />

knowledge, it is<br />

epistemologically and<br />

discursively very diff erent<br />

from most of every<strong>da</strong>y<br />

life in the outside world”<br />

(CAZDEN,1988, p.37).<br />

92<br />

Os gêneros sempre estiveram presentes na sala de aula, mas em número<br />

reduzido e não diversifi cado, e sempre revestidos de caráter institucionalmente<br />

escolar. Se, por um lado os alunos têm tido acesso – do ponto de vista <strong>da</strong> leitura –<br />

a uma maior diversi<strong>da</strong>de de gêneros, por outro lado, no que se refere à produção<br />

escrita, essa diversi<strong>da</strong>de praticamente não existe.<br />

Não obstante as orientações divulga<strong>da</strong>s nos PCN há quase dez anos,<br />

na nossa reali<strong>da</strong>de educacional, os alunos ain<strong>da</strong> têm pouca oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de<br />

produzir textos concretos, reais e ver<strong>da</strong>deiramente signifi cativos. De maneira<br />

geral, não se exercita a linguagem escrita (do ponto de vista discursivo) em<br />

sala de aula, o que se exercita predominantemente é a língua em seus<br />

domínios sintático, morfológico, lexical e fonológico. Em relação aos gêneros<br />

orais, a situação não é muito diferente, poucos livros didáticos exploram o<br />

trabalho com os gêneros nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Reside, aí, um dos grandes desafi os a ser vencido por aqueles gestores<br />

em educação envolvidos com a formação de professores. É necessário que<br />

os professores tenham acesso a outros textos que sirvam para aprofun<strong>da</strong>r<br />

as concepções teóricas subjacentes nas propostas dos PCN, de modo que<br />

estas possam ser implementa<strong>da</strong>s em sala de aula, levando-se em conta as<br />

complexi<strong>da</strong>des e especifi ci<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> contexto educacional.<br />

Se os gêneros são formas de agir em socie<strong>da</strong>de, certamente não podemos<br />

atuar com todos os gêneros em to<strong>da</strong>s as instâncias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sócio-comunicativa.<br />

Operamos com gêneros particulares em situações particulares, e na escola não<br />

poderia ser diferente.<br />

Na visão de Cope e Kalantz is (1993, p.8), inspirados em Cazden (1988), a<br />

escola é um lugar um tanto peculiar. Sua missão é peculiar assim como as formas<br />

discursivas que melhor desempenham essa missão. É, ao mesmo tempo, refl exo<br />

do mundo exterior, mas discursivamente muito diferente dele. Por precisar<br />

concentrar o mundo exterior nas generalizações que constituem o conhecimento<br />

escolar, a escola torna-se epistemológica e discursivamente diferente <strong>da</strong> maior<br />

parte <strong>da</strong>s ações cotidianas desse mundo exterior1 .<br />

Schneuwly e Dolz (2004, p.76) compartilham a mesma opinião:<br />

A particulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação escolar reside no seguinte fato que torna a<br />

reali<strong>da</strong>de bastante complexa: há um desdobramento que se opera em que<br />

o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo<br />

tempo, objeto de ensino-aprendizagem. O aluno encontra-se, necessariamente,<br />

num espaço do “como se”, em que o gênero fun<strong>da</strong> uma prática de linguagem<br />

que é, necessariamente, em parte, fi ctícia, uma vez que é instaura<strong>da</strong> com fi ns<br />

de aprendizagem (grifo do autor).<br />

Essa situação desdobra-se em três diferentes contextos para se entender o<br />

lugar <strong>da</strong> comunicação em sala de aula.<br />

1. Primeira perspectiva→ Há o desaparecimento <strong>da</strong> comunicação em favor<br />

<strong>da</strong> objetivação. Segundo os autores, o gênero transforma-se em uma<br />

forma lingüística pura. O gênero passa de instrumento de comunicação a<br />

uma forma de expressão do pensamento, <strong>da</strong> experiência ou <strong>da</strong> percepção,<br />

perdendo, então, sua relação com uma situação de comunicação autêntica.


Para Schneuwly e Dolz (op. cit.), os gêneros escolares são utilizados como<br />

referência para a construção de textos no âmbito <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção/composição. Nesse<br />

contexto de produção destaca-se a seqüência tripartite estereotípica – que marca<br />

o avanço através <strong>da</strong>s séries escolares – mais conheci<strong>da</strong> e canônica: narração,<br />

descrição e dissertação (cuja origem remete à tradição literária e retórica).<br />

Os autores resumem dizendo que esses gêneros escolares-guia são produtos<br />

culturais <strong>da</strong> escola, usados como instrumento para desenvolver e avaliar a<br />

capaci<strong>da</strong>de de escrita dos alunos.<br />

Os gêneros, nessa situação específi ca, passam a parametrizar as formas<br />

de concepção do desenvolvimento <strong>da</strong> escrita. Nesse percurso tornam-se<br />

independentes <strong>da</strong>s práticas sociais historicamente situa<strong>da</strong>s e se vinculam às<br />

necessi<strong>da</strong>des dos próprios objetos descritos, de uma reali<strong>da</strong>de própria. Segundo<br />

Schneuwly e Dolz (2004) os gêneros naturalizam-se.<br />

2. A segun<strong>da</strong> perspectiva toma a escola como autêntico lugar de comunicação,<br />

com as situações escolares produzindo suas próprias condições de<br />

produção e recepção de textos: na classe, entre alunos; entre classes de<br />

uma mesma escola; entre escolas. Esses contextos interacionais gerariam os<br />

textos livres, seminários, correspondência escolar, jornal <strong>da</strong> classe, avisos,<br />

comunicados à direção <strong>da</strong> escola, resumos, resenhas, romances coletivos,<br />

poemas individuais. Nessa situação também temos “gêneros escolares”, só<br />

que nesse caso eles são resultado do funcionamento escolar.<br />

3. A terceira perspectiva representa a negação <strong>da</strong> escola como lugar de<br />

comunicação. Os gêneros externos à escola entram no espaço escolar<br />

como se houvesse continui<strong>da</strong>de entre o que é externo e interno à escola. O<br />

trabalho com os gêneros, então, teria como objetivo levar o aluno a dominar<br />

vários gêneros, seguindo os modelos de referência exteriores à escola, e<br />

que atendessem às exigências de diversifi car a escrita e de criar situações<br />

autênticas de comunicação.<br />

Baseando-se nesse mesmo trabalho de Schneuwly e Dolz, Rojo (s/d:9)<br />

apresenta uma distinção entre gêneros escolares, que representariam a segun<strong>da</strong><br />

situação de comunicação, portanto, autênticos produtos <strong>da</strong> escola; e gêneros<br />

escolarizados, utilizados pela escola como objeto de ensino, especifi camente, <strong>da</strong><br />

escrita. Os gêneros ditos escolarizados referem-se tanto à primeira situação de<br />

comunicação, quanto à terceira, porque em ambas os gêneros não reproduzem as<br />

práticas sociais que a escola produz.<br />

No entanto, os próprios autores identifi cam aspectos positivos e negativos<br />

nas três perspectivas e defendem uma reavaliação <strong>da</strong>s diferentes abor<strong>da</strong>gens.<br />

Segundo eles, é importante tomar consciência sobre o papel central dos gêneros<br />

como objeto e instrumento de trabalho para o desenvolvimento <strong>da</strong> linguagem.<br />

Para isso, devemos levar em conta dois aspectos:<br />

a) a escolha de um gênero na escola é di<strong>da</strong>ticamente direciona<strong>da</strong>, visando a<br />

objetivos de aprendizagem precisos: primeiramente aprender, dominar o<br />

gênero para depois conhecê-lo, apreciá-lo, e compreendê-lo; em segundo<br />

lugar, desenvolver capaci<strong>da</strong>des que ultrapassam e que são transferíveis<br />

para gêneros próximos ou distantes.<br />

93


94<br />

b) o gênero sofre uma transformação ao ser transportado para um outro lugar<br />

social diferente de onde foi criado. Essa transformação faz com que perca<br />

seu sentido original, e passe a ser “gênero a aprender, embora permaneça<br />

gênero a comunicar”(SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 81). Os alunos<br />

precisam ser expostos a situações de comunicação que se aproximem <strong>da</strong>s<br />

genuínas situações de referência, que lhes sejam signifi cativas, para que<br />

eles possam dominá-las, mesmo sabendo que os objetos são outros.<br />

Aprofunde esses conhecimentos em Schneuwly e Dolz (2004, p. 71-90). Depois,<br />

redija um pequeno texto mostrando de que maneira esses aspectos destacados<br />

acima podem se relacionar com uma situação de produção textual.<br />

Certamente é impossível criar um simulacro <strong>da</strong>s várias esferas de ação social<br />

em um espaço tão reduzido e limitado como a sala de aula e a própria escola,<br />

mas é possível refl etir sobre essas esferas de ação social e suas formas<br />

de linguagem, fazendo um trabalho comparativo, analítico e interpretativo. É<br />

importante que, desde cedo, os alunos se dêem conta de to<strong>da</strong>s as particulari<strong>da</strong>des<br />

que o trabalho com os gêneros encerra. Convém que a refl exão ocorra tanto no<br />

nível funcional como no formal, levando-lhes a in<strong>da</strong>gações do tipo:<br />

a) Por que é a situação comunicativa que determina a escolha do gênero?<br />

b) Quais fatores interferem na escolha dos gêneros?<br />

c) Quais as formas possíveis em que um <strong>da</strong>do gênero pode se apresentar sem<br />

comprometer sua natureza?<br />

d) O que determina as difi cul<strong>da</strong>des na produção e compreensão de alguns<br />

gêneros por certos grupos sociais?<br />

AGORA É SUA VEZ: Caso você já tenha tido alguma experiência em sala<br />

de aula, desenvolvendo ativi<strong>da</strong>des de produção textual, ou mesmo que não<br />

tenha qualquer experiência nessa área, refl ita sobre esses questionamentos e<br />

outros relacionados ao tema. O fórum é um bom espaço para trocar idéias<br />

com outros colegas a respeito desse tema.<br />

Recapitulando<br />

Agora é sua vez, vejamos se você entendeu:<br />

1 Quando o professor desenvolve em sala de aula o trabalho de elaboração<br />

de um jornal, em que contexto de comunicação se insere essa ativi<strong>da</strong>de?<br />

2 E, quando solicitarmos a você, caro aluno, a elaboração de um gênero<br />

mais acadêmico, como uma resenha, um ensaio, ou até mesmo um<br />

resumo? Qual seria o contexto dessa prática?<br />

3 Em sua opinião, é mais funcional trabalhar apenas com os gêneros<br />

autenticamente escolares?<br />

4 O que signifi ca a naturalização dos gêneros?


3.2 Os gêneros e o aprendizado <strong>da</strong> escrita<br />

O fato de trabalharmos com uma perspectiva de práticas lingüísticas<br />

signifi cativas e funcionais leva-nos a procurar investigar quais os contextos<br />

em que a escrita assume esse papel na vi<strong>da</strong> dos educandos.<br />

Como falantes competentes de sua língua materna, as crianças já desde<br />

cedo utilizam exemplarmente os gêneros orais que lhes são específi cos em<br />

sua rotina diária: isso ocorre quando narram acontecimentos (atendendo a<br />

objetivos os mais variados possíveis), quando ensinam a algum colega um<br />

tipo de jogo ou brincadeira, quando orientam um colega em uma ativi<strong>da</strong>de<br />

na escola, quando telefonam para alguém, etc. Elas sabem também que uma<br />

solicitação / mensagem qualquer, a depender do destinatário envolvido na<br />

situação discursiva (professor ou pais), tende a mu<strong>da</strong>r consideravelmente.<br />

Enfi m, existem muitos outros exemplos que poderiam ser apresentados. No<br />

entanto, esses são sufi cientes para demonstrar como ontogeneticamente os<br />

gêneros orais se fazem presentes em suas vi<strong>da</strong>s.<br />

A apropriação pelas crianças desses gêneros orais ocorre naturalmente,<br />

devido às interações lingüísticas entre familiares, amigos e demais membros<br />

<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> onde elas estão inseri<strong>da</strong>s e em função de suas necessi<strong>da</strong>des<br />

comunicativas básicas. Essas deman<strong>da</strong>s são necessárias para que possamos<br />

interagir com os outros membros de um grupo social, ou dizendo de outra<br />

forma, para que possamos efetivamente viver em socie<strong>da</strong>de. Nesse processo de<br />

apropriação, a cultura é a grande responsável pela transmissão dos modelos de<br />

gêneros.<br />

Em relação aos gêneros escritos, a situação é um pouco diferente porque<br />

as deman<strong>da</strong>s vão surgindo mais lentamente. É só em uma segun<strong>da</strong> etapa do<br />

desenvolvimento cognitivo <strong>da</strong> criança que a escrita começa a se fazer necessária<br />

para ela. Inicialmente surge como uma necessi<strong>da</strong>de de se identifi car nos objetos,<br />

demarcar sua proprie<strong>da</strong>de; simultaneamente apresentam-se as exigências<br />

institucionais formais (as tarefas escolares); depois vêm os recadinhos para<br />

os pais (ativi<strong>da</strong>des essas que vão depender do contexto cultural familiar),<br />

os bilhetinhos carinhosos para os professores, as declarações de amor para<br />

os colegas, um pouco mais tarde vêm as revistas de passatempos, os jogos<br />

escritos (ededonha) 2 e mais raramente os diários, especialmente para as<br />

meninas e em determinados contextos sócio-culturais. Ain<strong>da</strong> que elas tenham<br />

contato com um bom número de gêneros escritos (propagan<strong>da</strong>s, rótulos<br />

de embalagens, convites, anúncios etc.), a necessi<strong>da</strong>de de interagir com os<br />

outros, a partir do posicionamento <strong>da</strong> criança como produtora de gêneros<br />

escritos, surgirá mais tardiamente.<br />

Com base no que foi sumariamente exposto, podemos constatar que os<br />

gêneros orais se fazem mais presentes na fase inicial de desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita, mas essa predominância <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de não se restringe<br />

a essa fase: ela nos acompanha por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>. Essa constatação não podia ser<br />

mais óbvia, uma vez que, no nosso cotidiano, geralmente interagimos de modo<br />

mais imediato com os outros através <strong>da</strong> linguagem oral. Até mesmo o adulto<br />

com um bom domínio <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita, dependendo de suas ativi<strong>da</strong>des<br />

profi ssionais, pode ter pouco acesso ao manuseio e à produção de certos<br />

2 Trata-se de uma<br />

brincadeira muito<br />

popular entre as crianças:<br />

sorteiam uma letra e<br />

vão escrevendo nomes<br />

de objetos variados,<br />

frutas, animais, ci<strong>da</strong>des,<br />

apenas iniciados com a<br />

letra escolhi<strong>da</strong>. Ganham<br />

aqueles que mais<br />

conseguem preencher as<br />

lacunas com os nomes.<br />

95


96<br />

gêneros escritos. Não podemos nos esquecer de que a escrita é uma ativi<strong>da</strong>de<br />

funcionalmente orienta<strong>da</strong>.<br />

Assim, para que o ensino <strong>da</strong> escrita seja realmente produtivo, devemos<br />

tentar fazer com que a escrita se torne necessária para os aprendizes, e que<br />

por meio dela, possam ampliar sua área de atuação lingüística em seu meio<br />

social. No entanto, os professores devem estar conscientes <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de<br />

atingir níveis uniformes de signifi cação e funcionali<strong>da</strong>de escrita para todos<br />

os alunos, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as diferenças individuais.<br />

Os alunos devem ser expostos a uma série de ativi<strong>da</strong>des de leitura e de<br />

escrita que, conjuntamente, consigam fazê-los atuar sócio-cognitivamente no<br />

mundo que os cerca, assim como ocorre com a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de oral. E nessa<br />

trajetória, o trabalho com os gêneros se faz necessário na medi<strong>da</strong> em que<br />

traz (ou pelo menos tenta trazer) as práticas sociais para dentro <strong>da</strong> sala de<br />

aula.<br />

Os gêneros textuais se apresentam, então, como instrumentos efi cazes<br />

de mediação no processo de apropriação e uso <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita, mas sua<br />

efi ciência depende de um planejamento didático criterioso e comprometido com<br />

a aprendizagem dos alunos.<br />

Schneuwly e Dolz (2004) afi rmam que ain<strong>da</strong> não existe – para a expressão<br />

oral e escrita – um currículo que apresente uma divisão dos conteúdos de ensino<br />

e uma previsão <strong>da</strong>s principais aprendizagens. Esse currículo deveria conter em<br />

sua formação, a preocupação com a “progressão” que se apresenta como uma<br />

organização temporal para se alcançar uma boa aprendizagem. Este argumento,<br />

associado à grande diversi<strong>da</strong>de dos gêneros (visto aqui como fator impeditivo para<br />

uma sistematização), o impediu de tomá-los como base de uma progressão. Por<br />

outro lado, o objeto <strong>da</strong>s tipologias não é o texto, nem tampouco o gênero, e sim as<br />

operações de linguagem constitutivas do texto. Por essa razão, Schneuwly e Dolz<br />

(op.cit, p. 60-61) organizaram um agrupamento de gêneros em torno de seus tipos<br />

textuais predominantes por se prestarem a uma melhor classifi cação didática.<br />

Consulte, nas páginas cita<strong>da</strong>s no parágrafo acima, a proposta dos<br />

agrupamentos de gêneros.<br />

3.3 Os gêneros e a construção <strong>da</strong> textuali<strong>da</strong>de<br />

Com base nas defi nições de texto, discurso e gênero, apresenta<strong>da</strong>s neste<br />

módulo, podemos entender que os textos se materializam em gêneros específi cos.<br />

Sendo assim, os parâmetros de textualização vão variar de um gênero para outro,<br />

não podendo ser defi nidos antecipa<strong>da</strong>mente para todos os textos. As condições<br />

de produção que envolvem contexto, interlocutores, tema, fatores pragmáticos<br />

vão defi nir a linguagem e a estrutura organizacional do texto. Noções como<br />

coesão, coerência, informativi<strong>da</strong>de, intertextuali<strong>da</strong>de, situacionali<strong>da</strong>de etc.,<br />

estarão diretamente relaciona<strong>da</strong>s a aspectos funcionais dos gêneros, já que eles<br />

se caracterizam mais por suas funções sócio-comunicativas e menos por suas<br />

regulari<strong>da</strong>des formais.


Saiba mais: A lingüística textual surgiu na déca<strong>da</strong> de 1960, em um contexto em<br />

que se destacavam as disciplinas que tomam o texto como objeto de estudo,<br />

representativas de um novo enfoque de investigação <strong>da</strong> linguagem. Segundo<br />

Marcuschi (1983, p. 12-13), o tema <strong>da</strong> lingüística textual<br />

“[...] abrange a coesão superfi cial ao nível dos constituintes lingüísticos,<br />

a coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de<br />

pressuposições e implicações no nível pragmático <strong>da</strong> produção do sentido no<br />

plano <strong>da</strong>s ações e intenções. Em suma, a LT (Lingüística Textual) trata o texto<br />

como um ato de comunicação unifi cado num complexo universo de ações<br />

humanas. Por um lado deve preservar a organização linear que é o tratamento<br />

estritamente lingüístico abor<strong>da</strong>do no aspecto <strong>da</strong> coesão e, por outro lado, deve<br />

considerar a organização reticula<strong>da</strong> ou tentacular, não linear, portanto, dos<br />

níveis de sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e<br />

funções pragmáticas.”<br />

Consulte Koch & Travaglia (1989) para um maior aprofun<strong>da</strong>mento sobre essas<br />

noções.<br />

Isso equivale a dizer que não podemos entender noções como coesão,<br />

coerência e informativi<strong>da</strong>de, por exemplo, dissocia<strong>da</strong>s do gênero e <strong>da</strong>s condições<br />

de produção que condicionam o seu uso e circulação. Tais noções se justifi cam<br />

no texto e nos efeitos de sentidos pretendidos pelo autor, tendo em vista seus<br />

possíveis leitores. Não se lê, nem se escreve um poema <strong>da</strong> mesma forma que se<br />

lê e se escreve um artigo de opinião, um artigo científi co, um anúncio publicitário<br />

ou tantos outros gêneros textuais que circulam em nossa socie<strong>da</strong>de. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

os elementos de natureza extra-lingüística passam a ser responsáveis pelo<br />

processo de textualização.<br />

Tome-se como exemplo o caso de um anúncio de uma campanha<br />

publicitária para o dia dos pais, exposto em um outdoor, na ci<strong>da</strong>de de Recife, em<br />

2002, e um poema de autoria desconheci<strong>da</strong>.<br />

Tem pai que é mãe<br />

Subi a porta e fechei a esca<strong>da</strong>.<br />

Tirei minhas orações e recitei meus sapatos.<br />

Desliguei a cama e deitei-me na luz<br />

Tudo porque<br />

Ele me deu um beijo de boa noite.<br />

(Autor anônimo)<br />

97


98<br />

Observe que um leitor pouco atento pode considerar os dois textos<br />

incoerentes, visto que li<strong>da</strong>m com situações aparentemente opostas. No primeiro<br />

caso, tal leitor alegaria que um pai não pode ser mãe, no sentido estrito do termo,<br />

já que, rigorosamente, o homem não gera, nem possui as características biológicas<br />

<strong>da</strong> mulher. Além disso, poderia lançar outra crítica referente ao baixo teor de<br />

informação veiculado pelo enunciado, gerando questionamentos como: Que pai é<br />

esse? Em que situação ocorre a possibili<strong>da</strong>de de o pai ser mãe? No entanto, quando<br />

relacionamos o enunciado com o atual contexto histórico e com o momento<br />

social de circulação desse enunciado (comemoração do dia dos pais), ele se torna<br />

coerente. Verifi quemos, primeiramente, que ele lança mão de valores construídos<br />

socialmente, ratifi cados pelo senso comum, – o que não signifi ca dizer que sejam<br />

unanimi<strong>da</strong>de – que atribuem à mulher um maior envolvimento na vi<strong>da</strong> familiar<br />

e educacional dos fi lhos; segundo, que esse enunciado nos leva a associar (ou<br />

comparar) às ações ou atitudes de alguns pais a dessa mãe responsável pelo<br />

cui<strong>da</strong>do dos fi lhos. Da mesma forma, o momento e o lugar social de circulação<br />

desse enunciado conseguem fornecer ao leitor as pistas necessárias para o leitor<br />

recuperar o sentido sugerido pela mensagem.<br />

No caso do poema, a ocorrência de alguns verbos, acompanhados por<br />

nomes que normalmente não preenchem o seu valor predicativo – visto que<br />

deitamos na cama, mas não desligamos uma cama, a menos que essa funcione<br />

eletricamente –, representaria algo inaceitável em outros textos, mas que se torna<br />

perfeitamente autorizado no poema. A aparente incoerência justifi ca-se no último<br />

verso quando se evidencia a condição de um eu lírico apaixonado, justamente<br />

para enfatizar a perturbação que invade os que se encontram neste estado.<br />

Em relação aos elementos de coesão presentes no poema, verifi ca-se que,<br />

embora o seu uso aten<strong>da</strong> às normas <strong>da</strong> tradição coesiva, também ilustra um caso<br />

de ruptura com essa mesma tradição. Segundo Koch (1989, p. 19), a coesão diz<br />

respeito aos processos de seqüencialização que asseguram ou tornam recuperável<br />

uma ligação entre os elementos que ocorrem na superfície textual. É o que<br />

justifi ca o uso <strong>da</strong>s conjunções aditivas e, do pronome indefi nido tudo – já que<br />

ele consegue recuperar os termos mencionados antes –, e <strong>da</strong> conjunção causal<br />

porque. No entanto, essa tradição coesiva é quebra<strong>da</strong> pela utilização do pronome<br />

ele que não retoma um referente já mencionado. Essa quebra, no entanto, não<br />

compromete a compreensão do texto, não o torna incoerente, uma vez que é<br />

capaz de estabelecer uma relação exofórica, com um “ente” amado que não foi<br />

mencionado no texto.<br />

Isso nos remete ao fato de que a coerência, como a autora ressalta, pode<br />

ser vista como um princípio de interpretabili<strong>da</strong>de, liga<strong>da</strong> à inteligibili<strong>da</strong>de do<br />

texto numa situação de comunicação e à capaci<strong>da</strong>de que o receptor do texto<br />

(que o interpreta para compreendê-lo) tem para calcular o seu sentido (KOCH &<br />

TRAVAGLIA, 1989, p. 11). Identifi camos esse princípio de interpretabili<strong>da</strong>de no<br />

caso exposto acima, já que, mesmo sem um antecedente explícito e lexicalizado,<br />

o gênero poema e o domínio discursivo (literário) permitem que o leitor consiga<br />

atribuir sentido ao texto.<br />

Portanto, conforme mencionamos acima, em textos acadêmicos e<br />

instrucionais, por exemplo, os parâmetros de textualização são outros, porque<br />

são outros os objetivos de produção e de leitura. Nesse sentido, podemos dizer<br />

que o autor do texto, diante <strong>da</strong>s condições de produção, gerencia os critérios<br />

de textualização de modo a assegurar ou possiblitar ao leitor as condições de


interpretabili<strong>da</strong>de que são dependentes, dentre outros fatores, <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong>de<br />

textual.<br />

Esses dois exemplos ilustram que as condições de textualização não<br />

são imanentes ao texto e nem podem ser defi ni<strong>da</strong>s antecipa<strong>da</strong>mente, elas são<br />

requeri<strong>da</strong>s e se justifi cam no complexo processo de leitura e de produção que<br />

envolve a situação de comunicação, os gêneros, os objetivos pretendidos e os<br />

interlocutores previstos.<br />

Ain<strong>da</strong> levando em conta a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita em sua<br />

estreita relação com os movimentos dinâmicos de criação e de circulação dos<br />

gêneros, destacamos fl exibili<strong>da</strong>de e plastici<strong>da</strong>de dos gêneros em relação à forma<br />

que eles podem assumir. Assim como os textos estabelecem relações intertextuais<br />

– nas quais diferentes textos dialogam entre si –, os gêneros também podem<br />

manter relações inter-gêneros ou, segundo Marcuschi (2002), apresentam-se de<br />

forma híbri<strong>da</strong>. Isso signifi ca dizer que um gênero pode assumir a forma de outro<br />

gênero, embora preserve suas funções sócio-comunicativas. Esse fenômeno é mais<br />

comum na literatura e na linguagem publicitária.<br />

Observem o exemplo abaixo que ilustra ambos os casos: relações de<br />

intertextuali<strong>da</strong>de e de inter-gênero.<br />

Acreditamos que o leitor não tenha dúvi<strong>da</strong> de que esse texto se enquadra<br />

no gênero publicitário (ou <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>). Se não há dúvi<strong>da</strong>s, propomos agora<br />

que releia o texto e respon<strong>da</strong>:<br />

a. A que outro gênero o anúncio publicitário faz referência?<br />

b. Quais as características gerais de ca<strong>da</strong> um dos gêneros utilizados pelo<br />

autor?<br />

c. Que aspectos constitutivos remetem às marcas de intertextuali<strong>da</strong>de e às<br />

relações inter-gêneros.<br />

Gostaríamos de fi nalizar nossas refl exões chamando a atenção para<br />

o fato de que as práticas de leitura e de escrita devem ser pensa<strong>da</strong>s tendo em<br />

vista a dimensão sócio-histórico-cultural em que elas se inserem. A despeito <strong>da</strong>s<br />

especifi ci<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> processo, são fenômenos em interface que representam<br />

práticas sociais mais abrangentes nas quais os gêneros textuais desempenham um<br />

papel constitutivo.<br />

99


100<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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ZILBERMAN, R. e SILVA. E.T. (org.) Leitura: perspectivas interdisciplinares. São<br />

Paulo: Ática, 1988.<br />

101


INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Milton Marques Júnior<br />

Caros Alunos,<br />

Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o<br />

mundo <strong>da</strong> poesia heróica e <strong>da</strong> poesia dramática, a partir <strong>da</strong> leitura de textos<br />

escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico,<br />

e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores<br />

escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a<br />

funcionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas<br />

especifi ci<strong>da</strong>des. O estudo <strong>da</strong> poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a<br />

obra de Homero e de Virgílio como textos defl agradores do fenômeno literário do<br />

Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura.<br />

O objetivo desta disciplina é <strong>da</strong>r-lhes as condições necessárias para perceber<br />

na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos<br />

supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os<br />

textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de<br />

nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporanei<strong>da</strong>de. Assim, ao<br />

reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especifi camente,<br />

na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor.<br />

A nossa disciplina está divi<strong>da</strong> em quatro <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s. A primeira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a<br />

segun<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> visa ao estudo de Homero, com a leitura detalha<strong>da</strong> do Canto<br />

I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>; a terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> pretende <strong>da</strong>r uma visão genérica dos autores do<br />

teatro trágico, e a quarta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do<br />

Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>.<br />

No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente,<br />

através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no<br />

fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição <strong>da</strong><strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> um, a partir<br />

<strong>da</strong> refl exão sobre temas discutidos nas aulas.<br />

Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material<br />

que preparamos.<br />

Professor Milton Marques Júnior<br />

103


UNIDADE I<br />

UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

1.1 Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação<br />

1.1.1 O Clássico no mundo de hoje<br />

Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, diferentemente<br />

do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros itens. Qual o sentido<br />

desta diferença? Acreditamos que o termo esteja tão banalizado – característica<br />

do mundo moderno, imediato e informatizado em que vivemos – que se torna<br />

difícil entender o que é o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com<br />

a mesma veloci<strong>da</strong>de com que aparece e desaparece, na<strong>da</strong> é clássico, obviamente.<br />

É isto mesmo: se tudo é clássico, na<strong>da</strong> é clássico. Não há mais distinção possível.<br />

Mundo <strong>da</strong> imagem, não <strong>da</strong> refl exão; mundo <strong>da</strong> concepção de que a aprendizagem<br />

é fácil e não difi cultosa; mundo <strong>da</strong> atração que vem de fora e não <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de<br />

que vem de dentro. É nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer<br />

coisa de somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não<br />

há, então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta pergunta,<br />

passemos a verifi car como o termo se constrói ao longo do tempo, para ser<br />

destruído pela moderni<strong>da</strong>de em que vivemos.<br />

1.1.2 O Clássico na Grécia<br />

A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora em<br />

maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na Grécia e<br />

em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antigui<strong>da</strong>de<br />

Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre<br />

liga<strong>da</strong>s, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma<br />

antigui<strong>da</strong>de é um fato inquestionável; que essa antigui<strong>da</strong>de é totalmente clássica,<br />

isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.<br />

Os historiadores, como uma maneira didática de estu<strong>da</strong>r a História,<br />

dividiram-na em períodos. Ao primeiro período <strong>da</strong> história ocidental, chamaram<br />

de Antigui<strong>da</strong>de Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C.<br />

e o século V <strong>da</strong> Era Cristã. Assim, a Antigui<strong>da</strong>de Clássica vai <strong>da</strong> redescoberta <strong>da</strong><br />

escrita pelos gregos (século VIII a. C) à que<strong>da</strong> do império romano no Ocidente,<br />

no ano 476 (século V), resultado <strong>da</strong>s invasões dos chamados povos bárbaros,<br />

provenientes do norte <strong>da</strong> Europa, a partir do século IV. Como podemos ver,<br />

trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas, e não me refi ro<br />

necessariamente aos historiadores, aludem a esses 1300 anos como se fossem um<br />

coisa só! Na<strong>da</strong> mais errôneo. As duas principais culturas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de Clássica<br />

– a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário,<br />

mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos<br />

diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...<br />

105


106<br />

Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural<br />

<strong>da</strong> Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Possolhes<br />

afi rmar, contudo, que se o conhecimento produzido, digamos, nesses cem<br />

anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos<br />

e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa<br />

de que tenham sido produzi<strong>da</strong>s mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas<br />

sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro <strong>da</strong> Grécia, que se produz o maior<br />

nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humani<strong>da</strong>de futura um bem<br />

de valor incalculável.<br />

Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar <strong>da</strong> tirania;<br />

a fi losofi a questiona a ver<strong>da</strong>de estabeleci<strong>da</strong>; a palavra escrita ganha relevância<br />

jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humani<strong>da</strong>de<br />

precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de ci<strong>da</strong>de (pólis) e de ci<strong>da</strong>dão<br />

(polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os ci<strong>da</strong>dãos. É a era de<br />

escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e<br />

de fi lósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a ci<strong>da</strong>de de Atenas, na Ática, é o<br />

palco de to<strong>da</strong>s essas transformações. Veja o mapa abaixo.<br />

1.1.3 O Clássico em Roma<br />

Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário<br />

que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta ci<strong>da</strong>de que dominaria<br />

o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como<br />

uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma<br />

que nos interessa, mais especifi camente, neste tópico, é a Roma compreendi<strong>da</strong><br />

entre o século I a. C. e o século I <strong>da</strong> Era Cristã, quando a famosa ci<strong>da</strong>de, já centro<br />

do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar<br />

de conturbado momento político que vai <strong>da</strong> transição <strong>da</strong> República ao início<br />

do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia


também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas<br />

(início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do<br />

Peloponeso (431-404 a.C.).<br />

Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento<br />

<strong>da</strong> retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o romance de costumes com<br />

Petrônio, cerca de 68 <strong>da</strong> nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor <strong>da</strong><br />

literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas,<br />

amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa<br />

época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Enei<strong>da</strong> (17 a. C.),<br />

poema que celebra a glória de Roma, na fi gura de Enéias, o troiano incumbido <strong>da</strong><br />

ingente tarefa de fun<strong>da</strong>r uma nova Tróia, que <strong>da</strong>ria origem à mais gloriosa <strong>da</strong>s<br />

ci<strong>da</strong>des. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa<br />

abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegia<strong>da</strong> e<br />

estratégica no Mediterrâneo.<br />

1.1.4 O Classicismo<br />

Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, período<br />

que criou na Grécia e em Roma momentos de alta quali<strong>da</strong>de cultural e literária,<br />

é de se esperar que estas características sejam irradia<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de e recupera<strong>da</strong>s ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o<br />

mundo moderno e, a reboque, a consoli<strong>da</strong>ção dos valores clássicos, já apregoados<br />

pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento fi losófi co,<br />

artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental,<br />

tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se<br />

107


108<br />

confi gura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-<br />

1580), principalmente em Os Lusía<strong>da</strong>s (1572), poema épico <strong>da</strong> glorifi cação <strong>da</strong><br />

navegação portuguesa e <strong>da</strong> descoberta do caminho para as Índias, permitindo a<br />

expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então,<br />

desconheci<strong>da</strong>. O poema retoma a tradição <strong>da</strong> épica clássica de Homero e Virgílio,<br />

na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com<br />

a exaltação centra<strong>da</strong> na fi gura histórica do navegador Vasco <strong>da</strong> Gama (1469-1524),<br />

tomado metonímica e fi ccionalmente como a nação lusitana.<br />

Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo<br />

é por defi nição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em<br />

outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia <strong>da</strong>s<br />

grandes navegações, a partir de 1453, com a toma<strong>da</strong> de Constantinopla pelos<br />

turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos,<br />

navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais fi losófi cos<br />

de busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de são retomados e a ver<strong>da</strong>de absoluta <strong>da</strong> Igreja Católica, de<br />

base medieval, é questiona<strong>da</strong>. O cisma religioso com Martinho Lutero (1483-<br />

1546), a partir <strong>da</strong> publicação de suas teses contra a ven<strong>da</strong> de indulgências, em<br />

1517, fortalece ain<strong>da</strong> mais o Renascimento, pois o protestantismo signifi ca per<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> hegemonia <strong>da</strong> Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas<br />

leva a novas refl exões, e a própria confi guração do universo se modifi ca com o<br />

heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e<br />

outros. Para o momento, na<strong>da</strong> melhor do que ter o homem como centro desse<br />

universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz<br />

o gênio de Leonardo <strong>da</strong> Vinci (1452-1519), quando imagina e desenha O Homem<br />

Vitruviano. Na<strong>da</strong> mais clássico do que o homem como medi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s as coisas...


1.1.5 O Neoclassicismo<br />

Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no<br />

século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de<br />

iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690,<br />

com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de<br />

onde chegaria ao Brasil e fl oresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante.<br />

O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de<br />

de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam <strong>da</strong> companhia dos deuses<br />

e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se<br />

encarregava de prover to<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>des. Essa vi<strong>da</strong> simples, em meio à<br />

natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante <strong>da</strong><br />

ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta<br />

grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo<br />

nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável.<br />

Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo<br />

Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico <strong>da</strong><br />

I<strong>da</strong>de Antiga, mas vai buscar o alimento <strong>da</strong> sua doutrina em ambos. Podemos<br />

dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o<br />

seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento<br />

propício ao retorno do heroísmo passado por causa <strong>da</strong> expansão provoca<strong>da</strong><br />

pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um<br />

passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza<br />

acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico<br />

e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns<br />

contra os outros e a que<strong>da</strong> é fatal: na I<strong>da</strong>de de Ferro em que se encontram, não<br />

há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram<br />

de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito<br />

menos com os deuses...<br />

Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo, a<br />

obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.<br />

1.1.6 Há espaço para o Clássico?<br />

“Onde encontrar o tempo e a comodi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente para<br />

ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de<br />

papel impresso <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de?”<br />

Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo Calvino<br />

(1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estu<strong>da</strong>m e que pretendem<br />

conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que somos ain<strong>da</strong> esmagados<br />

por uma avalancha muito maior de informações incorpóreas do mundo<br />

virtual <strong>da</strong> internet, que torna quase impossível uma reflexão sobre<br />

elas. A rapidez e a quanti<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informação produzi<strong>da</strong>, em ambiente<br />

sedutor de alta tecnologia, contribuem para que se afaste o leitor do<br />

livro e, mais especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo<br />

antigo, obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é<br />

inaudível ou quase.<br />

109


110<br />

Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado como um ciclo,<br />

permanece, porque fun<strong>da</strong>do em valores universais e entranhados no ser humano.<br />

O Clássico vive em permanente estado de movimentação, o que lhe garante a<br />

eterni<strong>da</strong>de. Há dois mil e oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado<br />

e analisado. Nenhum outro autor na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de ocidental é tão<br />

prestigiado quanto Homero. A Ilía<strong>da</strong> e a Odisséia continuam encantando gerações<br />

e gerações de leitores, fi lmes continuam sendo feitos, em ca<strong>da</strong> página há ain<strong>da</strong><br />

um mundo a se descobrir com relação a estes poemas, incansavelmente editados,<br />

para fi carmos apenas com Homero.<br />

E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas,<br />

inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta direta e<br />

on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V a. C.) e verão que<br />

o sistema de fogueiras acesas ao longo <strong>da</strong>s ilhas do mar Egeu para <strong>da</strong>r a notícia<br />

a Clitemnestra do retorno do rei Agamêmnon à Grécia,<br />

acaba<strong>da</strong> a guerra de Tróia, antecipa em, pelo menos, 2500<br />

anos a internet...<br />

Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é<br />

de escolas, bibliotecas e uma melhor formação dos nossos<br />

professores – parece que para isto é que não há espaço,<br />

infelizmente –, pois para onde nos voltamos vemos a marca<br />

viva do passado em nossas vi<strong>da</strong>s, nos nossos nomes, nos<br />

nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até<br />

como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à<br />

maneira de Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do<br />

que não ler os clássicos” (1993: 16).<br />

Busto de Homero<br />

(Museu do Louvre)<br />

De forma a fi xar o exposto até aqui, propomos a<br />

leitura acompanha<strong>da</strong> de uma <strong>da</strong>s Liras de Marília de<br />

Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua<br />

erudição, passeia pela antigui<strong>da</strong>de greco-latina de Homero<br />

a Horácio, passando por Virgílio e pelos ciclos <strong>da</strong> mitologia grega. Não há como<br />

ler o narcisismo de Dirceu, sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as<br />

penas e difi cul<strong>da</strong>des do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores<br />

trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o aproveitamento<br />

sadio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, na paz do campo, pelos pastores, sem preocupações com o<br />

amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só é possível<br />

com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso,<br />

pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de<br />

entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer<br />

à tona essa relação existente nas diversas Liras, os seus<br />

temas recorrentes e reescrituras, como a beleza divina de<br />

Marília, os sofrimentos provocados por Amor e a exaltação<br />

do carpe diem horaciano.<br />

Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase<br />

5000 versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas,<br />

dividido e publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799<br />

e 1812. O texto que vamos abor<strong>da</strong>r, a Lira VII, pertence à<br />

primeira parte do poema que trata do amor do pastor Dirceu<br />

por sua ama<strong>da</strong>, a pastora Marília, cuja beleza é ressalta<strong>da</strong> e<br />

Fragmento <strong>da</strong><br />

Ilía<strong>da</strong>


enalteci<strong>da</strong>. De beleza diviniza<strong>da</strong>, Marília chega a ser louva<strong>da</strong> como mais bela do<br />

que as três deusas olímpicas, padrões <strong>da</strong> beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite<br />

(Vênus) e Palas Atena (Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não<br />

deixa de fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua moci<strong>da</strong>de, sua<br />

força de mando e proprie<strong>da</strong>des, além de sua destreza como poeta. É a parte<br />

mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, refl ete a natureza<br />

equilibra<strong>da</strong> do mítico mundo clássico. É importante ressaltar a forte presença<br />

mitológica, imprescindível para a compreensão do poema. Vamos à Lira VII 1 .<br />

Lira VII<br />

Vou retratar a Marília,<br />

A Marília, meus amores;<br />

Porém como? se eu não vejo<br />

Quem me empreste as fi nas cores!<br />

Dar-mas a terra não pode;<br />

Não, que a sua cor mimosa<br />

Vence o lírio, vence a rosa,<br />

O jasmim e as outras fl ores.<br />

Ah! socorre, Amor, socorre<br />

Ao mais grato empenho meu!<br />

Voa sobre os Astros, voa,<br />

Traze-me as tintas do Céu.<br />

Mas não se esmoreça logo;<br />

Busquemos um pouco mais;<br />

Nos mares talvez se encontrem<br />

Cores, que sejam iguais.<br />

Porém não, que em paralelo<br />

Da minha ninfa adora<strong>da</strong><br />

Pérolas não valem na<strong>da</strong>,<br />

Não valem na<strong>da</strong> os corais.<br />

Ah! socorre, Amor, socorre<br />

Ao mais grato empenho meu!<br />

Voa sobre os Astros, voa,<br />

Traze-me as tintas do Céu.<br />

Só no céu achar-se podem<br />

Tais belezas como aquelas,<br />

Que Marília tem nos olhos,<br />

E que tem nas faces belas;<br />

Mas às faces graciosas,<br />

Aos negros olhos, que matam,<br />

Não imitam, não retratam<br />

Nem auroras nem Estrelas.<br />

1 GONZAGA, Tomás<br />

Antônio. Marília de<br />

Dirceu. In: A poesia dos<br />

inconfi dentes: poesia<br />

completa de Cláudio<br />

Manuel <strong>da</strong> Costa, Tomás<br />

Antônio Gonzaga e<br />

Alvarenga Peixoto;<br />

organização de Domício<br />

Proença Filho; artigos,<br />

ensaios e notas de<br />

Melânia Silva de Aguiar<br />

et alii. Rio de Janeiro:<br />

Nova Aguilar, 1966, p.<br />

583-584<br />

111


112<br />

Ah! socorre, Amor, socorre<br />

Ao mais grato empenho meu!<br />

Voa sobre os Astros, voa,<br />

Traze-me as tintas do Céu.<br />

Entremos, Amor, entremos,<br />

Entremos na mesma Esfera;<br />

Venha Palas, venha Juno,<br />

Venha a Deusa de Citera.<br />

Porém, não, que se Marília<br />

No certame antigo entrasse,<br />

Bem que a Páris não peitasse,<br />

A to<strong>da</strong>s as três vencera.<br />

Vai-te, Amor, em vão socorres<br />

Ao mais grato empenho meu:<br />

Para formar-lhe o retrato<br />

Não bastam tintas do Céu.<br />

Trata-se de uma Lira constituí<strong>da</strong> por quatro estrofes de doze versos<br />

heptassílabos, niti<strong>da</strong>mente dividi<strong>da</strong> em um agrupamento inicial de oito versos<br />

(oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou quarteto), funcionando como<br />

refrão, em que se observa uma mu<strong>da</strong>nça apenas na última estrofe, tendo em vista<br />

a inutili<strong>da</strong>de do esforço de Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a<br />

beleza de Marília. O esquema <strong>da</strong>s rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG,<br />

observando-se a existência de versos brancos.<br />

Marília é retrata<strong>da</strong> como pura e recata<strong>da</strong>, pois “sua cor mimosa/Vence<br />

o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras fl ores”. Sua beleza é sem igual,<br />

superando as cores vivas dos corais e a brancura leitosa <strong>da</strong>s pérolas. Preparase<br />

já nessa estrofe a divin<strong>da</strong>de de Marília, com Dirceu chamando-a de “ninfa<br />

adora<strong>da</strong>”, numa referência às divin<strong>da</strong>des protetoras dos bosques, e <strong>da</strong> natureza<br />

de modo geral, encarna<strong>da</strong>s por mulheres extremamente belas.<br />

A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais brilhante<br />

que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável pela abertura<br />

<strong>da</strong>s portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a saí<strong>da</strong> de Apolo<br />

cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, fecha-se o ciclo: Marília<br />

é constituí<strong>da</strong> por algo superior aos quatro elementos básicos – terra, água, ar<br />

e fogo – vez que não existe nestes quatros elementos na<strong>da</strong> comparável à sua<br />

beleza.<br />

A última estrofe é a confi rmação dessa beleza com a alusão à disputa do<br />

Monte I<strong>da</strong>. Marília é confronta<strong>da</strong> com as três deusas olímpicas, considera<strong>da</strong>s<br />

padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas Atena (Minerva) e Afrodite<br />

(Vênus), aqui chama<strong>da</strong> pelo epíteto de Deusa de Citera. Recuperemos a história<br />

mítica.<br />

Palas Atena, deusa <strong>da</strong> sabedoria participa de um concurso de beleza,<br />

envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais bela presente<br />

na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais de Aquiles. A deusa<br />

Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe <strong>da</strong>rem atenção durante o casamento de<br />

Peleu e Thétis, fez surgir entre os convi<strong>da</strong>dos um pomo de ouro, destinado “à<br />

mais bela”. Prontamente as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto.


Zeus, não querendo decidir uma questão tão delica<strong>da</strong>, chamou Hermes e<br />

mandou que ele as levasse ao Monte I<strong>da</strong>, onde o pastor Páris faria a escolha.<br />

Apresentando-se diante de Páris, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s deusas tentou subornálo.<br />

Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibili<strong>da</strong>de na<br />

guerra; Afrodite, desnu<strong>da</strong>ndo os seios, garantiu-lhe o amor <strong>da</strong> mais bela<br />

<strong>da</strong>s mulheres, Helena <strong>da</strong> Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris entregou<br />

o pomo a Afrodite, fazendo o ódio <strong>da</strong>s outras duas se voltar contra si e<br />

contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a guerra de Tróia,<br />

desencadea<strong>da</strong> pelo rapto de Helena por Páris, ocasião em que Palas e Hera<br />

se colocarão ao lado dos gregos, portanto, contrárias a Páris e aos troianos,<br />

protegidos por Afrodite<br />

Afrodite aparece no texto <strong>da</strong> Lira através de um dos seus vários epítetos<br />

deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos duas tradições<br />

são registra<strong>da</strong>s: a primeira afi rma que Afrodite seria a fi lha de Zeus e Dione,<br />

conforme vemos na Ilía<strong>da</strong>, de Homero (V, 370-372; XIV, 224; XXIII, 185); a segun<strong>da</strong>,<br />

defendi<strong>da</strong> por Hesíodo, apresenta a deusa como fi lha de Urano e <strong>da</strong>s espumas do<br />

mar (versos 134-210). De acordo com a versão <strong>da</strong> Teogonia de Hesíodo, Urano teve<br />

o órgão sexual cortado e atirado por seu fi lho Cronos ao mar. Assim, <strong>da</strong> mistura<br />

do esperma do deus com as espumas, teria nascido Afrodite. Tão logo nasceu, a<br />

deusa foi conduzi<strong>da</strong> pelas on<strong>da</strong>s, ou por Zéfi ro, o vento, para a Ilha de Citera, <strong>da</strong>í<br />

o seu epíteto de Citeréia.<br />

Páris, fi lho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado pelo<br />

pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como futuro<br />

responsável pela destruição do reino. Por pie<strong>da</strong>de, o pastor incumbido de tal<br />

tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido por Cassandra, sua irmã,<br />

e reintegrado à família real. A quarta estrofe do poema, portanto, refere-se ao<br />

julgamento que Páris, teve de fazer, para escolher a mais bela <strong>da</strong>s três deusas,<br />

cujas conseqüências serão o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a<br />

destruição de Tróia. Ao aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a<br />

superiori<strong>da</strong>de de Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar<br />

o mito. Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se<br />

não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de Tróia não<br />

acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não morre. Vê-se, portanto,<br />

que Helena contraposta a Marília, marca a oposição entre a beleza ruinosa<br />

(Helena) e a beleza benfazeja (Marília), contribuindo para a harmonia do<br />

mundo. E há mais: como o poeta-pastor diz que para formar o retrato de<br />

Marília não bastam tintas do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória,<br />

através do mito, o ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris,<br />

para confi gurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna possível<br />

a pereni<strong>da</strong>de e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito rememora. Tal<br />

leitura só é possível com o conhecimento do mito de Páris e Helena, constante<br />

do poema O rapto de Helena, de Colutos (século VI d. C.).<br />

Texto para Exercício<br />

Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos elementos do<br />

mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, recomen<strong>da</strong>mos o conhecimento<br />

do mito de Apolo e Dafne.<br />

113


2 CAMÕES, Luís Vaz de.<br />

Sonetos de Camões (corpus<br />

dos sonetos camonianos);<br />

edição e notas por<br />

Cleonice Serôa <strong>da</strong> Mott a<br />

Berardinelli. Paris: Centre<br />

Culturel Portugais<br />

Lisbonne; Rio de Janeiro:<br />

Fun<strong>da</strong>ção Casa de Rui<br />

Barbosa, 1980, p. 180.<br />

3 O dilúvio enviado<br />

por Zeus, para punir<br />

os homens (Les<br />

métamorphoses, I, v. 253-<br />

312).<br />

114<br />

Textos de Apoio<br />

Mito de Apolo e Daphne<br />

Soneto 122<br />

O fi lho de Latona, esclarecido,<br />

Que com seu raio alegra a humana gente,<br />

O hórrido Piton, brava serpente,<br />

Matou, sendo <strong>da</strong>s gentes tão temido.<br />

Ferio com arco e de arco foi ferido,<br />

Com ponta agu<strong>da</strong> de ouro reluzente;<br />

Nas tessálicas praias, docemente,<br />

Pola Ninfa Penea andou perdido.<br />

Não lhe pôde valer, para seu <strong>da</strong>no,<br />

Ciência, diligências, nem respeito<br />

De ser alto, celeste e soberano.<br />

Se este nunca alcançou nem um engano<br />

De quem era tão pouco em seu respeito,<br />

Eu que espero de um ser que é mais que humano? 2<br />

Luís Vaz de Camões<br />

Mito de Python (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os outros<br />

animais sob formas diversas, assim que a umi<strong>da</strong>de que ela ain<strong>da</strong> retinha<br />

foi esquenta<strong>da</strong> sob os fogos do sol, quando o calor infl ou a lama e as águas<br />

pantanosas, quando os germes fecundos <strong>da</strong>s coisas, nutridos por um solo<br />

vivifi cante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram com o<br />

tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo <strong>da</strong>s sete embocaduras deixou<br />

os campos inun<strong>da</strong>dos e levou de volta suas torrentes para seu antigo leito,<br />

quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua chama no limo recente, os<br />

cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um grande número de animais;<br />

eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no momento mesmo de seu<br />

nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de alguns de seus órgãos; muitas<br />

vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a outra não é senão ain<strong>da</strong> terra<br />

informe. Com efeito, assim que a umi<strong>da</strong>de e o calor se combinaram um com ou<br />

outro, eles concebem; é destes dois princípios que nascem todos os seres; ain<strong>da</strong><br />

que o fogo seja inimigo <strong>da</strong> água, uma clari<strong>da</strong>de úmi<strong>da</strong> engendra to<strong>da</strong>s as coisas e<br />

a concórdia na discórdia convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta<br />

de lama pelo dilúvio recente 3 , recomeça a receber do alto dos ares o calor dos<br />

raios do sol, ela deu à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais<br />

sua fi gura primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade<br />

que ela engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recémnascidos,<br />

serpente então desconheci<strong>da</strong>, tu era um objeto de terror, tanto tu<br />

ocupavas o espaço ao longo <strong>da</strong> montanha. O arqueiro divino, que jamais antes


não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos prontos<br />

para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele a matou;<br />

por negras feri<strong>da</strong>s se espalhou o veneno <strong>da</strong> fera. Para que o tempo não pudesse<br />

apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de concursos solenes, os<br />

jogos sagrados que do nome <strong>da</strong> serpente venci<strong>da</strong> tomaram o nome de Pythicos.<br />

Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, suas pernas ou as ro<strong>da</strong>s de seus<br />

carros tinham tido a vitória, recebiam como recompensa uma coroa de carvalho;<br />

o loureiro ain<strong>da</strong> não existia e, para cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela<br />

fronte, Febo tomava emprestado seu ramo a árvores de to<strong>da</strong> sorte.<br />

Mito de Daphne (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne,<br />

fi lha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de uma<br />

violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de sua vitória<br />

sobre a serpente, o vira curvar, puxando a cor<strong>da</strong> para si, as duas extremi<strong>da</strong>des<br />

de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas armas poderosas?<br />

Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com elas eu posso desferir<br />

golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um inimigo; ain<strong>da</strong> há pouco,<br />

quando Python cobria grande superfície com seu ventre inchado de venenos, eu a<br />

abati sob minhas fl echas inumeráveis. Para ti, que te seja sufi ciente iluminar com<br />

tua tocha não sei que fogos de amor; guar<strong>da</strong>-te de pretender meus sucessos”.<br />

O fi lho de Vênus lhe respondeu: “Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te<br />

furar a ti mesmo; tanto todos os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória<br />

é inferior à minha”. Ele disse, fende o ar com o batimento de suas asas e, sem<br />

perder um instante, se posta sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava<br />

cheia de fl echas, ele retira duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o<br />

amor, a outra o faz nascer. A que o faz nascer é doura<strong>da</strong> e arma<strong>da</strong> com uma ponta<br />

agu<strong>da</strong> e brilhante; aquela que o expulsa é arredon<strong>da</strong><strong>da</strong> e sob a haste contém<br />

chumbo. O deus fere com a segun<strong>da</strong> a ninfa, fi lha de Peneu; com a primeira ele<br />

traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a ninfa<br />

foge até ao nome do amante; os abrigos <strong>da</strong>s fl orestas, os despojos dos animais<br />

selvagens que ela capturou fazem to<strong>da</strong> a sua alegria; ela é a êmula <strong>da</strong> casta Febe4 ;<br />

uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. Muitos pretendentes a<br />

pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, recusando-se ao jugo de um<br />

esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o que é o canto do himeneu, o amor,<br />

o casamento? Ela não se inquietava de sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse:<br />

“Tu me deves um genro, minha fi lha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime,<br />

ela tem horror às tochas conjugais; o rubor <strong>da</strong> vergonha se espalha sobre seu<br />

belo rosto e, com os braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe<br />

responde: “Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgin<strong>da</strong>de;<br />

Diana bem que o obteve do seu5 ”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados,<br />

Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus votos.<br />

Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele o espera e<br />

ele está enganado por seus próprios oráculos6 . Como uma palha leve se abrasa,<br />

depois que se colheram as espigas, como uma sebe se consome ao fogo de uma<br />

tocha que um viajante por acaso dela aproximou demasiado ou que ele ali deixou<br />

quando o dia já nascia; assim o deus infl amou-se; assim ele queima até o fundo<br />

de seu coração e nutre de esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos<br />

<strong>da</strong> ninfa fl utuando sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele,<br />

se ela tomasse cui<strong>da</strong>do com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os<br />

astros; ele vê sua pequena boca, que não lhe é sufi ciente apenas ver; ele admira<br />

4 A deusa Diana<br />

(Ártemis), a irmã de<br />

Apolo, de cujo séquito<br />

Daphne participava.<br />

5 Referência a Júpiter<br />

(Zeus), pai de Diana<br />

(Ártemis).<br />

6 Como deus <strong>da</strong> profecia,<br />

Apolo deveria saber que<br />

não teria sucesso no amor<br />

com Daphne, mas o amor<br />

engana até os profetas...<br />

115


7 Ci<strong>da</strong>de na Grécia, onde<br />

Apolo tem seu templo<br />

mais famoso.<br />

8 Ci<strong>da</strong>de na Jônia, onde<br />

existe um templo de<br />

Apolo.<br />

9 Ilha no mar Egeu, em<br />

frente a Tróia, onde<br />

existe o célebre templo<br />

de Apolo Esmintheu, o<br />

dos ratos.<br />

10 Residência dos<br />

soberanos <strong>da</strong> Lícia, na<br />

Ásia Menor. Apolo é<br />

chamado também de<br />

Apolo Lício.<br />

116<br />

seus dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para<br />

ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ain<strong>da</strong>. Ela, ela foge, mais rápido<br />

que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais propósitos:<br />

“Ó ninfa, eu te imploro, fi lha de Peneu, pára; não é um inimigo quem<br />

te persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as<br />

pombas com as asas trêmulas fogem <strong>da</strong> águia; ca<strong>da</strong> uma tem seu inimigo; eu, é<br />

o amor que me joga sobre tuas pega<strong>da</strong>s. Qual não é minha infelici<strong>da</strong>de! Cui<strong>da</strong>do<br />

para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente feri<strong>da</strong>s, a marca<br />

<strong>da</strong>s sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O terreno sobre o qual te<br />

lanças é rude; modera tua corri<strong>da</strong>, eu te suplico, diminui a tua fuga; eu mesmo,<br />

eu moderarei minha perseguição. Sabe, no entanto, que tu me encantaste; eu<br />

não sou um montanhês, nem um pastor, ou um desses homens incultos que<br />

vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, imprudente, tu não sabes de quem<br />

tu foges e porque tu foges. É a mim que obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e<br />

Tênedos9 e a residência real de Patara10 ; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que<br />

ele revelou o futuro, o passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons<br />

<strong>da</strong>s cor<strong>da</strong>s. Minha fl echa acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas<br />

seguramente ain<strong>da</strong>, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A<br />

medicina é uma <strong>da</strong>s minhas invenções; em todo o universo me chamam o que<br />

socorre e o poder <strong>da</strong>s plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas<br />

capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”<br />

Ele ia dizer ain<strong>da</strong> mais, porém a fi lha de Peneu continuava sua corri<strong>da</strong><br />

louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a seus<br />

olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em sentindo<br />

contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus cabelos<br />

levantados; sua fuga realça ain<strong>da</strong> mais sua beleza. Mas o jovem deus renuncia<br />

a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio amor, ele<br />

segue os passos <strong>da</strong> ninfa redobrando a sua veloci<strong>da</strong>de. Quando um cão gaulês<br />

percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, um para pegar a<br />

presa, outro para salvar sua vi<strong>da</strong>; um parece sobre o ponto de pegar o fugitivo,<br />

ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, estreita de perto suas<br />

pega<strong>da</strong>s; o outro, incerto se ele o pegou, se livra <strong>da</strong>s mordi<strong>da</strong>s e esquiva-se <strong>da</strong><br />

boca que o tocava; assim o deus e a virgem são levados um pela esperança, outro<br />

pelo medo. Mas o perseguidor, levado pelas asas de Amor, é mais rápido e não<br />

tem necessi<strong>da</strong>de de repouso; já ele se inclina sobre as espáduas <strong>da</strong> fugitiva, ele<br />

roça com o hálito os cabelos esparsos sobre seu pescoço. Ela, no fi m <strong>da</strong>s forças,<br />

empalideceu; quebra<strong>da</strong> pelo cansaço de uma fuga tão rápi<strong>da</strong>, os olhares voltados<br />

para as águas do Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os<br />

rios como tu têm um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza<br />

demasiado sedutora”.<br />

Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; uma<br />

fi na casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se mu<strong>da</strong>m em<br />

folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, aderem ao solo por<br />

raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore coroa sua cabeça; de seus<br />

encantos não resta senão o brilho. Febo, no entanto, sempre a ama; sua mão posta<br />

sobre o tronco, ele sente ain<strong>da</strong> o coração palpitar sobre a casca recente; cercando<br />

com seus braços os ramos que substituem os membros <strong>da</strong> ninfa, ele cobre a<br />

madeira com seus beijos; mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem,<br />

diz ele, visto que não podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore;


para todo o sempre tu ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras,<br />

minhas aljavas; tu acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres<br />

farão escutar cantos de triunfo e o Capitólio 11 verá vir até ele longos cortejos. Tu<br />

crescerás, guardião fi el, diante <strong>da</strong> porta de Augusto 12 e tu protegerás a coroa de<br />

carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira jamais<br />

conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será sempre orna<strong>da</strong><br />

com uma folhagem inalterável 13 ”. Peã 14 havia falado; o loureiro inclina seus<br />

galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma cabeça. 15<br />

O MITO DAS RAÇAS HUMANAS 16<br />

De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais habitantes<br />

do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele reinava ain<strong>da</strong> no<br />

céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de inquietações, longe e ao abrigo<br />

<strong>da</strong>s penas e <strong>da</strong>s misérias: a velhice miserável não pesava sobre suas cabeças; ao<br />

contrário, braços e pernas sempre jovens, eles se alegravam nos festins, longe de<br />

todos os males. Quando morriam, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens<br />

lhes pertenciam: o solo fecundo produzia espontaneamente uma abun<strong>da</strong>nte e<br />

generosa colheita, e eles, na alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio<br />

de bens inumeráveis. Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela<br />

vontade de Zeus Todo-Poderoso, os bons gênios <strong>da</strong> terra, guardiães dos mortais,<br />

distribuidores <strong>da</strong> riqueza: é a honra real que lhes foi atribuí<strong>da</strong> em partilha.<br />

Em segui<strong>da</strong> uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi cria<strong>da</strong><br />

ain<strong>da</strong> pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe nem pelo<br />

espírito aos <strong>da</strong> raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia brincando ao<br />

lado de sua digna mãe, a alma to<strong>da</strong> pueril, na sua casa. E quando, crescendo<br />

com a i<strong>da</strong>de, eles atingiam o termo que marca a entra<strong>da</strong> na adolescência, viviam,<br />

então, pouco tempo, e, por sua falta de discernimento, sofriam mil penas. Eles<br />

não sabiam abster-se de um descomedimento louco. Recusavam o oferecimento<br />

de culto aos Imortais ou o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados,<br />

segundo a lei dos homens que se deram mora<strong>da</strong>s fi xas. Então Zeus, fi lho de<br />

Cronos, encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos<br />

deuses Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez,<br />

os tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os<br />

Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ain<strong>da</strong> merecedores, contudo,<br />

de alguma honra.<br />

E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a raça<br />

de bronze, bem diferente <strong>da</strong> raça de prata, fi lha dos freixos, terrível e poderosa.<br />

Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de Ares e com<br />

as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu coração era como o<br />

aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua força, invencíveis os braços<br />

que se pregavam contra a espádua de seus corpos vigorosos. Suas armas eram<br />

de bronze, de bronze suas casas, com o bronze eles trabalhavam, pois o ferro não<br />

existia. Eles sucumbiram, sob os próprios braços e partiram para a esta<strong>da</strong> mofa<strong>da</strong><br />

do arrepiante Hades, sem deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por<br />

apavorantes que fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.<br />

E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, fi lho de<br />

Cronos, dele criou ain<strong>da</strong> uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais<br />

11 Principal sítio de Roma.<br />

12 Dois loureiros <strong>da</strong>vam<br />

sombra ao palácio do<br />

imperador Augusto, no<br />

Palatino.<br />

13 O loureiro não perde as<br />

folhas no inverno.<br />

14 Um dos epítetos de<br />

Apolo e nome do hino<br />

em sua honra.<br />

15 OVIDE. Les<br />

métamorphoses; texte<br />

traduit par Georges<br />

Lafaye. Paris: Les Belles<br />

Lett res, 1928. Tradução<br />

operacional de Milton<br />

Marques Júnior.<br />

16 HÉSIODE. Les travaux<br />

et les jours. In: Thégonie,<br />

Les travaux et les jours, Le<br />

bouclier; texte établie et<br />

traduit par Paul Mazon.<br />

Paris: Les Belles Lett res,<br />

1996, versos 90-201.<br />

Tradução operacional<br />

nossa, a partir do texto<br />

francês de Paul Mazon.<br />

117


118<br />

brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração nos<br />

precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra e na<br />

batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas <strong>da</strong>s Sete Portas, outros sob o solo<br />

cádmio, combatendo pelos fi lhos de Édipo; outros além do abismo marinho, em<br />

Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por Helena dos belos cabelos,<br />

e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A outros, enfi m, Zeus, fi lho de<br />

Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e uma mora<strong>da</strong> distante dos homens,<br />

estabelecendo-os nos confi ns <strong>da</strong> terra. É lá que habitam, o coração livre de<br />

inquietações, nas Ilhas dos Bem-Aventurados, à bor<strong>da</strong> dos turbilhões profundos<br />

do Oceano, heróis afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por<br />

ano uma fl orescente e doce colheita.<br />

E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio dos<br />

<strong>da</strong> quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais tarde. Pois<br />

esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, durante o dia, cansaços<br />

e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas duras angústias que lhes<br />

enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ain<strong>da</strong> alguns poucos bens, misturados<br />

aos seus males. Mas chegará a hora em que Zeus aniquilará, por sua vez, to<strong>da</strong><br />

esta raça de homens perecíveis: este será o momento em que eles nascerão com<br />

as têmporas brancas. O pai, então, não parecerá com o fi lho, nem o fi lho com o<br />

pai; o hóspede não será mais querido de seu anfi trião, o amigo pelo seu amigo, o<br />

irmão pelo seu irmão, assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles<br />

envelhecerem, eles não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles<br />

se exprimirão com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o<br />

temor ao Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá<br />

prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os<br />

artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus respeitos;<br />

o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O covarde atacará<br />

o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso juramento. Ao passo<br />

de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à linguagem amarga, à fronte<br />

odiosa, que se compraz com o mal. Então, deixando pelo Olimpo a terra dos<br />

largos caminhos, escondendo seus belos corpos sob véus brancos, Honra (Aidós)<br />

e Justiça (Némésis), abandonarão os homens, subirão para os Eternos. Restarão<br />

aos mortais apenas tristes sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.<br />

1.. Contextualização do Clássico: os períodos históricos <strong>da</strong>s Literaturas<br />

grega e latina<br />

1.2.1. Introdução à Literatura Grega<br />

A literatura grega compreende basicamente três momentos: o período<br />

Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – IV a. C.) e o período<br />

Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do século III a. C., com a dominação<br />

<strong>da</strong> Grécia por Roma, a literatura que se sobressai é a latina, inicia<strong>da</strong> pelas mãos<br />

de gregos tomados como cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.<br />

O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato literário,<br />

quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu desaparecimento por<br />

quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. C. Ain<strong>da</strong> se trata de uma cultura<br />

oraliza<strong>da</strong>, apesar <strong>da</strong> escrita, em que a literatura aparece canta<strong>da</strong> pelos aedos e


apsodos, os poetas e cantores <strong>da</strong> época. É nesse momento que são produzidos<br />

os poemas homéricos – Ilía<strong>da</strong> e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e<br />

Os trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por isto que se<br />

chama a esse período de arcaico. Diferentemente do sentido que a palavra tem<br />

hoje, arcaico signifi ca para o mundo grego algo que está no princípio, na origem<br />

dos fatos. Os poemas homéricos e hesiódicos são o princípio, a origem de to<strong>da</strong><br />

a literatura que se faz no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período<br />

marca a reintrodução <strong>da</strong> escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a literatura<br />

procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo mais próximo <strong>da</strong><br />

natureza e tendo no mito a sua explicação. Se Homero trata de heróis em guerra<br />

ou retornando para casa após a guerra, Hesíodo trata <strong>da</strong> ordem do universo, de<br />

como os deuses nasceram e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> justiça entre os homens.<br />

O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo <strong>da</strong> pólis, <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, que substitui o mundo anterior mais ligado à natureza. É um momento<br />

complexo em que a fi losofi a cria uma explicação lógica para o mundo, a partir<br />

de um discurso racional. Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando<br />

refl etir sobre a condição e a fragili<strong>da</strong>de humana. Mesmo apoiado nos mitos<br />

antigos, o teatro revela o confl ito do homem entre o passado e o presente <strong>da</strong> pólis<br />

com suas leis escritas, diferentes <strong>da</strong>s leis divinas do mundo mítico do passado.<br />

Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes autores desse período, legandonos<br />

obras-primas como Orestéia, Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.<br />

O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela expansão<br />

do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande (335-323 a. C.) e a<br />

criação <strong>da</strong> Biblioteca de Alexandria, por volta do século III a. C., reunindo um<br />

sem-número de obras importantes. O último grande poema do mundo grego,<br />

pertencente a esse período e que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de<br />

Rhodes, cerca de 295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre<br />

a Grécia e começa a surgir a literatura latina.<br />

1.2.2. Introdução à Literatura Latina<br />

O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até Virgílio,<br />

no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado com proprie<strong>da</strong>de de<br />

literatura. Da fun<strong>da</strong>ção de Roma (753 a. C.) à edição <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> (17 a. C.), distam<br />

quase oito séculos. Desse tempo, apenas o período compreendido entre o século<br />

III a. C. e o século III d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz<br />

um momento particular <strong>da</strong> glória romana, é que pode ser chamado realmente<br />

de literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma convergência entre<br />

a ci<strong>da</strong>de, que se faz senhora do mundo, e uma língua, que se faz literária. É o<br />

estado social e político poderoso criando as condições para a existência de uma<br />

língua de cultura.<br />

O fervilhamento cultural <strong>da</strong> Alexandria dos Ptolomeus, produto direto <strong>da</strong><br />

helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana pelo mar mediterrâneo,<br />

após a primeira vitória sobre Cartago, em meados desse mesmo século, e o<br />

domínio militar sobre os gregos favorecerão o fl orescimento <strong>da</strong> literatura latina.<br />

Dentre os nomes importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes<br />

(295 a. C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja infl uência,<br />

dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, pois, a dominação<br />

119


120<br />

cultural grega, apesar do domínio militar romano, que permite a afi rmação de<br />

que a literatura latina é proveniente <strong>da</strong> literatura grega.<br />

Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se entre a fase<br />

primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), em que predomina a<br />

orali<strong>da</strong>de, e a literatura cristã (a partir do século III-IV <strong>da</strong> nossa era), que já se<br />

distancia do espírito <strong>da</strong> Roma gloriosa. Nesse momento podem-se distinguir os<br />

períodos Arcaico (século III – I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no<br />

período Arcaico que passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius<br />

Andronicus, escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma<br />

tradução e a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> Odisséia de Homero, por sua temática ocidental, pois as<br />

viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de retornar em defi nitivo para<br />

Ítaca. Não menos importante é o Bellum Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius,<br />

escrito por volta do ano 209 a.C., tratando <strong>da</strong> primeira guerra entre Roma e<br />

Cartago. Os primeiros cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando<br />

a tradição de Enéias como mito fun<strong>da</strong>dor e herói itálico, além dos seus amores<br />

com Dido, de onde se originaria a rivali<strong>da</strong>de entre Roma e Cartago. Deste modo,<br />

Naevius não só antecipa Virgílio e a Enei<strong>da</strong>, mas também abre espaço para a<br />

exaltação dos heróis nacionais.<br />

O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta de 80 a. C.,<br />

com a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> língua literária, que tem na sua base a retórica. Os grandes<br />

autores <strong>da</strong> poesia estarão nas déca<strong>da</strong>s seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C.,<br />

no início <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> era de Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no<br />

período Clássico que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio<br />

(70-19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15 a. C.) e<br />

Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência <strong>da</strong> literatura latina.<br />

Glossário<br />

Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, signifi cando<br />

cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos <strong>da</strong> poesia épica,<br />

quando solicitado pelo público.<br />

Antigui<strong>da</strong>de Clássica: Primeiro período <strong>da</strong> história ocidental, marcado pelo<br />

reaparecimento <strong>da</strong> escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o seu início a<br />

partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V <strong>da</strong> Era Cristã,<br />

quando <strong>da</strong> que<strong>da</strong> do império romano do Ocidente, em 476.<br />

Arcadismo: Movimento literário, origina<strong>da</strong> na Itália a partir <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong> Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, em 1756 com a<br />

Arcádia Lusitana, e chegado ao Brasil em 1768, fi xando-se em Minas Gerais. Tinha<br />

como objetivo recuperar a harmonia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> simples do pastor, em contraposição<br />

à vi<strong>da</strong> desregra<strong>da</strong> e corrupta <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. O seu nome se liga a uma <strong>da</strong>s regiões<br />

mais antigas <strong>da</strong> Grécia, a Arcádia, no Peloponeso.<br />

Carpe Diem: Expressão latina, proveniente <strong>da</strong> Ode XI, Livro I <strong>da</strong>s Odes de<br />

Horácio (século I a. C.), signifi cando colhe o dia. O sentido é o de que devemos<br />

aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve<br />

se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos<br />

preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto,<br />

saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las.


Classicismo: Período cultural que se fi rma a partir do século XV, como um<br />

desdobramento natural do Renascimento, uma vez inicia<strong>da</strong> a difusão <strong>da</strong> cultura<br />

clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís Vaz de<br />

Camões, cuja obra-prima é Os Lusía<strong>da</strong>s (1572).<br />

Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, nos<br />

séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na Fenícia<br />

(atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se transformando<br />

em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 a. C.) e aquela que<br />

determina a derrota de Cartago e o controle de Roma sobre o Norte <strong>da</strong> África<br />

é a segun<strong>da</strong> (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o Africano, vence Aníbal, o<br />

Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no Norte <strong>da</strong> África.<br />

Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do universo<br />

e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formula<strong>da</strong> por Nicolau Copérnico<br />

contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía o centro do<br />

universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu redor.<br />

Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo teria<br />

se iniciado desde o século XI com o estudo <strong>da</strong>s obras dos fi lósofos gregos.<br />

I<strong>da</strong>de de Ferro: V. I<strong>da</strong>de de Ouro.<br />

I<strong>da</strong>de de Ouro: I<strong>da</strong>de mítica do homem, presente na obra do poeta grego<br />

Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do poeta grego,<br />

o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e generosa. Não<br />

sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e perdendo as benesses que<br />

os deuses lhes deram. A última etapa <strong>da</strong> decadência humana é a I<strong>da</strong>de de Ferro,<br />

em que a corrupção e os males grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar<br />

à I<strong>da</strong>de de Ferro, o homem ain<strong>da</strong> passaria por mais três etapas: a I<strong>da</strong>de de Prata,<br />

a I<strong>da</strong>de de Bronze, a I<strong>da</strong>de dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a<br />

degra<strong>da</strong>ção vai se processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal<br />

menos nobre e oxidável, o ferro.<br />

Iluminismo: Movimento fi losófi co-político nascido na França em meados<br />

do século XVIII, preconizando a liber<strong>da</strong>de do homem através <strong>da</strong> razão. O<br />

conhecimento é a luz que levará à razão.<br />

Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, no<br />

Monte I<strong>da</strong>, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual era a<br />

mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo escolhido Afrodite,<br />

seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a mulher mais bela do mundo,<br />

Páris atrai a fúria <strong>da</strong>s outras deusas contra si e contra os troianos. Seu ato terá<br />

como conseqüências o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição<br />

de Tróia.<br />

Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (fi nal do século XVII até<br />

a segun<strong>da</strong> metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vi<strong>da</strong> simples na<br />

natureza equilibra<strong>da</strong>, fugindo <strong>da</strong> dissolução do mundo urbano. Inspirado no<br />

Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e harmônico.<br />

Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o rapsodo<br />

tecia a narrativa e compunha.<br />

Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por Martinho<br />

Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra a Igreja, na<br />

Alemanha, no início do século XVI.<br />

121


122<br />

Renascimento: Movimento cultural fi losófi co de origem italiana, cujo centro<br />

foi a ci<strong>da</strong>de de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o Renascimento tenha<br />

iniciado com a redescoberta e difusão <strong>da</strong> cultura greco-latina.<br />

Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se fi rma como<br />

língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu apogeu<br />

com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio Augusto César,<br />

primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).<br />

Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C.,<br />

vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia;<br />

o fi losófi co com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a<br />

democracia.


UNIDADE II<br />

ESTUDO DE HOMERO – O CANTO I DA ILÍADA<br />

2.1. Estudo de Homero<br />

Produzidos no período Arcaico <strong>da</strong> Literatura Grega (VIII – V a. C.), a Ilía<strong>da</strong> e<br />

a Odisséia são os poemas fun<strong>da</strong>dores de to<strong>da</strong> a literatura ocidental. A sua autoria<br />

foi atribuí<strong>da</strong> a Homero, aedo cuja existência é sempre questiona<strong>da</strong>1 . Tendo<br />

sobrevivido na tradição oral por duzentos anos, estes dois poemas conheceram<br />

sua primeira forma em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano<br />

Pisístratos, acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a<br />

escritura dos versos.<br />

A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, por<br />

outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo em vista que<br />

o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, escolhiam os episódios para<br />

cantar ao seu público e, muitas vezes, introduziam versos de outros poemas.<br />

A depuração dos textos só aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido<br />

pelos sábios do Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de<br />

Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam em<br />

estu<strong>da</strong>r, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os primeiros estudos<br />

fi lológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por exemplo, que determina,<br />

defi nitivamente, o número de versos dos poemas. Essa fi xação, no entanto, não<br />

impediu que os poemas conhecessem várias fontes.<br />

Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a existência<br />

de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII <strong>da</strong> Odisséia, cantando as façanhas<br />

dos gregos em Tróia, e em especial as de Odisseus (nome grego de Ulisses), no<br />

banquete oferecido por Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa<br />

é de exaltação <strong>da</strong> nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização<br />

arcaica, a Ilía<strong>da</strong> e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e comentados<br />

em classe, na sala de aula, tendo não só aju<strong>da</strong>do a formar o espírito grego, mas,<br />

principalmente, permanecido na cultura universal.<br />

Visto consensualmente como o poema <strong>da</strong> fúria de Aquiles ou uma<br />

Teomaquia, a Ilía<strong>da</strong> é a maior expressão <strong>da</strong> poesia épica em todos os tempos,<br />

enfocando um mundo <strong>da</strong>s origens, em que heróis são coman<strong>da</strong>dos por um grande<br />

senhor, investido de um poder divino. Poema de estrutura oral, próprio para ser<br />

cantado pelo aedo ou rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros <strong>da</strong>ctílicos, fazendo<br />

a exaltação dessa aristocracia <strong>da</strong> civilização arcaica, que tinha em Micenas o seu<br />

apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.<br />

Os limites <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, normalmente conhecido como tratando <strong>da</strong> guerra de<br />

Tróia, estão restritos, na reali<strong>da</strong>de, a um momento específi co no início do décimo<br />

ano do cerco dos Argivos (nome genérico para designar os gregos) a Tróia. A<br />

narração desse momento parte <strong>da</strong> querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto<br />

I) aos funerais de Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de<br />

Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são chamados de<br />

1 Na<strong>da</strong> menos do que<br />

sete ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> atual<br />

Turquia, a antiga Ásia<br />

Menor, dentre elas Chios<br />

e Esmirna, disputam a<br />

primazia de ser o local<br />

de seu nascimento. O<br />

que suscita a disputa é o<br />

fato de que, na essência,<br />

o dialeto dos poemas<br />

homéricos é o jônio, com<br />

alguns empréstimos do<br />

eólio, língua <strong>da</strong> mesma<br />

região.<br />

123


2 A Ilía<strong>da</strong> se representa<br />

com o alfabeto maiúsculo<br />

e a Odisséia com o<br />

alfabeto minúsculo.<br />

124<br />

Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um tema presente na tradição<br />

oral há séculos antes de sua formulação como poema, no século VIII a. C., é<br />

normal que Homero e os aedos de forma geral não precisem explicar muita coisa<br />

que já é do conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não<br />

é poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um conhecimento<br />

anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados pelo seu epíteto ou pela<br />

sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu nome. Aquiles é o Peli<strong>da</strong> (fi lho<br />

de Peleu) ou o Eaci<strong>da</strong> (neto de Éaco), mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus<br />

é o Laerti<strong>da</strong> (fi lho de Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Croni<strong>da</strong> (fi lho de<br />

Cronos) e o “ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”;<br />

Agamêmnon e Menelau são os Atri<strong>da</strong>s (fi lhos de Atreu); aquele é o “Senhor<br />

dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo são os Priami<strong>da</strong>s,<br />

enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...<br />

Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu (o<br />

pequeno), coman<strong>da</strong>nte dos Lócri<strong>da</strong>s; Ájax Telami<strong>da</strong> (o maior), coman<strong>da</strong>nte<br />

dos Salaminos; Diomedes, coman<strong>da</strong>nte dos argivos e dos tiríntios, ao lado<br />

de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, coman<strong>da</strong>nte de Micenas e Corinto, e<br />

coman<strong>da</strong>nte supremo dos gregos; Menelau, irmão de Agamêmnon, coman<strong>da</strong>nte<br />

<strong>da</strong> Lacedemônia, Esparta e Auriclas; Nestor, coman<strong>da</strong>nte de Pilos e Dorion;<br />

Odisseus, coman<strong>da</strong>nte de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion,<br />

coman<strong>da</strong>ntes de Creta; Tlepôlemo, fi lho de Hércules, coman<strong>da</strong>nte de Rhodes;<br />

Aquiles, coman<strong>da</strong>nte dos Mirmidões, Helenos e Aqueus; Pátrocles, amigo<br />

dileto de Aquiles; Macâon e Po<strong>da</strong>lírio, irmãos médicos, fi lhos de Asclépios,<br />

coman<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> Oicália.<br />

Entre os Troianos se destacam Heitor, coman<strong>da</strong>nte dos Troianos; Páris,<br />

irmão de Heitor, raptor de Helena e causador <strong>da</strong> guerra; Enéias, fi lho de Anquises<br />

e Afrodite, coman<strong>da</strong>nte dos Dardânios; Pândoro do arco de Apolo, fi lho de<br />

Licaon, coman<strong>da</strong>nte dos Zeleus; Sárpedon e Glaucos, coman<strong>da</strong>ntes dos Lícios.<br />

Dividi<strong>da</strong> em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do<br />

alfabeto grego 2 , distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilía<strong>da</strong> tem como<br />

argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir dos muitos<br />

episódios do poema. Ca<strong>da</strong> canto, no entanto, apresenta o seu argumento,<br />

os quais podem ser assim sintetizados:<br />

Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611 versos).<br />

Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo <strong>da</strong>s naus e dos heróis<br />

(878 versos).<br />

Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461 versos).<br />

Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos).<br />

Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).<br />

Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de Heitor e<br />

Andrômaca (529 versos).<br />

Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos).<br />

Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutrali<strong>da</strong>de dos Deuses (565<br />

versos).<br />

Canto IX (Iota) – Embaixa<strong>da</strong> a Aquiles (713 versos).


Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).<br />

Canto XI (Lamb<strong>da</strong>) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos).<br />

Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos).<br />

Canto XIII (Nu) – Combate perto <strong>da</strong>s naus gregas (837 versos).<br />

Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).<br />

Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a aju<strong>da</strong> de Posídon (764<br />

versos).<br />

Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).<br />

Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo contra Atena<br />

(761 versos).<br />

Canto XVIII (Sigma) – Fabricação <strong>da</strong>s armas de Aquiles (617 versos).<br />

Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon (424<br />

versos).<br />

Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles (503<br />

versos).<br />

Canto XXI (Phi) – A Ver<strong>da</strong>deira Teomaquia/ Combate perto do rio (611).<br />

Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).<br />

Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897 versos).<br />

Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804 versos).<br />

Tudo concorrerá para se mostrar a razão <strong>da</strong> fúria funesta de Aquiles, núcleo<br />

<strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>. Podemos observar, no entanto, no decorrer do poema, vários episódios<br />

embrionários, ligados ou não à guerra de Tróia. Como temos um poema in medias<br />

res – a narrativa abre com o início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e<br />

não há um fl ash-back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo<br />

ano <strong>da</strong> guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmenta<strong>da</strong>s<br />

e dispersas, aludindo ao motivo <strong>da</strong> guerra, como o rapto de Helena por Páris,<br />

que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). Outras referências se<br />

encontram na Ilía<strong>da</strong> como a alusão ao casamento de Peleu e Thétis (Canto XVIII,<br />

versos 433-434; Canto XXIV, versos 59-63), e a alusão ao julgamento de Páris<br />

(Canto XXIV, versos 26-30).<br />

Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, apesar<br />

de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> não suscita com<br />

facili<strong>da</strong>de uma estrutura para o leitor desavisado. A ausência de Aquiles por<br />

quase dois terços <strong>da</strong> narrativa, mesmo sendo o protagonista, torna ain<strong>da</strong> mais<br />

complexa essa assimilação. Muitos heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas<br />

genealogias desfi a<strong>da</strong>s... Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos,<br />

sugerimos uma estruturação <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> dividindo-a em três momentos: a Querela<br />

entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixa<strong>da</strong> a Aquiles (Canto IX), o<br />

Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).<br />

A querela entre os dois maiores heróis gregos <strong>da</strong> guerra de Tróia leva à<br />

retira<strong>da</strong> de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo todo-poderoso<br />

Agamêmnon. A conseqüência é a per<strong>da</strong> de espaço para os troianos que<br />

conseguem acuar os gregos em seu próprio acampamento. Pela primeira vez,<br />

em dez anos de cerco, os troianos acampam fora e longe <strong>da</strong>s muralhas. O recuo<br />

dos argivos conduz à embaixa<strong>da</strong> despacha<strong>da</strong> por Agamêmnon a Aquiles (Canto<br />

125


126<br />

IX). Os esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de<br />

Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado duramente<br />

em sua honra, porque o Atri<strong>da</strong> lhe tomara a sua presa de guerra, Brisei<strong>da</strong>, o que<br />

distingue um herói <strong>da</strong> grande massa. O fracasso <strong>da</strong> embaixa<strong>da</strong> e um relativo<br />

sucesso dos gregos (Canto X, Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e<br />

Odisseus ao acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo<br />

resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, Agamêmnon,<br />

Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra as hostes de Heitor que<br />

conseguiu chegar ao acampamento grego (Canto XII-XVI) e ameaça queimar os<br />

navios, chegando ain<strong>da</strong> a queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com<br />

a aju<strong>da</strong> de Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de<br />

Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir to<strong>da</strong>s as outras naus (XVI,<br />

292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos gregos é a morte de<br />

Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas armas por Heitor. Isto determina o<br />

retorno de Aquiles à guerra.<br />

Este último momento <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> é importante, pois as desavenças entre<br />

Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio atribuído por Aquiles<br />

a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele precise participar <strong>da</strong>s competições<br />

dos jogos fúnebres em honra de Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a<br />

Aquiles, bem como a reparação material <strong>da</strong> sua honra ofendi<strong>da</strong>, com a devolução<br />

de sua presa de guerra, Brisei<strong>da</strong>. A conseqüência <strong>da</strong> paz entre os dois heróis é a<br />

carnifi cina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a morte de Heitor<br />

e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao belíssimo e tocante episódio do<br />

resgate do corpo do fi lho por Príamo, no Canto XXIV.<br />

Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilía<strong>da</strong> é o livro <strong>da</strong>s<br />

prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não veremos na Ilía<strong>da</strong> a morte de<br />

Aquiles ou a que<strong>da</strong> de Tróia. Limita<strong>da</strong> entre a desavença Aquiles-Agamêmnon<br />

e os funerais de Heitor, este poema frustra o leitor que for à busca de episódios<br />

conhecidos como o do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha <strong>da</strong>s<br />

Amazonas, Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar<br />

a ca<strong>da</strong> passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles. Para melhor<br />

entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve estudo do Canto I, em<br />

que se dá a desavença entre Aquiles e Agamêmnon, provocando a retira<strong>da</strong> do<br />

Peli<strong>da</strong> dos combates.<br />

2.2. O Canto I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong><br />

O proêmio <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> está circunscrito aos sete primeiros versos do Canto<br />

I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta apresenta o argumento<br />

do poema – a fúria funesta de Aquiles que tantos heróis mandou para o Hades<br />

cumprindo o que havia estabelecido Zeus. A narração propriamente dita<br />

inicia-se a partir do verso 8, estendendo-se até o fi nal do Canto XXIV, após os<br />

funerais de Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles<br />

e Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento grego,<br />

matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a assembléia dos Aqueus<br />

–, para saber qual a origem de tantos males. Ele descobre, através do sacerdote<br />

Calcas que a culpa de tal desgraça cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa


ao sacerdote de Apolo Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a<br />

peste no acampamento Aqueu.<br />

Querendo resgatar a fi lha, Crisei<strong>da</strong>, que havia sido feita prisioneira<br />

na toma<strong>da</strong> de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até Agamêmnon, a quem<br />

coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto resgate, em troca <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> fi lha. Agamêmnon não só não aceita, mas também ofende e ameaça de<br />

morte o sacerdote de Apolo. A descoberta <strong>da</strong> causa <strong>da</strong> peste leva Aquiles ao<br />

confronto com Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão<br />

de qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Crisei<strong>da</strong> de volta ao pai,<br />

Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se sentindo desonrado e<br />

Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio. Aquiles só cede ao ímpeto de<br />

matar Agamêmnon diante <strong>da</strong> intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o<br />

detém, puxando-lhe a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras<br />

o quanto puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Brisei<strong>da</strong>,<br />

toma<strong>da</strong> por Agamêmnon, Aquiles se retira <strong>da</strong> guerra, lamenta a sua desonra à<br />

mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte no acordo do destino<br />

breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve interceder por ele junto a Zeus e<br />

obtém do pai dos deuses e dos homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado<br />

pelos Aqueus, após derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete<br />

dos deuses no Olimpo.<br />

O que norteia o Canto I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> é a discussão trava<strong>da</strong> sobre a honra do<br />

herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é o drama de Aquiles.<br />

De um lado se põe o senhor dos heróis, Agamêmnon, coman<strong>da</strong>nte supremo<br />

do exército de coalizão dos Aqueus, que conta, aproxima<strong>da</strong>mente, com cem<br />

mil homens. Do outro lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o<br />

mirmidão Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras<br />

de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel” (Canto I, versos<br />

288-289). É a prepotência de um contra a força do outro. Ofendido na sua honra,<br />

Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto desafi ador que o leva ser irônico e mor<strong>da</strong>z com<br />

Agamêmnon, e a sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão<br />

de seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus, concentrado no<br />

cetro que empunha, com uma honra, portanto superior à de Aquiles. É isto o que<br />

diz também Nestor (Canto I, versos 278-279)<br />

Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a<br />

contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras formas, uma<br />

vez entregue Crisei<strong>da</strong> ao pai – caberia ao Atri<strong>da</strong> três ou quatro vezes mais que<br />

aos outros o butim partilhado, depois <strong>da</strong> ruína de Tróia (Canto I, versos 122-<br />

129). Agamêmnon é que parte para o confronto (Canto I, versos 130-147), o que<br />

desencadeia as ofensas de Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303).<br />

Dentre elas, destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159),<br />

numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no ganho (Canto<br />

I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se associa ao medo do gamo<br />

e ao prazer do vinho a que se entregaria Agamêmnon, vez que o grande senhor<br />

não participa dos combates na visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez<br />

de Agamêmnon que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para<br />

exercer seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles fi naliza<br />

suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atri<strong>da</strong> (Canto I, verso 245),<br />

dizendo que se aceitasse sem contestação a força de mando de Agamêmnon, não<br />

seria mais do que desprezível e nuli<strong>da</strong>de (Canto I, verso 293).<br />

127


128<br />

As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291) não fi cam<br />

atrás. Man<strong>da</strong>ndo Aquiles reinar sobre os Mirmidões (Canto I, verso 180), numa<br />

ironia cortante, cujo trocadilho se perde na tradução, Aquiles é para Agamêmnon<br />

na<strong>da</strong> mais do que o povo que ele coman<strong>da</strong> – formiga. Agamêmnon replica diante<br />

<strong>da</strong> ponderação que faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende<br />

ser o mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu comando e a<br />

investidura divina de seu poder de senhor supremo (Canto I, versos 287-288).<br />

Com fortes ironias despacha<strong>da</strong>s de ambos os lados, nem a contemporização<br />

de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se ofendem mutuamente. Nestor e<br />

Palas Atena são a racionali<strong>da</strong>de em contraponto à fúria e ao descomedimento<br />

de ambos os heróis. Nessa arena está em jogo a honra feri<strong>da</strong> – Agamêmnon de<br />

vasto poder não só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou<br />

a sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que desencadeia to<strong>da</strong> a<br />

querela. Aquiles se retira <strong>da</strong> guerra, pois desonrado não pode alcançar a glória.<br />

Será necessária a intervenção de Zeus, a pedido de Thétis, para que o herói volte<br />

à guerra. Se Zeus lhe deu uma vi<strong>da</strong> breve, que pelo menos em troca lhe conce<strong>da</strong><br />

a honra (Canto I, verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes<br />

<strong>da</strong>s formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais desse<br />

capítulo.<br />

Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o<br />

desencadeamento <strong>da</strong> narrativa: os versos 212-214 antecipam a embaixa<strong>da</strong> a<br />

Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos presentes (Canto I, verso<br />

212) que o Peli<strong>da</strong> aceitará no Canto XIX, como pagamento <strong>da</strong> desmedi<strong>da</strong> de<br />

Agamêmnon, pondo fi m ao desentendimento entre ambos. É o que lhe promete<br />

Atena. Os versos 240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias<br />

dos Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342 revelam a<br />

necessi<strong>da</strong>de que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo para poderem combater<br />

perto <strong>da</strong>s naus sem perigo. Isto se <strong>da</strong>rá com o retorno efetivo de Aquiles à<br />

guerra, no Canto XX. Por fi m, o destino de Aquiles, aludido tantas vezes neste<br />

Canto I (versos 352-356; 413-428; 517-527), será retomado ao longo <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>,<br />

principalmente no canto XVIII.<br />

Glossário<br />

Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente<br />

de Acaia, regiões gregas, uma situa<strong>da</strong> no Peloponeso e a outra na Tessália, no<br />

continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos.<br />

Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para toma<strong>da</strong> de decisão sobre<br />

alguma coisa. O termo, por metonímia acaba designando a própria assembléia.<br />

Aqueus: V. Acaios.<br />

Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente <strong>da</strong><br />

região de Argos, uma <strong>da</strong>s principais ci<strong>da</strong>des do Peloponeso.<br />

Atri<strong>da</strong>: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos fi lhos de Atreu.<br />

Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema era para<br />

ser cantado, não declamado.<br />

Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente de<br />

um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos.


Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente de um<br />

dos ancestrais <strong>da</strong> raça troianos, chamado Dár<strong>da</strong>nos.<br />

Epílogo: Parte fi nal do poema épico, quando se acaba a narração e<br />

encaminha-se o fi m <strong>da</strong> narrativa.<br />

Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e ci<strong>da</strong>des. Muito usado<br />

no poema épico como recurso mnemônico, <strong>da</strong>ndo ritmo ao hexâmetro.<br />

Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de modo a<br />

esclarecer fatos <strong>da</strong> narrativa.<br />

Helenos: Nome genérico <strong>da</strong>do aos gregos, termo proveniente de parte dos<br />

sol<strong>da</strong>dos tessálios coman<strong>da</strong>dos por Aquiles. O termo também se refere a Helena,<br />

fi lha de Deucalião, visto como pai dos gregos.<br />

Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico, construído com<br />

seis medi<strong>da</strong>s ou seis pés, tendo como base o pé dáctilo, constituído de uma sílaba<br />

longa e duas breves.<br />

Honras Fúnebres: To<strong>da</strong>s as pessoas que morriam deveriam ter direito<br />

às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao Hades, o mundo<br />

inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo, consistiam na queima de sua<br />

carne e no encerramento de seus ossos numa urna para posterior sepultamento<br />

num túmulo, erigido sobre uma colina.<br />

In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para designar<br />

a ação do poema épico, já bem adianta<strong>da</strong> quando a narração se inicia. O termo<br />

signifi ca “no meio <strong>da</strong>s coisas”, sem preâmbulos, sem explicação anterior.<br />

Invocação: Uma <strong>da</strong>s partes do poema épico, que consiste no pedido de<br />

auxílio às Musas, como deusas protetoras <strong>da</strong>s artes e do conhecimento, para<br />

que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele possa cantar o que assinala na<br />

proposição do seu poema.<br />

Micenas: Ci<strong>da</strong>de-estado ao nordeste do Peloponeso, reino fl orescente entre<br />

os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor Agamêmnon reinava absoluto sobre a<br />

Micenas homérica, nos tempos míticos.<br />

Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar sobre os<br />

sol<strong>da</strong>dos do mesmo nome. O nome é proveniente <strong>da</strong>s formigas que habitavam<br />

a ilha de Egina, transforma<strong>da</strong>s em homens por Zeus, para que Éaco, avô de<br />

Aquiles, pudesse reinar sobre eles. No plural, designa os sol<strong>da</strong>dos coman<strong>da</strong>dos<br />

por Aquiles.<br />

Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema épico,<br />

quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o argumento<br />

apresentado na proposição.<br />

Peli<strong>da</strong>: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de Peleu, pai do<br />

herói. Aquiles também pode ser chamado de Eaci<strong>da</strong>, por causa do avô, Éaco.<br />

Período Arcaico: Primeiro período <strong>da</strong> literatura grega, situado entre os<br />

séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a primeira forma<br />

literária, o poema épico. Nesse período ain<strong>da</strong> surgiria a poesia lírica, em sua<br />

forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e bucólica.<br />

Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo guerreiro,<br />

depois de conquista<strong>da</strong> e destruí<strong>da</strong> uma ci<strong>da</strong>de. É assim que Brisei<strong>da</strong> e Crisei<strong>da</strong><br />

são trata<strong>da</strong>s na Ilía<strong>da</strong>: presas ou prêmios de guerra.<br />

129


130<br />

Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico, reunindo a<br />

proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento do poema, apresentado<br />

sinteticamente para ser desenvolvido posteriormente na narração.<br />

Prolepse: Adiantamento <strong>da</strong> narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é <strong>da</strong>do<br />

conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a destruição<br />

de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilía<strong>da</strong>, mas sabemos que ambos os fatos vão<br />

ocorrer, pois eles são adiantados, através de alusões as mais varia<strong>da</strong>s.<br />

Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o argumento. De<br />

modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu canto. A Ilía<strong>da</strong> apresenta como<br />

argumento a fúria funesta de Aquiles; a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca.<br />

Teomaquia: Signifi ca, literalmente, batalha dos deuses. Termo cunhado<br />

para designar a Ilía<strong>da</strong>, sobretudo a partir do Canto XX, quando Zeus libera os<br />

deuses para tomar partido na guerra de Tróia e formam-se os grupos de deuses<br />

em defesa dos gregos ou dos troianos.<br />

Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente<br />

do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Teucro.<br />

Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente<br />

do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Tros.<br />

Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos desta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, faz-se<br />

necessária a leitura do Canto I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>.<br />

Exercícios<br />

1. “Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a toma<strong>da</strong> de Tróia<br />

graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia concebi<strong>da</strong> por<br />

Ulisses, fi guram na Ilía<strong>da</strong>.” Explique esta afi rmação de Claude Mossé (A<br />

Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1989.).<br />

2. Explique por que na Proposição/Invocação <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, o poeta pede que se<br />

cante “a ira funesta de Aquiles”.<br />

3. Qual a origem <strong>da</strong> querela entre Aquiles e Agamêmnon?<br />

4. Quais as conseqüências imediatas e as conseqüências posteriores para os<br />

gregos dessa querela?<br />

5. Considerando o Canto I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, qual a importância de Aquiles para os<br />

gregos?


UNIDADE III<br />

VISÃO GENÉRICA DOS AUTORES DO TEATRO TRÁGICO<br />

3.1 O Teatro Grego<br />

Nesta terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, procuraremos fazer o estudo do teatro grego na<br />

sua origem, mais especifi camente, <strong>da</strong> tragédia grega como fenômeno do período<br />

clássico, numa refl exão sobre o mundo <strong>da</strong> Pólis.<br />

É consenso entre os estudiosos do teatro grego que a sua origem está<br />

liga<strong>da</strong> ao coro que anima o culto ao deus Dionisos. Deus <strong>da</strong> vegetação e <strong>da</strong><br />

fecundi<strong>da</strong>de, Dionisos era o centro de um culto à fecun<strong>da</strong>ção – a faloforia,<br />

condução do falo como representação do deus Príapo, seu fi lho com Afrodite –<br />

em que se sacrifi cavam bodes e touros. A essência do culto consistia no abandono<br />

dos limites entre o humano e o divino, quando grupo de seguidores de Dionisos<br />

desejava o êxtase (deslocamento, espírito sem destino) e o entusiasmo (possessão<br />

divina, animação por um transporte divino), para transformar-se em bacante.<br />

As Grandes Dionisíacas ou Dionisias <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de eram a festa mais<br />

importante do mundo grego, contando com a afl uência de to<strong>da</strong> a Grécia e do<br />

exterior. Elas se <strong>da</strong>vam entre os meses de março e abril, princípio <strong>da</strong> primavera,<br />

quando o tempo abria para as navegações. A partir do século VI a. C. (534),<br />

foram instituídos os concursos dramáticos pelo tirano Pisístratos, que contavam<br />

tanto com o concurso de ditirambo (hino a Dionisos), quanto com um concurso<br />

dramático. Os concursos duravam três dias para as tragédias e um para as<br />

comédias, e tinham como espaço o teatro de Dionisos, ao pé <strong>da</strong> Acrópole, em<br />

Atenas, onde cabiam 17000 pessoas. Um espaço tão grande numa época tão<br />

remota, explica-se diante <strong>da</strong> função que o teatro tinha na Grécia: uma função<br />

coletiva. As entra<strong>da</strong>s eram subvenciona<strong>da</strong>s pelo estado e o fi nanciamento do<br />

coro e de um dos atores era feito por um ci<strong>da</strong>dão rico. No século V a. C., apogeu<br />

do período Clássico, esses concursos se tornaram freqüentes e estima-se, por<br />

exemplo, que foram apresentados cerca 5000 ditirambos e mais de 1000 tragédias.<br />

No início, as peças eram apresenta<strong>da</strong>s na praça pública, a ágora, depois,<br />

por conta do afl uxo de espectadores e para <strong>da</strong>r uma visualização melhor <strong>da</strong><br />

encenação foi construído o teatro de Dionisos, ao pé <strong>da</strong> Acrópole. O espaço físico<br />

do teatro era constituído dos seguintes ambientes (veja a planta baixa de um<br />

anfi teatro grego, em segui<strong>da</strong>):<br />

• Teatro: lugar onde se instalavam os espectadores para ver o espetáculo.<br />

• Orquestra: área circular para a <strong>da</strong>nça, em cujo centro havia um pequeno<br />

altar de pedra, consagrado ao deus. O coro faz aí a sua evolução.<br />

• Cena: cabana ou ten<strong>da</strong> servindo de bastidores, para a troca de máscaras<br />

e de roupas. Boa parte <strong>da</strong> ação se passava no interior <strong>da</strong> cena. As cenas<br />

chocantes de assassinato ou suicídio, por exemplo.<br />

• Proscênio: lugar à frente <strong>da</strong> cena, onde os atores encenavam as peças.<br />

• Párodos: passagens que <strong>da</strong>vam acesso ao teatro e por onde entrava e saía o<br />

coro.<br />

131


1 Aristóteles (Poética,<br />

18, 1456a) considera o<br />

Coro como um ator nos<br />

moldes de Sófocles, não<br />

nos de Eurípides, que<br />

já não tem infl uência<br />

sobre a ação. No teatro<br />

de Sófocles, o Coro<br />

pode, sob o comando<br />

do Corifeu, intervir na<br />

ação, dialogando com<br />

os personagens. Coro<br />

signifi ca <strong>da</strong>nça, em<br />

grego.<br />

2 O termo deriva em<br />

grego de cabeça, cimo,<br />

capacete.<br />

132<br />

O teatro como drama (a palavra drama signifi ca ação, em grego) apresentava<br />

os seguintes componentes<br />

• Prólogo: cena de exposição, sob a forma de diálogo ou de monólogo,<br />

precedendo a aparição do coro.<br />

• Párodos: entra<strong>da</strong> do coro, após o prólogo, num ritmo anapéstico (duas<br />

sílabas breves e uma longa). Composto de estrofes canta<strong>da</strong>s que se<br />

respondem.<br />

• Episódio: parte do drama entre duas entra<strong>da</strong>s do coro. O primeiro episódio<br />

fazia dialogar os atores entre eles e com o coro.<br />

• Estásimo: parte canta<strong>da</strong> pelo coro, mas sem haver deslocamento. O<br />

primeiro estásimo se apresenta como um conjunto variável de estrofes<br />

canta<strong>da</strong>s pelo coro, ao que se seguem dois outros episódios, seguidos de<br />

dois estásimos.<br />

• Coro: coro de <strong>da</strong>nça, grupo de pessoas que fi guram em uma <strong>da</strong>nça.<br />

Uni<strong>da</strong>de coletiva que cantava sob a direção do Corifeu ou declamava<br />

<strong>da</strong>nçando. A maior parte <strong>da</strong>s vezes, o coro era formado por velhos ou por<br />

mulheres infelizes, conhecedores profundos dos rituais religiosos.1<br />

• Corifeu2: Chefe do coro, representando uma intervenção breve do coro nas<br />

cenas dialoga<strong>da</strong>s.<br />

• Komos: canto comum ou alternado ente coro e personagens, auge lírico de<br />

dor (mais freqüentemente), na tragédia.<br />

• Êxodos: Saí<strong>da</strong> do coro de cena. To<strong>da</strong> a peça se desenrola entre o párodos e<br />

o êxodos, dividi<strong>da</strong> por estásimos e separa<strong>da</strong>s por episódios. Consistia de<br />

fato no último episódio, por vezes longo e complexo.


A parte coral <strong>da</strong> encenação tinha um grande rigor formal, se apresentando<br />

em uma série de evoluções na orquestra, ao redor do altar. As evoluções podiam<br />

ser para a direita, e assim se chamavam de estrofes, ou para a esquer<strong>da</strong>, chama<strong>da</strong>s<br />

de antístrofes. O epodo consistia em um canto adicional, terceira estrofe, em que o<br />

coro fi cava imóvel. Para a encenação dos autores ou do coro se utilizavam metros<br />

variados para os versos.<br />

No capítulo IX (1451b) <strong>da</strong> Poética, primeira obra a sistematizar um estudo<br />

sobre a tragédia grega, Aristóteles diz que “o poeta deve ser fabricante de intrigas<br />

mais do que de metros”. Como o teatro grego era estruturado em versos de<br />

metros variados, Aristóteles ensina que não basta criar o verso, mais importante é<br />

a intriga (o que em grego se diz mito). Tratando a tragédia como uma poesia que<br />

imita os homens nobres e melhores do que nós, enten<strong>da</strong>-se aí a defi nição do herói,<br />

o fi lósofo aponta para a origem <strong>da</strong> tragédia na improvisação de uma declamação,<br />

por ocasião <strong>da</strong> faloforia.<br />

Com a evolução do gênero, a tragédia passa a ser a imitação de<br />

uma ação nobre e acaba<strong>da</strong>, com limite de extensão, em linguagem agradável<br />

(condimenta<strong>da</strong>), executa<strong>da</strong> por personagens que agem, sem utilizar a narração,<br />

sendo através do binômio pie<strong>da</strong>de e terror que a tragédia opera a purifi cação<br />

<strong>da</strong>s emoções, o que Aristóteles denominou de catarse. A linguagem agradável<br />

(condimenta<strong>da</strong>, no termo grego utilizado) diz respeito ao ritmo, melodia e canto.<br />

A ação se imita pela intriga, como reunião dos acontecimentos – fi nali<strong>da</strong>de,<br />

princípio e alma <strong>da</strong> tragédia –, cujas partes se constituem de peripécias,<br />

reconhecimentos e patético.<br />

Para Aristóteles, a peripécia é quando a ação resulta no contrário do<br />

esperado, segundo a verossimilhança e a necessi<strong>da</strong>de. Já o reconhecimento é a<br />

passagem <strong>da</strong> ignorância ao conhecimento. O reconhecimento com peripécia faz<br />

a intriga mais bela, porque mais elabora<strong>da</strong>, resultando na pie<strong>da</strong>de e no terror,<br />

emoções de que a tragédia supõe ser a imitação. O patético é a ação destrutiva ou<br />

dolorosa, como os assassinatos, as grandes dores, os ferimentos e to<strong>da</strong>s as coisas<br />

visíveis do mesmo gênero. A essência <strong>da</strong> tragédia consiste em passar <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de<br />

à infelici<strong>da</strong>de, não por causa dos vícios ou <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de, mas por grande erro do<br />

herói.<br />

3. 2. Autores Trágicos<br />

O primeiro dos autores trágicos foi Téspis de Lesbos que ganhou o prêmio<br />

de melhor tragédia, instituído pela primeira vez em 534 a. C., quando <strong>da</strong><br />

organização <strong>da</strong>s Grandes Dionisíacas por Pisístratos, em Atenas. A ele se atribui<br />

o costume de mascarar os atores (GRIMAL, 1986: 31). No entanto, apenas três<br />

autores <strong>da</strong> tragédia grega nos chegaram: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Vejamos o<br />

que ca<strong>da</strong> um produziu e o que foi poupado pelo tempo.<br />

Ésquilo (525-456/5 a. C.) coloca um segundo autor em cena (deutoragonista),<br />

depois um terceiro, imitando Sófocles. Era considerado grande músico. Das 90<br />

peças que lhe são atribuí<strong>da</strong>s, apenas sete tragédias nos chegaram: Os Persas (472),<br />

peça isola<strong>da</strong>. Sem fazer parte de uma trilogia, o que era habitual, Os Persas é a<br />

única peça do teatro trágico grego que abor<strong>da</strong>va um tema contemporâneo, a<br />

guerra dos gregos contra os persas, de que Ésquilo foi um dos combatentes; Os<br />

Sete contra Tebas (467), peça premia<strong>da</strong>; As Suplicantes (463), fi m de uma trilogia;<br />

133


1 ESCHYLE. Tragédies:<br />

Les suppliantes, Les perses,<br />

Les sept contre Thèbes,<br />

Prométhée enchaîné; texte<br />

établi et traduit par Paul<br />

Mazon. 2. éd. Paris: Les<br />

Belles Lett res, 2002.<br />

134<br />

Orestéia (458); trilogia completa, composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;<br />

Prometeu Acorrentado (?), início de uma trilogia.<br />

Sófocles (497-406 a. C.) é o mais premiado dos teatrólogos, tendo ganhado o<br />

prêmio <strong>da</strong>s Grandes Dionisíacas 26 vezes, o que dá um total de 78 peças premia<strong>da</strong>s.<br />

Atribuem-se-lhe 123 peças, embora só tenhamos conhecimento efetivo de sete.<br />

Sófocles inova com a inclusão de um terceiro ator em cena (tritagonista). As sete<br />

tragédias conserva<strong>da</strong>s pela tradição são Ajax (445), Electra (421? 413?) Filoctetes<br />

(409, ciclo troiano); Antígona (442), Édipo Rei (421), Édipo em Colona (401, ciclo<br />

Tebano) e As Traquinianas (444, ciclo de Héracles).<br />

Eurípides (480-406 a. C.) reduz o tamanho e a signifi cação do coro, aumenta<br />

as peripécias e os efeitos de surpresa. Com o aumento <strong>da</strong> intriga, acresce o<br />

número de personagens. Atribuem-se-lhe 92 peças, mas apenas dezoito tragédias<br />

e um drama satírico nos chegaram: O Ciclope (drama satírico com base no Canto<br />

IX <strong>da</strong> Odisséia de Homero), Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Os Herácli<strong>da</strong>s<br />

(428), Andrômaca (428), Hécuba (424), A Loucura de Hércules (415), As Suplicantes<br />

(415), Íon (~421 e 413), As Troianas (?), Ifi gênia em Táuris (?), Electra (413), Helena<br />

(412), As Fenícias (410), Orestes (408), As Bacantes (peça póstuma), Ifi gênia em<br />

Áulis (peça póstuma) e Rhésos (tragédia atribuí<strong>da</strong>). Grande é o número de peças<br />

pertencentes ao ciclo troiano.<br />

Numa visão didática dos ciclos <strong>da</strong> tragédia grega, podemos falar dos<br />

Primórdios, com Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, abor<strong>da</strong>ndo a prepotência;<br />

do Ciclo Tebano com Édipo Rei e Antígona, ambas de Sófocles, tratando,<br />

respectivamente <strong>da</strong> impotência e <strong>da</strong> intolerância, e do Ciclo Troiano, com Ajax,<br />

de Sófocles, em que se abor<strong>da</strong> a digni<strong>da</strong>de do herói; a Orestéia, de Ésquilo, em<br />

que a maldição dos atri<strong>da</strong>s é fi nalmente redimi<strong>da</strong>, e três peças de Eurípides,<br />

especialmente escolhi<strong>da</strong>s: Ifi gênia em Áulis, sobre a ambição; Hécuba, que trata <strong>da</strong><br />

dor individual, e As Troianas, abor<strong>da</strong>ndo a dor coletiva.<br />

Da<strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de se estu<strong>da</strong>rem to<strong>da</strong>s estas peças, recomen<strong>da</strong>moslhes<br />

a leitura de Édipo Rei, por se tratar de peça muito conheci<strong>da</strong> e amplamente<br />

edita<strong>da</strong>. Lembramos que muitos dos assuntos <strong>da</strong>s tragédias estão na poesia épica,<br />

sobretudo aquelas peças que enfocam o ciclo troiano. Para o momento, fi quemos<br />

com uma visão rápi<strong>da</strong> de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, como peça importante<br />

para a compreensão dos primórdios do mito.<br />

3.3. Prometeu Acorrentado<br />

Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos estranha a<br />

Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v. Trabalhos e dias). Afi rma<br />

Paul Mazon na introdução geral à obra de Ésquilo 3 :<br />

“Ésquilo compreende que a essência do drama deve ser esta idéia de justiça,<br />

que se incorporou à defi nição mesma do homem. To<strong>da</strong> ação humana formula<br />

uma questão de direito. A tragédia tratará, portanto, <strong>da</strong>s questões de direito”<br />

(ÉSCHYLE, 2002: XI).<br />

Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca, pela<br />

incapaci<strong>da</strong>de do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe compete, o<br />

homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A única maneira de


combater o excesso é a moderação, virtude suprema aos olhos do grego. Ao saber<br />

se moderar, o homem poderá conservar consigo o direito que lhe cabe. Entregarse<br />

às paixões é o meio mais rápido para que o homem se veja privado do seu<br />

direito.<br />

A discussão trava<strong>da</strong> em Prometeu acorrentado enfoca justamente a concepção<br />

de direito e justiça. Texto de <strong>da</strong>ta desconheci<strong>da</strong>, esta peça faz parte de uma<br />

trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado e Prometeu porta-fogo –, em que<br />

personagens divinos são mostrados numa teomaquia, a exemplo de Homero e<br />

de Hesíodo, com a diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não<br />

constituem tragédias, pois não comportam uma idéia moral.<br />

Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos, Prometeu<br />

é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o sepultamento vivo pela<br />

montanha e, posteriormente, com o martírio de uma águia, a águia de Zeus, que<br />

vem comer-lhe o fígado diariamente. Na peça, que ora estu<strong>da</strong>mos, única que<br />

nos sobrou, só vemos as duas primeiras partes <strong>da</strong> punição: o aprisionamento e o<br />

sepultamento vivo de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte<br />

<strong>da</strong> punição.<br />

O confl ito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do fogo ou do<br />

ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvi<strong>da</strong> de que o Titã se rebelou e quebrou<br />

a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas Prometeu é detentor de um segredo<br />

importante para Zeus, o oráculo de Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos<br />

desdobramentos ele conhece por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu<br />

nome signifi ca o que conhece antes. No confl ito <strong>da</strong> peça fi ca clara a desmedi<strong>da</strong> de<br />

Zeus em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que acompanham<br />

Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo desta desmedi<strong>da</strong>. Ao que<br />

parece, o endurecimento <strong>da</strong> punição é menos pelo roubo do fogo e mais por ser<br />

o Titã detentor de um segredo <strong>da</strong>noso a Zeus, cuja revelação depende de sua<br />

libertação.<br />

Na trilogia, se estabelece que é <strong>da</strong> desmedi<strong>da</strong> que se reconhece,<br />

dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes importantes e<br />

necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus cósmico, que ordena o<br />

universo, deverá se moderar e permitir a libertação de Prometeu – primeiro<br />

com Hércules matando a águia, depois com a troca de Prometeu pelo Centauro<br />

Quíron, que, ferido por Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã –<br />

para não pôr em risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o<br />

episódio de Io, antepassa<strong>da</strong> de Hércules, que toma boa parte <strong>da</strong> peça.<br />

A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e <strong>da</strong> Força, levando<br />

Prometeu, que segue e se mantém calado, para o aprisionamento. Hefestos é<br />

quem tem a obrigação de prender Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de<br />

Prometeu foi roubar o fogo brilhante de onde nascem to<strong>da</strong>s as artes para leválo<br />

aos homens: Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus<br />

como novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração infl exível, duro<br />

como um rochedo.<br />

O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos mostra-se<br />

constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o confl ito <strong>da</strong> técnica obriga<strong>da</strong> a<br />

servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a peça trata <strong>da</strong> prepotência, palavra<br />

que não deve ser entendi<strong>da</strong> como arrogância, mas com o sentido de alguém ter o<br />

poder sobre to<strong>da</strong>s as coisas.<br />

135


136<br />

Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de sua<br />

condição, iniciando com a invocação <strong>da</strong>s forças <strong>da</strong> natureza:<br />

“Éter divino, ventos de asa rápi<strong>da</strong>, águas dos rios, sorriso inumeráveis <strong>da</strong>s<br />

vagas marinhas, Terra, mãe dos seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco<br />

aqui: vede o que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).<br />

O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do que uma<br />

rebelião contra Zeus, é a afi rmação de Prometeu como mestre de to<strong>da</strong>s as artes.<br />

O fogo aí aparece como um grande recurso, permitindo aos seres humanos a<br />

entra<strong>da</strong> na civilização. To<strong>da</strong> a constituição <strong>da</strong> peça aponta para os primórdios,<br />

para os mitos <strong>da</strong> origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro,<br />

formado pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei<br />

que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à titanomaquia – a<br />

luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo, seu pai, Cronos. Esta vitória, só<br />

possível com a astúcia de Zeus, mais do que a força dos seus adversários, conta<br />

com a aju<strong>da</strong> de Prometeu, antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva,<br />

então, Prometeu a cair em desgraça e passar <strong>da</strong> ventura à desventura, como diria<br />

Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter <strong>da</strong>do cegas esperanças<br />

aos seres humanos. Ele comete a desmedi<strong>da</strong> e não segue o aforisma básico <strong>da</strong><br />

contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v. 309).<br />

Oceano, pai <strong>da</strong>s Oceânides, intervém para recriminar Prometeu por sua<br />

falta de humil<strong>da</strong>de e por querer se opor a um monarca, cujo poder não tem<br />

contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta aju<strong>da</strong>r Prometeu, mostrando-se<br />

disposto a intervir junto a Zeus a seu favor, mas é ironizado pelo Titã. Em lugar<br />

de se mostrar humilde, Prometeu passa a desfi ar todos os benefícios que levou<br />

aos seres humanos. E aí, fl agramos o confl ito dialético <strong>da</strong> peça: quem ensinou aos<br />

seres humanos to<strong>da</strong>s as artes, para libertação <strong>da</strong> ignorância, ignora a arte de se<br />

libertar a si mesmo:<br />

“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem ouvir, e, iguais às formas<br />

oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles<br />

ignoravam as casas de tijolo ensolara<strong>da</strong>s, eles ignoravam o trabalho <strong>da</strong> madeira;<br />

eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no fundo de grotas fecha<strong>da</strong>s ao<br />

sol” (v. 447-453).<br />

Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as letras, a<br />

arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a vela, a medicina, as<br />

artes divinatórias, a ornitomancia, a queima <strong>da</strong> carne envolta na gordura para<br />

saber os presságios; revelou-lhes os tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze,<br />

ferro: “Com uma palavra tu saberás tudo ao mesmo tempo: to<strong>da</strong>s as artes aos<br />

mortais vieram de Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).<br />

O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça, pois anuncia<br />

o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações depois. Persegui<strong>da</strong> pelo<br />

fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por Hermes, enquanto a vigiava, Io vai<br />

falar com Prometeu, que lhe prediz o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a<br />

picam, atravessará o estreito que separa a Europa <strong>da</strong> Ásia e que levará seu nome<br />

(futuro estreito de Bósforo ou passagem <strong>da</strong> vaca, pois Io se apresenta como uma


novilha). Depois, chegando ao Egito, Io <strong>da</strong>rá à luz Epafos, iniciador de gerações que<br />

vão culminar em Hércules, o futuro libertador do Titã (v. genealogia em segui<strong>da</strong>).<br />

A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a que<strong>da</strong> de Zeus:<br />

o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o fi lho por ele gerado<br />

será mais forte que o pai, proporcionando a sua que<strong>da</strong>. Com a que<strong>da</strong>, Zeus saberá<br />

qual a diferença entre reinar e servir (v. 926-927).<br />

Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos maiores (v.<br />

944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que proporcionará a que<strong>da</strong> de<br />

Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio de orgulho e de ironia, para quem o<br />

segredo só será revelado com a libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser<br />

Zeus desconhecedor do lamento, Prometeu retruca:<br />

“Não existe na<strong>da</strong> que com a velhice, o tempo não ensine” (v. 980).<br />

Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será sepultado vivo<br />

pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu fígado eternamente. Na<br />

sua fala fi nal, Prometeu faz o encerramento com o mesmo lamento inicial sobre a<br />

injustiça de que é vítima:<br />

“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila; nas suas profundezas,<br />

ao mesmo tempo, muge a voz do trovão; em ziguezagues embrasados o raio<br />

surge explodindo; um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se<br />

lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declara<strong>da</strong> entre os ventos, e o éter<br />

já se confunde com os mares. Eis, portanto, a tormenta que, para me espantar,<br />

manifestamente vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha<br />

mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz ofereci<strong>da</strong> a todos, vós<br />

vedes bem as iniqüi<strong>da</strong>des que eu suporto? (v. 1080-1093)<br />

É essencial para o estudo <strong>da</strong> peça que compreen<strong>da</strong>mos o seguinte: Prometeu<br />

está ligado ao mito primordial <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> terra, dos deuses e dos homens, fruto<br />

de uma teogonia, que se desdobra em uma titanomaquia, para estabelecimento de<br />

uma cosmogonia (v. Hesíodo, Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo<br />

partilhando o poder com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do<br />

interior <strong>da</strong> terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela<br />

uma possível que<strong>da</strong> de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a justiça que vai<br />

de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir Prometeu pelo roubo do fogo,<br />

levado aos seres humanos, mas é justo que ele seja punido por tirá-los <strong>da</strong> cegueira<br />

em que viviam, abrindo-lhes as portas <strong>da</strong> civilização? Eis a grande questão <strong>da</strong> peça.<br />

Para não correr o risco de retorno ao caos com a per<strong>da</strong> do seu poder, Zeus<br />

terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedi<strong>da</strong> e proporcionando<br />

a libertação de Prometeu, através de uma <strong>da</strong>s mulheres por ele fecun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, Io.<br />

A libertação sairá <strong>da</strong>s mesmas mãos de quem puniu. Saindo <strong>da</strong> ventura para<br />

desventura, Prometeu conhece antecipa<strong>da</strong>mente a possível que<strong>da</strong> de Zeus, mas<br />

ignora como poderá se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a<br />

justiça divina, o oráculo de Thêmis.<br />

Por fi m, podemos ver Prometeu acorrentado como uma alegorização <strong>da</strong> Pólis,<br />

no sentido de que a civilização está em desacordo com o poder prepotente que,<br />

como diz Oceano, não tem contas a prestar.<br />

137


138<br />

Genealogia de Hércules<br />

GLOSSÁRIO<br />

Acrópole: Literalmente, ci<strong>da</strong>de alta, ci<strong>da</strong>de no cume. É a parte alta <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo em louvor de Palas<br />

Atena, a deusa protetora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Antístrofe: Movimento do coro para a esquer<strong>da</strong>, em torno do altar, no<br />

centro <strong>da</strong> orquestra, durante a apresentação <strong>da</strong> tragédia.<br />

Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O deus Dionisos<br />

também era conhecido como Baco.<br />

Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e pie<strong>da</strong>de. A catarse<br />

era a conseqüência disso, objetivando a purifi cação <strong>da</strong>s emoções.<br />

Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por Ésquilo.<br />

Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão <strong>da</strong> faloforia.<br />

Entusiasmo: Trata-se <strong>da</strong> possessão divina, a animação por um transporte<br />

divino, para transformar-se em bacante.


Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa <strong>da</strong> Ásia, que dá acesso<br />

do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte Européia do Estreito<br />

de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu<br />

nome signifi ca literalmente “Passagem <strong>da</strong> Vaca” por causa de Io.<br />

Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no centro <strong>da</strong><br />

orquestra, durante a apresentação <strong>da</strong> tragédia.<br />

Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de Dionisos<br />

buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o deus pudesse<br />

entrar nele.<br />

Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong>de. Os seguidores<br />

do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em homenagem ao deus<br />

Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela fertili<strong>da</strong>de.<br />

Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril, durante a<br />

primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> colheita.<br />

Durante essas festas acontecia o concurso de teatro.<br />

Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta e uma<br />

Oceânides, mas a lista teria pelo menos três mil. São, como o próprio nome indica,<br />

divin<strong>da</strong>des marinhas.<br />

Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo dos<br />

pássaros ou do estudo de suas entranhas.<br />

Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado.<br />

Pólis: Assim se chama a ci<strong>da</strong>de grega, a partir do século VI a. C. A pólis<br />

marca a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Grécia na democracia, com os ci<strong>da</strong>dãos (polites) se reunindo<br />

em torno <strong>da</strong> praça (ágora) para tomar as decisões.<br />

Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do único<br />

personagem em cena.<br />

Reconhecimento: Momento <strong>da</strong> tragédia em que o personagem sai <strong>da</strong><br />

ignorância para o conhecimento dos fatos.<br />

Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilía<strong>da</strong>, nos Cantos<br />

XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses na guerra de Tróia,<br />

para que eles tomem o partido que lhes parecer melhor. Também na Teogonia<br />

de Hesíodo existe uma teomaquia, mais especifi camente uma titanomaquia, na<br />

luta de Zeus contra os Titãs, liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor,<br />

aprisionando os Titãs no Tártaro.<br />

Titanomaquia: V. Teomaquia.<br />

Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresenta<strong>da</strong>s por ocasião dos<br />

concursos.<br />

Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por Sófocles.<br />

139


UNIDADE IV<br />

ESTUDO DE VIRGÍLIO – O LIVRO I DA ENEIDA<br />

4.1 Estudo de Virgílio<br />

Publius Vergilius Maro (Mântua, 70 a. C. – Brundísio ou Bríndise, 19 a.<br />

C.), considerado um dos maiores poetas <strong>da</strong> língua latina, viveu no período<br />

Clássico <strong>da</strong> literatura latina – a chama<strong>da</strong> I<strong>da</strong>de de Ouro do imperador Otávio<br />

Augusto –, momento em que a literatura atinge seu apogeu, contando para isto<br />

com o concurso <strong>da</strong> fi gura de Mecenas, amigo de Otávio. Estu<strong>da</strong>nte de gramática<br />

e retórica na juventude, Virgílio prefere a companhia de fi lósofos e poetas, por<br />

reconhecer na timidez uma barreira para enfrentar os debates retóricos. A partir<br />

<strong>da</strong> vitória de Otávio sobre Marco Antônio (31 a. C.), na batalha de Actium,<br />

e de sua aclamação como princeps (29 a. C.), Virgílio cai nas graças do futuro<br />

imperador, que lhe encomen<strong>da</strong> uma epopéia sobre a glória romana.<br />

De suas obras mais importantes, temos notícia <strong>da</strong>s Bucólicas (39 a. C.),<br />

poema do campo, em que pastores na natureza ideal desfrutam <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de<br />

fazendo poesia, cuja base são os Idílios de Teócrito (poeta grego do século III a. C.);<br />

as Geórgicas (29 a. C.), poema didático, dedicado a Mecenas, sobre a agricultura<br />

e a criação dos animais, inspirado em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (poeta<br />

grego do século VIII a. C.) e em De rerum natura de Lucrécio (poeta latino 99/94-<br />

55/50 a. C.) 1 . Por fi m, aquela que é considera<strong>da</strong> a sua obra-prima a Enei<strong>da</strong> (17 a.<br />

C.), epopéia inspira<strong>da</strong> na Ilía<strong>da</strong> e na Odisséia de Homero (VIII a. C.), narrando a<br />

fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s bases <strong>da</strong> futura Roma, o que virá a ser feito pelos descendentes de<br />

Enéias, personagem central do poema.<br />

A epopéia mais antiga entre os latinos é a tradução/a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> Odisséia<br />

de Homero por Livius Andronicus – Odissia (cerca de 250 a. C.) –, em cuja<br />

composição o poeta utilizou versos saturnianos. Só com Ennius e os Anais (século<br />

II a. C.) é que os romanos terão uma epopéia com o hexâmetro <strong>da</strong>ctílico ou<br />

espon<strong>da</strong>ico, <strong>da</strong>ndo a Roma a sua primeira obra de porte. Segundo Pierre Grimal<br />

(1997: 174), para escrever a sua epopéia, a Enei<strong>da</strong>, Virgílio aglutina a tradição<br />

homérica à nova tradição de Ennius, este considerado o pai <strong>da</strong> literatura latina.<br />

Tendo começado a composição <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> por volta de 29-28 a. C., dez anos<br />

depois Virgílio ain<strong>da</strong> não se <strong>da</strong>va por satisfeito com o que escrevera, por isto teria<br />

determinado a destruição de sua obra, quando estava próximo a sua morte, em<br />

19 a. C. Por interferência de Otávio é que o poema foi editado. O já imperador<br />

incumbiu dois amigos de Virgílio, também poetas, L. Varius e Plotius Tucca, de<br />

cui<strong>da</strong>rem <strong>da</strong> edição <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong> dois anos depois <strong>da</strong> morte do poeta, em<br />

17 a. C. (GRIMAL, 1997: 237).<br />

A len<strong>da</strong> <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção de Roma reserva o ano de 753 a. C. para a sua<br />

construção. Com a que<strong>da</strong> de Tróia, Enéias e um grupo de troianos são impelidos<br />

pelo destino a deixar a ci<strong>da</strong>de de Príamo e ir em busca de fun<strong>da</strong>r uma nova<br />

Tróia, tão gloriosa quanto aquela que acabava de ser toma<strong>da</strong> pelos gregos, após<br />

1 O poema foi lido por<br />

Virgílio, que alternava<br />

a leitura com Mecenas<br />

quando este cansava,<br />

a Otávio, em 29 a. C.,<br />

na Campânia, em seu<br />

retorno vitorioso do<br />

Oriente (GRIMAL, 1997:<br />

128)<br />

141


2 Veja-se, por exemplo,<br />

Tito Lívio, na bibliografi a.<br />

3 Tradução nossa do<br />

original grego.<br />

142<br />

dez anos de cerco. A chega<strong>da</strong> dos Troianos à Península Itálica põe em confronto<br />

Enéias e Turno, rei dos Rútulos, pela posse <strong>da</strong> terra. Vitorioso, Enéias fun<strong>da</strong> o<br />

reino de Lavínio, cujo nome é originário <strong>da</strong> fi lha do rei Latino, Lavínia, que ele<br />

recebe como esposa. Seu fi lho Iulo, em segui<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de de Alba Longa,<br />

onde reinará por trinta anos, e seus descendentes por trezentos anos. Passado<br />

esse tempo, a sacerdotisa vestal Rhéia Sílvia dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo,<br />

netos de Numitor, rei de Alba longa, proporcionando assim as condições para a<br />

futura fun<strong>da</strong>ção de Roma. Em linhas gerais, este é o argumento <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, com a<br />

ressalva de que o poema encerra com a morte de Turno por Enéias. Mesmo que<br />

não vejamos o desenrolar dos acontecimentos, eles são anunciados ao longo <strong>da</strong><br />

narrativa, desde o Livro Primeiro, numa antecipação do destino de Enéias e <strong>da</strong><br />

glória romana.<br />

A história de Enéias, como ancestral de Roma, está na tradição latina2 , mas<br />

é na Ilía<strong>da</strong> que Virgílio encontra a deixa literária para escrever a Enei<strong>da</strong>. A glória<br />

de Enéias como mito fun<strong>da</strong>dor e o destino de seus descendentes são anunciados<br />

no Canto XX do maior poema homérico, nos versos 292-3083 :<br />

Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:<br />

Ai de mim! sinto uma grande dor por Enéias do grande coração,<br />

Que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Peli<strong>da</strong>,<br />

Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.<br />

Tolo! Não é ele [Apolo] que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.<br />

Mas qual a necessi<strong>da</strong>de de que ele sofra estas dores,<br />

Inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceu<br />

Presentes aos deuses que habitam o vasto céu?<br />

Eia, vamos subtraí-lo <strong>da</strong> morte e levá-lo conosco,<br />

Se por um lado, o Croni<strong>da</strong> se indignaria de ver Aquiles<br />

Matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,<br />

Para que não pereça, sem posteri<strong>da</strong>de e aniquila<strong>da</strong>,<br />

A raça de Dár<strong>da</strong>nos, que, dentre todos os seus fi lhos,<br />

Nascidos dele e de uma mortal, o Croni<strong>da</strong> mais amou.<br />

Já a raça de Príamo, o Croni<strong>da</strong> odeia.<br />

É o poderoso Enéias que reinará, doravante, sobre os troianos,<br />

Ele e os fi lhos de seus fi lhos, que nascerão em segui<strong>da</strong>.<br />

Descendente de Dár<strong>da</strong>nos, fi lho amado de Zeus, Enéias deve ser salvo<br />

<strong>da</strong> luta contra Aquiles. Assim man<strong>da</strong> o Destino, para que ele possa ser rei dos<br />

troianos um dia, bem como os fi lhos de seus fi lhos. É com este argumento que<br />

Posídon, apesar de estar ao lado dos gregos na guerra de Tróia, salva Enéias de<br />

ser morto por Aquiles, envolvendo o Peli<strong>da</strong> em um nevoeiro tenebroso, e jogando<br />

Enéias em outra frente de combate, onde não será alcançado pelo melhor dos<br />

aqueus, Aquiles. Nestes versos também se encontra a personali<strong>da</strong>de piedosa de<br />

Enéias, sacrifi cando aos deuses do Olimpo.<br />

Contando com 9896 versos, dividi<strong>da</strong> em doze Livros ou Cantos, nós<br />

podemos distribuir, di<strong>da</strong>ticamente, os argumentos de ca<strong>da</strong> livro <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

seguinte maneira:<br />

Livro I (756 versos): Os Troianos na África – Enéias em Cartago<br />

Livro II (804 versos): As Narrativas de Enéias – O Fim de Tróia


Livro III (718 versos): As Narrativas de Enéias – Os Anos de Errância<br />

Livro IV (705 versos): Os Amores de Enéias e Dido – Morte de Dido<br />

Livro V (871 versos): Enéias na Sicília – Jogos Fúnebres em Honra de<br />

Anchises<br />

Livro VI (901 versos): A Desci<strong>da</strong> aos Infernos – Entrevista com Anchises<br />

Livro VII (817 versos): Enéias no Lácio – Juno e Alecto Semeiam a Discórdia<br />

Livro VIII (731 versos): A Aliança com Evandro – O Escudo de Enéias<br />

Livro IX (818 versos): O Cerco aos Troianos – Batalha contra Turno<br />

Livro X (908 versos): O Primeiro Embate – Morte de Mezêncio<br />

Livro XI (915 versos): O Segundo Embate – Morte de Camila<br />

Livro XII (952 versos): A Decisão – Morte de Turno<br />

Muitos são os estudos sobre a Enei<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> qual apresentando uma estrutura<br />

do poema. A estrutura <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> mais conheci<strong>da</strong> é aquela que divide o poema em<br />

duas partes, relacionando os seis primeiros livros à Odisséia e os seis últimos livros<br />

à Ilía<strong>da</strong>, numa estruturação inverti<strong>da</strong> com relação aos poemas homéricos. Apesar<br />

de simplista, podemos dizer que, em linhas gerais, esta estruturação não deixa de<br />

ser correta. Como, no entanto, trata-se de um poema de uma intertextuali<strong>da</strong>de<br />

complexa, nós propomos uma estrutura triádica para a sua análise, de modo a<br />

cobrir com mais proprie<strong>da</strong>de o poema. A saber:<br />

I. Provações (Livros I-IV): As provações são um rito de iniciação para<br />

Enéias como mito fun<strong>da</strong>dor. O herói, além de perder a pátria e o pai, tem<br />

a missão imposta pelo destino de fun<strong>da</strong>r uma nova Tróia. As provações,<br />

que se revelam entre os Livros I e III, apresentam uma transição no Livro<br />

IV, em que se mostram as provações de Dido, e a renovação dos votos <strong>da</strong><br />

missão de Enéias. O Livro I mostra a tempestade desencadea<strong>da</strong> por Éolo<br />

a mando de Juno, que faz Enéias se desviar de sua rota e bater com os<br />

costados no litoral <strong>da</strong> África do Norte, a Líbia de então, onde Dido constrói<br />

o reino de Cartago. O Livro II é o início <strong>da</strong>s narrativas de Enéias, mais<br />

especifi camente enfocando a que<strong>da</strong> de Tróia. Trata-se do melhor relato nas<br />

grandes epopéias <strong>da</strong> vitória dos gregos sobre os troianos, após uma guerra<br />

de dez anos. O Livro III dá continui<strong>da</strong>de às narrativas de Enéias, desfi ando<br />

o itinerário difi cultoso do herói, digno <strong>da</strong> Odisséia: viagens pelo mar, pestes,<br />

tempestades, errâncias, profecias sombrias, morte do pai, nova tempestade,<br />

desvio de rota... O Livro IV mostra os amores de Enéias e Dido, com o herói<br />

vendo-se obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O<br />

desdobramento de amor e fuga de Enéias leva Dido à morte, origem míticopoética<br />

dos desentendimentos futuros entre Roma e Cartago. Aqui se dão<br />

as três principais per<strong>da</strong>s de Enéias: a pátria, a esposa e o pai.<br />

II. Rituais (Livros V-VIII): Os rituais revelam o rito de passagem de Enéias<br />

em busca do pai e <strong>da</strong> pátria. Primeiro, os ritos fúnebres com que ele celebra<br />

o pai, no Livro V, com os jogos na Sicília, em Drépano, após um ano <strong>da</strong><br />

morte de Anchises; em segui<strong>da</strong>, no Livro VI, Enéias faz a Catábasis (desci<strong>da</strong><br />

ao inferno para o reencontro com o pai, que o aconselha e mostra o futuro<br />

glorioso de Roma), num ritual de conhecimento e clarifi cação do destino,<br />

e a Anábasis, subi<strong>da</strong> de volta ao mundo dos vivos para encontrar a pátria,<br />

143


144<br />

ritualisticamente encontra<strong>da</strong> no Livro VII, na chega<strong>da</strong> ao Lácio, após o<br />

cumprimento <strong>da</strong> sombria profecia de Celeno (Livro III), de que os troianos,<br />

de fome, comeriam as próprias mesas. É aí que se dá o rito fun<strong>da</strong>dor, com a<br />

invocação aos deuses: deuses do local, Ninfas, Rios e cursos d’água, Noite,<br />

Júpiter do I<strong>da</strong>, a mãe frígia Cibele, sua mãe celeste Vênus, e o pai Anchises,<br />

que se encontra no Érebo, nos Infernos. A este ritual, Júpiter responde<br />

com três trovões, aprovando e confi rmando o destino do herói, que passa<br />

a demarcar a terra prometi<strong>da</strong>, já construindo uma fortifi cação (Livro VII,<br />

versos 137-159). Finalmente, a transição que se opera no livro VIII, transição<br />

que vai <strong>da</strong> aliança com o Arcádio Evandro, que passeia com o troiano sobre<br />

o sítio <strong>da</strong> futura Roma, ao recebimento <strong>da</strong>s armas forja<strong>da</strong>s por Vulcano, em<br />

que se anuncia, ain<strong>da</strong> uma vez a glória de Roma, futura senhora do mundo.<br />

É este o momento em que Enéias põe termo aos ritos e revela-se um rei<br />

pronto para a guerra de conquista do novo reino.<br />

III. Combates (Livros IX-XII): Tendo adquirido a têmpera necessária e feitas<br />

as alianças indispensáveis com o Arcádio Evandro (Livro VIII) e o Etrusco<br />

Tarcão (Livro X), Enéias parte para a guerra contra Turno, rei dos Rútulos.<br />

No primeiro grande embate, Enéias mata o cruel Mezêncio, no Livro X; no<br />

segundo grande embate, morre Camila pelas mãos de Arrunte, no livro<br />

XI; por fi m, Enéias mata Turno, no Livro XII. A posse <strong>da</strong> terra é também<br />

a posse <strong>da</strong> mulher, Lavínia, em cuja homenagem ele colocará o nome do<br />

reino – Lavínio. Está forma<strong>da</strong> a base para a construção <strong>da</strong> futura Roma. Em<br />

suma, mito fun<strong>da</strong>dor, Enéias perde a pátria e o pai, para, reencontrando o<br />

pai, ser o pai <strong>da</strong> nova pátria (vejam-se, no Livro I, os versos 555, 580 e 699, e<br />

no Livro III, o verso 716, em que Enéias é chamado de Pater, pai.). É ver<strong>da</strong>de<br />

que o poema termina de maneira abrupta com a morte de Turno por Enéias,<br />

não se vendo, portanto, a fun<strong>da</strong>ção de Roma, sequer do reino Lavínio. No<br />

decorrer do poema, contudo, anuncia-se a ca<strong>da</strong> passo o destino de Enéias,<br />

vinculado à fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Roma gloriosa, senhora do Mediterrâneo, no início<br />

<strong>da</strong> sua glória, e senhora do mundo com Augusto.<br />

4.2 O Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> – Fim <strong>da</strong>s Provações pelo Mar<br />

Georges Dumézil se refere aos últimos seis livros <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> como presididos<br />

pelos “Fata fermés” ou destinos fechados (1995: 365-387). Ele considera que<br />

Enéias só verá com clareza o seu destino, após fazer a anábasis, a subi<strong>da</strong> do<br />

inferno, voltando para o mundo dos vivos. Tendo visto no mundo <strong>da</strong>s sombras<br />

a glória <strong>da</strong> futura Roma, apresenta<strong>da</strong> pelo seu pai Anchises, Enéias se apressa a<br />

voltar às naus e juntar-se aos seus companheiros. Os destinos são fechados para a<br />

maior parte dos personagens, que serão levados ao aniquilamento, como é o caso<br />

de Evandro (cujas esperanças estão deposita<strong>da</strong>s no fi lho Palante), Palante, Lausos,<br />

Camila, Mezêncio e Turno.<br />

No que diz respeito a Enéias, seu destino será confi rmado pela profecia de<br />

Fauno, pai de Latino, e de um arúspice a Evandro, a quem Enéias vai pedir aju<strong>da</strong>.<br />

Além do apoio de Evandro, Enéias vai contar com a aju<strong>da</strong> dos Etruscos de Tarcão,<br />

que querem vingança de Mezêncio e de suas cruel<strong>da</strong>des. Na profecia de Fauno,<br />

a fi lha do rei Latino deverá ser <strong>da</strong><strong>da</strong> em casamento a um estrangeiro; na do<br />

arúspice, as tropas contra Mezêncio devem ser coman<strong>da</strong><strong>da</strong>s por um estrangeiro.<br />

Para chegar a esta clareza, no entanto, Enéias faz um caminho tortuoso, narrado


nos primeiros quatro livros <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, o caminho <strong>da</strong>s provações. Vamos fazer um<br />

breve estudo do Livro I para podermos entender as provações do herói.<br />

Para o leitor que não se dá conta de que está diante de uma estrutura<br />

narrativa in medias res, este Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> seria o início <strong>da</strong>s provações de<br />

Enéias, com a tempestade desencadea<strong>da</strong> por Éolo a pedido de Juno, perseguidora<br />

do herói troiano. O ver<strong>da</strong>deiro início <strong>da</strong>s provações, contudo, acontece bem antes,<br />

com a que<strong>da</strong> de Tróia, mas o leitor só o conhecerá com o fl ash-back proporcionado<br />

pelo herói, nos Livros II e III. Abrindo com o proêmio – misto de invocação e<br />

proposição –, o Livro I nos apresenta o argumento do poema, dirigindo a uma<br />

leitura que não pode desconsiderar a ação do destino. Assim é que o herói Enéias<br />

nos é apresentado, compelido à fuga de Tróia pelo destino, exilado <strong>da</strong> pátria pela<br />

ação do destino – fato profugus (v. 2) 4 e assinalado pelos deuses por sua pie<strong>da</strong>de<br />

– insignem pietate uirum (verso 10). Sua missão é chegar à Itália, nas terras <strong>da</strong><br />

Lavínia e ali construir os altos muros <strong>da</strong> futura Roma.<br />

A narração já nos mostra Enéias em meio à tempestade, perseguido<br />

pela cólera de Juno, ressenti<strong>da</strong> com fatos passados e temendo fatos futuros.<br />

Ain<strong>da</strong> ira<strong>da</strong> com a escolha de Páris, no julgamento do Monte I<strong>da</strong>, e com o<br />

rapto do troiano Ganimedes por Zeus – fatos passados –, Juno continua com o<br />

seu propósito de acabar com os troianos, sobretudo, após saber que se Enéias<br />

fun<strong>da</strong>r uma nova Tróia, isto será a causa <strong>da</strong> perdição de Cartago, a ci<strong>da</strong>de por<br />

ela protegi<strong>da</strong> e que está sendo ergui<strong>da</strong> por Dido na costa <strong>da</strong> África do Norte, na<br />

Líbia de então (versos 12-33) 5 . Cartago é o fi m <strong>da</strong> errância custosa a Enéias e sua<br />

gente, antes de atingir o Lácio:<br />

(Juno) distanciava (os troianos) para bem longe do Lácio, por muitos anos<br />

e (os troianos) erravam por causa dos fados por todos os mares em torno.<br />

Tamanha difi cul<strong>da</strong>de era fun<strong>da</strong>r a nação Romana. (I, versos 31-33)<br />

Este primeiro capítulo é proléptico, contando com algum fl ash-back sobre a<br />

guerra de Tróia. A prolepse mais importante é a referente ao destino de Enéias,<br />

com Júpiter predizendo e reafi rmando a Vênus a missão de Enéias como mito<br />

fun<strong>da</strong>dor, que <strong>da</strong>rá aos homens leis e muralhas; e a glória <strong>da</strong> futura Roma. Os<br />

destinos dos troianos, portanto, permanecem imutáveis, na<strong>da</strong> fará com que o<br />

Deus mude suas decisões: Enéias reinará no Lácio por três anos, após submeter<br />

os rútulos, fun<strong>da</strong>ndo o Reino de Lavínio; Iulo reinará trinta anos após Enéias,<br />

fun<strong>da</strong>ndo o reino de Alba Longa; por trezentos anos reinarão os troianos<br />

até o nascimento de Rômulo e Remo, que irão fun<strong>da</strong>r Roma. Ciente do seu<br />

destino e dos trabalhos que irá enfrentar, Enéias exclama ao deparar-se com o<br />

formigamento <strong>da</strong> construção de Cartago:<br />

Ó afortunados, dos quais as muralhas já surgem! (I, verso 437)<br />

Na continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prolepse, o narrador nos conta <strong>da</strong> dominação <strong>da</strong> Grécia<br />

por Roma. Oprimi<strong>da</strong> pela casa de Assáraco, o fi lho de Tros, de cuja linhagem<br />

sairão Anchises e Enéias, a Ftia, a ilustre casa de Micenas e a venci<strong>da</strong> Argos,<br />

ironicamente serão subservientes aos Troianos outrora derrotados. Conclui-se<br />

essa prolepse com a expansão do Império Romano, com César, e o período <strong>da</strong> Pax<br />

Romana, com Augusto (versos 257-296) 6 . Roma será um império sem limites e sem<br />

fi m:<br />

4 To<strong>da</strong>s as citações <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong> são <strong>da</strong> edição<br />

<strong>da</strong> Les Belles Lett res,<br />

de Paris, constante <strong>da</strong><br />

bibliografi a. As traduções<br />

do latim e do grego são<br />

nossas, salvo quando<br />

forem devi<strong>da</strong>mente<br />

referencia<strong>da</strong>s.<br />

Esclarecemos também<br />

que as traduções são<br />

operacionais, com o<br />

sentido de entender o<br />

texto no seu original, sem<br />

pretensões poéticas.<br />

5 Hoje Tunísia.<br />

6 Analisaremos este trecho,<br />

mais minuciosamente,<br />

em segui<strong>da</strong>.<br />

145


146<br />

A estes eu não fi xo limites nem tempo:<br />

Um império sem fi m eu lhes dei (I, versos 278-9).<br />

A prolepse <strong>da</strong> narrativa, no entanto, não se dá apenas com o futuro glorioso<br />

de Roma. Ocorre também com o amor de Enéias e Dido, fato que acontecerá no<br />

Livro IV. A partir dos versos 667 e seguintes, prepara-se este amor, quando, por<br />

ocasião do banquete a Enéias, seu fi lho Ascânio é trocado, numa intervenção de<br />

Vênus, por Cupido, para insufl ar a paixão em Dido, que fi cará desde já embebi<strong>da</strong><br />

de um amor que lhe trará a infelici<strong>da</strong>de (I, verso749):<br />

E a infeliz Dido bebia um longo amor.<br />

Como sabemos, este Livro I é a chega<strong>da</strong> de Enéias em Cartago, onde<br />

terminam as suas provações pelo mar, o que denominaremos de rito iniciático. O<br />

fi nal <strong>da</strong>s provações se <strong>da</strong>rá em dois momentos, no templo de Juno e no banquete<br />

a Enéias, oferecido por Dido. Nas paredes do templo, que está sendo construído<br />

em homenagem a Juno, Enéias vê cenas <strong>da</strong> guerra de Tróia, que o levam às<br />

lágrimas. A Fama já havia difundido o infortúnio dos troianos em todos os<br />

recantos do mundo:<br />

Parou e chorou: “Em que lugar” perguntou “Achate,<br />

Que região na terra não está cheia de nossas dores?”<br />

(I, v. 459-460)<br />

Das cenas vistas por Enéias se destacam: Príamo e Aquiles irritado contra os<br />

atri<strong>da</strong>s (A irritação de Aquiles contra os atri<strong>da</strong>s, e mais especifi camente Agamêmnon,<br />

é o tema do Canto I <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>); recuo dos gregos ante os troianos (o que acontece na<br />

Ilía<strong>da</strong> até o Canto XVI); recuo dos troianos ante Aquiles (Ilía<strong>da</strong>, a partir do Canto XX);<br />

morte do rei Rheso <strong>da</strong> Trácia (Ilía<strong>da</strong>, Canto X); morte de Troilo ante Aquiles (Ilía<strong>da</strong>,<br />

Canto XXIV, segundo relato de Príamo); dor <strong>da</strong>s mulheres troianas (Ilía<strong>da</strong>, Cantos<br />

XXI-XXIV); morte, ultraje e resgate do corpo de Heitor (Ilía<strong>da</strong>, Cantos XXII-XXIV) e<br />

a luta de Pentesiléia, rainha <strong>da</strong>s Amazonas, alia<strong>da</strong>s dos troianos, morta por Aquiles<br />

(Pós-Homérica, de Quinto de Esmirna, episódio fora <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>).<br />

O segundo momento, que determina o fi m <strong>da</strong>s provações, é uma espécie de<br />

catarse de Enéias, quando instado por Dido a narrar as suas aventuras, o que se dá<br />

nos dois Livros seguintes. Enéias fala <strong>da</strong> que<strong>da</strong> de Tróia, <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> esposa (Livro<br />

II) e de sua errância, por terra e por mar, momento em que perde o pai (Livro III).<br />

Enéias tem consciência <strong>da</strong>s provações (I, v. 198-207), alerta os seus companheiros<br />

para o fato, mas não perde a esperança de dias melhores, prometi<strong>da</strong> pelo destino:<br />

Por vários acasos, por um sem grande número de perigos<br />

Dirigimo-nos para o Lácio, onde os fados um domícilio aprazível<br />

Acenam; ali as leis sagra<strong>da</strong>s nos permitirão ressuscitar o reino de Tróia.<br />

Tende paciência, e conservai-vos para as coisas favoráveis<br />

(I, versos 204-207).<br />

A análise de um trecho específi co do Livro I nos <strong>da</strong>rá a consciência <strong>da</strong><br />

estrutura triádica do herói Enéias. Trata-se dos versos 223 a 296, em que se<br />

observa a reafi rmação do destino de Enéias para a glorifi cação de Roma.


Sabemos que na Enei<strong>da</strong>, o destino de Enéias é fechado7 , pois se trata de um<br />

destino bom: o herói está determinado pelos deuses a fun<strong>da</strong>r uma ci<strong>da</strong>de tão<br />

gloriosa quanto Tróia recém-destruí<strong>da</strong> e assim perpetuar a progênie de Dár<strong>da</strong>no<br />

e a casa de Assáraco. Impelido, portanto, pelo fado – fato profugus –, Enéias se<br />

lança ao mar com os Penates de Tróia, em busca do lugar prometido e anunciado<br />

por Creúsa, sua esposa, que, no momento <strong>da</strong> destruição de Tróia, desaparece e,<br />

posteriormente, reaparece-lhe na condição de simulacro, para lhe falar <strong>da</strong>s terras<br />

<strong>da</strong> Hespéria, onde à beira do Tibre opulento o aguar<strong>da</strong>m a fortuna e uma esposa<br />

real. Após várias errâncias pelo mar, Enéias chega à costa <strong>da</strong> África, apesar <strong>da</strong><br />

perseguição <strong>da</strong> deusa Juno (Hera), ain<strong>da</strong> ressenti<strong>da</strong> com os troianos desde o<br />

julgamento do Monte I<strong>da</strong> – este apenas um dos motivos –, quando sua beleza foi<br />

preteri<strong>da</strong> por Páris, em favor de Vênus (Afrodite).<br />

Salvo por Netuno <strong>da</strong> tempestade desencadea<strong>da</strong> por Éolo a mando de Juno,<br />

Enéias consegue aportar na Líbia e assim escapar do naufrágio. A sua chega<strong>da</strong>,<br />

última provação do herói no mar, é observa<strong>da</strong> por Júpiter (Zeus), pai dos deuses,<br />

a quem coube determinar o destino de Enéias. Estamos no Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>,<br />

mais ou menos no seu primeiro terço8 . É nossa intenção montar a estrutura e<br />

desenvolver a análise de um trecho de 73 versos, compreendido entre os versos<br />

223 e 296 deste Livro I.<br />

O trecho pode ser divido em dois momentos: a queixa de Vênus a Júpiter<br />

(versos 223-253) e a confi rmação do destino de Enéias (versos 254-296). O primeiro<br />

momento é bem simples, pois se resume exatamente à queixa de Vênus a Júpiter,<br />

intercedendo pela sorte de seu fi lho Enéias, cobrando ao pai a promessa feita:<br />

os romanos, nascidos do sangue reanimado de Teucro, seriam os senhores do<br />

mundo:<br />

É <strong>da</strong>í, sem dúvi<strong>da</strong>, que, no curso dos anos, outrora prometeste,<br />

(nasceriam) os Romanos; do sangue reanimado de Teucro<br />

deverão surgir os senhores que manterão com to<strong>da</strong> soberania<br />

o oceano e as terras: que pensamento, pai, te mudou? 9<br />

(I, 234-237)<br />

Embora Vênus saiba que o destino de Enéias vai se cumprir – é determinação<br />

do pai Júpiter –, as provações tantas por que Enéias já passara (o que só vamos<br />

conhecer com a narrativa em fl ash-back dos Livros II e III) não foram sufi cientes<br />

para conduzi-lo a seu termo. O mundo inteiro teria se fechado com a tempestade<br />

de Juno, proibindo o herói de chegar à Itália (I, verso 233).<br />

Sabemos que to<strong>da</strong>s as provações são necessárias para a formação do<br />

herói, fazendo parte, portanto, de seu rito de passagem, Vênus não teria, pois,<br />

que questionar Júpiter sobre as determinações já conheci<strong>da</strong>s. Mas as razões de<br />

mãe são sempre de ordem emocional... No questionamento a Júpiter, Vênus<br />

compara a sorte de Enéias à de Antenor. Este troiano, para muitos um traidor,<br />

conseguiu escapar <strong>da</strong> destruição de Tróia e chegar sem perigos ao norte <strong>da</strong> Itália,<br />

onde fundou Pádua no vale inferior do rio Pó, ali vivendo em tranqüili<strong>da</strong>de. A<br />

comparação que mostra o sucesso de Antenor e os fracassos de Enéias tem sua<br />

razão de ser. Antenor não é de raça divina, Enéias é. Como permitir a um simples<br />

mortal, visto por muitos como traidor <strong>da</strong> pátria, sem ter sido assinalado pelos<br />

deuses, ter êxito na sua fuga e viver em paz? Enéias além de ser duplamente<br />

7 Ver DUMÉZIL, Georges<br />

(1995: 365): “A longa<br />

noite de Tróia, os anos<br />

de incerta navegação, os<br />

oráculos e os milagres,<br />

a tentação púnica<br />

evita<strong>da</strong>, tudo teve um<br />

sentido: reconduzi<strong>da</strong> a<br />

sua origem ausoniana,<br />

a realeza de Príamo vai<br />

refl orescer sobre esta<br />

terra prometi<strong>da</strong> enfi m<br />

toca<strong>da</strong>, a Itália.”<br />

8 O Livro I tem 756<br />

versos.<br />

9 A tradução, apenas<br />

operacional, é nossa.<br />

147


10 Neste Livro I, ain<strong>da</strong> há<br />

outras duas ocorrências<br />

do epíteto nos versos 305<br />

e 378.<br />

148<br />

divino – fi lho de Vênus e neto de Júpiter – foi designado pelo Destino para<br />

cumprir uma missão gloriosa. Trata-se de um herói em sua plenitude, escolhido<br />

pelos deuses (leia-se Júpiter) para perpetuação de uma raça e, mais ain<strong>da</strong>, para<br />

a construção de uma nova Tróia, desta feita com a devi<strong>da</strong> anuência divina. Bem<br />

ao contrário <strong>da</strong> outra Tróia que fora destruí<strong>da</strong> por ter sido construí<strong>da</strong> no erro e<br />

por nele ter persistido. Mito civilizador, que expande a civilização troiana para<br />

o Ocidente, Enéias deve ter suas provações de viagem termina<strong>da</strong>s, pois já se<br />

mostrou pio o sufi ciente para merecer chegar ao termo do seu destino. É chega<strong>da</strong><br />

a hora de ver realiza<strong>da</strong> a promessa à prole – a entra<strong>da</strong> na alta mora<strong>da</strong> do céu (I,<br />

verso 250) e a recompensa pela pie<strong>da</strong>de (I, verso 253) – com a retoma<strong>da</strong> do cetro e<br />

a reconstituição <strong>da</strong> realeza troiana, a partir de Enéias (I, verso 253).<br />

É neste pequeno fragmento que se revela, de modo inequívoco, o confl ito<br />

entre Vênus e Juno. Esta persegue, aquela protege Enéias. Este embate será<br />

vencido temporariamente, de modo ardiloso por Vênus, no Livro IV, quando do<br />

acordo entre as duas deusas para unir Enéias a Dido. Vênus acha lamentável,<br />

terrível mesmo (infandum!, verso 251) que os troianos tenham que padecer, sendo<br />

abandonados com seus navios pela cólera de uma única divin<strong>da</strong>de.<br />

É importante observar que deste pequeno fragmento de trinta versos,<br />

pelo menos três idéias fun<strong>da</strong>mentais para a compreensão <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> surgem.<br />

A primeira é a noção de que os deuses, mesmo interferindo na trajetória do<br />

herói, podendo até retar<strong>da</strong>r o cumprimento do destino, não podem mu<strong>da</strong>r<br />

o determinado pelo destino. Enéias sofreu to<strong>da</strong>s as provações possíveis e<br />

imagináveis, mas seu destino será cumprido. A segun<strong>da</strong> é a idéia de que o<br />

herói tem uma contraparti<strong>da</strong> a apresentar pelo destino bom que o aguar<strong>da</strong>. Não<br />

é porque o destino será cumprido que o herói não deva mostrar-se merecedor<br />

dele. As provações de Enéias são a sua preparação, seu rito de passagem para a<br />

condição do herói civilizador. É isto o que representa o recebimento <strong>da</strong>s armas<br />

fabrica<strong>da</strong>s por Hefestos, no Livro VIII <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>. A terceira idéia está liga<strong>da</strong> a um<br />

conceito religioso caro aos romanos: a pie<strong>da</strong>de (pietas). A pie<strong>da</strong>de de Enéias já<br />

se encontra na Invocação do poema (v. 10); o epíteto por que Enéias deverá ser<br />

conhecido, pius Aeneas, o piedoso Enéias, incansavelmente repetido ao longo <strong>da</strong><br />

narrativa, já se encontra no verso 220 deste Livro I10 .<br />

De acordo com Pierre Grimal (1981: 73), a pietas era uma atitude que<br />

consistia em observar escrupulosamente não somente os ritos, mas também as<br />

relações existentes entre os seres no universo. Inicialmente, tratava-se de uma<br />

espécie de justiça do mundo material, capaz de manter as coisas do mundo<br />

espiritual no seu lugar ou de remetê-las para lá, ca<strong>da</strong> vez que algo de natureza<br />

acidental pudesse provocar a desarmonia, portanto a injustiça. Grimal faz ain<strong>da</strong><br />

uma leitura etimológica do termo pietas, apontado uma relação estreita com o<br />

verbo piare, que designa uma ação de apagar uma mancha, um mau presságio,<br />

um crime (1981: 73).<br />

Ora, Enéias é piedoso, pois a sua atitude é de temente e obediente aos<br />

deuses, e de cumpridor dos rituais sagrados, atitude devi<strong>da</strong>mente comprova<strong>da</strong><br />

no curso <strong>da</strong> narrativa – veja-se o ritualístico Livro V, por exemplo –, mas já<br />

testa<strong>da</strong> no Livro II (versos 717-720), quando o herói se recusa a levar em suas<br />

mãos os Penates de Tróia, pois se encontrava sujo de poeira e sangue <strong>da</strong> guerra<br />

trava<strong>da</strong> contra os invasores argivos. Impuro, ele se encontrava proibido de tocálos<br />

(me.../ att rectare nefas, versos 718-719). É, pois, na condição de piedoso, que


Enéias deveria fun<strong>da</strong>r uma nova Tróia, limpando a anterior de sua mancha, do<br />

seu erro, assunto a que voltaremos mais adiante.<br />

Constatamos, portanto, que este pequeno trecho <strong>da</strong>s queixas de Vênus nos<br />

apresenta duas <strong>da</strong>s três partes estruturais <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>: as provações e os rituais<br />

advindos <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de. A terceira parte – as guerras – será apresenta<strong>da</strong> no trecho<br />

seguinte, o <strong>da</strong> resposta de Júpiter.<br />

A segun<strong>da</strong> parte do trecho, a confi rmação do destino de Enéias (I, versos 254-<br />

296), nos revela uma complexi<strong>da</strong>de muito maior, pois Virgílio na composição<br />

do seu poema utiliza-se substancialmente <strong>da</strong> história de Roma. Logo de início,<br />

vemos o resultado <strong>da</strong> missão de Enéias, como uma forma de Júpiter tranqüilizar a<br />

angústia <strong>da</strong> fi lha, para depois nos ser mostrado o roteiro que levará ao fi m dessa<br />

missão. Tranqüili<strong>da</strong>de expressa num rosto que serena o céu e as tempestades<br />

(uoltu, quae caelum tempestatesque serenat, verso 255), prometendo que os destinos<br />

dos descendentes de Vênus permanecem imutáveis (manent immota fata, versos<br />

257-258) e que a deusa verá surgirem os muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e ela mesma elevará<br />

Enéias aos astros do céu (feres ad sidera caeli/ magnanimum Aeneam, versos 259-<br />

260). Aqui se confi rma o Enéias empreendedor, fun<strong>da</strong>dor de ci<strong>da</strong>des. Mais<br />

abaixo, veremos, na revelação dos arcanos do Destino, o Enéias guerreiro que fará<br />

grande guerra na Itália, domando povos ferozes, além do Enéias empreendedor e<br />

sacerdote, pois <strong>da</strong>rá leis e ci<strong>da</strong>des aos homens. Não é sufi ciente que o herói seja<br />

apenas um mito fun<strong>da</strong>dor, ele deve ser um mito civilizador, cabe-lhe, portanto<br />

introduzir a civilização, o que se fará através <strong>da</strong>s leis, na Península Itálica:<br />

Este à Itália levará grande guerra, os povos ferozes<br />

aniquilirá e estabelecerá leis e muralhas aos homens<br />

Itália Antiga (Tito-Lívio, História de Roma)<br />

(I, versos 263-264)<br />

149


11 A condição de Vestal<br />

exigia <strong>da</strong> sacerdotisa a<br />

casti<strong>da</strong>de. Este foi um<br />

expediente de Amúlio,<br />

após matar os fi lhos<br />

homens do irmão<br />

Numitor. Impondo o<br />

sacerdócio à sobrinha,<br />

ele não teria que se<br />

preocupar com uma<br />

linhagem masculina<br />

que pudesse tirá-lo<br />

do poder. Vesta era<br />

uma deusa romana,<br />

identifi ca<strong>da</strong> com<br />

a grega Héstia, é a<br />

personifi cação <strong>da</strong><br />

Lareira (sempre no<br />

centro, seja do altar,<br />

<strong>da</strong> casa ou <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de).<br />

Protetora do fogo<br />

sagrado, Vesta teria<br />

sido introduzi<strong>da</strong> no<br />

Lácio por Enéias (v.<br />

Livro II <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>,<br />

versos 296-297). Numa<br />

também lhe erigiu<br />

um templo, com fogo<br />

perene e inextinguível<br />

(v. Ovídio, Fastos, 6,<br />

255-298). Tito Lívio nos<br />

mostra Numa Pompílio<br />

como rei virtuoso<br />

que escolhe jovens<br />

donzelas obriga<strong>da</strong>s<br />

à casti<strong>da</strong>de para o<br />

serviço de Vesta e lhes<br />

dá um tratamento pago<br />

pelo estado (I, XX: 1-3).<br />

12 Destrona o irmão, mata os<br />

sobrinhos homens e obriga a<br />

sobrinha a ser vestal (Tito<br />

Lívio, I, III: 10-11).<br />

13 Rhea Silvia engravi<strong>da</strong> de<br />

Marte e dá à luz gêmeos,<br />

expostos no leito do<br />

Tibre, aleitados por uma<br />

loba e criados pelo pastor<br />

Faustulus (Tito Lívio, I,<br />

IV:1-9)<br />

150<br />

Enéias terá um reinado curto, após a submissão dos Rútulos, o que ocorrerá<br />

após a morte de seu rei, Turno (V. Livro XII), não nos permitindo ver a fun<strong>da</strong>ção<br />

de Roma, distante <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do reino de Lavínio por Enéias cerca de 350 anos.<br />

Assim como não vemos a morte de Aquiles e a destruição de Tróia na Ilía<strong>da</strong>, fatos<br />

apenas anunciados a ca<strong>da</strong> passo <strong>da</strong> narrativa, também não veremos a construção<br />

e fun<strong>da</strong>ção de Roma, na Enei<strong>da</strong>, embora isso também seja anunciado ao longo <strong>da</strong><br />

narrativa. Vejam-se os Livros VI e VIII, por exemplo.<br />

A descendência de Enéias está garanti<strong>da</strong> através de Iulo, seu fi lho, fun<strong>da</strong>dor<br />

de Alba Longa, onde reinarão seus descendentes e de onde surgirá Roma. A<br />

construção de Roma virá com Rômulo, fi lho de Marte com Rhéia Sílvia ou Ília.<br />

Corrigindo uma usurpação – o trono tomado por Amúlio de seu irmão Numitor<br />

–, o deus Marte se une a Rhéia Sílvia, sacerdotisa Vestal11 obriga<strong>da</strong> pelo tio<br />

Amúlio, e ela dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo. Uma vez adultos, os rapazes se<br />

descobrem netos de Numitor, matam Amúlio e restituem o reino de Alba Longa<br />

ao avô. Agraciados com um pe<strong>da</strong>ço de terra ca<strong>da</strong> um (Rômulo no Palatino e Remo<br />

no Aventino), a Rômulo cabe fun<strong>da</strong>r a ci<strong>da</strong>de, orientado pelo augúrio dos doze<br />

abutres (Veja-se a seguir a genealogia do Rômulo e Remo, o mapa <strong>da</strong>s colinas de<br />

Roma e o mapa <strong>da</strong> Roma dos primórdios).<br />

13<br />

Mapa <strong>da</strong>s colinas de Roma (Tito-Lívio, História de Roma)<br />

12


Mapa <strong>da</strong> Roma dos primórdios (Tito-Lívio, História de Roma)<br />

O importante é ver como Rômulo é apresentado nessa prolepse de Júpiter<br />

– ele receberá a nação, construirá as muralhas mavórcias e <strong>da</strong>rá seu nome aos<br />

romanos (I, versos 276-277). Rômulo consulta, recebe e interpreta os augúrios,<br />

tendo por isto recebido com a anuência divina a ci<strong>da</strong>de, o que lhe confere<br />

a função sacerdotal; ele constrói as muralhas e dá nome ao povo, o que lhe<br />

confere a função empreendedora, por fi m, as muralhas são guerreiras: muralhas<br />

mavórcias, de Marte, o que lhe confere a função guerreira. Deste modo, há uma<br />

perfeita simbiose entre Enéias e Rômulo, desempenhando ambos as três funções<br />

do indo-europeu – Sacerdote, Guerreiro e Empreendedor.<br />

A Enei<strong>da</strong>, podemos dizer, acompanha esta estrutura do indo-europeu, vez<br />

que é possível dividir o poema em três momentos: as provações, os rituais e as<br />

guerras, com Enéias desempenhando as três funções. Se não vemos a fun<strong>da</strong>ção de<br />

Roma, mas acompanhamos a fun<strong>da</strong>ção de várias ci<strong>da</strong>des pelo herói (v. Livros III,<br />

IV, V e VII).<br />

A glória de Roma nos aparece apresenta<strong>da</strong> em prolepse por Júpiter a Vênus<br />

entre os versos 278 e 296. Dentro do espírito <strong>da</strong> Roma imperial em que Virgílio<br />

vivia, é natural que se cresse na glória perpétua do grande império que começava<br />

a ser construído por Augusto. A Enei<strong>da</strong>, a um só tempo, se refere ao passado e<br />

ao presente, numa exaltação do imperador Otávio Augusto, reconhecendo as<br />

151


14 A esse respeito se<br />

pronuncia André<br />

Bellessort, na introdução<br />

que prepara para a<br />

edição <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> <strong>da</strong> Les<br />

Belles Lett res, traduzi<strong>da</strong><br />

por ele (VIRGILE, 1952:<br />

VIII): “Virgile tourné<br />

vers le passé évoque<br />

l’origine divine de cett e<br />

Rome maîtresse des<br />

nations et se tournant<br />

vers l’avenir en proclame<br />

la pérennité” (Virgílio<br />

voltado para o passado<br />

evoca a origem divina<br />

desta Roma senhora <strong>da</strong>s<br />

nações e se voltando para<br />

o porvir proclama sua<br />

pereni<strong>da</strong>de).<br />

152<br />

mu<strong>da</strong>nças por que passara Roma desde o fi nal do segundo triunvirato, com a<br />

vitória de Otávio sobre Marco Antônio em Actium (31 a. C.) 14 , ligando-o à fi gura<br />

de Rômulo, fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Augusto aparece como novo fun<strong>da</strong>dor de Roma,<br />

permitindo um tempo de paz e prosperi<strong>da</strong>de. Assim, Enéias surge como a ligação<br />

entre os dois – Rômulo e Augusto – nas suas funções triplas de rei guerreiro, rei<br />

sacerdote e rei empreendedor. Observe-se que, assim como Enéias, Augusto perde<br />

o pai, perde a nação, para ser o reconstrutor de uma nova nação e, portanto, ser o<br />

pai dessa nação.<br />

A fala de Júpiter, portanto, não deixa a menor dúvi<strong>da</strong> sobre esse destino<br />

glorioso – aos romanos não ponho limites nem tempo para as conquistas: dei-lhes<br />

um império sem fi m (I, versos 278-279). Os romanos, gente toga<strong>da</strong>, devi<strong>da</strong>mente<br />

já favorecidos por Juno, dobra<strong>da</strong> pela força <strong>da</strong> pietas, serão os senhores do mundo<br />

(rerum dominos, verso 282 ). Mais do que promessa de Júpiter, este é o seu desejo –<br />

sic placitum (I, verso 283).<br />

Um dos momentos mais importantes do trecho em estudo é o que trata<br />

<strong>da</strong> dominação <strong>da</strong> Grécia por Roma, numa ironia do destino, invertendo as<br />

proposições: os antigos troianos, derrotados pelo exército de coalizão coman<strong>da</strong>do<br />

por Agamêmnon, que tinha em Aquiles o seu guerreiro mais temido, agora<br />

dominarão a Grécia, através <strong>da</strong> descendência que fará surgirem os romanos.<br />

Assim é que a casa de Assáraco manterá em servitude a Ftia e a ilustre Micenas, e<br />

dominará os Argivos vencidos (I, versos 283-285).<br />

Enéias é proveniente <strong>da</strong> casa de Assáraco e não <strong>da</strong> de Laomedonte. Se Zeus<br />

e os deuses têm raiva de Laomedonte, por sua impie<strong>da</strong>de, e de seu fi lho Príamo<br />

por permitir a impie<strong>da</strong>de, os provenientes de Assáraco, no caso Enéias e seus<br />

descendentes e protegidos, serão os escolhidos para a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> nova Tróia sob<br />

os auspícios dos deuses, por causa <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de de Enéias. A pie<strong>da</strong>de de Enéias já<br />

é conheci<strong>da</strong> desde a Ilía<strong>da</strong> (Canto XX, 292-308), quando Posídon o salva <strong>da</strong>s mãos<br />

de Aquiles. A justifi cativa é que Enéias não tem que morrer pelos outros, vez que<br />

o herói tantos presentes ofereceu aos deuses do vasto céu. Para que o destino se<br />

cumpra, é imperioso salvar Enéias. Eis o mote para Virgílio escrever a Enei<strong>da</strong>.<br />

Por sua vez, Laomedonte, pai de Príamo demonstra sua natureza ímpia<br />

ao negar o pagamento prometido a Apolo e a Posídon pela construção <strong>da</strong>s<br />

muralhas de Tróia. Príamo aceita que o fi lho, Páris, traga para casa uma mulher<br />

casa<strong>da</strong>, Helena, após o fi lho ter violado o laço sagrado <strong>da</strong> hospe<strong>da</strong>gem, que<br />

lhe foi concedi<strong>da</strong> por Menelau. A falta é grave, pois atinge diretamente a Zeus<br />

Hospe<strong>da</strong>dor. Aceitando a falta do fi lho, a mancha recai sobre todos os habitantes.<br />

A contaminação de Páris atinge a todos, por não ter sido repudiado por Príamo.<br />

O erro de um, não combatido, torna-se o erro de todos. Some-se a isto o fato de<br />

que Tróia foi construí<strong>da</strong> por Dár<strong>da</strong>nos (a ci<strong>da</strong>dela) e Ilos (a ci<strong>da</strong>de) sobre a colina<br />

onde, jogado por Zeus do Olimpo, caiu o Erro, temos to<strong>da</strong>s as condições para a<br />

destruição de Tróia. Nasci<strong>da</strong> do erro e tendo permanecido no erro, a ci<strong>da</strong>de deve<br />

ser destruí<strong>da</strong>.<br />

Enéias, tendo nascido <strong>da</strong> casa de Assáraco, longe, portanto, <strong>da</strong> mancha<br />

de Laomedonte e de Príamo é o escolhido para fun<strong>da</strong>r a nova ci<strong>da</strong>de com a<br />

aquiescência dos deuses. É por isto que Creúsa não pode seguir Enéias, quando<br />

<strong>da</strong> fuga de Tróia. O herói deve cortar todos os laços com os <strong>da</strong> raça de Príamo<br />

e de Laomedonte, independente de sua vontade. A rejeição dos deuses à i<strong>da</strong> de<br />

Creúsa com Enéias simboliza a rejeição à descendência de Príamo, na fun<strong>da</strong>ção


<strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de por Enéias (Livro II, versos 776-779). Da progênie de Enéias<br />

nascerão os que oprimirão os antigos opressores de sua raça: Roma dominará<br />

sobre a Grécia para ser a senhora do mundo.<br />

No primeiro “Hino a Afrodite”, <strong>da</strong>tado do fi nal do século VII a. C., a<br />

deusa do amor anuncia a Anquises, seu amante naquela ocasião, que dela ele<br />

terá um fi lho que reinará sobre Tróia, cuja descendência será continua<strong>da</strong> com o<br />

nascimento de fi lhos e de fi lhos dos fi lhos. Seu nome será Enéias, diz a deusa,<br />

porque uma atroz angústia a confrange por ter-se deixado cair no leito de um<br />

mortal (HOMÈRE, 1936, versos 196-199). Enéias, pois, está fa<strong>da</strong>do pelo aviso<br />

<strong>da</strong> mãe, a ser o rei de Tróia. Virgílio o que faz é contar com a tradição homérica<br />

<strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> aliando-a ao anúncio do “Hino Homérico a Afrodite”. Juntando essas<br />

peças e atribuindo a pietas ao herói, eis a razão <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>: mostrar a supremacia<br />

de Roma sobre o mundo, Roma, em cuja origem teve um herói piedoso15 (Veja-se<br />

a seguir a genealogia troiana).<br />

Com os olhos voltados para a sua época, Virgílio não poderia deixar de mostrar<br />

a importância <strong>da</strong> Gens Iulia, a família Júlia, inicialmente, vinculando Júlio César a<br />

Iulo, fi lho de Enéias. A extensão do império romano, apenas limitado pelo oceano,<br />

mas com a fama chegando até os astros, dever-se-á a Júlio César, divinizado após<br />

a morte e recebido nos céus pela própria Vênus 16 . Depois, mostrando o tempo de<br />

Augusto e a paz estabeleci<strong>da</strong> pelo seu governo:<br />

Então os duros séculos, com as guerras cessa<strong>da</strong>s, amansar-se-ão;<br />

a Fé encaneci<strong>da</strong> e Vesta, Remo com o irmão Quirino<br />

<strong>da</strong>rão as leis; e com as junturas estreita<strong>da</strong>s por ferro<br />

as terríveis portas <strong>da</strong> Guerra fechar-se-ão; dentro o Furor ímpio<br />

sentado sobre armas selvagens e apertado nas costas<br />

por cem nós de bronze, horrível, fremirá com a boca ensangüenta<strong>da</strong><br />

(I, versos 291-296).<br />

A Augusto cabe a honra de fazer um governo próspero, proporcionado pela<br />

paz 17 . A condição <strong>da</strong> paz, no entanto, depende do respeito aos ritos religiosos e<br />

15 Veja-se Grimal, falando<br />

de Virgílio: “C’est parce que<br />

la race romaine avait été<br />

fondé par um héros juste<br />

et pieux que Rome avait<br />

reçu l’empire du monde”<br />

(1981: 167) – Porque a raça<br />

romana foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

um herói justo e piedoso,<br />

Roma recebeu o império<br />

do mundo<br />

16 Grimal nos informa<br />

que César foi a última<br />

divin<strong>da</strong>de instala<strong>da</strong><br />

pelo povo romano no<br />

Fórum. No local em que<br />

seu corpo foi queimado,<br />

construiu-se uma coluna<br />

de mármore e um altar.<br />

Um dos primeiros atos<br />

de Otávio, após tomar a<br />

responsabili<strong>da</strong>de como<br />

herdeiro de César, foi<br />

proclamar ofi cialmente<br />

a divinização do<br />

“mártir”. Otávio ain<strong>da</strong><br />

fez construir um templo<br />

diante do local onde<br />

foi a pira de César,<br />

consagrado ao novo<br />

deus, Diuus Iulius (1981:<br />

232).<br />

17 Grimal se refere a um<br />

altar <strong>da</strong> Paz dedicado<br />

a Roma por Augusto,<br />

em 9 a. C., cuja frisa<br />

imortaliza no mármore a<br />

cerimônia <strong>da</strong> dedicatória.<br />

Diz Grimal: “On y voit<br />

l’Empereur avec sa<br />

famille, les magistrats,<br />

les prêtres, le Sénat,<br />

allant em procession<br />

accomplir le sacrifi ce aux<br />

dieux” (Vê-se na frisa<br />

o Imperador com sua<br />

família, os magistrados,<br />

os sacerdotes, o Senado,<br />

indo em procissão<br />

cumprir o sacrifício aos<br />

deuses. GRIMAL,1981:<br />

183)<br />

153


18 Tito-Lívio (I, XXI:<br />

4-5) apresenta Numa<br />

Pompílio instituindo<br />

uma festa solene para<br />

a Fides, no dia 01 de<br />

outubro. Numa Pompílio<br />

sucedeu Rômulo, no<br />

período de 717 a 673,<br />

quando foi rei (Tito-<br />

Lívio, I, XXI: 6). Foi com<br />

Numa que os romanos<br />

adquiriram uma sóli<strong>da</strong><br />

reputação de pietas e<br />

construíram um altar à<br />

Fides, fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> social e também <strong>da</strong>s<br />

relações internacionais,<br />

na medi<strong>da</strong> em que Fides<br />

implica a substituição<br />

<strong>da</strong>s relações de força<br />

pelas relações fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

sobre a confi ança mútua<br />

(Grimal, 1981: 18)<br />

19 É a aparição de Rômulo<br />

a Proculus Julius, após<br />

a sua apoteose, que<br />

confi rma a condição<br />

divina de Rômulo e a<br />

condição de Roma como<br />

senhora do mundo: “Abi,<br />

nuntia, Romanis caelestes<br />

ita uelle ut mea Roma<br />

caput orbis terrarum”<br />

– “Vai, anuncia aos<br />

romanos a vontade<br />

celeste que minha Roma<br />

(seja) senhora de todo o<br />

mundo” (Tito Lívio, I,<br />

XVI: 5:8). Quirino forma<br />

uma tríade com Júpiter<br />

e Marte (depois será<br />

substituído por Minerva).<br />

Deus guerreiro,<br />

assimilado a Rômulo,<br />

após a sua apoteose<br />

154<br />

dos elos familiares, que tão bem caracterizavam a cultura romana <strong>da</strong> época. A<br />

paz augusta, para Virgílio tem uma lei estabeleci<strong>da</strong> pela Fideli<strong>da</strong>de (Fides), a<br />

personifi cação <strong>da</strong> Palavra Da<strong>da</strong>, representa<strong>da</strong> por uma mulher idosa, de cabelos<br />

brancos, mais velha do que Júpiter. Grimal a caracteriza como o respeito à<br />

palavra, fun<strong>da</strong>mento de to<strong>da</strong> a ordem social e política (Grimal, 2000) 18 . Ain<strong>da</strong><br />

para Grimal, a Fides é uma <strong>da</strong>s manifestações mais primitivas <strong>da</strong> Pietas romana,<br />

aparecendo como o respeito aos compromissos (1981: 74). Virtude cardinal<br />

romana, a confi ança substitui a força pela clemência, reconhecendo o direito de<br />

todos os homens “de boa fé” à vi<strong>da</strong>, mesmo se a sorte <strong>da</strong>s armas lhes havia<br />

sido contrária (1981: 75). A Virtus como disciplina <strong>da</strong>s emoções e controle de<br />

si mesmo; a Pietas como respeito mútuo aos rituais religiosos, e a Fides como<br />

fi deli<strong>da</strong>de aos compromissos constituíram a trilogia do ideal <strong>da</strong> moral romana,<br />

para a defesa e garantia do grupo social, seja a família, seja a ci<strong>da</strong>de, como diz<br />

Pierre Grimal (1981: 75). A seguir, veja-se a frisa do altar à Paz, erigido por<br />

Augusto.<br />

Frisa do altar à Paz (Museu do Louvre)<br />

Vesta, a deusa do fogo sagrado, seja do altar do lar ou <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, também<br />

é responsável pela paz, juntamente com Quirino, a divinização de Rômulo 19 ,<br />

agora em concordância com o irmão, Remo. A união <strong>da</strong> família em torno do fogo<br />

sagrado representa a união mesma <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. As desavenças do início <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de


devem ser postas de lado, em proveito do bem comum 20 . Os três deuses elencados<br />

por Júpiter correspondem às três funções do indo-europeu, aglutina<strong>da</strong>s em favor<br />

<strong>da</strong> paz:<br />

Fides = Firmeza e empenho <strong>da</strong> Palavra Da<strong>da</strong>, razão para o progresso (paz);<br />

Vesta = Proteção divina <strong>da</strong> casa e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de pelo fogo purifi cador (paz)<br />

Quirino e Remo = guerra concilia<strong>da</strong> (paz)<br />

Com o templo <strong>da</strong> guerra fechado 21 e o Furor ímpio aprisionado, Roma<br />

dominará sobranceira sobre os povos, pela força <strong>da</strong> confi ança e <strong>da</strong> lei. Este o<br />

sentido apresentado por Anchises a Enéias, na segun<strong>da</strong> prolepse dos destinos<br />

romanos na Enei<strong>da</strong>, no Livro VI:<br />

Tu regerás com poder os povos, Romano, lembra-te<br />

(estas serão tuas artes), impor a paz e os costumes,<br />

poupar os sujeitos e debelar os soberbos<br />

(v. 851-853).<br />

Este breve trecho do Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> nos abre a perspectiva de leitura do<br />

poema a partir de uma caracterização do herói Enéias e do seu destino glorioso,<br />

qual seja a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s bases de uma grande ci<strong>da</strong>de de onde se originará Roma,<br />

futura senhora do mundo. Enéias na sua caminha<strong>da</strong> pode ser lido e analisado<br />

pelos epítetos com que é brin<strong>da</strong>do. Sabemos que o epíteto mais comum na Enei<strong>da</strong><br />

é pius Aeneas, o piedoso Enéias, o que contribui para a sua caracterização como o<br />

sacerdote, na visão triádica <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de indo-européia. Ao lado desse epíteto,<br />

encontramos outro também muito freqüente, pater Aeneas, o pai Enéias, por sua<br />

condição de mito fun<strong>da</strong>dor e civilizador, coerente com a visão indo-européia do<br />

rei empreendedor. Por fi m, há outros três epítetos que se unem em um só, para a<br />

formação do rei guerreiro: Aeneas heros, o herói Enéias (Livro VI, verso 103), com<br />

suas variantes Troius heros (o herói troiano, Livro VI, verso 451; Livro XII, verso<br />

502) e Laomedontius heros (o herói Laomedôntio, Livro VIII, v. 18), e ingens Aeneas<br />

(o enorme Enéias, Livro VI, v. 413; Livro VIII, verso 367). Destacando-se também<br />

pela sua estatura física, Enéias combina em si to<strong>da</strong>s as habili<strong>da</strong>des que o tornam o<br />

grande herói, por cujas mãos nascerá uma grande ci<strong>da</strong>de. Não é gratuito o fato de<br />

ele ser apresentado pela Sibila de Cumas a Caronte, o barqueiro do inferno, como<br />

Troius Aeneas, pietate insiginis et armis (VI, verso 403) – O troiano Enéias, insigne<br />

pela pie<strong>da</strong>de e pelas armas –, confi rmando o verso 10 do Livro I, na primeira<br />

Invocação do poema, insignem pietate uirum – herói insigne pela pie<strong>da</strong>de.<br />

Em nossa leitura <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, percebemos que o herói Enéias aglutina as três<br />

funções <strong>da</strong> cultura indo-européia identifi ca<strong>da</strong>s por Dumézil (1995): a função<br />

Sacerdotal (Religião); a função guerreira (Guerra) e a função empreendedora<br />

(Riqueza). A partir <strong>da</strong> estrutura triádica que apresentamos para a Enei<strong>da</strong> –<br />

Provações (Livros I-IV), Rituais (Livros V-VIII) e Guerras (Livros IX-XII),<br />

podemos constatar como as duas partes iniciais se juntam para mostrar Enéias<br />

em cumprimento <strong>da</strong> sua função sacerdotal. Nos primeiros oito livros <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>,<br />

portanto, o herói é o pio Enéias, temente aos deuses, oferecendo-lhes rituais e<br />

sacrifícios, por eles escolhidos para <strong>da</strong>r nova pátria aos Penates, sendo guiado<br />

pelos deuses, em especial por Vênus e Apolo, contando com o apoio de Júpiter,<br />

a interferência de Mercúrio e a aju<strong>da</strong> de Netuno, para ser o construtor <strong>da</strong> nova<br />

20 A morte de Remo<br />

por Rômulo, apesar<br />

do fratricídio, marca<br />

simbolicamente a<br />

inviolabili<strong>da</strong>de futura<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de (Grimal, 1981:<br />

12) Segundo Tito Lívio,<br />

após terem recolocado<br />

o avô Numitor no trono<br />

de Alba Longa, Rômulo<br />

e Remo receberam terras<br />

onde foram expostos<br />

para ali fun<strong>da</strong>r, ca<strong>da</strong> um<br />

uma ci<strong>da</strong>de. Rômulo<br />

escolheu o Palatino e<br />

Remo o Aventino, em<br />

busca dos augúrios (Tito<br />

Lívio, I, VI: 3-4). Para<br />

Remo apareceram seis<br />

abutres e para Rômulo,<br />

doze. Começando a traçar<br />

os limites <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

Rômulo é ironizado por<br />

Remo que salta por cima<br />

<strong>da</strong>s muralhas inicia<strong>da</strong>s,<br />

sendo morto pelo irmão.<br />

Rômulo teria dito: “Sic<br />

deinde, quicumque alius<br />

transiliet moenia mea” –<br />

“assim (pereça) qualquer<br />

um outro que, a partir<br />

de agora, saltar minhas<br />

muralhas” (Tito-Lívio, I,<br />

VII, 1-3).<br />

21 O templo de Jano foi<br />

construído por Numa<br />

Pompílio, segundo Tito<br />

Lívio (I, XIX: 2). Quando<br />

aberto anunciava Roma<br />

em armas; quando<br />

fechado, reinava a paz ao<br />

redor dele.<br />

155


156<br />

Tróia. Mito fun<strong>da</strong>dor, pai <strong>da</strong> pátria, cabe ao pai Enéias, tantas vezes assim<br />

chamado ao longo do poema, a função sacerdotal. Nos últimos quatro livros <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong>, Enéias cumpre a sua função guerreira, sendo o herói que conquista a terra<br />

e a mulher, após ser devi<strong>da</strong>mente provado pelos deuses.<br />

Assim como o Livro IV mostra uma transição do Enéias <strong>da</strong>s provações ao<br />

Enéias ritualístico, porém dentro <strong>da</strong> mesma função sacerdotal, o livro VIII é um<br />

livro de transição entre uma função e outra, pois aí se dá a aliança de Enéias com<br />

Evandro e, posteriormente com Tarcão, que o reconhecem como o prenunciado<br />

pelos deuses para conduzir os destinos do Lácio. Não é por outro motivo que,<br />

nesse Livro, se dá a fabricação de suas armas por Vulcano, o que lhe concede a<br />

condição de herói pronto para as próximas funções – a guerra e a grandeza –, vez<br />

que o trabalho entalhado no seu escudo por Vulcano lhe mostra a grande glória<br />

que seus descendentes terão pela frente.<br />

É emblemático como nesse Livro VIII, Evandro leva Enéias a passear pelos<br />

sítios onde será erigi<strong>da</strong> a futura e gloriosa Roma, deixando entrever a terceira<br />

função, a do empreendimento e <strong>da</strong> riqueza. Esta relação – a de um troiano<br />

aju<strong>da</strong>do por um grego a construir a glória <strong>da</strong> futura Roma, mais tarde dominador<br />

<strong>da</strong> futura Grécia, é bem sintomática. Enéias e Evandro não apenas se unirão na<br />

guerra contra Turno e Mezêncio. Eles estão unidos pela amizade que Evandro<br />

tinha a Anquises e por serem, de certo modo, <strong>da</strong> mesma família. Atlas gera duas<br />

fi lhas, Electra e Maia, que se ligarão a Zeus, <strong>da</strong>ndo origem, respectivamente à<br />

família de Enéias e à de Evandro. Relações amigáveis que vêm dos antepassados<br />

e se confi rmam no presente para abrir a perspectiva <strong>da</strong> glória futura. Após<br />

esse reconhecimento de Enéias por Evandro, a celebração <strong>da</strong> aliança com um<br />

banquete ritualístico marca o fi m dos grandes rituais do herói. É o momento <strong>da</strong><br />

apresentação do futuro e <strong>da</strong> fabricação <strong>da</strong>s armas que permitirão a conquista <strong>da</strong><br />

terra para a realização <strong>da</strong> terceira função.<br />

O início dos combates, no Livro IX, com o cerco dos rútulos aos troianos,<br />

tal como na Ilía<strong>da</strong> se dá o cerco dos troianos aos gregos, prepara a arranca<strong>da</strong> de<br />

Enéias à consecução do seu destino. O cruel Mezêncio morre por suas mãos no<br />

Livro X; Arrunte mata a amazona Camila, no Livro XI, e Enéias mata Turno no<br />

Livro XII. Está feito o caminho para a conquista <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> mulher. Morto o<br />

inimigo, embora a narrativa ali termine, permanece a perspectiva anuncia<strong>da</strong> a<br />

ca<strong>da</strong> passo <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>: a fun<strong>da</strong>ção de Roma, tornando-se esta ci<strong>da</strong>de a cabeça do<br />

mundo. Aí se completaria a terceira função, a <strong>da</strong> riqueza e a <strong>da</strong> paz, conforme o<br />

prognóstico de Anchises (v. Livro VI).<br />

Desse modo, podemos dizer que Enéias aglutina em si as três funções<br />

– sacerdote, guerreiro e empreendedor – pois, como sabemos, ele é um mito<br />

fun<strong>da</strong>dor (v. Livro III). Mais do que isso, ele é o pai <strong>da</strong> pátria, conforme se<br />

anuncia ao fi nal do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a pátria,<br />

perde o pai, vai à busca do pai, para fun<strong>da</strong>r a nova pátria, sendo, portanto, o pai<br />

<strong>da</strong> pátria, que será a cabeça do mundo.<br />

Observação: Para a assimilação mais efi caz do conteúdo desta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>,<br />

recomen<strong>da</strong>mos a leitura do Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> de Virgílio.


Glossário<br />

Anábasis: Movimento ritualístico de subi<strong>da</strong> dos Infernos, realizado por<br />

Enéias no Livro VI <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>.<br />

Aventino: Um dos montes sobre o quais Roma foi erigi<strong>da</strong>. O Aventino<br />

coube a Remo.<br />

Cartago: Ci<strong>da</strong>de no norte <strong>da</strong> África, atual Tunísia. Travou três guerras<br />

contra Roma – Guerras Púnicas – entre os séculos III e II a. C., até ser totalmente<br />

destruí<strong>da</strong>. Fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por colonos tírios que teriam em seu comando, segundo o<br />

mito, a rainha Dido.<br />

Catábasis: Movimento ritualístico de desci<strong>da</strong> aos Infernos, realizado por<br />

Enéias no Livro VI <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>.<br />

Ganimedes: Jovem troiano de rara beleza, fi lho de Tros, raptado por Zeus<br />

(Júpiter) para servir de escanção no Olimpo. Este rapto é um dos motivos por que<br />

Hera (Juno) tem raiva dos troianos e persegue Enéias.<br />

Destinos Fechados: Diz-se do destino que será cumprido, sem que na<strong>da</strong><br />

possa alterá-lo. Enéias chegará ao Lácio e fun<strong>da</strong>rá as bases <strong>da</strong> futura Roma.<br />

Ninguém pode alterar tal decisão, nem mesmo os deuses. Juno, por exemplo, o<br />

máximo que poderá fazer é retar<strong>da</strong>r o acontecimento.<br />

Jogos Fúnebres: Jogos realizados em homenagem a um herói morto. Estes<br />

jogos se dão no Livro V <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, em homenagem a Anquises, pai de Enéias.<br />

Lácio: Região na parte ocidental <strong>da</strong> Península Itálica, às margens do mar<br />

Tirreno e corta<strong>da</strong> pelo rio Tibre, aonde Enéias chega para fun<strong>da</strong>r a nova Tróia, a<br />

futura Roma.<br />

Líbia: Para a geografi a dos tempos de Virgílio, o norte <strong>da</strong> África era<br />

praticamente dividido entre a Líbia e o Egito. Quando Virgílio se refere à Líbia no<br />

Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, devemos entender não a Líbia atual, mas a Tunísia, onde está<br />

situado o sítio arqueológico de Cartago.<br />

Palatino: Um dos montes sobre os quais Roma foi erigi<strong>da</strong>. O Palatino coube<br />

a Rômulo.<br />

Parcas: Irmãs míticas que personifi cavam o destino. Eram conheci<strong>da</strong>s como<br />

Moiras pelos gregos e se chamavam Cloto, Láquesis e Átropos.<br />

Penates: Deuses protetores do lar e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Quando Enéias é incumbido<br />

pelos deuses a fugir de Tróia, ele deverá levar consigo os Penates, necessários<br />

para a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> nova ci<strong>da</strong>de.<br />

Rito de Passagem: Rito obrigatório na formação do herói. Uma vez pronto,<br />

o herói poderá ser investido nessa nova condição. Após descer aos Infernos e<br />

fazer as alianças com Evandro e Tarcão, Enéias está pronto para receber as armas<br />

fabrica<strong>da</strong>s por Vulcano.<br />

Rito Iniciático: Rito que inicia o herói e o prepara para a sua condição fi nal.<br />

Enéias tem que passar por to<strong>da</strong>s as provações, para poder mu<strong>da</strong>r de status e ser<br />

considerado o novo pai. Com a morte de Anquises e os jogos fúnebres em sua<br />

homenagem, Enéias está pronto para a desci<strong>da</strong> aos Infernos.<br />

Tibre: Rio que corta a ci<strong>da</strong>de de Roma em duas partes. É às margens do<br />

Tibre que Enéias irá fun<strong>da</strong>r a nova ci<strong>da</strong>de, que <strong>da</strong>rá origem a Roma.<br />

Tírios: Colonos oriundos de Tiro, na Fenícia (atual Líbano) para o norte <strong>da</strong><br />

África, onde edifi caram Cartago.<br />

Vestal: Sacerdotisa <strong>da</strong> deusa Vesta, protetora do fogo sagrado. Às vestais se<br />

impunha a casti<strong>da</strong>de.<br />

157


158<br />

Exercícios<br />

1. Leia atentamente o trecho abaixo e disserte sobre o que se pede:<br />

“Houve uma ci<strong>da</strong>de antiga, colonos tírios a edifi caram, Cartago, defronte<br />

<strong>da</strong> Itália e longe <strong>da</strong> foz do Tibre, abun<strong>da</strong>nte em riquezas e temível pelo seu ardor<br />

guerreiro; diz-se que Juno a amava mais do que to<strong>da</strong>s as outras terras, mais do<br />

que a própria Samos. Lá, em Cartago, estavam suas armas, lá estava seu carro;<br />

já então a deusa tencionava não só favorecer aquele reino, mas também que ele<br />

dominasse os demais, se de algum modo os fados o permitissem. Ela, porém,<br />

ouvira que uma raça oriun<strong>da</strong> do sangue troiano um dia lançaria por terras as<br />

ci<strong>da</strong>delas tírias; ouvira que um povo, reinando ao longe e soberbo na guerra,<br />

viria para o excídio <strong>da</strong> Líbia: assim determinaram as Parcas. Satúrnia, isto<br />

temendo e lembra<strong>da</strong> <strong>da</strong> antiga guerra que dirigira, como primeira <strong>da</strong>s deusas,<br />

junto de Tróia, a favor dos seus caros argivos, e também porque as causas <strong>da</strong><br />

ira e os cruéis ressentimentos ain<strong>da</strong> não tinham abandonado sua memória, mas<br />

permaneciam gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a afronta <strong>da</strong> sua<br />

beleza despreza<strong>da</strong>, e não só a geração odiosa dos troianos mas igualmente as<br />

honras do raptado Ganimedes; infl ama<strong>da</strong> por esses ultrajes, afastava para longe<br />

do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos Dânaos e do<br />

implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados, an<strong>da</strong>vam errantes, há longos anos,<br />

ao redor de todos os mares. Tanto era pesa<strong>da</strong> a tarefa de fun<strong>da</strong>r a nação romana!<br />

(Enei<strong>da</strong>, Livro I, tradução de Tassilo Orpheu Spalding)<br />

A que parte <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> se refere o trecho? Contextualize.<br />

1.2. Quais os dois povos diretamente envolvidos no trecho e quais seus<br />

respectivos destinos?<br />

1.3. Por que Juno é chama<strong>da</strong> de Satúrnia?<br />

1.4. Identifi que o povo que ela persegue e explique os motivos <strong>da</strong><br />

perseguição.<br />

2. Com base na leitura do Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, explique por que Enéias é<br />

um mito fun<strong>da</strong>dor.<br />

3. Em que termos se <strong>da</strong>rá a sucessão de Enéias?<br />

4. Quando e de que forma se <strong>da</strong>rá o surgimento de Roma?<br />

5. Qual o prognóstico para a glória de Roma?<br />

6. Que grande homem virá de Iulo, quais suas glórias e que período<br />

histórico virá em segui<strong>da</strong>, conduzido por outro grande homem?


7. Por que o Livro I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> pode ser chamado de proléptico? Dê<br />

exemplo.<br />

8. O que é a estrutura triádica <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>?<br />

9. Que deus protege Enéias na confi rmação de seu destino? Dê dois<br />

exemplos.<br />

10. Explique o texto abaixo, contextualizando-o:<br />

“Tal é a minha vontade. Tempo virá, após decorridos muitos lustros, que a<br />

casa de Assáraco oprimirá a Ftia e a ilustre Micenas, e dominará sobre a venci<strong>da</strong><br />

Argos. Depois nascerá César, troiano de bela origem, que estenderá seu império<br />

até o Oceano e sua fama até os astros” (Livro I).<br />

Textos<br />

Depois de você ter assistido às aulas, lido os textos, participado <strong>da</strong>s<br />

explicações e dos debates, tente fazer a leitura dos dois textos abaixo, com base<br />

na experiência adquiri<strong>da</strong> <strong>da</strong> leitura do Clássico.<br />

Lendo a Ilía<strong>da</strong><br />

Olavo Bilac<br />

Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortado<br />

De relâmpagos, onde a alma potente<br />

De Homero vive, e vive eternizado<br />

O espantoso poder <strong>da</strong> argiva gente.<br />

Arde Tróia... De rastos passa atado<br />

O herói ao carro do rival, e, ardente,<br />

Bate o sol sobre um mar ilimitado<br />

De capacetes e de sangue quente.<br />

Mais que as armas, porém, mais que a batalha,<br />

Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia<br />

O ódio e entre os povos a discórdia espalha:<br />

– Esse amor que ora ativa, ora asserena<br />

A guerra, e o heróico Páris encadeia<br />

Aos curvos seios <strong>da</strong> formosa Helena.<br />

(Obra reuni<strong>da</strong>; organização e introdução de Alexei Bueno. Rio de<br />

Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.103)<br />

159


160<br />

CONCLUSÕES<br />

Os Lusía<strong>da</strong>s (Canto I, Estrofe 3)<br />

Cessem do sábio Grego e do Troiano<br />

As navegações grandes que fi zeram;<br />

Cale-se de Alexandro e de Trajano<br />

A fama <strong>da</strong>s vitórias que tiveram;<br />

Que eu canto um peito ilustre Lusitano,<br />

A quem Neptuno e Marte obedeceram.<br />

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,<br />

Que outro valor mais alto se alevanta.<br />

Luís Vaz de Camões<br />

(Obra completa; organização, introdução, comentários e anotações de<br />

Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963,<br />

p. 9.)<br />

Esperamos que durante o processo, possamos acompanhar sua evolução,<br />

caro aluno, com relação à assimilação dos valores do mundo clássico. É<br />

fun<strong>da</strong>mental para uma discussão de uma aprendizagem efetiva que os que<br />

estão integrados a este estudo possam reconhecer a permanência dos elementos<br />

clássicos na nossa cultura. Consideramos que o conhecimento que foi posto à<br />

sua disposição é um caminho que lhe permitirá, caro Aluno, aprofun<strong>da</strong>r seus<br />

conhecimentos sobre o assunto. Estamos conscientes, no entanto, de que são<br />

necessárias mais leituras, por isto mesmo, estendemos a nossa bibliografi a com<br />

autores que consideramos básicos e incontornáveis. Acreditamos que os primeiros<br />

passos foram <strong>da</strong>dos, os demais dependem agora <strong>da</strong> vontade, <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de e,<br />

claro, <strong>da</strong>s condições ofereci<strong>da</strong>s <strong>da</strong>qui por diante, para que se possa avançar nesse<br />

caminho. Por outro lado, temos a plena convicção de que os estudos do Clássico,<br />

mesmo que de forma introdutória, contribuirão sobremaneira para a formação do<br />

professor <strong>da</strong> área de Humani<strong>da</strong>des e, por conseguinte, para o aperfeiçoamento<br />

do processo ensino-aprendizagem nesta área do conhecimento humano.<br />

Bibliografi a<br />

ALMEIDA. Zélia Cardoso de. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,<br />

1989.<br />

ARISTÓTELES et alii. A poética clássica; tradução de Jaime Bruma. 2. ed. São<br />

Paulo: Cultrix, 1985.<br />

BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico <strong>da</strong> mitologia e religião<br />

romana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.<br />

BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico <strong>da</strong> mitologia grega.<br />

Petrópolis, RJ: Vozes, 1991 (2 vol.).


CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos?; tradução de Nilson Moulin. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1993.<br />

COLUTOS. O rapto de Helena; edição trilíngüe – grego, latim e português;<br />

tradução do grego de Fabrício Possebon, ensaio de Milton Marques Júnior e notas<br />

de Alcione Lucena de Albertim. João Pessoa (PB): Idéia; Editora <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, 2005. *<br />

DUMÉZIL, Georges. Mythe et épopée I. II. III. Paris: Gallimard, 1995.<br />

ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes, Prométhée<br />

enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles Lett res,<br />

2002.<br />

EURIPIDE. Hécube; texte établi par Louis Méridier; traduit par Nicole Loraux et<br />

François Rey; introduction et notes de Jean Alaux. Paris: Les Belles Lett res, 2002.<br />

EURIPIDE. Iphigénie à Aulis; texte établi et traduit par François Jouan. Paris: Les<br />

Belles Lett res, 2002.<br />

GRIMAL, Pierre. Dicionário <strong>da</strong> mitologia grega e romana; tradução de Victor<br />

Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.<br />

GRIMAL, Pierre. La civilisation romaine. Paris: Flammarion, 1981 (este livro já se<br />

encontra traduzido para o português, editado pelas Edições 70 de Lisboa).<br />

GRIMAL, Pierre. O teatro antigo; tradução de António M. Gomes <strong>da</strong> Silva. Lisboa:<br />

Edições 70, 1986.<br />

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina; tradução de<br />

Mário <strong>da</strong> Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.<br />

HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le bouclier;<br />

texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lett res, 1996, versos 90-<br />

201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.<br />

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses; estudo e tradução de Jaa Torrano. 6. ed<br />

(revisa<strong>da</strong> e acresci<strong>da</strong> do original grego). São Paulo: Iluminuras, 2006.<br />

HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles<br />

Lett res, 1936.<br />

HOMERO. Ilía<strong>da</strong>; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de<br />

Janeiro: Ediouro, 2002.<br />

HOMERO. Odisséia; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 5. ed. Rio de<br />

Janeiro: Ediouro, 2002.<br />

MARQUES JÚNIOR, Milton e SOUZA, Erick France Meira de. O teatro <strong>da</strong> morte,<br />

<strong>da</strong> humilhação e <strong>da</strong> dor: análise e tradução do Canto XXII <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, de Homero;<br />

ensaio crítico de Milton Marques Júnior e tradução do grego de Erick France<br />

Meira de Souza. João Pessoa, Zarinha Centro de Cultura; Editora Universitária <strong>da</strong><br />

<strong>UFPB</strong>, 2007.*<br />

MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo; tradução de Emanuel<br />

Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />

OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles<br />

Lett res, 1928 (4. vol).<br />

161


162<br />

ROMILLY, Jaqueline. A tragédia grega; tradução Ivo Martinazzo. Brasília: UNB,<br />

1998.<br />

SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.<br />

TITE-LIVE. Histoire romaine I: la fon<strong>da</strong>tion de Rome; texte établi et traduit par<br />

Gaston Baillet, introduction et notes de Jean-Noël Robert. Paris: Les Belles Lett res,<br />

2005.<br />

VERGÍLIO. Enei<strong>da</strong>; tradução e notas de Tassilo Orpheu Spalding. 8. ed. São Paulo:<br />

Cultrix, 2003.<br />

VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris: Presses<br />

Universitaires de France, 2004. (Este livro encontra-se traduzido para o<br />

português)<br />

VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et religion en Grèce ancienne. Paris: Seuil, 1990. (Este<br />

livro encontra-se traduzido para o português).<br />

VIRGILE. Énéide; texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Belessort. 7.<br />

éd. Paris: Les Belles Lett res, 1952 (2 v.).<br />

VIRGÍLIO. Enei<strong>da</strong> – Canto IV: a morte de Dido; tradução de J. Laender; organização<br />

de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques<br />

Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito <strong>da</strong> Silva; comentários<br />

à tradução de Fabrício Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de<br />

Cultura/Editora Universitária <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>, 2006. *<br />

* Estes livros podem ser adquiridos na Livraria do Zarinha Centro de Cultura,<br />

através do site www.zarinha.com.br<br />

Filmografi a<br />

Tróia: mito ou reali<strong>da</strong>de. Eagle Media, 2004.<br />

PETERSEN, Wolfgang. Tróia. Warner Bros., 2004.<br />

CAMERINI, Mario. Ulisses. DVD Video, 2003 (1955).<br />

KONCHALOVSKI, Andrei. Odisséia. DVD Video, s.d.<br />

Sites na Internet para os textos clássicos<br />

Biblioteca Augustana<br />

www.fh -augsburg.de/~harsch/augusta.html<br />

Perseus<br />

www.perseus.tufts.edu/


FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSÓFICOS DA<br />

EDUCAÇÃO<br />

Apresentação<br />

Luiz Gonzaga Gonçalves 1<br />

Você é convi<strong>da</strong>do(a) agora a ingressar no universo <strong>da</strong> antropologia<br />

fi losófi ca <strong>da</strong> educação. As palavras podem parecer distantes, mas quando falamos<br />

<strong>da</strong> antropologia estamos trazendo para a discussão o ser humano, sua vi<strong>da</strong> e<br />

seus modos de ser, pensar e agir em seus contextos vitais. Quando falamos de<br />

antropologia fi losófi ca queremos saber como o ser humano vai construindo seus<br />

processos de compreensão de si e do mundo e em que bases encontra sustentação<br />

para se pronunciar sobre seu saber e conhecimento.<br />

Na longa aventura humana sobre a terra temos <strong>da</strong>do provas de que somos<br />

capazes de aprender durante to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, de crescermos em diferentes níveis e<br />

em diferentes profundi<strong>da</strong>des de aprendizagem. As disponibili<strong>da</strong>des abertas de<br />

nosso cérebro, os domínios <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> comunicação, as habili<strong>da</strong>des de<br />

nossas mãos, o an<strong>da</strong>r bípede, nossa longa infância e adolescência, entre outras<br />

características, permitiram que criássemos formas de organização grupal e<br />

social complexas, supondo uma aprendizagem continuamente aberta. São<br />

essas disponibili<strong>da</strong>des humanas e sociais para aprender a ser e a conviver, que<br />

nos levam, como educadores, a in<strong>da</strong>gar pelas visões de mundo que se fi zeram<br />

hegemônicas e pelos caminhos confl ituosos de recepção e de integração ativa na<br />

socie<strong>da</strong>de de todos os seus membros.<br />

Como você verá, o convite para o Curso inclui um recuo no tempo, para<br />

revermos as heranças fi losófi cas que prevaleceram com suas concepções de<br />

mundo, de ser humano, de socie<strong>da</strong>de e de natureza, capazes de orientar modos<br />

de pensar e de agir. As incursões pretendem inspirar as buscas de hoje, quando<br />

as tarefas educacionais emergem dos espaços onde nos encontramos, <strong>da</strong> direção<br />

que pretendemos seguir e dos motivos que orientam nossas decisões.<br />

Interessa-nos, de modo especial, como latino-americanos, como brasileiros,<br />

os vínculos entre educação e política, que demarcam confl itos, e transformam<br />

diferenças em grandes desigual<strong>da</strong>des. No começo do século XX 75% <strong>da</strong><br />

população brasileira eram analfabetos. Vamos rejeitar os saberes de coisas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> que temos acumulado ao longo dos séculos ou vamos incorporá-los em<br />

nossas propostas pe<strong>da</strong>gógicas? As pe<strong>da</strong>gogias não conformistas se erguem <strong>da</strong>s<br />

inquietações em torno dos entendimentos que construímos acerca dos processos<br />

através dos quais são construí<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong>des, e com elas os conhecimentos e<br />

saberes hegemônicos. Nem por isso vamos desconsiderar as vias inteligentes de<br />

aquisição de saberes, muitas vezes despreza<strong>da</strong>s.<br />

Uma fi losofi a fl exiona<strong>da</strong> a serviço <strong>da</strong> educação e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é de se esperar que<br />

correspon<strong>da</strong> a um pensamento complexo, aberto à inovação e ao diálogo frente<br />

aos domínios vários do saber e do conhecimento. Estar na vi<strong>da</strong> é ter a certeza<br />

1 Professor, mestre e<br />

doutor em educação, com<br />

graduação em fi losofi a<br />

e pe<strong>da</strong>gogia; vinculado<br />

ao Departamento de<br />

Fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong><br />

Educação, do Centro<br />

de Educação, <strong>da</strong><br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Paraíba</strong>.<br />

163


164<br />

de poder experimentar crises, superações e busca de alternativas para pensar um<br />

mundo onde todos os seres humanos possam encontrar uma mora<strong>da</strong> digna.<br />

Os objetivos que pretendemos alcançar<br />

Vamos trabalhar a partir de três grandes objetivos. Queremos identifi car<br />

as heranças fi losófi cas que prevaleceram com suas concepções de mundo, de<br />

ser humano, de socie<strong>da</strong>de e de natureza, capazes de orientar modos de pensar<br />

e de agir. Queremos examinar as orientações que dizem respeito aos avanços do<br />

conhecimento, predominantes na civilização ocidental, muitas vezes postos a<br />

serviço de poucos. Por fi m, queremos contribuir para a afi rmação de uma ação<br />

pe<strong>da</strong>gógica volta<strong>da</strong> para a promoção do ser humano, de modo a fortalecer as<br />

buscas e intervenções a serviço de um convívio social onde todos encontrem um<br />

lugar digno de habitar.<br />

As <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s temáticas<br />

Vamos trabalhar com três <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s temáticas. Na primeira vamos nos<br />

deter no universo <strong>da</strong> antropologia fi losófi ca grega, procurando identifi car seus<br />

pressupostos e preocupações. Vamos mostrar como a fi losofi a grega vai deixando<br />

para trás os domínios <strong>da</strong> sabedoria de vi<strong>da</strong>, que não oferecem bases seguras<br />

para o conhecimento. Vamos nos deparar especialmente com as contribuições de<br />

Sócrates, Platão e Aristóteles.<br />

Na segun<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> vamos ver como a fi losofi a na moderni<strong>da</strong>de desven<strong>da</strong><br />

novas necessi<strong>da</strong>des e horizontes para o pensamento, redimensionando a<br />

pergunta sobre a capaci<strong>da</strong>de humana para conhecer. Veremos alguns aspectos <strong>da</strong><br />

contribuição de Descartes e Bacon e de Comenius. O último procura desenvolver<br />

uma pe<strong>da</strong>gogia aberta às novas idéias de seu tempo.<br />

Na terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> vamos ver como Rousseau abre caminhos para uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência, rompendo com a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência, descortinando<br />

novas bases para uma educabili<strong>da</strong>de aberta ao universo <strong>da</strong> criança e à<br />

importância <strong>da</strong> aprendizagem. Vamos ver como a Escola Nova no século XX<br />

aprofun<strong>da</strong> as idéias apresenta<strong>da</strong>s por Rousseau. Vamos ver também que o século<br />

XX vai aos poucos inserindo efetivamente o Brasil nos problemas políticos e<br />

pe<strong>da</strong>gógicos de seu tempo. Encerramos a terceira <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> fazendo um balanço<br />

<strong>da</strong>s heranças educacionais que nos alcançaram durante nossa formação escolar.<br />

Encaminhamentos e processos de avaliação<br />

O processo avaliativo incluirá alguns exercícios para que você, aluno(a)<br />

possa apropriar-se dos conteúdos e dos problemas levantados pelos textos<br />

selecionados. Você fará textos curtos que serão pedidos ao longo do curso, com<br />

os quais você trará sua contribuição a partir <strong>da</strong>s leituras propostas. Nessas<br />

ativi<strong>da</strong>des teremos no seu conjunto uma <strong>da</strong>s três notas fi nais.<br />

A avaliação incluirá um convite para que você tente inventariar a sua<br />

experiência discente, desde sua iniciação escolar. Interessará neste inventário,


neste memorial discente, que você avalie o alcance <strong>da</strong>quilo que compôs as<br />

dimensões fun<strong>da</strong>mentais do seu processo educativo escolar. Você pode destacar<br />

aspectos positivos ou negativos presentes. Por exemplo, inventariar o que fi cou<br />

de marcante dos seus contatos, do seu manuseio dos livros didáticos; o que<br />

fi cou de marcante de sua relação com as bibliotecas <strong>da</strong>s escolas; o que fi cou de<br />

marcante dos recursos didáticos utilizados pelos professores até aquilo que<br />

hoje chamamos de ensino fun<strong>da</strong>mental, de ensino médio. Você é convi<strong>da</strong>do<br />

a inventariar as opções de avaliação <strong>da</strong> aprendizagem, inventariar aspectos<br />

marcantes do contexto <strong>da</strong> época, no qual a(as) escola(as) estava(m) inseri<strong>da</strong>(s).<br />

Com a produção do inventário escolar, resvalando em sau<strong>da</strong>des e<br />

vivências, a meta é a de tentar desven<strong>da</strong>r, com os olhos de hoje, os fi ns e objetivos<br />

muitas vezes implícitos que eram atingidos, com as orientações pe<strong>da</strong>gógicas e<br />

didáticas dominantes vivi<strong>da</strong>s por você, até chegar à universi<strong>da</strong>de. A primeira<br />

parte do trabalho que corresponde ao inventário dos aspectos relevantes de sua<br />

aprendizagem escolar equivale a segun<strong>da</strong> nota fi nal.<br />

A partir desse inventário discente, você é convi<strong>da</strong>do a fazer uma segun<strong>da</strong><br />

parte de seu memorial adotando um conceito de educação. Com esse conceito que<br />

pode ser seu ou buscado na literatura educacional, você é convi<strong>da</strong>do a identifi car<br />

as direções, as concepções de mundo que orientaram as opções pe<strong>da</strong>gógicas e<br />

didáticas vivi<strong>da</strong>s por você como aluno(a) e as que você apontaria como váli<strong>da</strong>s<br />

hoje para as novas gerações que chegam aos espaços escolares. Com a segun<strong>da</strong><br />

parte crítica do seu memorial completaremos as três notas.<br />

165


UNIDADE I<br />

A FILOSOFIA GREGA ANTIGA: Pressupostos e<br />

Preocupações<br />

1.1 Ativi<strong>da</strong>des Introdutórias<br />

Que tal “quebrarmos o gelo”, começando por concentrar nossa atenção<br />

na etimologia de algumas palavras consagra<strong>da</strong>s, que retratam a vi<strong>da</strong> na escola,<br />

nossas conheci<strong>da</strong>s de longa <strong>da</strong>ta?<br />

A ativi<strong>da</strong>de fi losófi ca desenvolve um cui<strong>da</strong>do especial com as palavras que<br />

utilizamos. Quer saber o alcance que elas têm para descrever e <strong>da</strong>r signifi cado<br />

para as coisas que se desdobram no mundo onde nos movemos. As ativi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> fi losofi a <strong>da</strong> educação também não se descui<strong>da</strong>m <strong>da</strong>s palavras que podem nos<br />

aju<strong>da</strong>r a demarcar os caminhos, a coerência <strong>da</strong>s respostas perante os desafi os<br />

educacionais, de ontem e de hoje. Querem nos aju<strong>da</strong>r a ver os horizontes<br />

demarcados, as compreensões acerca do que se espera <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong>de do ser<br />

humano para se educar. Uma antropologia fi losófi ca a serviço <strong>da</strong> educação quer<br />

saber, portanto, qual compreensão decisiva de ser humano, de socie<strong>da</strong>de, de vi<strong>da</strong><br />

orienta as buscas, faz surgir os problemas considerados relevantes. A tentativa é<br />

a de caminharmos próximos <strong>da</strong>s teorias e práticas, que ontem e hoje disputam o<br />

poder de dizer o que deve ser a educação, para que e para quem ela serve.<br />

1.2 Etimologia <strong>da</strong>s Palavras no Espaço <strong>da</strong> Educação Escolar 1<br />

- Aluno – alumnus,.i;criança que se alimenta no peito; aquele que se<br />

alimenta dos bocados que provém do magistério. Em decorrência: pupilo,<br />

discípulo.<br />

- Aprender – a) apprehendere: agarrar, apanhar, segurar, apoderar-se de algo,<br />

porque é precioso e não se deve escapar. Em decorrência: tomar conhecimento de,<br />

reter na memória. b) discere – aprender, de onde deriva a palavra discípulo.<br />

- Educar – a) educare: criar, amamentar. Em decorrência: instruir, preparar<br />

para a vi<strong>da</strong>. b) e-ducere: e: para fora; ducere: conduzir; <strong>da</strong>r à luz; fazer surgir. Em<br />

decorrência: aju<strong>da</strong>r a conduzir de uma situação à outra; aju<strong>da</strong>r a modifi car.<br />

- Ensinar: - insignire: assinalar, distinguir, colocar um sinal, mostrar, indicar.<br />

Em decorrência: indicar o caminho para aprender.<br />

- formação: “fromage”, em francês: provém <strong>da</strong> ação de <strong>da</strong>r forma, de<br />

confi gurar, como os moldes dão forma aos queijos.<br />

- Instrução – instructio,.onis: construção, edifi cação.<br />

- Mestre - magister,.tri: o que sabe mais2 (magis), o que dirige, conduz.<br />

- Pe<strong>da</strong>gogo – do grego paidogogós (pais, paidos: “criança! E agogôs: “guia,<br />

condutor”): escravo que acompanhava as crianças à escola; depois: mestre,<br />

preceptor.<br />

1 Quando os vocábulos<br />

apresentados não têm<br />

origem no latim, serão<br />

destacados de onde se<br />

originam. Ver Maria<br />

Lucia ARANHA. Filosofi a<br />

<strong>da</strong> Educação. São Paulo.<br />

Moderna. 1989. p. 58. Ver<br />

Ernesto Faria. Dicionário<br />

Escolar Latino-Português.<br />

Revisão de Rute J. de<br />

Faria. 6ª ed. Rio de<br />

Janeiro. FAE. 1991). Ver<br />

também Octavi Fullat.<br />

Filosofi as <strong>da</strong> Educação.<br />

São Paulo. Vozes. 1994.<br />

2 Esclarece Octavi Fullat<br />

(1994, p. 35) que o poderio<br />

físico, moral e cultural do<br />

mestre fundou a concepção<br />

educativo-ensinante que<br />

prevaleceu durante séculos.<br />

A Escola Nova modifi cou<br />

paulatinamente, e apenas<br />

em determinados ambientes,<br />

os signifi cados desses<br />

signifi cantes<br />

167


3 Abertura ou corte feito<br />

na madeira ao alcance<br />

dos olhos para orientar<br />

o caminhante em meio<br />

a fl orestas onde não há<br />

trilhas perfeitamente<br />

delimita<strong>da</strong>s (cf. Arseniev,<br />

1989: 46-49)<br />

4 Você verá que o conto é<br />

paradigmático, remete<br />

às origens longínquas do<br />

ser humano caçador, que<br />

é capaz de orientar-se<br />

e obter êxito servindose<br />

apenas dos indícios,<br />

dos fragmentos de<br />

informação. Ver sobre<br />

isso Ginzburg (1989: 143-<br />

79)<br />

5 É importante que você<br />

saiba o que pensa seu<br />

professor: defendo e<br />

estou evidenciando isso,<br />

de que há uma sabedoria<br />

de vi<strong>da</strong> refi na<strong>da</strong> e<br />

disponível para qualquer<br />

pessoa letra<strong>da</strong> ou não.<br />

Para isso a pessoa precisa<br />

ser capaz de desenvolver<br />

uma capaci<strong>da</strong>de de<br />

se concentrar, de<br />

desenvolver um senso de<br />

atenção e de observação<br />

ativa, para não ser<br />

surpreendi<strong>da</strong> facilmente<br />

pelos eventos futuros.<br />

6 VOLTAIRE. Zadig ou o<br />

destino: história oriental..<br />

Rio de Janeiro. Ediouro.<br />

S/d.<br />

168<br />

- Saber – sapere: ter sabor, agra<strong>da</strong>r ao pala<strong>da</strong>r; saber, conhecer, aprender.<br />

- Texto – textum,.i: tecido, pano; obra forma<strong>da</strong> por várias partes reuni<strong>da</strong>s.<br />

1.3 Um antigo conto fi losófi co oriental e a sabedoria <strong>da</strong> atenção<br />

Pudemos ver que os vocábulos que giram em torno do universo escolar<br />

brotam <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, muito antes que a socie<strong>da</strong>de contasse com um espaço<br />

especializado para a aquisição dos saberes considerados relevantes. Assim,<br />

iniciamos nossa caminha<strong>da</strong> com um longo recuo no tempo. Por isso, importa<br />

a atenção para algumas setas, alguns entalhes3 que apontam para antigas<br />

compreensões do que seja exercitar uma fi losofi a de vi<strong>da</strong>. Para realizar isso, você<br />

terá ao seu dispor um conto4 , sem autoria defi ni<strong>da</strong>, que poderia ser escrito em<br />

qualquer região do planeta, inclusive em nosso nordeste rural brasileiro.<br />

Em segui<strong>da</strong>, você terá a oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de examinar alguns termos de<br />

origem muito antiga, heranças <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> fi losofi a grega, indispensáveis até<br />

hoje. Graças à contribuição <strong>da</strong> professora de fi losofi a <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de São<br />

Paulo, Marilena Chauí, os termos fi losófi cos são apresentados com seus vínculos<br />

e dependências com as experiências gregas mais humildes. Veremos, de início,<br />

apenas seis desses termos fi losófi cos. Meu interesse principal com eles é demarcar<br />

as despedi<strong>da</strong>s que a fi losofi a grega faz, de modo consciente e deliberado, do que<br />

há de melhor dos saberes do senso comum5 . A fi losofi a grega critica os riscos que<br />

envolvem tais saberes, seu alcance limitado, e especialmente as difi cul<strong>da</strong>des para<br />

reproduzir tais habili<strong>da</strong>des.<br />

Feito isso, você será convi<strong>da</strong>do a ler a Alegoria <strong>da</strong> Caverna, de Platão.<br />

Trata-se de uma abor<strong>da</strong>gem memorável acerca <strong>da</strong> contribuição <strong>da</strong> fi losofi a<br />

para o campo <strong>da</strong> educação. A alegoria quer ser um sinal de alerta sobre os<br />

enganos que podem submeter os humanos dotados de sensibili<strong>da</strong>de e razão. A<br />

alegoria quer ser abrangente o sufi ciente para oferecer algumas dicas para que<br />

não nos percamos nos espaços tateantes <strong>da</strong>s sombras, <strong>da</strong> incerteza. Quando a<br />

narrativa apresenta sua opção pelos caminhos <strong>da</strong> razão, ela já detém um sentido<br />

pe<strong>da</strong>gógico orientador.<br />

1.3.1 A experiência de Zadig, apresenta<strong>da</strong> por Voltaire 6<br />

Como já destacamos, trata-se de um texto de origem remota, sem autoria<br />

defi ni<strong>da</strong>, recuperado por Voltaire (1694-1778). A sugestão é a de que você faça<br />

sua leitura, com o compromisso de lembrar de alguma pessoa conheci<strong>da</strong>, dotado<br />

<strong>da</strong>s astúcias e habili<strong>da</strong>des pareci<strong>da</strong>s com as do personagem principal do texto.<br />

Zadig convenceu-se de que o primeiro mês do casamento, como está escrito no<br />

livro do Zen<strong>da</strong>, é a lua-de-mel, e que o segundo é a lua-de-fel. Pouco tempo<br />

depois viu-se obrigado a repudiar Azora,que se tornara difícil de aturar, e<br />

procurou satisfação no estudo <strong>da</strong> natureza. “Ninguém é mais feliz – dizia ele,<br />

- que um fi lósofo que lê o grande livro aberto por Deus diante dos nossos olhos.<br />

São suas as ver<strong>da</strong>des que descobre: alimenta e educa a alma, vive tranqüilo;<br />

na<strong>da</strong> receia dos homens, e sua meiga esposa não vem cortar-lhe o nariz.”


Cheio destas idéias recolheu (sic) a uma casa de campo à beira do Eufrates,<br />

onde não se ocupava a calcular quantas polega<strong>da</strong>s de água correm por segundo<br />

sob os arcos de uma ponte, ou se no mês do rato cai uma linha cúbica de chuva a<br />

mais do que no mês do carneiro. Não cui<strong>da</strong>va de fazer se<strong>da</strong> com teias de aranha,<br />

nem porcelana com cacos de vidro, antes estudou sobretudo as proprie<strong>da</strong>des<br />

dos animais e <strong>da</strong>s plantas, não tar<strong>da</strong>ndo a adquirir uma sagaci<strong>da</strong>de que lhe<br />

apontava mil diferenças onde os outros homens viam só uniformi<strong>da</strong>de.<br />

Certo dia passeando na orla de um bosque, viu aproximar-se um eunuco <strong>da</strong><br />

rainha seguido de vários ofi ciais que pareciam tomados <strong>da</strong> maior inquietação,<br />

e corriam de um lado para outro como pessoas extravia<strong>da</strong>s em busca <strong>da</strong> maior<br />

preciosi<strong>da</strong>de perdi<strong>da</strong>.<br />

- Moço – perguntou-lhe o eunuco, - por acaso não viu o cachorro <strong>da</strong><br />

rainha?<br />

Zadig respondeu modestamente:<br />

- Creio tratar-se de uma cadela e não de um cachorro.<br />

- Tem razão – volveu o eunuco.<br />

- É uma cachorrinha de caça que deu cria há pouco tempo; manqueja <strong>da</strong><br />

pata dianteira esquer<strong>da</strong> e tem orelhas muito compri<strong>da</strong>s.<br />

- Viu-a então? – Tornou o eunuco esbaforido.<br />

- Não – respondeu Zadig, - nunca a vi e nem mesmo sabia que a rainha<br />

tivesse uma cadela. Justamente nessa ocasião, por um capricho muito comum<br />

<strong>da</strong> sorte, o mais belo cavalo <strong>da</strong>s coudelarias do rei fugira <strong>da</strong>s mãos de um<br />

palafreneiro para as campinas <strong>da</strong> Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros<br />

ofi ciais an<strong>da</strong>vam atrás dele com tanta apreensão quanto a do eunuco atrás <strong>da</strong><br />

cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira passar<br />

o cavalo do rei.<br />

- É o cavalo que melhor galopa - respondeu Zadig; - tem cinco pés de altura<br />

e os cascos muito pequenos; sua cau<strong>da</strong> mede três pés de comprimento e as<br />

rodelas do seu freio são de ouro de vinte quilates; usa ferraduras de prata de<br />

onze denários.<br />

- Que caminho tomou ele? Onde está? – perguntou o monteiro-mor.<br />

- Não sei – respondeu Zadig; não o vi nem nunca ouvi falar nele<br />

O monteiro-mor e o eunuco fi caram certos de que Zadig tinha roubado<br />

o cavalo do rei e a cadela <strong>da</strong> rainha, e levaram-no à presença do grande<br />

Desterham que o condenou ao knut, e a passar o resto do seus dias na Sibéria.<br />

Mal havia terminado o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela.<br />

Os juízes viram-se na desagradável contingência de reformar a sentença, mas<br />

condenaram Zadig a pagar quatrocentas onças de ouros por dizer que não<br />

vira o que tinha visto. Primeiro ele teve que pagar a multa, e só depois lhe<br />

permitiram defender a sua causa perante o conselho do grande Desterham<br />

onde falou nesses termos:<br />

169


170<br />

- Estrelas de justiça, abismos <strong>da</strong> ciência, espelhos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, que tendes o<br />

peso do chumbo, a dureza do ferro, o brilho do diamante e muita afi ni<strong>da</strong>de com<br />

o ouro: já que me é consentido falar diante desta augusta assembléia, juro-vos<br />

por Orosmade que nunca vi a respeitável cadela <strong>da</strong> rainha, nem o sagrado<br />

cavalo do rei dos reis. Aqui está o que me sucedeu: an<strong>da</strong>va eu passeando pelo<br />

pequeno bosque onde depois encontrei o venerável eunuco e muito ilustre<br />

monteiro-mor. Percebi na areia pega<strong>da</strong>s de um animal, e facilmente concluí<br />

serem as de um cão. Leves e longos sulcos, visíveis nas ondulações <strong>da</strong> areia<br />

entre os vestígios <strong>da</strong>s patas, revelaram-me tratar-se de uma cadela com as<br />

tetas pendentes, e que, portanto, devia ter <strong>da</strong>do cria poucos dias antes. Outros<br />

traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície <strong>da</strong> areia ao lado <strong>da</strong>s<br />

patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como além disso<br />

notei que as impressões de uma <strong>da</strong>s patas eram menos fun<strong>da</strong>s que as <strong>da</strong>s outras<br />

três, deduzi que a cadela <strong>da</strong> nossa augusta rainha manquejava um pouco, se<br />

assim posso me exprimir.<br />

“Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabei que estando a passear pelos<br />

carreiros desse bosque, avistei as marcas <strong>da</strong>s ferraduras de um cavalo, to<strong>da</strong>s<br />

coloca<strong>da</strong>s a igual distância. ‘Eis aqui – disse comigo, - um cavalo que tem<br />

o galope perfeito’. A poeira <strong>da</strong>s árvores. Num caminho não mais de sete<br />

pés de largura, mostrava-se um pouco revolvi<strong>da</strong> a direita e a esquer<strong>da</strong>, a<br />

três pés e meio do centro <strong>da</strong> rota. ‘Este cavalo – tornei a considerar nos<br />

seus movimentos para a direita e para a esquer<strong>da</strong>, varreu essa poeira’. Vi<br />

depois sob as árvores, que formavam um docel de cinco pés de altura, alguns<br />

ramos cujas folhas tinham caído recentemente, e concluí que o animal as<br />

roçara com a cabeça, tendo, portanto cinco pés de altura. Seu freio deve ser de<br />

ouro de vinte e três quilates, pois tendo batido numa pedra que verifi quei ser<br />

uma pedra de toque, pode em segui<strong>da</strong> identifi cá-lo. Enfi m, pelas marcas <strong>da</strong>s<br />

ferraduras deixa<strong>da</strong>s em pedras de outra espécie, deduzi que estava ferrado<br />

com prata fi na.”<br />

Todos os juízes admiraram o profundo e sutil discernimento de zadig; a<br />

notícia chegou aos ouvidos do rei e <strong>da</strong> rainha. Só se ouvia falar de Zadig nas<br />

antecâmaras, nas salas e gabinetes; e embora alguns magos opinassem que<br />

ele devia ser queimado como feiticeiro, o rei ordenou que lhe devolvessem a<br />

multa de quatrocentas onças de ouro a que havia sido condenado. O escrivão,<br />

os ofi ciais de justiça e os procuradores foram a sua casa em grande aparato<br />

levar-lhe as quatrocentas onças, <strong>da</strong>s quais apenas retiveram trezentas e<br />

noventa e oito para as custas do processo, além dos honorários reclamados<br />

pelos servidores.<br />

Zadig compreendeu que às vezes era perigoso ser demasiado sábio, e prometeu<br />

a si mesmo não tornar a dizer o que porventura houvesse visto. A ocasião<br />

não tardou a apresentar-se. Um prisioneiro do Estado tendo fugido, passou<br />

por baixo <strong>da</strong>s janelas de sua casa. Zadig interroga<strong>da</strong> na<strong>da</strong> respondeu, mas<br />

provaram-lhe que ele havia olhado pela janela. Por esse crime foi condenado a<br />

pagar quinhentas onças de ouro, e ain<strong>da</strong> agradeceu a benevolência dos juízes,<br />

como é costume na Babilônia. – “Santo Deus! – Exclamou para si, - quanto<br />

é lastimável ir-se passear a um bosque onde passaram a cadela <strong>da</strong> rainha e o<br />

cavalo do rei! Como é perigoso a gente chegar à janela, e como é difícil ser feliz<br />

neste mundo.”


1.3.2 Uma suposta versão mais antiga do que a do conto de Zadig<br />

Um conto similar, e provavelmente mais antigo, narra a história de três<br />

príncipes de Serendip. Eles caminhavam pelo deserto até que chegaram a um<br />

oásis. Enquanto descansavam foram abor<strong>da</strong>dos por um viajante que havia<br />

perdido um camelo e a carga que este conduzia. Os príncipes, quando abor<strong>da</strong>dos,<br />

perguntaram ao viajante se o camelo era cego do olho direito, se o animal seguia<br />

carregado de um tonel de mel, do lado esquerdo e de um tonel de manteiga,<br />

do lado direito. O dono do camelo sumido os condenou como ladrões, quando<br />

disseram que não o haviam visto.<br />

No tribunal, os príncipes alegaram que tiveram ao alcance dos olhos<br />

apenas as marcas deixa<strong>da</strong>s pelo animal fujão. No caso <strong>da</strong> cegueira do olho direito,<br />

perceberam que a relva do lado direito era mais abun<strong>da</strong>nte, mas o camelo insistia<br />

em comer a do lado esquerdo do caminho. Do lado direito do caminho notaram<br />

que as moscas pousavam sobre a relva em busca dos restos <strong>da</strong> manteiga, do lado<br />

esquerdo formigas vinham à procura do mel. (cf. Gonçalves, 2003: 92-93)<br />

1.3.3 Considerações sobre a experiência de Zadig<br />

Zadig é o fi lósofo anônimo que aprendeu a ler os sinais sutis inscritos na<br />

natureza, cenário onde se manifesta a presença dos seres vivos. Sua missão é a de<br />

estar de olhos bem abertos para detectar as particulari<strong>da</strong>des reveladoras que se<br />

manifestam no espaço vital onde habita.<br />

O conto oriental apresente uma <strong>da</strong>s mais antigas concepções acerca do<br />

trabalho do pensamento humano. A fi losofi a de quem estu<strong>da</strong> a natureza, como<br />

Zadig, estará sempre sendo testa<strong>da</strong> em sua capaci<strong>da</strong>de explicativa, uma vez que<br />

será sempre confronta<strong>da</strong> pela prática. Os desafi os são consideráveis e arriscados<br />

porque é preciso decidir acerta<strong>da</strong>mente através <strong>da</strong> leitura de indícios incompletos<br />

e nem sempre nítidos.<br />

A leitura do texto permite identifi car o que é considerado como ativi<strong>da</strong>de<br />

relevante para o estudioso <strong>da</strong> natureza. Ao mesmo tempo esclarece de que modo<br />

Zadig desenvolveu seu método de observação e de atenção. O protagonista nos<br />

surpreende, na medi<strong>da</strong> em que se mostra apto para decifrar indícios a respeito<br />

de algo que nem mesmo estava à procura. O fi lósofo que aparece no texto é o<br />

mestre <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de desven<strong>da</strong>r sinais sensíveis que desafi am<br />

a acui<strong>da</strong>de de nossos olhos, sinais que para ele são deixados por Deus, no livro<br />

aberto <strong>da</strong> natureza. Zadig surpreende os emissários <strong>da</strong> rainha e o leitor, pela<br />

maneira como informou a respeito dos animais que se haviam perdido.<br />

Umberto Eco (in: ECO E SEBEOK 1991: 242;236) considera que o conto de<br />

Zadig não é de investigação, mas um conto fi losófi co, na medi<strong>da</strong> em que permitiu<br />

vislumbrar como é possível alcançar uma coincidência entre aquilo que era<br />

apenas suposição na mente <strong>da</strong>quele homem (a cadela e o cavalo de seu mundo<br />

textual) e aquilo que acontecia no mundo exterior, materializado nas buscas dos<br />

ofi ciais a serviço <strong>da</strong> rainha. Isso se tornou possível porque o protagonista do<br />

conto voltou-se para os estudos <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des dos animais e plantas não para<br />

reduzi-las aos seus esquemas mentais prévios, mas para pensar por alternativas,<br />

para arriscar a captar no que entende por livro aberto por Deus, aquilo que a vi<strong>da</strong><br />

mostra e esconde aos olhos humanos.<br />

171


7 Ver sobre Métis em<br />

Marilena Chauí (2002:<br />

505; 509-10)<br />

172<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

Você consegue lembrar-se de alguém que domina a arte <strong>da</strong> atenção, <strong>da</strong> leitura<br />

de pistas, de pensar por alternativas como Zadig? Você se sente próximo/a <strong>da</strong>s<br />

habili<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s por Zadig? De que forma? Este endereço <strong>da</strong> net<br />

talvez possa servir de inspiração: htt p://www.janga<strong>da</strong>brasil.com.br/revista/<br />

julho68/of68007c.asp<br />

1.4 Na mitologia grega há uma deusa poderosa que personifi ca os<br />

saberes de Zadig e dos príncipes de Serendip.<br />

É a deusa Métis7 , personifi cação <strong>da</strong> inteligência prática, do engenho e <strong>da</strong><br />

astúcia para solucionar difi cul<strong>da</strong>des, <strong>da</strong> prudência, do expediente para enfrentar<br />

uma situação complica<strong>da</strong>, maquinar ardis e armadilhas. Deusa que incorpora<br />

uma quali<strong>da</strong>de psicológica que combina intuição, rapidez, engenho e astúcia.<br />

Um dos fi lhos de Métis é o deus Póros, que é o engenho astucioso que soluciona<br />

difi cul<strong>da</strong>des encontrando caminhos. Póros encarna o meio ou o expediente para<br />

chegar a um fi m, recurso ou engenho para chegar a um fi m, para solucionar uma<br />

difi cul<strong>da</strong>de; ação de passar através de, trajeto. (CHAUÍ, 2002: p.505;509-10).<br />

Jean-Pierre Vernant (2000: 40-41) escreve que:<br />

Zeus se casa com Métis e esta logo fi ca grávi<strong>da</strong> de Atena. Zeus teme que algum<br />

fi lho seu, por sua vez, o destrone. Como evitar? (...) Diz que só há uma solução:<br />

não basta que Métis esteja ao seu lado como esposa, ele mesmo tem de se tornar<br />

Métis. Zeus não precisa de uma sócia, de uma companheira, mas deve ser a<br />

métis em pessoa. Como fazer? Métis tem o poder de se metamorfosear, ela<br />

assume to<strong>da</strong>s as formas, assim como Tétis e outras divin<strong>da</strong>des marinhas. É<br />

capaz de virar animal selvagem, formiga, rochedo, tudo o que quiser. Travase<br />

então um duelo de astúcias entre a esposa, Métis, e o esposo, Zeus. Quem<br />

vai ganhar? Há boas razões para supor que Zeus recorra a um processo que<br />

conhecemos também em outros casos. Em que consiste? É claro que, para<br />

enfrentar uma feiticeira ou um mago extraordinariamente dotado e poderoso,<br />

o ataque direto estaria fa<strong>da</strong>do ao fracasso. Mas, se escolher o caminho <strong>da</strong><br />

artimanha, talvez haja uma chance de vencer. Zeus interroga Métis: “Podes<br />

de fato assumir to<strong>da</strong>s as formas, poderias ser um leão que cospe fogo?” Na<br />

mesma hora Métis se torna uma leoa que cospe fogo. Espetáculo aterrador.<br />

Zeus lhe pergunta depois: “Poderias também ser uma gota d´água? “Claro<br />

que sim”. “Mostra-me.” E, mal ela se transforma em gota d’água, ele a sorve.<br />

Pronto! Métis está na barriga de Zeus. Mais uma vez a astúcia funcionou.<br />

O soberano não se contenta em engolir seus eventuais sucessores: ele agora<br />

encarna, no correr do tempo, antecipa<strong>da</strong>mente os planos de qualquer um que<br />

tente surpreendê-lo ou derrotá-lo. Sua esposa Métis, grávi<strong>da</strong> de Atena, está<br />

em sua barriga. Assim, Atena não vai sair do regaço <strong>da</strong> mãe, mas <strong>da</strong> cabeça do<br />

pai, que é agora tão grande quanto o ventre de Métis. Zeus dá uivos de dor.<br />

Prometeu e Hefesto são chamados para socorrê-lo. Chegam com um machado


duplo, dão uma boa panca<strong>da</strong> na cabeça de Zeus e, aos gritos, Atena sai <strong>da</strong><br />

cabeça do deus, jovem donzela já to<strong>da</strong> arma<strong>da</strong>, com seu capacete, sua lança,<br />

seu escudo, e a couraça de bronze. Atena é a deusa inventiva, cheia de astúcias.<br />

(grifou meu)<br />

1.4.1 Considerações sobre o texto<br />

Na enciclopédia Wikipedia8 encontramos que: a fi lha mais famosa de Métis<br />

é conheci<strong>da</strong> como Atena ou para outros Palas Atena. Freqüentemente é associa<strong>da</strong><br />

a um escudo de guerra, à coruja <strong>da</strong> sabedoria ou à oliveira. Ain<strong>da</strong>, de acordo com<br />

a enciclopédia, a deusa Atena, que nasce <strong>da</strong> cabeça de Zeus, é to<strong>da</strong> poderosa tanto<br />

nas habili<strong>da</strong>des de caça e pesca, como nas habili<strong>da</strong>des de guerra, tem seu poder<br />

maior na ativi<strong>da</strong>de mental.<br />

Atena parece personalizar o esforço grego de colocar a ativi<strong>da</strong>de racional<br />

a serviço de um poder que sabe hierarquizar os esforços humanos, de modo<br />

a encontrar equilíbrio e estabili<strong>da</strong>de. Atena domina as ativi<strong>da</strong>des humanas<br />

essenciais, desde as mais antigas, como a caça, a pesca, bem como a capaci<strong>da</strong>de<br />

técnica, de construir o arco e a fl echa, além de saber costurar. No entanto, seu<br />

talento maior reside na ativi<strong>da</strong>de mental, herança direta de Zeus, senhor absoluto<br />

<strong>da</strong> arte de governar. Atena parece simbolizar muito mais a ativi<strong>da</strong>de mental que<br />

é persegui<strong>da</strong> pelos fi lósofos do período clássico. Trata-se de um pensamento que<br />

domina e delimita o lugar subalterno <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des humanas mais antigas como<br />

a caça e a pesca, bem como as técnicas e as artes <strong>da</strong> guerra. O ponto culminante é<br />

o <strong>da</strong> sabedoria de quem exercita o poder a serviço <strong>da</strong> equi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

Quando Zeus, o soberano, consegue sorver Métis, a deusa <strong>da</strong> astúcia, ele que<br />

é encarregado de governar o mundo, qual a expectativa que tem a partir desta<br />

conquista? Como entender que a cabeça de Zeus se fez tão grande quanto<br />

a barriga ou o útero de Métis? Elabore um texto com o objetivo de tentar<br />

interpretar o sentido <strong>da</strong> frase no contexto <strong>da</strong> narrativa.<br />

1.5 Um convite: que tal sentarmos à mesa <strong>da</strong> fi losofi a e saborearmos<br />

seis termos gregos antigos?<br />

Este encontro em volta <strong>da</strong> mesa é para alimentar nosso corpo, supondo que<br />

a cabeça é o corpo (agora há pouco a cabeça era uma barriga, um útero). Entre o<br />

comer e beber dessa refeição, esperamos mostrar porque os fi lósofos gregos se<br />

despedem <strong>da</strong> sabedoria oriental, <strong>da</strong>quela que Zadig era o mestre.<br />

Neste movimento introdutório aos fun<strong>da</strong>mentos antropo-fi losófi cos <strong>da</strong><br />

educação vamos analisar seis termos gregos de grande importância para a fi losofi a<br />

grega antiga e eluci<strong>da</strong>tivos até hoje. Através deles será possível acenar para algumas<br />

preocupações básicas que orientavam as formas como os gregos aprendiam a<br />

8 ver<br />

htt p://pt. wikipedia.org/<br />

wiki/Atena; ver também:<br />

htt p://greciantiga.org.<br />

173


9 Cf. CHAUÍ, Marilena.<br />

Dos pré-socráticos a<br />

Aristóteles. Vol. 1. 2ª ed.<br />

rev. ampl. São Paulo. Cia<br />

<strong>da</strong>s Letras. 2002. p. 493-<br />

512.<br />

174<br />

interrogar o mundo natural, a presença humana no mundo, a organização <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de e o papel de destaque que é destinado à ativi<strong>da</strong>de fi losófi ca.<br />

Vamos apreciar os termos gregos a partir <strong>da</strong> contribuição de Marilena<br />

Chauí, num glossário que ela elaborou no seu livro intitulado: Dos Pré-Socráticos<br />

a Aristóteles (2002) 9 . A autora teve o cui<strong>da</strong>do de situá-los como parte <strong>da</strong> herança<br />

grega, que é cultiva<strong>da</strong> desde os tempos imemoriais, desde as socie<strong>da</strong>des ágrafas.<br />

1.5.1 Doxa:<br />

Opinião, crença, reputação (Isto é, boa ou má opinião sobre alguém), suposição,<br />

conjetura. Esta palavra possui dois sentidos diferentes por ser usa<strong>da</strong> em dois<br />

contextos diferentes: o contexto político, no qual foi usa<strong>da</strong> inicialmente, e o<br />

contexto fi losófi co, a partir de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokéo,<br />

que signifi ca: 1. tomar o partido que se julga mais adequado para uma situação; 2.<br />

conformar-se a uma norma estabeleci<strong>da</strong> pelo grupo; 3. escolher, decidir, deliberar<br />

e julgar segundo os <strong>da</strong>dos oferecidos pela situação e segundo a regra ou norma<br />

estabeleci<strong>da</strong> pelo grupo. Era este o seu sentido na assembléia dos guerreiros que<br />

deu origem à assembléia política, na democracia. Como a escolha e decisão se<br />

<strong>da</strong>vam a partir do que era percebido, dito e convencionado pelo grupo, dóxa<br />

ganha também o sentido de uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de conhecimento, e agora, articulase<br />

ao verbo doxázo que signifi ca: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer,<br />

conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admiti<strong>da</strong>s. É neste<br />

segundo sentido que doxa pode ter o sentido pejorativo de conhecimento falso,<br />

preconceito, conjetura sem fun<strong>da</strong>mento, sem convenção, arbitrária.<br />

Este termo doxa corresponde ao que entre nós relegamos aos domínios do<br />

senso comum ou também do bom senso. O termo é decisivo para compreender<br />

o que a fi losofi a decide rejeitar para fi rmar seu corpus de conhecimento e porque<br />

decide rejeitar. O problema <strong>da</strong> doxa é que não oferece confi ança, não oferece um<br />

conhecimento seguro. Se a palavra doxa deriva-se do verbo dokéo, que signifi ca<br />

optar diante de uma situação aberta ou de acordo com a norma de um grupo ela<br />

está condena<strong>da</strong> à incerteza, não podendo impor-se a todos, que é a preocupação<br />

<strong>da</strong> fi losofi a que vai fi rmar-se, sobretudo, a partir de Platão. A doxa ao mover-se no<br />

campo <strong>da</strong> opinião, do risco, <strong>da</strong> conjetura, não oferece segurança, nem fun<strong>da</strong>mento.<br />

Assim, de acordo com as pretensões <strong>da</strong> fi losofi a grega, o conto fi losófi co oriental<br />

de Zadig é de pouco valor porque está preso à doxa. Da mesma forma que o<br />

personagem acertou em suas conjeturas, podia ter errado. Há uma nota importante<br />

aqui, a crítica que é feita pelos fi lósofos aos saberes que são adquiridos nos domínios<br />

<strong>da</strong> doxa, é estendi<strong>da</strong> aos saberes <strong>da</strong> medicina grega. Na Grécia havia um tenso<br />

diálogo entre os fi lósofos e os médicos. Alguns dos fi lósofos pré-socráticos eram<br />

também médicos, o que infl uenciava em seu trabalho fi losófi co. Os médicos gregos<br />

entendiam sua profi ssão como fi lotecnia (amor a um domínio técnico sobre o corpo<br />

humano e a restauração <strong>da</strong> saúde). Isso enfrentava resistência entre os gregos que<br />

desprezavam a técnica como coisa não muito digna. Além disso, a medicina não<br />

estava livre dos riscos e <strong>da</strong>s incertezas que se apresentavam como obstáculos para<br />

sua busca de rigor. A medicina não conseguia desvencilhar-se de seus vínculos<br />

com a doxa, uma vez que o médico dependia de sua percepção sensível para fazer o


diagnóstico dos males que afl igiam seus pacientes. O médico estava sujeito a erros.<br />

Os médicos/fi lósofos, por sua vez, criticavam aqueles que partiam de grandes<br />

princípios explicativos, sem fun<strong>da</strong>mentar de modo consistente suas afi rmações.<br />

1.5.2 Eidos e Idéa:<br />

inicialmente, na linguagem comum dos gregos, signifi ca o aspecto exterior<br />

e visível de uma coisa: a forma de um corpo, a fi sionomia de uma pessoa. A<br />

seguir, na linguagem fi losófi ca (com Platão), passa signifi car a forma imaterial<br />

de uma coisa, a forma conheci<strong>da</strong> apenas pelo intelecto ou pelo espírito, a idéia<br />

ou a essência puramente inteligível de uma coisa. Signifi ca também a forma<br />

própria de uma coisa que a distingue de to<strong>da</strong>s as outras, seus caracteres<br />

próprios; por exemplo, a doença é um eîdos, uma forma que o médico reconhece.<br />

A palavra eîdos vem de uma raiz que aparece sob três formas:*eid-, oid- eid-.<br />

De eîd forma-se, além de eîdos, o verbo eídomai, que signifi ca: mostrar-se,<br />

fazer-se ver. De *oid forma-se oí<strong>da</strong> (infi nitivo eidénai) perfeito do verbo ser que<br />

signifi ca saber (por ter visto), conhecer. De *id- forma-se o aoristo do verbo ver,<br />

ideîn e o substantivo idéa, com o mesmo sentido de eîdos: aspecto externo,<br />

aspecto visível, forma visível, caracteres próprios de alguma coisa, maneira de<br />

ser. Com Platão, idéa passa a signifi car: princípio geral de classifi cação dos<br />

seres, forma ideal concebi<strong>da</strong> pelo pensamento. Com Aristóteles, idéa, signifi ca<br />

conceito abstrato diferente <strong>da</strong>s coisas concretas. Eídos, a forma inteligível,<br />

idéa, o conceito, ideîn, ver, e oîa<strong>da</strong>/ eidénai, saber (por ter visto), conhecer,<br />

criam a tradição fi losófi ca do conhecimento como visão intelectual ou visão<br />

espiritual, e de ver<strong>da</strong>de como visão plena ou evidência. A idéia é a reali<strong>da</strong>de<br />

ver<strong>da</strong>deira que o pensamento vê. Em oposição a eîdos está eídolon: imagem,<br />

reprodução, cópia, ídolo, fantasma, simulacro.<br />

Logo de início, na apresentação do termo idéa, em grego, podemos vê-lo<br />

como originalmente acessível a qualquer pessoa, letra<strong>da</strong> ou não, acessível até<br />

mesmo a uma criança. Quem não retém o aspecto exterior e visível <strong>da</strong> fi sionomia<br />

de uma pessoa queri<strong>da</strong>, de um determinado corpo visto todos os dias? A<br />

linguagem fi losófi ca cui<strong>da</strong> de garantir verticali<strong>da</strong>de ao termo, dotando-o de um<br />

signifi cado que prioriza a forma imaterial de algo, passível de ser conhecido<br />

apenas por um intelecto dotado <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de se pronunciar sobre a essência<br />

inteligível <strong>da</strong>s coisas. Para os fi lósofos gregos, o anseio de se chegar a uma<br />

reali<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deira concebi<strong>da</strong> pelo pensamento está em oposição níti<strong>da</strong> ao saber<br />

comum, às opiniões, quando não há condições seguras para vencer os domínios<br />

<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s falsas idéias representa<strong>da</strong>s pelas imagens, pelos ídolos,<br />

pelos simulacros. Mais uma vez podemos ver que a fi losofi a grega quer trabalhar<br />

com formas inteligíveis, com conceitos que nos permitem pleitear o acesso a uma<br />

reali<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deira que o pensamento vê, sem o risco de iludir-se.<br />

1.5.3. Episteme:<br />

conhecimento teórico <strong>da</strong>s coisas por meio de raciocínios, provas e demonstrações;<br />

conhecimento teórico por meio de conceitos necessários (isto é, <strong>da</strong>quilo que é<br />

impossível que seja diferente do que é; o que não pode ser de outra maneira, ser<br />

175


10 É provável que Chauí<br />

tenha invertido os termos<br />

involuntariamente,<br />

pois parece lógico que<br />

methodeuo prece<strong>da</strong><br />

méthodos.<br />

176<br />

diferente do que é) e universais (isto é válidos para todos em todos os tempos e<br />

lugares). Opõe-se a empeiria. O verbo epistamai, <strong>da</strong> mesma família de episteme,<br />

signifi ca: saber, ser apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este<br />

verbo não distinguia nem separava episteme e empeiria, mas referia-se a todo<br />

conhecimento obtido pela prática ou pela inteligência, referia-se à habili<strong>da</strong>de).<br />

A seguir, passa a signifi car: conhecer pelo pensamento, ter um conhecimento<br />

por raciocínio e, com Aristóteles passa signifi car investigar cientifi camente.<br />

O termo episteme, ou epistemologia vem do que é enfatizado pelos gregos,<br />

enquanto aquele conhecimento que tem pretensão de universali<strong>da</strong>de, de<br />

ver<strong>da</strong>de, de identi<strong>da</strong>de. Para os gregos, o conhecimento seguro é considerado<br />

possível através do domínio teórico <strong>da</strong>s coisas, dos raciocínios, <strong>da</strong>s provas e<br />

demonstrações que não se deixam enganar pelos sentidos. Na Moderni<strong>da</strong>de<br />

há uma novi<strong>da</strong>de, o pensamento que conhece racionalmente é visto como de<br />

natureza distinta <strong>da</strong>s coisas conheci<strong>da</strong>s, do que nos fornecem os sentidos, pois é<br />

imaterial. Então, é preciso explicar como transformamos as coisas materiais em<br />

idéias, sob a responsabili<strong>da</strong>de do sujeito que conhece. Daí em diante afi rma-se a<br />

necessi<strong>da</strong>de de epistemologias que pleiteiam vali<strong>da</strong>de científi ca. Veja, porém, o<br />

que adverte Chauí: o verbo epistemai, em suas origens mais antigas não distinguia<br />

ou separava episteme (saber racional) e empeiria (saber sensível), abrangendo a<br />

todo conhecimento obtido pela prática, pela inteligência, pela habili<strong>da</strong>de. Como<br />

podemos ver, o termo episteme, com o trabalho <strong>da</strong> fi losofi a grega vai ganhando um<br />

refi namento que abandona as preocupações nas quais se sobressaem habili<strong>da</strong>des<br />

práticas e técnicas. Na Moderni<strong>da</strong>de, por sua vez, fala-se em epistemologias<br />

porque não há mais a identi<strong>da</strong>de e a harmonia e o lugar previamente <strong>da</strong>do ao<br />

ser humano na ordem do mundo, como queria a Antigui<strong>da</strong>de. O nosso planeta<br />

não é visto mais como lugar de centrali<strong>da</strong>de, ele ocupa um lugar entre outros<br />

no universo. Isso obriga o ser humano a se apresentar como sujeito, como quem<br />

ordena e organiza o mundo dentro dos limites de seus recursos racionais, tendo<br />

um método e uma epistemologia como guia e orientação de pensamento e de<br />

ação.<br />

1.5.4. Méthodos:<br />

método, busca, investigação, estudo feito segundo um plano. É composta de<br />

metá e odós (via, caminho, pista, rota; em sentido fi gurado signifi ca: maneira<br />

de fazer, meio para fazer, modo de fazer) Méthodos signifi ca, portanto,<br />

uma investigação que segue um modo ou maneira planeja<strong>da</strong> e determina<strong>da</strong><br />

para conhecer alguma coisa; procedimento racional para o conhecimento<br />

seguindo um percurso fi xado. Methodeúo: seguir de perto, seguir uma pista,<br />

caminhar de maneira planeja<strong>da</strong>, usar artifícios e astúcias, é um derivado de<br />

méthodos 10 .<br />

A visita de Marilena Chauí aos termos gregos é eluci<strong>da</strong>tiva para o<br />

entendimento dos estudos <strong>da</strong> fi losofi a e <strong>da</strong> fi losofi a <strong>da</strong> educação porque ela cui<strong>da</strong><br />

de fazer dois movimentos essenciais. No primeiro, a autora apresenta o sentido<br />

que ain<strong>da</strong> hoje adotamos do termo, levando em consideração seu vínculo com o<br />

entendimento original <strong>da</strong> fi losofi a grega antiga. No outro movimento, a autora<br />

surpreende o leitor quando remete o termo ao seu sentido experimentado no


universo humano do saber comum, especialmente quando neste se identifi cam<br />

procedimentos bastante desenvolvidos para a eluci<strong>da</strong>ção de problemas práticos.<br />

O pioneiro <strong>da</strong> pratica do método é o caçador. Este é o primeiro ser humano<br />

capaz de garantir a elaboração de planos para conseguir objetivos defi nidos. Ele<br />

segue com inteligência pistas, detalhes para alcançar o que procura. A palavra<br />

método, para Chauí, tem, portanto, sua vinculação primeira ao ofício do caçador,<br />

mestre na capaci<strong>da</strong>de de seguir de perto uma pista, de planejar esforços e<br />

astúcias para encontrar comi<strong>da</strong>, água e orientação, para escapar de inimigos e<br />

pre<strong>da</strong>dores. Somente sentidos altamente cultivados permitem em ambientes<br />

hostis, lograr êxito e preservar a vi<strong>da</strong>. Zadig, como vimos, é o fi lósofo <strong>da</strong> atenção,<br />

<strong>da</strong> observação, que é condição para a elaboração do método. É o fi lósofo/caçador<br />

capaz de encontrar até mesmo o que não está procurando. Devo aqui fazer um<br />

alerta: trago de volta Zadig e sua fi losofi a de vi<strong>da</strong>, que a fi losofi a grega vai jogar<br />

para um plano secundário. Zadig alcança êxito, mas poderia fracassar porque<br />

li<strong>da</strong> com situações instáveis e não tem como testar previamente suas explicações<br />

provisórias. A fi losofi a grega quer trabalhar com explicações seguras e replicáveis,<br />

o que nem Zadig, nem os príncipes de Serendip tem condições de garantir.<br />

1.5.5. Logos:<br />

Esta palavra sintetiza vários signifi cados que, em português, estão separados,<br />

mas unidos em grego. Vem do verbo légo (no infi nitivo légein) que signifi ca:<br />

1. reunir, colher contar, enumerar, calcular; 2. narrar, pronunciar, proferir,<br />

falar, dizer, declarar, anunciar, nomear claramente, discutir; 3. pensar, refl etir;<br />

ordenar; 4. querer dizer, signifi car, falar como orador, contar, escolher; 5. ler<br />

em voz alta, recitar, fazer dizer. Lógos é: palavra, o que se diz, sentença,<br />

máxima, exemplo, conversa, assunto <strong>da</strong> discussão; pensar, inteligência, razão,<br />

facul<strong>da</strong>de de raciocinar, fun<strong>da</strong>mento, causa, princípio, motivo, razão de<br />

alguma coisa; argumento, exercício <strong>da</strong> razão, juízo ou julgamento, bom senso,<br />

explicação, narrativa, estudos; valor atribuído alguma coisa, razão íntima de<br />

uma coisa, justifi cação, analogia. Lógos reúne numa só palavra quatro sentidos:<br />

linguagem, pensamento ou razão, norma, ou regra, ser um reali<strong>da</strong>de íntima<br />

de alguma coisa. No plural, lógoi, signifi ca: os argumentos, os discursos, os<br />

pensamentos, as signifi cações: -logia, que é usado com segundo elemento de<br />

vários compostos, indica: conhecimento de, explicação racional de, estudo de,<br />

diálogo, dialética, lógica são palavras <strong>da</strong> mesma família de lógos. O lógos dá a<br />

razão, o sentido, o valor, a causa, o fun<strong>da</strong>mento de alguma coisa, o ser <strong>da</strong> coisa.<br />

É também a razão conhecendo as coisas, pensando os seres, a linguagem que<br />

diz ou profere as coisas, dizendo o sentido ou o signifi cado delas. O verbo légo<br />

conduz à idéia de linguagem porque signifi ca reunir e contar: falar é reunir<br />

sons; ler e escrever é reunir e contar letras; conduz à idéia de pensamento e<br />

razão porque pensar é reunir idéias e raciocinar é contar ou calcular sobre<br />

as coisas. Esta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de sentidos é o que leva os historiadores <strong>da</strong> fi losofi a a<br />

considerar que, na fi losofi a grega, dizer, pensar e ser são a mesma coisa.<br />

Há na origem <strong>da</strong> palavra um entrelaçamento de sentidos que podem<br />

ser identifi cados nas tarefas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> prática e também nas tarefas do trabalho<br />

intelectual. A fi losofi a grega cui<strong>da</strong> <strong>da</strong> verticali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compreensão do termo, de<br />

modo que se desembarace do universo inferior <strong>da</strong> doxa, do senso comum, e possa<br />

177


11 Os fi lósofos présocráticos<br />

são chamados<br />

assim não porque<br />

necessariamente vieram<br />

antes de Sócrates, mas<br />

porque se dedicaram<br />

a estu<strong>da</strong>r o mundo, a<br />

ordem <strong>da</strong>s coisas no<br />

mundo, a partir de<br />

um ou mais princípios<br />

explicativos. Os présocráticos<br />

não trabalham<br />

com o tema socrático<br />

central: a vi<strong>da</strong> humana,<br />

o auto-conhecimento e o<br />

agir moral.(Chauí)<br />

178<br />

traduzir o esforço <strong>da</strong> razão humana, que fornece critérios considerados seguros<br />

para saber <strong>da</strong>s coisas, em busca de seu sentido e de seu signifi cado profundo.<br />

Um aspecto importante: vamos ver -logia como segundo elemento de vários<br />

compostos. Quais são as disciplinas, nossas conheci<strong>da</strong>s, com este complemento?<br />

Outra coisa importante para a fi losofi a grega é considerar que em seu domínio<br />

dizer, pensar e ser constituem a mesma coisa, a mesma reali<strong>da</strong>de. Aqui esta posta<br />

a distância do saber do fi lósofo do saber de quem se move no domínio <strong>da</strong> doxa.<br />

1.5.6. Télos:<br />

fi m, fi nali<strong>da</strong>de, conclusão, acabamento, realização, cumprimento; resultado<br />

conseqüência; chegar a um termo previsto, ponto culminante, cume, cimo,<br />

alvo; formação e desenvolvimento completos, pleno acabamento; plenitude de<br />

poder de alguma coisa, soberania; o que deve ser realizado ou cumprido; o que<br />

é completo em si mesmo. (...) O télos é o que permite avaliar ou determinar o<br />

valor e a reali<strong>da</strong>de de uma coisa.<br />

O télos é muito importante para a fi losofi a porque esta trabalha com<br />

método (caminha sempre seguindo um plano previamente pensado). Para a<br />

fi losofi a, a fi nali<strong>da</strong>de não é conquista<strong>da</strong> por obra do acaso, mas pela capaci<strong>da</strong>de<br />

de planejar, de antecipar racionalmente algo, de ver o alcance do que foi<br />

arquitetado na consciência. O télos, como o lugar de chega<strong>da</strong> projetado é o que<br />

pode <strong>da</strong>r sustentação à ativi<strong>da</strong>de fi losofi ca. No entanto, o que dizemos aqui nos<br />

faz lembrar do caçador, que foi o primeiro ser humano dotado <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de<br />

perseguir um télos, que na<strong>da</strong> mais era do que o alimento para si mesmo e para a<br />

continui<strong>da</strong>de de sua com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Fica mais fácil agora entender porque a cabeça<br />

de Zeus pôde se fazer fecun<strong>da</strong>, para isso bastou estar impregna<strong>da</strong> <strong>da</strong> inteligência<br />

e <strong>da</strong> astúcia <strong>da</strong> Métis.<br />

1.6. Parmênides(540-450 a.C) e Heráclito(540-480 a.C) Dois Filósofos<br />

Pré-Socráticos 11<br />

Para nós hoje (ver Chauí op. cit. 103) é muito claro que o pensamento<br />

se move de acordo com uma lógica que não é a mesma lógica <strong>da</strong>s coisas do<br />

mundo. Entendemos o pensamento como um movimento <strong>da</strong> nossa consciência,<br />

esta que conhece e produz idéias sobre os objetos do conhecimento. Porém, os<br />

gregos antigos desconheciam a separação entre o ato de conhecer e o objeto do<br />

conhecimento, entre o sujeito e o objeto.<br />

Parece estranho isso, mas do modo deles, os gregos mantinham um<br />

profundo vínculo com a ordem <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assim a linguagem,<br />

nota<strong>da</strong>mente a linguagem elabora<strong>da</strong>, não se distinguia do sentido próprio <strong>da</strong>s<br />

coisas. Os fi lósofos situavam seu pensamento como parte indistinta do cosmos,<br />

de um único mundo, de um único lógos (p.102).<br />

Sendo assim, passava a ser uma novi<strong>da</strong>de admitir a existência de um<br />

pensamento movendo-se com lógica interna aparta<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência sensível.<br />

Abria-se caminho para algo novo que permitia acesso à via <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de,


contra a via <strong>da</strong> opinião, <strong>da</strong> doxa. Esta é a contribuição de Parmênides. Para ele<br />

necessi<strong>da</strong>de, destino, justiça passam a ser vistos como conceitos e não forças<br />

naturais, são por isso, exigências do ser em sua inteligibili<strong>da</strong>de, em sua apreensão<br />

racional e lógica 12 . Esta contribuição abre caminhos para a fi losofi a. Não será,<br />

to<strong>da</strong>via um caminho único, uma única maneira de situar o que é essencial para o<br />

conhecimento do ser. Chauí (2002: 104;105) esclarece:<br />

O que é ser para Parmênides (a identi<strong>da</strong>de estável, imóvel) é ilusão para<br />

Heráclito. O que é essencial para Parmênides é o conhecimento do ser; o que é<br />

essencial para Heráclito é o auto-conhecimento do ser humano.’ No entanto,<br />

ambos inauguram a mesma coisa, isto é, a exigência de fazer a distinção entre<br />

a aparência e a reali<strong>da</strong>de e a afi rmação que essa diferença só pode ser feita pelo<br />

pensamento, pela inteligência e não pela experiência sensível ou sensorial. Os<br />

sentidos permanecem prisioneiros <strong>da</strong> dóxa. [grifo meu]<br />

[Para Heráclito] o kósmos é ser vivo. Por isso mu<strong>da</strong> sem cessar. Assim como<br />

a polis vive <strong>da</strong> luta dos contrários, assim também o kósmos, na tensão de<br />

seus opostos. Assim como o logos, a polis cria a lei (nómos) que faz existir a<br />

harmonia dos contrários, sem excesso, por todo excesso, to<strong>da</strong> hýbris é puni<strong>da</strong><br />

pela justiça (diké)<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A): Faça um texto apresentando como você<br />

entende esta frase: os sentidos permanecem prisioneiros <strong>da</strong> dóxa?. Faça seu<br />

comentário, estabelecendo uma conexão com o conto de Zadig e as novas<br />

descobertas que são feitas pelos fi lósofos pré-socráticos. De preferência, volte<br />

ao termo dóxa, anteriormente apresentado.<br />

1.7 O que podemos dizer de Sócrates o medico/educador que examina<br />

a alma do aprendiz?<br />

É tarefa difícil tratar <strong>da</strong> contribuição de Sócrates (469/470-399 a.C.), que na<strong>da</strong><br />

deixou por escrito. O que temos é o legado obtido pelos escritos de discípulos e/<br />

ou pensadores interessados e ilustres como Platão e Aristóteles, Temos ain<strong>da</strong> o<br />

legado de escolas menos conheci<strong>da</strong>s como a dos megáricos, dos cirenaicos e dos<br />

cínicos, por admiradores e críticos de uma fase de sua vi<strong>da</strong>, por estudiosos que<br />

vieram em períodos posteriores, como Cícero.<br />

Na sua época, Atenas passa a ser o cenário onde os campos de saber<br />

estarão sendo diretamente confrontados. No tempo de Sócrates, Atenas, pela<br />

sua prosperi<strong>da</strong>de, transforma-se num centro de cultura e de difusão de novas<br />

idéias. Concretiza, pela primeira vez, a experiência de um governo democrático<br />

sob o controle <strong>da</strong>queles que usufruíam dos direitos de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. A ci<strong>da</strong>de atrai<br />

pensadores que se dedicam a vários ramos de especialização.<br />

Ao seu modo, Sócrates, que se dizia um não especialista, compara seu ofício<br />

ao do médico clínico13 . Este “clínico geral”, no entanto, não vai buscar seu metrón,<br />

sua medi<strong>da</strong>, nos indicadores provenientes dos sentidos, como faz a medicina<br />

de seu tempo. A via de acesso aos saberes pelos sentidos como que perde sua<br />

12 Diké: justiça,<br />

inicialmente signifi cava<br />

o modo de ser e de agir,<br />

à maneira de, ao modo<br />

de, costume, depois o<br />

modo de ser ou agir de<br />

acordo com uma regra de<br />

conduta, de uma norma.<br />

Moira: o destino de<br />

ca<strong>da</strong> um, a necessi<strong>da</strong>de<br />

que rege o curso <strong>da</strong>s<br />

coisas (Cf. Chauí, op. cit.<br />

498;506)<br />

13 Para Nietz sche, o feito<br />

de Sócrates chega à<br />

primazia do elemento<br />

apolíneo-racional sem<br />

uma tensão, de fato, com<br />

o dionísico-irracional.<br />

Para ele, isso é o mesmo<br />

que quebrar a harmonia<br />

grega. De resto, corpo e<br />

alma passam a não ser<br />

uma e mesma coisa, além<br />

de se colocarem em uma<br />

ordem hierárquica com o<br />

privilégio <strong>da</strong> alma.<br />

179


180<br />

primazia na via socrática, interessa<strong>da</strong> pela saúde <strong>da</strong> alma. Fica dispensa<strong>da</strong> a<br />

apreensão sensível <strong>da</strong> medicina hipocrática, que, dá sustentação à fase diagnóstica<br />

e diagnóstico-comunicativa entre médico e paciente, para se chegar à terapêutica<br />

considera<strong>da</strong> adequa<strong>da</strong>.<br />

Não se pode esquecer que, para Sócrates, a saúde <strong>da</strong> alma dependia de<br />

uma busca crítico-normativa e de um domínio ético-prático, para quem aspira<br />

deixar-se guiar em direção ao que não está contaminado pelas instabili<strong>da</strong>des e<br />

incertezas dos embates cotidianos. O trabalho <strong>da</strong> consciência não exime ninguém<br />

de encontrar sustentação às próprias idéias e assim chegar ao dever ser.<br />

Sócrates investe contra o relativismo <strong>da</strong> linguagem, contra os saberes de<br />

ocasião, contra a decadência moral e política <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Ele “in<strong>da</strong>ga se existe um<br />

valor essencial de to<strong>da</strong>s as virtudes particulares, como a coragem, a sabedoria, a<br />

justiça. (ABRÃO: 1999:44)<br />

A medicina do corpo transita pelo campo dos possíveis para apresentar,<br />

no máximo, uma via alternativa para a cura, cujo resultado só seria conhecido a<br />

posteriori. Sócrates vislumbra para a medicina <strong>da</strong> alma uma possibili<strong>da</strong>de muito<br />

mais refi na<strong>da</strong> do que uma perícia que encontra uma via alternativa (acrescentar<br />

algo que falta ao corpo ou tirar algo que se encontra em excesso).<br />

Essa medicina <strong>da</strong> alma quer transitar pelo campo dos possíveis e<br />

ultrapassá-los através <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de racional e <strong>da</strong> descoberta dos critérios válidos<br />

para absorver ca<strong>da</strong> caso e seus congêneres. Nesse percurso, a razão arranca<br />

<strong>da</strong> avaliação dialoga<strong>da</strong> do que está sendo (o campo dos acontecimentos na<br />

vi<strong>da</strong> cotidiana com suas incertezas), costurando os critérios lógicos que mais<br />

prontamente superam as zonas de indefi nição em direção às noções seguras e<br />

desimpedi<strong>da</strong>s dos condicionamentos. Isso explica porque a medicina <strong>da</strong> alma é<br />

alça<strong>da</strong> a uma posição superior à medicina do corpo.<br />

O pensamento que, com Sócrates, redimensiona o alcance <strong>da</strong> inteligência<br />

humana acaba sinalizando para uma posição muito mais confi ante e segura <strong>da</strong><br />

lógica que o alimenta. Nessa perspectiva, a ativi<strong>da</strong>de pensante humana não se<br />

contenta em se descobrir como parte instável do cenário que compõe a reali<strong>da</strong>de<br />

maior <strong>da</strong> physis. Caberá ao pensamento humano, a uma consciência corretamente<br />

cultiva<strong>da</strong>, a possibili<strong>da</strong>de de julgar de modo mais seguro qual o seu lugar na<br />

ordem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Apesar de estabelecer uma dicotomia corpo e alma, Sócrates garante uma<br />

concepção de alma (psiqué) que vai trazer grandes inovações no pensamento<br />

ocidental.<br />

Antes, com Homero, a psiqué era o “duplo” que tinha o poder de vagar<br />

provisioriamente durante o sono, ou desprender-se defi nitivamente com a morte,<br />

mas ain<strong>da</strong> sem relação com a vi<strong>da</strong> mental ou as “facul<strong>da</strong>des” <strong>da</strong> pessoa. Nos<br />

órfi cos, a alma era o princípio superior que poderia reencarnar-se depois de<br />

processo de purifi cação e de reintegração na harmonia universal. No corpo vivo,<br />

projetava-se de modo excepcional, em sonhos, visões, transes. Nos pensadores<br />

Jônicos do século VI a.C., a psiquê era parte do todo, porção do pneuma (ar)<br />

infi nito que habitava o corpo até o último alento, como concebia Anaxímenes de<br />

Mileto. Era porção de fogo a aquecer e animar o corpo, até o retorno ao Fogo-<br />

Razão, o Logos universal. A partir de Sócrates (PEÇANHA, in SÓCRATES, op. cit.<br />

29-30), ou na literatura referente a ele, surge a concepção de alma como sede <strong>da</strong><br />

consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de ca<strong>da</strong> um é aquela


eali<strong>da</strong>de interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter<br />

conhecimento ou ignorância, bon<strong>da</strong>de ou mal<strong>da</strong>de.<br />

A descoberta de que a alma é o mesmo que a sede <strong>da</strong> consciência de ca<strong>da</strong><br />

um, capaz de manifestar conhecimento ou ignorância ou de fazer julgamento<br />

sobre o que é ver<strong>da</strong>deiro ou falso, trouxe profun<strong>da</strong>s alterações sobre como<br />

podemos adquirir saberes e conhecimentos. Os órgãos dos sentidos privilegiados<br />

acabaram sendo a visão (alça<strong>da</strong> para além de sua mediação sensível) e a audição<br />

(sem ela o diálogo e a persuasão não superam a ignorância).<br />

As conseqüências pe<strong>da</strong>gógicas <strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong> alma racional superior ao<br />

corpo abre perspectivas para a excelência do fazer docente; afi nal, habilitar-se a<br />

ver com os olhos <strong>da</strong> alma é tarefa eleva<strong>da</strong>, para inspirados, como era o caso de<br />

Sócrates. Mas a via do diálogo é uma grande idéia porque favorece um canal<br />

concreto através do qual o aprendiz mais limitado, se for bem conduzido, pode<br />

orientar-se na arte de elaborar as próprias idéias e de se conduzir pelos caminhos<br />

<strong>da</strong> perfeição.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):O que você destaca <strong>da</strong> contribuição do<br />

pensamento de Sócrates para a compreensão do ser humano e <strong>da</strong> educação?<br />

1.8. Platão: o sábio é o que aponta o caminho para a luz ver<strong>da</strong>deira<br />

Platão (427-347 a.C) vai introduzir uma mu<strong>da</strong>nça, ou melhor, um<br />

aprofun<strong>da</strong>mento pessoal no que diz respeito ao modelo de investigação her<strong>da</strong>do<br />

de Sócrates. Os textos que surgem a partir do Fédon acrescentam aos diálogos<br />

anteriores, preocupados em son<strong>da</strong>r a consciência dos interlocutores, um método<br />

dotado de características teóricas, a serem defi ni<strong>da</strong>s pelos próprios problemas e<br />

por um repertório argumentativo mais impessoal.<br />

Platão, na seqüência dos ensinamentos de Sócrates, procura garantir uma<br />

investigação sistemática dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> conduta humana, porém ultrapassa<br />

a ênfase nos dilemas psicológicos e éticos <strong>da</strong> prática, abor<strong>da</strong>dos conforme as<br />

circunstâncias. Com isso, não se alteram apenas os temas <strong>da</strong> dialógia socrática:<br />

a própria trama do modelo dialogal e singularizante, que é desencadeador <strong>da</strong><br />

ciência ética, vai ser altera<strong>da</strong>. Já não basta chegar, pelo exame acurado do caso,<br />

aos indicadores <strong>da</strong> ação. É preciso situá-los numa explicação global <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />

de onde examinar as condutas.<br />

Nos seus primeiros livros, Platão partirá para <strong>da</strong>r inteligibili<strong>da</strong>de à<br />

reali<strong>da</strong>de, apoiando-se no que não depende nem do tempo nem <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />

(dialética descendente). Platão entra com uma racionali<strong>da</strong>de do estático e<br />

<strong>da</strong>s formas perfeitas para se sobrepor e <strong>da</strong>r inteligibili<strong>da</strong>de ao movimento, à<br />

transitorie<strong>da</strong>de e à precarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência sensível.<br />

Fiel aos costumes gregos, ele está interessado em fun<strong>da</strong>mentar aquilo que<br />

de maneira mais coerente permite agir sobre os homens. O fi lósofo-educador<br />

181


182<br />

vai dedicar-se ao pensamento sobre a política que, para ter ‘p’ maiúsculo, deve<br />

superar o desencadeamento de ações movi<strong>da</strong>s por interesses ambíguos e pouco<br />

dignos. O desafi o é trazer as bases para uma ação submeti<strong>da</strong> a critérios de<br />

ver<strong>da</strong>de, que arraste consigo o cultivo <strong>da</strong> harmonia, <strong>da</strong> justiça e <strong>da</strong> beleza.<br />

As referências platônicas aos temas médicos seguem, pelo menos, duas<br />

motivações básicas: primeiramente, contribuem para eluci<strong>da</strong>r o inevitável<br />

paralelo entre cui<strong>da</strong>dos do corpo e cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> alma; em segundo lugar, a<br />

medicina, com sua longa experiência de chegar a um pensar normativo, a partir<br />

dos casos concretos, não deixa de ser, até mesmo, como recurso didático, um<br />

degrau na escala<strong>da</strong> em busca <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong>s coisas e <strong>da</strong> norma imutável.<br />

Platão, para ser coerente com sua idéia <strong>da</strong>s três almas, defende que temos<br />

uma alma inferior ou concupiscível, que reside no baixo-ventre e é responsável<br />

pela ativi<strong>da</strong>de digestiva. Temos também uma alma afetiva, melhor posiciona<strong>da</strong>,<br />

que mora na região que circun<strong>da</strong> o coração. Num lugar mais elevado, está<br />

a inteligência que habita o cérebro e é convoca<strong>da</strong> para coman<strong>da</strong>r as almas<br />

inferiores. A ativi<strong>da</strong>de educacional consiste em evidenciar a posição de nossas<br />

três almas de modo que a inteligência seja desenvolvi<strong>da</strong> para coman<strong>da</strong>r de forma<br />

efi ciente as almas inferiores. Haverá processos educativos diferenciados. O rei<br />

deve saber guiar-se pela inteligência para que seja justo, os guerreiros devem<br />

aprender a dominar sua vontade para que possam defender a ci<strong>da</strong>de de seus<br />

inimigos os escravos e trabalhadores deveriam garantir os meios <strong>da</strong> subsistência<br />

humana na ci<strong>da</strong>de.<br />

Há uma <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> que une as diferentes partes do organismo. Da mesma<br />

forma, ca<strong>da</strong> homem e todos os homens fazem <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> com o cosmos, somos<br />

parte de um todo. Tais convicções dão sustentação à sua biologia, fi siologia,<br />

patologia e terapêutica. Admite-se que a física matemática garante a idéia de<br />

cosmos, como conhecimento possível. A medicina eleva o corpo perecível para<br />

a noção do todo, como possibili<strong>da</strong>de de ser um receptáculo digno para o “bem”<br />

que o habita.<br />

Vamos ver agora um famoso trecho <strong>da</strong> obra de Platão (RIBERO,1988)<br />

conhecido como A Alegoria <strong>da</strong> Caverna. O texto é extraído do Livro A República,<br />

Livro VII, 514 a -517 e.<br />

“– Vamos imaginar- disse Sócrates – que existem pessoas morando numa<br />

caverna subterrânea. A abertura dessa caverna se abre em to<strong>da</strong> a sua largura<br />

e por ela entra a luz. Os moradores estão aí desde sua infância, presos por<br />

correntes nas pernas e no pescoço. Assim, eles não conseguem mover-se nem<br />

virar a cabeça para trás. Só podem ver o que se fi ca sobre um monte atrás<br />

dos prisioneiros, lá fora. Pois bem, entre esse fogo e os moradores <strong>da</strong> caverna,<br />

imagine que existe um caminho situado num nível mais elevado. Ao lado dessa<br />

passagem se ergue um pequeno muro, semelhante ao tabique atrás do qual os<br />

apresentadores de fantoches costumam se colocar para exibir seus bonecos ao<br />

público.<br />

- Estou vendo – disse Glauco.<br />

- Agora imagine que por esse caminho, ao longo do muro, as pessoas<br />

transportam sobre a cabeça objetos de todos os tipos. Levam estatuetas de<br />

fi guras humanas e de animais, feitas de pedra, de madeira, ou de qualquer<br />

outro material. Naturalmente, os homens que as carregam vão conversando.


- Acho tudo isso muito esquisito. Esses prisioneiros que você inventou são<br />

muito estranhos – disse Glauco.<br />

- Pois eles se parecem conosco – comentou Sócrates – Agora me diga: numa<br />

situação como está, é possível que as pessoas tenham observado, a seu próprio<br />

respeito e dos companheiros, outra coisa diferente <strong>da</strong>s sombras que o fogo<br />

projeta na parede à sua frente?<br />

- De fato – disse Glauco -, com a cabeça imobiliza<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> só<br />

podem mesmo ver as sombras!<br />

- O que você acha? – perguntou Sócrates – que aconteceria a respeito dos<br />

objetos que passam acima <strong>da</strong> altura do muro, do lado de fora?<br />

- A mesma coisa, ora! Os prisioneiros só conseguem conhecer suas<br />

sombras!<br />

- Se eles pudessem conversar entre si, iriam concor<strong>da</strong>r que eram objetos<br />

reais as sombras que estavam vendo, não é? Além do mais, quando alguém<br />

falasse lá em cima, os prisioneiros iriam pensar que os sons, fazendo eco dentro<br />

<strong>da</strong> caverna eram emitidos pelas sombras projeta<strong>da</strong>s. Portanto – prosseguiu<br />

Sócrates – os moradores <strong>da</strong>quele lugar só podem achar que são ver<strong>da</strong>deiras as<br />

sombras dos projeteis fabricados.<br />

- È claro.<br />

- Pense agora no que aconteceria se os homens fossem libertados <strong>da</strong>s<br />

cadeias <strong>da</strong> ilusão em que vivem envolvidos. Se libertassem, um dos presos e o<br />

forçassem imediatamente a se levantar e olhar para trás, a caminhar dentro <strong>da</strong><br />

caverna e a olhar para a luz. Ofuscado, ele sofreria, não conseguindo perceber<br />

os objetos dos quais só conhecera as sombras. Que comentário você acha que<br />

ele faria, se lhe fosse dito que tudo o que observara até aquele momento não<br />

passava de falsa aparência e que, a partir de agora, mais perto <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e<br />

dos objetos reais, poderia ver com a maior perfeição? Não lhe parece que fi caria<br />

confuso se, depois de lhe apontarem ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s coisas que assam ao longo<br />

do muro, insistissem em que respondesse o que vem a ser ca<strong>da</strong> um <strong>da</strong>queles<br />

objetos? Você não acha que ele diria que são ver<strong>da</strong>deiras as visões de antes do<br />

que as de agora?<br />

- Sim – disse Glauco - , o que ele vira antes lhe parecera muito mais<br />

ver<strong>da</strong>deiro.<br />

- E se forçassem nosso libertado a encarar a própria luz? Você não acha que<br />

seus olhos doeriam e que, voltando as costas, ele fugiria para junto <strong>da</strong>quelas<br />

coisas que era capaz de olhar, pensando que elas são mais reais do que os<br />

objetos que lhe estavam mostrando?<br />

- Exata mente – concordou Glauco.<br />

-Suponho então – continuou Sócrates – que o homem só fosse solto quando<br />

chegasse ao ar livre. Ele fi caria afl ito e irritado porque o arrastaram <strong>da</strong>quela<br />

maneira, não é mesmo? Ali em cima, ofuscado pela luz do sol, você acha<br />

que ele conseguiria distinguir uma <strong>da</strong>s coisas que agora nós chamamos de<br />

ver<strong>da</strong>deiras?<br />

- Não conseguiria, pelo menos de imediato.<br />

183


184<br />

- Penso que ele precisaria habituar-se para começar a olhar as coisas que<br />

existem na região superior. A princípio, veria melhor as sombras. Em segui<strong>da</strong>,<br />

refl eti<strong>da</strong> nas águas perceberia a imagem dos homens e dos outros seres. Só<br />

mais tarde é que conseguiria distinguir os próprios seres. Depois de passar<br />

por esta experiência, durante a noite ele teria condições de contemplar o céu, a<br />

luz dos corpos celestes e a lua, com muito mais facili<strong>da</strong>de do que o sol e a luz<br />

do dia.<br />

- Não poderia ser de outro jeito.<br />

- Acredito que, fi nalmente, ele seria capaz de olhar para o sol diretamente,<br />

e não mais refl etido na superfície <strong>da</strong> água ou seus raios iluminando coisas<br />

distantes do próprio astro. Ele passaria a ver o sol, lá no céu, tal como ele é.<br />

- Também acho – Disse Glauco.<br />

- A partir <strong>da</strong>í, raciocinando, o homem libertado tiraria conclusão de que é<br />

o sol que produz as estações e os anos, que governa to<strong>da</strong>s as coisas visíveis.<br />

Ele perceberia que, num certo sentido, o sol é a causa de tudo o que ele e seus<br />

companheiros viam na caverna. Você também não acha que, lembrando-se <strong>da</strong><br />

mora<strong>da</strong> antiga, dos companheiros de prisão, ele lamentaria a situação destes e<br />

se alegraria com a mu<strong>da</strong>nça?<br />

- Decerto que sim.<br />

- Suponhamos que os prisioneiros concedessem honras e elogios entre si. Eles<br />

atribuiriam recompensas para o mais esperto, aquele que fosse capaz de prever<br />

a passagem <strong>da</strong> sombras, lembrando-se <strong>da</strong> seqüência em que elas costumam<br />

aparecer. Você acha, Glauco, que o homem libertado sentiria ciúme dessas<br />

distinções e teria inveja dos prisioneiros que fossem mais honrados e poderosos?<br />

Pelo contrário, como o personagem de Homero, ele não preferiria “ser apenas<br />

um peão de arado a serviço de um pobre lavrador”, ou sofrer no mundo, a<br />

pensar como pensava antes e voltar a viver como vivera antes?<br />

- Da mesma forma que você, ele preferira sofrer tudo a viver desta maneira.<br />

- Imagine então que o homem liberto voltasse à caverna e se sentasse em seu<br />

antigo lugar. Ao retornar do sol, ele não fi caria temporariamente cego em meio<br />

às trevas?<br />

- Sem dúvi<strong>da</strong>s.<br />

- Enquanto ain<strong>da</strong> estivesse com a vi<strong>da</strong> confusa, ele não provocaria risos dos<br />

companheiros que permaneceram presos na caverna se tivesse que entrar em<br />

competição com eles acerca <strong>da</strong> avaliação <strong>da</strong>s sombras? Os prisioneiros não<br />

diriam que a subi<strong>da</strong> para o mundo exterior lhe prejudicara a vista e que,<br />

portanto, não valia a pena chegar até lá? Você não acha que, se pudessem, eles<br />

matariam quem tentasse liberta-los e conduzi-los até o alto?<br />

- To<strong>da</strong> essa história, caro Glauco, é uma comparação entre o que a vista nos<br />

revela normalmente e o que se vê na caverna; entre a luz do fogo que ilumina o<br />

interior <strong>da</strong> prisão e a ação do sol; entre a subi<strong>da</strong> para o lado de fora <strong>da</strong> caverna,<br />

junto com a contemplação do que lá existe, e entre o caminho <strong>da</strong> alma em sua<br />

ascensão ao inteligível, eis a explicação <strong>da</strong> alegoria: no Mundo <strong>da</strong>s Idéias,<br />

a idéia do bem é aquela que se vê por ultimo e a muito custo. Mas, uma vez<br />

contempla<strong>da</strong>, esta idéia se apresenta ao raciocínio como sendo, em defi nitivo,


a causa de to<strong>da</strong> a retidão e de to<strong>da</strong> a beleza. No mundo visível, ela é geradora<br />

<strong>da</strong> luz e do soberano <strong>da</strong> luz. No mundo <strong>da</strong>s idéias, a própria idéia do bem é que<br />

dá origem à ver<strong>da</strong>de e à inteligência. Considero que é necessário contemplá-la,<br />

caso se queira agir com sabedoria, tanto na vi<strong>da</strong> particular como na política.”<br />

Veja agora o comentário de Heinz von Foerster (In Schnitman, 1996:67)<br />

Gostaria agora de ilustrar algumas de minhas afi rmações com uns poucos<br />

exemplos. O primeiro refere-se às explicações, e o retirei de um relato de Carlos<br />

Castañe<strong>da</strong>. Como vocês recor<strong>da</strong>rão, Castañe<strong>da</strong> foi ao povoado de Sonora, no<br />

México, para conhecer um bruxo chamado Don Juan, a quem pediu que o<br />

ensinasse a ver. Assim Don Juan interna-se com Castañe<strong>da</strong> no meio <strong>da</strong> selva<br />

mexicana. Caminham uma ou duas horas e, de repente, Don Juan exclama:<br />

“olha, olha o que há aí! Viste?” Castañe<strong>da</strong> lhe responde: “Não... não vi.”<br />

Continuam caminhando e, uns dez minutos mais tarde Don Juan volta a<br />

deter-se e exclama: “olha, olha ali! Viste?” Castañe<strong>da</strong> olha e responde: “Não,<br />

não vi na<strong>da</strong>”. “Ah”, é a lacônica resposta de Don Juan. Seguem sua marcha e<br />

volta a acontecer a mesma coisa duas ou três vezes, mas Castañe<strong>da</strong> nunca vê<br />

na<strong>da</strong>; até que, enfi m, Don Juan encontra a solução: “Agora entendo qual é teu<br />

problema!” – lhe disse: “Tu não podes ver o que não podes explicar. Trata de<br />

esquecer de tuas explicações e começarás a ver”.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A)<br />

1. A partir <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> alegoria <strong>da</strong> caverna e deste comentário de Von Foerster<br />

faça um pequeno texto, tentando atualizar a discussão levanta<strong>da</strong> pela alegoria<br />

de Platão.<br />

2. Assista o primeiro fi lme <strong>da</strong> série sobre Matrix e avalie se há ali alguma<br />

inspiração na alegoria <strong>da</strong> caverna de Platão. Caso haja, em que parte do fi lme<br />

a inspiração pode se fazer presente de forma mais palpável..<br />

1.9 Aristóteles: a lógica evidencia a ordem <strong>da</strong>s coisas<br />

Aristóteles (384-322, a.C.) saiu <strong>da</strong> Macedônia, por volta dos seus dezoito<br />

anos, rumo a Atenas14 . Vinha atraído pelo que podia oferecer o grande centro<br />

geográfi co, político, intelectual e cultural do mundo grego. Trazia duas heranças,<br />

a ascendência jônica e a tradição médica <strong>da</strong> família, inclusive a serviço do reino<br />

<strong>da</strong> Macedônia. Seu pai, Nicômacos, era médico e amigo <strong>da</strong> família real, mas<br />

faleceu quando ele ain<strong>da</strong> era jovem, motivo pelo qual deve ter interrompido a<br />

tradição que naturalmente o levava à direção <strong>da</strong> carreira do pai.<br />

Freqüentou, por cerca de vinte anos, a academia de Platão. Mesmo<br />

convivendo com o matematismo <strong>da</strong> Academia, não perdeu o espírito proveniente<br />

<strong>da</strong> herança familiar. Demonstrava interesses pelas pesquisas biológicas e pelo<br />

senso de observação e de classifi cação, inerentes à cultura médica.<br />

14 Estagira, a ci<strong>da</strong>de onde<br />

Aristóteles nasceu fi cava<br />

na Calcídica. A ci<strong>da</strong>de<br />

estava sob domínio <strong>da</strong><br />

Macedônia, mas era uma<br />

ci<strong>da</strong>de grega, inclusive<br />

a língua ali fala<strong>da</strong> era o<br />

grego.<br />

185


186<br />

Depois que saiu <strong>da</strong> Academia, Aristóteles elaborou sua objeção à teoria<br />

platônica <strong>da</strong>s idéias. Contrapõe-se à concepção cosmológica de Platão, no Timeo,<br />

na qual o universo é concebido como resultado <strong>da</strong> ação de um artesão divino<br />

ou demiurgo. Aristóteles no seu livro intitulado Sobre a Filosofi a, propõe uma<br />

cosmovisão, na qual apresenta um organismo capaz de desenvolver algo que é<br />

engendrado de dentro de si, que seria próprio de sua natureza ou physis.<br />

Aristóteles vê o universo em dois grandes espaços: o mundo acima <strong>da</strong> lua e<br />

o mundo sob a lua. No mundo supralunar, o movimento é perfeito e eterno. No<br />

mundo sublunar, como queria Empédocles, encontra a composição dos quatro<br />

elementos: água, ar, terra e fogo. Esses elementos se combinam para formar a<br />

causa material de tudo o que existe e a forma multivaria<strong>da</strong> que os distinguem.<br />

O mundo sublunar é o reino <strong>da</strong> imperfeição, pois ali as coisas estão<br />

submeti<strong>da</strong>s à geração, à decadência e à morte. Para Aristóteles, os movimentos<br />

físicos são sempre, de alguma forma, uma violência contra seu ‘lugar natural’.<br />

Aquilo que é pesado se é lançado para o alto, tende a voltar para o chão, seu<br />

lugar natural, pois retornar é sua causa fi nal. No caso humano, a causa fi nal é<br />

chegar à felici<strong>da</strong>de, que não deve ser atingi<strong>da</strong> nem pelo excesso nem pela falta. O<br />

ideal é chegar ao “meio termo”, o que só se consegue pelo hábito, pela ativi<strong>da</strong>de<br />

intelectual e pela distância <strong>da</strong>s perturbações diárias. O mundo se explica pela<br />

sua causa fi nal, é como se em tudo que existisse no mundo tivesse um propósito.<br />

Como se a madeira tivesse, de alguma forma, por destino virar mesa, cadeira,<br />

armário para servir aos seres humanos, como se os animais e plantas existentes<br />

tivessem como fi m servirem de alimentos para nós, que ocupamos um lugar<br />

destacado na ordem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Aliás, a causa fi nal aponta para uma pré-destinação<br />

inscrita nas coisas do mundo.<br />

Pensando assim, vai defender que o corpo e a alma são partes de um<br />

mesmo ser e que esta visão integra<strong>da</strong> é necessária para mútuo esclarecimento.<br />

A existência particular não se dá sem a forma (a alma) e sem a matéria (o corpo).<br />

Como decorrência a alma só existe no corpo e não pode ser imortal, no máximo<br />

é uma forma comum a uma espécie. Esta interpenetração entre o corpo e alma<br />

vai estar presente em seus trabalhos sobre a física, a metafísica e a lógica e<br />

particularmente sobre a medicina e a ética.<br />

Para ele, tudo leva em direção à idéia de ser, para tratar <strong>da</strong>s coisas<br />

existentes. Sem o conhecimento do ser, faltariam bases sóli<strong>da</strong>s às ciências (Física,<br />

Astronomia, Biologia e outras) que estu<strong>da</strong>m os aspectos particulares <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Sem a idéia do ser, não haveria ciência porque só haveria explicações particulares<br />

para coisas particulares.<br />

Em sua idéia do ser, recusa a solução platônica <strong>da</strong>s idéias perfeitas e<br />

eternas, pela desnecessária duplicação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sensível. O que existe são<br />

seres singulares, com sua concretude e existência empírica. A ciência vai recolher<br />

pelo conhecimento empírico o que vem <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, até chegar a defi nições<br />

essenciais e atingir o universal, que é seu objeto próprio. O caminho aristotélico<br />

é o de quem se apropria dos <strong>da</strong>dos sensíveis que acenam para o individual e o<br />

concreto, de modo a chegar à ciência <strong>da</strong>s coisas, identifi cando o que é universal e<br />

necessário.<br />

O grande projeto de Aristóteles, discípulo e depois crítico de seu antigo<br />

mestre, Platão, era o de constituir uma ciência com critérios seguros. Isso o<br />

levou a considerar a dialética, a conversação do mestre e discípulo em busca do


conhecimento como uma via imprópria para atingir a ver<strong>da</strong>de. Ele a entendia,<br />

no máximo, como um exercício mental capaz de expor a opinião <strong>da</strong>s pessoas<br />

sobre as coisas, sem, to<strong>da</strong>via, oferecer garantia contra o relativismo e o jogo <strong>da</strong>s<br />

probabili<strong>da</strong>des. Entendia que a dialética tem valor como uma preparação para<br />

o conhecimento e aponta para a história do pensamento fi losófi co. A história<br />

testemunha o debate entre as opiniões precedentes que permitem o acesso à<br />

ver<strong>da</strong>de que seria alcança<strong>da</strong> pela síntese aristotélica.<br />

Para realizar este projeto ambicioso de rigor científi co e conhecimentos<br />

seguros, o fi lósofo vai elaborar normas, procedimentos para guiar o pensamento.<br />

Vai concentrar-se na lógica e nas regras do raciocínio e também na análise<br />

<strong>da</strong> linguagem para superar os equívocos que nela se fazem presentes. As<br />

ciências volta<strong>da</strong>s para o mundo físico faziam sua parte encontrando suporte na<br />

especulação metafísica. Encontrariam nesta a garantia de chegar à estrutura<br />

dos próprios objetos. Sendo que a lógica, aquela que trabalha com a utilização<br />

científi ca dos conceitos, teria seu fun<strong>da</strong>mento na própria reali<strong>da</strong>de, encontrando<br />

legitimi<strong>da</strong>de para seu operar. 15<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A)<br />

Faça um pequeno texto, destacando o que considera de mais interessante no<br />

projeto Aristotélico voltado para a busca de rigor científi co e de procedimentos<br />

seguros para guiar o pensamento.<br />

15 Ver Aristóteles<br />

(1999:22).<br />

187


UNIDADE II<br />

A FILOSOFIA NA MODERNIDADE: NECESSIDADES E<br />

HORIZONTES<br />

Platão com sua fi losofi a afi rmava uma concepção de mundo através<br />

<strong>da</strong> qual era possível pela razão seguir em direção ao real (a via <strong>da</strong> episteme)<br />

ultrapassando os domínios do aparente (a via <strong>da</strong> doxa). Aristóteles, por sua<br />

vez, concebia um mundo, possível de ser entendido identifi cando a causa fi nal,<br />

como se todo o existente pudesse ser explicado a partir de um propósito, de uma<br />

predestinação inscrita na ordem do mundo.<br />

As fi losofi as modernas passaram a não se contentar com as explicações<br />

que se moviam na separação entre real e aparente, no fi nalismo pré-existente<br />

na ordenação do mundo. Experimentaram a exigência de discutir a relação<br />

interiori<strong>da</strong>de e exteriori<strong>da</strong>de, quer dizer, o que era atribuição do sujeito<br />

(<strong>da</strong>quele que conhece) e o que era <strong>da</strong> ordem do objeto (do que é conhecido).<br />

Experimentaram a exigência de rediscutir as bases teórico-metodológicas que os<br />

levavam a examinar o lugar onde habitavam, quem é o ser humano e o que este<br />

podia conhecer. O que aconteceu para que isso se impusesse na Moderni<strong>da</strong>de?<br />

As discussões sobre o problema do ser humano e do conhecimento, no<br />

desenrolar <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média vão incorporar discussões não valoriza<strong>da</strong>s entre os<br />

gregos. Na I<strong>da</strong>de Média a herança ju<strong>da</strong>ico-cristã apresenta o que Cassirer (cf.<br />

Ivan Domingues 1991: 26-28) chama de antropologia do homem pecador. Para<br />

esta antropologia é insufi ciente tentar esclarecer o lugar do humano na ordem<br />

do universo, utilizando-se apenas dos recursos <strong>da</strong> razão. Os recursos <strong>da</strong> razão<br />

podem ser aceitos desde que a serviço de uma antropologia de quem se coloca<br />

diante dos mistérios <strong>da</strong> fé e dos ensinamentos <strong>da</strong>s sagra<strong>da</strong>s escrituras (criação do<br />

mundo, que<strong>da</strong> de Adão, resgate através <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> de Cristo).<br />

A refl exão sobre o problema do ser humano na I<strong>da</strong>de Média vai cultivar<br />

características próprias. Uma fi losofi a secular, como a dos gregos, <strong>da</strong> autonomia<br />

<strong>da</strong> razão humana, de um fi nalismo que não nos aproxima do Ser todo poderoso,<br />

responsável por tudo o que existe, vai <strong>da</strong>r lugar a uma fi losofi a de tipo religioso<br />

(pensar a partir de Deus). O ser humano não é mais aquele que detém a iniciativa<br />

para ser senhor de si. Apresenta-se agora como uma criatura que se explica no<br />

mundo a partir <strong>da</strong> graça de Deus e não a partir de si mesmo. A fi losofi a passa a<br />

ser servidora <strong>da</strong> teologia.<br />

Como ressalta Cassirer, citado por Domingues (op. cit.: 27), o grande<br />

princípio grego do “conhece-te a ti mesmo” ganha na I<strong>da</strong>de Média novas<br />

implicações. Quando este princípio vem subordinado à doutrina <strong>da</strong> criação<br />

deixa de pautar-se unicamente por preocupações e orientações teóricas ou<br />

especulativas. Por se tratar de um preceito religioso, é um imperativo de salvação<br />

e não um imperativo de conhecimento; o “conhece-te a ti mesmo” é uma forma de<br />

questionar a auto-sufi ciência humana, sendo que cabe a ca<strong>da</strong> pessoa reconhecer<br />

sua dependência diante de Deus e de sua graça.<br />

Santo Agostinho (354-430), fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> fi losofi a medieval e <strong>da</strong> dogmática<br />

cristã e Santo Tomás de Aquino (1221-1274), considerado o maior representante<br />

189


190<br />

do pensamento medieval, que concede maior poder a razão humana, ambos<br />

organizam seu pensamento a partir <strong>da</strong> ótica <strong>da</strong> criação, <strong>da</strong> doutrina do pecado e<br />

<strong>da</strong> graça divina. (ibidem: 28)<br />

As fi losofi as modernas, devido a to<strong>da</strong> esta elaboração cristã, <strong>da</strong> autocrítica,<br />

<strong>da</strong> acusação <strong>da</strong>s fraquezas interiores, passaram a não se contentar com<br />

as explicações que se moviam na separação entre real e aparente, a não aceitar<br />

a percepção dos sentidos como orientação para o ordenamento racional.<br />

Experimentaram a exigência de discutir a relação interiori<strong>da</strong>de e exteriori<strong>da</strong>de,<br />

demarcando o que é <strong>da</strong> ordem dos limites e <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do sujeito (<strong>da</strong>quele<br />

que conhece) e o que é <strong>da</strong> ordem do objeto (do que é conhecido). O que aconteceu<br />

para que isso se impusesse na Moderni<strong>da</strong>de?<br />

PARA RECORDAR:<br />

No mundo grego a reali<strong>da</strong>de é a natureza, onde tudo se origina e nela estão<br />

inscritos os seres, entre eles os humanos e tudo o que elaboram e constroem.<br />

Como estão inscritos na natureza, os seres humanos podem conhecê-la<br />

diretamente, uma vez que contém os elementos comuns que dela se originam<br />

e também <strong>da</strong> mesma inteligência que é inerente a ela e que a orienta. A ordem<br />

<strong>da</strong> natureza é garanti<strong>da</strong> por um ser superior, perfeito, distante, o que é possível<br />

de admitir com o uso <strong>da</strong> razão.<br />

2.1. A fi losofi a moderna: novas exigências para o pensamento.<br />

Vamos agora discutir um pouco mais os problemas gerados no universo<br />

do pensamento cristão, que levaram as fi losofi as modernas a se distanciarem <strong>da</strong><br />

fi losofi a grega antiga quanto ao acesso ao real. Distância que está relaciona<strong>da</strong><br />

ao modo de perguntar sobre o mundo e de <strong>da</strong>r sustentação ao conhecimento<br />

produzido pelo ser humano.<br />

As preocupações cristãs, conforme esclarece Chauí (1997:113) exigiram<br />

dos modernos algumas distinções que provocaram uma ruptura com a idéia<br />

grega de uma vinculação direta entre o trabalho de nosso intelecto e <strong>da</strong><br />

sensibili<strong>da</strong>de para o acesso à ver<strong>da</strong>de e ao mundo. O cristianismo ao fazer a<br />

distinção entre fé e razão, ver<strong>da</strong>des revela<strong>da</strong>s por Deus e ver<strong>da</strong>des racionais,<br />

matéria e espírito, corpo e alma; considerou que o erro e a ilusão faziam parte<br />

<strong>da</strong> natureza humana decaí<strong>da</strong>, do caráter pervertido de nossa vontade, após o<br />

pecado original.<br />

Chauí (op.cit.: 114) lembra que, durante a I<strong>da</strong>de Média, a fé era central<br />

para a fi losofi a. Acreditava-se que com o auxílio <strong>da</strong> graça divina, a fé ilumina o<br />

intelecto e guia a vontade permitindo à razão chegar ao conhecimento que está<br />

ao seu alcance, do mesmo modo a alma recebe os mistérios <strong>da</strong> Revelação. A fé<br />

permitia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível) que<br />

pela vontade soberana de Deus era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas<br />

materiais.<br />

A fi losofi a emergente, incorporando questões que vinham sendo elabora<strong>da</strong>s<br />

inclusive durante a I<strong>da</strong>de Média, não via mais como se submeter às respostas


tradicionais. Para essa fi losofi a era absolutamente necessário rediscutir as<br />

possibili<strong>da</strong>des do conhecimento humano.<br />

Diante disso a fi losofi a moderna precisava esclarecer pelo menos três<br />

problemas:<br />

1. Se somos seres decaídos, pervertidos, como podemos conhecer a ver<strong>da</strong>de?<br />

2. Se nossa natureza é dupla (matéria e espírito) como a inteligência pode<br />

conhecer algo que é diferente dela? Ou seja, como seres corporais podem<br />

conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podemos<br />

conhecer o corpóreo (mundo)? (ibidem, 113)<br />

3. Os fi lósofos antigos partiam do princípio de que éramos entes participantes<br />

de to<strong>da</strong> a forma de reali<strong>da</strong>de: graças ao corpo estávamos inseridos na<br />

natureza, graças a nossa alma participávamos, mesmo de forma limita<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong> inteligência divina. O cristianismo, caminhando em sentido contrário,<br />

vai introduzir a noção de pecado original e <strong>da</strong> criação do mundo, vai<br />

introduzir uma separação radical entre os humanos (pervertidos e fi nitos)<br />

e a divin<strong>da</strong>de (perfeita e infi nita).Isso deu forças à pergunta: como o ser<br />

humano (fi nito) pode conhecer a ver<strong>da</strong>de (infi nita e divina)?<br />

PARA RECORDAR:<br />

Os gregos entendiam a ver<strong>da</strong>de como aletheia – presença e manifestação do<br />

ver<strong>da</strong>deiro aos sentidos e ao intelecto, assim a pergunta fi losófi ca central era<br />

sobre a possibili<strong>da</strong>de de haver erro ou ilusão.<br />

Para os fi lósofos modernos a situação passa a ser outra: se a ver<strong>da</strong>de vem<br />

<strong>da</strong> revelação divina, se nosso intelecto foi pervertido pela vontade pecadora<br />

como podemos conhecer a ver<strong>da</strong>de? Se a ver<strong>da</strong>de é subordina<strong>da</strong> à fé e se<br />

experimentamos a fraqueza <strong>da</strong> vontade, como a razão humana poderá<br />

conhecê-la?<br />

O cristianismo, especialmente com Santo Agostinho (ibidem:114) investe na<br />

idéia de que ca<strong>da</strong> ser humano é uma pessoa. Idéia que vem do direito romano<br />

para o qual a pessoa é um sujeito de direitos e deveres. Como pessoas, somos<br />

responsáveis por nossos atos e pensamentos. Na I<strong>da</strong>de Média o relacionamento<br />

com Deus traz uma novi<strong>da</strong>de desconheci<strong>da</strong> para os gregos, isso porque sua<br />

religião exigia pouco investimento no desenvolvimento <strong>da</strong> auto-refl exão e <strong>da</strong><br />

intimi<strong>da</strong>de com suas divin<strong>da</strong>des. Era estranho ao mundo grego o esforço <strong>da</strong><br />

purifi cação <strong>da</strong> alma, feito pelo exame interior e pela expiação <strong>da</strong> culpa, comum<br />

aos cristãos.<br />

2.2. As tarefas dos fi lósofos modernos<br />

Para falar sobre este assunto apresento uma contribuição de Bernadete<br />

Siqueira Abrão, que organizou e dirigiu o livro História <strong>da</strong> Filosofi a que compõe<br />

o primeiro livro <strong>da</strong> Coleção “Os pensadores” 1<br />

1 Coleção lança<strong>da</strong> em<br />

1999 pela Editora Nova<br />

Cultural Lt<strong>da</strong>. São Paulo,<br />

vendi<strong>da</strong> em conjunto com<br />

edições de jornais.<br />

191


192<br />

“Desde a Grécia Antiga, a razão pôde pretender abarcar o mundo porque,<br />

de certa forma, o próprio mundo era concebido como racionalmente ordenado<br />

e unifi cado. Nos tempos modernos, no entanto, essa imagem já não existe.<br />

Não há mais a polis, o Império ou uma Igreja única; a reali<strong>da</strong>de apresenta-se<br />

dispersa, múltipla e relativa. Cabe à razão a tarefa de reunifi car o mundo,<br />

reproduzi-lo, representa-lo.<br />

O termo representação indica exatamente essa operação <strong>da</strong> razão: representar,<br />

tornar de novo presente. Mas “tornar de novo presente” a imagem<br />

unifi ca<strong>da</strong> do mundo é também destruir o que se apresenta como<br />

disperso e desconexo. Por isso, a representação nega e ultrapassa a reali<strong>da</strong>de<br />

visível e sensível, e produz um outro mundo, racionalmente compreensível<br />

porque reordenado pela própria razão. (grifo meu)<br />

A matemática é o grande modelo desse racionalismo. Não que ela, propriamente<br />

dita, possa ser aplica<strong>da</strong> a to<strong>da</strong> espécie de investigação. Os pensadores modernos<br />

retomam o signifi cado <strong>da</strong> expressão grega ta mathema, isto é “conhecimento<br />

completo”, racional de ponta a ponta, de que a própria matemática é o exemplo<br />

mais perfeito.<br />

Tomar a matemática como modelo também signifi ca dirigir a razão segundo<br />

determinados procedimentos precisos, como se faz na demonstração de um<br />

teorema. Para não errar – uma obsessão dos fi lósofos modernos – escrevem-se<br />

tratados de método. A começar por Descartes (1596-1650), autor de Discurso<br />

do Método.<br />

A insistência no problema do método é crucial, porque o mundo exterior não<br />

mais fornece a garantia <strong>da</strong> certeza do conhecimento. (...) a razão, e só ela, pode<br />

servir a si própria como guia, critério e condição <strong>da</strong> certeza do conhecimento.<br />

A razão não tem mais em que se apoiar a não ser nela mesma, e por isso precisa<br />

criar um método seguro. (...) Mas mesmo essa relação é desigual: a razão<br />

antecede às coisas exteriores e as subordina. É autônoma, livre, independente<br />

do mundo. É sujeito – e a palavra latina subjectum indica aquilo que subsiste,<br />

“o que está colocado sob”, isto é, o fun<strong>da</strong>mento. A razão é precisamente o<br />

fun<strong>da</strong>mento do mundo transformado em objeto, objectum, ou seja, “aquilo que<br />

está colocado diante “ de um sujeito, e que só pode existir tendo como referência<br />

o sujeito. É a partir do pensamento moderno que se pode falar propriamente em<br />

“sujeito do conhecimento” e “objeto do conhecimento”. Mas isso irá acarretar<br />

uma série de difi cul<strong>da</strong>des e controvérsias (181-88).<br />

2.2.1 Fragmentos de textos que retratam as inquietações do início <strong>da</strong><br />

moderni<strong>da</strong>de<br />

O poeta inglês John Donne (DOMINGUES, 1991: 34), num poema<br />

publicado em 1611, início <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, consegue trazer a inquietude<br />

provoca<strong>da</strong> pela per<strong>da</strong> <strong>da</strong> antiga ordem <strong>da</strong>s coisas e as grandes difi cul<strong>da</strong>des para<br />

identifi car as pistas para uma nova ordem:


A nova fi losofi a põe tudo em dúvi<strong>da</strong>,<br />

O elemento do fogo está completamente extinto,<br />

O sol está perdido, e também a terra,<br />

E nenhum espírito humano tem com o que se orientar para<br />

A procurar<br />

E os homens confessam livremente que este mundo está em<br />

Ruínas, quando entre os planetas e o fi rmamento eles<br />

Procuram tantos mundos novos;<br />

Eles vêem então que tudo está de novo pulverizado em<br />

Átomos,<br />

Tudo está em pe<strong>da</strong>ços, to<strong>da</strong> a coerência perdi<strong>da</strong> (...).<br />

Ivan Domingues (op. cit. 34) escreve que, um pouco antes de Donne, Michel<br />

de Montaigne (1533-1592), na sua Apologia de Raymond Sebond, in<strong>da</strong>ga:<br />

Que me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superiori<strong>da</strong>de que<br />

(o homem- ID) (sic) pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza<br />

a pensar que o movimento admirável <strong>da</strong> abóba<strong>da</strong> celeste, a luz eterna destas<br />

tochas girando majestosamente sobre sua cabeça, as fl utuações comoventes do<br />

mar de horizontes infi nitos, foram criados e continuem a existir unicamente<br />

para sua comodi<strong>da</strong>de e serviço? Será possível imaginar algo mais ridículo do<br />

que esta miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está<br />

exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe<br />

pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo?<br />

Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, neste vasto<br />

edifício, de lhe apreciar a beleza?<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

Pesquisar na Internet e em outras fontes de leitura informações<br />

complementares sobre Michel de Montaigne e apresentar um pequeno texto<br />

procurando apresentar a quem mais diretamente o autor dirige suas dúvi<strong>da</strong>s e<br />

questionamentos.<br />

2.3 Descartes e bacon investigam a capaci<strong>da</strong>de humana de conhecer<br />

Conforme esclarece Abrão (op. cit. 203), diante de um horizonte que se<br />

abre,<br />

Conhecer as coisas do mundo implica, então, estabelecer-lhe uma nova ordem<br />

que não exatamente aquela que os sentidos captam, mas a que a razão impõe.<br />

No homem, por exemplo, os sentidos fornecem primeiro a existência do corpo,<br />

mas a razão evidencia antes a certeza do cogito.<br />

193


194<br />

Como, porém, é possível o conhecimento do mundo (e do corpo), se o cogito<br />

que conhece e as coisas que são conheci<strong>da</strong>s são de naturezas distintas? Em<br />

outras palavras, como encadear numa ordem de razões a coisa pensante (res<br />

cogitans) e a coisa extensa (res extensa), se ambas não apresentam uma medi<strong>da</strong><br />

comum? A única solução possível é transformar as coisas em idéias dessas<br />

coisas, de tal modo que a cadeia de razões seja constituí<strong>da</strong> pelo pensamento e as<br />

coisas pensa<strong>da</strong>s. Substituir a ordem “real” pela ordem <strong>da</strong>s razões corresponde<br />

exatamente a essa transformação <strong>da</strong>s coisas em que objetos do conhecimento.<br />

A operação que converte as coisas em objetos é a representação, cujo suporte –<br />

isto é, o sujeito – é precisamente o cogito. A ciência é possível, pois se baseia na<br />

certeza inabalável do cogito, que, tendo como guia seguro o método produzido<br />

a partir de si mesmo, reduz o mundo à sua medi<strong>da</strong>. Mas, com isso, a identi<strong>da</strong>de<br />

e a harmonia entre o mundo e o homem – busca<strong>da</strong>s desde a Antigui<strong>da</strong>de – são<br />

rompi<strong>da</strong>s. O homem torna-se sujeito, o “eu pensa”, e o mundo, seu objeto. Ele<br />

já pode pensar a si próprio como aquele que efetivamente reordena e reorganiza<br />

o mundo à sua maneira. Os homens se tornam, segundo o Discurso do Método,<br />

“como que senhores e possuidores <strong>da</strong> natureza”. (203)<br />

Era preciso fazer uma separação entre fé e razão, considerando que ca<strong>da</strong><br />

uma delas está volta<strong>da</strong> para conhecimentos diferentes e sem qualquer relação<br />

entre si;<br />

1. Era preciso considerar que a alma-consciência embora diferente do corpo<br />

pode conhecê-lo porque é capaz de representá-lo intelectualmente por meio<br />

<strong>da</strong>s idéias, imateriais como a própria alma;<br />

2. Era preciso explicar como a razão e o pensamento podem elevar-se mais<br />

fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro.<br />

Os dois fi lósofos que a partir do século XVI investigam a capaci<strong>da</strong>de<br />

humana para conhecer é Francis Bacon (1561-1626), que se volta para estu<strong>da</strong>r de<br />

forma experimental os fenômenos exteriores, e René Descartes (1596-1650) que se<br />

volta para examinar a interiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão em busca de uma via segura para o<br />

conhecimento.<br />

Luiz Alfredo Garcia-Rosa (1991:09;11)adverte que<br />

A subjetivi<strong>da</strong>de foi assim construí<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong> em referência central<br />

e às vezes exclusiva para o conhecimento e a ver<strong>da</strong>de. A ver<strong>da</strong>de habita a<br />

consciência é o que proclamam racionalistas e empiristas. Desde Descartes,<br />

a representação é o lugar <strong>da</strong> mora<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, sendo o problema central<br />

o de saber se chegamos a ela pela via <strong>da</strong> razão ou pela via <strong>da</strong> experiência.<br />

Racionalistas e empiristas diferem sobretudo quanto ao caminho a tomar, mas<br />

ambos já sabem onde querem ir, ao reino <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de. Platão é, ao mesmo tempo, o grande inspirador e o guia infatigável<br />

nessa caminha<strong>da</strong>.<br />

Pode parecer estranho afi rmar agora que Platão seja considerado como<br />

inspirador e guia dos pensadores modernos como Francis Bacon e René


Descartes, depois de to<strong>da</strong>s as diferenças aponta<strong>da</strong>s com relação à fi losofi a grega.<br />

No entanto, Platão quando recusa o domínio <strong>da</strong> opinião, <strong>da</strong> aparência (doxa)<br />

está a procura de um discurso fi losófi co que tem sua legitimi<strong>da</strong>de centrado nele<br />

mesmo, como um discurso neutro, que não refl ete desejo algum, mas que se<br />

impõe como realização <strong>da</strong> razão. É exatamente isso que os pensadores modernos<br />

estão à procura. Como esclarece Garcia-Roza (op. cit.:11): “o objetivo fi nal do<br />

platonismo é, portanto, a produção do Discurso Universal, que coincidirá com a realização<br />

plena <strong>da</strong> Razão e a revelação do Ser em sua totali<strong>da</strong>de”.<br />

Além disso, os fi lósofos, como Bacon e Descartes, antes de tratarem do<br />

conhecimento ver<strong>da</strong>deiro cui<strong>da</strong>ram de examinar cui<strong>da</strong>dosamente os caminhos<br />

do erro, procedendo a uma análise dos preconceitos e do senso comum. Platão<br />

também procedeu <strong>da</strong> mesma forma, como pudemos verifi car na alegoria <strong>da</strong><br />

caverna.<br />

O que acontece é que estamos falando de um tempo revolucionário em<br />

que emerge uma nova ciência com rebatimentos em ganhos técnicos. Com Bacon<br />

e Descartes o objetivo <strong>da</strong>s ciências é o de permitir que o ser humano possa se<br />

converter em senhor e possuidor <strong>da</strong> natureza. Para o novo espírito científi co o<br />

padrão de racionali<strong>da</strong>de está centrado nas matemáticas e na redução <strong>da</strong> natureza<br />

aos seus elementos mensuráveis e na busca de leis que a governam de acordo<br />

com a linguagem do número e <strong>da</strong> medi<strong>da</strong>. Há uma outra maneira de investigar a<br />

natureza que é o do abandono <strong>da</strong>s causas fi nais na explicação dos fenômenos <strong>da</strong><br />

natureza, conforme pretendia Aristóteles.<br />

Se Descartes tem sua inspiração em Platão na busca de um discurso<br />

universal, há uma grande diferença entre eles que é preciso destacar. Platão<br />

estava certo do seu método, do caminho em direção à ver<strong>da</strong>de, estava em<br />

dúvi<strong>da</strong> apenas se era possível chegar a uma pe<strong>da</strong>gogia guia<strong>da</strong> pela fi losofi a e<br />

que orientasse as opções justas e equilibra<strong>da</strong>s do governante. Descartes, por sua<br />

vez, desconfi ava de si mesmo, se, de fato seu conhecimento estava assentado<br />

sobre bases seguras. É isso o que representa a novi<strong>da</strong>de dos novos tempos, o<br />

ser humano tem que descobrir o seu lugar num mundo aberto, descentrado. Se<br />

pretende ser o senhor do seu destino tem de provar sua capaci<strong>da</strong>de para tanto.<br />

Descartes elaborou seu método de análise, a partir <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong><br />

metódica, com a qual abre caminho para apresentar as possibili<strong>da</strong>des do que<br />

considera o conhecimento seguro.<br />

No discurso do método, Descartes (1999:49-50) apresenta quatro grandes<br />

princípios do seu método científi co:<br />

1. Nunca aceitar algo como ver<strong>da</strong>deiro que eu não conhecesse claramente<br />

como tal; ou seja, de evitar cui<strong>da</strong>dosamente a pressa e a prevenção e<br />

de na<strong>da</strong> fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e<br />

distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvi<strong>da</strong>r<br />

dele.<br />

2. O segundo, o de repartir ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s difi cul<strong>da</strong>des que eu analisasse em<br />

tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fi m de solucionálas..<br />

3. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos<br />

objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a<br />

pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos,<br />

195


e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem<br />

naturalmente uns dos outros.<br />

4. E o último, o de efetuar em to<strong>da</strong> parte relações metódicas tão completas e<br />

revisões tão gerais, nas quais eu tivesse a certeza de na<strong>da</strong> omitir.<br />

Gadott i (1995: 77) destaca que, Descartes escreveu sua obra principal em<br />

francês, a língua popular, possibilitando o acesso de maior número de pessoas.<br />

Até então, o latim medieval representava a língua <strong>da</strong> religião, <strong>da</strong> fi losofi a, <strong>da</strong><br />

diplomacia, <strong>da</strong> literatura. (...) O século XVI assistiu a uma grande revolução<br />

lingüística: exigia-se dos educadores o bilingüismo: o latim como língua culta e o<br />

vernáculo como língua popular.<br />

Francis Bacon tendo em vista o interesse em apontar novas perspectivas<br />

para o conhecimento também cui<strong>da</strong> de examinar, como Platão e Aristóteles as<br />

causas do erro, dos preconceitos e <strong>da</strong> falta de consistência do saber do senso<br />

comum. Bacon formulou a crítica dos ídolos, que compõem as falsas imagens, as<br />

opiniões inconsistentes que fecham o caminho para o conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Os quatro tipos de ídolos apresentados por Bacon (Cf. 1999:40-41) no seu<br />

livro Novum Organum:<br />

1. ídolos <strong>da</strong> tribo: Os seres humanos aceitam e repetem opiniões por<br />

conveniência, nesse caso há a necessi<strong>da</strong>de de uma reforma <strong>da</strong> natureza<br />

humana mesma para que possa renovar seu modo de apreender as coisas.<br />

2. ídolos <strong>da</strong> caverna: a ativi<strong>da</strong>de intelectual não ultrapassa as opiniões e<br />

deformações de nossas compreensões pré-estabeleci<strong>da</strong>s individualmente<br />

ou devido ao que aprendemos com os outros, com as autori<strong>da</strong>des e com o<br />

que consta nos livros. Em to<strong>da</strong> ela predomina uma falta de ativi<strong>da</strong>de isenta,<br />

uma susceptibili<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong>s instabili<strong>da</strong>des humanas, o que impede<br />

captar corretamente o que eluci<strong>da</strong> e desven<strong>da</strong> as coisas.<br />

3. ídolos do fórum: a linguagem se apresenta como uma fonte de malentendidos,<br />

de opiniões inconsistentes, especialmente se não há<br />

possibili<strong>da</strong>de de acordo sobre o que signifi cam;<br />

4. ídolos do teatro: as doutrinas fi losófi cas não garantem regras consistentes<br />

de demonstração, por isso mais parecem dota<strong>da</strong>s de recursos teatrais pelo<br />

que nelas há de fábulas, de mundos fi ctícios.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

Faça uma síntese apontando as razões que levavam os pensadores modernos<br />

a se preocuparem em apontar as causas dos erros que envolvem a ativi<strong>da</strong>de<br />

pensante e esclarecerem o método que pretendiam seguir para chegarem a um<br />

conhecimento seguro.


2.4 Comenius e uma pe<strong>da</strong>gogia sintoniza<strong>da</strong> com as idéias dos novos<br />

tempos<br />

Vamos ver, a seguir, as contribuições relevantes de Comenius2 (1592-1670)<br />

para a pe<strong>da</strong>gogia.<br />

Comênio, que escreveu sua obra máxima 20 anos após a publicação do<br />

Discurso do Método de Descartes é o primeiro a propor um sistema articulado de<br />

ensino, incluindo grandes novi<strong>da</strong>des:<br />

- propôs o igual direito de todos ao saber e ao ensino, incluindo os portadores<br />

de doença mental e as meninas, sem acesso à educação;<br />

- desenvolveu um pensamento pe<strong>da</strong>gógico marcado por uma superação do<br />

pessimismo <strong>da</strong> antropologia medieval, fez um apelo à vi<strong>da</strong> e a uma aposta<br />

na capaci<strong>da</strong>de humana de superar-se.<br />

- incorporou no pensamento pe<strong>da</strong>gógico o realismo, que marca o avanço do<br />

conhecimento fi losófi co e científi co de seu tempo;<br />

- defendeu que a educação e a formação do ser humano é para a vi<strong>da</strong> to<strong>da</strong>;.<br />

- com relação à prática de ensino aplicou métodos capazes de incorporar o<br />

interesse do aluno;<br />

- propõe o acesso a todos à escrita, à leitura e ao cálculo; queria que todos<br />

pudessem ler a Bíblia;<br />

- sua proposta vem em apoio ao direito reivindicado pelos protestantes<br />

à livre interpretação dos textos bíblicos e ao desejo de ampliação dos<br />

interesses <strong>da</strong> burguesia mercantil.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

Ler o capítulo XVI <strong>da</strong> obra Didática Magna de Comenius, no endereço que vem<br />

a seguir, e comparar suas propostas educativas com as idéias desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

pelos novos fi lósofos. htt p://www.culturabrasil.org/di<strong>da</strong>ticamagna/<br />

di<strong>da</strong>ticamagna-comenius.htm -<br />

2 Ver Gadott i (1995: 78-<br />

80) e; htt p://novaescola.<br />

abril.com.br/index.<br />

htm?ed/170_mar04/html/<br />

pensadores. Comenius<br />

em latim, Comênio em<br />

português, correspondem<br />

ao nome de batismo,<br />

Jan Amos Komensky,<br />

que era pertencente<br />

ao grupo protestante<br />

Irmãos Boêmios, naquele<br />

tempo Moravia (domínio<br />

dos Habsburgos, hoje<br />

República Tcheca.<br />

197


UNIDADE III<br />

A PEDAIGOGIA DA EXISTÊNCIA: NOVAS BASES PARA A<br />

EDUCAÇÃO<br />

A I<strong>da</strong>de Moderna (1453 a 1789) acabou representando um período de<br />

confronto <strong>da</strong>s forças que se opunham aos regimes absolutistas, nos quais<br />

prevalecia o poder do clero e <strong>da</strong> nobreza. Os que lutavam contra o poder<br />

dominante <strong>da</strong> Igreja e dos governantes o faziam em nome <strong>da</strong> luta contra o<br />

obscurantismo e a negação <strong>da</strong> razão. Entre os fi lósofos defensores <strong>da</strong>s idéias<br />

liberais vamos aqui <strong>da</strong>r destaque a Jean Jacques Rousseau (1712-1778), porque<br />

este pensador abre novas perspectivas para o pensamento de seu tempo e para<br />

os séculos vindouros, com grandes repercussões para oxigenar o pensamento e as<br />

práticas <strong>da</strong> educação.<br />

- Rousseau é uma presença marcante que divide a velha e a nova escola;<br />

- estabelece vínculos explícitos entre a política e a educação;<br />

- levanta pela primeira vez a temática <strong>da</strong> criança, do seu mundo. Quer que<br />

ela seja compreendi<strong>da</strong>, independente de ser uma promessa de adulto;<br />

- compreende que a criança nasce boa, a socie<strong>da</strong>de corrompi<strong>da</strong> é que a<br />

perverte.<br />

- na sua proposta, no entanto, não há destaque para a educação <strong>da</strong>s classes<br />

populares.<br />

Danilo Streck (2003:70) evidencia que em Rousseau quase não há fronteiras<br />

entre a política e a educação, tanto assim que ele elabora O Contrato Social ao<br />

mesmo tempo que Emílio, o que constitui um gesto pelo qual revela ser impossível pensar<br />

na formação do ser humano sem pensar a própria socie<strong>da</strong>de (...). O autor lembra que<br />

Rousseau entendia que é preciso estu<strong>da</strong>r a socie<strong>da</strong>de pelos homens e os homens<br />

pela socie<strong>da</strong>de. Para ele estu<strong>da</strong>r separa<strong>da</strong>mente política e moral inviabilizará o<br />

entendimento de ambas.<br />

Moacir Gadott i (1995: 88-9) entende que o século XVIII é marcado por<br />

lutas em torno dos lutas político-pe<strong>da</strong>gógicas. As classes populares reivindicam<br />

abertamente educação pública. A Prússia em 1717 pela primeira vez institui a<br />

obrigatorie<strong>da</strong>de escolar. Na Alemanha, o Estado intervém em favor <strong>da</strong> educação.<br />

A revolução francesa abre caminho para a escola pública. Os iluministas<br />

defendiam uma educação basea<strong>da</strong> nos princípios democráticos, uma educação<br />

laica, gratuitamente ofereci<strong>da</strong> pelo Estado para todos. Até então a educação era<br />

ain<strong>da</strong> elitista, sob o controle <strong>da</strong> Igreja, sendo que somente os mais capazes tinham<br />

acesso à universi<strong>da</strong>de. O poder <strong>da</strong> Igreja sobre a educação e sobre os governos<br />

civis vai perdendo forças com o aumento do poder dos detentores do poder<br />

econômico.<br />

Suchodolski, como ressalta Gadott i, entende que Rousseau deu um passo<br />

importante para questionar a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência, abrindo caminho para uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência. Como podemos entender isso no campo <strong>da</strong> fi losofi a?<br />

Rousseau, ressalta Ghiraldelli (2006: 78), li<strong>da</strong> com suas dúvi<strong>da</strong>s por<br />

caminhos outros que o de Descartes, embora reconheça que tenha partido do<br />

199


200<br />

mesmo estado de dúvi<strong>da</strong>s de seu antecessor. O que havia em comum entre<br />

ambos era o amor à ver<strong>da</strong>de, como base para a fi losofi a. Também para Rousseau<br />

era preciso chegar ao evidente. No entanto, diferente de Descartes para quem a<br />

evidência era de ordem intelectual, ele colocava como critério a “sinceri<strong>da</strong>de do<br />

coração”. A busca ia além <strong>da</strong> oposição ver<strong>da</strong>de e erro, até a oposição ver<strong>da</strong>de e<br />

mentira.<br />

A ver<strong>da</strong>de que em Descartes diz respeito ao sujeito do conhecimento<br />

(sujeito genérico, como suporte impessoal capaz de ter acesso à ver<strong>da</strong>de evidente),<br />

para Rousseau passa por uma subjetivi<strong>da</strong>de mais individualiza<strong>da</strong>, mais intimista.<br />

Em síntese: a ver<strong>da</strong>de não encontraria seu porto seguro em um sujeito epistemológico,<br />

defi nido de modo restrito e convencional, mas na pessoa, na medi<strong>da</strong> em que a ver<strong>da</strong>de<br />

seria avalia<strong>da</strong> por uma subjetivi<strong>da</strong>de que na<strong>da</strong> mais seria do que uma consciência moral,<br />

organiza<strong>da</strong> na base de sentimentos. (idem p.78)<br />

O iluminismo, movimento que se destacou principalmente nos séculos XVII<br />

e XVIII, sustentou teses diferentes que as de Rousseau. Para este movimento, a<br />

infância é o estágio <strong>da</strong> imaturi<strong>da</strong>de, um obstáculo a ser transposto em direção<br />

à razão, domínio do sujeito adulto. Razão que supunha o homem amadurecido,<br />

dotado de plenas capaci<strong>da</strong>des intelectuais, apto para se constituir em sujeito do<br />

conhecimento. Rousseau pode ser visto como um precursor do romantismo que<br />

vai prosperar no século XIX. O que Rousseau propõe é uma racionali<strong>da</strong>de não<br />

aprisiona<strong>da</strong> aos domínios puramente intelectuais, o que inclui uma valorização<br />

<strong>da</strong> avaliação moral e do julgamento que brota do coração, <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong><br />

autentici<strong>da</strong>de, sendo que acima <strong>da</strong>s convenções sociais e <strong>da</strong>s instituições,<br />

interessa o encontro do ser humano consigo mesmo e com seu semelhante.<br />

Rousseau entende que a civilização não consegue levar à efeito a conquista<br />

do bem comum porque não consegue resolver o problema <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de, que<br />

tanto acontece em nossas relações cotidianas, como acontece nas relações sociais<br />

mais amplas. Para ele é preciso rever como li<strong>da</strong>mos com nossas desigual<strong>da</strong>des<br />

naturais, como cultivamos nossas relações amorosas. Sua crítica à desigual<strong>da</strong>de<br />

social está relaciona<strong>da</strong> à institucionalização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> como<br />

suporte para as bases econômicas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. O problema maior apontado por<br />

Rousseau é o de que a desigual<strong>da</strong>de cerceia a liber<strong>da</strong>de dos indivíduos e a plena<br />

realização do ser humano como membro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. As duas obras principais<br />

de Rousseau, Do Contrato Social e Emílio, testemunham sua preocupação no<br />

sentido de formar o ser humano e ao mesmo tempo o ci<strong>da</strong>dão. O livro V, do<br />

Emílio, é aquele no qual o autor resume suas preocupações básicas em torno do<br />

entrelaçamento <strong>da</strong> formação do ser humano e do ci<strong>da</strong>dão.<br />

Rousseau contribui, conforme Ghiraldelli (Cf. op. cit. 81-83), para que<br />

o sentido exato <strong>da</strong> palavra pe<strong>da</strong>gogia seja efetivado. A pe<strong>da</strong>gogia deixa de ser<br />

a tradicional “condução de crianças”, para produzir orientações teóricas e<br />

procedimentos educativos a serviço <strong>da</strong> infância. As crianças passam a ser vistas<br />

como vivendo um período especial, a infância. Dos preceptores dedicados<br />

às crianças <strong>da</strong>s elites, até as escolas e colégios um grande desafi o aparece no<br />

horizonte: concretizar uma educação <strong>da</strong> infância.<br />

A tensão se <strong>da</strong>rá entre uma concepção de educação com inspiração no<br />

racionalismo cartesianismo, que fi cou conheci<strong>da</strong> como pe<strong>da</strong>gogia tradicional.<br />

Nesta, o professor através de regras claras e externas, contribui para o<br />

crescimento do aluno, sendo que o surgimento do homem se dá com a fi nalização


<strong>da</strong> infância, e com a conquista gra<strong>da</strong>tiva e planeja<strong>da</strong> de conhecimentos, que no<br />

futuro poderão ser aplica<strong>da</strong>s nas mais diversas situações.<br />

Rousseau é o precursor de uma pe<strong>da</strong>gogia que refuta uma disciplina<br />

que é imposta de “fora para dentro”. Seu pensamento abre caminho para uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia interessa<strong>da</strong> em uma disciplina que brota “de dentro para fora”. A<br />

busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de depende de uma disposição do coração e <strong>da</strong> honesti<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

confi ança que deverá existir entre o professor e o aluno.<br />

ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):<br />

A compreensão de Rousseau era a de que a criança vive um período especial<br />

de sua vi<strong>da</strong> que é a infância, que exige cui<strong>da</strong>dos especiais e respeito a essa<br />

etapa. Considerando isso elabore um pequeno texto esclarecendo: na sua<br />

experiência como aluno(a) o que afi rmava Rousseau era levado a sério na(s)<br />

escola(s)por onde você passou?<br />

3.1 Contribuição de Emanuel Kant<br />

Emanuel Kant (1724-1804), No impasse entre as posições de Descartes<br />

(1596-1650) que tinha sustentado que todo o conhecimento era inato, e as de<br />

John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776) que afi rmavam que todo o<br />

saber provinha <strong>da</strong> experiência, apresenta uma solução para esta disputa. Nega<br />

a teoria platônico-cartesiana <strong>da</strong>s idéias inatas, mas evidencia que algumas coisas<br />

importantes eram inatas como a noção de espaço e tempo1 , que não existem como<br />

reali<strong>da</strong>de fora <strong>da</strong> mente, mas que entram como formas para pensar as coisas<br />

capta<strong>da</strong>s pelos sentidos. Para ele, o conhecimento do mundo exterior é possível<br />

pela experiência sensível <strong>da</strong>s coisas.<br />

Kant, admirador de Rousseau, acreditava que o ser humano é o que a<br />

educação faz dele através <strong>da</strong> disciplina, <strong>da</strong> didática, <strong>da</strong> formação moral e <strong>da</strong> cultura.<br />

(Gadott i, op. cit.: 90)<br />

Kant evidencia os conceitos básicos de “aculturação”, “socialização” e<br />

“personalização”. O educando é chamado a realizar esses atos para cultivar-se,<br />

civilizar-se. O ser humano vai deparar-se com a felici<strong>da</strong>de e a perfeição desde que<br />

enten<strong>da</strong> que isso é criação <strong>da</strong> razão humana, liberta dos instintos. A disciplina<br />

que domina as tendências instintivas concorre para a formação cultural e para a<br />

moralização que abre caminho para a consciência do dever, e <strong>da</strong> civilização como<br />

segurança social. Diferente de Rousseau, para ele o ser humano não pode ser<br />

considerado bom sem o esforço intelectual permanente e o respeito às leis morais.<br />

3.2 O eu, a pessoa, o ci<strong>da</strong>dão e o sujeito do conhecimento 2<br />

Os fi lósofos a partir <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, mesmo com suas diferentes abor<strong>da</strong>gens,<br />

vão manter entre si o interesse em colocar o sujeito do conhecimento em discussão,<br />

desenvolvendo uma teoria do conhecimento. Chauí (op. cit. 117) e Ghiraldelli<br />

(2006:72) consideram que podemos falar em quatro dimensões integra<strong>da</strong>s quando<br />

1 A noção de tempo e<br />

espaço para Kant é o a<br />

priori do ser racional<br />

que é o ser humano, a<br />

biologia entende isso<br />

como conquistas cerebrais<br />

fi logenéticas. Fontanella<br />

(1995:40) entende que<br />

para Kant a reali<strong>da</strong>de<br />

como apreendemos,<br />

como nos aparece, se<br />

chama fenômeno. A<br />

reali<strong>da</strong>de, como objeto do<br />

conhecimento científi co,<br />

é fenômeno. Ela não nos<br />

é <strong>da</strong><strong>da</strong> pura em si, mas<br />

é conforma<strong>da</strong> pela nossa<br />

“bagagem” a priori,<br />

pelas nossas “formas” de<br />

espaço e tempo primeiro<br />

na percepção; depois<br />

nossas “formas”, ou<br />

conceitos científi cos de<br />

todo gênero.<br />

2 Ver o texto de Chauí<br />

(1997) em htt p://www.<br />

funesj.sc.gov.br/barbiery/<br />

filosofia/fil_c10.doc.<br />

acessado em 10/06/2007.<br />

Ver www.fi losofi a.pro.br.<br />

201


3 Não separei corpo e<br />

mente, mente e corpo,<br />

pois apesar de nossa<br />

língua favorecer esta<br />

dicotomia devemos<br />

lembrar que a mente é<br />

manifestação corporal,<br />

não é uma manifestação<br />

aparta<strong>da</strong> do corpo.<br />

202<br />

se coloca como problema a manifestação desse sujeito do conhecimento. Temos o<br />

eu, a pessoa, o ci<strong>da</strong>dão e o sujeito. Passemos, agora, a ver como isso se dá.<br />

Evidentemente que está em discussão aqui o problema dos seres humanos<br />

como seres racionais e conscientes. A consciência como destaca Chauí (op.<br />

cit.:117) “é a capaci<strong>da</strong>de humana para conhecer, para saber que conhece e para<br />

saber o que sabe que conhece. A consciência é um conhecimento (<strong>da</strong>s coisas e de<br />

si) e um conhecimento desse conhecimento (refl exão).”<br />

Quando está diante de sua própria identi<strong>da</strong>de, o eu experimenta-se numa<br />

dinâmica temporal de estados mentecorporais3 , com capaci<strong>da</strong>de para reter e<br />

evocar o passado inscrito na memória, para perceber o presente pela sua atenção<br />

e inserção e o futuro pela imaginação e pelo pensamento. O eu é a manifestação<br />

<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de todos esses estados psíquicos. Este eu enquanto consciência<br />

psicológica se alimenta <strong>da</strong>s vivências, <strong>da</strong>s emoções e <strong>da</strong>s compreensões<br />

mentecorporais que vêm do seu interior em interação com o mundo que o rodeia.<br />

É a maneira individual e própria como ca<strong>da</strong> um capta o mundo, age e interage<br />

nele.<br />

A pessoa é vista, do ponto de vista ético e moral como dota<strong>da</strong> de vontade<br />

livre e responsabili<strong>da</strong>de, levando em conta os direitos alheios e o dever. Em<br />

suma, quando tratamos <strong>da</strong> pessoa tratamos <strong>da</strong> “capaci<strong>da</strong>de para compreender e<br />

interpretar sua situação e sua condição ( física, mental, social, cultural, histórica)<br />

viver na companhia dos outros segundo as normas e os valores morais defi nidos<br />

por sua socie<strong>da</strong>de, agir tendo em vista fi ns escolhidos por deliberação e decisão”<br />

(...) (Chauí, op. cit. 117).<br />

O ci<strong>da</strong>dão é a manifestação <strong>da</strong> consciência que se expressa no nível<br />

individual, no nível <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong>s relações sociais. É o indivíduo dotado de<br />

direitos e deveres diante <strong>da</strong> esfera pública do poder e <strong>da</strong>s leis, que se posiciona a<br />

partir de uma determina<strong>da</strong> situação de classe social e responsável pelos interesses<br />

e fi ns projetados pela sua classe no conjunto dos interesses do conjunto <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

Marilena Chauí (118) vai afi rmar que<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong> teoria do conhecimento, a consciência é uma ativi<strong>da</strong>de<br />

sensível e intelectual dota<strong>da</strong> do poder de análise, síntese e representação. É o<br />

sujeito. Reconhece-se como diferente dos objetos, cria e descobre signifi cações,<br />

institui sentidos, elabora conceitos, idéias, juízos e teorias. É dotado de<br />

capaci<strong>da</strong>de para conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, ou seja, é capaz<br />

de refl exão. É saber de si e saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito<br />

percebedor, imaginante, memorioso, falante e pensante. É o entendimento<br />

propriamente dito.<br />

A consciência refl exiva ou o sujeito do conhecimento forma-se como<br />

ativi<strong>da</strong>de de análise e síntese, de representação e de signifi cação volta<strong>da</strong>s para<br />

a explicação, descrição e interpretação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s outras três esferas <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> consciente (vi<strong>da</strong> psíquica, moral e política), isto é, <strong>da</strong> posição do mundo<br />

natural e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento. Apóia-se em<br />

métodos de conhecer e busca a ver<strong>da</strong>de ou o ver<strong>da</strong>deiro. É o aspecto intelectual<br />

e teórico <strong>da</strong> consciência.


Ao contrário do eu, o sujeito do conhecimento não é uma vivência<br />

individual, mas aspira à universali<strong>da</strong>de, ou seja, à capaci<strong>da</strong>de de conhecimento<br />

que seja idêntica em todos os seres humanos e com vali<strong>da</strong>de para todos os seres<br />

humanos, em todos os tempos e lugares. (...)<br />

É com essa estruturação e organização que li<strong>da</strong> o sujeito. A vivência é singular<br />

(minha). O conhecimento é universal (nosso, de todos os humanos).<br />

(todos os grifos são <strong>da</strong> autora)<br />

Embora exposta aqui uma possibili<strong>da</strong>de de integração <strong>da</strong> vivência singular<br />

e do conhecimento universal, sabemos que um dos maiores problemas para a<br />

fi losofi a, com o advento <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, é chegar a essa consciência unitária.<br />

O conhecimento na moderni<strong>da</strong>de estabeleceu uma cisão entre o acesso ao<br />

conhecimento do mundo e o acesso à sabedoria que orienta nossa existência<br />

humano-social.<br />

3.4 As bases <strong>da</strong> fi losofi a <strong>da</strong> existência, como contraponto à fi losofi a<br />

<strong>da</strong> essência<br />

A pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência ganhou forma com Platão quando propõe uma<br />

verticali<strong>da</strong>de em direção ao mundo <strong>da</strong>s idéias, que é onde se pode localizar a<br />

essência <strong>da</strong>s coisas. A educação é a via que permite ao ser humano não se perder<br />

no mundo <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, do saber comum e através do pensamento aprende<br />

a orientar-se na busca <strong>da</strong> essência <strong>da</strong>s coisas. O cristianismo inspirado na<br />

concepção platônica concebe dois planos de reali<strong>da</strong>de, o deste mundo transitório<br />

e <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de eterna, que é Deus. O movimento reformista protestante,<br />

que nasce com a moderni<strong>da</strong>de propõe a idéia de que o ser humano é responsável<br />

pelos critérios que orientam suas ações. O ser humano, responsável pelas suas<br />

opções individuais é que vai realizar a essência humana neste mundo.<br />

Uma <strong>da</strong>s características centrais <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência é estabelecer<br />

uma mediação muito forte, seja a do sábio que detém o conhecimento global do<br />

caminho <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, seja a do sábio e/ou sacerdote que detém o conhecimento<br />

<strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des revela<strong>da</strong>s. O protestantismo, inserido nas inquietações do<br />

pensamento moderno, questiona as mediações fortes, distingue as esferas <strong>da</strong>s<br />

necessi<strong>da</strong>des espirituais e as esferas <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des temporais. Pressupõe que<br />

os seres humanos são alcançados pela graça de Deus e pela sua justiça, sendo<br />

benefi ciados independente dos méritos e <strong>da</strong>s ações pessoais. O golpe frontal<br />

às mediações fortes é <strong>da</strong>do pelo protestantismo quando admite que a ver<strong>da</strong>de<br />

pode ser encontra<strong>da</strong> livremente, pelo contato direto dos crentes com as Sagra<strong>da</strong>s<br />

Escrituras.<br />

Já os fi lósofos do século XVII procuram problematizar a legitimação dos<br />

reis e o poder sobrenatural <strong>da</strong> Igreja. Para isso elegeram como questão central a<br />

passagem do estado de natureza para o <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil. Rousseau, no século<br />

XVIII, trata desta questão como decisiva e vai detalhá-la no Discurso sobre a<br />

Origem e os Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Desigual<strong>da</strong>de entre os Homens, que se apresenta como<br />

pressuposto em Do Contrato Social. Rousseau discor<strong>da</strong> de Hobbes e Locke quanto<br />

203


204<br />

ao contrato que teria possibilitado a saí<strong>da</strong> do ser humano do estado de natureza.<br />

Discor<strong>da</strong> de Hobbes quando afi rma que o contrato põe fi m ao estado de guerra<br />

e garante a segurança. Discor<strong>da</strong> de Locke que atribui ao contrato à garantia <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>. O desafi o para Rousseau é chegar a “um contrato em que<br />

a vontade geral seja soberana e no qual a liber<strong>da</strong>de entendi<strong>da</strong> como o dom mais<br />

precioso dos homens seja preserva<strong>da</strong>”. (ABRÃO, 1999:288-89)<br />

O pressuposto de que o ser humano é bom por natureza, mas é corrompido<br />

pela socie<strong>da</strong>de, leva Rousseau a projetar uma socie<strong>da</strong>de capaz de garantir uma<br />

liber<strong>da</strong>de, um dia experimenta<strong>da</strong>. A contribuição <strong>da</strong> educação seria a de estar<br />

volta<strong>da</strong> para a formação moral e política do aluno e aberta à sua experiência e<br />

interesse pelo aprendizado.<br />

O século XVIII é aquele em que se fi rma o ideário de que cabe ao Estado<br />

o controle <strong>da</strong> educação. Mas uma distinção ca<strong>da</strong> vez mais níti<strong>da</strong> se fará entre<br />

os fi lósofos iluministas e os interesses <strong>da</strong> burguesia. Para os iluministas a<br />

liber<strong>da</strong>de era concebi<strong>da</strong> como intrínseca ao ser humano. Para a burguesia, a<br />

liber<strong>da</strong>de estava posta na relação com os outros homens, abrindo caminho para a<br />

exploração econômica e a concentração de bens e riquezas.<br />

Gadott i (idem: 93) lembra que A<strong>da</strong>m Smith (1723-1790) economista político<br />

<strong>da</strong> nova classe dizia que a educação para os trabalhadores deveria ser ministra<strong>da</strong><br />

em conta-gotas. Pestalozzi também defendia uma oferta desigual de acesso<br />

à educação: à classe dirigente instrução para governar, à classe trabalhadora<br />

educação para o trabalho.<br />

3.5 A escola nova<br />

O esforço para evidenciar a vi<strong>da</strong> e a ativi<strong>da</strong>de de quem aprende para<br />

alcançar a efi cácia de uma proposta pe<strong>da</strong>gógica não estará de todo ausente a<br />

partir do surgimento <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, vindo a ganhar forte impulso na pe<strong>da</strong>gogia<br />

naturalista e romântica de Rousseau. No entanto, apenas no início do século XX<br />

ganha presença nos sistemas educacionais e na atuação dos professores. Moacir<br />

Gadott i (op. cit. 142-) destaca que a Escola Nova via na educação de crianças e<br />

jovens uma possibili<strong>da</strong>de de fazer avançar a mu<strong>da</strong>nça social, o que reverteria<br />

em favor <strong>da</strong> escola para acompanhar as exigências de um mundo em mu<strong>da</strong>nça.<br />

Na Europa, Adolphe Ferrière (1879-1960) educador suíço foi pioneiro e ardente<br />

divulgador <strong>da</strong> escola ativa e <strong>da</strong> educação nova. “Para ele a Educação Nova seria<br />

integral (intelectual, moral e física); ativa: prática (com trabalhos manuais, obrigatórios,<br />

individualiza<strong>da</strong>); autônoma (campestre em regime de internato e co-educação)”.<br />

Para o educador norte-americano John Dewey (1859-1952), a Escola<br />

Nova deveria sustentar como ideal pe<strong>da</strong>gógico o ensino através <strong>da</strong> ação e não<br />

pela instrução centra<strong>da</strong> no professor. A educação seria a oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> para<br />

reconstruir a experiência concreta, ativa, produtiva, de ca<strong>da</strong> um porque sua<br />

pretensão é a educação para a vi<strong>da</strong>. Dewey defendia uma educação pragmática<br />

e instrumentalista. A educação se apresentaria através <strong>da</strong> associação teoria e<br />

prática, como uma preparação para a convivência democrática, para a experiência<br />

<strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de pessoal.<br />

Mag<strong>da</strong> Soares (1991:53), revendo sua experiência como aluna brasileira<br />

inseri<strong>da</strong> neste modelo educacional, deixa este testemunho:


Na microssocie<strong>da</strong>de que era a escola, organizava-se num regime democrático<br />

– uma autêntica democracia-liberal, segundo o modelo norte-americano:<br />

absoluta ausência de autoritarismo, enquanto este era a norma nas escolas<br />

<strong>da</strong> época; incentivo aos processos participativos, à formação de associações de<br />

alunos, grêmios, “clubes”, sempre sob a égide de eleições e mais eleições, ênfase<br />

em ativi<strong>da</strong>des extra-classes e trabalhos comunitários. Importante notar que<br />

tudo isso se passou, em grande parte, enquanto o país vivia o período do Estado<br />

Novo, de modo que a democracia liberal que vivíamos na escola representava<br />

um estágio avançado em relação ao que vivíamos fora dela.<br />

A autora (op. cit.: 55-6), ao re-visitar sua experiência discente mostra que<br />

a Escola Nova encontra suporte para seu ideário pe<strong>da</strong>gógico na sociologia <strong>da</strong><br />

educação e na psicologia educacional.<br />

A proposta <strong>da</strong> Escola Nova – ideológica que era, como to<strong>da</strong> e qualquer proposta<br />

pe<strong>da</strong>gógica apresentava-se a mim, e a quase todos os educadores, àquela época,<br />

como um conjunto lógico e coerente de idéias e valores, capaz não só de explicar<br />

a prática pe<strong>da</strong>gógica como também, e sobretudo, de regulá-la, fornecendo<br />

regras e normas para que ela se desenvolvesse de forma “científi ca” e “justa”.<br />

A teoria sociológica de Durkheim e a Psicologia experimental é que <strong>da</strong>vam<br />

“cientifi ci<strong>da</strong>de” à proposta; ora sendo ela “científi ca”, só poderia ser “justa”.<br />

De um lado, a teoria sociológica de Durkheim fun<strong>da</strong>mentava a concepção<br />

<strong>da</strong> educação como socialização do indivíduo, de outro lado, a Psicologia<br />

experimental conferia racionali<strong>da</strong>de e objetivi<strong>da</strong>de à prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Gadott i (op. cit. 144) ressalta que na Escola Nova o aluno está no centro.<br />

Para que isso ganhasse viabili<strong>da</strong>de era preciso métodos ativos e criativos<br />

centrados no aluno. Desse modo os métodos de ensino se constituíam no maior<br />

avanço desta proposta de escola. Acompanhemos sua exposição: “Os projetos<br />

poderiam ser manuais, como uma construção; de descoberta, como uma excursão; de<br />

competição, como um jogo; de comunicação como a narração de um conto, etc. A execução<br />

de um projeto passaria por algumas etapas: designar o fi m, preparar o projeto, executá-lo e<br />

apreciar o seu resultado”.<br />

Pe<strong>da</strong>gogos, entre outros, que se destacaram com seus métodos foram<br />

kilpatrick (1871-965), Decroly (1871-1932), Maria Montessori (1870-1952), Roger<br />

Cousinet (1881-1973).<br />

A Escola Nova representa um avanço incontestável em relação à pe<strong>da</strong>gogia<br />

autoritária e conservadora, mas não deixa de ser um instrumento útil aos<br />

interesses capitalistas. O ser humano novo, ativo, participante, que é valorizado<br />

pela responsabili<strong>da</strong>de e pelo mérito pessoal está plenamente inserido no projeto<br />

dominante de socie<strong>da</strong>de. Lembramos que poucos pe<strong>da</strong>gogos escolanovistas<br />

ultrapassaram a ideologia burguesa, com o cui<strong>da</strong>do de evidenciar a exploração<br />

do trabalho, a dominação política, a oferta desigual do ensino de quali<strong>da</strong>de em<br />

uma socie<strong>da</strong>de de classes.<br />

Podemos, após estas breves considerações, destacar que o movimento<br />

<strong>da</strong> Escola Nova foi ganhando legitimi<strong>da</strong>de afi rmando-se, como experimentou<br />

Mag<strong>da</strong> Soares, como uma escola moderna, científi ca, aberta aos interesses<br />

públicos. Os escolanovistas não podem negar os contatos com o positivismo<br />

205


4 Para construir este tópico<br />

eu tomei como referência<br />

básica o capitulo 11 e o<br />

15 do livro de Moacir<br />

Gadott i (op. cit.).<br />

206<br />

e com o marxismo, tornando-se, portanto, como dirá Gadott i (idem 147-48) um<br />

movimento complexo e contraditório. O movimento não fi cou nos limites de um<br />

movimento a serviço do pensamento liberal. Os teóricos marxistas como Bog<strong>da</strong>n<br />

Suchodolski e Georges Snyder não negaram uma perspectiva de integração<br />

dessas correntes.<br />

Paulo Freire também reconheceu os avanços <strong>da</strong> Escola Nova e sua<br />

contribuição, mas lembrava que a educação pode servir à prática <strong>da</strong> libertação ou<br />

então servir aos interesses dominantes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, sem questioná-los de forma<br />

profun<strong>da</strong>. O autor argumentava também que a valorização <strong>da</strong> criança pela Escola<br />

Nova não pode equivaler a uma ilusória renúncia à direção educativa. Isso porque<br />

os interesses dos grupos dominantes são veiculados pelos poderosos meios de<br />

comunicação e de informação agindo sobre as aspirações e a mentali<strong>da</strong>de dos<br />

setores populares.<br />

Como já destacamos neste texto: Rousseau apresenta uma ruptura com a<br />

pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência, quando oferece elementos para a elaboração de uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência. Esta pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência ganha fôlego no século<br />

XIX e XX, especialmente porque é coerente com as crises que a moderni<strong>da</strong>de foi<br />

experimentando quando são rompidos, um a um, os laços estáveis de ligação do<br />

ser humano com o cosmos, com a natureza, com a consciência. Como sabemos,<br />

Copérnico no século XVI evidenciou que a terra e o homem nunca estiveram<br />

no centro do universo; Darwin mostrou que o ser humano está entranhado nos<br />

processos evolutivos inscritos no mundo natural; Freud viu que a consciência<br />

constitui uma pequena fração de nossa vi<strong>da</strong> psíquica. Marx viu o indivíduo<br />

esmagado pelas condições materiais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social e política. O século XX foi,<br />

por sua vez, marcado por duas grandes guerras mundiais e por guerras de<br />

independência dos países pobres diante dos seus colonizadores.<br />

3.6 O século xx, a complexi<strong>da</strong>de do mundo como tema <strong>da</strong> fi losofi a e<br />

<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia e a nossa inserção nesse debate 4<br />

Uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> fi losofi a do século XX, de acordo com Abrão (op.<br />

cit. 441-42), é incorporar a experiência histórica, que é uma forma de estar atento à<br />

complexi<strong>da</strong>de do mundo, à tematização <strong>da</strong> contingência e <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.<br />

Neste contexto prosperam as fi losofi as e as proposta educacionais <strong>da</strong> existência.<br />

O tema <strong>da</strong> existência, porém, já se constitui problema no século anterior.<br />

Kierkegaard (1813-1855) e Nietz sche (1844-1900), entre outros, ofereceram<br />

contribuições marcantes para a fi losofi a e a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência.<br />

Para Kierkegaard o caminho não é o de buscar o sentido do indivíduo numa<br />

racionali<strong>da</strong>de que anula as singulari<strong>da</strong>des. Uma vez que o indivíduo é único,<br />

mas sua aspiração o eleva para além de si mesmo é na individuali<strong>da</strong>de que vai<br />

defi nir sua existência. Nietz sche admite como tarefa <strong>da</strong> fi losofi a rever as morais e<br />

as religiões, quando então nos defrontaremos com a análise <strong>da</strong> civilização, sendo<br />

que <strong>da</strong>í desponta o problema <strong>da</strong> existência humana.<br />

Nietz sche, como diz Ghiraldelli Jr. (op. cit. 94) criticou a metafísica <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong>de, a noção de subjetivi<strong>da</strong>de cria<strong>da</strong> na moderni<strong>da</strong>de. Discutiu a<br />

difi cul<strong>da</strong>de para distinguir o que é ver<strong>da</strong>de e falsi<strong>da</strong>de, de modo que abre pistas<br />

para um pensamento não fun<strong>da</strong>cionista, questionando a idéia de que somos<br />

obrigados a adquirir uma visão global e unifi ca<strong>da</strong> do mundo e de nós mesmos.


Nietz sche com novos método fi losófi cos abre caminhos para um trabalho com a<br />

linguagem.<br />

Em síntese, como alerta Gadott i (op. cit. 159). uma pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> essência<br />

estabelece um programa para levar o aluno “a conhecer sistematicamente as etapas do<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de; a pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> existência, a organização e a satisfação<br />

<strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des atuais do aluno através do conhecimento e <strong>da</strong> ação”.<br />

Abrão (idem: 441) sugere que não podemos falar de um existencialismo,<br />

no singular. Há uma multiplici<strong>da</strong>de de direções, diversi<strong>da</strong>de de infl uências<br />

presentes. Quando se fala de fi losofi a <strong>da</strong> existência o que se pretende destacar<br />

é a existência humana como o foco privilegiado de análise. Para a autora, no<br />

século XX há uma infl uência metodológica de análise de Husserl pelo fato de que<br />

a fenomenologia está presente na obra de Heidegger e de Sartre. O que Husserl<br />

propõe é se colocar de frente dos fenômenos para buscar descrevê-los, para tentar<br />

interpretá-los, pelo que manifestam, por aquilo que está por trás <strong>da</strong>s aparências.<br />

No entanto, se há uma diretriz metodológica <strong>da</strong> fenomenologia de Husserl não<br />

há uma vinculação quanto ao conteúdo que são privilegiados.<br />

A fenomenologia existencialista trouxe um grande dinamismo para a<br />

educação. O ser humano deixa de ser visto a partir de modelos estáveis, o<br />

diálogo, o conhecimento do universo do outro, o reconhecimento <strong>da</strong>s diferenças<br />

ganham grande importância. A fenomenologia abre caminhos para uma<br />

antropologia fi losófi ca aberta, sem preconceitos e que incorpora uma práxis e um<br />

envolvimento.<br />

Filósofos existencialistas que marcaram a educação, especialmente em<br />

nosso país foram: Martin Buber (1878-1966, Merleau-Ponty (1908-1961), Emanuel<br />

Mounier (1905-1950), Sartre (1905-1980), Paul Ricoeur (1913-).<br />

O nosso país até acolher a infl uência dos citados autores teve que percorrer<br />

um longo e difi cultoso caminho. Não foi fácil superar os condicionamentos de<br />

país colonizado, marcado por uma cultura escravista alonga<strong>da</strong>, e por uma<br />

sucessão de experiências de poder pouco interessa<strong>da</strong>s em incorporar efetivamente<br />

sua população às conquistas contemporâneas no campo do pensamento, <strong>da</strong><br />

ciência e <strong>da</strong> técnica.<br />

Até quase o fi m do século XIX o pensamento pe<strong>da</strong>gógico dominante no<br />

Brasil esteve preso ao catolicismo tradicional. Aos poucos novas idéias foram<br />

trazi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Europa, numa vertente laica, liberal, positivista, o que permitia<br />

fazer com que a educação apresentasse algumas alternativas, ain<strong>da</strong> que tími<strong>da</strong>s.<br />

Moacir Gadott i (op. cit. 230) lembra que a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Associação Brasileira de<br />

Educação (ABE), em 1924 tem vínculos diretos com o projeto liberal <strong>da</strong> educação,<br />

que se movia nos moldes de um otimismo pe<strong>da</strong>gógico, ou seja, esperava-se,<br />

proclamava-se reconstruir a socie<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> educação. Deve ser lembrado<br />

que pouco efetivamente acabava sendo realizado, afi nal o Brasil do começo do<br />

século XX, conforme o senso detinha mais de 74% de sua população analfabeta.<br />

(Paiva, 2003:95)<br />

Reformas importantes foram realiza<strong>da</strong>s por intelectuais na déca<strong>da</strong> de 20, na<br />

tentativa de superar a educação tradicional, conservadora, de cunho confessional,<br />

que havia predominado no país ao longo de sua experiência como colônia de<br />

Portugal e também como Império.<br />

A herança dos jesuítas fez sobreviver no país um ensino verbalista,<br />

retórico, livresco, com ênfase no esforço <strong>da</strong> repetição, no desempenho individual,<br />

207


208<br />

na memorização, no uso de castigos corporais e na utilização de conteúdos<br />

descontextualizados. Havia um ensino <strong>da</strong>s letras, destinado a formação dos<br />

senhores, e um outro para as classes populares, sendo que as ativi<strong>da</strong>des agrícolas,<br />

a pecuária e os ofícios e artes, na maioria <strong>da</strong>s vezes não garantiam uma exigência<br />

quanto ao domínio <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita. Isso explica, em grande parte o grande<br />

número de analfabetos produzidos no país.<br />

Num balanço sobre a educação brasileira do fi m do Império, Rui Barbosa<br />

faz dois pareceres ao Parlamento, o primeiro sobre o ensino secundário e superior<br />

e o segundo sobre o ensino primário. Rui Barbosa apela para a liber<strong>da</strong>de de<br />

ensino, a laici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escola pública e a instrução obrigatória. Seus pareceres<br />

denunciam nosso atraso educacional, a fragmentação do ensino e o descaso com<br />

a educação <strong>da</strong> população brasileira, predominante até o império.<br />

Esboços de uma educação aberta aos operários e pensa<strong>da</strong> contra a opressão<br />

e a coerção foi realiza<strong>da</strong> pelo movimento anarquista do início do século. Era<br />

uma educação que durou pelo menos até 1919, na capital de São Paulo e são<br />

Caetano. A escola anarquista servia aos fi lhos dos operários e era infl uencia<strong>da</strong><br />

pelo movimento anarquista europeu. Os anarquistas estavam sendo pressionados<br />

pelas autori<strong>da</strong>des, devido a informações de que eles tramavam a derruba<strong>da</strong> do<br />

governo. O confl ito provocou o encerramento <strong>da</strong>s experiências libertárias na<br />

esfera <strong>da</strong> educação no país.<br />

Em 1930 a burguesia urbano-industrial assumiu o poder e abriu caminho<br />

para um novo projeto educacional. A educação pública ganhou espaço nas<br />

preocupações dos que estavam no poder. O Manifesto dos pioneiros <strong>da</strong> educação<br />

nova, em 1932, assinado por 27 educadores renomados do país, sintetiza o<br />

resultado político e doutrinário dos 10 anos de luta <strong>da</strong> ABE, em sua reivindicação<br />

em favor de uma Plano Nacional de Educação.<br />

Em 1938 é fun<strong>da</strong>do O instituto Nacional de Estudos Pe<strong>da</strong>gógicos, o INEP.<br />

Em 1944 o INEP publica a Revista Brasileira de Estudos Pe<strong>da</strong>gógicos. Os grandes<br />

teóricos do período são: Fernando de Azevedo (1984-1974), Lourenço Filho<br />

(1987-1970), Anísio Teixeira (1900-1971). O pensamento pe<strong>da</strong>gógico liberal teve<br />

as contribuições de Roque Spencer Maciel de Barros, João Eduardo Villalobos,<br />

Antonio de Almei<strong>da</strong> Junior, Laerte Ramos de Carvalho, Moyses Brejon e Paul<br />

Eugêne Charboneau.<br />

Os católicos e os liberais representavam as duas grandes forças opostas<br />

quanto ao entendimento do que fazer com a educação no país. Enquanto os<br />

liberais defendiam uma escola pública laica, os católicos não queriam perder<br />

os espaços que controlavam, o que incluía garantir nas escolas, de modo geral,<br />

a formação religiosa. O que havia entre as duas grandes forças era um não<br />

questionamento profundo <strong>da</strong> organização do sistema econômico reinante, <strong>da</strong><br />

produção <strong>da</strong> exclusão, que entre outras oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, negava a escola para as<br />

classes populares. A análise <strong>da</strong>s contradições de classe, com poucas exceções,<br />

estava ausente <strong>da</strong> refl exão dos dois grupos. Com o surgimento de uma proposta<br />

pe<strong>da</strong>gógica crítica, a exemplo <strong>da</strong>s iniciativas de Paschoal Lemme, Álvaro Vieira<br />

Pinto e Paulo Freire, a questão <strong>da</strong> transformação radical <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de vai sendo<br />

coloca<strong>da</strong>, incluindo o lugar <strong>da</strong> educação a serviço dessa transformação.<br />

Com o fi m <strong>da</strong> era Vargas o país vive um período de democratização, com<br />

marcantes experiências político-pe<strong>da</strong>gógicas, que será interrompido com o golpe<br />

de 1964 e que será retomado com grande vitali<strong>da</strong>de a partir do fi m <strong>da</strong> déca<strong>da</strong>


de 70 e ao longo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80, quando os trabalhos de base, junto aos setores<br />

populares <strong>da</strong>s periferias urbanas e <strong>da</strong>s zonas rurais ganharam grande impulso,<br />

especialmente com as mu<strong>da</strong>nças trazi<strong>da</strong>s pela Igreja Católica progressista e<br />

aliados.<br />

Daí para a frente tivemos a Constituinte de 1988 e a aprovação <strong>da</strong> LDB,<br />

em dezembro de 1996. Uma <strong>da</strong>s maiores lutas do fi m do século XX para o século<br />

XXI é garantir que to<strong>da</strong>s as crianças e jovens brasileiros estejam freqüentando a<br />

escolas e tenham acesso às tecnologias <strong>da</strong> comunicação e <strong>da</strong> informação.<br />

Vimos que no início do século XX mais de 74% <strong>da</strong> população brasileira<br />

eram analfabetos. A questão que atravessou o século passado e até agora não<br />

parece ter sido soluciona<strong>da</strong> é esta: como li<strong>da</strong>r com esta reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa<br />

grande população? Lastimar o atraso vivido pela maioria do povo brasileiro ou<br />

tentar entender o que essa população pouco escolariza<strong>da</strong> elaborou, construiu,<br />

entendeu para sobreviver numa socie<strong>da</strong>de extremamente desigual e perversa<br />

na distribuição de bens e riquezas produzi<strong>da</strong>s socialmente? Como fazer para<br />

entender uma população que tem sobrevivido com poucas oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, mas<br />

que continua ativa, migrante, mestiça e reconheci<strong>da</strong>mente comunicativa? Como<br />

transformar estas e outras disponibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> população em suportes para que<br />

as pe<strong>da</strong>gogias possam avançar de forma inventiva em direção aos domínios do<br />

saber sistematizado, <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> técnica?<br />

Depois de tudo o que her<strong>da</strong>mos dos fi lósofos e educadores progressistas<br />

europeus, norte-americanos, especialmente ao longo do século XX, quero<br />

destacar a contribuição de Paulo Freire, que traz uma autêntica contribuição de<br />

pensadores provenientes dos países pobres. Esse educador, expulso do país com a<br />

instauração <strong>da</strong> ditadura militar de 1964, soube acolher uma herança progressista<br />

de fi lósofos e educadores brasileiros e outros, e foi capaz de afi rmar o que fi cou<br />

mundialmente conhecido como a pe<strong>da</strong>gogia do oprimido.<br />

Freire nos levou a entender que só tem sentido uma pe<strong>da</strong>gogia<br />

libertadora quando tivermos a humil<strong>da</strong>de de reconhecer que é preciso conhecer<br />

profun<strong>da</strong>mente o universo de vi<strong>da</strong> e de pensamento dos nossos alunos <strong>da</strong>s<br />

classes populares, de todos os alunos que estão em nossas salas de aula. Que o<br />

fato de fazermos parte de uma cultura na qual prevaleceu majoritariamente ao<br />

longo dos séculos o domínio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de e dos saberes <strong>da</strong> inteligência prática,<br />

que isso não nos diminui. O que há de melhor na inteligência <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />

práticas é a curiosi<strong>da</strong>de humana, a mesma que move a inteligência científi ca, com<br />

to<strong>da</strong>s as suas conquistas e novas possibili<strong>da</strong>des. Freire nos convi<strong>da</strong> a reabilitar<br />

os saberes <strong>da</strong> atenção e <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de que trazem de volta a fi losofi a de vi<strong>da</strong><br />

desenvolvi<strong>da</strong> por Zadig pelos príncipes de Serendip.<br />

Freire nos desafi a a pensar processos político-pe<strong>da</strong>gógicos capazes de<br />

promover os domínios de uma inteligência <strong>da</strong> prática em domínios de uma<br />

inteligência cientifi ca, in<strong>da</strong>gadora, abdutiva. Ele deixou claro que não há uma<br />

receita para realizar tal empreendimento, mas evidenciou que esse é um caminho<br />

para as pe<strong>da</strong>gogias críticas percorrerem para acolher o que há de melhor nos<br />

saberes <strong>da</strong> nossa grande população.<br />

Assim, retomar a estatística do analfabetismo do início do século XX aju<strong>da</strong><br />

a pensar como li<strong>da</strong>r com a estatística <strong>da</strong> inclusão digital do início do século XXI.<br />

Com relação aos índices alarmantes do analfabetismo do início do século não é<br />

difícil entender que a população majoritária do campo estava propensa a aceitar<br />

209


5 Ver htt p://www.<br />

ibge.gov.br/home/<br />

estatistica/populacao/<br />

acessoainternet/<br />

comentarios.pdf.<br />

Acessado em 29/05/2007.<br />

210<br />

o discurso dominante de que o trabalho agrícola, o trabalho com a pecuária e<br />

demais ativi<strong>da</strong>des produtivas e técnicas, não exigiam o domínio <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong><br />

escrita e o acesso ao conhecimento científi co. Agora, no início do século XXI o<br />

problema <strong>da</strong> exclusão digital tem uma face muito mais cruel porque os quase<br />

80% <strong>da</strong> população nordestina, os mais de 87% <strong>da</strong> população paraibana estão mais<br />

do que nunca cientes <strong>da</strong> per<strong>da</strong> irreparável que signifi ca não ter acesso aos meios<br />

mais avançados e versáteis de comunicação e de informação. 5


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htt p://www.funesj.sc.gov.br/barbiery/fi losofi a/fi l_c10.doc.<br />

www.fi losofi a.pro.br<br />

213


FUNDAMENTOS DE LINGÜÍSTICA<br />

Apresentação<br />

Caro Aluno e Cara Aluna<br />

Jan Edson Rodrigues Leite<br />

Este capítulo contém grande parte do material necessário para o<br />

aproveitamento <strong>da</strong> disciplina Fun<strong>da</strong>mentos de Lingüística. A disciplina que<br />

estu<strong>da</strong>remos abor<strong>da</strong>, de modo geral, os principais fenômenos <strong>da</strong> linguagem<br />

humana. Em um curso de Letras, em que os profi ssionais serão habilitados para<br />

o ensino de língua portuguesa, entender esses fenômenos é crucial, visto que a<br />

língua, como ferramenta de comunicação, compreensão e atuação no mundo,<br />

abrange dimensões que interessam a to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des humanas, ain<strong>da</strong> mais ao<br />

ensino.<br />

Procuramos apresentar <strong>da</strong> forma mais clara possível as principais questões<br />

acerca dos fenômenos estu<strong>da</strong>dos pela ciência <strong>da</strong> linguagem, recorrendo sempre<br />

aos livros-texto adotados pelo seu pólo de estudo, bem como a páginas <strong>da</strong><br />

Internet, onde os assuntos discutidos poderão ser aprofun<strong>da</strong>dos. Nosso objetivo<br />

é, pois, muni-los do aparato teórico básico para o desempenho efi caz de suas<br />

ativi<strong>da</strong>des, bem como aprofun<strong>da</strong>r seus conhecimentos sobre os fatos gerais que<br />

envolvem a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem.<br />

Este capítulo se divide em seis <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que discutem os textos teóricos<br />

e procuram relacioná-los à prática lingüísticas dos usuários. Essas <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s<br />

abor<strong>da</strong>m desde os objetos mais básicos dos estudos <strong>da</strong> linguagem, até a história<br />

<strong>da</strong> lingüística, suas principais teorias, princípios e a análise <strong>da</strong> relação língua e<br />

socie<strong>da</strong>de. Lembre-se de que qualquer aula, presencial ou a distância, exige<br />

dedicação e leituras. Assim é importante que as leituras obrigatórias sejam feitas<br />

antes do início de ca<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> temática para que o seu aproveitamento seja<br />

melhorado. Apresentamos também leituras complementares que aju<strong>da</strong>rão no<br />

entendimento integral do assunto estu<strong>da</strong>do, procure sempre fazê-las.<br />

Ao estu<strong>da</strong>r esse material, mantenha um caderno de anotações no qual<br />

possa registrar suas dúvi<strong>da</strong>s, questionamentos, opiniões e sugestões. Use<br />

suas anotações nos encontros com os tutores presenciais e, principalmente, no<br />

contato com o Professor e os tutores a distância. As ativi<strong>da</strong>des sugeri<strong>da</strong>s nesse<br />

livro contribuirão para o seu aprendizado, não deixe de fazê-las e discuti-las em<br />

grupo, a fi m de compartilhar suas opiniões com as dos seus colegas. Parte <strong>da</strong><br />

avaliação <strong>da</strong> disciplina consiste, exatamente, nos trabalhos, pesquisas e textos que<br />

são solicitados nessas ativi<strong>da</strong>des. A outra parte <strong>da</strong> avaliação será feita através de<br />

estágios escolares (avaliações) de modo presencial.<br />

215


216<br />

O sucesso do seu aprendizado depende muito de você, por isso questione,<br />

critique, analise posições, compare teorias, proponha sugestões, seja parte<br />

ativa desse curso que você agora começa, para que ao fi nal <strong>da</strong>s disciplinas suas<br />

competências, habili<strong>da</strong>des e atitudes tenham sido acresci<strong>da</strong>s não só por meio de<br />

construtos teóricos, mas pelo acúmulo de experiências positivas.<br />

Um abraço e muito sucesso! Jan Edson Rodrigues Leite


UNIDADE I<br />

LINGUAGEM LÍNGUA E LINGÜÍSTICA<br />

Leitura Obrigatória: PETTER, Margari<strong>da</strong>. Linguagem, Língua e Lingüística. In<br />

FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Lingüística. Vol. 1 Objetos Teóricos. São<br />

Paulo: Contexto, 2002, p. 11-23.<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

Sempre que começamos a estu<strong>da</strong>r uma disciplina ou teoria particular,<br />

buscamos apreender os conceitos básicos que a defi nem e a diferenciam de<br />

outras teorias e disciplinas. Às vezes esses conceitos básicos são completamente<br />

desconhecidos e exigem muito cui<strong>da</strong>do para que possamos compreendê-los com<br />

certa profundi<strong>da</strong>de. Outras vezes, trata-se de conhecimentos que já possuímos,<br />

ou de noções sobre as quais já estu<strong>da</strong>mos e que parecem ser de fácil apreensão.<br />

No entanto, no decorrer de nossos estudos, percebemos que o que já sabíamos<br />

era incompleto, superfi cial e, em certos casos, até mesmo inadequado.<br />

A lingüística é uma ciência que trabalha com o segundo tipo de<br />

conhecimento. As noções que compõem essa ciência são, inúmeras vezes,<br />

conheci<strong>da</strong>s por qualquer pessoa. Ora, qual é o falante que não sabe sua língua, ou<br />

que não conhece os aspectos principais <strong>da</strong> comunicação verbal? Ao estu<strong>da</strong>rmos<br />

a lingüística, discutiremos dois grupos de conceitos e noções básicas: um que<br />

recupera os conhecimentos gerais, não técnicos sobre a linguagem humana e a<br />

língua em particular; outro que apresenta uma visão técnica e especializa<strong>da</strong><br />

sobre estes mesmos aspectos. Não raro veremos que o conhecimento técnico <strong>da</strong><br />

lingüística se assemelha a algumas noções que já possuímos, como é o caso de<br />

certas normas sociais <strong>da</strong> fala, a diferença entre nossa língua e outros sistemas de<br />

comunicação, entre outros. Algumas vezes, porém, perceberemos que a ciência<br />

<strong>da</strong> linguagem – exatamente porque se trata de uma ciência – sistematiza o<br />

conhecimento <strong>da</strong> área em conceitos que são muito profundos e que exigem uma<br />

aproximação mais técnica para sua compreensão e exploração.<br />

Nosso objetivo nesse capítulo é abor<strong>da</strong>r de maneira especializa<strong>da</strong> os<br />

conceitos e defi nições básicas <strong>da</strong> Lingüística, correlacionando-os, sempre que<br />

possível, com as noções que fazem parte dos conhecimentos mais gerais dos<br />

falantes. Assim, vamos ao que interessa.<br />

217


218<br />

Um primeiro conceito a ser descoberto é o de linguagem. Será que esse<br />

conceito não é sufi cientemente óbvio para ser explicado? O falante comum,<br />

não-técnico, costuma pensar no conceito de linguagem humana como se<br />

opondo à linguagem de sinais, gestual, corporal, linguagem <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />

computação, etc. As diferenças entre essas noções são, no entanto, o bastante para<br />

se formular uma defi nição? O conhecimento técnico de linguagem exige que,<br />

paralelamente, estudemos também a noção de língua, uma vez que ambas são<br />

reali<strong>da</strong>des muito próximas para se estu<strong>da</strong>r o fenômeno lingüístico.<br />

Algumas línguas usam apenas um termo para se referir às noções de língua<br />

e linguagem (por exemplo, o termo do inglês language), tão próximos são os dois<br />

conceitos. Convencionou-se atribuir o termo linguagem à capaci<strong>da</strong>de geral que<br />

temos, enquanto seres humanos, de utilizar sinais com vistas à comunicação.<br />

Assim, essa capaci<strong>da</strong>de chega a nós como resultado de um processo evolutivo.<br />

Todos os homens e mulheres, independente de falarem uma língua natural (como<br />

português), ou de utilizarem línguas de sinais na comunicação entre surdos, ou<br />

de serem acometidos de patologias que prejudicam a comunicação verbal, são<br />

portadores dessa capaci<strong>da</strong>de, ou seja, têm linguagem. A língua, por sua vez, é<br />

uma noção que sugere que a capaci<strong>da</strong>de de linguagem se atualiza em um material<br />

concreto, disponível culturalmente, uma língua natural.<br />

Nos próximos capítulos nos deteremos em outras acepções <strong>da</strong>s noções<br />

de língua e linguagem. Por enquanto, é sufi ciente que fi que claro que todo<br />

ser humano nasce dotado de uma capaci<strong>da</strong>de geral chama<strong>da</strong> linguagem, ou<br />

facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem, e que essa capaci<strong>da</strong>de se atualiza, se concretiza em uma<br />

língua específi ca, um conjunto de signos e normas que permitem a comunicação<br />

em uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> particular.<br />

Difi cilmente seríamos o que somos hoje, em termos de conhecimento,<br />

acesso a informações, desenvolvimento tecnológico e relações interpessoais,<br />

sem uma linguagem e sem uma língua. To<strong>da</strong>s as nossas ativi<strong>da</strong>des cotidianas<br />

exigem que, direta ou indiretamente, usemos a capaci<strong>da</strong>de lingüística, seja<br />

para nos comunicar com outras pessoas, seja para contar histórias aos nossos<br />

fi lhos, seja para negociar com o gerente de nosso banco, seja para contar uma<br />

pia<strong>da</strong>, uma mentira, fazer uma fofoca, etc. A língua/linguagem é ativi<strong>da</strong>de<br />

constitutiva e incontornável de nossa natureza humana, por isso, possivelmente,<br />

qualquer falante tem a habili<strong>da</strong>de de defi nir sua língua em oposição a uma<br />

língua estrangeira, reconhecer outro falante como usuário de sua própria língua,<br />

distinguir uma língua natural de um conjunto de sons ou letras sem sentido.<br />

A lingüística, porém, como o estudo científi co <strong>da</strong> língua/linguagem<br />

humanas, se ocupa com questões que provavelmente não incomo<strong>da</strong>riam o<br />

usuário comum. Poucos falantes, por exemplo, se preocupariam em estu<strong>da</strong>r<br />

a evolução <strong>da</strong> língua, tanto do ponto de vista de como as formas do latim, por<br />

exemplo, evoluíram até chegar ao que constitui hoje a estrutura <strong>da</strong>s línguas<br />

românicas, como o português, o francês, o romeno, etc.; quanto do ponto de vista<br />

de como a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem evoluiu na espécie humana ao longo dos<br />

milhares de anos que separam o homem moderno dos primeiros primatas.<br />

A lingüística, além de questões como a trata<strong>da</strong> acima, estu<strong>da</strong> o modo como<br />

a língua se estrutura genericamente, através de proprie<strong>da</strong>des de associação<br />

e distribuição, o que corresponde, parcialmente, às tradicionais análises<br />

morfossintáticas que fazíamos na escola. Outra preocupação <strong>da</strong> lingüística é


investigar como um falante sai de um estado em que virtualmente não conhece sua<br />

língua materna (porque é bebê, por exemplo) e passa ao estado em que domina as<br />

estruturas de sua língua, ou seja, adquire e desenvolve conhecimentos lingüísticos.<br />

Muitas outras são as questões discuti<strong>da</strong>s pela lingüística, as quais<br />

serão apresenta<strong>da</strong>s e aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s nas próximas páginas deste capítulo.<br />

Apresentaremos agora algumas defi nições e conceitos elaborados por lingüistas<br />

de renome, que indicam a varie<strong>da</strong>de de abor<strong>da</strong>gens que esses fenômenos recebem<br />

no campo <strong>da</strong> ciência lingüística.<br />

1.1. Conceitos<br />

Ferdinand de Saussure (1916)<br />

A língua não se confunde com a linguagem; é somente uma parte<br />

determina<strong>da</strong>, essencial dela. É, ao mesmo tempo, um produto social<br />

<strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de linguagem e um conjunto de convenções necessárias,<br />

adota<strong>da</strong>s pelo corpo social para permitir o exercício dessa facul<strong>da</strong>de<br />

nos indivíduos. A linguagem é multiforme e heteróclita; a língua, ao<br />

contrário, é um todo por si e um princípio de classifi cação. Ela é a parte<br />

social <strong>da</strong> linguagem, exterior ao indivíduo.<br />

Mikhail Bakhtin<br />

(1929) A ver<strong>da</strong>deira substância <strong>da</strong> língua não<br />

é constituí<strong>da</strong> por um sistema abstrato de formas<br />

lingüísticas nem pela enunciação monológica e isola<strong>da</strong>,<br />

nem pelo ato psicofi siológico de sua produção, mas pelo<br />

fenômeno social <strong>da</strong> interação verbal. A língua vive e<br />

evolui historicamente na comunicação verbal concreta,<br />

não no sistema lingüístico abstrato <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> língua<br />

nem no psiquismo individual dos falantes.<br />

Edward Sapir (1929)<br />

A linguagem é um método puramente humano e não instintivo<br />

de se comunicarem idéias, emoções e desejos por meio de símbolos<br />

voluntariamente produzidos.<br />

Noam Chomsky (1957)<br />

A linguagem é um conjunto (fi nito ou infi nito) de sentenças, ca<strong>da</strong><br />

uma fi nita em seu comprimento e construí<strong>da</strong> a partir de um conjunto<br />

fi nito de elementos.<br />

Noam Chomsky (2000)<br />

A linguagem é um componente <strong>da</strong> mente/cérebro humanos especifi camente<br />

dedica<strong>da</strong> ao conhecimento e uso <strong>da</strong> língua. A facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem é o<br />

órgão <strong>da</strong> linguagem. A língua é então um estado dessa facul<strong>da</strong>de.<br />

219


220<br />

Carlos Franchi (1977)<br />

A língua é ativi<strong>da</strong>de constitutiva.<br />

Pela diversi<strong>da</strong>de dos posicionamentos apresentados acerca <strong>da</strong> defi nição<br />

de língua/linguagem, percebemos que a lingüística é marca<strong>da</strong> pela constante<br />

discussão e retoma<strong>da</strong> do seu objeto de estudo. Essas posições sinalizam, além do<br />

marco teórico defendido por seus autores, uma postura fi losófi ca sobre o papel<br />

<strong>da</strong> linguagem na vi<strong>da</strong> dos seres humanos. Do conjunto de defi nições, percebemos<br />

que a língua ora se apresenta como um sistema de representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />

ora como um instrumento de comunicação, ora como uma forma de ação social.<br />

Essas concepções orientam a escolha de uma defi nição teórica de linguagem.<br />

ATENÇÃO: Concepções de Linguagem<br />

• Linguagem como representação do pensamento e do conhecimento<br />

• Linguagem como um código para a comunicação<br />

• Linguagem como uma forma de ação interativa<br />

O conceito de língua adotado pelo lingüista suíço Saussure instaura, no<br />

século XX, a autonomia <strong>da</strong> Lingüística como ciência. Saussure defi ne língua por<br />

oposição à linguagem e à fala. O conceito de ciência nesse período era marcado<br />

pela busca de teorias capazes de explicar qualquer fenômeno de modo universal.<br />

A linguagem não serviria como bom objeto para a nova ciência porque era<br />

“multiforme e heteróclita”, isto é, o conhecimento <strong>da</strong> linguagem envolveria a<br />

investigação de sua natureza mental, abstrata, psicofi siológica, o que extrapolaria<br />

os limites <strong>da</strong> lingüística. Por outro lado, a fala, como fenômeno individualizado<br />

não se prestaria à elaboração de uma teoria capaz de explicar to<strong>da</strong>s as línguas.<br />

Surge, então, o conceito de língua, como um recorte feito pelo autor, para<br />

explicar o caráter concreto, homogêneo e objetivo do fenômeno lingüístico. A<br />

noção adota<strong>da</strong> por Saussure aponta para língua como um sistema, ou seja, uma<br />

estrutura formal passível de classifi cação em elementos mínimos que compõem<br />

um todo. Esses elementos se organizam por princípios de distribuição e<br />

associação, verifi cáveis em to<strong>da</strong>s as línguas naturais.<br />

Mikhail Bakhtin, fi lósofo e lingüista russo, concebe o fenômeno lingüístico<br />

de modo bastante diferente de Saussure. Para este autor, a discussão sobre o<br />

caráter abstrato ou individualista <strong>da</strong> linguagem é simplesmente inadequa<strong>da</strong>.<br />

O que constitui a língua é sua natureza sócio-ideológica, isto é, o complexo de<br />

relações existentes entre língua e socie<strong>da</strong>de. Essas relações se materializam no


discurso, perceptível nos enunciados proferidos pelos falantes, em situações<br />

comunicativas concretas. Bakhtin destaca o papel <strong>da</strong>s relações intersubjetivas<br />

entre o falante e o ‘outro’ como instaurador de uma concepção adequa<strong>da</strong><br />

de linguagem, privilegiando a ação dialógica no curso <strong>da</strong> história, em uma<br />

socie<strong>da</strong>de.<br />

Para o antropólogo-lingüista estadunidense, de origem alemã, Edward<br />

Sapir, o conceito de linguagem perpassa a representação que uma determina<strong>da</strong><br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> faz de sua cultura, através dos símbolos que utiliza. A língua<br />

é, portanto, uma categorização simbólica organiza<strong>da</strong>. Juntamente com seu<br />

associado, Benjamin Whorf, Sapir defende a hipótese de que nós recortamos<br />

a natureza, a organizamos em conceitos e atribuímo-lhes signifi cações porque<br />

convencionamos culturalmente organizá-la dessa forma. Essa convenção faz<br />

parte de um contrato que se mantém através de nossa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística e<br />

está codifi cado nos padrões de nossa língua. Sapir e Whorf defendem que nosso<br />

universo mental é determinado pelas estruturas <strong>da</strong> língua que falamos, e estas<br />

estruturas são um recorte arbitrário <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

“A lógica natural diz-nos que a fala é apenas uma manifestação acessória, que<br />

diz estritamente respeito à comunicação e não à formulação <strong>da</strong>s idéias. Supõese<br />

que a fala, ou o emprego <strong>da</strong> língua exprime apenas o que, em princípio, já<br />

está formulado não verbalmente. A formulação é um processo independente,<br />

denominado pensamento e considerado muito escassamente tributário do<br />

caráter particular <strong>da</strong>s diferentes línguas. O relativismo lingüístico modifi ca o<br />

veredicto do Senhor Senso Comum. Em vez de dizer ‘as frases são diferentes<br />

porque evocam fatos diferentes’, passa a dizer ‘os fatos são diferentes’ para os<br />

locutores cujo pano de fundo lingüístico atribui a esses fatos uma formulação<br />

diferente” (WHORF, 1956, p. 117; 160).<br />

Para o lingüista Avram Noam Chomsky, a linguagem humana baseiase<br />

em uma proprie<strong>da</strong>de elementar biologicamente isola<strong>da</strong> na espécie humana:<br />

a infi nitude discreta. Esta proprie<strong>da</strong>de é comparável àquela dos números<br />

naturais, ou seja, elementos discretos (símbolos oponíveis entre si) combinamse<br />

produzindo to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des de números existentes. No que se refere à<br />

teoria lingüística, o autor reproduz o pensamento de Humboldt (séc. XVII) de que<br />

a língua possui meios fi nitos para produzir uma seqüência infi nita de enunciados.<br />

Esse conhecimento é, portanto, parte de um fenômeno natural, biológico, que nos<br />

alcançou através <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> espécie.<br />

Chomsky acredita que o conhecimento <strong>da</strong> linguagem é individual e interno<br />

à mente e ao cérebro humanos. A facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem, para essa teoria, é<br />

uma proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> espécie humana que varia muito pouco entre os indivíduos<br />

e que não tem análogo signifi cativo em outras espécies. A linguagem humana é,<br />

portanto, um objeto biológico e deve ser analisa<strong>da</strong> segundo a metodologia <strong>da</strong>s<br />

ciências naturais. Assim, um estudo adequado <strong>da</strong> língua precisa tratar de seu<br />

construto mental, uma enti<strong>da</strong>de teórica a que Chomsky se refere como Língua-I,<br />

uma proprie<strong>da</strong>de interna do individuo.<br />

Segundo o autor, to<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong>des essenciais <strong>da</strong> língua são<br />

construí<strong>da</strong>s desde o início. A criança não precisa aprender as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

língua a que está exposta, apenas seleciona opções específi cas de um conjunto<br />

221


222<br />

pré-determinado. O órgão <strong>da</strong> linguagem (facul<strong>da</strong>de) de uma criança está em<br />

estado L (linguagem internaliza<strong>da</strong>). A teoria <strong>da</strong> linguagem desta criança é a<br />

gramática de sua língua. A língua determina uma gama infi nita de expressões<br />

(som + signifi cado), ou seja, a língua gera expressões na linguagem. Esta teoria de<br />

linguagem é chama<strong>da</strong> de gramática gerativa.<br />

No Brasil, o lingüista Carlos Franchi, <strong>da</strong> UNICAMP, nos apresenta noção<br />

de linguagem que extrapola os limites estruturais, comunicativos e cognitivos<br />

dentro dos quais a língua havia sido pensa<strong>da</strong>. Para Luiz Antonio Marcuschi<br />

(2003, p. 46), eminente lingüista que comunga com o pensamento de Franchi, “A<br />

língua é muito mais do que uma simples mediadora do conhecimento e muito<br />

mais do que um instrumento de comunicação ou um modo de interação humana.<br />

A língua é constitutiva de nosso conhecimento”.<br />

Bem repetindo Humboldt, a linguagem é um processo cuja forma é persistente,<br />

mas cujo escopo e mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des do produto são completamente indeterminados;<br />

em outros termos, a linguagem em um de seus aspectos fun<strong>da</strong>mentais é um<br />

meio de revisão de categorias e criação de novas estruturas. Nesse sentido<br />

a linguagem não é somente um processo de representação, de que se podem<br />

servir os discursos demonstrativos e conceituais, mas ain<strong>da</strong> uma prática<br />

imaginativa que não se dá em um universo fechado e estrito, mas permite<br />

passar, no pensamento e no tempo, a diferentes universos mais amplos, atuais,<br />

possíveis, imaginários (FRANCHI, 1977, p. 32).<br />

Como ativi<strong>da</strong>de constitutiva, a linguagem é incontornável e imprescindível<br />

<strong>da</strong>s relações e ações humanas, fazendo parte de nossa natureza e ativamente<br />

modelando nossa comunicação, nosso pensamento, nossa interação.<br />

“A rigor, para que existiria linguagem? Certamente não para gerar<br />

seqüências arbitrárias de símbolos nem para disponibilizar repertórios de<br />

<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s sistemáticas. Na ver<strong>da</strong>de, a linguagem existe para que as pessoas<br />

possam relatar a estória de suas vi<strong>da</strong>s, eventualmente mentir sobre elas, expressar<br />

seus desejos e temores, tentar resolver problemas, avaliar situações, infl uenciar<br />

seus interlocutores, predizer o futuro, planejar ações” (SALOMÃO, 1999, p. 65).<br />

REFLEXÃO: Após a leitura dos conceitos apresentados pelos diversos<br />

autores, procure associar ca<strong>da</strong> conceito a uma <strong>da</strong>s três Concepções de<br />

Linguagem, que orientam o posicionamento teórico sobre linguagem.<br />

1.2. História Dos Estudos Da Linguagem<br />

A existência de uma ciência <strong>da</strong> linguagem não é, em si, o ponto de<br />

parti<strong>da</strong> para os estudos sobre a relação entre a linguagem e o ser humano.<br />

Antes de a Lingüística se constituir como ciência, seu objeto, a língua, mantinha<br />

relacionamento estreito com muitas disciplinas, tanto do conhecimento científi co,<br />

quanto do conhecimento popular. Se considerarmos que desde a mais remota<br />

era, o homem já buscava formas de se comunicar por meio de trocas simbólicas<br />

que possivelmente deram origem à linguagem, tal como ela é hoje, poderíamos


pressupor que desde então já havia um interesse latente pelo estudo <strong>da</strong><br />

linguagem.<br />

Este interesse pela compreensão do fenômeno lingüístico pode ser<br />

encontrado no mundo antigo por meio de mitos, len<strong>da</strong>s e ritos que são comuns<br />

a várias culturas (como a origem do homem, a Torre de Babel, etc.), e que fazem<br />

parte do conhecimento popular sobre o fenômeno lingüístico, como sua origem<br />

(várias culturas acreditam que a língua é um dom divino ou que to<strong>da</strong>s as línguas<br />

se originam língua fala<strong>da</strong> entre um deus e o primeiro homem); seu poder de<br />

fazer coisas acontecerem (a história <strong>da</strong> criação do mundo em várias culturas<br />

está relaciona<strong>da</strong> ao poder <strong>da</strong> palavra: “faça-se a luz!”); e a natureza mística <strong>da</strong>s<br />

palavras de atraírem o bem e o mal.<br />

Os estudos sobre a linguagem podem ser reconstituídos à aproxima<strong>da</strong>mente<br />

quatro ou cinco séculos antes <strong>da</strong> nossa era. Por razões religiosas, os Hindus<br />

foram, aparentemente, os primeiros a empreender a tarefa lingüística de preservar<br />

os escritos sagrados do Ve<strong>da</strong>s contra a falsifi cação. Entre os Hindus, o gramático<br />

Panini fez descrição minuciosa <strong>da</strong> língua fala<strong>da</strong> entre seu povo, que veio a ser<br />

descoberta nos fi ns do século XVIII, popularizando entre os lingüistas e fi lólogos<br />

o estudo do Sânscrito.<br />

Entre os gregos, os estudos <strong>da</strong> linguagem debruçavam-se sobre as relações<br />

desta com os conceitos. Investigava-se se a nomeação de um conceito por meio<br />

<strong>da</strong> língua era tarefa puramente convencional, ou se havia entre palavras e<br />

conceitos uma relação natural. O diálogo O Crátilo, de Platão, investiga essas<br />

duas correntes para explicar como a língua refere-se ao mundo, denominando-as<br />

de naturalismo e convencionalismo. O diálogo sintetiza estas posições através <strong>da</strong><br />

fala de suas personagens: Crátilo, naturalista, acredita que os nomes refl etiam o<br />

mundo, e Hermógenes, convencionalista, defendia que os nomes <strong>da</strong>s coisas lhes<br />

são atribuídos por convenção. Outra personagem, Sócrates, através de quem o<br />

próprio Platão expressa sua opinião, oferece a seguinte explicação para o debate:<br />

• Tanto as coisas quanto a linguagem estão em constante movimento;<br />

• No início, os nomes poderiam ter exprimido o sentido <strong>da</strong>s coisas, mas<br />

com o movimento, a expressão degenerou-se e as convenções fi zeram-se<br />

necessárias;<br />

• Os nomes são imitações imperfeitas <strong>da</strong>s coisas;<br />

• A linguagem não pode nos ensinar a reali<strong>da</strong>de, mas nos impede de ver a<br />

essência <strong>da</strong>s coisas.<br />

Outro fi lósofo grego, Aristóteles, acreditava que a função <strong>da</strong> linguagem<br />

seria traduzir o mundo, representá-lo. As estruturas <strong>da</strong> linguagem, classifi ca<strong>da</strong>s<br />

segundo sua natureza lógica de nomear, qualifi car, predicar, etc. refl etem as<br />

estruturas encontra<strong>da</strong>s no mundo e nos permitem conhecer este. Aristóteles<br />

defendia que a lógica pré-existente ao mundo organizado era regente <strong>da</strong> lógica<br />

<strong>da</strong> língua. Assim, a linguagem teria um caráter secundário em relação à lógica<br />

natural. Nesse empreendimento, a estrutura <strong>da</strong> língua, do discurso e <strong>da</strong>s<br />

categorias gramaticais, descrição pioneira de Aristóteles, era apenas um meio de<br />

se chegar ao conhecimento <strong>da</strong>s estruturas e <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Entre os romanos, que primavam por recuperar a herança helênica,<br />

Varrão se propôs a formular a noção de gramática, já presente entre hindus<br />

223


224<br />

e gregos, como ciência e como arte. Sua obra sobre a língua latina se constitui<br />

um compêndio de teorias sobre etimologia, fl exão, e rudimentos de sintaxe, nos<br />

moldes de uma gramática atual.<br />

PESQUISA: Aprofunde seus conhecimentos: Estude o seguinte texto: A<br />

lingüística e sua história. In: WEEDWOOD, Bárbara. História Concisa <strong>da</strong><br />

Lingüística. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2002, p. 21-50.<br />

1.3. Evolução <strong>da</strong>s Ciências <strong>da</strong> Linguagem<br />

Após a tradição hindu, grega e latina, os estudos <strong>da</strong> linguagem assumiram<br />

diversas orientações que indicavam, de certo modo, a contextualização históricoideológica<br />

vigente em um <strong>da</strong>do período e em um <strong>da</strong>do lugar. Assim, costuma-se<br />

pensar que a evolução <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> linguagem passou por, pelo menos, três<br />

períodos em que as idéias lingüísticas refl etiam a predominância de certas formas<br />

de pensar.<br />

ATENÇÃO: Contextualização histórico-ideológica dos estudos <strong>da</strong> linguagem<br />

Atitude Teológico-cristã – Até o século XVIII predominava a busca pelas<br />

origens, pelos universais <strong>da</strong> linguagem.<br />

Atitude Histórico-evolutiva – Durante o século XIX a linguagem se mol<strong>da</strong>va<br />

à concepção de evolução, mu<strong>da</strong>nça e transformação.<br />

Atitude Lógico-formal – Durante grande parte do século XX, a língua se<br />

adequa ao conceito de estrutura ou sistema passível de análise a partir de suas<br />

<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s menores<br />

Atitude Pragmática – Da déca<strong>da</strong> de sessenta do século XX até os dias atuais,<br />

os estudos <strong>da</strong> linguagem estu<strong>da</strong>m forma e função ora dissociados, ora em<br />

conjunto. A pragmática instaura a preocupação com o uso <strong>da</strong> língua em<br />

contextos reais.<br />

A lingüística, no século XX, retoma o caráter científi co dos estudos <strong>da</strong><br />

linguagem, determinando como seu objeto a língua. Antes disso, porém, língua<br />

e linguagem foram objetos de estudo de inúmeras ciências (como a fi losofi a, a<br />

lógica, a fi lologia, por exemplo). Parte <strong>da</strong>s investigações sobre a linguagem,<br />

nessas ciências, tentava responder à questão sobre o que nos diferencia, enquanto<br />

humanos, de outros animais: a língua era sempre aponta<strong>da</strong> com a resposta a essa<br />

pergunta.<br />

Na i<strong>da</strong>de média, por exemplo, o foco dos estudos sobre a linguagem,<br />

derivados <strong>da</strong> noção de que a língua tem origem divina, era conceber as estruturas<br />

lingüísticas como universais, o que tornava as regras gramaticais um sistema<br />

lógico autônomo e independente <strong>da</strong>s línguas naturais. Da atitude teológico-cristã,


característica desse período, derivam alguns movimentos que contribuíram para<br />

os estudos <strong>da</strong> linguagem:<br />

• A invenção <strong>da</strong> imprensa por Johann Gutenberg dá início ao movimento de<br />

estudos fonéticos;<br />

• A religiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reforma protestante faz com que se iniciem as traduções<br />

<strong>da</strong> Bíblia para diversas línguas diferentes do latim;<br />

• Os estudos de tradução dão origem às gramáticas <strong>da</strong>s línguas chama<strong>da</strong>s de<br />

vulgares;<br />

• As línguas do novo mundo (Américas) passam a ser descritas pelos<br />

missionários e viajantes do século XVI;<br />

• São elaborados os primeiros dicionários poliglotas (Ambroise Calepino);<br />

• Os estudos de fonética progridem, gerando a descrição de centenas de<br />

línguas;<br />

• Da semelhança entre as línguas descritas, surge a hipótese de que to<strong>da</strong>s<br />

derivam de uma mesma origem, o Hebraico.<br />

Ao fi nal desse período, o interesse pela linguagem como dom divino cedeu<br />

lugar aos estudos sobre a lógica e a razão. O movimento chamado de iluminista<br />

e, posteriormente, o renascimento deslocaram o interesse dos estudos científi cofi<br />

losófi cos <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de para o homem. Nos estudos lingüísticos, um ícone desse<br />

movimento é a Gramática de Port-Royal, que concebe a linguagem como fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

na razão e no pensamento do homem, sendo, portanto, universal e modelo para<br />

as gramáticas de outras línguas.<br />

O século XIX incorpora as diretrizes racionalistas <strong>da</strong> Gramática de Port-Royal<br />

e inaugura um interesse pelo estudo <strong>da</strong>s línguas vivas na comparação com outras<br />

línguas. Este movimento, denominado histórico-comparativo, dá origem ao método<br />

histórico <strong>da</strong>s gramáticas compara<strong>da</strong>s e à lingüística histórica. O que desencadeia<br />

esse programa de investigações é a descoberta do Sânscrito (entre 1786 e 1816),<br />

que demonstra as evidências de parentesco entre latim, grego, línguas germânicas,<br />

eslavas e célticas com o sânscrito. Essas descobertas indicam que à linguagem podese<br />

aplicar um modelo biológico de evolução: as línguas são organismos vivos que<br />

nascem, crescem e morrem, encontrando um tempo breve de perfeição.<br />

A lingüística histórica surge <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de desenvolvimentos de métodos<br />

e princípios <strong>da</strong> gramática compara<strong>da</strong>. A comparação entre as línguas facilitava a<br />

demonstração do parentesco e <strong>da</strong> evolução histórica de uma língua. O estudo <strong>da</strong><br />

passagem <strong>da</strong> língua de um estado para o seguinte se <strong>da</strong><strong>da</strong> mediante a análise <strong>da</strong>s leis<br />

que determinavam essa evolução, encontra<strong>da</strong>s particularmente nos textos escritos.<br />

Assim, a gramática compara<strong>da</strong> era, efetivamente, o estudo <strong>da</strong> evolução continua <strong>da</strong>s<br />

línguas, o que a confundia com a própria lingüística histórica. Nesse movimento, a<br />

escola neogramática acreditava que a quase totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s transformações lingüísticas<br />

poderia ser explica<strong>da</strong> no domínio <strong>da</strong> fonética.<br />

REFLEXÃO: Vemos a infl uência <strong>da</strong> fonética nas transformações lingüísticas<br />

nos exemplos <strong>da</strong> passagem do latim para o português em auru, paucu, lauru<br />

que resultam modernamente em ouro, pouco e louro. A semivogal /w/ do<br />

ditongo latino, por ser mais fecha<strong>da</strong> do que a vogal /a/, a aproxima do seu<br />

ponto de articulação, transformando-a em /o/.<br />

225


226<br />

PESQUISAR: Aprofunde seus conhecimentos:<br />

Estude o seguinte texto: A tradição ocidental até 1900. In: WEEDWOOD,<br />

Bárbara. História Concisa <strong>da</strong> Lingüística. Trad. Marcos Bagno. São Paulo:<br />

Parábola Editorial, 2002, p. 103-124.<br />

AGORA É SUA VEZ: Faça um resumo pessoal para esta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>,<br />

organizando as idéias aqui expostas com suas próprias palavras. Lembre-se<br />

de <strong>da</strong>r um título ao seu texto<br />

Releia este capítulo e grife to<strong>da</strong>s as palavras que você não conhece. Procure o<br />

signifi cado dessas palavras no dicionário. Agora converse com um/uma colega<br />

e veja se as palavras e defi nições que ele/ela encontrou são as mesmas que<br />

você.<br />

REFLEXÃO: Pense nas perguntas abaixo e depois as respon<strong>da</strong> em seu<br />

caderno e no ambiente virtual:<br />

Como você defi ne o conceito de linguagem? O seu conceito se parece com<br />

algum dos conceitos apresentados? Qual(is)?<br />

Você conhece alguma len<strong>da</strong>, história ou mito sobre a origem <strong>da</strong>s línguas ou<br />

sobre o poder <strong>da</strong>s palavras? Conte sua len<strong>da</strong>.<br />

Que importância tem a linguagem no seu dia-a-dia? Faça uma lista <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des em que você precisa <strong>da</strong> linguagem.<br />

Escolha uma passagem do texto e disserte sobre ela. Lembre-se: na dissertação<br />

você deve <strong>da</strong>r sua opinião e usar argumentos que sustentem seu ponto de<br />

vista.


UNIDADE II<br />

A LINGÜÍSTICA E O SEU OBJETO DE ESTUDO<br />

REFLEXÃO: O que estu<strong>da</strong> a lingüística?<br />

• Pense sobre quais aspectos <strong>da</strong> língua a ciência <strong>da</strong> linguagem se interessa.<br />

Escreva uma lista dos aspectos.<br />

• Você conhece alguma outra ciência ou teoria que também estude esses<br />

aspectos?<br />

• Qual a importância dos aspectos listados para a comunicação, o trabalho e a<br />

vi<strong>da</strong> diária dos falantes?<br />

2.1. Linguagens e Línguas Naturais<br />

Ao defi nirmos linguagem e língua, anteriormente, ressaltamos que,<br />

apesar de serem conceitos muito próximos e de difícil recorte, linguagem é<br />

costumeiramente relaciona<strong>da</strong> à capaci<strong>da</strong>de geral de utilizar certos tipos de<br />

sinais para comunicação, e língua indica uma <strong>da</strong>s possíveis realizações dessa<br />

capaci<strong>da</strong>de. Nesse sentido, podemos dizer que qualquer ser humano possui uma<br />

linguagem porque tem capaci<strong>da</strong>de de usar uma língua natural como o francês, o<br />

japonês ou o romeno; ou que todos os seres humanos são dotados de linguagem,<br />

pouco importando qual seja a língua fala<strong>da</strong> pelas pessoas.<br />

Fora do domínio <strong>da</strong> lingüística também é possível falar em linguagem.<br />

Entretanto, esse conceito não é compreendido como referência à capaci<strong>da</strong>de<br />

mental ou facul<strong>da</strong>de de linguagem. Essas diferenças fi cam evidentes quando<br />

contrapomos linguagem humana e linguagem de programação, como uma<br />

ferramenta teórica utiliza<strong>da</strong> para desenvolver softwares, ou programas de<br />

computadores, destinados, por exemplo, a expressar instruções para um<br />

computador em tarefas como edição de texto, apresentação de páginas na<br />

Internet, etc. Também difere o conceito de linguagem <strong>da</strong>quilo que chamamos<br />

de linguagem corporal, linguagem <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, etc. A primeira diz respeito<br />

ao conjunto de expressões faciais e posições do corpo que sinalizam intenções<br />

e sentidos nem sempre pretendidos pelos usuários. A segun<strong>da</strong> refere-se ao<br />

conjunto de estratégias verbais e não verbais (por meio de imagens, por exemplo)<br />

que se destinam a persuadir os consumidores potenciais, fazendo-os aderir ao<br />

produto anunciado.<br />

Essa discussão prossegue quando contrastamos, por exemplo, a<br />

linguagem humana concretiza<strong>da</strong> em uma língua natural, com outros sistemas de<br />

comunicação também humanos, a exemplo dos códigos (de trânsito, convenções<br />

de etiqueta, etc.) e linguagens artifi ciais, como o esperanto; e sistemas de<br />

comunicação não humanos, como a “linguagem” animal.<br />

A ciência <strong>da</strong> linguagem, a par <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de de se estu<strong>da</strong>r to<strong>da</strong>s as<br />

dimensões <strong>da</strong> comunicação por meio de trocas simbólicas, escolheu a linguagem<br />

227


228<br />

verbal humana como objeto privilegiado de investigação. Tal escolha defi niu<br />

o curso <strong>da</strong> história <strong>da</strong> lingüística como sendo a ciência que se ocupou <strong>da</strong><br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita <strong>da</strong>s línguas naturais humanas. No século XX, porém, o<br />

conceito de língua sofreu relativa transformação, passando a dispensar a própria<br />

análise <strong>da</strong> língua natural em qualquer mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de, e reduzindo o conceito de<br />

linguagem à apenas sua porção concreta e homogênea: a língua.<br />

2.1.1. A linguagem verbal e as linguagens não verbais.<br />

Para Matt oso Câmara (1977, p. 39), lingüista brasileiro<br />

de renome, a linguagem é a “facul<strong>da</strong>de que tem o<br />

homem de exprimir seus estados mentais por meio<br />

de um sistema de sons vocais chamado língua, que os<br />

organiza numa representação compreensiva em face do<br />

mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior”.<br />

A defi nição do autor, característica <strong>da</strong> língua<br />

verbal oraliza<strong>da</strong> (“sons vocais”), ao mesmo tempo em<br />

que conceitua, estabelece a função representativa <strong>da</strong><br />

língua em relação ao os estados mentais interiores e à<br />

compreensão do mundo exterior. Esta noção, marca <strong>da</strong> concepção estrutural de<br />

língua, apresenta um recorte saussuriano que desconsidera, em primeiro lugar, as<br />

manifestações não oraliza<strong>da</strong>s <strong>da</strong> língua (como a língua de sinais utiliza<strong>da</strong>s pelos<br />

surdos, por exemplo), o papel <strong>da</strong>s ações intersubjetivas dos falantes, a história dos<br />

falantes e <strong>da</strong> língua, assim como a cultura como contexto local de uso <strong>da</strong> língua.<br />

Não obstante seja essa uma defi nição bastante incompleta de linguagem, no<br />

sentido <strong>da</strong>s noções de deixa de fora, seu recorte é importante para se defi nir a<br />

lingüística como a ciência, cujo objeto não está afetado pelas idiossincrasias do<br />

falante, nem pela heterogenei<strong>da</strong>de multiforme <strong>da</strong> linguagem. A língua verbal,<br />

recuperando o conceito postulado por Ferdinand de Saussure (supra) é sistema<br />

de onde depreendemos elementos estruturais que se combinam e se distribuem<br />

segundo regras gerais, verifi cáveis em to<strong>da</strong>s as línguas naturais.<br />

A língua se compreende, desse modo, como chave através <strong>da</strong> qual o<br />

homem acessa as leis de funcionamento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e seu conhecimento como<br />

hábil a nos mostrar não apenas as regras de seu funcionamento, mas a revelar a<br />

própria ordem social. Assim, a língua como objeto <strong>da</strong> lingüística, se assume como<br />

norma de to<strong>da</strong>s as outras manifestações <strong>da</strong> linguagem.<br />

A língua não se confunde com a linguagem, mas é parte essencial desta,<br />

pois constitui produto social <strong>da</strong> linguagem convencionado pelo corpo social,<br />

isto é, pelos falantes considerados como um todo, sendo assim um fenômeno<br />

adquirido e convencional.<br />

“A língua fi ca sendo, como <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, uma estrutura ideal, que apresenta em si<br />

os traços básicos comuns a to<strong>da</strong>s as suas varie<strong>da</strong>des. É a invariante abstrata e<br />

virtual, sobreposta a um mosaico de variantes concretas e atuais” (MATTOSO<br />

CÂMARA, 1975, p. 9)<br />

O conceito de língua <strong>da</strong> Lingüística também exclui, em suas primeiras<br />

formulações teóricas, a análise <strong>da</strong> linguagem não-verbal, hoje considera<strong>da</strong> em<br />

muitas abor<strong>da</strong>gens lingüísticas. Os estudos sobre comunicação na atuali<strong>da</strong>de


não podem desconsiderar o papel importante desempenhado pelas diversas<br />

linguagens e códigos não verbais, auxiliares <strong>da</strong> compreensão e <strong>da</strong> interpretação<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des lingüístico-comunicativas dos humanos.<br />

Entre as linguagens não verbais que têm sido objeto de estudo <strong>da</strong><br />

lingüística moderna, ao lado <strong>da</strong> língua verbal, destacamos a comunicação visual<br />

presente na fotografi a, no cinema, na pintura, etc., além <strong>da</strong>s imagens utiliza<strong>da</strong>s na<br />

comunicação cotidiana, como os sinais de trânsito, os cartazes e placas indicativas<br />

de lugar (banheiros, restaurantes, telefones) e ativi<strong>da</strong>des (proibições de fumar, de<br />

usar buzina, etc.).<br />

Outros tipos de comunicação não verbais são os códigos sonoros, também<br />

usados no trânsito, ou para indicar ativi<strong>da</strong>des de importância privilegia<strong>da</strong> (os<br />

sons dos carros de bombeiros, polícia, ambulância), ou mesmo o código Morse<br />

usado para comunicação onde outros veículos são impraticáveis.<br />

Um tipo de comunicação não verbal tem ganhado destaque no cenário<br />

cientifi co por acreditar-se, a partir de recentes pesquisas cientifi cas, de que teria<br />

<strong>da</strong>do origem à linguagem humana: trata-se dos gestos. A linguagem gestual está<br />

presente mesmo onde a comunicação verbal é recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> e atua como auxiliar<br />

na identifi cação de desejos, intenções, às vezes não expressos lingüisticamente.<br />

Apesar de sua importância, os gestos não são discretos como a língua humana<br />

(no sentido de que seus elementos não formam um seqüência fi nita combinável<br />

para produzir enunciados ilimitados). Os gestos variam bastante de cultura<br />

para cultura e, apesar de sua facili<strong>da</strong>de de decodifi cação, não têm signifi cados<br />

universais, nem reconhecíveis em diversas culturas.<br />

REFLEXÂO: No Brasil, o gesto que consiste em fechar os dedos <strong>da</strong> mão,<br />

deixando apenas o polegar levantado signifi ca “está tudo bem”, mas pode<br />

ser usado, em algumas regiões para pedir carona, assim como na Europa. No<br />

Japão, indica o número 5, na Alemanha o número 1, na Austrália e Nigéria,<br />

indica um ato obsceno.<br />

Leia o artigo sobre a origem gestual <strong>da</strong> linguagem humana em:<br />

htt p://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL29376-5603,00.html<br />

2.1.2. O estudo <strong>da</strong> linguagem verbal: a Lingüística e suas interfaces<br />

Leituras Complementares:<br />

PFEIFFER, Cláudia & NUNES, José Horta (orgs.) Linguagem, História e<br />

Conhecimento. Campinas: Pontes, 2006.<br />

PAVEAU, Marie-Anne & SARFATI, Georges-Élia. As grandes teorias <strong>da</strong><br />

Lingüística. Da gramática compara<strong>da</strong> à pragmática. São Carlos: Claraluz,<br />

2006.<br />

229


230<br />

Ativi<strong>da</strong>des:<br />

Estes dois textos acompanham to<strong>da</strong> a disciplina. Uma primeira leitura é<br />

recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Faça um fi chamento dos textos à medi<strong>da</strong> que lê. Um fi chamento se propõe a<br />

destacar as partes principais do texto na ordem em que elas ocorrem, usando<br />

marcadores numéricos. O fi chamento auxilia na compreensão do texto e na<br />

localização mais rápi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s idéias principais.<br />

Para saber mais sobre Fichamentos, acesse os seguintes sítios na Internet:<br />

htt p://www.ucb.br/prg/comsocial/cceh/normas_organinfo_fi chario.htm<br />

htt p://paginas.terra.com.br/educacao/teletrabalho/Fichamento.htm<br />

htt p://www.caminhos<strong>da</strong>lingua.com/Resenha.html<br />

A lingüística se defi ne por seu objeto – a língua – e por seu método, em<br />

princípio, estrutural. Com o passar dos anos, tanto o objeto como o método <strong>da</strong><br />

lingüística passaram por transformações, redefi nições, novas abor<strong>da</strong>gens. De<br />

língua como sistema de signos convencionais usados pelos membros de uma<br />

mesma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> à língua como ativi<strong>da</strong>de constitutiva, o estudo <strong>da</strong> linguagem<br />

verbal humana evoluiu, redimensionou seu escopo e incorporou preocupações<br />

típicas de uma ciência que está no limiar entre ciências humanas, naturais e<br />

sociais.<br />

Os estudos <strong>da</strong> língua empreendidos por Saussure se caracterizavam pela<br />

superação do método histórico-comparativo, <strong>da</strong> tradição historicista-evolutiva<br />

do século XIX, que procurava ver as semelhanças entre as línguas, de modo a<br />

descobrir sua relação com uma protolíngua (ou língua mãe). Saussure, de modo<br />

contrário, deriva sua análise para a perspectiva formal, privilegiando a concepção<br />

de língua como sistema de relações lógicas, inscritas na socie<strong>da</strong>de. O sistema se<br />

compõe de signos arbitrários e com valor representacional dentro <strong>da</strong> estrutura<br />

lingüística. Esse formalismo estruturalista, apesar de conceber a linguagem como<br />

fenômeno social, a analisa como enti<strong>da</strong>de formal.<br />

Essa concepção de língua é feita com o sucessivo sufocamento do sujeito (a<br />

rigor, a língua não é função do falante, sendo apenas produto passivo registrado<br />

por este), <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> história (a estrita forma lingüística não abre espaço para<br />

análise semântica ou pragmática). Ora, a posição saussuriana de lingüística se<br />

sustenta exatamente em virtude de seu objeto ser extremamente asséptico (livre de<br />

traços subjetivistas) e controlado pelo ponto de vista sincrônico (desconsideração<br />

<strong>da</strong> evolução <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> língua) e formal. É de se pensar, entretanto, que<br />

tamanho reducionismo não estivesse na pretensão inicial de Saussure, sendo<br />

resultado <strong>da</strong> leitura inadequa<strong>da</strong> de sua teoria, feita pelos compiladores do Curso<br />

de Lingüística Geral.<br />

Em direção complementar à de Saussure, em diversos aspectos, Chomsky<br />

postula a concepção de língua como fenômeno mental, analisando-a como uma<br />

enti<strong>da</strong>de neurobiológica. Chomsky preserva as mesmas proprie<strong>da</strong>des formais<br />

de Saussure no método de análise <strong>da</strong> língua, diferenciando-se deste no que<br />

diz respeito a aderir a um formalismo mentalista, em oposição ao formalismo<br />

estruturalista de seu antecessor. De modo semelhante a Saussure, Chomsky<br />

ignora a cultura, a história, a semântica e a pragmática dos seus objetivos. Elege,


entretanto, o sujeito a papel principal na ativi<strong>da</strong>de lingüística, tendo este função<br />

exclusiva na ativi<strong>da</strong>de cognitiva <strong>da</strong> linguagem.<br />

Difere dos autores anteriores, a noção de linguagem trazi<strong>da</strong> à cena<br />

lingüística a partir <strong>da</strong> leitura no ocidente, dos escritos deixados pelo russo<br />

Mikhail Bakhtin. Bakhtin rechaça as posturas fi losófi cas adota<strong>da</strong>s por Saussure<br />

e, por tabela, por Chomsky, assim como aquelas encontra<strong>da</strong>s na lingüística<br />

histórica, e propõe uma noção de língua que abrigue os conceitos de ativi<strong>da</strong>de<br />

social e dialogici<strong>da</strong>de (em termos mais simples, interação intersubjetiva). O autor<br />

concebe uma visão de linguagem não dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong> natureza sócio-ideológica <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des humanas, o que supõe compreender língua e socie<strong>da</strong>de como sendo<br />

complementares e tendo relações dinâmicas.<br />

A adoção <strong>da</strong>s idéias de Bakhtin, por alguns lingüistas, bem como o<br />

desenvolvimento de estudos de pragmática no campo <strong>da</strong> fi losofi a <strong>da</strong> linguagem,<br />

levaram a lingüística <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do século XX a conceber seu objeto<br />

como forma de ação, fortemente vincula<strong>da</strong> às ativi<strong>da</strong>des de comunicação, de<br />

interação, de pensamento, de conhecimento, etc. Essa redefi nição abriu espaço<br />

para que a língua percebesse sua interface com outras disciplinas e para que o<br />

fenômeno lingüístico fosse compreendido como constitutivo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana.<br />

Assim, a partir dessa nova abor<strong>da</strong>gem, a lingüística começa a abrigar<br />

disciplinas que se ocupam <strong>da</strong>s relações entre a forma lingüística e a produção<br />

textual discursiva, como é o caso <strong>da</strong>s análises do discurso, <strong>da</strong> conversação e <strong>da</strong><br />

lingüística textual; entre a variação <strong>da</strong>s formas lingüísticas e os fenômenos sociais<br />

que lhe dão origem, como na sociolingüística; entre as relações entre língua<br />

e mente, língua e cérebro, língua e cognição, o que dá origem às disciplinas <strong>da</strong><br />

Psicolingüística, Neurolingüística e Lingüística Cognitiva. Estas são apenas<br />

algumas <strong>da</strong>s interfaces dos estudos lingüísticos que serão estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s com mais<br />

vagar nos próximos textos. Saliente-se que nossos objetivos aqui são elementares,<br />

e algumas vezes, apenas informativos. Remetemos o leitor à bibliografi a no fi nal,<br />

às sugestões de leitura ao longo do texto e ao material complementar no CD-<br />

ROM e no ambiente virtual.<br />

2.2. A Especifi ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Linguagem Verbal<br />

Leitura Obrigatória:<br />

FIORIN, José Luiz. Teoria dos signos. In Introdução à Lingüística. Vol. 1<br />

Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 60-65.<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

O estudo <strong>da</strong> linguagem verbal, não obstante aponte para a natureza<br />

exclusiva desse fenômeno entre os humanos, apresenta semelhanças com outras<br />

formas de troca simbólica encontra<strong>da</strong>s na natureza e em outras espécies.<br />

231


232<br />

O que torna a língua objeto específi co <strong>da</strong> lingüística não é seu caráter<br />

comunicativo, facilmente encontrado em outros tipos de linguagens (como<br />

aquelas que citamos anteriormente) e mesmo entre certos animais, como as<br />

abelhas e outros insetos. Também não constitui característica especifi ca <strong>da</strong> língua,<br />

o fato de contar com elementos signifi cativos (o signo lingüístico) recortados<br />

arbitrariamente na socie<strong>da</strong>de. Outras linguagens, igualmente simbólicas,<br />

trabalham com material essencialmente arbitrário, como é o caso <strong>da</strong> escolha de<br />

cores usa<strong>da</strong>s nos códigos de trânsito, ou os símbolos <strong>da</strong>s artes gráfi cas.<br />

A noção de língua como sistema, tão cara às primeiras investi<strong>da</strong>s teóricas<br />

<strong>da</strong> lingüística, apesar de inédita no tratamento <strong>da</strong> linguagem verbal, não é<br />

especifi ca <strong>da</strong> língua humana. Outras formas de comunicação não lingüísticas, a<br />

exemplo dos mapas, ou do desenho industrial, adotam a noção de sistema para<br />

representar simbolicamente os componentes de uma região mapea<strong>da</strong>, de maneira<br />

proporcional ao todo.<br />

Duas outras noções caras ao conceito de língua – seu caráter linear e<br />

discreto – podem ser igualmente verifi ca<strong>da</strong>s em outros sistemas de comunicação<br />

não lingüística. Por lineari<strong>da</strong>de, entende-se a característica de dois elementos<br />

na língua não poderem ocupar o mesmo espaço no tempo, isto é, a mensagem<br />

lingüística desenrola-se no tempo e os elementos que a compõem sucedem-se<br />

sempre um após o outro. Essa característica, apesar de presente na linguagem<br />

verbal humana em oposição às outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des, como a pintura, em que a<br />

mensagem é percebi<strong>da</strong> como um todo, também é parte <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong> música,<br />

dos códigos de trânsito, do cinema, etc.<br />

Quanto à natureza discreta do signo lingüístico, isto é, sua proprie<strong>da</strong>de de<br />

ser um todo signifi cativo oposto a outro todo signifi cativo, combináveis entre<br />

si para produzir outras seqüências, convém lembrar que essa proprie<strong>da</strong>de já é<br />

encontra<strong>da</strong> na matemática, em que um elemento ou é, ou não é, ou seja, não há<br />

gra<strong>da</strong>ções entre as <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que compõem a linguagem matemática, assim como<br />

não há mais ou menos p ou mais ou menos b. A linguagem <strong>da</strong> computação é<br />

outro exemplo de um sistema simbólico que utiliza essa proprie<strong>da</strong>de que não é<br />

exclusiva <strong>da</strong> linguagem verbal.<br />

O que parece caracterizar especifi camente a língua, na opinião dos teóricos<br />

<strong>da</strong> linguagem, é sua capaci<strong>da</strong>de de articular-se em, pelo menos, dois níveis<br />

distintos, especifi ci<strong>da</strong>de não encontra<strong>da</strong> em nenhuma <strong>da</strong>s linguagens e códigos<br />

até aqui citados. Essa proprie<strong>da</strong>de permite distinguir, por exemplo, o choro <strong>da</strong><br />

criança, ou um grito de dor, ou ain<strong>da</strong> a produção involuntária de um ruído pelo<br />

ser humano, <strong>da</strong>quilo que chamamos de língua articula<strong>da</strong>.<br />

Quando se diz que a língua humana se articula em dois níveis, sugere-se<br />

que na seqüência linear, discreta e arbitrária dos elementos do sistema lingüístico<br />

podem ser encontrados níveis diferentes de análise. Em primeiro lugar, o signo<br />

lingüístico, por uma proprie<strong>da</strong>de de comutação dos seus elementos é passível de<br />

desconstrução e reconstrução com novos signifi cados. É o caso de <br />

que se desarticula em . Aplicando-se a comutação dos elementos<br />

signifi cativos, essa seqüência pode ser rearticula<strong>da</strong> como: ;<br />

(o símbolo Ø representa um espaço vazio, referindo-se, portanto,<br />

à forma no singular); ; etc. Esse nível de análise é denominado de<br />

primeira articulação.<br />

A segun<strong>da</strong> articulação é aquela que está no nível <strong>da</strong>s <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s mínimas na<br />

linguagem. Estas <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s distinguem-se umas <strong>da</strong>s outras por serem discretas,


isto é, formam pares de oposição umas em relação às outras, e por serem<br />

dota<strong>da</strong>s de proprie<strong>da</strong>des combinatórias. Essas <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s, chama<strong>da</strong>s de fonema,<br />

encontram-se no nível mais básico de articulação <strong>da</strong> língua. Atribuindo-lhes a<br />

mesma função comutativa, pode-se gerar formas signifi cativas diversas, como<br />

em: /m a r/, /m a l/, /s a l/, /s o l/, /s o m/, etc.<br />

Apesar de a dupla articulação ser a característica mais especifi ca <strong>da</strong><br />

linguagem verbal humana, um conjunto mais amplo de traços distintivos, alguns<br />

dos quais citados nessa seção, é o que diferencia a língua de outros sistemas de<br />

comunicação simbólica.<br />

2.2.1. Os traços característicos do signo lingüístico e <strong>da</strong> linguagem<br />

verbal<br />

O lingüista estadunidense Charles Hockett , ao descrever a origem <strong>da</strong> fala,<br />

posiciona-se a respeito <strong>da</strong>s características que diferenciam a linguagem verbal<br />

de outras linguagens, especialmente os sistemas de comunicação verifi cados<br />

em algumas espécies de animais. Para o autor, o homem é o “único animal que<br />

pode se comunicar por meio de símbolos abstratos, ain<strong>da</strong> que essa habili<strong>da</strong>de<br />

compartilhe de muitas características com a comunicação em outros animais e<br />

tenha derivado desses sistemas mais primitivos” (1960, p. 5).<br />

O autor apresenta um conjunto de treze características <strong>da</strong> linguagem, a<br />

partir de evidências empíricas de que to<strong>da</strong>s as línguas compartilham ca<strong>da</strong> um<br />

desses traços. Alguns desses traços podem ser encontrados na comunicação entre<br />

animais, mas apenas na linguagem verbal humana, em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de oral,<br />

to<strong>da</strong>s as características se encontram reuni<strong>da</strong>s. Vejamos, conforme Hockett (1960,<br />

p. 5-12).<br />

Características <strong>da</strong> Língua Verbal<br />

Uso do canal auditivo e vocal<br />

1. Uso do canal auditivo e vocal<br />

O modo de comunicação <strong>da</strong> língua humana é preferencialmente auditivovocal,<br />

ou seja, utilizamos o aparelho vocal (boca, língua, faringe, pregas<br />

vocais, etc.) para produzir e emitir os sinais lingüísticos, e o sistema auditivo<br />

para compreendê-los. O uso de sistemas diferentes na língua humana,<br />

como o táctil-visual, só ocorre quando há impossibili<strong>da</strong>de de se recorrer ao<br />

canal auditivo-vocal, como em caso de patologias do trato vocal ou surdez.<br />

O canal olfativo, usado por muitas espécies de insetos que se comunicam<br />

pela emissão de feromônios, não é usado na língua humana.<br />

2. Transmissão aberta e recepção direcional<br />

A fala humana é transmiti<strong>da</strong> de modo amplo, aberto, ou seja, o sinal<br />

lingüístico pode ser ouvido por qualquer pessoa que esteja ao alcance <strong>da</strong>s<br />

on<strong>da</strong>s sonoras emiti<strong>da</strong>s, e não apenas por aquele ouvinte a quem dirigimos<br />

nossa mensagem. Por outro lado, qualquer ouvinte é capaz de reconhecer a<br />

origem <strong>da</strong> emissão e identifi car o falante, por meio <strong>da</strong> recepção direcional.<br />

233


234<br />

3. Transitorie<strong>da</strong>de<br />

O sinal lingüístico tem rápi<strong>da</strong> duração, isto é, as mensagens emiti<strong>da</strong>s<br />

oralmente, ao contrário <strong>da</strong>s imagens gráfi cas, não permanecem no tempo e<br />

no espaço após serem produzi<strong>da</strong>s.<br />

4. Intercompreensão<br />

Os indivíduos que usam a língua podem enviar e receber qualquer tipo de<br />

mensagem permiti<strong>da</strong> no sistema comunicativo. Isto quer dizer que somos<br />

capazes de dizer aquilo que compreendemos, ain<strong>da</strong> que não usemos os<br />

termos precisos <strong>da</strong> mensagem, porque a reconhecemos e a reproduzimos<br />

dentro <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des que o sistema lingüístico nos fornece.<br />

5. Monitoração<br />

Os usuários <strong>da</strong> língua podem falar e ouvir ao mesmo tempo. Por isso,<br />

são capazes de perceber o que estão transmitindo e corrigir seus erros e<br />

incompreensões.<br />

6. Especialização<br />

Os sinais que utilizamos lingüisticamente são especializados para a fala.<br />

Isto quer dizer que só se prestam primeiramente a este fi m. Não é o<br />

caso de produções sonoras involuntárias que indicam estados do nosso<br />

organismo, como o espirro. Os sons <strong>da</strong> fala se combinam entre si para<br />

evocar uma signifi cação externa a eles.<br />

7. Semantici<strong>da</strong>de<br />

Existem relações associativas entre os elementos <strong>da</strong> língua e características<br />

do mundo, na produção de signifi cado, isto é, as formas lingüísticas são<br />

usa<strong>da</strong>s para denotar algum tipo reali<strong>da</strong>de, como, por exemplo, quando se<br />

diz “Estou gripado”, essa seqüência de sinais formam uma mensagem que<br />

indica um estado de saúde do indivíduo.<br />

8. Arbitrarie<strong>da</strong>de<br />

Não há uma conexão lógica ente a forma <strong>da</strong>s estruturas lingüísticas e o<br />

signifi cado que essas acionam. Os sinais <strong>da</strong> língua são estabelecidos por<br />

pura convenção, assim, não seria razoável pensar que entre a forma <strong>da</strong><br />

palavra ‘gripe’ e a condição de saúde que ela indica haveria algum tipo de<br />

semelhança.<br />

9. Uso de sinais discretos<br />

As mensagens no sistema lingüístico são compostas de elementos menores<br />

e repetíveis. Esses elementos não são percebidos analogicamente, isto é,<br />

não formam um contínuo. Os sons <strong>da</strong> língua são percebidos em termos<br />

de sim ou não, isto é, não existe mais ou menos p, ou mais ou menos b, a<br />

percepção é categórica: ou é p, ou é b.<br />

10. Deslocamento<br />

As mensagens lingüísticas não se referem apenas a eventos contextualizados<br />

em termo de aqui e agora. Podem se referir a coisas remotas no tempo, no<br />

espaço, ou em ambos, a coisas fora do contexto imediato de comunicação.


11. Produtivi<strong>da</strong>de<br />

Os usuários <strong>da</strong> língua não têm limite para a produção e compreensão<br />

<strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> língua. Podem criar e entender mensagens absolutamente<br />

inéditas, combinando os elementos disponíveis na língua para adequar a<br />

mensagem aos contextos de uso.<br />

12. Transmissão cultural<br />

As convenções de uma língua são apreendi<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> interação com<br />

usuários <strong>da</strong>quela mesma língua. Uma criança só adquire a língua <strong>da</strong> cultura<br />

a que está circunscrita, ou seja, a língua com a qual tem contato através do<br />

convívio com outros falantes.<br />

13. Duali<strong>da</strong>de<br />

Um grande número de elementos signifi cativos <strong>da</strong> língua são constituídos<br />

de um conjunto convenientemente pequeno de <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que, apesar de<br />

serem desprovi<strong>da</strong>s de signifi cação, possuem a habili<strong>da</strong>de de combinar-se<br />

para produzir mensagens. Isto dá à língua a fl exibili<strong>da</strong>de de articular-se<br />

na produção de suas estruturas, sem recorrer a novas formas ca<strong>da</strong> vez que<br />

quiser nomear algo novo.<br />

2.2.2. Linguagem e suas funções.<br />

Leitura Obrigatória:<br />

BARROS, Diana Pessoa. A comunicação humana. In FIORIN, José Luiz (org.)<br />

Introdução à Lingüística. Vol. 1 Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002,<br />

p. 24-41.<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

É muito comum, entre pessoas não especializa<strong>da</strong>s em lingüística referir-se<br />

à linguagem como sendo prioritariamente um veículo de comunicação. A idéia<br />

de que a linguagem serve para propósitos fun<strong>da</strong>mentalmente comunicativos<br />

também já foi defendi<strong>da</strong> por lingüistas em épocas passa<strong>da</strong>s, especialmente<br />

quando as ciências <strong>da</strong> informação e teoria <strong>da</strong> comunicação <strong>da</strong>vam suas primeiras<br />

passa<strong>da</strong>s, e quando a pesquisa tecnológica fomentava a elaboração de modelos e<br />

veículos de comunicação.<br />

Na lingüística, um dos primeiros teóricos a destacar as funções <strong>da</strong><br />

linguagem na comunicação, foi o russo Roman Jakobson. Seu modelo de análise<br />

<strong>da</strong> língua derivava de outros esquemas feitos especialmente pela teoria <strong>da</strong><br />

235


236<br />

comunicação para explicar o trajeto que uma mensagem percorria desde sua<br />

produção até seu destino. Assim, se considerava como modelo de comunicação<br />

aquele em que a mensagem, partindo de uma fonte de informação, e sendo<br />

codifi ca<strong>da</strong> por meio de transmissor, dependia de um sinal físico para chegar ao<br />

receptor, onde seria decodifi ca<strong>da</strong> e entregue ao destinatário.<br />

Esse modelo de comunicação, a par de sua importância, apresentava<br />

várias difi cul<strong>da</strong>des que o tornavam inadequado para explicar qualquer tipo<br />

de comunicação, uma vez que simplifi cava o processo comunicativo verbal,<br />

considerando-o linear e mecanicista, ou seja, considerava as questões puramente<br />

lingüísticas <strong>da</strong> comunicação.<br />

Roman Jakobson<br />

Bertil Malmberg e Jakobson foram responsáveis pelo processo<br />

de reformulação do modelo de comunicação. Malmberg (1969)<br />

introduz no modelo a representação do código, situando a<br />

atualização <strong>da</strong>s <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s lingüísticas entre o código e o emissor;<br />

introduz também a preocupação com a relação do emissor e<br />

elementos extralingüísticos e aponta as diversas fases de codifi cação<br />

e decodifi cação <strong>da</strong> mensagem. Jakobson (1969), por sua vez, amplia<br />

a proposta teórica de Malmberg, demonstrando a relação entre<br />

emissor e destinatário na produção e compreensão <strong>da</strong> mensagem,<br />

assim como a necessi<strong>da</strong>de de consideração de um referente contextual, um código e um<br />

canal físico que fossem compartilhados por ambos emissor e destinatário.<br />

O modelo resultante dessa ampliação é o mais conhecido entre os<br />

estudiosos <strong>da</strong> linguagem na atuali<strong>da</strong>de:<br />

As funções <strong>da</strong> linguagem propostas por Jakobson partem <strong>da</strong> consideração<br />

do modelo de comunicação acima, focalizando ca<strong>da</strong> um dos elementos presentes<br />

na comunicação. Assim, em qualquer processo comunicativo, alguns elementos


assumem papel central e são mais focalizados do que os outros. A função <strong>da</strong><br />

linguagem que ganha destaque é, por isso, aquela que melhor se adequa à<br />

centrali<strong>da</strong>de de qualquer um dos itens constantes no processo comunicativo. O<br />

realce particular de ca<strong>da</strong> um dos componentes do modelo comunicativo é feito a<br />

partir de uma <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> linguagem, apresenta<strong>da</strong>s no quadro seguinte:<br />

A função <strong>da</strong> linguagem centra<strong>da</strong> no componente contextual <strong>da</strong> comunicação<br />

é chama<strong>da</strong> de referencial ou informativa, pois coloca em evidência o conteúdo <strong>da</strong><br />

mensagem, ou seja, apresenta a informação a ser veicula<strong>da</strong> de modo objetivo e<br />

claro, sem fazer referência ao emissor ou destinatário, e sem se valer <strong>da</strong> estrutura<br />

lingüístico-textual <strong>da</strong> mensagem. È a função mais encontra<strong>da</strong> no discurso<br />

jornalístico e acadêmico.<br />

A função emotiva coloca em evidência o componente comunicativo emissor<br />

<strong>da</strong> mensagem. Os procedimentos lingüísticos encontrados nessa função destacam<br />

o remetente como parte do conteúdo veiculado, expressando, às vezes, o caráter<br />

emocional e afetivo do enunciador. Os efeitos dessa função são a subjetivi<strong>da</strong>de e<br />

proximi<strong>da</strong>de do sujeito que veicula a mensagem do conteúdo desta. Esta função<br />

predomina em textos que destacam o eu-lírico ou o próprio enunciador, como as<br />

poesias.<br />

A função conativa <strong>da</strong> linguagem traz ao centro <strong>da</strong> comunicação o<br />

destinatário. Este é eleito o principal foco do processo e a mensagem se destina<br />

a agir sobre ele. Essa função é cotidianamente utiliza<strong>da</strong> quando agimos sobre<br />

outrem, <strong>da</strong>ndo conselhos, fazendo perguntas, pedidos e ordens. Em usos mais<br />

técnicos <strong>da</strong> linguagem, é na linguagem <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de que se destaca o uso<br />

<strong>da</strong> função conativa, já que suas técnicas procuram convencer e persuadir o<br />

destinatário, produzindo nele comportamentos desejados.<br />

A função fática <strong>da</strong> linguagem focaliza a utilização do canal de contato<br />

entre emissor e destinatário. Esta função objetiva quase sempre a testar a<br />

existência ou manutenção do canal de comunicação, essencial à preservação<br />

desta e à veiculação <strong>da</strong> mensagem, além de eliminar os ruídos que impedem a<br />

comunicação, sejam estes ruídos físicos, ideológicos ou psicológicos, mantendo<br />

o ambiente de relações comunicativas favorável às ativi<strong>da</strong>des dos falantes. Os<br />

efeitos dessa função são a aproximação do remetente ao destinatário, produzindo<br />

interesses comuns, e efetivando a manutenção <strong>da</strong> interação.<br />

237


238<br />

A função poética <strong>da</strong> linguagem evidencia a estrutura e a natureza <strong>da</strong><br />

própria mensagem veicula<strong>da</strong>. A língua é utiliza<strong>da</strong> para produzir mensagens que<br />

chamem à atenção o destinatário pela forma como são construí<strong>da</strong>s, elabora<strong>da</strong>s.<br />

Essa função destaca a estrutura e organização interna <strong>da</strong> mensagem, de forma que<br />

o conteúdo seja secundário na mensagem que se está a veicular. A publici<strong>da</strong>de<br />

e o marketing, assim como a literatura, são formas de uso <strong>da</strong> língua em que se<br />

encontra com mais freqüência a aplicação dessa função.<br />

A função metalingüística é aquela em que a utilização do código se defi ne<br />

como elemento central na comunicação, e se presta a veicular uma mensagem<br />

sobre o próprio código. Geralmente o entendimento <strong>da</strong> metalingüística se defi ne<br />

pelo fato de o código se tornar objeto <strong>da</strong> comunicação, possibilitando assim<br />

sua avaliação, sua adequação, e sua signifi cação no processo comunicativo.<br />

A metalingüística é encontra<strong>da</strong>, quase sempre, na conversa cotidiana, em que<br />

nos deparamos com dúvi<strong>da</strong>s sobre o uso ou signifi cação de certa estrutura<br />

lingüística, ou ain<strong>da</strong> nos glossários e dicionários aplicados aos usos mais técnicos<br />

<strong>da</strong> linguagem.<br />

As funções <strong>da</strong> linguagem, como descritas por Jakobson, pressupõem<br />

a concepção de que a língua tem como função maior e vital os processos de<br />

comunicação. Assim, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s funções aqui descritas corresponde às opções<br />

do falante de destacar um aspecto <strong>da</strong> comunicação sobre o outro. No entanto,<br />

considerar que o papel <strong>da</strong> língua é apenas comunicar, é reduzi-la a um código<br />

que em na<strong>da</strong> difere de outros sistemas de comunicação até agora estu<strong>da</strong>dos.<br />

A língua não é, entretanto, apenas um meio de comunicação. Algumas <strong>da</strong>s<br />

funções <strong>da</strong> língua nem ao menos se detém sobre o processo comunicativo, como<br />

é o caso de considerá-la um sistema de categorias que nos permite organizar<br />

o conhecimento em estruturas signifi cativas. O conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

não chega até nós em formas originais, abstratas. Depende, em grande parte,<br />

de uma estruturação cognitiva, <strong>da</strong> organização <strong>da</strong>s experiências em termos<br />

compreensíveis. Para isto serve a língua. Desse modo, as funções primárias <strong>da</strong><br />

língua não são essencialmente comunicativas: a língua tem função simbólica, já<br />

que é uma forma de conhecimento construí<strong>da</strong> coletivamente na socie<strong>da</strong>de que<br />

nos permite estruturar a experiência humana de forma signifi cativa. Tem também<br />

função discursivo-interativa, pois nos permite compartilhar essas experiências e<br />

conhecimentos de modo intersubjetivo na cultura.<br />

M. A. K. Halli<strong>da</strong>y<br />

O lingüista britânico Michael Halli<strong>da</strong>y acredita que a função<br />

comunicativa proposta por Jakobson se desdobra em duas<br />

funções: a interpessoal e a textual, às quais acrescenta uma<br />

terceira – a função ideacional. Por esta função, compreende-se<br />

a linguagem como um sistema organizador dos fenômenos do<br />

mundo, capaz de fi ltrar, a partir do signifi cados <strong>da</strong>s estruturas<br />

lingüísticas, a reali<strong>da</strong>de de modo compreensível e acessível<br />

aos falantes. A função interpessoal oferece aos falantes a<br />

oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de organizar seus papéis na interação, segundo as<br />

situações sociocomunicativas do discurso. Por função textual,<br />

entende-se que a língua se apresenta de modo pertinente<br />

à situação de enunciação, e não como um mero conjunto de<br />

palavras e orações gramaticais (HALLIDAY, 1978, p. 21-22).


AGORA É SUA VEZ:<br />

• Escolha alguns textos de jornais, revistas, livros didáticos, publici<strong>da</strong>de, etc.<br />

e identifi que as funções <strong>da</strong> linguagem presentes nos diversos exemplos que<br />

você escolheu.<br />

• Observe os diferentes códigos e linguagens (em sentido amplo) existentes ao<br />

seu redor (sinais de trânsito, gestos, comunicação animal, etc.) e compare-os<br />

com a linguagem verbal humana, destacando que características podem ser<br />

encontra<strong>da</strong>s nos diferentes tipos de linguagens.<br />

• Em função <strong>da</strong> leitura do texto, respon<strong>da</strong>:<br />

1 - Sobre quais tipos de linguagem a Lingüística não se interessa?<br />

2 - Esses tipos de linguagem poderiam ser objetos de estudo de quais<br />

ciências ou teorias?<br />

239


UNIDADE III<br />

A DIMENSÃO ESCRITA, ORAL E GESTUAL DA<br />

LINGUAGEM<br />

Leitura Obrigatória:<br />

STUBBS, Michael. A língua na educação. In Língua Materna. Letramento,<br />

variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002, p. 128-136.<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

3.1. Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des Escrita e Oral<br />

A língua é compreendi<strong>da</strong> formalmente como um conjunto de signos<br />

convencionais usados pelos membros de uma mesma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Isto é, um<br />

grupo social convenciona e utiliza um conjunto de elementos representativos <strong>da</strong>s<br />

signifi cações presentes no cotidiano. Desse modo, o signo lingüístico se estrutura<br />

em duas facetas que correspondem aos aspectos <strong>da</strong> linguagem humana: um<br />

signifi cante que é uma estrutura formal <strong>da</strong> língua a que se chega a partir <strong>da</strong>s<br />

regras combinatórias e distribucionais dos menores elementos articuláveis (os<br />

fonemas ou sons; os morfemas ou formas); e um signifi cado que corresponde ao<br />

conteúdo signifi cativo <strong>da</strong>quilo que as formas <strong>da</strong> língua expressam.<br />

O signifi cante indica, na utilização <strong>da</strong> língua humana, um plano de<br />

expressão, ou seja, a concretização <strong>da</strong> língua em uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de apropria<strong>da</strong><br />

para a transmissão de conteúdos e mensagens. A mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de primeira de uso <strong>da</strong><br />

língua é a fala. Ca<strong>da</strong> pessoa, ao utilizar a língua do seu grupo social, o faz de uma<br />

forma individual, personaliza<strong>da</strong>, <strong>da</strong>ndo preferência a determina<strong>da</strong>s construções<br />

ou palavras. Isso é uma característica <strong>da</strong> fala. Entretanto, por mais criativa que<br />

seja, a fala está conti<strong>da</strong> no conjunto mais amplo <strong>da</strong> língua, de modo a tornar o<br />

falante entendido por todos os membros <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística.<br />

Outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de expressão e concretização <strong>da</strong> língua é a escrita.<br />

Desnecessário dizer que a escrita tem sido objeto <strong>da</strong> maioria dos estudos sobre<br />

a língua. Desde os primeiros gramáticos hindus, aos lingüistas históricos, até os<br />

dias de hoje, a língua escrita é objeto privilegiado de estudos, por razões que não<br />

são necessariamente lingüísticas, já que a escrita exerce um papel predominante<br />

nas socie<strong>da</strong>des tecnológicas atuais, <strong>da</strong>ndo aos seus usuários o status de letrados,<br />

competentes, intelectuais.<br />

241


242<br />

Apenas a partir dos estudos lingüísticos do século XX, derivados do<br />

postulado <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de essencial entre as línguas e do caráter universal do<br />

sistema lingüístico, é que línguas naturais sem escrita passaram a ser objetos <strong>da</strong><br />

descrição dos lingüistas. Esse avanço trouxe a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong> para os estudos<br />

acadêmicos, que passaram a conceber, entre outras coisas, a existência de variações<br />

lingüísticas impulsiona<strong>da</strong>s por regras observáveis na fala dos indivíduos. Essa<br />

concepção tem como repercussão mais importante a impossibili<strong>da</strong>de de se tratar<br />

varie<strong>da</strong>des e línguas como melhores, mais complexas ou mais elabora<strong>da</strong>s que<br />

outras, uma vez que sua ca<strong>da</strong> língua a<strong>da</strong>pta-se às necessi<strong>da</strong>de dos falantes, tanto<br />

tecnológicas quanto culturais.<br />

A lingüística na moderni<strong>da</strong>de consegue, desse modo, equilibrar o peso<br />

social <strong>da</strong> escrita, evitando que falantes de varie<strong>da</strong>des fala<strong>da</strong>s sejam objeto de<br />

preconceitos sociais. Entre os argumentos usados para esse fi m, estão o de que a<br />

língua fala<strong>da</strong> exerce priori<strong>da</strong>de histórica, estrutural, funcional e biológica sobre a<br />

escrita (Cf. LYONS, 1987, p. 25-28).<br />

1 - Por priori<strong>da</strong>de histórica entende-se o fato de a fala ser comum a to<strong>da</strong>s<br />

as socie<strong>da</strong>des humanas, desde que a espécie humana desenvolveu essa<br />

capaci<strong>da</strong>de. Não se tem notícias de culturas priva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> fala, mas podemos<br />

encontrar inúmeros povos que não possuem uma escrita. Até o século XIX,<br />

por exemplo, a maior parte <strong>da</strong> população mundial era analfabeta, e o mesmo<br />

ain<strong>da</strong> acontece em vários paises do mundo. Isto não quer dizer, entretanto,<br />

que a capaci<strong>da</strong>de lingüística desses indivíduos seja reduzi<strong>da</strong>, ou que suas<br />

práticas culturais não sejam civiliza<strong>da</strong>s. Grandes descobertas mundiais<br />

ocorreram em épocas em que a escrita era privilégio de muito poucos.<br />

2 - Por priori<strong>da</strong>de estrutural compreende-se que a língua fala<strong>da</strong>, em uma<br />

situação idealiza<strong>da</strong>, tem estruturas mais básicas as quais são reproduzi<strong>da</strong>s<br />

na escrita. Por exemplo, o fato de os sons <strong>da</strong> fala combinarem-se entre si na<br />

produção de enunciados, refl ete uma estrutura que ocorre posteriormente<br />

na escrita, com <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s gráfi cas que se combinam <strong>da</strong> produção de palavras.<br />

No caso <strong>da</strong> escrita alfabética, percebe-se, por exemplo, que os símbolos<br />

gráfi cos são representações dos sons <strong>da</strong> língua fala<strong>da</strong>. Essa proprie<strong>da</strong>de não<br />

se aplica em línguas com sistemas escritos ideacionais, como os hieróglifos<br />

ou os ideogramas <strong>da</strong>s línguas orientais, como o japonês e o chinês.<br />

3 - A priori<strong>da</strong>de funcional indica que a fala, mesmo nas culturas em que a escrita<br />

faz parte, de maneira fortemente arraiga<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des burocráticas,<br />

tecnológicas, industriais, é ain<strong>da</strong> a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de utiliza<strong>da</strong> na maioria <strong>da</strong>s<br />

situações de uso <strong>da</strong> língua pelos falantes. Cotidianamente, tanto em situações<br />

que exigem maior formali<strong>da</strong>de, quanto naquelas mais informais, a fala tem<br />

priori<strong>da</strong>de de uso, sendo a escrita usa<strong>da</strong> de maneira complementar ou<br />

acessória, ou quando o canal vocal-auditivo se torna inefi ciente.<br />

4 - A priori<strong>da</strong>de biológica <strong>da</strong> fala sobre a escrita faz parte de um campo teórico<br />

que acredita que o homem é geneticamente programado para a linguagem,<br />

sendo essa um produto <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> espécie, que nos permite adquirir a<br />

língua a que somos expostos, produzindo e reconhecendo, primeiramente, e<br />

em situações normais, os sons <strong>da</strong> fala. Neste sentido, a priori<strong>da</strong>de biológica<br />

indica que não aprendemos a língua em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong>, mas a<br />

adquirimos naturalmente. A escrita por outro lado, é o resultado de um<br />

processo de aprendizagem não natural, e tem natureza técnica.


3.1.1. Fala e Escrita<br />

Através dos tempos, a língua escrita foi alça<strong>da</strong> à condição de prestígio na<br />

socie<strong>da</strong>de, tanto porque foi alvo do maior número de estudos <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong><br />

linguagem, <strong>da</strong> fi lologia, <strong>da</strong> gramática, etc, quanto porque este sempre associa<strong>da</strong><br />

às práticas intelectuais, eruditas, domínio de poucos ‘iluminados’, especialmente<br />

em séculos passados. Essas duas razões do privilégio atribuído à língua escrita<br />

têm uma base comum, o prestígio sócio-político que os usuários <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

escrita sempre tiveram na socie<strong>da</strong>de.<br />

Com a fi nali<strong>da</strong>de de, ca<strong>da</strong> vez mais, distanciar a língua escrita (dos poucos<br />

esclarecidos) <strong>da</strong> língua oral (a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> “massa”) e, com isso, acentuar<br />

as diferenças sociais entre esses dois grupos, muitos teóricos geraram quadros<br />

comparativos em que demonstravam a natureza complexa, erudita <strong>da</strong> escrita, em<br />

relação à realização quase simplória <strong>da</strong> fala. Ingedore Koch, lingüista brasileira,<br />

ao criticar essas teorias, apresenta um quadro que sintetiza as posições dos<br />

teóricos a respeito <strong>da</strong>s diferenças entre fala e escrita (1992, p. 68-69).<br />

FALA<br />

1. não-planeja<strong>da</strong><br />

2. fragmentária<br />

3. incompleta<br />

4. pouco elabora<strong>da</strong><br />

5. predominância de frases curtas, simples ou coordena<strong>da</strong>s<br />

6. pouco uso de passivas<br />

ESCRITA<br />

1. planeja<strong>da</strong><br />

2. não-fragmentária<br />

3. completa<br />

4. elabora<strong>da</strong><br />

5. predominância de frases complexas, com subordinação abun<strong>da</strong>nte<br />

6. emprego freqüente de passivas<br />

Outras comparações encontra<strong>da</strong> sobre fala e escrita destacam as seguintes<br />

diferenças:<br />

FALA<br />

1. Vocabulário restrito, emprego de gírias, neologismos,<br />

onomatopéias, etc.<br />

2. Excesso de repetições<br />

3. Emprego restrito de tempos verbais<br />

4. Emprego inadequado de pronomes relativos<br />

5. Omissão de palavras<br />

6. Frases feitas, chavões, provérbios<br />

243


244<br />

ESCRITA<br />

1. Vocabulário amplo, variado, uso de termos técnicos, eruditos,<br />

abstratos<br />

2. Sintaxe elabora<strong>da</strong><br />

3. Uso do mais que perfeito, subjuntivo, futuro do pretérito<br />

4. Adequação pronominal<br />

5. Clareza, sem omissões e ambigüi<strong>da</strong>des<br />

6. Uso criativo <strong>da</strong>s frases<br />

Para Koch, as distinções apresenta<strong>da</strong>s nem sempre distinguem fala e<br />

escrita, especialmente porque uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de pode se aproximar <strong>da</strong> outras em<br />

situações mais ou menos formais, ou seja, a escrita informal se aproxima <strong>da</strong> fala,<br />

enquanto que a fala formal se aproxima <strong>da</strong> escrita, em situações comunicativas<br />

varia<strong>da</strong>s. Desse modo, fala e escrita, ao invés de mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des opostas, estão em<br />

relação contínua no processo de interação verbal.<br />

Quanto às diferenças, a maior crítica que se faz aos quadros apresentados<br />

é que eles analisam mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des diferentes de língua, aplicando-lhes os<br />

mesmo critérios, ou seja, as características encontra<strong>da</strong>s apenas na escrita. Desse<br />

modo, quando se diz que a fala não é planeja<strong>da</strong>, deve-se analisar esse critério<br />

em referência à escrita: a fala não passa, de fato, pelo mesmo processo de<br />

planejamento prévio por que passa a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita. O planejamento <strong>da</strong> fala,<br />

em função de sua natureza interacional, é localmente planeja<strong>da</strong>, isto é, o falante<br />

planeja e replaneja sua contribuição a ca<strong>da</strong> momento <strong>da</strong> interação, em tempo real.<br />

Pelo fato de o texto falado não se apresentar pronto, acabado, mas em<br />

processo de construção, do qual os próprios falantes fazem parte, é comum que<br />

apresente algumas descontinui<strong>da</strong>des, confundi<strong>da</strong>s com incompletude e falta<br />

de elaboração, se aplicarmos os critérios <strong>da</strong> escrita, em que o texto já é produto<br />

acabado e, por isso, não precisa de revisão. As descontinui<strong>da</strong>des, seja na<br />

progressão de idéias, seja na utilização de recursos lingüísticos, são devi<strong>da</strong>s aos<br />

fatores sócio-cognitivos envolvidos na produção, compreensão e interpretação<br />

do texto falado, ou seja, a função pragmática que privilegia o uso <strong>da</strong> língua é<br />

prioritária sobre as estruturas usa<strong>da</strong>s. Nesse sentido, a sintaxe <strong>da</strong> língua fala<strong>da</strong><br />

é particular, não podendo ser medi<strong>da</strong> com relação à sintaxe <strong>da</strong> escrita. Mesmo<br />

assim, as estruturas <strong>da</strong> fala as estruturas gerais permiti<strong>da</strong>s pela organização <strong>da</strong><br />

língua.<br />

3.1.2 Orali<strong>da</strong>de e Letramento<br />

Leitura Obrigatória:<br />

BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: <strong>da</strong> prescrição gramatical à educação<br />

lingüística. In Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo:<br />

Parábola, 2002, p. 51-61.<br />

STUBBS, Michael. A língua na educação. In Língua Materna. Letramento,<br />

variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002, p. 101-128.


REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

Como vimos anteriormente, fala e escrita são mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des que não podem<br />

ser considera<strong>da</strong>s no plano <strong>da</strong>s oposições, mas no plano <strong>da</strong>s continui<strong>da</strong>des, uma<br />

vez que nenhum usuário <strong>da</strong> língua, independente de nível de escolari<strong>da</strong>de<br />

ou do grau de formali<strong>da</strong>de do uso <strong>da</strong> língua, usa apenas uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

ou outra. Desse modo, ao estu<strong>da</strong>rmos fala e escrita de modo integrado, vimos<br />

que são mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des funcionais, isto é, que se adequam às varia<strong>da</strong>s situações<br />

comunicativas de uso <strong>da</strong> língua pelo falante, e que estão em relação de<br />

complementari<strong>da</strong>de, ao invés de exclusão.<br />

Fala e escrita, como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> língua, se inserem no conjunto de<br />

práticas sociais desempenha<strong>da</strong>s pelo falante. Essas práticas exigem o domínio de<br />

certos modos de comunicação e interação social, que são adquiri<strong>da</strong>s no convívio<br />

social entre os falantes, ou aprendi<strong>da</strong>s em ambientes formais de escolarização.<br />

Destacaremos como práticas sociais que exigem o domínio de uma <strong>da</strong>s, ou de<br />

ambas, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> língua, a orali<strong>da</strong>de e o letramento.<br />

O letramento é a prática social deriva<strong>da</strong> do chamado ‘impacto social <strong>da</strong><br />

escrita’ nas socie<strong>da</strong>des modernas, que passaram pelo processo de aquisição<br />

<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita por meio <strong>da</strong> escolarização e <strong>da</strong> alfabetização. Apesar<br />

disso, o letramento não se refere apenas às práticas de decodifi cação textual<br />

ou à aprendizagem de um sistema alfabético. Em uma socie<strong>da</strong>de domina<strong>da</strong><br />

pela escrita, mesmo as ativi<strong>da</strong>des cotidianas do chamados ‘iletrados’ (melhor<br />

seria dizer os não-alfabetizados) exigem a presença de práticas de letramento,<br />

uma vez que as práticas sociais desses indivíduos são condiciona<strong>da</strong>s ao uso <strong>da</strong><br />

escrita. Exemplos nesse sentido, são as ativi<strong>da</strong>des de tomar um ônibus, comprar<br />

alimentos em supermercado, vender bens, <strong>da</strong>r e receber troco, assistir a um fi lme,<br />

etc.<br />

Os eventos de letramento, em geral, não são destacados de situações de<br />

orali<strong>da</strong>de (como nos exemplos acima). Embora, ca<strong>da</strong> vez mais, se procure tratar<br />

letramento e orali<strong>da</strong>de como dois pólos de um contínuo, ain<strong>da</strong> há uma certa<br />

estratifi cação social quanto aos usuários <strong>da</strong> escrita serem usuários mais efetivos<br />

<strong>da</strong>s práticas de letramento, especialmente em nível formal; e os analfabetos serem<br />

usuários mais efetivos <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, via de regra, informal.<br />

Essa análise se fun<strong>da</strong>menta exatamente no fato de que <strong>da</strong>mos à escrita uma<br />

superiori<strong>da</strong>de maciça em relação à fala. Desse modo, a tradição grafocêntrica<br />

pressupõe que os indivíduos que passaram pela aquisição formal <strong>da</strong> escrita<br />

são socialmente mais competentes e mais desenvolvidos cognitivamente. Essa<br />

pressuposição não tem sustentação científi ca e se revela uma concepção defi citária<br />

<strong>da</strong>s minorias sociais, calca<strong>da</strong> em profundo etnocentrismo.<br />

Ain<strong>da</strong> que a escrita tenha prestígio ímpar na socie<strong>da</strong>de atual, em vista de<br />

sua importância para as ativi<strong>da</strong>des diárias dos indivíduos, não é possível, por<br />

uma questão de priori<strong>da</strong>de histórica <strong>da</strong> fala, afi rmar que aquela seja a forma mais<br />

245


246<br />

natural e mais funcional de comunicação e representação humana. A fala, por ser<br />

anterior à escrita, tem aceitação irrestrita em qualquer cultura humana, enquanto<br />

que em alguns lugares do mundo, as civilizações sobrevivem razoavelmente bem<br />

sem o uso <strong>da</strong> escrita.<br />

Não devemos, entretanto, equilibrar escrita e fala em uma balança para ver<br />

quem é melhor ou pior. A linguagem humana não funciona assim, e pensar dessa<br />

maneira é o grande erro dos seguidores <strong>da</strong> supremacia <strong>da</strong> escrita sobre a fala.<br />

Enquanto muitas práticas sociais <strong>da</strong> nossa cultura são práticas de letramento,<br />

fortemente vincula<strong>da</strong>s à escrita, outras tantas são práticas de orali<strong>da</strong>de e, por isso,<br />

vincula<strong>da</strong>s mais diretamente à língua fala<strong>da</strong>.<br />

A orali<strong>da</strong>de, segundo Marcuschi (2001, p. 25) é uma prática social interativa<br />

que tens fi ns comunicativos e se apresenta em diversas formas e gêneros textuais<br />

fun<strong>da</strong>dos na realização sonora <strong>da</strong> língua. As práticas de orali<strong>da</strong>de, numa<br />

socie<strong>da</strong>de como a nossa, são intensas e, poucas vezes, dissocia<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s práticas de<br />

letramento. Ou seja, a maioria dos contextos em que usamos a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> língua são contextos que também permitem e exigem práticas de letramento.<br />

Dessa maneira, dissociar fala de escrita nessa socie<strong>da</strong>de é desconsiderar que a<br />

língua pode se realizar de modo tanto falado quando escrito em contextos que<br />

exigem práticas de letramento e orali<strong>da</strong>de.<br />

O gráfi co abaixo ilustra a situação <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des lingüísticas em nosso<br />

dia-a-dia. Ao escrevermos um bilhete, utilizamos a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita <strong>da</strong> língua.<br />

Essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de, entretanto, se aproxima muito mais <strong>da</strong>s práticas de orali<strong>da</strong>de<br />

do que de letramento. Basta comparar, por exemplo, um bilhete com uma carta<br />

formal, ou com um texto científi co, para percebermos a natureza quase fala<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>quele texto. Por outro lado, ao proferirmos uma palestra ou conferência,<br />

utilizamos uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong> <strong>da</strong> língua. Este texto, porém, vincula-se<br />

muito mais fortemente às praticas de letramento do que de orali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><strong>da</strong> sua<br />

formali<strong>da</strong>de e sua correlação com os usos especializados <strong>da</strong> escrita. Assim, entre<br />

o pólo <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de e o pólo do letramento, encontramos a possibili<strong>da</strong>de de<br />

produção de textos orais e escritos que se vinculam ora a um pólo, ora a outro.


3.2 Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de gestual<br />

Estu<strong>da</strong>mos que, apesar de a lingüística interessar-se apenas pela linguagem<br />

verbal, a comunicação humana pode ser feita pelo acesso a diversos códigos e<br />

linguagens, como os gestos.<br />

Os gestos, hoje, estão no centro <strong>da</strong>s discussões sobre a origem <strong>da</strong><br />

linguagem humana. Alguns teóricos, ocupados com os modos de comunicação<br />

entre os animais, apontam para a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de gestual como a primeira forma<br />

de comunicação do homem primitivo. Entre as evidências para isso, estão o fato<br />

de que grande parte de nossa comunicação, mesmo nos dias atuais, depende <strong>da</strong><br />

utilização de gestos, que complementam e, às vezes, sinalizam nossa signifi cação;<br />

bem como o fatos de inúmeros animais, entres os quais, primatas como<br />

chimpanzés, gorilas e bonobos, que são muito próximos do homem em termos<br />

biológicos, desenvolverem com relativa complexi<strong>da</strong>de formas de comunicação<br />

através dos gestos.<br />

As discussões não repousam apenas sobre os gestos complementares ao<br />

uso <strong>da</strong> língua verbal, já que seu uso é determinado culturalmente e explicado<br />

por diversas teorias como a publici<strong>da</strong>de, a psicologia, a lingüística forense, etc.<br />

Também tem ganhado destaque o uso dos gestos por com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que não<br />

têm acesso à lingua fala<strong>da</strong>, como no caso dos surdos. Esse uso, diferentemente<br />

<strong>da</strong> denomina<strong>da</strong> linguagem gestual, quase sempre aponta<strong>da</strong> como forma<br />

de comunicação, seria semelhante em várias aspectos à mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong>,<br />

naturalmente sem recorrer ao canal vocal-auditivo, mas ao gesto-visual. Essa<br />

ver<strong>da</strong>deira mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de uso <strong>da</strong> linguagem humana tem status de língua e<br />

apresenta características encontra<strong>da</strong>s na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de verbal, como o uso de regras<br />

estruturais próprias, entoação, prosódia, etc. Veremos agora as características que<br />

diferenciam essas duas forma de comunicação pro meio de gestos.<br />

3.2.1 A linguagem gestual<br />

Os sinais não verbais assumem um papel de tamanha importância na<br />

comunicação que, muitas vezes, os signifi cados de nossos enunciados, quando<br />

acompanhados de gestos, expressões faciais ou corporais, assumem uma<br />

dimensão bastante diferente dos sentidos originais, literais, como no caso <strong>da</strong>s<br />

ironias.<br />

A manifestação dos sentidos na comunicação não verbal pode se <strong>da</strong>r<br />

por meio de gestos manuais, quando, por exemplo, levantamos o polegar para<br />

sinalizar que tudo está bem, ou quando acenamos adeus ou olá. Outras vezes, por<br />

meio de nossas expressões faciais, sinalizamos emoções, sentimentos, atitudes,<br />

que combinados com a linguagem verbal, revelam signifi cações além <strong>da</strong>s próprias<br />

palavras.<br />

A linguagem gestual se benefi cia também do que os teóricos costumam<br />

chamar de proxêmica, isto é, o estudo do espaço pessoal nos atos comunicativos.<br />

Por exemplo, a proximi<strong>da</strong>de que mantemos com nossos interlocutores pode<br />

indicar intimi<strong>da</strong>de, interesse, simpatia, ou frieza, distanciamento e formali<strong>da</strong>de.<br />

Assim como a distância, a postura em relação à comunicação pode indicar<br />

desinteresse, quando cruzamos os braços, por exemplo.<br />

247


248<br />

3.2.2 As línguas de sinais<br />

A Lei N° 10.436, de 24 de abril de 2002, no seu artigo 4º, dispõe que:<br />

“O sistema educacional federal e sistemas educacionais estaduais, municipais<br />

e do Distrito <strong>Federal</strong> devem garantir a inclusão nos cursos de formação<br />

de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis<br />

médio e superior, do ensino <strong>da</strong> Língua Brasileira de Sinais - Libras, como<br />

parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme<br />

legislação vigente”.<br />

A Língua Brasileira de Sinais constitui, portanto, um sistema lingüístico de<br />

comunicação e representação de fatos e fenômenos, em com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de surdos<br />

no Brasil, cuja forma de expressão é de natureza visual-motora, com estrutura<br />

gramatical própria. Os sinais <strong>da</strong> LIBRAS são formados por meio <strong>da</strong> combinação<br />

de formas e de movimentos <strong>da</strong>s mãos e de pontos de referência no corpo ou no<br />

espaço.<br />

A LIBRAS foi desenvolvi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> língua de sinais francesa. Não existe<br />

uma língua de sinais comuns a todos os países. Assim, como a língua verbal, ca<strong>da</strong><br />

cultura adota a língua de sinais que se adequa às necessi<strong>da</strong>des comunicativas dos<br />

seus usuários. No caso do Brasil, a LIBRAS possui estrutura própria, diferente <strong>da</strong><br />

estrutura <strong>da</strong> língua portuguesa. Não é possível mais dizer que a LIBRAS se trate<br />

de uma linguagem, pois possui características próprias de língua, entre elas: a<br />

arbitrarie<strong>da</strong>de dos seus símbolos; a natureza lingüística do seu sistema; o fato ser<br />

uma forma natural de expressão, partilha<strong>da</strong> por uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>; proprie<strong>da</strong>des<br />

de criativi<strong>da</strong>de e recursivi<strong>da</strong>de; proprie<strong>da</strong>des de renovação e evolução; sua<br />

aprendizagem/ aquisição é cultural/natural.<br />

Do mesmo modo que as línguas fala<strong>da</strong>s, ca<strong>da</strong> língua de sinais usa<strong>da</strong> em<br />

diversos países apresenta as variações, os falares regionais ou os dialetos <strong>da</strong>s<br />

línguas orais. Essas variações se devem a culturas diferentes e a infl uências<br />

diversas no sistema de ensino, por exemplo.<br />

Não se sabe quando as línguas de sinais foram cria<strong>da</strong>s, mas sua origem<br />

remonta possivelmente à mesma época ou a épocas anteriores àquelas em<br />

que foram sendo desenvolvi<strong>da</strong>s as línguas orais. Uma pista interessante<br />

para esta possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s línguas de sinais terem se desenvolvido primeiro<br />

que as línguas orais é o fato que o bebê humano desenvolve a coordenação<br />

motora dos membros antes de se tornar capaz de coordenar o aparelho<br />

fonoarticulatório. As línguas de sinais são criações espontâneas do ser humano<br />

e se aprimoram exatamente <strong>da</strong> mesma forma que as línguas orais. Nenhuma<br />

língua é superior ou inferior a outra, ca<strong>da</strong> língua se desenvolve e expande na<br />

medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de seus usuários.<br />

Para ver o Dicionário de Libras, acesse: htt p://www.acessobrasil.org.br/libras/


AGORA É SUA VEZ:<br />

• Monitore seu uso <strong>da</strong> língua. No dia-a-dia qual mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de você usa com<br />

mais freqüência? Que importância essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de tem para a média dos<br />

falantes ao seu redor.<br />

• Encontre textos (orais e escritos) que demonstrem orali<strong>da</strong>de e letramento<br />

como contínuos.<br />

• Faça uma lista dos gestos que você mais usa no dia-a-dia. Como eles te<br />

aju<strong>da</strong>m na comunicação?<br />

PESQUISE:<br />

• Busque na Internet informações sobre as diferenças entre a Língua Brasileira<br />

de Sinais – LIBRAS e a Língua Portuguesa, do ponto de vista dos textos, <strong>da</strong><br />

gramática, <strong>da</strong> entoação, etc.<br />

• Faça um texto ilustrando essas diferenças<br />

• Compartilhe com seus colegas os <strong>da</strong>dos que vocês encontraram.<br />

REFLITA:<br />

• Uma lei federal tornou obrigatório o ensino de LIBRAS nos cursos de<br />

licenciatura. Você já sabe LIBRAS?<br />

• O que o professor deve saber (e fazer) para tornar sua aula mais inclusiva<br />

para alunos surdos?<br />

249


UNIDADE IV<br />

A NORMA LINGÜÍSTICA<br />

Leitura Obrigatória:<br />

BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: <strong>da</strong> prescrição gramatical à educação<br />

lingüística. In Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo:<br />

Parábola, 2002, p. 13-51<br />

GAGNÉ, Gilles. A norma e o ensino <strong>da</strong> língua materna. In Língua Materna.<br />

Letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002, p. 196-238.<br />

REFLEXÃO: Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem<br />

maior aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

4.1. Descrição do Sistema Da Língua<br />

A língua, como objeto <strong>da</strong> lingüística, é um sistema formal composto de<br />

<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que se combinam entre si a partir de regras potencialmente conheci<strong>da</strong>s<br />

por todos os usuários. Apesar de as línguas naturais diferirem entre si (compare,<br />

por exemplo, o português e o alemão), grande parte <strong>da</strong>s leis gerais <strong>da</strong> língua são<br />

aplicáveis a qualquer realização lingüística adota<strong>da</strong> por um povo. Por exemplo,<br />

to<strong>da</strong>s as línguas descritas na atuali<strong>da</strong>de possuem um sistema verbal, ou adotam<br />

uma seqüência sintática para construir frases, ou ain<strong>da</strong>, possuem elementos que<br />

se articulam em dois níveis para formar enunciados inteligíveis.<br />

Ain<strong>da</strong> que algumas regras gerais sejam comuns a to<strong>da</strong>s as línguas, certos<br />

princípios aplicam-se a umas e não a outras, como ocorre com os sistemas de<br />

casos – terminações nas palavras que marcam a função sintática do elemento –<br />

em línguas como o grego, o latim e o alemão. Em português, a função sintática<br />

do elemento é observa<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong>s palavras na frase e não pela<br />

terminação do elemento. Quanto à ordem <strong>da</strong>s palavras, algumas línguas adotam<br />

a estrutura S-V-O (sujeito-verbo-objeto), enquanto outras adotam ordens<br />

diferentes.<br />

A lingüística descreve o sistema <strong>da</strong> língua sob duas óticas: a primeira<br />

consiste em teorizar sobre o sistema lingüístico a partir <strong>da</strong> observação do lingüista<br />

sobre as línguas que analisa. Esta ativi<strong>da</strong>de produz um conhecimento teórico<br />

geral aplicável a qualquer língua particular. Dentre as características descritivas<br />

<strong>da</strong> língua, sob essa primeira ótica, podem ser aponta<strong>da</strong>s as regras combinatórias<br />

251


252<br />

dos seus elementos, as regras de sua produtivi<strong>da</strong>de, as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> dupla<br />

articulação, etc.<br />

A segun<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de descrição consiste em analisar uma língua<br />

particular e perceber as regras efetivamente utiliza<strong>da</strong>s pelos seus falantes,<br />

correlacionando-as às proprie<strong>da</strong>des gerais <strong>da</strong> língua e apontando suas<br />

especifi ci<strong>da</strong>des. A lingüística norte-americana foi bastante produtiva neste<br />

segundo tipo de análise, descrevendo e documentando diversas línguas indígenas<br />

em risco de extinção, graças ao aparato teórico recebido <strong>da</strong> antropologia.<br />

Deve-se ter em mente que a lingüística, ao fazer uma descrição cientifi ca <strong>da</strong>s<br />

línguas, contribuiu não apenas para documentar falares e dialetos, geralmente<br />

negligenciados pela cultura escrita de diversos paises, mas também para apontar<br />

uma igual<strong>da</strong>de essencial entre to<strong>da</strong>s as línguas, independentemente do nível<br />

de civilização ocidental encontrado entre os seus falantes. Com isso, a visão<br />

etnocêntrica de que algumas línguas, nota<strong>da</strong>mente as européias, seriam mais<br />

complexas do que as línguas indígenas americanas, perdeu sustentação científi ca<br />

pelo postulado de que to<strong>da</strong>s as línguas são complexas e se adequam à totali<strong>da</strong>de<br />

de situações comunicativas exigi<strong>da</strong>s pelos falantes.<br />

PESQUISE:<br />

• Leia a opinião de um dos gramáticos de maior renome na atuali<strong>da</strong>de<br />

a respeito <strong>da</strong> norma gramatical, o membro <strong>da</strong> Academia Brasileira de<br />

Letras, Evanildo Bechara:<br />

htt p://www.ufpe.br/ascom/cconline/021/opiniao.html<br />

• Agora leia a entrevista com Luiz Carlos Travaglia sobre a língua fala<strong>da</strong> e<br />

o ensino de Português:<br />

htt p://www.letramagna.com/travagliaentre.htm<br />

REFLITA:<br />

• Em sua opinião, o uso <strong>da</strong> língua portuguesa, em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong>,<br />

deve obedecer às normas <strong>da</strong> gramática tradicional em to<strong>da</strong>s as situações?<br />

Por quê?<br />

• Você acredita que as pessoas sem escolari<strong>da</strong>de falam “errado”,<br />

enquanto que as pessoas mais escolariza<strong>da</strong>s sempre usam o português<br />

corretamente?<br />

• Um falante nordestino pode ser ‘corrigido’ por um falante do sudeste<br />

porque usa a língua fala<strong>da</strong> de maneira diferente deste?<br />

4.2 Prescrição Normativa<br />

A descrição cientifi ca <strong>da</strong>s línguas surgiu em um momento em que se<br />

perpetuava uma tradição purista e utópica <strong>da</strong> linguagem. Essa tradição,<br />

pe<strong>da</strong>gógica e não científi ca, concebia a língua como um instrumento de<br />

representação do pensamento que devia seguir, <strong>da</strong> maneira mais estrita possível,<br />

as regras de uso verifi ca<strong>da</strong>s no pensamento dos grandes autores <strong>da</strong> literatura.<br />

Assim, a tradição pe<strong>da</strong>gógica reforçava (e ain<strong>da</strong> reforça) a homogenei<strong>da</strong>de do


código lingüístico, isto é, desconsiderava qualquer tipo de variação não prevista<br />

para aquele padrão, e considerava a norma padrão escrita a única a ser almeja<strong>da</strong><br />

pelos falantes, exatamente porque era superior às outras.<br />

Chamamos essa tradição de pe<strong>da</strong>gógica precisamente porque é aquela<br />

encontra<strong>da</strong> nos livros, dicionários e gramáticas, usados na escola com a fi nali<strong>da</strong>de<br />

única de fazer o aluno adquirir tal código padrão. Essa tradição não concebe a<br />

língua como um fenômeno dinâmico, que varia no tempo e no espaço, e se a<strong>da</strong>pta<br />

à cultura e às necessi<strong>da</strong>des dos seus usuários. Pelo contrário, adota a perspectiva<br />

idealista de que a língua é um bem a ser cultivado e preservado, inclusive quanto<br />

à presença de estrangeirismos, regionalismos, gírias, etc. que a desvirtuam e a<br />

corrompem.<br />

Essa tradição prescritiva não descreve a língua dos falantes. Descreve uma<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de língua, encontra<strong>da</strong> entre os intelectuais, cristaliza<strong>da</strong> em livros,<br />

textos científi cos e obras literárias, e elege as regras dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de como<br />

o padrão a ser imposto a todos os membros <strong>da</strong>quela com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística.<br />

Tal descrição, em geral, se confunde com a língua utiliza<strong>da</strong> pelas elites<br />

intelectualiza<strong>da</strong>s, nos grandes centros urbanos, mas se separa <strong>da</strong> língua dos<br />

trabalhadores, dos moradores de regiões economicamente menos desenvolvi<strong>da</strong>s,<br />

do meio rural, etc, gerando discriminação e preconceito contras essas minorias,<br />

bem como interferindo no sistema escolar público.<br />

O combate a essa concepção é de difícil execução, já o preconceito que dela<br />

advém está arraigado no imaginário do povo e é constantemente reforçado pela<br />

mídia e pela escola, que perpetuam mitos seculares e errôneos sobre o papel <strong>da</strong><br />

língua na socie<strong>da</strong>de.<br />

4.3 Gramática e Norma<br />

A norma lingüística consiste no consenso mínimo estabelecido em uma<br />

cultura, a partir <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des internas de uma língua, sobre as regras de usos<br />

lingüísticos adotados pelos falantes. A gramática, em geral, pode ser reconheci<strong>da</strong><br />

como o conjunto dessas normas; tradicionalmente, porém, chamamos gramática a<br />

descrição do modelo lingüístico de mais prestígio dentro de uma cultura, adotado<br />

como padrão a ser seguido por todos os falantes.<br />

Em lingüística, quando falamos em norma, pensamos em um conjunto<br />

de preceitos destinados a organizar a expressão <strong>da</strong> língua em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

fala<strong>da</strong>. Esses preceitos se relacionam aos usos fonológicos aceitos em uma língua,<br />

à utilização de traços supra-segmentais (entoação, altura, etc.) reconhecidos<br />

como pertencentes a essa língua, ao conjunto de regras sintáticas inteligíveis<br />

e interpretáveis por todos os falantes, e ao conjunto de regras de formação,<br />

produção e compreensão de itens lexicais (palavras), compatíveis com a língua<br />

em questão.<br />

A gramática, por outro lado, embora enfatize a necessi<strong>da</strong>de de seguir, na<br />

fala, um padrão lingüístico prestigioso, estabelece um conjunto de preceitos<br />

que organizam a correção <strong>da</strong> língua escrita, aplicado através <strong>da</strong> ortografi a, <strong>da</strong>s<br />

regras de sintaxe, concordância, regência, etc. As regras <strong>da</strong> escrita, mesmo em se<br />

tratando de língua padrão, não se aplicam do mesmo modo à língua fala<strong>da</strong>. Para<br />

comprovar esse fato, basta-se apenas comparar a fala dos indivíduos <strong>da</strong>s grandes<br />

capitais do Brasil, com nível superior de escolari<strong>da</strong>de, com sua escrita. Ambas<br />

253


254<br />

são considera<strong>da</strong>s língua padrão, porém a norma escrita não reproduz a norma <strong>da</strong><br />

fala.<br />

A lingüística, nos últimos anos, tem demonstrado através de projetos como<br />

o Norma Urbana Culta do Brasil (NURC), que a descrição <strong>da</strong> língua utiliza<strong>da</strong><br />

pelos brasileiros de maior escolarização e residentes nos grandes centros<br />

urbanos do Brasil tem se distanciado do padrão escrito prescrito pela Gramática<br />

Tradicional. Isto sugere uma adequação no tratamento <strong>da</strong> língua que explore<br />

as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des oral e escrita sob preceitos diferentes e que incorpore na norma<br />

gramatical as variações no uso do português.<br />

Aprofunde seus conhecimentos:<br />

Maria Helena Moura Neves discute o conceito de norma e as questões de<br />

uso <strong>da</strong> língua. Leia o texto e faça um resumo pessoal sobre o mesmo:<br />

htt p://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling12.htm<br />

José Luiz Fiorin escreve sobre o conceito de “erro” na Lingüística. Você<br />

concor<strong>da</strong> com ele. Leia e discuta esse texto em sala com seus colegas:<br />

htt p://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11199<br />

4.3.1 Conceito de Gramática<br />

O conceito de gramática se vincula fortemente à noção de sistema a que<br />

nos referimos acima e à noção de sincronia, ou seja, o recorte do estado atual <strong>da</strong><br />

língua feito para a descrição e análise do seu sistema, sem preocupações primárias<br />

com a evolução desse sistema ao longo do tempo.<br />

Como sistema, a língua é estrutura<strong>da</strong> por <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que se combinam<br />

através de regras que, por sua vez, delimitam as construções possíveis para<br />

os usuários de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Essas regras, em geral, são denomina<strong>da</strong>s<br />

de gramática <strong>da</strong> língua. O estudo dessas regras também é denominado de<br />

Gramática.<br />

O termo gramática nos chegou do grego, por intermédio do latim, com a<br />

“arte de ler e de escrever. Nesse sentido, apesar de abrangente, não é inadequado<br />

identifi car a gramática como um conjunto de regras que determinam o uso de<br />

uma língua em uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Este conjunto de regras adotado pelos falantes<br />

de uma língua de maneira convencional implica considerar corretos todos os usos<br />

aceitos por aquela com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Entretanto, na atuali<strong>da</strong>de, a função <strong>da</strong> gramática,<br />

especialmente na escola, é prescrever regras que devem ser usa<strong>da</strong>s por todos os<br />

falantes.<br />

A lingüística, como ciência <strong>da</strong> língua, postula uma concepção de gramática<br />

que tem a ver com as regras que são efetivamente usa<strong>da</strong>s pelos falantes,<br />

limitando-se, metodologicamente, a descrever essas regras e analisá-las, sem<br />

prescrever normas de uso. Apresentaremos, em segui<strong>da</strong> três concepções de<br />

gramática: duas científi cas e uma pe<strong>da</strong>gógica.


4.3.2 Gramática Interna<br />

O conceito científi co de gramática é aquele que pressupõe um saber<br />

interno ao individuo que o habilita a usar sua língua em to<strong>da</strong>s as situações<br />

signifi cativamente possíveis e a compreender os usos feitos por outros falantes<br />

que detêm esse mesmo conhecimento.<br />

Assim a gramática interna ou internaliza<strong>da</strong> é o conhecimento sobre o<br />

sistema de <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s e conteúdos <strong>da</strong> língua, distintos entre si, e que mantêm<br />

relações obrigatórias fi nitas. Essas relações são leis gerais ou normas que regem o<br />

uso <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de lingüística do falante.<br />

A gramática internaliza<strong>da</strong> pode ser explica<strong>da</strong> a partir de fatos lingüísticos<br />

típicos <strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong> criança e, ain<strong>da</strong>, por outros fatos encontrados na língua<br />

adulta. No processo de aquisição <strong>da</strong> linguagem a criança, ao pôr em prática as<br />

regras de uso <strong>da</strong> língua, cria hipóteses que diferem <strong>da</strong> linguagem dos adultos,<br />

como é o caso <strong>da</strong>s conjugações verbais. Se a criança apenas imitasse por<br />

aprendizado a fala adulta, é possível que usasse os verbos do mesmo modo<br />

destes, ou que “errasse” naquilo em que eles “erram”. No entanto, ao utilizar o<br />

sistema de conjugação dos verbos, ela usa regras internaliza<strong>da</strong>s que pressupõem<br />

a regulari<strong>da</strong>de dos verbos. Deste modo, a criança por não ter acesso, nesta fase,<br />

às irregulari<strong>da</strong>des, produz as construções “eu comi” e “eu trazi”, ou “eu canto” e<br />

“eu sabo” como se fossem to<strong>da</strong>s regulares.<br />

Também na linguagem infantil, e com mais freqüência na linguagem adulta,<br />

a hipercorreção é um fato lingüístico que confi rma a vali<strong>da</strong>de de uma teoria de<br />

gramática internaliza<strong>da</strong>. Por hipercorreção entende-se a avaliação que um falante<br />

faz <strong>da</strong>s estruturas lingüísticas que ele emprega em sua própria fala, a partir do<br />

conhecimento, geralmente precário, de outras estruturas supostamente mais<br />

corretas do que as que utiliza. Por exemplo, alguns falantes <strong>da</strong> zona rural utilizam<br />

um variável lingüística pela qual realizam um determinado fonema, representado<br />

na escrita por /lh/, através de outro fonema, representado grafi camente por<br />

/i/, como em velha/véia, fi lho/fi o, melhor/meió. Quando confrontados como<br />

outros falantes que realizam esse fonema segundo o português padrão, esse<br />

usuários, pela necessi<strong>da</strong>de de usar uma língua mais “correta” do ponto de vista<br />

pe<strong>da</strong>gógico, passam a substituir por /lh/ todos os usos de /i/, inclusive aqueles<br />

<strong>da</strong> língua padrão. Assim, passam não apenas a usar velha, fi lho e melhor,<br />

como a dizer coisas do tipo “telha de aranha”, “está de mal a pilhor”, “pilha do<br />

banheiro”, etc.<br />

4.3.3 Gramáticas descritivas<br />

A descrição <strong>da</strong>s normas de uso de uma língua verifi ca<strong>da</strong>s em uma<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> e sistematiza<strong>da</strong>s de acordo com os conhecimentos técnico-científi cos<br />

do analista é o que constitui uma gramática descritiva. Assim, a princípio, a<br />

distinção entre gramática internaliza<strong>da</strong> e descritiva não é necessária, senão para<br />

fi ns didáticos, uma vez que esta é simplesmente a análise cientifi ca <strong>da</strong>quela.<br />

A ática descritiva se propõe apenas a descrever as regras de como uma<br />

língua é realmente fala<strong>da</strong>, sem julgar o uso como correto ou incorreto, como faz<br />

a gramática prescritiva. A gramática descritivas analisa, pois, os usos <strong>da</strong> língua<br />

que uma determina<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística adota como adequados, os quais<br />

255


256<br />

se constituem de to<strong>da</strong>s as estruturas reconheci<strong>da</strong>s e aceitas pelos falantes <strong>da</strong><br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.<br />

A gramática descritiva não aponta erros dos falantes, inclusive porque<br />

a noção de erro diz respeito aos usos não autorizados pela com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. A<br />

gramática descritiva aponta na língua fala<strong>da</strong> por uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> opções de<br />

expressão que não se excluem, mas que coexistem e se prestam às fi nali<strong>da</strong>des<br />

comunicativas do falante. Desse modo, todos os falantes nativos de uma língua,<br />

a falam adequa<strong>da</strong>mente e isentos de erro, porque conhecem e usam as regras<br />

internas disponibiliza<strong>da</strong>s para aquela língua. A noção de erro se aplicaria mais<br />

aos usos <strong>da</strong> escrita do que aos usos <strong>da</strong> língua fala<strong>da</strong>.<br />

4.3.4 Gramáticas prescritivas<br />

As gramáticas prescritivas ou normativas consistem no estudo <strong>da</strong>s regras<br />

que um individuo precisa conhecer para falar e escrever corretamente uma<br />

língua. Evitaremos usar o termo ‘normativa’ para se referir à gramática prescritiva<br />

porque, tecnicamente, to<strong>da</strong> gramática é normativa, uma vez que estu<strong>da</strong> as regras<br />

ou normas que fazem de uma língua o que ela é. O que diferencia a gramática<br />

prescritiva <strong>da</strong> descritiva, trata<strong>da</strong> anteriormente, é o fato de que seu conceito é<br />

mais pe<strong>da</strong>gógico do que lingüístico, além de reduzir o conceito de língua a um<br />

conjunto de regras de ‘boa’ comunicação, aceitas em segmentos privilegiados de<br />

uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Expliquemos.<br />

A noção prescritiva de gramática esteve sempre associa<strong>da</strong> à tradição<br />

escolar, fortemente arraiga<strong>da</strong> na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita <strong>da</strong> língua. Vimos que o<br />

papel <strong>da</strong> escrita na socie<strong>da</strong>de foi sempre superestimado, tornando-a não apenas<br />

instrumento de trabalho para poucos privilegiados, mas também instrumento de<br />

discriminação contra indivíduos e culturas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s apenas em práticas orais. A<br />

escola, lugar onde a escrita é tradicionalmente adquiri<strong>da</strong>, na tentativa de tornar<br />

seus alunos usuários mais efetivos <strong>da</strong> língua, adotou um modelo de gramática<br />

baseado nas normas <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de escrita, emprega<strong>da</strong>s por intelectuais,<br />

cientistas, jornalistas e autores famosos. Esse modelo, não obstante servir para<br />

dirigir as práticas de escrita dos indivíduos, começou a ser ‘cobrado’ como padrão<br />

lingüístico geral, isto é, tanto para a escrita como para a fala.<br />

Ao descrever as normas <strong>da</strong> língua de uma minoria e torná-la padrão de<br />

todos, a Gramática demonstra que seu compromisso não é lingüístico, uma vez<br />

que desconsidera que a Lingüística pressupõe a igual<strong>da</strong>de essencial entre to<strong>da</strong>s<br />

as línguas, assim como o fato de que as normas são relativas às convenções<br />

adota<strong>da</strong>s por uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística, mas didático-pe<strong>da</strong>gógico, isto é,<br />

o conhecimento do padrão lingüístico privilegiado é objeto de ensino que deve<br />

ser aprendido por todos os indivíduos. Tal compromisso evidencia o conceito de<br />

gramática prescritiva como indissociado do uso de um livro de regras chamado<br />

de Gramática, cuja existência se deve à crença de que o usuário só aprende a<br />

falar bem sua língua, se estu<strong>da</strong>r sistematicamente suas regras. Esse conceito não<br />

diferencia, a principio, o estudo <strong>da</strong> língua materna e língua estrangeira.<br />

Um outro efeito <strong>da</strong> noção de gramática prescritiva é o mito de que apenas<br />

os falantes <strong>da</strong> língua padrão (legitima<strong>da</strong> pela escola) são bons usuários <strong>da</strong><br />

língua e se comunicam melhor do que outros. Mais ain<strong>da</strong>, desse mito surge a<br />

discriminação e preconceito contra usuários de varie<strong>da</strong>des não padrão <strong>da</strong> língua,


como os moradores <strong>da</strong> zona rural, ou de certas regiões do Brasil. Tal crença,<br />

difundi<strong>da</strong> maciçamente em to<strong>da</strong>s as mídias, e inclusive nas escolas, pressupõe<br />

a ignorância do falante nativo sobre sua própria língua materna, e se desdobra<br />

em diversas falácias sobre, por exemplo, o português ser a língua mais difícil do<br />

mundo, sobre o fato de o individuo não escolarizado não saber falar português,<br />

ou sobre a necessi<strong>da</strong>de de se falar a norma culta para ascender socialmente.<br />

Diferentemente dos dois conceitos apresentados anteriormente (gramática<br />

interna e gramática descritiva), a gramática prescritiva só se aplica à varie<strong>da</strong>de<br />

padrão <strong>da</strong> língua, não considerando para além <strong>da</strong> comunicação, os usos variados<br />

e contextuais que as pessoas fazem <strong>da</strong> língua. Alem disso, em oposição aos outros<br />

dois conceitos, a noção prescritiva <strong>da</strong> gramática dá abertura para o julgamento de<br />

valor do falante de uma varie<strong>da</strong>de não-padrão, oportunizando mensurar a língua<br />

em termos de melhor/pior, bonito/feio, e atribuindo ao falante a responsabili<strong>da</strong>de<br />

cognitiva e cultural por tornar sua língua aceitável/não aceitável, como se este<br />

pudesse interferir na norma convenciona<strong>da</strong> por sua com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Essa concepção<br />

é simplesmente não científi ca e discriminatória.<br />

AGORA É SUA VEZ:<br />

• Você compreendeu o conceito de norma e gramática? Então é sua vez de<br />

fazer uma descrição lingüística.<br />

a) Observe a fala de diferentes pessoas de sua região. Escolha pessoas de<br />

diferentes i<strong>da</strong>des, sexos, grau de escolari<strong>da</strong>de.<br />

b) Anote as peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fala de ca<strong>da</strong> informante. Observe especialmente<br />

o modo de pronunciar as palavras, de conectar as frases, e o vocabulário<br />

usado para se referir às coisas e aos conceitos.<br />

c) Elabore hipóteses, comparando as regras <strong>da</strong> fala dessas pessoas com a sua<br />

própria fala e com as regras gramaticais. Existe alguma semelhança? Que<br />

regras encontra<strong>da</strong>s na fala dos informantes são diferentes <strong>da</strong> gramática?<br />

Essas regras evidenciam uma organização interna <strong>da</strong> língua? Qual?<br />

d) Elabore um texto descrevendo o que você achou.<br />

• Para te aju<strong>da</strong>r nessa tarefa leia o seguinte texto:<br />

BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: <strong>da</strong> prescrição gramatical à educação<br />

lingüística. In Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo:<br />

Parábola, 2002, p. 61-70.<br />

257


UNIDADE V<br />

UNIDADE E DIVERSIDADE NA LÍNGUA<br />

Leitura Obrigatória:<br />

BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: <strong>da</strong> prescrição gramatical à educação<br />

lingüística. In: Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo:<br />

Parábola, 2002, p. 70-82.<br />

STUBBS, Michael. A língua na educação. In: Língua Materna. Letramento,<br />

variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002, p. 85-104.<br />

GAGNÉ, Gilles. A norma e o ensino <strong>da</strong> língua materna. In: Língua Materna.<br />

Letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002, p. 163-195.<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo.<br />

5.1 A Idealização <strong>da</strong> Norma<br />

A norma lingüística, como vimos anteriormente, é o conjunto de regras<br />

consensualmente estabeleci<strong>da</strong>s que organizam o conhecimento geral <strong>da</strong> língua<br />

e, particularmente, sistematizam os usos de uma língua natural qualquer, como<br />

o Português, por exemplo. Nesse sentido, a norma pode ser toma<strong>da</strong> como<br />

um conjunto geral de princípios que servem para to<strong>da</strong>s as línguas (entre esses<br />

princípios estão as categorias distintas do discurso, como os nomes, os verbos,<br />

etc. bem como as regras fonológicas, os padrões de ordem <strong>da</strong>s palavras, a dupla<br />

articulação, a variação e mu<strong>da</strong>nça, e muitos outros), e também pode ser pensa<strong>da</strong><br />

no que diz respeito aos parâmetros de uma língua particular (a ordem Sujeito-<br />

Verbo-Objeto, do português brasileiro, o sistema casos do alemão, a fl exão simples<br />

dos verbos do inglês, a fl exão complexa dos verbos do português, a concordância<br />

nominal e verbal <strong>da</strong>s línguas românicas, etc.)<br />

Os primeiros estudiosos <strong>da</strong> lingüística, ao observar o papel <strong>da</strong> norma,<br />

preferiram recortar apenas aquilo que tornava semelhantes as línguas, postulando<br />

o ideal de uma norma universal, aplicável a todos os usos, de modo a aproximar<br />

a língua do pensamento universal humano. Essa observação, geralmente feita<br />

a partir de textos escritos e fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na concepção lógica de um movimento na<br />

ciência denominado racionalismo, concebeu a escrita como o lugar onde a norma<br />

poderia ser observa<strong>da</strong> com mais proprie<strong>da</strong>de, visto que as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

escrita revelavam com mais rigor a lógica do mundo e a lógica do pensamento.<br />

259


260<br />

Este movimento provocou dois mitos no que diz respeito à língua em<br />

sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de fala<strong>da</strong>. O primeiro, que já vimos anteriormente, é o de que<br />

a língua fala<strong>da</strong>, em oposição à escrita, é o lugar do caos, <strong>da</strong> desordem, <strong>da</strong><br />

simplifi cação. O segundo, sobre o qual nos debruçaremos nessa seção, é o de que<br />

as línguas escritas e fala<strong>da</strong>s, para terem valor social, precisam obedecer a uma<br />

lógica pré-estabeleci<strong>da</strong>, essa lógica é refl eti<strong>da</strong> nos textos escritos que seguem<br />

estritamente a norma lingüística culta. Aqui não se entende norma culta como<br />

aquela efetivamente usa<strong>da</strong> pelos falantes <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s mais escolariza<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, mas como a norma idealiza<strong>da</strong>, que obedece rigorosamente os<br />

padrões clássicos <strong>da</strong> escrita, impostos pela concepção de que tais padrões refl etem<br />

a lógica universal.<br />

5.2 As varie<strong>da</strong>des lingüísticas<br />

Uma concepção idealiza<strong>da</strong> de norma nega qualquer tipo de vali<strong>da</strong>ção<br />

às varie<strong>da</strong>des lingüísticas. Estas, ao contrário <strong>da</strong> norma ideal, dizem respeito<br />

aos parâmetros lingüísticos que ca<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> adota em função não apenas<br />

nas necessi<strong>da</strong>des comunicativas, sociais e contextuais, mas em respeito a regras<br />

lingüísticas de mu<strong>da</strong>nças, que operaram no decorrer do tempo sobre os princípios<br />

gerais <strong>da</strong>quela língua.<br />

Por exemplo, a língua portuguesa fala<strong>da</strong> no Brasil sofreu, ao longo dos<br />

quinhentos anos de seu uso em nosso território, inúmeras transformações,<br />

seja pelo contato com outras línguas <strong>da</strong> colonização (as línguas indígenas, as<br />

línguas africanas, as línguas dos invasores), seja pelo convívio com as línguas<br />

dos imigrantes (japoneses, italianos, alemães), seja pela distância geográfi ca em<br />

relação aos centros onde as mu<strong>da</strong>nças sociais eram mais freqüentes (os sertões<br />

em relação às capitais do Império, por exemplo), seja pelas necessi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong><br />

lugar (a instalação <strong>da</strong>s indústrias no sudeste, a agricultura de subsistência no<br />

norte-nordeste, a produção canavieira nos litorais).<br />

Essas transformações são observa<strong>da</strong>s com muita clareza no Brasil, basta que<br />

constatemos os contrastes entre as diversas regiões. O resultado é que temos um<br />

país em que a língua utiliza<strong>da</strong> pela maioria dos falantes é o Português, e que no<br />

entanto, não se pode considerar essa língua como homogênea, já que apresenta<br />

variações que a tornam muito particular em relação às com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s que as<br />

adotam. Essas varie<strong>da</strong>des têm normas diferentes umas <strong>da</strong>s outras, e essas normas<br />

são consensualmente utiliza<strong>da</strong>s pelos falantes. Não se pode dizer, portanto, que<br />

uma varie<strong>da</strong>de do português seja mais bem emprega<strong>da</strong> do que outra, visto que<br />

seu uso é sempre coerente com a norma.<br />

Assim, o mito de que todos os falantes devem falar de modo semelhante,<br />

utilizando as mesmas regras na construção do seu discurso, seja escrito, seja<br />

falado, não procede do ponto de vista cientifi co e só se justifi ca pela tentativa<br />

dos pseudo-intelectuais <strong>da</strong> elite, completamente leigos do ponto de vista <strong>da</strong>s<br />

ciências <strong>da</strong> linguagem, em disseminar preconceitos contra as populações que<br />

adotam modos de falar diferentes <strong>da</strong>quele denominado padrão. A escola e a<br />

mídia colaboram com disseminação dessa prática discriminatória, uma vez que<br />

os falantes <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong>des lingüísticas que mais se distinguem do padrão são os<br />

habitantes <strong>da</strong>s regiões norte e nordeste, especialmente os moradores <strong>da</strong>s zonas<br />

rurais e ribeirinhas, que vêm sofrendo processo de exclusão social há centenas de<br />

anos, sendo o lingüístico apenas um deles.


Varie<strong>da</strong>de lingüística não é erro ou desvio. É uma forma legitima de uso<br />

de uma língua que sofreu processos naturais de variação e mu<strong>da</strong>nça no seu<br />

desenvolvimento. A variação lingüística não ocorre apenas no Brasil, to<strong>da</strong>s as<br />

línguas do mundo passam por esse processo, mas é mais fácil de notá-la em um<br />

país com a dimensão do nosso, pois o processo de mu<strong>da</strong>nça não é homogêneo, ou<br />

seja, não ocorre ao mesmo tempo em to<strong>da</strong>s as regiões em que a língua é fala<strong>da</strong>.<br />

As variações lingüísticas são, pois, as diferentes realizações de uma<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> língua, que resultam de fatores de natureza histórica, regional, social ou<br />

contextual. Essas variações podem ocorrer nos níveis fonético e fonológico (a<br />

realização efetiva de um determinado som na língua, por exemplo o R retrofl exo,<br />

utilizado no interior de São Paulo, para indicar pejorativamente a fala caipira),<br />

morfológico (a realização de uma concordância de número, em que apenas<br />

um termo recebe a marca do plural, como em as meninaØ), sintático (como a<br />

colocação pronominal, amplamente usa<strong>da</strong> no Brasil, em orações do tipo “me dá<br />

um cigarro”) e semântico (encontra<strong>da</strong> na diferença lexical de diversas regiões,<br />

como os adjetivos doce e melado).<br />

O estudo <strong>da</strong> variação lingüística pode ser feito a partir <strong>da</strong> observação <strong>da</strong>s<br />

mu<strong>da</strong>nças sob vários aspectos: a) o aspecto diacrônico (do grego dia+kronos = ao<br />

longo do tempo), que explica as manifestações diferentes de uma língua através<br />

dos tempos. No português brasileiro, é possível observar a mu<strong>da</strong>nça do português<br />

colonial com relação ao português moderno, especialmente pela presença de<br />

<strong>da</strong>dos escritos <strong>da</strong>quela varie<strong>da</strong>de, como também pelo uso de formas típicas do<br />

português colonial, preserva<strong>da</strong>s nas varie<strong>da</strong>des de algumas regiões do Brasil. b)<br />

o aspecto sincrônico (do grego sy’n = simultanei<strong>da</strong>de), que explica as variações<br />

num mesmo período de tempo, como os usos de uma varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de<br />

em relação a outra, a exemplo do português falado no sul e no nordeste. Os<br />

demais aspectos, por sua relevância na explicação do Português Brasileiro, serão<br />

analisados em seção própria.<br />

5.2.1 Variação diatópica, diafásica e diastrática.<br />

Entre os diversos processos de variação que ocorrem em uma determina<strong>da</strong><br />

língua, destacaremos aqueles que dizem respeito aos contextos sociais que<br />

impõem a essa língua, normas de uso específi cas, diferentes de outras normas<br />

encontra<strong>da</strong>s em outras varie<strong>da</strong>des.<br />

A variação diatópica (do grego topos = lugar), também reconheci<strong>da</strong> como<br />

variação geolingüística ou variação dialetal, é o tipo de processo relacionado a<br />

fatores geográfi cos, como o uso de pronúncia diferente em diferentes regiões,<br />

diferentes palavras para designar os mesmo conceitos, acepções diferentes de um<br />

termo de região para região, expressões ou construções frásticas próprias de uma<br />

região, etc.<br />

A variação diatópica diz respeito aos processos de identifi cação <strong>da</strong> norma<br />

lingüística com os usos aceitáveis em lugares ou regiões diferentes de onde<br />

se fala a língua padrão. Assim, pode-se perceber que os lugares que se afastam<br />

geografi camente do centro onde se usa a varie<strong>da</strong>de padrão, adotam normas<br />

lingüísticas diferentes <strong>da</strong>quele. Isso pode acontecer por diversos motivos: as<br />

regras lingüísticas que afetaram a padrão podem não ter afetado essa varie<strong>da</strong>de,<br />

os usos sociais <strong>da</strong> língua nessa região podem ser diferentes de outra, infl uências<br />

261


262<br />

de outras línguas podem ser mais presentes no centro do que na região onde se<br />

fala a varie<strong>da</strong>de não-padrão, etc. O exemplo clássico <strong>da</strong> variação diatópica é o<br />

falar rural em oposição ao urbano. Nesse exemplo, percebe-se que a mu<strong>da</strong>nça<br />

ocorreu com menos freqüência na varie<strong>da</strong>de rural, que preserva várias formas do<br />

português medieval, enquanto que o falar urbano sofreu infl uências de diversos<br />

tipos, como processos de industrialização, de imigração, etc.<br />

A variação diafásica (do grego phasis = fala) é relaciona<strong>da</strong> às diferentes<br />

situações de comunicação e a fatores de natureza pragmática e discursiva, que são<br />

impostos em função do contexto de uso <strong>da</strong> língua. Esses fatores levam o falante a<br />

a<strong>da</strong>ptar-se às circunstâncias comunicativas, por meio <strong>da</strong> variação do registro de<br />

língua, seja para mais formal, ou para mais informal.<br />

Em lingüística, o termo registro designa a varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> língua defi ni<strong>da</strong> de<br />

acordo com o seu uso em situações sociais. Assim, registros lingüísticos são os<br />

diversos estilos que um falante pode usar em uma situação comunicativa <strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Em uma conversa informal com os amigos, por exemplo, utilizará um registro<br />

diferente do que utiliza em família, ou no emprego, ou na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>.<br />

A variação diastrática (do grego stratos = cama<strong>da</strong>, nível) refere-se aos modos<br />

de falar que correspondem a códigos de comportamento de determinados grupos<br />

sociais. A varie<strong>da</strong>de diastrática corresponde ao uso lingüístico partilhado por<br />

um grupo social, cujos membros mantêm entre si relações de identi<strong>da</strong>de que os<br />

diferenciam em relação a outros grupos (por exemplo, o uso de gírias, de jargão<br />

profi ssional, etc.). Entre os fatores relacionados à variação social, encontramos a<br />

classe social, situação ou contexto social, i<strong>da</strong>de, sexo, etc.<br />

A classe social é um fator que tem estreita ligação com a escolha de<br />

varie<strong>da</strong>des lingüísticas de uso. Em países como a Índia, em que o sistema<br />

de estratifi cação social é bastante fechado, a língua utiliza<strong>da</strong> por uma casta<br />

superior, não pode ser usa<strong>da</strong> por uma inferior. No Brasil, alguns membros<br />

<strong>da</strong> elite intelectual insistem em identifi car a varie<strong>da</strong>de padrão <strong>da</strong> língua com a<br />

classe alta. Essa identifi cação não procede, uma vez que tal classe se defi ne em<br />

termos de poder econômico, e não em função de escolari<strong>da</strong>de. Pode-se dizer<br />

que num país mais agrícola do que industrializado, como o Brasil, o poder<br />

econômico se concentra mais nas mãos dos grandes produtores e fazendeiros e<br />

dos altos empresários <strong>da</strong> indústria do que na elite intelectual. Assim, a varie<strong>da</strong>de<br />

lingüística em torno de classes, no Brasil, é mais aberta, não podendo ser<br />

identifi ca<strong>da</strong> com uma classe apenas. É importante que se compreen<strong>da</strong> que um<br />

falante de uma varie<strong>da</strong>de social pode utilizar outra varie<strong>da</strong>de para comunicação,<br />

o que destaca a relevância de to<strong>da</strong>s as varie<strong>da</strong>des e sua adequação às necessi<strong>da</strong>des<br />

de uso.<br />

A situação ou contexto social defi ne a varie<strong>da</strong>de lingüística a ser utiliza<strong>da</strong><br />

a partir <strong>da</strong> relação mútua entre dois falantes ao discutir um <strong>da</strong>do assunto, em<br />

uma <strong>da</strong><strong>da</strong> situação. Há contextos que exigem maior formali<strong>da</strong>de, como os<br />

institucionais, relacionados à escola, ao trabalho, às ativi<strong>da</strong>des públicas; e<br />

contextos em que a informali<strong>da</strong>de é a regra a se seguir, como nos contextos<br />

privados. Assim, em relação à pessoa a quem se dirige, o falante pode utilizar<br />

uma varie<strong>da</strong>de mais ou menos formal, dependendo se o seu interlocutor é mais<br />

velho, ou superior hierarquicamente, ou se trata de um par; dependendo também<br />

do lugar onde os falantes se encontram, se em um bar, uma igreja ou uma escola;<br />

bem como do tema sobre o que se conversa, um assunto sério, ameni<strong>da</strong>des, etc.


No que diz respeito à variação social, segundo os fatores sexo e i<strong>da</strong>de,<br />

observa-se que alguns recursos expressivos, como o alongamento de vogais, o uso<br />

freqüente de diminutivos, entre outros, são mais comuns na fala <strong>da</strong> mulher do<br />

que na do homem, enquanto que o registro social por meio de gírias, palavrões,<br />

etc. são mais freqüentes na varie<strong>da</strong>de usa<strong>da</strong> por esses. Gírias, palavrões e outras<br />

marcas do registro informal são também mais freqüentes nas varie<strong>da</strong>des usa<strong>da</strong>s<br />

por jovens (homens e mulheres) do que na faixa etária de mais i<strong>da</strong>de. O uso de<br />

certos pronomes (como o tu) ocorrem com mais freqüência entre jovens, enquanto<br />

certas pronúncias (como senhora, com o fechamento <strong>da</strong> vogal o) são mais comuns<br />

entre os mais velhos.<br />

5.3 Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> Lingüística e Norma Padrão.<br />

A com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística ou com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de fala diz respeito ao grupo<br />

de falantes que compartilha um conjunto de regras lingüísticas que governam<br />

as estratégias de comunicação e de interpretação do discurso. A com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

lingüística funciona como uma matriz de repertórios de códigos ou de estilos de<br />

discurso de que os falantes dispõem nas situações concretas de uso.<br />

Um conjunto de defi nições para com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística é encontrado na<br />

obra de Silvio Elia (2000), que retoma conceitos clássicos apontados por lingüistas<br />

internacionais.<br />

Leonard Bloomfi eld<br />

Uma reunião de pessoas que usam do mesmo sistema de sinais lingüísticos<br />

é uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística. (ELIA:2000, 7).<br />

Uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística é uma reunião de pessoas que interagem por<br />

meio <strong>da</strong> linguagem. (ELIA:2000, p.7).<br />

Joshua Fishman<br />

Por uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística se entende aquela cujos membros<br />

participam pelo menos de uma varie<strong>da</strong>de lingüística e <strong>da</strong>s normas para o<br />

seu uso adequado. (ELIA:2000,7).<br />

John J. Gumperz<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística é um grupo social que pode ser monolíngüe<br />

ou multilíngüe mantido coeso pela freqüência de padrões de<br />

interação social e separado de áreas vizinhas pela insufi ciência<br />

dos meios de comunicação. As com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s lingüísticas podem<br />

consistir em pequenos grupos interligados por um contato face<br />

a face ou ocupar largas regiões, tudo dependendo do nível de<br />

abstração em que nos situamos. (ELIA:2000,7).<br />

263


264<br />

William Labov<br />

A com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística defi ne-se menos por um<br />

acordo explícito em relação ao emprego dos elementos<br />

<strong>da</strong> língua do que por uma participação num conjunto<br />

de normas comuns. Essas normas podem ser observa<strong>da</strong>s<br />

ou em tipos abertos de comportamento susceptíveis de<br />

avaliação ou pela uniformi<strong>da</strong>de de padrões abstratos<br />

de variação, que são invariantes no respeitante a níveis<br />

particulares de uso. (ELIA:2000,7).<br />

O conceito de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística se assenta, portanto, na necessi<strong>da</strong>de<br />

de reconhecimento de uma norma comum aos falantes de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de.<br />

To<strong>da</strong>s as defi nições acima, por mais ou menos completas que sejam, têm em<br />

comum o fato de que os falantes compartilham padrões comuns para pertencer<br />

a mesma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de fala. Assim, o que defi ne uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> não é o fato<br />

de as pessoas falarem do mesmo modo, mas por orientarem seu comportamento<br />

verbal, em situações comunicativas diversas, através de um conjunto de regras<br />

compartilháveis.<br />

A norma padrão, a que amplamente aludimos no capítulo precedente,<br />

é também o elemento que reúne usuários em torno de algo comum, uma<br />

varie<strong>da</strong>de compartilha<strong>da</strong> por falantes que constituem uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

lingüística. É preciso que se esclareça, entretanto, que não há elemento<br />

intrínseco a essa varie<strong>da</strong>de que a torne superior ou melhor em relação às<br />

outras. Em to<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de fala, por maior ou menor que seja, há<br />

sempre variação lingüística decorrente de fatores sociais que se definem<br />

nessa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Assim, almejamos a língua padrão mais por um questão<br />

de imposição social, como status, do que por fatores específicos de sua<br />

norma.<br />

5.4 Língua Padrão – conceitos e mecanismos de imposição<br />

O fato de que há varie<strong>da</strong>des lingüísticas porque, em qualquer com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

de fala, a língua não é utiliza<strong>da</strong> de modo homogêneo é uma ver<strong>da</strong>de que só há<br />

pouco tempo tem ganhado espaço nas discussões extra-acadêmicas, embora<br />

ain<strong>da</strong> com alguma descrença. Há alguns anos, a discussão em torno <strong>da</strong> língua<br />

comportava apenas duas alternativas: ou se falava a língua padrão (ou norma<br />

culta), ou se falava errado. Essa última alternativa (que englobava o que hoje<br />

conhecemos como varie<strong>da</strong>des, mas que antes eram considera<strong>da</strong>s erros ou<br />

desvios) era o que restava à maioria <strong>da</strong> população do Brasil que, ora consistia<br />

nos habitantes <strong>da</strong>s regiões norte e nordeste, os que sofreram os mais variados<br />

processos de exclusão na história do país, ora consistia na parcela dos analfabetos,<br />

semi-alfabetizados e integrantes <strong>da</strong> classe trabalhadora brasileira. A língua<br />

padrão era, portanto, a varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s elites residentes na porção sul-sudeste do<br />

país.<br />

Contribuiu para essa concepção “casa-grande e senzala” de língua,<br />

um conjunto de idéias difundi<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> hoje com muita força, em veículos


públicos institucionais que, por gozar de muito prestígio na socie<strong>da</strong>de,<br />

angariou um batalhão de adeptos pouco críticos, crentes <strong>da</strong> irrefutável<br />

veraci<strong>da</strong>de desse ideário. Esses veículos são o ensino tradicional, a<br />

gramática tradicional, os livros didáticos e a imprensa (Cf. BAGNO, 1999, p.<br />

73).<br />

Munidos de muito prestígio e de nenhuma ética, esses veículos<br />

iniciaram uma campanha que se propunha “restaurar” a norma culta,<br />

ao mesmo tempo em que apregoava o preconceito contra os falantes<br />

de varie<strong>da</strong>des não-padrão, ou seja, as minorias e classes sociais menos<br />

favoreci<strong>da</strong>s. Entre as falácias (idéias falsas proclama<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong>deiras)<br />

mais freqüentes usa<strong>da</strong>s contra a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong>des não-padrão, o<br />

ensino, a gramática, os livros didáticos e a imprensa apregoavam (de acordo<br />

com BAGNO, 1999) que:<br />

1 O português brasileiro é uma língua homogênea.<br />

Essa idéia não é cientifi ca porque desconsidera uma característica natural<br />

<strong>da</strong>s línguas humanas: sua variabili<strong>da</strong>de. Além disso, em se tratando de um pais<br />

com as dimensões do Brasil, essa pretensa ‘<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>’ mascara as diferenças sociais,<br />

regionais e econômicas, fatores que atuam na variação lingüística. Os adeptos<br />

desse mito esquecem que muitas outras línguas, além do Português, também são<br />

fala<strong>da</strong>s no Brasil e merecem ser objeto de estudo pela escola.<br />

2. O bom português é falado apenas em Portugal.<br />

Essa afi rmação, geralmente veicula<strong>da</strong> por puristas <strong>da</strong> língua, preocupados<br />

com as infl uências que o Português Brasileiro sofreu ao longo do tempo,<br />

especialmente <strong>da</strong>s línguas indígenas e africanas, é tão vazia quanto os<br />

argumentos que usa. O português brasileiro é uma língua diferente <strong>da</strong> irmã<br />

européia. Nenhuma língua é imune a infl uências externas. Ca<strong>da</strong> povo é senhor<br />

de sua própria língua, já que ela(s) é(são) um dos formadores <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

nacional.<br />

3. A língua portuguesa é uma <strong>da</strong>s mais difíceis do mundo.<br />

Qualquer falante, seja escolarizado ou não, conhece e domina as regras<br />

naturais <strong>da</strong> língua que utiliza. Não existe língua nativa difícil, nem se pode<br />

comparar línguas diferentes em termos de difi cul<strong>da</strong>de. To<strong>da</strong>s as línguas são<br />

complexas e atendem às necessi<strong>da</strong>des de uso. Nenhum falante aprende sua<br />

língua materna, a adquire. A escola é o lugar onde aprendemos apenas a escrita<br />

de uma língua.<br />

4.As pessoas sem escolari<strong>da</strong>de falam errado.<br />

Este mito releva profundo preconceito contra o falante e não contra a língua<br />

ou varie<strong>da</strong>de que ele fala. A idéia aqui é ridicularizar o falante, <strong>da</strong>s regiões nortenordeste<br />

especialmente, por falarem diferente dos falantes do sudeste. Não se<br />

trata aqui de apontar o erro, já que paulistas falam “os pão, as mão” e nordestinos<br />

dizem “nóis fumo” porque a norma de sua varie<strong>da</strong>de permite, e não por erro. O<br />

que a escola e a mídia fazem é tratar a fala do nordestino como ridícula e mais<br />

erra<strong>da</strong> do que a do paulista.<br />

265


266<br />

5. O estado do Maranhão é onde se fala melhor o Português.<br />

O melhor português é falado por qualquer brasileiro. Lembre-se que o<br />

português não é homogêneo. A norma <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de paraibana é emprega<strong>da</strong> tão<br />

bem pelo falante <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong>, como a norma <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de gaúcha é emprega<strong>da</strong><br />

pelo falante do Rio Grande do Sul.<br />

6. Deve-se falar do jeito que se escreve.<br />

Este mito desconsidera fala e escrita como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des distintas <strong>da</strong> língua<br />

que se prestam a fi nali<strong>da</strong>des distintas de uso. Não precisamos falar <strong>da</strong> mesma<br />

maneira que escrevemos pois temos recursos na fala que se prestam apenas à fala,<br />

assim como os <strong>da</strong> escrita não funcionam a não ser na escrita. Essa ideal é refl exo<br />

do pensamento grafrocêntrico que confunde língua com escrita ou gramática.<br />

7. É preciso saber gramática para se expressar com quali<strong>da</strong>de.<br />

A expressão na língua não depende do conhecimento de regras gramaticais,<br />

conti<strong>da</strong>s em um livro, mas do conjunto de normas <strong>da</strong> língua que ca<strong>da</strong> falante<br />

possui internalizado. A expressão com quali<strong>da</strong>de depende de competências<br />

comunicativas, sociais, textuais, auxilia<strong>da</strong>s pelo processo de escolarização, mas<br />

não apenas por ele.<br />

8. A norma culta é instrumento de ascensão social.<br />

A escola e seus instrumentos (livro didático, gramática, ensino, etc.)<br />

desempenham, portanto, um mecanismo de imposição <strong>da</strong> varie<strong>da</strong>de padrão na<br />

vi<strong>da</strong> do aluno, no que diz respeito à aquisição de conhecimentos lingüísticogramaticais<br />

e culturais destinados a completar e/ou compensar a “cultura verbal<br />

recebi<strong>da</strong> no ambiente familiar”. Mais do que isso, ao ingressar na escola, o aluno<br />

entra em contato com uma varie<strong>da</strong>de de língua diferente <strong>da</strong>quela que utiliza em<br />

casa, ou com os amigos, que exige uma postura de correção ‘gramatical’ ao qual<br />

está só parcialmente acostumado.<br />

O dito popular de que “os pais ensinam o fi lho a falar errado para depois mandálo<br />

à escola para aprender a falar corretamente” é completamente absorvido pela escola<br />

tradicional, pois a linguagem a que o aluno está exposto não coincide muito com a que<br />

utiliza com os amigos; do ponto de vista <strong>da</strong> lingüística, no entanto, este dito contém<br />

questão bastante obscura: o que vem a ser falar certo ou errado? Parece muito claro<br />

que o tipo de linguagem que devemos usar na escola, com os professores, não deve ser<br />

o mesmo que usamos com nossos amigos íntimos, ou com nossos pais, mas afi rmar<br />

que o primeiro tipo é mais correto do que o segundo refl ete apenas a ideologia que<br />

sustenta uma superiori<strong>da</strong>de intrínseca <strong>da</strong> língua considera<strong>da</strong> padrão.<br />

Bortoni (1997, p. 1-2) considera a noção de língua <strong>da</strong> escola bastante obscura<br />

e ultrapassa<strong>da</strong> e apresenta um modelo segundo o qual o português brasileiro é<br />

analisado em três continua: o continuum rural-urbano, que “propõe uma distinção entre<br />

a heterogenei<strong>da</strong>de relaciona<strong>da</strong> a fatores estruturais (dicotomia rural/urbano; região<br />

geográfi ca; redes de relações sociais, etc.) e fatores funcionais (grau de formali<strong>da</strong>de,<br />

registros, etc.)”’, o continuum de orali<strong>da</strong>de-letramento, no qual um dos pólos é<br />

constituído de ativi<strong>da</strong>des de letramento, ou seja, os falantes desse continuum ora fazem<br />

uso de um linguajar mais cui<strong>da</strong>do, ora de ativi<strong>da</strong>des de orali<strong>da</strong>de “conduzi<strong>da</strong>s em


varie<strong>da</strong>des informais <strong>da</strong> língua”; e o continuum de monitoração estilística, que, grosso<br />

modo, se presta à produção de estilos mais monitorados de fala.<br />

Aprofunde seus conhecimentos: Sobre os mecanismos de imposição <strong>da</strong> língua<br />

padrão, estude e discuta os textos encontrados nos seguintes sítios:<br />

htt p://www.espacoacademico.com.br/057/57res_fi abani.htm<br />

htt p://www.espacoacademico.com.br/073/73praxedes.htm<br />

htt p://www.instituto-camoes.pt/CVC/hlp/forum/index.html<br />

5.5. A Natureza Das Mu<strong>da</strong>nças Lingüísticas<br />

Leia a tradução de Marcos Bagno do texto de David Crystal sobre a mu<strong>da</strong>nça<br />

lingüística. (The Cambridge Encyclopedia of Language, Cambridge University<br />

Press, 1987, pp. 4-5).<br />

a) - Compare as opiniões do autor com as suas próprias e respon<strong>da</strong>: há razão<br />

para temer as mu<strong>da</strong>nças na língua?<br />

htt p://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/for_crystal.htm<br />

Para David Crystal (1987), existe uma crença de, ampla repercussão na<br />

socie<strong>da</strong>de, de que a mu<strong>da</strong>nça lingüística signifi ca a decadência ou a degra<strong>da</strong>ção<br />

de uma língua. Essa crença é sustenta<strong>da</strong> pela observação dos conservacionistas de<br />

que a língua de hoje já não tem o mesmo padrão de antigamente, especialmente<br />

pela infl uência de línguas estrangeiras como o inglês na fala casual dos jovens,<br />

bem como pela escola e meios de comunicação que cometem freqüentes desvios<br />

<strong>da</strong>s normas tradicionais <strong>da</strong> língua.<br />

Para o autor, as críticas à mu<strong>da</strong>nça lingüística são infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, não<br />

apenas porque to<strong>da</strong> geração experimenta a sensação de deterioração <strong>da</strong> língua<br />

em relação à geração anterior, mas também porque, via de regra, as mu<strong>da</strong>nças<br />

lingüísticas atingem partes tão minúsculas em comparação ao que é imutável,<br />

que difi cilmente qualquer mu<strong>da</strong>nça sobressai e se faz notar.<br />

Há, entretanto, casos de mu<strong>da</strong>nça que ocorrem com tanta rapidez, que<br />

podem provocar problemas de comunicação, levando à ininteligibili<strong>da</strong>de, a<br />

ambigüi<strong>da</strong>des e à divisão social. É preciso, pois, um certo cui<strong>da</strong>do no interesse<br />

de manter a comunicação precisa e efetiva, mas não há razão para o excessivo<br />

conservadorismo <strong>da</strong>queles que querem “preservar a língua de Camões”. A<br />

mu<strong>da</strong>nça na língua é, para Crystal, refl exo <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça na socie<strong>da</strong>de. Não há<br />

como criar políticas que detenham uma ou outra.<br />

“As línguas não se desenvolvem, não progridem, não decaem, não evoluem,<br />

nem agem de acordo com nenhuma <strong>da</strong>s metáforas que implicam um ponto<br />

fi nal específi co ou um nível de excelência. Elas simplesmente mu<strong>da</strong>m, como as<br />

socie<strong>da</strong>des mu<strong>da</strong>m. Se uma língua morre é porque seu status na socie<strong>da</strong>de se<br />

alterou, na medi<strong>da</strong> em que outras culturas e línguas a sobrepujaram: ela não<br />

morre porque “fi cou velha demais” ou porque “se tornou muito complica<strong>da</strong>”,<br />

como às vezes se pensa.”<br />

267


268<br />

Assim, a mu<strong>da</strong>nça lingüística é inevitável e raramente previsível, <strong>da</strong>í a<br />

necessi<strong>da</strong>de, segundo Crystal, de se desenvolver uma consciência lingüística e<br />

uma maior tolerância com a mu<strong>da</strong>nça lingüística, especialmente numa socie<strong>da</strong>de<br />

multiétnica, como é o caso do Brasil.<br />

A política, nesse caso, não é de deter ou controlar as mu<strong>da</strong>nças, mas a de<br />

dotar as escolas, e por conseqüência, a socie<strong>da</strong>de, do conhecimento necessário<br />

para ensinar a varie<strong>da</strong>de padrão, ao mesmo tempo em que reconhece a existência<br />

e o valor <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de lingüística. Essa política ofereceria “uma alternativa<br />

construtiva aos ataques emocionados que são desferidos tão freqüentemente<br />

contra o desenvolvimento de novas palavras, signifi cados, pronúncias e<br />

construções gramaticais.”<br />

ATENÇÃO! Para realizar as tarefas abaixo você precisa primeiro ler os seguintes<br />

textos:<br />

BELINE, Ronald. A variação lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução<br />

à Lingüística. Vol. 1 Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 121-140<br />

CHAGAS, Paulo. A mu<strong>da</strong>nça lingüística. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução<br />

à Lingüística. Vol. 1 Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 141-163.<br />

AGORA É SUA VEZ:<br />

• Inicialmente, faça a leitura e fi chamento dos dois textos acima.<br />

• Trabalhe em grupo e formule respostas às questões:<br />

a) Qual a diferença entre variação e mu<strong>da</strong>nça lingüística?<br />

b) Em sua com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> lingüística, observe a fala de um grupo de pessoas<br />

e quantifi que a porcentagem de apagamento do /r/ no fi nal de verbos no<br />

infi nitivo. (Confi ra o exemplo na página 131 do texto sugerido acima).<br />

c) Quantifi que, do mesmo modo, o uso dos pronomes pessoais (página<br />

132), de acordo com a faixa etária dos falantes observados.<br />

d) Observe o uso de ditongos (beijo, queijo, etc). O grupo que você<br />

pronuncia com mais freqüência /beiju/ ou /beju/?<br />

e) Quantifi que o uso <strong>da</strong>s marcas de plural nas palavras, de acordo com a<br />

taxa de escolari<strong>da</strong>de dos falantes observados (confi ra exemplo na página<br />

137 do texto sugerido)<br />

f) Observe os quadros <strong>da</strong>s páginas 153 e 155 do texto sugerido. Você<br />

consegue ver o processo de mu<strong>da</strong>nça em outras palavras do português<br />

(comparando-o a outras línguas românicas)?<br />

g) Procure na biblioteca, cartório, museu ou repartições públicas de sua<br />

ci<strong>da</strong>de, textos escritos em épocas passa<strong>da</strong>s (início do século XX e século<br />

XIX). Que mu<strong>da</strong>nças você percebe no português dessas épocas em<br />

relação ao português moderno?


UNIDADE VI<br />

A LINGÜÍSTICA COMO CIÊNCIA<br />

6.1 Estudos Pré-Saussurianos<br />

Leitura obrigatória: WEEDWOOD, Bárbara. A lingüística no século XIX. In<br />

História Concisa <strong>da</strong> Lingüística. São Paulo: Parábola, 2002, p. 103-123<br />

REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

Apesar de as preocupações com o fenômeno lingüístico ocuparem boa<br />

parte do tempo de estudiosos antigos, apenas na passagem do século XVIII para<br />

o século XIX a intensifi cação desses estudos resultou em ações que possibilitaram,<br />

já no século XX, a idealização de uma ciência autônoma <strong>da</strong> linguagem.<br />

Entre as contribuições mais importantes para essa autonomia estão os<br />

estudos realizados no século XIX, denominados de Gramática Compara<strong>da</strong>.<br />

Costuma-se chamar de Gramática Compara<strong>da</strong> o movimento desencadeado pela<br />

redescoberta do Sânscrito (língua hindu antiga) entre os anos de 1786 e 1816, que<br />

protagonizou uma revolução nos estudos <strong>da</strong> linguagem por evidenciar relações<br />

de parentesco entre o Sânscrito e outras línguas antigas, como o latim, o grego,<br />

as línguas germânicas, célticas e eslavas. Este movimento provocou o abandono<br />

<strong>da</strong> discussão em torno de uma língua-mãe, a origem divina de to<strong>da</strong>s as línguas, e<br />

instaurou uma preocupação maior sobre a origem <strong>da</strong> linguagem.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o estudo do sânscrito e de suas relações com as línguas<br />

antigas e atuais, foi desencadeado pela obra de Bopp (1816) sobre o sistema<br />

<strong>da</strong>s conjugações <strong>da</strong>s línguas indo-européias que, ao investigar a origem dessas<br />

línguas, encontrou um modelo comparativo entre suas gramáticas. A relação<br />

entre as gramáticas, proposta por Bopp, baseia-se em elementos puramente<br />

lingüísticos na comparação entre as línguas, adotando os métodos <strong>da</strong>s ciências<br />

naturais para empreender uma espécie de paleografi a <strong>da</strong>s línguas antigas.<br />

O modelo <strong>da</strong>s ciências naturais, nota<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> biologia, utilizado pelo<br />

comparativismo para explicar a língua produz a metáfora dos organismos<br />

vivos, ou seja, as línguas seriam organismos que nascem, crescem e morrem,<br />

após conhecerem um tempo de perfeição breve, como qualquer ser vivo. Vimos,<br />

entretanto, no capítulo precedente que tal metáfora não explica satisfatoriamente<br />

o processo de mu<strong>da</strong>nça lingüística:<br />

269


270<br />

“Se formos usar metáforas para falar <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça lingüística, uma <strong>da</strong>s<br />

melhores é a de um sistema que se mantém num estado de equilíbrio,<br />

enquanto as mu<strong>da</strong>nças ocorrem dentro dele. Outra é a <strong>da</strong> maré, que sempre<br />

e inevitavelmente mu<strong>da</strong>, mas nunca progride, enquanto fl ui e refl ui”. (David<br />

Crystal. The Cambridge Encyclopedia of Language, Cambridge University<br />

Press, 1987, pp. 4-5. Tradução: Marcos Bagno)<br />

Um dos problemas <strong>da</strong> Gramática Compara<strong>da</strong> era a falta de simultanei<strong>da</strong>de<br />

cronológica na comparação entre as línguas, não importando se a porção do<br />

Sânscrito a ser compara<strong>da</strong> com o Latim era de um estado <strong>da</strong>quela língua relativo<br />

1.000 a.C., enquanto que o estado do latim referia-se ao século V de nossa era, o<br />

que tornava difícil a demonstração do parentesco entre as línguas.<br />

Seguiram-se, então, alguns estudos comparativos que se ocupavam <strong>da</strong><br />

seqüência cronológica na investigação <strong>da</strong>s línguas. O escalonamento dos textos<br />

analisados pela ordem dos séculos em que ocorreram tornou o trabalho de<br />

comparação mais fácil, no entanto, provocou o deslocamento do interesse <strong>da</strong>s<br />

investigações <strong>da</strong>s relações de parentesco entre as línguas para o estudo <strong>da</strong>s leis<br />

que determinavam a passagem de um <strong>da</strong>do estado <strong>da</strong> língua ao estado seguinte.<br />

A gramática compara<strong>da</strong> tornava-se, pois, o estudo <strong>da</strong> evolução continua<br />

<strong>da</strong>s línguas, o que <strong>da</strong>va origem à Lingüística Histórica. Esse movimento, que<br />

ocorreu entre os anos de 1876 e 1886, contou com a força <strong>da</strong> Escola do Neo-<br />

Gramáticos, corrente de estudos que se propõe a explicar a quase totali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s transformações lingüísticas por meio <strong>da</strong> fonética. Entretanto, a História<br />

permanece no centro <strong>da</strong> teoria lingüística como ciência-piloto do século XIX.<br />

Em função disso, a concepção <strong>da</strong> língua como organismo biológico sofre intenso<br />

fogo de barragem, especialmente pelo primeiro grande tratado de Lingüística, de<br />

Hermann Paul (1880) que afi rmar ser a lingüística, assim como outros produtos<br />

<strong>da</strong> civilização humana, uma ciência histórica.<br />

Leitura Complementar: SOUSA, Maria Clara. Lingüística Histórica. In.<br />

PFEIFFER, Cláudia & NUNES, José Horta (orgs.) Linguagem, História e<br />

Conhecimento. Campinas: Pontes, 2006, p. 11-48.<br />

PAVEAU, Marie-Anne & SARFATI, Georges-Élia. As grandes teorias <strong>da</strong><br />

Lingüística. Da gramática compara<strong>da</strong> à pragmática. São Carlos: Claraluz,<br />

2006, p. 9-42.<br />

6.2 O Curso de Lingüística Geral e A Abor<strong>da</strong>gem Estruturalista <strong>da</strong><br />

Linguagem.<br />

Leitura obrigatória: WEEDWOOD, Bárbara. A lingüística no século XX. In<br />

História Concisa <strong>da</strong> Lingüística. São Paulo: Parábola, 2002, p. 125-155


REFLEXÃO:<br />

• Após a leitura do texto acima, destaque os pontos que merecem maior<br />

aprofun<strong>da</strong>mento.<br />

• Releia o texto, prestando atenção aos pontos que você destacou.<br />

• Agora, prossiga neste capítulo fazendo as leituras abaixo<br />

O fi nal do século XIX foi o palco para as idéias revolucionárias de Ferdinand<br />

di Saussure que, mesmo concebendo a língua como instituição social, estabelece<br />

que a primeira providência de uma ciência autônoma <strong>da</strong> linguagem é estu<strong>da</strong>r<br />

o funcionamento <strong>da</strong> língua e não sua evolução. Assim, Saussure desconstrói a<br />

primazia <strong>da</strong> lingüística histórica, pondo em seu lugar uma lingüística descritiva.<br />

A nova orientação ofereci<strong>da</strong> por Saussure indica a prevalência do sistema<br />

na abor<strong>da</strong>gem descritiva <strong>da</strong> língua. Em vez de se preocupar com a evolução<br />

histórica <strong>da</strong>s línguas, ele passa a priorizar a função que os elementos lingüísticos<br />

desempenham dentro de um sistema.<br />

O estudo do comportamento humano perde suas melhores oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s<br />

quando tenta traçar as causas históricas dos acontecimentos individuais. Em<br />

vez disso, ele deve concentrar-se em primeiro lugar nas funções que os eventos<br />

têm numa estrutura social geral. Deve tratar os fatos sociais como parte de um<br />

sistema de convenções e valores.” (Saussure, 1916, p. 93).<br />

Saussure rompe com seus antecessores imediatos (os comparatistas), rompe<br />

com o evolucionismo e privilegia a investigação sincrônica para ter acesso ao<br />

sistema. Ilustra o privilégio do aspecto sincrônico <strong>da</strong> linguagem a metáfora do<br />

jogo de xadrez:<br />

“Numa parti<strong>da</strong> de xadrez, qualquer posição <strong>da</strong><strong>da</strong> tem como característica<br />

singular estar liberta<strong>da</strong> de seus antecedentes; é totalmente indiferente que se<br />

tenha chegado a ela por um caminho ou outro; o que acompanhou to<strong>da</strong> a parti<strong>da</strong><br />

não tem a menor vantagem sobre o curioso que vem espiar o estado do jogo no<br />

momento crítico; para descrever a posição, é perfeitamente inútil recor<strong>da</strong>r o que<br />

ocorreu dez segundos antes. Tudo isso se aplica igualmente à língua e consagra<br />

a distinção radical do diacrônico e do sincrônico” (Saussure, 1916, p. 104).<br />

Esse novo paradigma metodológico possibilitou a realização de grandes<br />

progressos na descrição <strong>da</strong>s línguas, permitiu à lingüística libertar-se <strong>da</strong> tutela<br />

historicista, favorecendo a sua autonomia como ciência, mas tudo isso, segundo<br />

alguns de seus críticos, ao alto custo de uma a-historici<strong>da</strong>de.<br />

6.2.1 Objeto e Método <strong>da</strong> Lingüística<br />

Da mesma maneira que reserva à diacronia um secundário dentro dos<br />

estudos lingüísticos, Saussure defende a idéia de que a fala também constitui um<br />

objeto sem grande interesse para o lingüista. Nos termos saussurianos, a fala é<br />

heterogênea, multifaceta<strong>da</strong> e assistemática, é a realização concreta, circunstancial<br />

e variável <strong>da</strong> língua. A língua, por sua vez, é conceitua<strong>da</strong> como sendo “a parte<br />

social <strong>da</strong> linguagem, exterior ao indivíduo, que por si só não pode nem criá-la<br />

nem modifi cá-la”.<br />

271


272<br />

Apesar de não afi rmar explicitamente que a língua é um sistema abstrato, a<br />

noção de sistema de Saussure expressa uma postura abstrata conceitual <strong>da</strong> língua.<br />

Saussure deixa claro que a ciência lingüística só tem acesso ao estágio de ciência<br />

na condição de delimitar muito bem o seu objeto de estudo: a língua. Para tanto,<br />

a lingüística deve desembaraçar-se dos resíduos <strong>da</strong> fala.<br />

“A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo<br />

registra passivamente [...] Ela é a parte social <strong>da</strong> linguagem, exterior ao indivíduo,<br />

que, por si só, não pode nem criá-la nem modifi cá-la; ela não existe senão em<br />

virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.<br />

A língua é uma coisa de tal modo distinta que um homem privado do uso <strong>da</strong><br />

fala conserva a língua, contanto que compreen<strong>da</strong> os signos que ouve. A língua,<br />

distinta <strong>da</strong> fala, é um objeto que se pode estu<strong>da</strong>r separa<strong>da</strong>mente. Não falamos<br />

mais as línguas mortas, mas podemos perfeitamente assimilar-lhes o organismo<br />

lingüística. A língua, não menos a fala, é um objeto de natureza concreta, o que<br />

oferece grande vantagem para o seu estudo”. (Saussure, 1916, p. 22-23).<br />

A conseqüência desta posição de Saussure é a exclusão do sujeito falante<br />

por parte <strong>da</strong> lingüística. A descoberta saussuriana de que a língua tem um<br />

funcionamento que independe do falante, independe do indivíduo, constitui<br />

o ponto chave para a expulsão do sujeito <strong>da</strong>s preocupações científi cas com<br />

a linguagem. Nesta perspectiva, por detrás <strong>da</strong> língua não estariam falantes,<br />

motivações, etc, estariam outras estruturas. Como já dissemos, Saussure conceitua<br />

a língua como sistema e como fato social. É, essencialmente, por ser um sistema<br />

auto-sufi ciente, não por ser social, que a língua independeria do indivíduo.<br />

“Na língua só existem diferenças. (...) Quer se considere o signifi cado, quer o<br />

signifi cante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema<br />

lingüística, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste<br />

sistema. O que haja de idéia ou de matéria fônica num signo importa menos que o que<br />

existe ao redor dele nos outros signos. A prova disso é que o valor de um termo pode<br />

modifi car-se sem que se lhe toque quer no sentido quer nos sons, unicamente pelo fato<br />

de um termo vizinho ter sofrido modifi cação” (Saussure, 1916: 139).<br />

O essencial <strong>da</strong> teoria saussuriana está, portanto, em mostrar que a língua<br />

é um sistema de valores constituído não por conteúdos ou produtos de uma<br />

vivência, mas por diferenças puras. De fato, Saussure estabelece a idéia de que<br />

ca<strong>da</strong> elemento <strong>da</strong> língua só adquire valor na medi<strong>da</strong> em que se relaciona com<br />

o todo de que faz parte. Para ele, não se pode tratar o signo como enti<strong>da</strong>de<br />

autônoma, mas deve-se vê-lo como parte de um sistema, onde as distinções é que<br />

são importantes e, por tal razão, ele afi rma que as <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s lingüísticas têm uma<br />

identi<strong>da</strong>de puramente relacional.<br />

Ain<strong>da</strong> de acordo com Saussure, enquanto to<strong>da</strong>s as inovações <strong>da</strong> fala<br />

permanecerem individuais, não há porque levá-las em conta, pois o objeto de<br />

estudo <strong>da</strong> lingüística é a língua; as inovações <strong>da</strong> fala só entram no campo de<br />

observação do lingüista no momento em que a coletivi<strong>da</strong>de as acolhe.<br />

“Tudo quanto seja diacrônico na língua, não o é senão pela fala. É na fala que<br />

se acha o germe de to<strong>da</strong>s as modifi cações: ca<strong>da</strong> uma delas é lança<strong>da</strong>, a princípio,


por um certo número de indivíduos, antes de entrar em uso” (Saussure, 1916:<br />

115).<br />

Ao separar a língua <strong>da</strong> fala, Saussure separou ao mesmo tempo o social do<br />

individual, o essencial do acessório. Conforme Dosse (1991), a oposição formula<strong>da</strong><br />

por Saussure entre língua e fala, entre um código objetivo e a utilização desse<br />

código pelos sujeitos, resulta no anti-humanismo teórico, e essa negação do<br />

homem (como também <strong>da</strong> história) vai passar a ser um elemento essencial do<br />

paradigma estruturalista, “tudo se passa como se ninguém falasse”. De fato, o<br />

estruturalismo caracteriza-se tanto por abstrair a língua <strong>da</strong> prática social na qual<br />

ela se manifesta como por destituí-la de seu caráter histórico, como se a língua<br />

estivesse desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e imune às contingências do tempo. E como<br />

a história SE fi zesse, designando este SE algo absolutamente anônimo.<br />

Diante <strong>da</strong> predileção de Saussure pelo estudo <strong>da</strong> língua, a lingüística<br />

limitou-se ao estudo restritivo do código, separa<strong>da</strong> de suas condições de<br />

aparecimento e de sua signifi cação. Assim, Saussure escapa a to<strong>da</strong> e qualquer<br />

correlação entre duas de suas proposições: aquela segundo a qual a língua é um<br />

sistema de signos, e aquela segundo a qual a língua é um fato social, privilegiando<br />

o signo e não o sentido. Esta opção pelo signo se converterá numa <strong>da</strong>s principais<br />

características do paradigma estruturalista e num de seus principais “furos”<br />

teóricos. Ao conceber a língua como estrutura, como código, deixa-se de lado<br />

o fato de uma palavra ou enunciado poder ter vários sentidos. De Saussure,<br />

portanto, decorre o postulado <strong>da</strong> monofonia.<br />

No entanto, se a postura saussuriana é por defi nição restritiva, ela se inscreve<br />

num projeto muito amplo de construção de uma semiologia geral que integra to<strong>da</strong>s<br />

as disciplinas que se interessam pela vi<strong>da</strong> dos signos no seio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social:<br />

As categorias saussurianas serviram de instrumento epistemológico ao<br />

estruturalismo em geral. Uma vez estabeleci<strong>da</strong>s as regras próprias <strong>da</strong> lingüística,<br />

ela, por seu rigor e seu grau de formalização, arrastou em sua esteira to<strong>da</strong>s as<br />

outras disciplinas e fazendo-as assimilar seu programa e seus métodos, mesmo<br />

que os diversos trabalhos tomassem certas liber<strong>da</strong>des com a letra saussuriana a<br />

fi m de a<strong>da</strong>ptá-la à especifi ci<strong>da</strong>de de seus respectivos campos. Tornou-se corrente<br />

aceitar que tudo funciona mais ou menos como uma linguagem (os sistemas de<br />

parentesco, o inconsciente, a troca de bens, etc). A lingüística, na sua fase póssaussuriana,<br />

serviu de ciência-piloto em domínios variados: na antropologia<br />

(Lévi-Strauss), na psicanálise (Lacan), na literatura (Barthes), dentre outros.<br />

Leitura Complementar: PAVEAU, Marie-Anne & SARFATI, Georges-Élia. As<br />

grandes teorias <strong>da</strong> Lingüística. Da gramática compara<strong>da</strong> à pragmática. São<br />

Carlos: Claraluz, 2006, p. 63-84.<br />

6.3 Panorama Dos Estudos Pós-saussurianos<br />

O Estruturalismo, ao longo do tempo, teve que enfrentar vários limites,<br />

especialmente dentro de suas próprias fronteiras. Algumas <strong>da</strong>s criticas ao<br />

programa estruturalista incluem a desconsideração que faz dos aspectos cruciais<br />

273


274<br />

do fenômeno lingüístico, como o papel do sujeito e <strong>da</strong> fala, como elementos<br />

previstos no sistema <strong>da</strong> língua; a visão reducionista <strong>da</strong>s relações entre Diacronia<br />

e Sincronia; o apagamento de fenômenos semântico-textuais no estudo <strong>da</strong> língua.<br />

Criticas mais pesa<strong>da</strong>s acusam o estruturalismo de ser anti-historicista, antiidealista<br />

e anti-humanista.<br />

Em meados do século XX, as descrições produzi<strong>da</strong>s pelo estruturalismo<br />

geraram insatisfação em alguns lingüistas formalistas. Sabia-se como eram as<br />

muitas línguas; faltava-se saber porque eram assim. Deveria haver um passo além<br />

<strong>da</strong> descrição: a explicação. Só desse modo se poderia falar em teoria lingüística.<br />

Iniciava, assim, um novo programa de investigação: a gramática gerativa.<br />

A gramática gerativa, conheci<strong>da</strong> inicialmente como gramática gerativotransformacional,<br />

desenvolveu-se a partir dos trabalhos do lingüista norteamericano<br />

Noam Chomsky e também se insere dentro de umas perspectiva<br />

formalista <strong>da</strong> língua. Uma gramática gerativa não se propõe a ser uma descrição<br />

de <strong>da</strong>dos de uma determina<strong>da</strong> língua, mas uma “teoria que se volta para a forma<br />

e o signifi cado <strong>da</strong>s expressões nessa língua”.<br />

A Gramática Universal, na versão gerativa, é uma hipótese para explicar<br />

o conhecimento lingüístico que propõe a existência de uma base genética para<br />

a facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem. A base genética está representa<strong>da</strong> nos princípios<br />

obrigatórios para to<strong>da</strong>s as línguas e nos princípios abertos (ou parâmetros), que<br />

a eles se somam. O contato com os <strong>da</strong>dos encontrados no ambiente desencadeia<br />

na mente/cérebro <strong>da</strong> criança um processo que resultará numa gramática<br />

particular, ao serem estabelecidos os valores para ca<strong>da</strong> parâmetro. Os parâmetros<br />

representam o mecanismo que leva à seleção <strong>da</strong> gramática <strong>da</strong> língua materna,<br />

dentre muitas gramáticas possíveis com base numa facul<strong>da</strong>de universal que todo<br />

o indivíduo teria ao nascer. Em outras palavras, a criança desenvolve uma língua<br />

como o resultado de um severo processo de restrições <strong>da</strong>s muitas possibili<strong>da</strong>des<br />

que lhe estariam disponíveis ao nascer.<br />

O enfoque gerativista assume que uma língua não é aprendi<strong>da</strong>. A linguagem<br />

não se constitui num hábito que alguém ou a socie<strong>da</strong>de ensina a um ser que não<br />

possui qualquer habili<strong>da</strong>de especial para isso e que aprende uma língua por um<br />

misterioso mecanismo de imitação. Ao contrário: o organismo humano já nasce<br />

preparado para, a partir <strong>da</strong> exposição a uma língua, selecionar as características<br />

nela presentes, e <strong>da</strong>í desenvolvê-la. Por essa razão, qualquer criança domina sua<br />

língua nativa tão rapi<strong>da</strong>mente – mesmo aquela que, portadora de defi ciências<br />

mentais, nunca alcançarão grandes progressos escolares. Esta visão tem levado<br />

a compreender as línguas naturais como epifenômenos, isto é, como resultado<br />

acidental <strong>da</strong> interação de vários princípios independentes.<br />

Tal concepção de linguagem coincide apenas em parte com aquela que<br />

podemos encontrar em textos mais antigos de lingüística. Como termo técnico<br />

<strong>da</strong> lingüística, o termo linguagem esteve sempre restrito apenas à facul<strong>da</strong>de<br />

humana. No entanto, lingüistas estruturalistas, como o brasileiro J. Matt oso<br />

Câmara Jr., embora defi nissem a lingüística como a ciência <strong>da</strong> linguagem, não se<br />

interessavam propriamente pela linguagem, mas pelas línguas, uma vez que estas<br />

concretizavam os diferentes sistemas de comunicação humana. Para a lingüística<br />

estrutural não interessa, a rigor, a linguagem em si mesma, considera<strong>da</strong> como<br />

uma facul<strong>da</strong>de abstrata do homem. O seu objeto é o estudo dos sistemas de<br />

linguagem, ou línguas, as quais podemos assim defi nir: conjunto de convenções


necessárias, adota<strong>da</strong>s pelo corpo social, a fi m de permitir o exercício <strong>da</strong> linguagem<br />

por parte do indivíduo.<br />

A lingüística estrutural partiu <strong>da</strong> hipótese de que as línguas podem diferir<br />

entre si sem limites e de modos imprevisíveis, uma vez que aprender uma<br />

língua era formar hábitos por meio de mecanismos de imitação. O interesse e a<br />

relevância em se pesquisar uma gramática universal inexistem nesse período.<br />

Para o gerativismo, a competência gramatical ou conhecimento <strong>da</strong><br />

gramática ou sistema computacional ou língua-I é exclusivamente humano. É ele<br />

que permite ao indivíduo criar e compreender um número infi nito de frases de<br />

sua língua. Um indivíduo que sabe a sua língua é aquele que alcançou o estágio<br />

relativamente estável <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem. Esse estágio estável é também<br />

chamado conhecimento lingüístico. No gerativismo, ao se focalizar uma língua<br />

como conhecimento lingüístico, passa-se também a concebê-la como um fenômeno<br />

individual e não social. Para o estruturalismo, a língua provém de um corpo social.<br />

A competência gramatical é apenas um dos módulos do conhecimento<br />

lingüístico, aquele que li<strong>da</strong> com as estruturas gramaticais que podem existir<br />

numa língua. Ficam de fora dessa perspectiva, aspectos relevantes para a pesquisa<br />

sobre o funcionamento de uma língua, como, por exemplo, o conhecimento que<br />

os membros de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> têm <strong>da</strong>s regras que tornam o uso lingüístico<br />

adequado às diferentes situações sociais. Numa proposta funcionalista são os<br />

aspectos comunicativos e sociais que recebem a ênfase <strong>da</strong> análise.<br />

Na gramática gerativa, para explicar o porquê de a gramática <strong>da</strong>quela língua<br />

se apresentar de tal ou qual modo, o lingüista deve esclarecer de que maneira ela<br />

concretiza possibili<strong>da</strong>des previstas pela GU, de que modo os princípios <strong>da</strong> GU<br />

interagem com os <strong>da</strong>dos, fi xando determinados valores para parâmetros que,<br />

inicialmente, estariam em aberto para a criança. Se todos os seres humanos têm<br />

cérebros relativamente semelhantes e se todos podem ter como língua materna,<br />

em princípio, qualquer <strong>da</strong>s línguas humanas, deve haver algo de comum a to<strong>da</strong>s<br />

as línguas, apesar <strong>da</strong>s diferenças óbvias entre elas. Ao conseguir fazer tal relação<br />

diz-se de seu trabalho que alcançou a adequação explicativa. Essa é a razão de se<br />

afi rmar que o objetivo <strong>da</strong> gramática gerativa é o de construir uma teoria sobre a<br />

facul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem e não “apenas” descrever as línguas do mundo.<br />

Leitura Complementar: PAVEAU, Marie-Anne & SARFATI, Georges-Élia. As<br />

grandes teorias <strong>da</strong> Lingüística. Da gramática compara<strong>da</strong> à pragmática. São<br />

Carlos: Claraluz, 2006, p. 147-172.<br />

ATENÇÃO!<br />

As teorias <strong>da</strong> Lingüística serão explora<strong>da</strong>s nos próximos fascículos do curso.<br />

Por enquanto, nos basta ter uma visão panorâmica do tratamento <strong>da</strong>do aos<br />

fenômenos <strong>da</strong> língua<br />

AGORA É SUA VEZ: Agora é a sua vez de revisar o que estudou até<br />

agora. Releia os textos sugeridos, os resumos e fi chamentos que você<br />

elaborou, bem como as discussões que fi zemos aqui e escreva suas<br />

impressões sobre a disciplina.<br />

275


276<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, Marcos; STUBBS, Michael & GAGNÉ, Gilles. Língua Materna.<br />

Letramento, Variação & Ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />

FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Lingüística. Vol. 1 Objetos Teóricos. São<br />

Paulo: Contexto, 2002.<br />

PAVEAU, Marie-Anne & SARFATI, Georges-Élia. As grandes teorias <strong>da</strong><br />

lingüística. Da gramática compara<strong>da</strong> à pragmática. São Carlos: Claraluz, 2006<br />

PFEIFFER, Cláudia Castellanos & NUNES, José Horta (orgs.) Introdução às<br />

Ciências <strong>da</strong> Linguagem. Linguagem, História e Conhecimento. Campinas: Pontes<br />

Editores, 2006.<br />

WEEDWOOD, Bárbara. História Concisa <strong>da</strong> Lingüística. Trad. Marcos Bagno.<br />

São Paulo: Parábola Editorial, 2002


INTRODUÇÃO À EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

Descrição do Curso<br />

Marta Maria Gomes Van der Linden<br />

Este curso tem por objetivo apoiar os estu<strong>da</strong>ntes de cursos virtuais na teoria<br />

e prática do ensino e aprendizagem on-line. Terá como foco os fun<strong>da</strong>mentos<br />

teóricos e metodológicos que orientam a educação virtual. Será utilizado um<br />

ambiente virtual de aprendizagem (Moodle), ao mesmo tempo em que os<br />

participantes serão levados a refl etir sobre as possibili<strong>da</strong>des e limites oferecidos<br />

pelas tecnologias aplica<strong>da</strong>s à educação. Os participantes terão oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de<br />

vivenciar um modelo de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual orienta<strong>da</strong> para a aprendizagem<br />

colaborativa e refl etir sobre experiências internacionais e nacionais de Educação a<br />

Distância (EAD). No decorrer do curso, vivenciarão algumas práticas de avaliação<br />

formativa em educação on-line e participarão de ativi<strong>da</strong>des colaborativas de<br />

estudos e pesquisas volta<strong>da</strong>s para educação à distância.<br />

Objetivos<br />

Ao fi nal do curso ca<strong>da</strong> participante deverá estar habilitado para:<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Metodologia<br />

Compreender o conceito de EAD como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de ensino, suas<br />

especifi ci<strong>da</strong>des, defi nições e evolução ao longo do tempo;<br />

Participar de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual de aprendizagem;<br />

Conhecer as regras de convivência para participação em com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais<br />

e as ferramentas de comunicação: emoticons, netiqueta, clareza, citações e diretrizes<br />

de feedback;<br />

Utilizar as ferramentas de comunicação síncronas e assíncronas no Ambiente<br />

<strong>Virtual</strong> Moodle;<br />

Participar de ativi<strong>da</strong>des de ambientação no Moodle e experimentar seus<br />

recursos e ferramentas como forma de viabilizar sua participação como aluno<br />

virtual em disciplinas posteriores do seu Curso <strong>Virtual</strong>.<br />

O curso deverá desenvolver-se numa perspectiva metodológica centra<strong>da</strong><br />

no aluno. A sua interação com os demais alunos e com os tutores e docentes se<br />

<strong>da</strong>rá através de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem em rede apoia<strong>da</strong> na Internet.<br />

Também através <strong>da</strong> Internet os alunos poderão acessar o conteúdo <strong>da</strong> disciplina e<br />

realizar as ativi<strong>da</strong>des acadêmicas.<br />

277


278<br />

A disciplina focará especialmente o desenvolvimento de habili<strong>da</strong>des e<br />

competências para a aprendizagem colaborativa e o exercício <strong>da</strong> autonomia.<br />

Será adota<strong>da</strong> a abor<strong>da</strong>gem construtivista, buscando resgatar os<br />

conhecimentos prévios dos alunos e o trabalho com temas que façam parte<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de dos mesmos e que sejam signifi cativos do ponto de vista de seus<br />

interesses de aprendizagem.<br />

Projeto <strong>da</strong> Disciplina<br />

A disciplina está estrutura<strong>da</strong> em seis Uni<strong>da</strong>des Temáticas Integra<strong>da</strong>s.<br />

Ca<strong>da</strong> uma contém itens e subitens que remetem às outras <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s. Os temas<br />

abor<strong>da</strong>dos podem ser acompanhados de apresentações expositivas, animações,<br />

mapas conceituais, vídeos ou ilustrações, indicações de textos de apoio e<br />

problematizações de questões do texto. Para ca<strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> pode ser aberta uma<br />

discussão no fórum e proposta uma ativi<strong>da</strong>de de avaliação.<br />

Critérios de Avaliação<br />

Esta disciplina é composta de seis <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s temáticas. Os conteúdos dessas<br />

<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s serão apresentados no Moodle ao longo do semestre letivo.<br />

A ca<strong>da</strong> semana novos materiais e ativi<strong>da</strong>des serão disponibilizados na<br />

nossa sala de aula virtual. Os participantes devem acompanhar ca<strong>da</strong> semana,<br />

estu<strong>da</strong>ndo os materiais e executando as ativi<strong>da</strong>des propostas. Além disso,<br />

procurem acompanhar e participar <strong>da</strong>s discussões nos Fóruns.<br />

Neste fascículo, serão apresentados do material para estudo, com o<br />

conteúdo <strong>da</strong>s Uni<strong>da</strong>des e referências bibliográfi cas para complementar seus<br />

estudos em EAD. O fascículo não esgota os conteúdos a serem estu<strong>da</strong>dos, apenas<br />

os apresenta para discussão. Portanto, a avaliação dos temas não se resume ao<br />

exposto neste fascículo.<br />

O sistema de avaliação <strong>da</strong> disciplina Introdução à Educação a Distância<br />

seguirá os critérios abaixo relacionados:<br />

1. A avaliação totaliza 300 pontos, sendo 200 pontos pela participação nas<br />

diversas ativi<strong>da</strong>des do Moodle e 100 pontos pela prova presencial no Pólo.<br />

2.<br />

A parte <strong>da</strong> avaliação relativa à participação no Moodle (200 pontos)<br />

será referente não apenas à quanti<strong>da</strong>de, mas especialmente à quali<strong>da</strong>de<br />

dessa participação nos diversos fóruns <strong>da</strong> disciplina, e na realização<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des propostas no ambiente: lição, wikis, fóruns, glossários,<br />

questionários, tarefas on line e off line, chat. etc)<br />

Será atribuí<strong>da</strong> uma pontuação a ca<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de proposta no ambiente, de<br />

acordo com a difi cul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de. A pontuação de ca<strong>da</strong> uma deverá<br />

ser informa<strong>da</strong> previamente ao aluno, através do Moodle.<br />

Você terá uma aula presencial para conhecer as ferramentas do Moodle e<br />

se familiarizar com o ambiente virtual de aprendizagem ( Moodle). As<br />

Ativi<strong>da</strong>des relativas a esta fase de ambientação valem 10 pontos.<br />

O conteúdo e o horário de realização <strong>da</strong> prova presencial serão previamente<br />

divulgados pela coordenação do curso e deverão ser anunciados no Moodle


3.<br />

e no mural de seu Pólo. O aluno que não comparecer a prova presencial<br />

semestral terá direito a uma prova de reposição com o mesmo conteúdo e<br />

horário previamente determinado pela coordenação do curso.<br />

Haverá um exame fi nal presencial para o aluno que não atingir a média de<br />

70 pontos no semestre. Para participar do exame fi nal o aluno deverá ter<br />

atingido pelo menos a média de 40 pontos nas avaliações parciais.<br />

Requisitos mínimos de participação<br />

Observe os seguintes requisitos que são exigidos no decorrer <strong>da</strong> disciplina:<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Verifi que seu e-mail diariamente;<br />

Visite a sala de aula virtual pelo menos três vezes por semana no<br />

endereço www.ead.ufpb.br (tenha sempre em mente seu login e senha<br />

para acessá-lo.);<br />

Participe <strong>da</strong>s discussões e <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des colaborativas síncronas e<br />

assíncronas;<br />

Verifi que semanalmente o material de estudo indicado no Moodle. Faça<br />

download do material e leia os textos indicados. Se tiver difi cul<strong>da</strong>de de<br />

ler na tela, imprima o material de estudo;<br />

Visite a biblioteca de seu Pólo para consultar a bibliografi a básica do<br />

curso;<br />

Faça as ativi<strong>da</strong>des indica<strong>da</strong>s a ca<strong>da</strong> semana e envie através do Moodle<br />

para serem avalia<strong>da</strong>s.<br />

Bibliografi a Comenta<strong>da</strong><br />

PALLOFF, Rena M. e PRATT, Keith. O aluno virtual: um guia para<br />

trabalhar com estu<strong>da</strong>ntes on-line. Tradução: Vinícius Figueira. Porto<br />

Alegre: Artmed, 2004.<br />

“A ca<strong>da</strong> minuto, no mundo, caem novas barreiras de tempo e espaço,<br />

venci<strong>da</strong>s pela profusão de tecnologias e pelo incessante e veloz aperfeiçoamento<br />

<strong>da</strong>s mídias já utiliza<strong>da</strong>s. Nesse contexto, a Educação a Distância, mais<br />

correntemente conheci<strong>da</strong> como EAD, evolui com a mesma intensi<strong>da</strong>de e<br />

veloci<strong>da</strong>de. Mas cabe a pergunta: e o aluno? Ou seja, como o novo aluno, o aluno<br />

virtual, se comporta ante esse universo, e o que os agentes envolvidos no processo<br />

279


280<br />

educacional podem fazer para facilitar-lhe o aprendizado. Esse é o tema do livro.<br />

Divide-se basicamente a obra em duas partes. Na primeira, traça-se um perfi l do<br />

estu<strong>da</strong>nte virtual, indispensável ao êxito de qualquer experiência educacional do<br />

gênero. Na segun<strong>da</strong> parte, os autores apresentam um guia para se trabalhar com<br />

alunos a distância, nota<strong>da</strong>mente por meio do computador. Leitura interessante<br />

para os que se interessam pelo assunto ou que atuam nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

educação”. Esta resenha foi transcrita integralmente do Instituto Legislativo<br />

Brasileiro e está disponível no site do Senado <strong>Federal</strong> htt p://www.senado.gov.br<br />

PALLOFF, R & PRATT, K. Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de<br />

Aprendizagem no Ciberespaço: estratégias efi cientes para a sala de<br />

aula on-line. Tradução: Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2002,<br />

247 p.<br />

“Este guia prático contém estudos de caso e exemplos retirados de uma<br />

ampla varie<strong>da</strong>de de cursos on-line bem-sucedidos. Os autores apresentam<br />

estratégias para li<strong>da</strong>r com os seguintes desafi os: envolvimento do aluno com o<br />

assunto estu<strong>da</strong>do; registro <strong>da</strong> presença e <strong>da</strong> participação; trabalho com alunos<br />

que não participam <strong>da</strong> aula; compreensão dos sinais que indicam que o aluno<br />

passa por um problema e construção de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s on-line que incluam a<br />

interação pessoal”. Resenha transcrita integralmente do editor. Disponível em<br />

www.submarino.com.br<br />

LITWIN, Edith.(org.) Educação a Distância: temas para o debate de<br />

uma nova agen<strong>da</strong> educativa. Porto Alegre: Artmed. 2001.110 p.<br />

A educação a distância aparece no novo século como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de que<br />

revisa seus princípios fun<strong>da</strong>mentais e reconstrói seu sentido e abrangência para o<br />

ensino e a aprendizagem. A argentina Edith Litwin, professora <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />

de Buenos Aires, compila nessa obra artigos de interesse para quem busca<br />

conhecer mais e melhor os diversos elementos que envolvem a educação a<br />

distância (EAD). Di<strong>da</strong>ticamente, um grupo de importantes autores reunidos por<br />

Litwin examina aspectos centrais <strong>da</strong> educação a distância. Trata dos seguintes<br />

temas que representam os maiores desafi os dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educacional: a<br />

quali<strong>da</strong>de do ensino; a colaboração interinstitucional; a produção de materiais específi cos<br />

para EAD; e por último, mas talvez o mais importante, o papel do tutor. Quanto a<br />

esse último tema, vale ressaltar que o tutor, no campo <strong>da</strong> educação a distância,<br />

necessita atuar como coringa, exercendo as funções de mestre, incentivador,<br />

revisor e administrador, dentre outras, requeri<strong>da</strong>s por uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

ensino em que, na outra ponta, encontra-se um aluno freqüentemente solitário no<br />

ambicioso processo de conhecer. Uma resenha do livro está disponível em htt p://<br />

www.revistaconecta.com/dicas/reais.htm


PRETI, Oreste (Org.) Educação a Distância: construindo signifi cados.<br />

Brasília: Ed.Plano. 2000. 268 p.<br />

Oreste Preti é professor do Núcleo de Educação a Distância <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>Federal</strong> do Mato Grosso - NEAD. Participou <strong>da</strong> primeira experiência de um curso<br />

de graduação oferecido por uma universi<strong>da</strong>de brasileira na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de EAD em<br />

1995. A obra Educação a Distância: construindo signifi cados (2000) é fruto dessa<br />

experiência e busca fazer um contraponto crítico <strong>da</strong>s tendências dominantes,<br />

agregando uma coletânea de trabalhos selecionados pelo autor. É composta por<br />

12 artigos que trazem ao debate temas relacionados a educação a distância num<br />

mundo globalizado, particularizando as questões inerentes ao cenário do terceiro<br />

mundo. Põe ênfase no papel <strong>da</strong> EAD nos países em desenvolvimento, no sentido<br />

de enfrentar os desafi os político-social, econômico, pe<strong>da</strong>gógico e tecnológico que<br />

a socie<strong>da</strong>de, especialmente nos países do terceiro mundo. São abor<strong>da</strong>dos ain<strong>da</strong>, a<br />

questão <strong>da</strong> regulamentação <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de, o uso <strong>da</strong>s tecnologias, os problemas<br />

relacionados a orientação acadêmica entre outros.<br />

PETERS, Ott o. Didática do Ensino a Distância: experiência e estágio<br />

<strong>da</strong> discussão numa visão internacional. Tradução: Ilson Kayser.<br />

S.Leopoldo: Editora UNISINOS. 2001. 401 p.<br />

Este livro é indispensável para aqueles que atuam ou pretendem atuar<br />

no campo <strong>da</strong> Educação a Distância. Nos primeiros capítulos o autor esboça<br />

uma teoria <strong>da</strong> Educação a Distância, fortemente apoia<strong>da</strong> nas contribuições<br />

do especialista norte-americano Michael G. Moore e sua “Teoria <strong>da</strong> Distância<br />

Transacional”. Faz um levantamento de <strong>da</strong>dos e a partir <strong>da</strong> caracterização <strong>da</strong><br />

relação dinâmica entre Diálogo, Estrutura e Autonomia que defi ne o grau de<br />

distância ou proximi<strong>da</strong>de transacional no processo de ensino-aprendizagem em<br />

geral, presencial ou à distância. No quarto capítulo, o autor se propõe a tratar<br />

<strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> distância transacional na prática. Discute a aprendizagem<br />

dialógica, a aprendizagem estrutura<strong>da</strong> e o estudo autônomo. No quinto capítulo,<br />

abor<strong>da</strong> as concepções modifi cadoras. Trata do ensino aberto, <strong>da</strong> educação permanente,<br />

do ensino industrializado e <strong>da</strong> educação na pós moderni<strong>da</strong>de. No capítulo seis,<br />

denominado Informação e Comunicação Digital, explora o ensino na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>Virtual</strong>. Apresenta concepções otimistas, realistas e análises didáticas e traz ao debate<br />

as contribuições <strong>da</strong> Fernuniversitat. Os modelos de ensino e aprendizagem a<br />

distância são apresentados no capítulo sete. O livro fi naliza com o oitavo capítulo<br />

em que o autor apresenta Análises e Perspectivas <strong>da</strong> Educação a Distância. Uma<br />

resenha sobre o livro produzi<strong>da</strong> por Wilson Azevedo está disponível do site <strong>da</strong><br />

ABED. htt p://www.abed.org.br<br />

281


282<br />

Uni<strong>da</strong>des Temáticas Integra<strong>da</strong>s<br />

O conteúdo <strong>da</strong> disciplina está estruturado em seis <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s temáticas<br />

integra<strong>da</strong>s:<br />

Uni<strong>da</strong>de 1 Uma Introdução aos Fun<strong>da</strong>mentos Teóricos e Metodológicos<br />

<strong>da</strong> Educação a Distância<br />

1. Da Educação a Distância à Educação <strong>Virtual</strong>;<br />

2. A Sala de Aula <strong>Virtual</strong> Moodle;<br />

3. <strong>UFPB</strong>VIRTUAL no contexto <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil – UAB;<br />

4. O Professor, o Aluno e a Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem.<br />

Uni<strong>da</strong>de 2 Apresentação e Ambientação <strong>da</strong> Sala Aula <strong>Virtual</strong> Moodle<br />

1. O Ambiente <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem Moodle;<br />

2. Filosofi a do Moodle;<br />

3. Ferramentas do Moodle:<br />

Materais de Estudo ou Recursos: Texto Simples; Link a um<br />

Arquivo ou Site; Livro.<br />

Ativi<strong>da</strong>des: Chat; Fórum; Tarefa; Pesquisa de Avaliação;<br />

Questionário; Diário; Glossário; Wiki; Lição; Base de Dados.<br />

Uni<strong>da</strong>de 3 O Aluno <strong>Virtual</strong><br />

1. Quem é o Aluno <strong>Virtual</strong>?<br />

2. Comportamento Autônomo;<br />

3. Regras de convivência e Ferramentas de comunicação para<br />

participação em com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem: ética; netiqueta;<br />

emoticons; clareza; citações; diretrizes para feedback.<br />

Uni<strong>da</strong>de 4 Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de Aprendizagem<br />

1. Ambientes Virtuais de Aprendizagem - AVA;<br />

2. Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de Aprendizagem;<br />

3. O Papel do Aluno na Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> <strong>Virtual</strong>;<br />

4. Interação e Interativi<strong>da</strong>de;<br />

5. O Silêncio <strong>Virtual</strong>.<br />

Uni<strong>da</strong>de 5 Avaliação em Ambientes Virtuais de Aprendizagem apoiados<br />

pela Internet<br />

1. As Dimensões <strong>da</strong> Avaliação;<br />

2. Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Avaliação Educacional;<br />

3. Avaliação em Ambientes Virtuais Interativos:<br />

4. Objetos de Avaliação na Educação On-line<br />

5. Recursos e Ferramentas <strong>da</strong> Avaliação em Educação On-line;<br />

6. Instrumentos e Procedimentos de Avaliação dos Alunos e <strong>da</strong> Disciplina.<br />

Uni<strong>da</strong>de 6 Histórico <strong>da</strong> Educação a Distância<br />

1. Contexto Histórico;<br />

2. Surgimento e Evolução <strong>da</strong> EAD;<br />

3. Gerações de EAD;<br />

4. A inserção <strong>da</strong> EAD no Brasil;<br />

5. Regulamentação <strong>da</strong> EAD no Brasil.<br />

Concepção legal <strong>da</strong> EAD no Brasil;<br />

Determinações legais sobre avaliação do aluno na EAD;<br />

Números recentes <strong>da</strong> EAD no Brasil.


Mapa Conceitual <strong>da</strong> Disciplina Introdução à Educação a Distância<br />

283


284


285


FORMAS


UNIDADE I<br />

UMA INTRODUÇÃO AOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS E<br />

METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

1.1 - Situando a Temática<br />

Nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> trataremos de questões relaciona<strong>da</strong>s aos fun<strong>da</strong>mentos<br />

básicos do ensino - aprendizagem na Educação a Distância e <strong>da</strong>s metodologias<br />

que dão sustentação a essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação. Na perspectiva de<br />

entendermos nossa inserção nesse processo, apresentaremos a <strong>UFPB</strong>VIRTUAL<br />

como integrante do Sistema <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil - UAB.<br />

Acesse o site<br />

htt p://www.uab.capes.gov.br<br />

Acesse o site e a biblioteca virtual <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong><br />

www.virtual.ufpb.br<br />

Discutiremos o modelo de educação adotado pela <strong>UFPB</strong>VIRTUAL e as<br />

expectativas que temos com relação à implantação dos cursos. Faremos uma<br />

breve apresentação de nosso ambiente virtual de aprendizagem e dos recursos<br />

didáticos que apoiarão o desenvolvimento dos cursos. A Figura 1, a seguir,<br />

ilustra o funcionamento <strong>da</strong> aprendizagem em rede que confi gura a base do<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> Educação a Distância na <strong>UFPB</strong>VIRTUAL<br />

Figura 1. A rede de aprendizagem na Educação <strong>Virtual</strong>. Fonte: Palloff & Pratt (2004).<br />

287


288<br />

Como elemento aglutinador e facilitador <strong>da</strong>s relações indica<strong>da</strong>s na Figura<br />

1, o professor titular <strong>da</strong> disciplina que organiza os conteúdos e orienta o processo<br />

educacional, os tutores presenciais atuando diretamente nos Pólos, numa relação<br />

de 1 tutor para ca<strong>da</strong> 25 alunos, os tutores a distância, atuando diretamente junto<br />

aos professores <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>, numa relação de 1 tutor para ca<strong>da</strong> 100 alunos e os<br />

coordenadores de Pólo que organizam o processo e a infra estrutura de apoio em<br />

ca<strong>da</strong> município Pólo.<br />

1.2 - Problematizando a Temática<br />

Uma profusão de projetos de EAD baseados em tecnologias <strong>da</strong> Internet<br />

tem marcado o cenário <strong>da</strong> educação brasileira desde os anos 90. As iniciativas<br />

têm surgido como resposta imediata à necessi<strong>da</strong>de de treinamento empresarial<br />

e-learning e no mundo acadêmico principalmente nas instituições públicas<br />

brasileiras, em projetos de formação de professores no atendimento aos<br />

determinantes do art. 80 <strong>da</strong> Lei de Diretrizes e Bases <strong>da</strong> Educação Nacional (LDB),<br />

que trata <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong> EAD no sistema educacional. (Van der Linden ,2005).<br />

O e-Learning é caracterizado por processos educacionais baseados no uso <strong>da</strong><br />

Internet e <strong>da</strong> colaboração virtual. Inclui entrega de conteúdos através <strong>da</strong> Internet,<br />

extranet, intranet, áudio, vídeo, transmissão via satélite, televisão interativa e CD-<br />

ROM.<br />

Com relação à formação de professores, essa expansão teve impulso em<br />

1996, quando a LDB determinou que em 10 anos todos os professores do País<br />

deveriam possuir nível superior. A falta de vagas para formação de professores<br />

nas Instituições Públicas e a dispersão geográfi ca dos professores “leigos”,<br />

atuantes nos mais longínquos recantos do país, foram fatores que impulsionaram<br />

essa expansão. Embora tenhamos avançado nesse período, sabemos que ain<strong>da</strong><br />

temos um longo caminho a percorrer.<br />

É possível perceber que desde a segun<strong>da</strong> metade dos anos 90 os ambientes<br />

de trabalho, estudo e lazer vêm sendo signifi cativamente impactados pela<br />

incorporação <strong>da</strong>s tecnologias, <strong>da</strong> informação e <strong>da</strong> comunicação. Esses impactos<br />

têm sido percebidos particularmente no mundo do trabalho nas relações que<br />

permeiam a educação e a construção de conhecimentos. Em volta do mundo,<br />

países têm investido em universi<strong>da</strong>des abertas e a distância e atraído um<br />

número ca<strong>da</strong> vez maior de estu<strong>da</strong>ntes. No foco dessa evolução tecnológica,<br />

estão os resultados dos avanços <strong>da</strong> microeletrônica, na forma dos computadores,<br />

de tecnologias digitais, de redes de fi bra ótica e <strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>s de conexão, com<br />

impactos decisivos no modo de ensinar e aprender.<br />

Esse contexto, marcado pelo crescente aumento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de tráfego de<br />

elementos multimídia nas redes de computadores, pela popularização <strong>da</strong> Internet,<br />

e aumento de pesquisas e criação de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA)<br />

estão criando condições técnicas e tornando atraente o mundo <strong>da</strong> Educação a<br />

Distância. Ao mesmo tempo estão provocando novos desafi os em relação aos<br />

modelos tradicionais de ensino-aprendizagem, às metodologias de ensino, à<br />

postura dos docentes e discentes e especialmente à forma de ensinar e aprender.<br />

É nesse cenário que a educação a distância tem sido chama<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r respostas<br />

aos desafi os postos pela socie<strong>da</strong>de do conhecimento.


Em texto escrito por Preti (2001) sobre “Educação a Distância e Globalização:<br />

desafi os e tendências”, o autor apresenta um panorama <strong>da</strong> EAD no Brasil<br />

e no mundo e questiona: qual o sentido dessa expansão? A EAD tem as<br />

potenciali<strong>da</strong>des que estão sendo espera<strong>da</strong>s? Como <strong>da</strong>r conta do divórcio entre o<br />

desenvolvimento dos conhecimentos e as limita<strong>da</strong>s oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de acesso aos<br />

recursos tecnológicos, nota<strong>da</strong>mente a Internet? Como assegurar a expansão <strong>da</strong><br />

educação e sua democratização, garantindo a quali<strong>da</strong>de do processo educacional?<br />

Essas são questões que nortearão nossas discussões, com base na reali<strong>da</strong>de social<br />

em que a educação e a tecnologia são os motores dos processos de aprendizagem<br />

e desenvolvimento na socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Informação.<br />

Figura 2. Educação e Tecnologia em uma nova reali<strong>da</strong>de social. Fonte: Filatro ( 2004).<br />

1.3 - Conhecendo a Temática<br />

1.3.1 Da Educação a Distância à Educação <strong>Virtual</strong><br />

Segundo Moran(2002), a Educação a Distância “é o processo de ensinoaprendizagem,<br />

mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados espacial<br />

e/ou temporalmente”.<br />

Na literatura é comum encontrarmos os termos presencial, semi-presencial,<br />

a distância, virtual e on-line, para designar a natureza do curso:<br />

<br />

A educação presencial pressupõe o contato face a face entre professores<br />

e alunos e tradicionalmente aplica-se a qualquer nível educacional, onde<br />

professores e alunos se encontram sempre num local físico, chamado sala<br />

de aula;<br />

Aprendizagem híbri<strong>da</strong> ou “ Blended learning”, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de onde os cursos<br />

combinam diversos tipos de meios de aprendizagem, tanto através de<br />

tecnologias (e-Learning), como através de métodos tradicionais como o<br />

289


290<br />

ensino presencial. Na educação semi-presencial as ativi<strong>da</strong>des acontecem<br />

em parte na sala de aula e em parte a distância;<br />

O ensino a distância “é um sistema tecnológico de comunicação bidirecional<br />

(multidirecional), que pode ser massivo, baseado em uma ação sistemática<br />

e conjunta de recursos didáticos e o apoio de uma organização e tutoria, que,<br />

separados fi sicamente dos estu<strong>da</strong>ntes, propiciam a esses uma aprendizagem<br />

independente.”(Aretio,2001). A educação a distância pode ter ou não<br />

momentos presenciais, mas acontece fun<strong>da</strong>mentalmente com professores<br />

e alunos separados fi sicamente no espaço e no tempo.<br />

Ao tratar <strong>da</strong>s Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de Educação Apoia<strong>da</strong>s em Redes de<br />

Comunicação, Harasim (2003) apresenta os traços defi nidores de ca<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

educativa, destacando as diferenças e semelhanças entre Aprendizagem<br />

Colaborativa On-line, Educação a Distância On-line e Treinamento On-line baseado<br />

em computador. Um exemplo ilustrativo é apresentado na Figura 3 a seguir.<br />

Figura 3: Três tipos de educação on-line<br />

Fonte : Van der Linden ( 2005)<br />

Em comum às três mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des acima expostas, há o uso do computador e<br />

a independência de lugar e tempo para sua realização. No entanto, as diferenças<br />

substanciais podem ser percebi<strong>da</strong>s com relação às formas de interação, à<br />

condução dos estudos e de apoio aos alunos, conforme indicado na Figura 4.<br />

Figura 4. Características de ca<strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> educação on-line.<br />

Fonte: Van der Linden(2005) a<strong>da</strong>ptado de Harasim(2003).


A Educação a Distância On-line é marca<strong>da</strong> pela idéia de educação em<br />

massa com interação unidirecional (um para muitos), é assíncrona, basea<strong>da</strong> em<br />

textos e media<strong>da</strong> pelo computador. A comunicação se faz entre o estu<strong>da</strong>nte e a<br />

Instituição.<br />

O Treinamento On-line baseado em computador é marcado pela ação<br />

individual entre o sujeito e o material de apoio (um para um), com uso <strong>da</strong><br />

multimídia (softwares, CDs, vídeos) e avaliação informatiza<strong>da</strong> com banco de<br />

respostas para conferência.<br />

Na Aprendizagem Colaborativa On-line a construção do conhecimento<br />

desloca-se <strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de análise do indivíduo para a relação do indivíduo com<br />

o ambiente e a interação com os outros (muitos para muitos, aprendizagem em<br />

grupo). O diálogo assíncrono e a colaboração são característicos desse tipo de<br />

aprendizagem que é concebi<strong>da</strong> como processo social. (Van der Linden,2005)<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Para saber mais leia o capítulo 1 do livro Das tradições à <strong>Virtual</strong>i<strong>da</strong>de de Edith<br />

Litwin (2001).<br />

O conjunto de ferramentas <strong>da</strong> Internet possibilitou a comunicação entre<br />

os interessados de diferentes formas. Segundo Aretio (2001), talvez a principal<br />

distinção esteja na dimensão temporal. Quando há coincidência temporal no<br />

ato comunicativo, com conexão simultânea, temos uma comunicação síncrona.<br />

Quando a comunicação acontece sem que haja coincidência temporal, em que<br />

emitente e destinatário não estão simultaneamente se comunicando em tempo<br />

real, temos a comunicação assíncrona. As ferramentas disponíveis para uso <strong>da</strong>s<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais possibilitam interações bidirecionais ou multidirecionais,<br />

independente de serem síncronas ou assíncronas.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Você sabe o que signifi ca ativi<strong>da</strong>de on-line e off -line?<br />

Ativi<strong>da</strong>des on-line são realiza<strong>da</strong>s quando se está conectado à Internet e<br />

off -line quando não se exige esta condição.<br />

Consulte o Glossário referencial de termos EAD produzido pela equipe<br />

de ensino a distância do Centro de Computação CEAD/CCUEC <strong>da</strong> UNICAMP,<br />

disponível no endereço htt p://www.rau-tu.unicamp.br/nou-rau/ead e descubra<br />

o signifi cado dos termos utilizados nessa <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de estudo.<br />

Você também pode fazer Download do Glossário na biblioteca virtual <strong>da</strong><br />

<strong>UFPB</strong>: www.virtual.ufpb.br<br />

Educação On-line é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de ensino-aprendizagem que inclui<br />

uma ampla gama de aplicações e processos, tais como aprendizagem basea<strong>da</strong> na<br />

Internet, aulas virtuais e colaboração digital. Inclui a entrega de conteúdos como<br />

áudio, vídeo, textos e animações através <strong>da</strong> Internet, possibilitando o trabalho em<br />

equipes colaborativas. (Moran,2001)<br />

291


292<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Leia sobre a evolução <strong>da</strong> EAD, segundo os critérios apontados no recorte<br />

do texto “O que é educação a distância?” de José Manuel Moran transcrito<br />

abaixo:<br />

“É perceptível que começamos a passar dos modelos predominantemente<br />

individuais para os grupais na educação a distância. Das mídias unidirecionais,<br />

como o jornal, a televisão e o rádio, caminhamos para mídias mais interativas<br />

e mesmo os meios de comunicação tradicionais buscam novas formas de<br />

interação. Da comunicação off -line estamos evoluindo para um mix de<br />

comunicação off e on-line”.<br />

1.3.2 A Sala de Aula <strong>Virtual</strong> Moodle<br />

Na educação virtual a ferramenta que dá apoio às ativi<strong>da</strong>des dos alunos<br />

e também às dos professores é o Ambiente <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem (AVA). No<br />

caso <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>VIRTUAL, o nosso ambiente é o Moodle e ele constitui a nossa sala<br />

de aula virtual.<br />

Figura 5. Sala de Aula <strong>da</strong> Disciplina Introdução à EAD-<strong>UFPB</strong>VIRTUAL no Ambiente Moodle.<br />

O Moodle é um recurso moderno especialmente por englobar ferramentas<br />

como fóruns, chats, biblioteca virtual, material didático-pe<strong>da</strong>gógico e tutorial.


Ca<strong>da</strong> uma dessas ferramentas tem uma utili<strong>da</strong>de específi ca e contribui<br />

decisivamente para interação dos participantes e acesso aos materiais<br />

instrucionais elaborados pelos professores. São ferramentas que minimizam a<br />

sensação de isolamento que poderia ocorrer na educação a distância.<br />

No Moodle, através de uma senha previamente ca<strong>da</strong>stra<strong>da</strong>, o estu<strong>da</strong>nte<br />

tem acesso ao conteúdo do curso e ao material didático, participa de fóruns de<br />

discussão temáticos, resolve questionários e listas de exercícios no computador<br />

além de uma série de ativi<strong>da</strong>des acadêmicas a escolha do tutor.<br />

Na Uni<strong>da</strong>de 2 estão apresenta<strong>da</strong>s as ferramentas do Moodle e algumas<br />

regrinhas básicas para explorar as suas potenciali<strong>da</strong>des a fi m de aumentar a<br />

efi cácia do curso.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

A Educação <strong>Virtual</strong> causa impactos e surpreende tanto os alunos quanto<br />

os professores. No texto de Peggy Minnis Teaching in Your Pajamas: Lessons<br />

of Online Classes versão original publica<strong>da</strong> em The New York Times Teacher’s<br />

Journal em 2003 e traduzido pelo IG Educação, disponível em htt p://www.<br />

adur-rj.org.br/5com/pop-up/ensino_virtual.htm você vai encontrar uma visão<br />

bem humora<strong>da</strong> do professor on-line e poderá refl etir sobre as novas funções<br />

docentes na educação virtual.<br />

Está disponível também no nosso ambiente Moodle.<br />

1.3.3 <strong>UFPB</strong>VIRTUAL no Contexto <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil – UAB<br />

A <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil - UAB é um projeto de vanguar<strong>da</strong> no<br />

cenário educativo do nacional. UAB é o nome <strong>da</strong>do ao projeto criado pelo<br />

Ministério <strong>da</strong> Educação (MEC), em 2005, para a articulação e integração<br />

experimental de um sistema nacional de educação superior. Esse sistema é<br />

formado por instituições públicas de ensino superior volta<strong>da</strong>s para a ampliação e<br />

interiorização <strong>da</strong> oferta do ensino superior gratuito.<br />

Foi na segun<strong>da</strong> metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990 com a aprovação <strong>da</strong> Lei de<br />

Diretrizes e Bases (1996), que a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de EAD ganhou destaque no ensino<br />

superior, quando teve estabeleci<strong>da</strong> a equivalência plena de diplomas obtidos nos<br />

cursos presenciais e na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de à distância.<br />

Neste contexto, a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraíba</strong> vem contribuindo<br />

de forma signifi cativa, com a democratização do ensino superior, desde o<br />

lançamento do projeto UAB (em 2007) com a oferta de curso de licenciatura.<br />

A <strong>UFPB</strong>VIRTUAL iniciou suas ativi<strong>da</strong>des em 2007 oferecendo os cursos<br />

de Licenciatura Plena em Matemática, em Letras com habilitação em Língua<br />

Portuguesa e em Pe<strong>da</strong>gogia com habilitação em Educação Infantil, acrescentando<br />

em 2008 os cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas, em Ciências Agrárias e<br />

em Ciências Naturais. Tais cursos, na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de a distância, ao serem oferecidos<br />

pela <strong>UFPB</strong>, incorporam as práticas dessa universi<strong>da</strong>de proporcionando uma<br />

formação específi ca para os que atuam na educação, principalmente nestas áreas<br />

293


294<br />

do conhecimento, visando o resgate <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, a identi<strong>da</strong>de profi ssional e o<br />

atendimento aos objetivos <strong>da</strong> educação nacional.<br />

No ano de 2007 foram ofereci<strong>da</strong>s 1.668 vagas no vestibular para 3 cursos e<br />

21 Pólos de Apoio presencial. Em 2008, foram 2047 vagas para 6 cursos e 24 Pólos.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

O Brasil teve 2,2 milhões de alunos matriculados na Educação a Distância<br />

-EAD em 2006, de acordo com o Anuário Brasileiro Estatístico de Educação<br />

Aberta e a Distância ABRAEAD/2007. Consulte o site <strong>da</strong> ABRAEAD para obter<br />

informações sobre a expansão <strong>da</strong> EAD no Brasil. Levante <strong>da</strong>dos sobre este<br />

cenário e refl ita sobre esta expansão.<br />

Acesse: http://blog.institutomonitor.com.br/category/anuario-de-educacao-adistancia-abraead/<br />

1.3.4 O Professor, o Aluno e a Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem<br />

Com a popularização <strong>da</strong> Internet e suas ferramentas, instala-se a lógica<br />

<strong>da</strong> comunicação em substituição à lógica <strong>da</strong> transmissão, em que o receptor<br />

é convi<strong>da</strong>do à livre criação e a mensagem ganha sentido sob sua intervenção.<br />

Nesse contexto, a interativi<strong>da</strong>de possibilita<strong>da</strong> pelas tecnologias de rede amplia as<br />

condições de interação e aprendizagem colaborativa on-line ao confi gurar cenários<br />

educacionais próprios à cooperação e colaboração, em apoio à construção<br />

de conhecimentos. Nesse cenário instalam-se as Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de<br />

Aprendizagem.<br />

Discutir os papéis dos professores, tutores e alunos nas com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s<br />

virtuais representa o desafi o a ser perseguido nesse item.<br />

“Quando o ensinar e o aprender deixam a sala de aula, cabe ao professor criar<br />

uma espécie de embalagem na qual o curso transcorre com o envio de metas,<br />

de objetivos e de resultados esperados, com diretrizes iniciais de participação,<br />

com pensamentos e questões que estimulem a discussão e com tarefas que<br />

sejam completa<strong>da</strong>s colaborativamente”.( Palloff e Pratt , 2002)<br />

O que é uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem? Quais os papéis dos<br />

participantes nas com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais? O que leva aos bons resultados?<br />

Existe uma diferença entre com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem on-line e uma<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> on-line, ou grupo on-line em que as pessoas se encontram para<br />

compartilhar um interesse mútuo. Segundo Van der Linden (2005) apoia<strong>da</strong> em<br />

Palloff e Pratt (2004) é o envolvimento com a aprendizagem colaborativa e a<br />

prática refl exiva implícita na aprendizagem transformadora que caracterizam a<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem on-line. Para esses autores, uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de<br />

aprendizagem on-line caracteriza-se pelos seguintes resultados:


“Interação ativa que envolve tanto o conteúdo do curso quanto a<br />

comunicação pessoal;<br />

Aprendizagem colaborativa evidencia<strong>da</strong> pelos comentários dirigidos<br />

primeiramente de um aluno a outro aluno e não do aluno ao professor;<br />

Signifi cados construídos socialmente e evidenciados pela concordância<br />

ou questionamento, com intenção de se chegar a um acordo;<br />

Compartilhamento de recursos entre os alunos e,<br />

Expressões de apoio e estímulo troca<strong>da</strong>s entre os alunos, tanto quanto<br />

a vontade de avaliar criticamente o trabalho dos outros”. (Pallof e Pratt ,<br />

2004)<br />

Nesse sentido, os ambientes virtuais de aprendizagem confi guram a base<br />

para vivenciarmos as chama<strong>da</strong>s com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem onde o diálogo<br />

ocupa posição central. Nesse contexto, parece-nos que o estabelecimento de<br />

mecanismos de avaliação que contemplem a participação on-line constitui passo<br />

importante para compreensão do processo de aprendizagem na construção do<br />

conhecimento na educação virtual. Na Uni<strong>da</strong>de 5 abor<strong>da</strong>remos questões acerca<br />

<strong>da</strong> avaliação em Ambientes Virtuais de Aprendizagem.<br />

A postura dos alunos no ambiente virtual vai refl etir seu envolvimento<br />

com o curso e sua trajetória de aprendizagem. A aquisição de novos hábitos<br />

será necessária para ter sucesso. Na <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> 3 trataremos do aluno virtual: suas<br />

necessi<strong>da</strong>des, seu comportamento e o seu papel na formação de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

de aprendizagem.<br />

Considerando que educação é comunicação e que o ato didático é acima de<br />

tudo um processo comunicativo, parece-nos relevante compreender a importância<br />

que as Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de Aprendizagem têm para aprendizagem<br />

colaborativa on-line. A <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> 4 será dedica<strong>da</strong> ao exame desta questão.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

A sua primeira ativi<strong>da</strong>de será o preenchimento do seu perfi l como aluno<br />

<strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

Ela será feita de duas formas: uma versão impressa que será entregue<br />

pelo tutor em mãos e devolvi<strong>da</strong> após preenchimento e outra que será feita<br />

no ambiente Moodle com o auxílio dos professores e tutores. A nossa idéia<br />

é levantar um perfi l do aluno virtual <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong> para que os docentes possam<br />

conhecê-los e ajudá-los nessa caminha<strong>da</strong>. Para maiores detalhes veja a Uni<strong>da</strong>de<br />

5 que trata <strong>da</strong> avaliação.<br />

Ao acessar o Modlle, atualizar seu perfi l e participar dos fóruns <strong>da</strong><br />

disciplina, você torna-se membro de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem.<br />

Participe!<br />

295


296<br />

1.4 - Avaliando o que foi construído<br />

Ancora<strong>da</strong>s na idéia defendi<strong>da</strong> por estudiosos <strong>da</strong> temática de que a<br />

socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informação requer sujeitos capazes de acessar <strong>da</strong>dos e outorgar-lhes<br />

signifi cados, esperamos que ao fi nal desta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> em que abor<strong>da</strong>mos as idéias<br />

básicas e os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Educação a Distância, você esteja motivado para<br />

continuar pesquisando e construindo signifi cados acerca do tema introduzido.


UNIDADE II<br />

APRESENTAÇÃO E AMBIENTAÇÃO DA SALA DE AULA<br />

VIRTUAL MOODLE<br />

2.1 - Situando a Temática<br />

Pensar na Educação a Distância implica pensar na didática, nos métodos<br />

de ensino, na interação professor-aluno, nas questões de planejamento. Signifi ca<br />

compreender que a mu<strong>da</strong>nça em processo exige nova concepção sobre os alunos<br />

como seres críticos e participativos, com autonomia e capaci<strong>da</strong>de de tomar<br />

decisões. Esse cenário exige uma concepção contextualiza<strong>da</strong> de ensino que<br />

privilegie a participação, o diálogo, a autonomia e a refl exão permanente por<br />

parte dos professores, dos tutores e dos alunos sobre as múltiplas dimensões que<br />

envolvem a aprendizagem colaborativa.<br />

É bem possível que para muitos de vocês esta seja a primeira experiência<br />

com Educação a Distância, com aulas em ambientes virtuais de aprendizagem e<br />

certamente o primeiro contato com a plataforma Moodle <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

Assim sendo, nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> conheceremos e exploraremos a potenciali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s ferramentas do Moodle tais como chat, fórum, glossário, tarefa, wiki,<br />

entre outras, de modo que você possa desenvolver habili<strong>da</strong>des de cooperação,<br />

colaboração e autonomia em seus estudos.<br />

Figura 1. Ambiente Moodle <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

297


298<br />

2.2 - Problematizando a Temática<br />

Na educação a distância professores e alunos podem estar separados no<br />

espaço e no tempo, mas existe comunicação e interação entre ambos e, no caso<br />

<strong>da</strong> educação virtual, essa mediação é feita por recursos multimídia, com apoio<br />

de tutoria especializa<strong>da</strong>. Tais recursos devem garantir a quali<strong>da</strong>de e a efi cácia<br />

do curso. Geralmente, são utilizados materiais impressos, vídeos, hipertextos,<br />

CDs, DVDs, entre outros, sempre focados no aluno e nas suas necessi<strong>da</strong>des de<br />

aprendizagem.<br />

Alguns procedimentos e práticas rotineiras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de um estu<strong>da</strong>nte<br />

tradicional você certamente já conhece: assidui<strong>da</strong>de nas aulas, participação<br />

nas discussões com o professor e com os outros alunos, realização de provas e<br />

avaliações constantes, cumprimento de tarefas, interação face a face com o<br />

professor, esclarecimento de dúvi<strong>da</strong>s, realização de pesquisa, estudo do material<br />

do curso, além de dedicação de algumas horas para o estudo diariamente.<br />

Neste curso de educação a distância, como são as práticas e os procedimentos?<br />

Como se serão as aulas? O que é um ambiente virtual de aprendizagem? Como a<br />

plataforma Moodle pode contribuir diretamente em suas ativi<strong>da</strong>des acadêmicas? Como<br />

o professor <strong>da</strong> disciplina vai saber se você está indo bem nos estudos? Se um aluno é<br />

ausente, como o professor vai perceber? Como usar o computador para entregar tarefas?<br />

Como interagir com a sua turma em um ambiente virtual? O que os alunos precisam para<br />

ter sucesso? Buscaremos responder a esses questionamentos no nosso 10 Encontro<br />

Presencial. Depois continuaremos discutindo no fórum <strong>da</strong> disciplina, no Moodle.<br />

FÓRUM: Para participar do debate leia os capítulos 2 e 10 do Livro o Aluno<br />

<strong>Virtual</strong> de Palloff & Pratt (2004<br />

Em relação uso <strong>da</strong>s ferramentas, iremos “aprender fazendo”, através <strong>da</strong><br />

plataforma Moodle. Este será o ambiente de aprendizagem que servirá de suporte<br />

para to<strong>da</strong>s as disciplinas do Curso. Nele, os professores poderão acompanhar<br />

o registro e a participação dos alunos. Podem ain<strong>da</strong> monitorar as ativi<strong>da</strong>des<br />

cumpri<strong>da</strong>s e as interações, através de relatórios individualizados fornecidos pelo<br />

sistema.<br />

2.3 - Conhecendo a Temática<br />

2.3.1 O Ambiente <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem Moodle<br />

Moodle (Modular Object Oriented Distance Learning Environment) é um<br />

sistema para gerenciamento de cursos (SGC) - um programa para computador<br />

destinado a auxiliar educadores a criar cursos de quali<strong>da</strong>de via Internet. Este<br />

sistema de educação é também chamado de Sistema de Gerenciamento de<br />

Aprendizagem ou Ambiente <strong>Virtual</strong> de Aprendizagem (AVA). De maneira<br />

informal, utiliza-se o termo plataforma educacional.<br />

De acordo com informações disponíveis em www.moodle.org, até a <strong>da</strong>ta<br />

em que este texto foi escrito, a com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> mundial do Moodle já possuía mais


de 400 mil usuários registrados apenas neste site, falando mais de 75 idiomas em<br />

193 países, entre professores e alunos não apenas nas universi<strong>da</strong>des, mas também<br />

em instituições com diversos níveis de escolari<strong>da</strong>de, organizações não lucrativas,<br />

companhias priva<strong>da</strong>s e por professores de forma independente. Uma <strong>da</strong>s<br />

principais vantagens do Moodle é que ele é fun<strong>da</strong>mentado para pôr em prática<br />

uma aprendizagem sócio-construtivista.<br />

De acordo com essa abor<strong>da</strong>gem, a mediação do processo de ensino<br />

e aprendizagem não se resume ao planejamento, ministração de aulas e<br />

orientações ofereci<strong>da</strong>s pelo professor. Consiste em transformar as aulas em<br />

processos contínuos de informação, comunicação e de pesquisa, que resultem<br />

na criação ativa de conhecimentos signifi cativos, numa relação de equilíbrio<br />

entre professores, tutores e os alunos-participantes ativos. Na fi gura a seguir,<br />

apresentaremos uma ilustração <strong>da</strong> estrutura para a aprendizagem a distância e o<br />

relacionamento entre os elementos que a integram.<br />

Figura 2. Estrutura para a Aprendizagem a Distância. Fonte: A<strong>da</strong>ptado de Palloff<br />

&Pratt(2002).<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Construtivismo em Piaget<br />

Se você tiver interesse em saber um pouco mais sobre o construtivismo e<br />

aprendizagem<br />

Acesse htt p://www.ginux.ufl a.br/~kacilene/educacao/piaget.html<br />

299


300<br />

2.3.2 Filosofi a do Moodle<br />

O Moodle foi criado por Martin Dougiamas profi ssional de informática com<br />

formação em Pe<strong>da</strong>gogia. Sua primeira versão foi lança<strong>da</strong> no dia 20 de agosto de<br />

2002 e a mais atual 1.9.2 no dia 11 de julho de 2008. O Moodle foi concebido tendo<br />

uma base sóli<strong>da</strong> na pe<strong>da</strong>gogia.<br />

A concepção e o desenvolvimento do Moodle são guiados por uma<br />

fi losofi a sócio-construtivista de pensar o processo de educação-aprendizagem.<br />

Isto é, considera que as pessoas constroem ativamente novos conhecimentos, a<br />

partir de conhecimentos prévios, à medi<strong>da</strong> que interagem com seu ambiente e<br />

com os demais participantes. A interação torna-se particularmente efi caz quando<br />

possibilita a construção do conhecimento de forma colaborativa. A idéia é criar<br />

uma cultura de compartilhamento e colaboração na construção de signifi cados.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Se você tiver interesse em saber um pouco mais sobre o Moodle e<br />

participar <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> Moodle do Brasil acesse na Internet a página www.<br />

moodlebrasil.net/moodle<br />

Você também pode acessar htt p://aprender.unb.br .Lá você encontrará o<br />

manual do usuário do Moodle, escrito pelo professor Athail Rangel <strong>da</strong> UNB,<br />

também consultado na elaboração deste material.<br />

2.3.3 Ferramentas do Moodle<br />

O Moodle oferece uma varie<strong>da</strong>de de ferramentas que podem aumentar<br />

a efi cácia de um curso on-line. É possível facilmente compartilhar materiais<br />

de estudo, montar listas de discussões, aplicar testes de avaliação e pesquisas<br />

de opinião, coletar e revisar tarefas e acessar e registrar notas, entre outras. As<br />

ferramentas podem ser seleciona<strong>da</strong>s pelo professor de acordo com seus objetivos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

To<strong>da</strong>s estas possibili<strong>da</strong>des potencializam a aula virtual e a interação entre<br />

os participantes. A familiarização do estu<strong>da</strong>nte com as ferramentas disponíveis<br />

no ambiente é necessária para que o mesmo possa participar ativamente do<br />

Curso. Assim sendo, vamos apresentar ca<strong>da</strong> uma destas ferramentas e mostrar<br />

como devem ser utiliza<strong>da</strong>s.<br />

As ferramentas do Moodle são apresenta<strong>da</strong>s na forma de Materiais de<br />

Estudo (Recursos) e Ativi<strong>da</strong>des. Ca<strong>da</strong> ferramenta vem indica<strong>da</strong> por um ícone que<br />

serve para facilitar a identifi cação do tipo de ativi<strong>da</strong>de ou de material de estudo.<br />

Materiais de Estudo<br />

O professor pode lançar no Moodle materiais didáticos como: Texto<br />

Simples; Link a um arquivo ou site e Livro. Esses materiais podem ser lidos<br />

pelos alunos diretamente na própria tela do computador, ou então salvos no<br />

computador, CD, disquete, pen drive etc. É possível ain<strong>da</strong> imprimi-los. Vejamos<br />

esses materiais. Observe os ícones que aparecem ao lado de ca<strong>da</strong> um.


O que é um Texto Simples?<br />

É uma ferramenta que permite ao professor disponibilizar no Moodle<br />

pequenos textos editados por ele mesmo. Normalmente estes textos são utilizados<br />

como referência para uma ativi<strong>da</strong>de posterior.<br />

O que é um link a um arquivo ou site?<br />

É uma ferramenta que permite ao professor disponibilizar material de<br />

diversas formas. Por exemplo, um arquivo feito no Word ( ), uma apresentação<br />

em forma de slides usando o Power Point ( ) , um texto no formato PDF do<br />

Adobe Acrobat ( ) ou uma tabela Excel ( ).<br />

Esses materiais são selecionados ou produzidos pelo professor e<br />

disponibilizados aos alunos no Moodle. É fácil identifi car os programas onde<br />

esses arquivos foram gerados através dos respectivos ícones.<br />

Além disso, o professor também poderá fazer um link (ligação) com<br />

uma página na Internet que contenha informação relaciona<strong>da</strong> à temática em<br />

estudo. Neste caso, basta o usuário clicar com o mouse no local indicado, que<br />

automaticamente o site será aberto.<br />

O que é um Livro?<br />

É simplesmente um material de estudo com várias páginas organiza<strong>da</strong>s por<br />

capítulos e itens, onde o professor apresenta um conteúdo e organiza os temas de<br />

estudo. Não é um livro convencional, é apenas um material didático elaborado<br />

pelo professor para auto-estudo dos alunos.<br />

Ativi<strong>da</strong>des<br />

As principais ativi<strong>da</strong>des do Moodle são: Chat, Fórum, Tarefa, Pesquisa de<br />

Avaliação, Questionário, Diário, Glossário, Wiki, Lição e Base de Dados.<br />

O que é um Chat?<br />

O chat, em inglês, signifi ca bate-papo e, como veremos mais adiante,<br />

diferentemente do fórum, o chat é uma ativi<strong>da</strong>de de comunicação síncrona. Ou<br />

seja, é uma conversa que ocorre em tempo real. Para que essa conversa aconteça,<br />

os participantes devem se conectar no espaço reservado ao chat no Moodle nos<br />

horários e nos dias previamente agen<strong>da</strong>dos. Este espaço é chamado de sala de<br />

bate-papo. O Moodle também registra no calendário esses eventos.<br />

Um grupo de alunos pode combinar sessões adicionais de bate–papo (além<br />

<strong>da</strong>s estabeleci<strong>da</strong>s pelo professor) e acessar o ambiente a qualquer momento e em<br />

qualquer lugar. Este é um espaço muito especial para interações sociais, mas<br />

também pode ser utilizado para tirar dúvi<strong>da</strong>s.<br />

301


302<br />

O que é um Fórum?<br />

Esta é uma <strong>da</strong>s ferramentas mais importantes de interação em cursos<br />

virtuais e por isso também é bastante utiliza<strong>da</strong> como meio de avaliação. Consiste<br />

numa conversa em que os participantes não estão conectados no mesmo instante,<br />

e por isso é chama<strong>da</strong> de interação assíncrona. Ca<strong>da</strong> participante do fórum escolhe<br />

o dia e a hora de participar.<br />

O espaço fórum pode ser usado de diferentes formas: uma entrevista com<br />

um professor convi<strong>da</strong>do onde os alunos elaboram as perguntas, debate entre<br />

grupos e com o professor <strong>da</strong> disciplina, um espaço onde o professor disponibiliza<br />

perguntas mais freqüentes sobre um determinado assunto ou onde grupos de<br />

alunos questionem outros grupos. Tudo vai depender <strong>da</strong> orientação do professor<br />

e do interesse dos participantes. O Moodle dispõe de vários tipos de fóruns . Os<br />

fóruns podem ter as seguintes características:<br />

Discussão simples - é um único tópico em uma única página. Normalmente<br />

é usado para organizar discussões breves com foco em um tema preciso.<br />

Fórum geral - é um fórum aberto, onde todos os participantes podem iniciar<br />

um novo tópico de discussão quando quiserem.<br />

Ca<strong>da</strong> usuário inicia apenas um novo tópico - ca<strong>da</strong> participante pode abrir<br />

apenas um novo tópico de discussão, mas todos podem responder livremente às<br />

mensagens, sem limites de quanti<strong>da</strong>des. Este formato é usado, por exemplo, nas<br />

ativi<strong>da</strong>des em que ca<strong>da</strong> participante apresenta um tema a ser discutido e atua<br />

como moderador <strong>da</strong> discussão deste tema.<br />

Nesta disciplina temos ain<strong>da</strong> um Fórum que é utilizado com Painel de<br />

Notícias em que o professor e sua equipe coloca os avisos e recomen<strong>da</strong>ções <strong>da</strong><br />

disciplina.<br />

O professor pode criar vários fóruns na disciplina, e esses fóruns podem<br />

ser de qualquer um dos tipos citados, podendo permanecer abertos durante<br />

todo o curso ou abertos para discussão temporária. Os que permanecem abertos<br />

são, geralmente, um Fórum de Notícias e um Fórum Social, para proporcionar<br />

interação social entre os participantes.<br />

No fórum, as mensagens podem ser inseri<strong>da</strong>s com calma e devem ter valor<br />

do ponto de vista coletivo. É preciso refl etir sobre a quali<strong>da</strong>de do conteúdo <strong>da</strong>s<br />

mensagens a serem posta<strong>da</strong>s e nunca perder de vista o foco central <strong>da</strong> discussão.<br />

As mensagens podem ser li<strong>da</strong>s posteriormente por qualquer participante e<br />

podem ain<strong>da</strong> ser disponibiliza<strong>da</strong>s via e-mail para ca<strong>da</strong> um.<br />

Existem algumas regrinhas para uma adequa<strong>da</strong> participação no fórum.<br />

Essas regrinhas são chama<strong>da</strong>s de “Netiqueta” e as estu<strong>da</strong>remos mais adiante na<br />

Uni<strong>da</strong>de 3.<br />

O que é uma Tarefa?<br />

Uma tarefa consiste na descrição ou enunciado de uma ativi<strong>da</strong>de a ser<br />

desenvolvi<strong>da</strong> pelo aluno. O enunciado <strong>da</strong> tarefa contém explicações objetivas de<br />

como ela deve ser realiza<strong>da</strong>, indica prazos de entrega, informa se é permitido enviar


uma segun<strong>da</strong> resposta, indica se será atribuí<strong>da</strong> uma pontuação para avaliação<br />

e de quanto será essa pontuação. As tarefas podem ser de três tipos: Texto online,<br />

onde o aluno digita sua resposta no próprio ambiente; Envio de Arquivo<br />

Único, onde o aluno envia para o ambiente um arquivo com sua resposta; e ain<strong>da</strong><br />

Ativi<strong>da</strong>de Off -line, usa<strong>da</strong> pelos professores e tutores para colocar no ambiente as<br />

notas de ativi<strong>da</strong>des realiza<strong>da</strong>s fora do ambiente, como a prova presencial. No caso<br />

<strong>da</strong> Tarefa de Envio de Arquivo Único o arquivo de resposta do aluno deve ser salvo<br />

anteriormente no computador, disquete, CD ou pen drive.<br />

O que é uma Pesquisa de Avaliação?<br />

Este recurso consiste num conjunto de ativi<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s à avaliação<br />

<strong>da</strong>s várias dimensões do processo educacional, entre elas, as perspectivas do<br />

aluno, a avaliação do próprio curso, e a auto-avaliação. A partir <strong>da</strong>s respostas<br />

dos alunos, são gerados relatórios agregados e individualizados que possibilitam<br />

o acompanhamento do aluno e <strong>da</strong> turma como um todo.<br />

O que é um Questionário?<br />

Esta é uma ativi<strong>da</strong>de que permite ao aluno responder no Moodle a um<br />

conjunto de questões do tipo: múltipla escolha, ver<strong>da</strong>deiro ou falso, associação, para<br />

completar, resposta breve. O professor pode controlar o período de duração desta<br />

ativi<strong>da</strong>de e inclusive permitir que o aluno revise as suas respostas antes de passar<br />

adiante. Pode ain<strong>da</strong> permitir que o aluno respon<strong>da</strong> por etapas ou de uma única vez.<br />

O que é um Diário?<br />

É uma ferramenta usa<strong>da</strong> pelo aluno para relatar, como em um diário<br />

comum, as suas ativi<strong>da</strong>des e suas experiências. Apenas o próprio aluno e seu<br />

professor terão acesso a esse diário.<br />

Para o professor as informações conti<strong>da</strong>s no Diário são importantes<br />

para que ele possa acompanhar a aprendizagem do aluno. Por exemplo, as<br />

difi cul<strong>da</strong>des em li<strong>da</strong>r com a informática, em realizar alguma tarefa, em acessar<br />

materiais, as boas experiências que teve, os temas que mais gostou de discutir e<br />

ain<strong>da</strong>, suas refl exões pessoais.<br />

Para o aluno, o diário constitui importante ferramenta de auto-refl exão<br />

sobre seu desempenho no Curso e ain<strong>da</strong> serve de espaço para anotações de temas<br />

estu<strong>da</strong>dos.<br />

O que é um Glossário?<br />

Esta ativi<strong>da</strong>de permite que os participantes criem e atualizem uma lista<br />

de defi nições como em um dicionário. No entanto, o que o diferencia de um<br />

dicionário é a necessi<strong>da</strong>de de contextualizar os termos. Podemos criar vários<br />

303


304<br />

glossários ao mesmo tempo: um glossário principal e os demais secundários cujos<br />

itens podem ser exportados para o glossário principal. É possível ain<strong>da</strong> fazer links<br />

nos textos do curso que levam aos itens defi nidos no glossário.<br />

O que é um Wiki?<br />

Um Wiki é uma coleção de documentos criados de forma coletiva no<br />

ambiente <strong>da</strong> Internet. Alguém inicia o documento sobre determinado tema,<br />

inserindo um parágrafo ou texto de sua autoria. É permitido aos outros<br />

participantes editar e adicionar novos parágrafos a este Wiki. Para ca<strong>da</strong> Wiki o<br />

professor especifi ca os objetivos e o conteúdo a ser construído. Nele podem<br />

ser elaborados de forma coletiva, anotações de aulas, resumos gerais de textos<br />

extensos, artigos, relatórios etc.<br />

Um Wiki pode ser desenvolvido por to<strong>da</strong> a turma ou por grupos menores.<br />

O trabalho resultante pode ser visto e criticado pelo conjunto dos participantes e<br />

não somente pelo professor, podendo ser usado como fonte de <strong>da</strong>dos por outras<br />

pessoas e não apenas corrigido e arquivado.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

O termo wiki tem origem na expressão havaiana wiki-wiki que signifi ca<br />

muito rápido.<br />

A Wikipédia é uma enciclopédia e é considerado o maior wiki do<br />

mundo! É escrita por voluntários de todo o mundo. Você também pode<br />

adicionar conteúdo, editar o trabalho de outras pessoas, ou acrescentar outra<br />

página de colaboração como um sub-tópico visitando o site www.wikipedia.<br />

org na Internet. Mas também pode usá-lo para fazer uma pesquisa sobre um<br />

tema que lhe desperte interesse.<br />

O que é Lição?<br />

Uma Lição consiste em um texto sobre determinado assunto, ao qual se<br />

seguem questionamentos com alternativas de respostas. Dependendo <strong>da</strong> resposta<br />

escolhi<strong>da</strong> pelo aluno ele prossegue na lição ou pode retornar para a mesma<br />

página. O professor poderá disponibilizar várias seções <strong>da</strong> mesma lição para livre<br />

escolha do aluno, ou ain<strong>da</strong> determinar uma seqüência a ser segui<strong>da</strong>.<br />

O que é Base de Dados?<br />

Uma base de <strong>da</strong>dos é uma ativi<strong>da</strong>de que permite a construção de uma<br />

coleção de <strong>da</strong>dos sobre determinado assunto, onde os participantes podem<br />

inserir e/ou pesquisar itens. É constituí<strong>da</strong> de registros, e ca<strong>da</strong> registro é composto<br />

por certa quanti<strong>da</strong>de de campos. Os campos podem ter informações de diferentes<br />

tipos com imagens, arquivos, URLs, números, textos dentre outras.


Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Agora vamos utilizar as ferramentas apresenta<strong>da</strong>s para discutir alguns<br />

temas e testar as suas funcionali<strong>da</strong>des. Visitando o ambiente <strong>da</strong> disciplina<br />

EAD no Moodle você encontrará as ativi<strong>da</strong>des que deverá realizar. Ca<strong>da</strong> uma<br />

vem acompanha<strong>da</strong><br />

de um ícone que já foi apresentado no texto e que serve para facilitar a<br />

identifi cação do tipo de ativi<strong>da</strong>de. Acesse a plataforma e participe!<br />

O site é: www.ead.ufpb.br. Tenha em mente seu login e senha.<br />

2.4 - Avaliando o que foi construído<br />

Esperamos que durante essa <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> você possa ter aprendido sobre<br />

as principais funcionali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s ferramentas do Moodle e que de agora em<br />

diante se sinta confortável em participar <strong>da</strong>s aulas através do Ambiente <strong>Virtual</strong><br />

de Aprendizagem Moodle, que será utilizado por to<strong>da</strong>s as disciplinas <strong>da</strong><br />

<strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

Esperamos ain<strong>da</strong> que possa ter desenvolvido habili<strong>da</strong>des de trabalho<br />

colaborativo e que tenha refl etido sobre os temas abor<strong>da</strong>dos.<br />

305


UNIDADE III<br />

O ALUNO VIRTUAL<br />

3.1 - Situando a Temática<br />

A Educação a Distância apoia<strong>da</strong> nas tecnologias <strong>da</strong> comunicação e nas<br />

novas metodologias de ensino tem implicado em modifi cações nas funções<br />

tradicionais de ensinar e aprender, transformando defi nitivamente o conceito<br />

de “sala de aula”. Mu<strong>da</strong>-se <strong>da</strong> sala de aula típica no campus para a sala de aula<br />

virtual no ciberespaço. É nesse ambiente de aprendizagem que se estabelecem as<br />

novas relações entre os participantes.<br />

Professores e alunos comportam-se diferentemente nos dois tipos de<br />

sala; a forma como se dá o processo de aprendizagem também é diferente, no<br />

entanto, em ambas as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des o objetivo é sempre o mesmo: construir novos<br />

conhecimentos e educar para ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

Se é ver<strong>da</strong>de que “ninguém educa ninguém”, por outro lado, “ninguém se<br />

educa sozinho”. Nesse sentido, a educação a distância, paradoxalmente, impõe<br />

interlocução permanente e, portanto, proximi<strong>da</strong>de pelo diálogo (Preti, 2000).<br />

Aproximar as pessoas que se encontram fi sicamente distantes e estabelecer<br />

relações de cooperação e colaboração para uma aprendizagem signifi cativa,<br />

representa um desafi o a ser enfrentado.<br />

Nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> trataremos desse processo de transição e focalizaremos o<br />

papel do aluno nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educacional. Refl etiremos sobre questões <strong>da</strong><br />

conquista <strong>da</strong> autonomia dos alunos e <strong>da</strong>s regras de convivência e estratégias de<br />

comunicação para participação em com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem que levem o<br />

aluno a obter sucesso em cursos virtuais.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Para saber mais leia o Capitulo 1 “Quando o Ensinar e o Aprender<br />

Deixam a Sala de Aula”do livro Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem<br />

no Ciberespaço, PALLOFF & PRATT (2002).<br />

3.2 - Problematizando a Temática<br />

“Feche por uns minutos os olhos e imagine uma escola sem salas de aula, sem<br />

paredes, sem carteiras, com estu<strong>da</strong>ntes indo e vindo, conversando, lendo em<br />

diferentes espaços livres, ora reunidos em equipe, ora desenvolvendo ativi<strong>da</strong>des<br />

individuais, com horários diversifi cados para atendimento individual ou<br />

em grupos, com calendário fl exível, acompanhamento personalizado, sob a<br />

orientação de um grupo de educadores, etc. Talvez, você exclamará surpreso:<br />

“Esta escola não existe. Quem sabe, num futuro seja possível!”<br />

307


308<br />

Não estou falando <strong>da</strong> educação do futuro. Na reali<strong>da</strong>de, estou falando de uma<br />

educação real e atual, possível e que está acontecendo em nosso país, sobretudo,<br />

na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de a distância, graças aos avanços <strong>da</strong>s novas teorias <strong>da</strong> Física,<br />

<strong>da</strong> Biologia, <strong>da</strong> Psicologia, <strong>da</strong> Comunicação, <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia, etc. e às novas<br />

tecnologias <strong>da</strong> comunicação”. (Oreste Preti,1996)*<br />

Aprender em um ambiente virtual é bem diferente de aprender em uma sala<br />

de aula tradicional. É preciso romper barreiras e adquirir hábitos novos como por<br />

exemplo, acessar a Internet para estar atualizado com o curso, fazer as ativi<strong>da</strong>des<br />

semanalmente, participar do fórum e fazer leitura, refl exões e comentários a<br />

respeito <strong>da</strong>s mensagens. É importante desenvolver a autonomia e tornar-se um<br />

aluno independente, pesquisador crítico e colaborar com os participantes com<br />

feedbacks construtivos.<br />

*Para ler o texto completo de Oreste Preti consulte htt p://www.redebrasil.<br />

tv.br/salto/boletins2002/ead/eadtxt4a.htm<br />

Você se sente preparado para ser um aluno virtual? Até que ponto a<br />

aprendizagem on-line se encaixa no seu estilo de vi<strong>da</strong>? Que habili<strong>da</strong>des você<br />

possui e que habili<strong>da</strong>des precisa desenvolver para ter sucesso em seu Curso Online?<br />

3.3 - Conhecendo a Temática<br />

3.3.1 Quem é o Aluno <strong>Virtual</strong>?<br />

Conhecer o perfi l dos alunos, suas idiossincrasias e seus estilos de<br />

construção do conhecimento é tarefa prioritária e ao mesmo tempo de extrema<br />

difi cul<strong>da</strong>de quando se trata <strong>da</strong> educação on-line. Segundo estudiosos <strong>da</strong> temática<br />

isso é requisito necessário, seja como suporte para defi nir e planejar um projeto<br />

educativo seja para acompanhar e avaliar o mesmo. Ao refl etir sobre a interação<br />

nos cursos virtuais há necessi<strong>da</strong>de de se resgatar os saberes prévios dos alunos,<br />

em conformi<strong>da</strong>de com as teorias cognitivas <strong>da</strong> aprendizagem. Nesse sentido é<br />

necessário gerar situações de diálogo na perspectiva de conseguir informações<br />

sobre “suas representações <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, suas deman<strong>da</strong>s e seus interesses, suas ativi<strong>da</strong>des<br />

de trabalho e suas formas particulares de estabelecer relações entre os conhecimentos<br />

teóricos e práticos”. (Van der Linden:2005)<br />

Na tentativa de estabelecermos esse diálogo e de nos conhecermos um<br />

pouco mais, foram aplicados dois questionários de avaliação. O primeiro, um<br />

instrumento de avaliação diagnóstica, que foi respondido off -line na primeira<br />

semana de aula. O segundo instrumento, ativi<strong>da</strong>de on-line, teve por objetivo fazer<br />

uma pesquisa sobre as suas expectativas em relação ao seu processo de aprendizagem<br />

neste curso.<br />

“O que fazer para se tornar um aluno virtual de sucesso?”


Segundo PALLOFF & PRATT, (2004) “os cursos e programas on-line não foram<br />

feitos para todo mundo.”. Por quê? Vamos refl etir sobre os fun<strong>da</strong>mentos dessa<br />

assertiva!<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Ativi<strong>da</strong>de de Auto-Avaliação: Você pode fazer uma auto-refl exão<br />

respondendo para si próprio às Questões de Auto Avaliação nas páginas 183<br />

e 184 na “Caixa de Ferramentas do Aluno <strong>Virtual</strong>” do livro O Aluno <strong>Virtual</strong> de<br />

PALLOFF, & PRATT ( 2004), Em segui<strong>da</strong>, na página 185 leia as Explicações<br />

elabora<strong>da</strong>s pelos autores. Na seqüência, observe a Lista de verifi cação para<br />

auto-avaliação nas páginas 185 e 186. Para fi nalizar, leia as Dicas para ser um<br />

aluno on-line de sucesso nas páginas 186 e 187.<br />

O fórum <strong>da</strong> disciplina será o espaço em que os resultados de suas<br />

refl exões individuais sobre sua auto-avaliação serão abor<strong>da</strong>dos e socializados.<br />

É importante que sejam identifi ca<strong>da</strong>s as potenciali<strong>da</strong>des, os pontos mais<br />

problemáticos e as formas de superá-los.<br />

3.3.2 Comportamento Autônomo<br />

“Pode-se dizer que o “calcanhar de aquiles” na educaçào a distância é a situação<br />

de aprendizagem individual. O estu<strong>da</strong>r sem a presença regular de colegas e<br />

professores desafi a o cursista a superar suas limitações pessoais e desenvolver<br />

sua capaci<strong>da</strong>de de aprender autonomamente, de aprender a aprender. Esse<br />

processo exige envolvimento tanto <strong>da</strong> instituição como do cursista inscrito.<br />

A instituição coloca à disposição do Cursista todo o seu sistema (recursos<br />

humanos, materiais, redes de comunicação) para <strong>da</strong>r suporte à caminha<strong>da</strong>.<br />

Por outro lado, o cursista deve mergulhar, assumindo para si, também a<br />

responsabili<strong>da</strong>de de sua formação.(...)” (Preti,2000)<br />

Estu<strong>da</strong>r sem a presença regular do professor e colegas desafi a o aluno<br />

virtual a superar suas limitações pessoais e a desenvolver sua capaci<strong>da</strong>de de<br />

aprender autonomamente, de “aprender a aprender”. O aluno assume para si<br />

a responsabili<strong>da</strong>de de sua formação, tendo como suporte alguns componentes<br />

materiais e humanos pensados e planejados, acompanhados e avaliados para que<br />

o mesmo tenha a possibili<strong>da</strong>de de construir essa autonomia durante o processo.<br />

Essa perspectiva coloca o aluno como sujeito, autor e condutor de seu processo<br />

de formação, apropriação, re-elaboração e construção do conhecimento.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

• Sobre comportamento autônomo Leia “Autonomia do Aprendiz na<br />

Educação a Distância” Capítulo 7 In PRETI, Oreste - Org. (2000) Educação<br />

a Distância: construindo signifi cados.<br />

• Sobre Autonomia .Leia o Capitulo 3 do livro Didática do Ensino a Distância<br />

de Ott o Peters, ( 2001) páginas 93 a 104<br />

309


310<br />

Auto-aprendizagem<br />

A auto-aprendizagem é uma tarefa pessoal, onde se exercita a autonomia<br />

enquanto uma ação educativa no processo de ensino-aprendizagem. A idéia de<br />

auto-aprendizagem é fun<strong>da</strong>mental para a Educação a Distância, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

em que os aprendizes autonomamente estabelecem uma ação interativa com<br />

os materiais didáticos e interagem com os colegas e professores, estimulados<br />

por ações pe<strong>da</strong>gógicas de tutores e professores que atuam como “provocadores<br />

cognitivos”.<br />

Nesse ambiente os participantes desenvolvem a capaci<strong>da</strong>de de determinar<br />

seu ritmo de aprendizagem, ao acessar o conteúdo quando e quantas vezes quiser<br />

na busca de compreender o que de fato lhes desperta o interesse.<br />

Para apoiar esse exercício de autonomia e de auto-aprendizagem<br />

os participantes podem contar com ferramentas específi cas, que oferecem<br />

oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de acessar informações e estabelecer contatos síncronos e<br />

assíncronos com os atores do processo educacional.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Leia mais sobre dimensões <strong>da</strong> autonomia enquanto ação educativa<br />

no Capítulo 7 páginas, 132 a 144, In PRETI, Oreste – Org. .(2000) Educação a<br />

Distância: construindo signifi cados.<br />

Nesse capítulo, a questão <strong>da</strong> autonomia é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s<br />

dimensões ontológica, política, afetiva, metodológica, técnico instrumental e<br />

operacional.<br />

Exercite sua autonomia: leia e refl ita sobre ca<strong>da</strong> uma dessas dimensões.<br />

Gerenciamento do tempo<br />

O tempo dedicado a necessária participação dos alunos e professores é<br />

de fun<strong>da</strong>mental importância em ambientes virtuais de aprendizagem. Com<br />

freqüência o aluno não se dá conta de quanto tempo é necessário para participar<br />

de um curso virtual e fi nalizá-lo com sucesso. É importante estabelecer metas e<br />

estruturar-se para administrar as ativi<strong>da</strong>des de forma racional. Estu<strong>da</strong>r on-line<br />

não se resume a passar o maior tempo conectado á sala de aula virtual. Deve<br />

haver tempo para pesquisa e comunicação, mas também deve ser reservado<br />

tempo para leituras, refl exões e realização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des propostas.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Tempo e Comprometimento é o tema tratado no Capítulo 7 do livro<br />

de PALLOFF, & PRATT( 2004). O Aluno <strong>Virtual</strong>. Na página 109, os autores<br />

sintetizam em um quadro cinco questões relativas ao gerenciamento do tempo<br />

e apresentam técnicas para aju<strong>da</strong>r na racionali<strong>da</strong>de de seu uso.<br />

Em PALLOFF & PRATT (2002), Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de<br />

Aprendizagem no Ciberespaço, capítulo 4, p.71 a 86, você encontra<br />

mais informações sobre o gerenciamento do tempo. Leia , amplie seus<br />

conhecimentos!


Estabelecer objetivos e priori<strong>da</strong>des e organizar a agen<strong>da</strong> para facilitar<br />

o gerenciamento do tempo não se permitindo fi car atrasado por excesso de<br />

trabalho e falta de organização, fazem parte <strong>da</strong> estratégia do aluno virtual, que<br />

autonomamente defi nirá sua agen<strong>da</strong> de estudo e o ritmo de sua aprendizagem.<br />

Esta agen<strong>da</strong> pode ser uma tabela com objetivos semanais, ativi<strong>da</strong>des a<br />

realizar, o tempo estimado e fi nalmente um espaço em que você analisa se essa<br />

meta foi cumpri<strong>da</strong> no prazo ou não. A idéia é que você desenvolva o hábito<br />

de gerenciar seu tempo. No entanto, algumas pessoas acham esse recurso<br />

um elemento de limitação. Se for assim para você, procure outra maneira de<br />

estruturar e organizar seu tempo. É bom relembrar que de acordo com Litwin<br />

(2001) a variável tempo historicamente tem sido considera<strong>da</strong> de maneira fl exível<br />

e a<strong>da</strong>ptável às possibili<strong>da</strong>des e às necessi<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> aluno.<br />

Lembramos que no ambiente Moodle, ca<strong>da</strong> aluno possui um calendário<br />

pessoal onde poderá agen<strong>da</strong>r suas ativi<strong>da</strong>des para não esquecê-las.<br />

3.3.3 Regras de Convivência e Ferramentas de Comunicação<br />

Neste espaço trataremos de questões relaciona<strong>da</strong>s à proprie<strong>da</strong>de intelectual<br />

e direitos autorais, que precisam ser observados na elaboração dos trabalhos,<br />

assim como as regras de comunicação on-line que devem nortear a vivência dos<br />

participantes na sala de aula virtual.<br />

Em EAD estimula-se bastante a participação, colaboração e interação<br />

dos participantes em listas de discussões, chats e fóruns. Estimulam-se ain<strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>des em que os alunos se posicionem a respeito <strong>da</strong>s mensagens dos colegas.<br />

É necessário saber como se expressar para que o outro enten<strong>da</strong><br />

perfeitamente o que foi dito. É preciso ser claro para transmitir seus pontos de<br />

vista com efi cácia.<br />

Outro ponto relevante está relacionado à proprie<strong>da</strong>de intelectual e aos<br />

direitos autorais que precisam ser observados na elaboração dos trabalhos.<br />

Apresentamos a seguir algumas regras de convivência e ferramentas de<br />

comunicação on-line. Elas podem tornar a comunicação mais fácil, e representam<br />

um recurso para que os participantes possam manter boas relações no seu<br />

ambiente de estudo, seja como alunos ou como tutores.<br />

Ética e Netiqueta<br />

Segundo a Wikipédia “Netiqueta é a etiqueta que se recomen<strong>da</strong> observar na<br />

internet. A palavra pode ser considera<strong>da</strong> como uma gíria, decorrente <strong>da</strong> fusão de duas<br />

palavras: o termo inglês net (que signifi ca “rede”) e o termo “etiqueta” (conjunto<br />

de normas de conduta sociais). Trata-se de um conjunto de recomen<strong>da</strong>ções para evitar<br />

mal-entendidos em comunicações via internet, especialmente em e-mails, chats, listas de<br />

discussão, etc. Serve, também, para regrar condutas em situações específi cas (por exemplo,<br />

ao colocar-se a resenha de um livro na internet, informar que naquele texto existem<br />

spoilers; citar nome do site, do autor de um texto transcrito, etc”<br />

Nenhuma sala de aula virtual é totalmente privativa, principalmente<br />

quando se estimula a aprendizagem colaborativa e a interação entre os<br />

311


312<br />

participantes. As pessoas têm liber<strong>da</strong>de de visitar qualquer espaço permitido na<br />

Internet. Porém o que se observa freqüentemente é um mau uso dos recursos de<br />

comunicação acarretando em uma total invasão de privaci<strong>da</strong>de seja por violação<br />

de senhas, fraudes, assédio, perseguição, distorção nos conteúdos <strong>da</strong>s mensagens,<br />

montagens fotográfi cas dentre outras.<br />

Para garantir que a comunicação seja profi ssional e respeitosa, os alunos<br />

precisam ser orientados a usar uma comunicação adequa<strong>da</strong>. É na forma de<br />

escrever e se expressar que você será conhecido pelos demais alunos do seu<br />

ambiente de aprendizagem. A netiqueta é um conjunto de regrinhas que devem<br />

ser segui<strong>da</strong>s quando se está escrevendo qualquer texto on-line para alguém. Elas<br />

são a etiqueta de quem navega na Internet.<br />

Na nossa sala de aula devemos equilibrar o diálogo aberto com a cautela.<br />

Questões de privaci<strong>da</strong>de e de liber<strong>da</strong>de de expressão merecem atenção. Os<br />

participantes devem ser estimulados a se expressarem livremente, mesmo<br />

que haja opiniões contrárias. Contudo alguns limites devem ser determinados<br />

como, por exemplo, o uso de linguagem agressiva ou desrespeitosa que pode ter<br />

resultados desastrosos em uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem.<br />

Não existem políticas ou regras claras sobre questões legais envolvi<strong>da</strong>s<br />

na aprendizagem virtual, porém, acreditamos que é fun<strong>da</strong>mental refl etir sobre<br />

que comportamentos são ou não são aceitáveis. Em caso de quebra de ética o<br />

professor confrontará ou fará intervenções imediatamente. Para evitar qualquer<br />

transtorno, devemos sempre reconhecer os autores e suas idéias e respeitar os<br />

participantes em discussões on-line.<br />

Para conhecer o conjunto de normas de conduta on-line visite o site <strong>da</strong><br />

Wikipédia disponível em htt p://pt.wikipedia.org/wiki/Netiqueta<br />

Emoticons<br />

De acordo com a Wikipédia os “emoticons são uma forma de comunicação<br />

paralingüística, um emoticon (em alguns casos chamados de smiley) é uma seqüência<br />

de caracteres tipográfi cos, tais como: :), ou ^-^ e :-); ou, também, uma imagem<br />

(usualmente, pequena), que traduz ou quer transmitir o estado psicológico, emotivo, de<br />

quem os emprega, por meio de ícones ilustrativos de uma expressão facial.<br />

Exemplos: (i.e. sorrindo, estou alegre); (estou triste, chorando), etc.<br />

Normalmente é usado por MSN (Microsoft Network) ou pelo ICQ e outros meios<br />

de mensagens rápi<strong>da</strong>s. O Nome “emoticon” deriva <strong>da</strong> contração do inglês emotion+icon.”<br />

Saiba mais sobre emoticons consultando a Wikipédia em<br />

htt p://pt.wikipedia.org/wiki/Emoticon<br />

De acordo com Palloff e Pratt (2004) os emoticons são utilizados para suprir<br />

a impossibili<strong>da</strong>de de atribuir ao que se escreve: um tom de voz, uma expressão<br />

facial ou linguagem corporal. Vejamos a seguir alguns exemplos apresentados<br />

pelos autores:


Clareza<br />

: ) ou :-) Expressa alegria, sarcasmo ou pia<strong>da</strong><br />

: ( Expressa tristeza<br />

: I Expressa indiferença<br />

: Q Expressa confusão<br />

: O Expressa surpresa ou grito<br />

A clareza é uma quali<strong>da</strong>de de quem escreve bem e quer se fazer entender.<br />

A maior difi cul<strong>da</strong>de que a maioria dos participantes de ativi<strong>da</strong>des on-line<br />

encontram é transformar as idéias em texto, utilizando palavras corretas no<br />

momento certo. Quando a palavra não expressa sufi cientemente o que ela quer<br />

dizer, o texto acaba transformando-se numa fi leira de palavras desconexas e sem<br />

sentido. Isso acontece quando não organizamos as idéias antes de iniciar a escrita,<br />

escrevendo-as sem pensar no texto como um todo.<br />

Por outro lado, quando recebemos uma mensagem em que as idéias estão<br />

bem articula<strong>da</strong>s e a grafi a está correta, conseguimos entender exatamente o que<br />

o emitente pretende nos dizer. Isso facilita a comunicação e evita confl itos. Na<br />

comunicação on-line redigir com clareza é um aspecto crucial, uma vez que a<br />

comunicação é basicamente textual e é através do que escrevemos que as pessoas<br />

nos conhecem.<br />

Uma tática para ser claro na comunicação on-line é escrever em um<br />

rascunho (digitar previamente o texto no Word), ler o texto em voz alta e<br />

passar um corretor ortográfi co antes de enviá-lo. Quando lemos, fi ca mais fácil<br />

detectarmos onde a frase fi cou mal escrita e confusa. Para ser claro no seu texto<br />

e na sua forma de expor suas idéias é bom evitar o uso de siglas e abreviações.<br />

Nem todos conhecem as siglas que nós conhecemos e estamos acostumados a<br />

usar. É importante ain<strong>da</strong> destacar que na comunicação on-line você é percebido<br />

pelo que você escreve e assim, é importante cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s questões de ortografi a,<br />

<strong>da</strong> articulação <strong>da</strong>s frases e <strong>da</strong> gramática. Você certamente já deve ter recebido<br />

alguma mensagem cheia de erros gramaticais e pode avaliar a difi cul<strong>da</strong>de que<br />

isso pode acarretar, especialmente quando você não conhece o emitente.<br />

Citações<br />

“A citação é a menção no texto de uma informação colhi<strong>da</strong> em outra fonte.<br />

Seu objetivo é <strong>da</strong>r maior clareza e autori<strong>da</strong>de ao texto, relacionando as idéias<br />

expostas com idéias defendi<strong>da</strong>s em outros trabalhos, por outros autores. É<br />

obrigatório indicar os <strong>da</strong>dos completos <strong>da</strong>s fontes de onde foram extraí<strong>da</strong>s<br />

as citações, seja em nota de ro<strong>da</strong>pé, ou em lista no fi m do texto”. Extraído<br />

integralmente do site do Departamento de Sistema de Informação <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Estadual do<br />

Rio de Janeiro, consultado em 30.06.2007<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Consulte as Normas <strong>da</strong> Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT. No<br />

site do Departamento de Sistema de Informação <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Estadual do<br />

Rio de Janeiro- UERF você vai encontrar algumas dicas importantes de como<br />

fazer citações em seus trabalhos.<br />

Visite htt p://www.desc.eng.uerj.br/doku.php/como_fazer_citacoes<br />

313


314<br />

As citações são utiliza<strong>da</strong>s no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos,<br />

monografi as, relatórios, dissertações, teses, etc. Também são considera<strong>da</strong>s<br />

como recursos importantes na comunicação on-line. Uma citação é feita quando<br />

inserimos no nosso texto, partes do texto de alguém. No mundo virtual, embora<br />

seja útil o “copiar e colar”, esta prática pode comprometer a quali<strong>da</strong>de do<br />

trabalho e sua vali<strong>da</strong>de acadêmica, fazendo com que as pessoas desistam <strong>da</strong><br />

leitura do texto.<br />

Na Caixa de Ferramentas do Aluno <strong>Virtual</strong> - Recurso B: Ferramentas<br />

do Aluno do livro de PALLOFF, & PRATT( 2004). O Aluno <strong>Virtual</strong> , nas<br />

páginas 190 a 192 os autores apresentam algumas regrinhas no item Citação<br />

que nos aju<strong>da</strong>m na comunicação on-line. Não deixe de ler antes de começar<br />

sua participação no fórum <strong>da</strong> disciplina.<br />

Feedback<br />

O termo feedback em EAD está relacionado a responder aos posicionamentos<br />

e questionamentos dos participantes em um fórum de discussão ou no correio<br />

eletrônico. Em uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educacional que prioriza a aprendizagem<br />

colaborativa, o feedback é essencial para aju<strong>da</strong>r a aperfeiçoar a relação dos<br />

indivíduos com o grupo, aju<strong>da</strong>ndo-os a interagir socialmente e estimular e<br />

aprofun<strong>da</strong>r as discussões sobre temas em estudo.<br />

Para que o feedback seja construtivo deve haver uma relação de confi ança e<br />

proximi<strong>da</strong>de entre os participantes e o respeito às normas de convivência trata<strong>da</strong>s<br />

anteriormente nos itens clareza e netiqueta.<br />

Segundo Vigotsky (1998), o desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des interpessoais<br />

possibilita mu<strong>da</strong>nças cognitivas através <strong>da</strong> interação, com a conseqüente<br />

reelaboração e reconstrução <strong>da</strong>s idéias. Nesse sentido, no processo interativo<br />

e social as idéias postas são eluci<strong>da</strong><strong>da</strong>s resultando em novas concepções, em<br />

avanços em termos de proposições, sínteses, teorias, hipóteses, aplicáveis em<br />

contextos diversos. (Van der Linden, 2005)<br />

O debate on-line pautado nesses princípios pode contribuir para o<br />

desenvolvimento de habili<strong>da</strong>des cognitivas e <strong>da</strong>s atitudes colaborativas requeri<strong>da</strong>s<br />

pela aprendizagem on-line. Nesse sentido, <strong>da</strong>r um feedback construtivo que não se<br />

resuma ao “concordo” ou “discordo”, deve contribuir para o ato de aprender dos<br />

sujeitos participantes. Isso requer sujeitos ativos e propositivos, que no debate<br />

em rede saibam não só propor, perguntar mas também responder (<strong>da</strong>r feedback)<br />

concor<strong>da</strong>ndo, in<strong>da</strong>gando, problematizando, discor<strong>da</strong>ndo, questionando, generalizando,<br />

esclarecendo, sintetizando ou aprofun<strong>da</strong>ndo o tema, estendendo-o a outros campos do<br />

saber.(Van der Linden,2005)<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Na Caixa de Ferramentas do Aluno <strong>Virtual</strong> - Recurso B: Ferramentas do<br />

Aluno do livro de PALLOFF & PRATT (2004) O Aluno <strong>Virtual</strong>, nas páginas 192<br />

a 193 os autores apresentam algumas Diretrizes para Feedback. Não deixe de<br />

ler antes de <strong>da</strong>r feedback às mensagens do fórum <strong>da</strong> disciplina.


3.4 - Avaliando o que foi construído<br />

Segundo Palloff & Pratt (2002) no processo de aprendizagem on-line, os<br />

participantes aprendem não apenas sobre a matéria do curso, mas também sobre<br />

o processo de aprendizagem e sobre si mesmos. Os participantes estão conectados<br />

ao professor por meio de um computador. Desenvolvem, portanto, não apenas<br />

relacionamentos entre si, mas também com a tecnologia, com o hardware, com o<br />

software e com o próprio processo que, segundo Van der Linden ( 2005) envolve:<br />

Refl exão sobre o conhecimento adquirido no curso ou evento;<br />

Conhecimento de como a aprendizagem ocorre eletronicamente;<br />

Uso <strong>da</strong> tecnologia <strong>da</strong> comunicação e <strong>da</strong> informação e,<br />

Transformação do usuário por meio dos novos relacionamentos<br />

com a máquina, com o processo de aprendizagem e com os outros<br />

participantes.<br />

Nossa expectativa é que durante esta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tenhamos feito você refl etir<br />

sobre as atitudes mais adequa<strong>da</strong>s a um aluno virtual que almeja atingir o sucesso<br />

no seu curso. Esperamos ain<strong>da</strong> que você encare os recursos <strong>da</strong> Internet nesse<br />

espaço de aprendizagem, não apenas como uma ferramenta individual, mas<br />

como um instrumento de colaboração e reconstrução, através do qual possa se<br />

comunicar e aprender de forma colaborativa, através de projetos e ativi<strong>da</strong>des<br />

comuns.<br />

315


UNIDADE IV<br />

COMUNIDADES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM<br />

4.1 - Situando a Temática<br />

“Uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual é uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> que estabelece relações num espaço<br />

virtual através de meios de comunicação a distância. Caracteriza-se pela aglutinação de<br />

um grupo de indivíduos com interesses comuns que trocam experiências e informações<br />

no ambiente virtual. Um dos principais fatores que potencializam a criação de<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais é a dispersão geográfi ca dos membros. O uso <strong>da</strong>s Tecnologias de<br />

Informação e Comunicação - TICs minimizam as difi cul<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s a tempo e<br />

espaço, promovendo o compartilhamento de informações e a criação de conhecimento<br />

coletivo”. Fonte: Wikipédia.<br />

No contexto acima, podemos considerar que a forma como as pessoas<br />

interagem na atuali<strong>da</strong>de está fortemente liga<strong>da</strong> ao uso e a populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

Tecnologias <strong>da</strong> Informação e Comunicação (TIC), especialmente <strong>da</strong> Internet.<br />

A Internet favorece a comunicação, seja através de e-mails, de sites de<br />

relacionamento ou até mesmo quando algum material é compartilhado ou<br />

produzido em equipe. As pessoas interagem umas com as outras, independente<br />

<strong>da</strong> distância física que as separam, formando grupos ca<strong>da</strong> vez maiores e pelas<br />

mais varia<strong>da</strong>s razões.<br />

Neste processo a Internet expande os parâmetros <strong>da</strong>quilo que chamamos<br />

de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Basta notar que no passado, o envolvimento com a com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

era determinado pelo local onde se vivia (ci<strong>da</strong>de ou bairro), pela família ou pelas<br />

convicções religiosas. Atualmente, além dessas concepções de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, temos<br />

aquelas que se formam e se mantêm no ciberespaço com objetivos comuns, papéis,<br />

normas e regras.<br />

É o desenvolvimento de uma sóli<strong>da</strong> Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de Aprendizagem<br />

(educacional), e não somente de uma Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de Interesse ou de uma<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de prática, que visamos explorar nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> temática. Traremos<br />

questões relativas à idéia de Interação e Interativi<strong>da</strong>de, Colaboração, o Silêncio <strong>Virtual</strong><br />

e a importância do Ambiente <strong>Virtual</strong> para a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> nossa Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>UFPB</strong>VIRTUAL de aprendizagem.<br />

4.2 - Problematizando a Temática<br />

Os ambientes virtuais de aprendizagem confi guram a base para<br />

vivenciarmos as chama<strong>da</strong>s com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais de aprendizagem, onde o<br />

diálogo ocupa posição central. Nesse contexto, a criação de condições técnicas<br />

e apoio pe<strong>da</strong>gógico ao desenvolvimento do diálogo didático on-line constituem<br />

passos importantes para sua realização. O desenvolvimento de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de<br />

aprendizagem e o uso de ativi<strong>da</strong>des colaborativas ao longo do curso são maneiras<br />

de facilitar a aprendizagem, contemplando os diferentes estilos de aprendizagem<br />

dos adultos. Mas o que são estilos de aprendizagem?<br />

317


318<br />

Boud e Griffi n (1987 citado por Palloff e Pratt 2004) afi rmam que todos<br />

possuem seis capaci<strong>da</strong>des de aprendizagem: racional, emocional, relacional,<br />

física, metafórica e espiritual.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Veja a Tabela 3.1 na página 60 do Livro O Aluno <strong>Virtual</strong> de PALLOFF &<br />

PRATT ( 2004). Nela estão sintetizados os vários estilos de aprendizagem e as<br />

técnicas instrucionais que podem ser adota<strong>da</strong>s para o seu desenvolvimento.<br />

Considerando que a educação virtual em sua maior parte é basea<strong>da</strong><br />

no texto, que tem foco no racional, como valorizar essa capaci<strong>da</strong>de e como<br />

desenvolver maneira de facilitar as demais dimensões?<br />

Além dos diferentes estilos é necessário considerar uma série de problemas<br />

que difi cultam a participação que os alunos enfrentam no meio digital. Podem<br />

ser problemas relacionados com as dimensões sociais ou cognitivas <strong>da</strong> aprendizagem,<br />

ou simplesmente problemas de ordem técnica (de disponibili<strong>da</strong>de ou de uso <strong>da</strong><br />

tecnologia apropria<strong>da</strong>), ou falta de habili<strong>da</strong>de para acessar a Internet por exemplo,<br />

que difi cultam participação dos mesmos nas com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem e<br />

muitas vezes prejudicam sua trajetória acadêmica.<br />

Segundo Harasim e colaboradores (1993) os maiores problemas apontados<br />

pelos alunos virtuais estão relacionados a: sobrecarga de informação, maior<br />

carga de trabalho e de responsabili<strong>da</strong>des, ansie<strong>da</strong>de em relação à comunicação<br />

assíncrona, difi cul<strong>da</strong>de de navegar na Internet, difi cul<strong>da</strong>de em acompanhar<br />

os rumos <strong>da</strong> discussão, per<strong>da</strong> de informações visuais e ain<strong>da</strong> preocupações<br />

relaciona<strong>da</strong>s à saúde pelo uso do computador.<br />

Esses problemas que afl igem a maioria dos participantes on-line difi cultam<br />

a participação mas não impedem interação. Hoje existem estudos sobre técnicas<br />

de gerenciamento do tempo que objetivam minimizar alguns desses problemas.<br />

Na Uni<strong>da</strong>de 3 no item Gerenciamento do Tempo você vai encontrar informações que<br />

poderão ajudá-lo no enfrentamento de alguns desses problemas.<br />

Com esses questionamentos buscamos compreender o papel do aluno na<br />

formação de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual de aprendizagem e os desafi os a serem<br />

enfrentados. Tem-se como perspectiva entender de que forma os participantes<br />

de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual de aprendizagem podem contribuir para a<br />

formação e manutenção de um ambiente agradável e fértil para a construção de<br />

conhecimentos.<br />

4.3 - Conhecendo a Temática<br />

A tecnologia hoje disponível permite a implementação de ambientes<br />

de intensa interação, possibilitando aos participantes agir criativamente. Ela<br />

contribui para o desenvolvimento <strong>da</strong>s interações, favorecendo a participação<br />

e o compartilhamento de experiências e descobertas durante o processo de<br />

aprendizagem.


No entanto, a tecnologia por si só não é sufi ciente para a promoção <strong>da</strong><br />

aprendizagem. O desenvolvimento <strong>da</strong> aprendizagem interativa requer ação<br />

humana volta<strong>da</strong> para defi nição de estratégias de participação, a começar pela<br />

identifi cação dos participantes e avaliação e integração de informações. Requer<br />

metodologias que possam situar o aluno no centro do processo educacional e<br />

levar o professor a torrnar-se um “provocador cognitivo”, facilitador, avaliador e<br />

mediador de signifi cados.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Para saber mais, leia no Capítulo 2 nas páginas 53 a 57 do livro de<br />

PALLOFF& PRATT(2002) Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem<br />

no Ciberespaço sobre a “A Importância <strong>da</strong>s Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s na Sala de Aula<br />

<strong>Virtual</strong>”<br />

A Figura 1 a seguir, ilustra a estrutura e as articulações que se estabelecem<br />

em uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual de aprendizagem.<br />

Figura 1. Estrutura para a aprendizagem a distância. Fonte: Palloff e Pratt (2004).<br />

Palloff & Pratt (2004) sugerem algumas técnicas de design instrucional<br />

centra<strong>da</strong>s no aluno para apoiá-lo na educação on-line, relaciona<strong>da</strong>s a “acesso;<br />

habili<strong>da</strong>des comunicativas; abertura; comprometimento; colaboração; refl exão e<br />

fl exibili<strong>da</strong>de”<br />

São técnicas que instrumentalizam o professor para aju<strong>da</strong>r o aluno a<br />

entender o importante papel que ele desempenha no processo de aprendizagem e<br />

aju<strong>da</strong>m o aluno a situar-se no seio de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem on-line.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Para saber mais leia o texto “Defi nindo e Redefi nindo a Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>”<br />

Capitulo 2 nas páginas 45 a 52 do livro de PALLOFF, & PRATT( 2002),<br />

Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem no Ciberespaço.<br />

319


320<br />

A com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual representa o veículo através do qual ocorre a<br />

aprendizagem colaborativa na sala de aula virtual. Os participantes dependem<br />

uns dos outros para que a com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> cresça e os objetivos sejam alcançados.<br />

Nesse ambiente, “os professores promovem um sentido de autonomia, iniciativa<br />

e criativi<strong>da</strong>de, ao mesmo tempo em que incentivam o questionamento, o<br />

pensamento crítico, o diálogo e a colaboração.” ( Broofi ld, 1995 citado por Palloff<br />

& Pratt , 2002)<br />

Além de promover a aprendizagem, a com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual promove<br />

conexões sociais entre os participantes, e embora o professor e os tutores sejam os<br />

incentivadores desse processo ele só acontece se houver efetiva participação dos<br />

alunos.<br />

Participe do Fórum Social no ambiente Moodle. É um espaço reservado<br />

à interação social, onde você pode conversar livremente com os demais<br />

participantes.<br />

4.3.1 Ambientes Virtuais de Aprendizagem - AVA<br />

Os ambientes virtuais de aprendizagem são plataformas para o<br />

desenvolvimento de cursos virtuais. Trata-se <strong>da</strong> estruturação em um único espaço<br />

dos serviços de apoio educacional on-line oferecidos aos estu<strong>da</strong>ntes através <strong>da</strong><br />

Internet.<br />

Uma ampla relação de endereços de ambientes virtuais<br />

utilizados está disponível em<br />

htt p://www.clubedoprofessor.com.br/ead/ambientes.html<br />

Em aula magistral proferi<strong>da</strong> em uma universi<strong>da</strong>de brasileira, no ano de<br />

2001, Ott o Peters, <strong>da</strong> FernUniversität (Hagen, Alemanha), descreveu os ambientes<br />

de aprendizagem virtuais, ilustrando sua descrição com uma tela vibrante de<br />

um monitor. Por trás dela, há um cenário onde existe uma esfera ilimita<strong>da</strong> e<br />

potencialmente passível de abranger o mundo e até o cosmo. Nele, o espaço é<br />

aberto e incomensurável, tempo e local não são fi xos. (Van der Linden, 2005)<br />

É um espaço não protegido onde pessoas e objetos são fl utuantes e<br />

transitórios e mu<strong>da</strong>m com freqüência e rapidez. Os alunos não interagem face<br />

a face, em grupos, mas entram em contato com colegas e professores e tutores<br />

em lugares indefi nidos. Em vez de ouvir e falar, os estu<strong>da</strong>ntes lêem e escrevem.<br />

Não há ambiente real em que os estu<strong>da</strong>ntes e professores possam interagir face a<br />

face, e a dimensão histórica se perde inteiramente. São espaços tão diferentes dos<br />

espaços reais de aprendizagem que nos causam um choque de reconhecimento<br />

ao refl etir sobre os mesmos.<br />

Por outro lado, não podemos analisar os AVA apenas como ferramentas<br />

tecnológicas. É necessário analisar as práticas e posturas pe<strong>da</strong>gógicas e também<br />

comunicacionais do ambiente. Tais práticas inspiram ambientes instrucionistas,<br />

interativos e cooperativos.<br />

Os ambientes que são classifi cados como instrucionistas estão mais<br />

centrados no conteúdo. A interação é mínima e a participação online do aluno é


praticamente individual. É considerado o tipo mais comum onde a informação é<br />

transmiti<strong>da</strong> como em uma aula tradicional presencial.<br />

Os ambientes interativos estão centrados na interação on-line, onde a<br />

participação é essencial no curso.<br />

Por fi m, em ambientes cooperativos, seus objetivos são o trabalho<br />

colaborativo e a participação on-line.<br />

O Moodle nosso ambiente de aprendizagem foi pensado e estruturado com<br />

incorporação de uma sóli<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem, uma vez que dispõe<br />

de recursos interativos que facilitam a colaboração, estimulam a investigação e<br />

também a interação entre os alunos, tutores e professores.<br />

4.3.2 Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de Aprendizagem<br />

O conceito de com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual tem sido utilizado para explicar<br />

formações espontâneas de pessoas que se reúnem na “grande rede” em torno de<br />

determinado assunto ou tema de interesse comum. (Lévy, 2001)<br />

Segundo Van der Linden (2005) existe uma diferença entre com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

de aprendizagem on-line e uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> on-line ou grupo on-line, em que<br />

as pessoas se encontram para compartilhar um interesse mútuo. No site do<br />

Orkut por exemplo, existem inúmeras com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s on-line ou grupos de<br />

relacionamentos, mas não se constituem com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem .<br />

No ciberespaço, as com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s podem ser diferencia<strong>da</strong>s segundo alguns<br />

critérios. Um estudo sobre a classifi cação <strong>da</strong>s com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais é feito por<br />

Szaló e Silva (2003), que destaca:<br />

• A intenção de formação <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, ou seja, de um objetivo mais ou menos<br />

defi nido, associado a uma ativi<strong>da</strong>de que irá desenvolver para a construção<br />

do conhecimento. Essa intenção de formação será posta em prática<br />

através de ações como o estabelecimento de metas para o grupo, lista de<br />

participantes, ferramentas de comunicação e a adoção de regras de conduta<br />

<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.<br />

• O nível de envolvimento dos seus participantes, que depende <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de de<br />

sua ligação, maior ou menor coesão do grupo.<br />

• A evolução <strong>da</strong> intenção e <strong>da</strong> integração entre os participantes <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.<br />

O nível de ativi<strong>da</strong>de de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual evolui quando o objetivo<br />

<strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> se consoli<strong>da</strong>.<br />

Sendo assim, temos as chama<strong>da</strong>s Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Interesse, Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de<br />

Prática e Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Educacionais (de Aprendizagem), que buscaremos caracterizálas.<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Interesse: O aprendizado é mais individual que coletivo,<br />

o objetivo não é dirigido para uma produção coletiva. Segundo Szaló e Silva (2003)<br />

“..é um agregado de pessoas reuni<strong>da</strong>s em torno de um tema de interesse comum”.<br />

Esses autores explicam que uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de interesse pode ter uma<br />

duração variável, isto é, pode desaparecer logo após ter sido cria<strong>da</strong> por não ter<br />

conseguido incorporar participantes, ou ao contrário durar anos.<br />

321


322<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Procure na Internet uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de interesse. Veja como funciona.<br />

Use o site de busca htt p://www.google.com.br<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Prática: Segundo o teórico organizacional Etienne<br />

Wenger, que cunhou o termo no início dos anos 90, três elementos defi nem uma<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de prática. O primeiro é o tema sobre o qual se fala (é preciso defi nir<br />

um interesse comum). O segundo são as pessoas, que têm de interagir e construir<br />

relações entre si em torno do tema. E o terceiro é a prática, a ação. Reuni<strong>da</strong>s em<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais, as pessoas aprendem juntas como fazer coisas pelas quais<br />

se interessam.<br />

Seus membros podem fazer parte de um mesmo departamento, serem de<br />

diferentes áreas de uma companhia, ou até mesmo de diferentes companhias<br />

e instituições. Elas estão liga<strong>da</strong>s no que diz respeito a uma área de atuação<br />

profi ssional comum, buscando a socialização para a solução de questionamentos.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Visite htt p://www.kmol.online.pt/pessoas/WengerE/entrev_1.html ,<br />

você terá acesso à uma entrevista de Etienne Wenger, onde ele fala <strong>da</strong><br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de prática, cujo termo foi proposto por ele. Acesse e amplie os<br />

seus conhecimentos sobre o tema.<br />

Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Educacionais: São constituí<strong>da</strong>s por alunos, de uma mesma<br />

classe, de uma mesma instituição ou alunos geografi camente dispersos. O que<br />

se busca nesta com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> é o aprendizado através do relacionamento social,<br />

baseado nas teorias construtivistas. Ao contrário <strong>da</strong>s demais, a construção do<br />

conhecimento se dá através de orientações de um professor e sua relação com os<br />

objetivos de uma disciplina ou programa institucional.<br />

Conforme o exposto anteriormente, ao contrário <strong>da</strong>s Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de<br />

Interesse, as Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Prática e as Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Educacionais possuem<br />

uma intenção mais forte de formação e maior coesão e envolvimento dos<br />

participantes.<br />

Para Pallof & Pratt (2004) é o envolvimento com a aprendizagem colaborativa<br />

e a prática refl exiva implícita na aprendizagem transformadora que defi nem<br />

as Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Educacionais ou de Aprendizagem. Para esses autores, uma<br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem on-line se caracteriza pelos seguintes resultados:<br />

“ Interação ativa que envolve tanto o conteúdo do curso quanto a comunicação<br />

pessoal;<br />

<br />

Aprendizagem colaborativa evidencia<strong>da</strong> pelos comentários dirigidos<br />

primeiramente de um aluno a outro aluno e não do aluno ao professor;


Signifi cados construídos socialmente e evidenciados pela concordância ou<br />

questionamento, com intenção de se chegar a um acordo;<br />

Compartilhamento de recursos entre os alunos e,<br />

Expressões de apoio e estímulo troca<strong>da</strong>s entre os alunos, tanto quanto a vontade<br />

de avaliar criticamente o trabalho dos outros”. (Palloff e Pratt , 2004)<br />

A seguir abor<strong>da</strong>remos questões relativas à idéia de aprendizagem<br />

colaborativa no seio <strong>da</strong>s com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais de aprendizagem. Discutiremos o<br />

papel do aluno na com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> virtual, suas formas de participação, os fatores<br />

impulsionadores <strong>da</strong> interação e interativi<strong>da</strong>de em um ambiente virtual e a<br />

colaboração como atitude indispensável à manutenção de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de<br />

aprendizagem. Abor<strong>da</strong>remos ain<strong>da</strong> questões relaciona<strong>da</strong>s ao comportamento de<br />

passivi<strong>da</strong>de ou omissão dos participantes, denominado de silêncio virtual.<br />

4.3.3 O Papel do Aluno na Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> <strong>Virtual</strong><br />

“O Lado do Aluno nas Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem On-line” é abor<strong>da</strong>do<br />

por Palloff & Pratt ( 2004) no livro O Aluno <strong>Virtual</strong>. Os autores destacam que a<br />

interação social que acontece na com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>, estabelece os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong><br />

com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem, cujo objetivo é o envolvimento no curso. Para os<br />

autores, ”compartilhar a informação, os interesses e os recursos, é parte integrante <strong>da</strong><br />

educação on-line”. É a base <strong>da</strong> aprendizagem colaborativa em que a construção de<br />

signifi cados é feita pelo conjunto dos participantes.<br />

Segundo Palloff & Pratt (2004) o professor de um curso virtual é uma<br />

espécie de arquiteto <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem, já que faz, a princípio,<br />

o planejamento. Contudo, são os alunos que, como engenheiros, estruturam o<br />

curso.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Um detalhamento minucioso <strong>da</strong>s técnicas de design instrucional que<br />

dão apoio on-line pode ser encontrado na Tabela 1.1. p. 34 e 35. do livro de<br />

PALLOFF& PRATT(2004) ,O Aluno <strong>Virtual</strong> . Leia e pratique!<br />

A aplicação <strong>da</strong>s técnicas de design instrucional centra<strong>da</strong>s no aluno requer<br />

o estabelecimento de algumas precondições do aluno on-line. Os autores acima<br />

mencionados destacam as seguintes:<br />

<br />

<br />

Ter acesso a um computador e a um modem ou conexão de alta veloci<strong>da</strong>de<br />

e saber usá-los;<br />

Possuir mente aberta para compartilhar detalhes sobre sua vi<strong>da</strong>, trabalho<br />

e outras experiências educacionais;<br />

323


324<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Não se sentir prejudicado pela ausência de sinais auditivos ou visuais no<br />

processo de comunicação;<br />

Dedicar uma quanti<strong>da</strong>de signifi cativa de seu tempo semanal a estudos e<br />

não ver o curso como uma maneira mais fácil de obter crédito;<br />

Ter capaci<strong>da</strong>de de refl etir e pensar criticamente ou estar potencialmente<br />

disposto a desenvolver essas capaci<strong>da</strong>des, e<br />

Acreditar que a aprendizagem de alta quali<strong>da</strong>de pode acontecer em<br />

qualquer lugar e a qualquer momento.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Agora é a sua vez de colaborar com a nossa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>. Busque outros<br />

“papéis” que devem ser assumidos pelo aluno virtual para a formação e<br />

preservação de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem. Em segui<strong>da</strong> socialize com<br />

os demais os resultados <strong>da</strong> sua pesquisa. Iremos promover esse momento e<br />

as informações para esta ativi<strong>da</strong>de estarão disponíveis no Moodle. Acesse<br />

constantemente e participe!<br />

4.3.4 Interação e Interativi<strong>da</strong>de<br />

Freqüentemente os termos interação e interativi<strong>da</strong>de são utilizados na<br />

literatura especializa<strong>da</strong> como sinônimos. Pela etimologia <strong>da</strong> palavra, interação é<br />

uma ação recíproca entre pessoas ou coisas. Nesse sentido o termo permite muitos<br />

signifi cados: interação estu<strong>da</strong>nte-estu<strong>da</strong>nte; estu<strong>da</strong>nte-professor; estu<strong>da</strong>ntemateriais<br />

de estudo; estu<strong>da</strong>nte-sistema de avaliação etc. (Van der Linden,2005).<br />

Na comunicação on-line o termo interação aplica-se especifi camente a uma<br />

ação recíproca entre dois ou mais atores onde ocorre a comunicação, o diálogo, a<br />

troca de idéias. Diferentemente <strong>da</strong> educação tradicional em que a interação é face<br />

a face, na EAD a interação <strong>da</strong>r-se-á de forma indireta, mediatiza<strong>da</strong> por algum<br />

veículo técnico de comunicação (telefone, e-mail, chat, fórum, etc).<br />

Figura 2. Interação. Fonte: TAJRA, Sanmya Feitosa ( 2002).


Nas com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais de aprendizagem, as interações ocorrem quando os<br />

sujeitos modifi cam-se, como resultado <strong>da</strong> construção de novos saberes socialmente<br />

construídos. Compõem o processo de interação os seguintes elementos: emissor,<br />

canal, mensagem, receptor, interpretação e conteúdo devolutivo. .(Tajra,2002)<br />

Já o termo Interativi<strong>da</strong>de é visto como uma nova forma de<br />

interação técnica homem - máquina, de característica eletrônicodigital<br />

ofereci<strong>da</strong> por determinado meio (CD-ROM, consulta,<br />

hipertextos ou jogos, ambientes virtuais, computadores etc).<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Um detalhamento minucioso <strong>da</strong>s Técnicas de Design Instrucional<br />

que dão Apoio aos Alunos On-Line pode ser encontrado na Tabela<br />

1.1. p. 34 e 35. do livro de PALLOFF, R & PRATT, K. O Aluno<br />

<strong>Virtual</strong> . Leia e pratique!<br />

Leia mais... Uma Análise Autopoiética <strong>da</strong>s Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s<br />

Virtuais por TAJRA, Sanmya Feitosa (2002), no Capítulo 4 do<br />

livro Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais: um fenômeno na socie<strong>da</strong>de do<br />

conhecimento.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Se quiser saber um pouco mais sobre tipos de interação, consulte o site<br />

htt p://usr.psico.ufrgs.br/~aprimo/pb/espiralpb.htm Você vai encontrar um<br />

artigo de PRIMO, Alex F. T. que trata <strong>da</strong> “Interação Mútua e Interação Reativa:<br />

uma proposta de estudo”<br />

4.3.5 O Silêncio <strong>Virtual</strong><br />

O silêncio virtual “faz parte” e já é mesmo esperado em cursos<br />

on-line, em virtude <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de que marca a formação<br />

<strong>da</strong> grande maioria dos participantes. Muitos alunos sentem-se<br />

inibidos, não se sentindo à vontade com a cultura <strong>da</strong> comunicação<br />

on-line, ou seja, com uma comunicação basea<strong>da</strong> na escrita e aberta<br />

a todos os participantes. Essa situação é defi ni<strong>da</strong> como “silêncio<br />

virtual”.<br />

É um desafi o a ser superado, visto que em ambientes colaborativos a<br />

participação é imprescindível sob pena de fracassar o propósito. O silêncio virtual<br />

pode ser um momento de refl exão, e nesse caso, não impede a aprendizagem,<br />

mas quando muito prolongado barra a colaboração e o compartilhamento de<br />

conhecimento. Respeitando o tempo e estilo de ca<strong>da</strong> um, deve haver um esforço<br />

coletivo para que todos se coloquem num ambiente de confi ança e liber<strong>da</strong>de de<br />

pensar e participem <strong>da</strong> com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem.<br />

Ressalte-se que a educação on-line pressupõe colaboração e o participante<br />

precisa estar integrado, dinâmico e compromissado. Os silenciosos, aqueles que não<br />

se manifestam, quebram a interação e a dinâmica do grupo. Assim, a passivi<strong>da</strong>de<br />

dos participantes merece refl exão por parte dos educadores e avaliadores para que,<br />

325


326<br />

entendendo suas razões, possam conduzir o trabalho educativo na perspectiva <strong>da</strong><br />

colaboração e do incentivo a posturas questionadoras diante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

As refl exões sobre o silêncio virtual e as regras de convivência e participação<br />

nas com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de aprendizagem tem suscitado as seguintes questões: será que<br />

mesmo sem se manifestar os alunos aprendem? O silêncio atrapalha o processo<br />

de aquisição do conhecimento? E quanto a avaliação, como avaliar um aluno<br />

virtual que participa muito pouco?<br />

Como saber se os estu<strong>da</strong>ntes “invisíveis” estão realmente aprendendo,<br />

como gastam o tempo no ambiente on-line e se seu comportamento on-line<br />

infl uencia seus estilos de aprendizagem? Seriam os participantes silenciosos<br />

aprendizes autodi<strong>da</strong>tas que preferem permanecer tão anônimos e autônomos<br />

quanto possível ou estão perdidos no ambiente virtual e não encontram os<br />

caminhos <strong>da</strong> comunicação? Estudos sugerem que a maioria dos estu<strong>da</strong>ntes estaria<br />

freqüentemente processando as idéias obti<strong>da</strong>s no curso, mesmo nas situações em<br />

que não estariam visivelmente participando. (Van der Linden,2005)<br />

Estudiosos <strong>da</strong> temática alertam que na comunicação - componente essencial<br />

na educação on-line - não existe aluno presente inativo, o lurker é invisível. Daí<br />

porque geralmente são estabeleci<strong>da</strong>s diretrizes para que haja uma participação<br />

mínima aceitável, estimulando a interação e facilitando a construção colaborativa<br />

do conhecimento e o processo criativo do grupo.<br />

Como medi<strong>da</strong> prática, é recomendável que no começo de um curso, as<br />

normas de participação devam ser explicita<strong>da</strong>s, tais como o número de mensagens<br />

necessárias semanalmente e a importância do contexto <strong>da</strong>s mensagens. É importante<br />

destacar que, não é o envio de mensagens, mas o conteúdo delas que tem importância<br />

na interação on-line. Se estiverem fora do contexto, na<strong>da</strong> acrescentam.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Pesquise na Internet sobre com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem. Ao encontrar<br />

um tema de seu interesse se inscreva nessa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> e participe! Socialize a<br />

informação com os demais participantes do Curso de EAD.<br />

4.4 - Avaliando o que foi Construído<br />

Esperamos que as questões desta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tenham feito você refl etir sobre<br />

a importância do estabelecimento e preservação de uma com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> no nosso<br />

ambiente virtual. Os elos que se estabelecem são importantes não só para a<br />

socialização do conhecimento adquirido mas também para o compartilhamento<br />

<strong>da</strong>s difi cul<strong>da</strong>des e dúvi<strong>da</strong>s que aparecem nas experiências pessoais. Ca<strong>da</strong> aluno<br />

tem um papel dentro <strong>da</strong> nossa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem <strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

Pelos nossos objetivos de aprendizagem, a nossa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> se diferencia<br />

<strong>da</strong>s demais com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s virtuais. Estamos interessados em construir uma<br />

atmosfera agradável e convi<strong>da</strong>tiva para o ensino e aprendizagem a distância.<br />

Nossa com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de aprendizagem está apoia<strong>da</strong> tecnicamente nos fóruns<br />

do ambiente virtual Moodle através do fórum social, do fórum de notícias e do<br />

fórum <strong>da</strong> disciplina direcionados à discussão dos conteúdos específi cos desse<br />

Curso. No entanto nossas relações interpessoais são construí<strong>da</strong>s e alimenta<strong>da</strong>s<br />

também nos contatos permanentes seja através de e-mail, telefonemas, feedbacks,<br />

chats e algumas vezes face a face.


UNIDADE V<br />

AVALIAÇÃO EM AMBIENTES VIRTUAIS APOIADOS PELA<br />

INTERNET<br />

5.1 - Situando a Temática<br />

Nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> abor<strong>da</strong>remos a questão <strong>da</strong> avaliação em Educação a<br />

Distância, focalizando as ativi<strong>da</strong>des interativas e colaborativas. Discutiremos<br />

as dimensões e fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> avaliação educacional, os objetos de avaliação on-line,<br />

recursos e ferramentas utilizados para apoiar a avaliação em ambientes virtuais<br />

interativos e por fi m, a avaliação dos alunos e <strong>da</strong> nossa disciplina Introdução a EAD.<br />

5.2 - Problematizando a Temática<br />

A avaliação sempre esteve dentro <strong>da</strong> escola, na sala de aula especifi camente,<br />

limita<strong>da</strong> à avaliação dos alunos, sendo executa<strong>da</strong> através de testes, notas e<br />

boletins de desempenho. Esta forma de “julgamento” parte de critérios rígidos e<br />

estáticos que não dão conta de avaliar o processo de construção do conhecimento,<br />

revelando-se então um problema. O caráter <strong>da</strong> avaliação deve ser mais amplo e<br />

dinâmico e deve destinar-se não apenas a compreender, mas a promover ações<br />

em benefício <strong>da</strong> educação e dos educandos.<br />

Existem na literatura várias dimensões relaciona<strong>da</strong>s à avaliação: a centra<strong>da</strong><br />

no estu<strong>da</strong>nte, a que focaliza o professor, a que tem em mira o material instrucional<br />

ou os cursos/programas, ou ain<strong>da</strong> a centra<strong>da</strong> na instituição ou no próprio sistema<br />

educacional.<br />

Se focalizarmos a Educação a Distância apoia<strong>da</strong> pelos recursos <strong>da</strong> Internet,<br />

quais os princípios que norteiam a avaliação <strong>da</strong> aprendizagem dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de educação? Cabe destacar que a incorporação <strong>da</strong>s tecnologias <strong>da</strong> Internet<br />

à educação tem menos de uma déca<strong>da</strong>, fato que pode indicar um dos motivos<br />

de ain<strong>da</strong> serem reduzidos os estudos específi cos sobre avaliação <strong>da</strong> educação<br />

media<strong>da</strong> por computadores.<br />

5.3 - Conhecendo a Temática<br />

5.3.1 As Dimensões <strong>da</strong> Avaliação<br />

Na perspectiva de fomentar a discussão sobre o caráter multidimensional<br />

<strong>da</strong> avaliação, apresentaremos a seguir considerações preliminares sobre a<br />

diversi<strong>da</strong>de de enfoques, classifi cações, dimensões e tipos de avaliação que se<br />

estabelecem no confronto <strong>da</strong>s idéias e práticas pe<strong>da</strong>gógicas.<br />

A avaliação somativa é identifi ca<strong>da</strong> com a forma de avaliação<br />

tradicionalmente utiliza<strong>da</strong> nas escolas. Presta-se à comparabili<strong>da</strong>de de resultados<br />

obtidos por diferentes alunos, métodos ou materiais de ensino. Concebi<strong>da</strong> como<br />

julgamento para verifi cação <strong>da</strong> aprendizagem, a avaliação somativa é realiza<strong>da</strong> no<br />

327


328<br />

fi nal do período de instrução para fi ns de classifi cação, através <strong>da</strong> atribuição de<br />

conceitos ou notas. Nessa forma de avaliação há interdependência entre notas e<br />

classifi cações.<br />

A avaliação formativa, segundo Morales (1998), é realiza<strong>da</strong> no decorrer de<br />

um programa instrucional visando aperfeiçoá-lo. É concebi<strong>da</strong> como meio para<br />

informar e corrigir erros a tempo. Visa fornecer feedback ao aluno e ao professor e<br />

busca o atendimento <strong>da</strong>s diferenças individuais e alternativas para problemas<br />

identifi cados.<br />

A avaliação diagnóstica tem como preocupação o diagnóstico de falhas<br />

através de instrumentos diversifi cados. Caracteriza-se por ocorrer em dois<br />

momentos diferentes, antes e durante o processo de instrução. No primeiro<br />

momento tem como objetivo verifi car habili<strong>da</strong>des básicas dos alunos a fi m<br />

de agrupá-los de acordo com características comuns e formar programas<br />

alternativos de ensino; no segundo momento está centra<strong>da</strong> na busca de causas<br />

não pe<strong>da</strong>gógicas para os repetidos fracassos de aprendizagem.<br />

Hoff mann (2002) defende práticas avaliativas mediadoras que tenham por base<br />

os seguintes princípios gerais: uma concepção de avaliação como um projeto de futuro;<br />

o entendimento do valor ou <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aprendizagem como parâmetros sempre<br />

subjetivos e arbitrários, e fi nalmente, a compreensão de que a aprendizagem se dá na<br />

relação de saber consigo mesmo, com os outros e com os objetos do saber.<br />

Para essa autora, o caminho para a avaliação mediadora não pode ser outro<br />

senão a busca de signifi cados para to<strong>da</strong>s as dimensões <strong>da</strong> relação entre educandos e<br />

educadores, através de investigação acerca <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des dos aprendizes e <strong>da</strong>s<br />

aprendizagens, numa visão de quem quer conhecer para promover e não para julgar.<br />

5.3.2 Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Avaliação Educacional<br />

O uso <strong>da</strong>s Tecnologias <strong>da</strong> Informação e <strong>da</strong> Comunicação -TICs na educação<br />

tem provocado o deslocamento do modelo tradicional de avaliação, para uma<br />

concepção de avaliação adequa<strong>da</strong> à aprendizagem colaborativa na educação<br />

on-line. Essa concepção pressupõe o rompimento <strong>da</strong> lineari<strong>da</strong>de de transmissão<br />

de conhecimentos, a articulação entre o envolvimento individual e o coletivo, a<br />

interação entre várias fontes de informação e entre os vários atores, e a própria<br />

imprevisibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s metas, visto que na educação on-line, o aluno está no centro<br />

do processo educacional.<br />

A cultura tradicional de avaliação marca<strong>da</strong> pela concepção “bancária”,<br />

termo utilizado por Paulo Freire (1987), fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> num conceito mecânico<br />

e estático de ensino-aprendizagem, inibe a autonomia dos educandos fazendoos<br />

dependentes de uma ação externa, direciona<strong>da</strong>, e representa uma barreira às<br />

práticas avaliativas mediadoras.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Refl ita sobre as conseqüências <strong>da</strong> concepção bancária de avaliação<br />

do nosso sistema educacional. Leia o capítulo 10, página 175 a 188, do livro<br />

Construindo Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s de Aprendizagem no Ciberespaço: estratégias<br />

efi cientes para a sala de aula on-line de PALLOFF & PRATT ( 2004)


5.3.3 Avaliação em Ambientes Virtuais Interativos<br />

Alguns autores consideram que a auto-avaliação dos alunos seja tão importante<br />

quanto a avaliação do professor no que diz respeito à quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> aprendizagem<br />

e ao alcance dos objetivos na educação on-line, a exemplo de Peters (2001), que<br />

defende a idéia de que mais importante que orientar-se no mundo abstrato de<br />

uma universi<strong>da</strong>de virtual, vivenciando-a e se acostumando com a sua natureza,<br />

é não depender do juízo dos outros, tomar iniciativas, desenvolver a capaci<strong>da</strong>de<br />

de reconhecer diferenças qualitativas, avaliar por si próprio os métodos de estudo<br />

e fazer suas escolhas autonomamente, refl etindo sobre a própria aprendizagem e<br />

contribuindo assim para o surgimento <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> comunicação digital.<br />

A sala de aula virtual é vista por Harasim (1997) como um sistema<br />

computacional aprimorado para o aprendizado e a comunicação, e apresenta<br />

a capaci<strong>da</strong>de de respeitar os diferentes ritmos e estilos de aprendizagem, a<br />

heterogenei<strong>da</strong>de de conhecimentos trazidos pelos alunos e seus valores no<br />

contexto cultural, pessoal e profi ssional em que se inserem. São requisitos a serem<br />

considerados na avaliação <strong>da</strong> educação virtual.<br />

A avaliação de ativi<strong>da</strong>des colaborativas nesse sistema parece estar mais<br />

relaciona<strong>da</strong> à implementação dos meios com fi ns educacionais, do que com as<br />

características desse meio. É sempre muito fértil rastrear um grande volume de<br />

<strong>da</strong>dos e estar atento para detectar possíveis problema.<br />

Consulte as no processo de aprendizagem. Ressalta-se que diante de suas<br />

características e intencionali<strong>da</strong>des, parece ser adequado estimular o aluno a fazer<br />

suas refl exões sobre o próprio aprendizado, o que pode traduzir a auto-avaliação<br />

como princípio <strong>da</strong> avaliação formativa.<br />

Objetos de Avaliação na Educação On-line<br />

Existem vários aspectos a serem tomados como objetos de avaliação<br />

na educação on-line. Poderíamos citar, a título de ilustração, os conteúdos, as<br />

estratégias, os recursos utilizados, os atores do processo, a mídia, a infra-estrutura<br />

tecnológica e as redes de comunicação.<br />

Destacamos entre os mencionados objetos, o diálogo ou a comunicação<br />

dialoga<strong>da</strong>. É um assunto recorrente na literatura em virtude de sua importância<br />

em ambientes interativos.<br />

O termo diálogo a que nos referimos é aqui expresso para descrever uma<br />

interação ou séries de interações que possuem quali<strong>da</strong>des positivas, no sentido<br />

apresentado por Moore (1993). Para o autor, ele precisa ser intencional, construtivo e<br />

valorizado pelas partes que o estabelecem. Sua natureza e extensão são orienta<strong>da</strong>s pela<br />

fi losofi a educacional do curso, pela personali<strong>da</strong>de de professores e alunos, pelo tema<br />

do curso e por fatores ambientais, entre eles o meio de comunicação adotado.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

O que é um diálogo on-line? Pesquise...<br />

Consulte a Revista Diálogo Educacional disponível em: htt p://www2.pucpr.br/<br />

reol/index.php/dialogo<br />

329


330<br />

Um enfoque em favor <strong>da</strong> participação ativa dos alunos nos ambientes<br />

virtuais é defendido por estudiosos <strong>da</strong> temática, a exemplo de Gonçalves (2004)<br />

para quem, na educação on-line, o participante precisa estar integrado, dinâmico<br />

e compromissado. Os silenciosos, aqueles que não se manifestam, quebram a<br />

interação e a dinâmica do grupo. Assim, a passivi<strong>da</strong>de dos participantes merece<br />

refl exão por parte dos educadores e avaliadores para que, entendendo suas<br />

razões, possam conduzir o trabalho educativo na perspectiva <strong>da</strong> colaboração e do<br />

incentivo a posturas questionadoras diante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

É importante observar o que está predominando pelo lado dos aprendizes:<br />

silêncio, respostas ou iniciativas? O silêncio precisa ser considerado: é momento<br />

de refl exão? É sinal de desinteresse ou apatia?<br />

As causas do silêncio virtual precisam ser investiga<strong>da</strong>s pela avaliação, pois<br />

em ambientes colaborativos virtuais, a participação é imprescindível. O silêncio<br />

virtual não necessariamente impede a aprendizagem, mas barra a colaboração<br />

que potencialmente leva à troca de conhecimentos. Diante desse pensar, as razões<br />

para o silencio virtual preocupam a avaliação.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Na literatura inglesa, é caracterizado como lurker o sujeito que está<br />

ausente <strong>da</strong> discussão em ambientes colaborativos on-line, mas pode estar<br />

interagindo “silenciosamente” apenas com o material do curso e leitura de<br />

mensagens. Sobre silêncio virtual, você pode rever a discussão na Uni<strong>da</strong>de<br />

Temática 4: Com<strong>uni<strong>da</strong>de</strong>s Virtuais de Aprendizagem.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Para saber mais sobre Silêncio <strong>Virtual</strong> leia o artigo de GONÇALVES, M.<br />

Ilse R. Refl exões sobre “silêncio virtual” no contexto do grupo de discussão<br />

na aprendizagem via rede<br />

Disponível na Biblioteca <strong>Virtual</strong> <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>.<br />

Recursos e Ferramentas <strong>da</strong> Avaliação em Educação On-line<br />

Palloff & Pratt (2004) apresentam alguns critérios fun<strong>da</strong>mentais de avaliação<br />

dos alunos on-line, na perspectiva de que a mesma não seja toma<strong>da</strong> como uma<br />

tarefa isola<strong>da</strong> e incômo<strong>da</strong>, mas que esteja de acordo com o curso como um todo,<br />

inseri<strong>da</strong> em seu contexto.<br />

Propõem que se observem: diretrizes, objetivos, valores, metas e padrões<br />

claros; tarefas autênticas e holísticas, que sejam relevantes para a matéria<br />

estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e para a vi<strong>da</strong> dos alunos; uma estrutura facilitadora; acompanhamento<br />

formativo sufi ciente e adequado e a clareza do contexto de aprendizagem de<br />

modo que os alunos estejam conscientes do que deles se espera.<br />

As refl exões sobre avaliação geralmente se fazem em torno dos processos<br />

de interação e interativi<strong>da</strong>de, focados na freqüência de participação nos fóruns,


nas listas de discussão, nos chats, mural, glossário coletivo, mas também, devem<br />

ser considera<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des individualiza<strong>da</strong>s como perfi l de aluno, diário de<br />

bordo, blog e e-portfólio.<br />

Ampliando seu Conhecimento<br />

Pesquise o signifi cado de portfólio no Google, acessando o site www.<br />

google.com. O que diferencia o e-portfólio de um diário?<br />

Construa seu e-portfólio no ambiente Moodle.<br />

Rubrics<br />

A idéia de rubric ain<strong>da</strong> pouco difundi<strong>da</strong> entre nós, teve origem nos Estados<br />

Unidos nos anos 70, segundo Lüdke (2003), quando estudiosos <strong>da</strong> temática<br />

preocupados com a exclusivi<strong>da</strong>de de instrumentos avaliativos muito centrados<br />

na comparação com a norma, propuseram novos instrumentos voltados para o<br />

estabelecimento de critérios (criteria referenced measurements) de avaliação <strong>da</strong><br />

educação em rede.<br />

O uso de critérios na forma de rubric na avaliação <strong>da</strong> educação on-line<br />

conforme defendido por Palloff & Pratt (2004), tem o mérito de conscientizar os<br />

alunos sobre o que deles se espera, e aju<strong>da</strong> a alinhar os objetivos de aprendizagem<br />

e de avaliação.<br />

Explicações e exemplos de rubrics pode ser encontrado em<br />

htt p://www.escolabr.com/projetos/rubricas/avaliacao_autentica.htm<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Leia mais sobre Avaliação dos Alunos e do Curso em PALLOFF; & PRATT<br />

( 2004). O Aluno <strong>Virtual</strong>: um guia para trabalhar com estu<strong>da</strong>ntes on-line. No<br />

Capítulo 8, página 113 você vai encontrar um modelo de uma rubric.<br />

5.3.4 Instrumentos e Procedimentos de Avaliação dos Alunos e <strong>da</strong><br />

Disciplina<br />

O desenvolvimento <strong>da</strong> tecnologia trouxe soluções para os problemas<br />

<strong>da</strong> distância física ao romper barreiras temporais e espaciais, apontando para<br />

consoli<strong>da</strong>ção de um novo paradigma educacional. São perceptíveis as mu<strong>da</strong>nças<br />

nas formas de comunicação humana (síncrona e assíncrona) e a facili<strong>da</strong>de de<br />

acesso a <strong>da</strong>dos e informações trazi<strong>da</strong>s pelas tecnologias <strong>da</strong> comunicação. Em que<br />

consiste esse paradigma educacional? O que é paradigma?<br />

331


332<br />

Pesquise o termo paradigma. Consulte a Wikipédia. htt p://pt.wikipedia.<br />

org/wiki/Paradigma<br />

Contextualize com as idéias apresenta<strong>da</strong>s nesse item e coloque o termo<br />

no glossário.<br />

Nesse paradigma a educação se faz através <strong>da</strong> comunicação interativa<br />

dialoga<strong>da</strong>, foca<strong>da</strong> especialmente no diálogo textual e na interação. Esse<br />

paradigma diferencia-se <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de tradicional de educação por se realizar<br />

através dos meios informáticos e estar marcado por novas relações entre alunosprofessores,<br />

aluno-aluno, aluno-material instrucional. Diferencia-se ain<strong>da</strong> pela<br />

forma colaborativa de construir conhecimentos, nos quais as questões relativas a<br />

tempo, espaço e hierarquia sofreram profun<strong>da</strong>s alterações, produzindo interações<br />

de igual para igual entre professor e aluno e o desenvolvimento de um ágil<br />

processo de comunicação e intercâmbio entre os sujeitos.<br />

Evidentemente esse paradigma obriga-nos a repensar novas estruturas<br />

e metodologias no design instrucional, novas estratégias de ensino, novas<br />

dinâmicas de grupo e evidentemente, novas formas de avaliar a construção do<br />

conhecimento. Nessa perspectiva, geralmente os alunos participam <strong>da</strong> própria<br />

avaliação ao realizarem a auto-avaliação, <strong>da</strong> avaliação dos pares.<br />

Consta do design <strong>da</strong> disciplina Introdução à Educação a Distância<br />

um questionário de avaliação diagnóstica, para traçar o perfi l<br />

dos alunos a ser aplicado no início do curso. Os resultados deste<br />

questionário serão mostrados no relatório de Perfi l do Aluno na<br />

Biblioteca <strong>Virtual</strong> <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>. www.virtual.ufpb.br<br />

Como indicado no programa do curso em “Critérios de Avaliação”,<br />

a avaliação dos alunos será contínua e formativa e estará volta<strong>da</strong> para o<br />

acompanhamento <strong>da</strong> construção do conhecimento dos alunos, ao longo do curso,<br />

através <strong>da</strong> monitoração <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des virtuais, com base nos relatórios emitidos<br />

pelo Moodle (ativi<strong>da</strong>des no fórum, chat, glossário, wikis, resumos, tarefas,<br />

apresentações virtuais, portfólio, etc e de uma avaliação presencial.<br />

Os procedimentos de avaliação dos alunos consistem em analisar:<br />

A participação nos fóruns de discussão, com observação no foco <strong>da</strong>s<br />

discussões e na capaci<strong>da</strong>de de envolvimento e colaboração (tarefa<br />

assíncrona);<br />

A participação nos chats observando o envolvimento e a interação social<br />

(tarefa síncrona, em tempo real);<br />

A capaci<strong>da</strong>de de articulação (na forma textual) do instrumental teórico,<br />

objeto de discussão <strong>da</strong> disciplina, em conformi<strong>da</strong>de com a bibliografi a<br />

básica adota<strong>da</strong>. Trabalhos escritos na forma de relatório, síntese, resenha,<br />

e tarefas on line e off line a serem enviados através do Moodle;


A participação na Sala de aula virtual Moodle, com monitoramento<br />

<strong>da</strong> participação (acesso aos materiais de estudo) através dos relatórios<br />

detalhados emitidos pelo Moodle;<br />

Uma Prova Presencial de Disciplina (presencial). E um Exame Final<br />

5.4 - Avaliando o que foi construído<br />

A literatura sobre avaliação nos traz refl exões sobre os desafi os colocados<br />

pelo uso <strong>da</strong>s TIC’s na transformação do paradigma de avaliação tradicional.<br />

As novas propostas de investigação levam em conta o ambiente em que as<br />

ocorrências se manifestam e a multiplici<strong>da</strong>de de interpretações dos fenômenos a<br />

serem avaliados nos seus respectivos contextos.<br />

Essas tecnologias possibilitam liberar a inteligência humana <strong>da</strong>s tarefas<br />

rotineiras permitindo aos indivíduos concentrarem-se no essencial de sua tarefa.<br />

Desse modo, resta aos estu<strong>da</strong>ntes mais tempo para refl exão, criação, inovação,<br />

colaboração e aprendizagem autônoma. Nesse sentido, percebemos que a<br />

avaliação <strong>da</strong> construção de conhecimentos media<strong>da</strong> por recursos <strong>da</strong> Internet,<br />

encontra maior identifi cação com a proposta sócio-construtivista interacionista,<br />

ao reclamar dos aprendizes habili<strong>da</strong>des de dominar as estratégias de acesso,<br />

capaci<strong>da</strong>de de assimilação, seleção e análise de <strong>da</strong>dos e informações e sua<br />

conversão em conhecimentos, num processo contínuo de interação humana e<br />

cooperação.<br />

Nesse cenário, a avaliação precisa estar atenta a essa nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de ensino-aprendizagem e buscar estratégias adequa<strong>da</strong>s. Nela, a construção do<br />

conhecimento desloca-se <strong>da</strong> <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de análise do indivíduo para a relação do<br />

indivíduo com o ambiente e a interação com os demais membros, e o aluno portase<br />

como agente ativo na estrutura de toma<strong>da</strong> de decisões sobre o que estu<strong>da</strong>r e<br />

como estu<strong>da</strong>r, de acordo com seu estilo de aprendizagem.<br />

Diante desse quadro é relevante avaliar as dimensões cognitivas e sociais<br />

<strong>da</strong> aprendizagem, perspectiva na qual a avaliação acaba por conferir coerência<br />

entre as percepções dos alunos e os objetivos <strong>da</strong> proposta educacional sensível<br />

ao contexto específi co. Faz-se necessário por em prática a avaliação continua<strong>da</strong><br />

como subsídio ao aperfeiçoamento <strong>da</strong> proposta pe<strong>da</strong>gógica. Nesse sentido, cabe<br />

ao professor e sua equipe interpretar os <strong>da</strong>dos, decifrando-os na perspectiva<br />

<strong>da</strong> avaliação como prática permanente de investigação, em coerência com os<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> aprendizagem colaborativa, sem se deixar envolver pelas crenças<br />

e valores tradicionais arraigados na cultura de avaliação, carregados pela lógica<br />

<strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> efi ciência e refl etidos nos processos de punir ou premiar.<br />

333


UNIDADE VI<br />

HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

6.1 - Situando a Temática<br />

Nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> traçaremos um panorama do surgimento e evolução <strong>da</strong><br />

EAD. Trataremos também <strong>da</strong> conseqüente regulamentação dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

ensino no Brasil. Na tentativa de facilitar a compreensão, apresentaremos o tema<br />

de estudo em dois momentos: no primeiro, discutiremos as origens históricas<br />

<strong>da</strong> EAD, apresentando suas gerações com destaque para a evolução recente <strong>da</strong><br />

EAD nas instituições de ensino superior brasileiras. Num segundo momento,<br />

trataremos <strong>da</strong> regulamentação e autorização <strong>da</strong> EAD através de Leis, Decretos e<br />

Portarias do Ministério <strong>da</strong> Educação.<br />

6.2 - Problematizando a Temática<br />

Segundo Oreste Preti (1996) a Educação a Distância “não é algo totalmente<br />

novo em nosso país, pois vivenciamos experiências em EAD desde a déca<strong>da</strong><br />

de 1960. Lembra do Projeto Minerva, do Logos I e Logos II e, recentemente,<br />

Telecurso 2000, Salto para o Futuro, TV Escola e ProFormação? Algumas<br />

foram avalia<strong>da</strong>s positivamente, outras critica<strong>da</strong>s; umas desenvolvi<strong>da</strong>s em todo<br />

território nacional, enquanto umas poucas só regionalmente. ”<br />

Destaca<strong>da</strong> na mídia como uma novi<strong>da</strong>de e explora<strong>da</strong> pelos ideólogos como<br />

uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de moderna e efi ciente de ensino-aprendizagem, as questões<br />

que envolvem o ensinar e o aprender a distância tem causado ao mesmo tempo<br />

perplexi<strong>da</strong>de e desconfi ança. Às vezes nos perguntam: Será que funciona? Já<br />

existiu ou foi testado em outros países? Como são as aulas? E as avaliações?<br />

Será que as pessoas são capazes de aprender sem a presença física do professor?<br />

Frequentemente a falta de informações sobre a história e evolução <strong>da</strong> EAD no<br />

mundo tem levado as pessoas a esses questionamentos e a estigmatizar a EAD,<br />

associando-a a experiências de pouco êxito e muito isolamento. Nesta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

buscaremos discutir essas questões com base em <strong>da</strong>dos e informações.<br />

Veremos que as suas origens são mais antigas do que nós pensamos e que<br />

sua história tem sido marca<strong>da</strong> por forte intervenção humana, ancora<strong>da</strong>, é claro,<br />

nos avanços tecnológicos de ca<strong>da</strong> período histórico. Veremos que as tecnologias<br />

desempenham uma função importante em EAD, mas que é a ação humana que<br />

conduz seu movimento.<br />

Desde o seu surgimento, as diferentes tecnologias incorpora<strong>da</strong>s ao ensino<br />

contribuíram para defi nir os suportes fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong>s propostas educativas. A<br />

importância <strong>da</strong> tecnologia tem sido tão destaca<strong>da</strong>, que algumas vezes questionase<br />

o papel do professor. Será que ele vai ser substituído pelas mídias eletrônicas?<br />

Qual a sua nova função nesse contexto? Será que ele será capaz de portar-se<br />

autonomamente? Como as novas tecnologias podem viabilizar uma educação<br />

335


336<br />

foca<strong>da</strong> no aluno, em que ele e não o professor seja o “centro <strong>da</strong>s atenções”?<br />

Essas são questões recorrentes que merecem nossa atenção e que serão objeto de<br />

discussão nessa <strong>uni<strong>da</strong>de</strong>.<br />

6.3 - Conhecendo a Temática<br />

Atualmente os sistemas de educação a distância constituem ca<strong>da</strong> vez<br />

mais uma possibili<strong>da</strong>de real para quem, por diferentes razões, deseja concluir<br />

ou continuar um processo de formação educacional ou profi ssional. Dentre<br />

as possibili<strong>da</strong>des existentes, e como parte <strong>da</strong> educação aberta e a distância,<br />

a educação virtual ou on-line (mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educativa realiza<strong>da</strong> via Internet,<br />

especifi camente pela Web) tem demonstrado ser uma alternativa para elevar os<br />

níveis de formação, capacitação e atualização, ao incorporar diversas estratégias<br />

pe<strong>da</strong>gógicas orienta<strong>da</strong>s por processos de aprendizagem autodirigi<strong>da</strong>.<br />

Apreende-se, a partir <strong>da</strong> literatura sobre educação media<strong>da</strong> pela tecnologia,<br />

que educar a distância é um processo bastante complexo. Sua implementação<br />

exige a escolha cui<strong>da</strong>dosa dos meios tecnológicos, a observância do acesso dos<br />

aprendizes às tecnologias escolhi<strong>da</strong>s, a defi nição de métodos pe<strong>da</strong>gógicos que<br />

viabilizem a interação e a interativi<strong>da</strong>de necessárias ao processo de ensinoaprendizagem<br />

considerando a autonomia do aprendiz e, sobretudo, a escolha de<br />

conteúdos que permitam problematizar o saber, contextualizando conhecimentos,<br />

de modo que possam ser apropriados pelos aprendizes e que tenham funções<br />

informativas e formativas para o trabalho e para a vi<strong>da</strong>.<br />

Conhecer a história <strong>da</strong> EAD e o atual contexto de seu desenvolvimento<br />

constitui passo fun<strong>da</strong>mental para participar ativa e criticamente do sistema, seja<br />

como aluno ou docente.<br />

6.3.1 Contexto Histórico<br />

Somente em 1994, com a expansão <strong>da</strong> Internet nas Instituições de Ensino<br />

Superior (IES) e com a publicação <strong>da</strong> Lei de Diretrizes e Bases <strong>da</strong> Educação (LDB)-<br />

Lei 9.394/96 de dezembro de 1996, a EAD foi ofi cializa<strong>da</strong>. No entanto, o Brasil tem<br />

história na EAD. O país presenciou o surgimento de cursos à distância no início<br />

do século 20 (a primeira instância foi documenta<strong>da</strong> exatamente há 100 anos, em<br />

1904). O rádio educativo surgiu em 1923 e nas Déca<strong>da</strong>s de 1960 e 1970, surgem<br />

experiências com a televisão educativa (TVE) com cursos supletivos e formação.<br />

Entre meados dos anos 80’ e meados de 90’ tem início o uso de ferramentas de<br />

aprendizagem on line e surgem os primeiros cursos apoiados pela Internet e por<br />

videoconferência.<br />

Em 1997 começam a ser produzidos pelas universi<strong>da</strong>des brasileiras os<br />

primeiros Ambientes Virtuais de Aprendizagem. O Brasil não perdeu tempo<br />

nesta área e já em 1995 e 1996 produzia soluções próprias com os sistemas <strong>da</strong><br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Anhembi Morumbi em São Paulo, <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de<br />

Pernambuco, <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Santa Catarina, Facul<strong>da</strong>de Carioca no Rio<br />

de Janeiro e <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de São Paulo (Escola Paulista de Medicina).<br />

Estas universi<strong>da</strong>des, além <strong>da</strong> UnB e <strong>da</strong> PUC, são responsáveis pela chega<strong>da</strong> e<br />

implantação no Brasil dos recursos <strong>da</strong> 3ª Geração de Educação a Distância.


É nesse contexto, que a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de a distância começa a ganhar<br />

importância. Se antes era associa<strong>da</strong> a cursos de baixa quali<strong>da</strong>de, uma<br />

educação marginaliza<strong>da</strong> e sem reconhecimento como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educativa<br />

com características próprias, agora se apresenta como possibili<strong>da</strong>de concreta<br />

de viabilizar o acesso a educação de quali<strong>da</strong>de, com interação humana e<br />

interativi<strong>da</strong>de e sem limitação de tempo e de espaço físico.<br />

Pensar nos desafi os que a educação virtual enfrenta nesse novo contexto é o<br />

propósito dessa <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> de estudo.<br />

6.3.2 Surgimento e Evolução <strong>da</strong> EAD<br />

O fi nal do século XIX marcou o surgimento <strong>da</strong> EAD, mesmo que de forma<br />

embrionária, quando instituições particulares nos Estados Unidos e na Europa<br />

ofereciam cursos por correspondência destinados ao ensino de temas vinculados<br />

a ofícios, com pequeno valor acadêmico. Provavelmente, segundo Litwin (2001),<br />

essa origem tenha fi xado uma apreciação negativa de muitas de suas propostas.<br />

Somente nas últimas déca<strong>da</strong>s a EAD assumiu um status que a coloca no centro<br />

<strong>da</strong>s atenções pe<strong>da</strong>gógicas de um número ca<strong>da</strong> vez maior de países. Vejamos<br />

algumas universi<strong>da</strong>des que inovaram ao implantar essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação<br />

ain<strong>da</strong> quando se achava duvidoso o seu potencial educativo:<br />

<br />

<br />

<br />

A <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Wisconsin, cria<strong>da</strong> exclusivamente para<br />

essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de ensino, marca um ponto importante no<br />

desenvolvimento de EAD na educação norte-americana. Em<br />

1981, a administração <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de aceita proposta de seus<br />

professores para organizar cursos por correspondência nos serviços<br />

de extensão universitária. Para conhecer sua atual estrutura visite<br />

htt p://www.wisc.edu/<br />

A <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta no Reino Unido, mais conheci<strong>da</strong> como<br />

Open University, mostrou ao mundo uma proposta com um<br />

desenho complexo, o qual conseguiu, utilizando meios impressos,<br />

televisão e cursos intensivos em períodos de recessos de cursos<br />

presenciais em outras universi<strong>da</strong>des convencionais, produzir<br />

cursos acadêmicos de quali<strong>da</strong>de. Esta universi<strong>da</strong>de transformouse<br />

em modelo de ensino a distância e os egressos dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

competiam pelos postos de trabalho com os graduados de<br />

universi<strong>da</strong>des presenciais. Visite htt p://www3.open.ac.uk<br />

A FernUniversität, cria<strong>da</strong> na Alemanha em 1974 com o objetivo<br />

principal de aliviar a pressão <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> por vagas nas tradicionais<br />

universi<strong>da</strong>des presenciais alemãs. Na FernUniversität o ensino<br />

é articulado sobretudo na forma de cursos a distância, de baixa<br />

estruturação, elaborados com ampla liber<strong>da</strong>de pelos professores<br />

337


338<br />

<br />

dos cursos, sob a forma de textos didáticos, glossários, questões<br />

para auto-teste e trabalho autônomo (Peters,2001). Peters foi o<br />

fun<strong>da</strong>dor e primeiro reitor <strong>da</strong> FernUniversität .Visite htt p://www.<br />

fernuni-hagen.de/<br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Nacional de Educação a Distância (UNED) na<br />

Espanha, estrutura<strong>da</strong> nos anos 70, utilizava materiais impressos<br />

entregues via correios como meio principal. No fi nal do século<br />

XX migrou para integração com a Internet. Estas propostas<br />

atraíram um grande número de estu<strong>da</strong>ntes em todo mundo, tanto<br />

de carreiras de graduação como de pós-graduação. Visite htt p://<br />

www.uned.es/portal/<br />

No século XIX e até o primeiro terço do século XX, a principal solução para<br />

a educação a distância estava ancora<strong>da</strong> na produção de materiais impressos com<br />

distribuição via Correios, que era conheci<strong>da</strong> como “ensino por correspondência”.<br />

No segundo terço do século XX, as instituições passam a utilizar os recursos<br />

do rádio e <strong>da</strong> televisão para a difusão de programas educacionais, agregando<br />

como suporte e apoio os materiais impressos encaminhados via Correios. O rádio<br />

alcançou muito sucesso em experiências nacionais e internacionais, tendo sido<br />

bastante explorado na América Latina nos programas de educação a distância do<br />

Brasil, Colômbia, México, Venezuela, entre outros.<br />

Nas déca<strong>da</strong>s de 60 e 70, a educação a distância, embora mantendo os<br />

materiais escritos como base, passa a incorporar articula<strong>da</strong> e integra<strong>da</strong>mente o<br />

áudio, o videocassete, as transmissões de rádio e televisão, e o videotexto. Mais<br />

recentemente foi incorpora<strong>da</strong> a tecnologia de multimeios que combina texto,<br />

som, imagem, assim como mecanismos de geração de caminhos alternativos<br />

de aprendizagem e instrumentos para fi xação de aprendizagem com feedback<br />

imediato (programas tutoriais informatizados).<br />

Ao fi nal do século XX, surgiram as transmissões de televisão por satélite<br />

propiciando alcance continental a programas educacionais, cursos distribuídos<br />

por meio de fi tas de áudio e de vídeo, programas de aprendizagem assisti<strong>da</strong><br />

por computador, os CD-ROMs, as redes de informação para troca de <strong>da</strong>dos.<br />

No último terço do século surgiram no ensino superior instituições dedica<strong>da</strong>s<br />

exclusivamente à educação a distância com perfi s próprios em metodologia e uso<br />

de tecnologias.<br />

Se você fi cou curioso em descobrir como funciona a EAD nas grandes<br />

universi<strong>da</strong>des mundiais leia “Modelos de Ensino e Aprendizagem de Instituições<br />

Específi cas” (Peters, 2001, capitulo 7). Nesse capítulo o autor apresenta uma<br />

descrição e os modelos didáticos <strong>da</strong>s seguintes Instituições: University of South<br />

Africa; Open University inglesa; FernUniversität alemã; University of China;<br />

University of the Air do Japão; o Empire State College americano; a National<br />

University Teleconference Network americana; e o projeto Contact North do<br />

Canadá.


6.3.3 Gerações de EAD<br />

Atualmente, a Educação a Distância pode escolher dentre uma vasta gama<br />

de tecnologias. Basicamente, o desenvolvimento tecnológico <strong>da</strong> educação passou<br />

por quatro fases. Apresentaremos o quadro abaixo, identifi cando ca<strong>da</strong> fase ou<br />

geração com o período e com as tecnologias adota<strong>da</strong>s:<br />

Geração Período Características<br />

Cursos por correspondência<br />

1ª 1840 - 1950 Os instrutores passaram a produzir textos, guias de estudo<br />

com tarefas e exercícios e outros materiais impressos que<br />

eram enviados pelo correio aos estu<strong>da</strong>ntes. A comunicação<br />

se fazia através <strong>da</strong> interação entre o estu<strong>da</strong>nte e a<br />

instituição e os alunos podiam estu<strong>da</strong>r em casa.<br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>s Abertas<br />

2ª 1950 - 1960 Surgem as primeiras <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong>s Abertas com novos<br />

veículos de disseminação de conteúdos como o rádio,<br />

televisão, fax, com interação por telefone, além do<br />

material impresso. Leituras ao vivo em sala de aula eram<br />

captura<strong>da</strong>s e transmiti<strong>da</strong>s a outros grupos de alunos, que<br />

poderiam seguir a lição de uma sala de aula distante por<br />

meio <strong>da</strong> televisão ou do rádio. A interação continuava<br />

apenas entre o estu<strong>da</strong>nte e a instituição.<br />

Multimídia<br />

3ª 1960 – 1995 Nesta geração temos os recursos <strong>da</strong> primeira e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

fases juntos, em uma abor<strong>da</strong>gem multimídia, com base<br />

em textos, áudio e televisão. Mas estes meios eram<br />

suplementares ao material impresso. A computação como<br />

meio de acessar bancos de <strong>da</strong>dos foi sendo incorpora<strong>da</strong><br />

aos processos de ensino à medi<strong>da</strong> que se desenvolvia.<br />

Múltiplas Tecnologias<br />

4ª A partir de Múltiplas tecnologias incluindo os computadores e as redes<br />

de comunicação. Houve a integração <strong>da</strong>s telecomunicações<br />

1995<br />

com outros meios educativos, mediante a informática<br />

(correio eletrônico, CDs, Internet, audioconferência,<br />

videoconferência, redes de computadores, telefone, fax,<br />

papel impresso etc). As redes de comunicação além de<br />

prover o acesso a uma gama de informações nunca antes<br />

existente possibilitaram a comunicação interativa em dois<br />

sentidos, síncrona e assíncrona, entre a instituição e os<br />

estu<strong>da</strong>ntes, entre os estu<strong>da</strong>ntes e os professores ou tutores<br />

e entre os próprios estu<strong>da</strong>ntes, provocando mu<strong>da</strong>nças<br />

consideráveis nos processos educacionais. Também<br />

destacamos nesta fase a idéia de ensino virtual.<br />

Em adição às quatro gerações anteriormente descritas Aretio (2001)<br />

apresenta uma 5ª Geração, essencialmente deriva<strong>da</strong> <strong>da</strong> 4ª geração.<br />

A 5ª geração diferentemente <strong>da</strong>s gerações anteriores, especialmente <strong>da</strong> 1ª e<br />

<strong>da</strong> 2ª em que os custos variáveis apresentam crescimento proporcional ao número<br />

339


340<br />

de alunos matriculados, traz consigo o potencial de diminuição signifi cativa<br />

dos custos relacionados à economia de escala e custos de efetivi<strong>da</strong>de, quando<br />

comparados aos <strong>da</strong> EAD tradicional ou ao sistema convencional de educação face<br />

a face.<br />

Do ponto de vista pe<strong>da</strong>gógico, a 5ª geração de EAD possibilita<br />

experiências personaliza<strong>da</strong>s com efetivos serviços pe<strong>da</strong>gógicos e administrativos<br />

de apoio ao estu<strong>da</strong>nte e uma melhor quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tutoria, com custos per-capita<br />

signifi cativamente menores.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Ao ler este texto procure refl etir como as tecnologias podem aju<strong>da</strong>r<br />

potencialmente um curso a distância. Há aspectos que podem ser prejudiciais<br />

ao processo de ensino-aprendizagem? No caso concreto em que você se situa<br />

como aluno de um Curso <strong>Virtual</strong>, quais as tecnologias que estão <strong>da</strong>ndo suporte<br />

a sua aprendizagem? Como você está li<strong>da</strong>ndo com elas?<br />

Pense a respeito dessas questões. A leitura do capítulo 1 “Das tradições<br />

à <strong>Virtual</strong>i<strong>da</strong>de”, de Edith Litwin(2001), também será importante para apoiar o<br />

debate sobre a temática.<br />

Ampliando seu conhecimento<br />

No texto “A Tecnologia <strong>da</strong> Educação a Distância em Cenários do<br />

Terceiro Mundo” de Greville Rumble, contido no livro Educação a Distância:<br />

Construindo Signifi cados, cap. 2, organizado por Oreste Preti(2000), você<br />

poderá ampliar seu conhecimento sobre esse tema, estu<strong>da</strong>ndo casos bem<br />

aproximados de nossa reali<strong>da</strong>de.<br />

O artigo de Greville discute questões relaciona<strong>da</strong>s à implementação <strong>da</strong><br />

EAD em países do Terceiro Mundo, com limitações econômicas e tecnológicas.<br />

Abor<strong>da</strong> o problema <strong>da</strong>s limitações e dos arranjos diferenciados possíveis de<br />

serem realizados, na perspectiva de atingir os objetivos educacionais com<br />

efetivi<strong>da</strong>de, através do uso de “pequenos meios”.<br />

6.3.4 A Inserção <strong>da</strong> EAD no Brasil<br />

Vejamos alguns períodos importantes <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong> EAD no Brasil:<br />

<br />

No fi m <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 30 e na déca<strong>da</strong> de 40, algumas instituições como<br />

o Instituto Universal Brasileiro e o Instituto Monitor ofereciam cursos<br />

por correspondência. Em segui<strong>da</strong> surgiu a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> do Ar, que<br />

funcionava pelo rádio, promovi<strong>da</strong> pelo SENAC. Visite o site atual<br />

do Instituto Monitor htt p://www.institutomonitor.com.br/ . Observe<br />

sua proposta de trabalho e os meios utilizados atualmente.


Nas déca<strong>da</strong>s de 50 e 60, houve a explosão de cursos por correspondência<br />

visando a alfabetização de adultos, com a participação <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica.<br />

Nas déca<strong>da</strong>s de 70 e 80, foram oferecidos vários cursos na TV Globo<br />

e pela <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Brasília utilizando metodologia educacional<br />

que integra conteúdos do ensino fun<strong>da</strong>mental e do ensino médio<br />

com uso de multimeios. A iniciativa oferece uma nova oport<strong>uni<strong>da</strong>de</strong><br />

de concluir os estudos básicos.<br />

Em 1995 foi criado pela Fun<strong>da</strong>ção Roberto Marinho e pela Fiesp,<br />

o aperfeiçoamento de dois cursos anteriores: o Telecurso 1º Grau e<br />

o 2º Grau. Nesses cursos, o material didático é composto de livros<br />

e vídeos e permite que se faça o curso em casa assistindo às aulas<br />

através <strong>da</strong>s emissoras de TV que transmitem o Telecurso ou em uma<br />

<strong>da</strong>s várias telessalas existentes no Brasil. Nestas, os alunos têm à<br />

disposição um aparelho de vídeo e um orientador além de material<br />

didático de apoio. Visite htt p://www.frm.org.br/<br />

Em 1995 houve a disseminação <strong>da</strong> Internet nas Instituições de Ensino<br />

Superior, via Rede Nacional de Pesquisa - RNP.<br />

Em 1999-2002 foi feito o credenciamento ofi cial de Instituições<br />

Universitárias para atuar em EAD.<br />

Em 2000 foi cria<strong>da</strong> a <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Virtual</strong> Pública do Brasil, UniRede<br />

consórcio de 70 instituições públicas de ensino superior que tem por<br />

objetivo democratizar o acesso à educação de quali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong><br />

oferta de cursos a distância. Visite htt p://www.unirede.br<br />

Em 2006 aconteceu o lançamento <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil<br />

Visite www.uab.capes.gov.br<br />

É possível identifi car uma profusão de projetos de EAD baseados em<br />

tecnologias <strong>da</strong> Internet que têm marcado o cenário <strong>da</strong> educação brasileira desde<br />

os anos 90. As iniciativas têm surgido como resposta imediata à necessi<strong>da</strong>de<br />

de treinamento empresarial e-learning e no mundo acadêmico principalmente<br />

nas instituições públicas brasileiras, em projetos de formação de professores<br />

no atendimento aos determinantes do art. 80 <strong>da</strong> Lei de Diretrizes e Bases <strong>da</strong><br />

Educação Nacional (LDB), que trata <strong>da</strong> inserção <strong>da</strong> EAD no sistema educacional.<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Ao ler este texto você pôde refl etir sobre possíveis desafi os <strong>da</strong> EAD<br />

no Brasil. Pense a respeito desta questão, imagine as possibili<strong>da</strong>des de<br />

enfrentamento dos problemas. A leitura do capítulo 1: “Das Tradições à<br />

<strong>Virtual</strong>i<strong>da</strong>de”, de Edith Litwin(2001), também será importante para uma<br />

melhor compreensão do problema.<br />

Legislação Específi ca<br />

Do ponto de vista legal, a EAD foi ofi cialmente reconheci<strong>da</strong> como<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de no Brasil em 1996, na consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> última reforma educacional<br />

brasileira, instaura<strong>da</strong> pela Lei de nº 9.394/96. Com a promulgação desta Lei,<br />

341


342<br />

que fi xa as Diretrizes e Bases <strong>da</strong> Educação Nacional, a EAD passou a ser uma<br />

alternativa regular e, regulamenta<strong>da</strong>, deixou de pertencer ao elenco de projetos<br />

sempre designados como “experimentais”. Conjuntamente a essa Lei, existem<br />

Decretos e Portarias com instruções acerca <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong> Lei, recomen<strong>da</strong>ções de<br />

caráter geral, norma de execução e outras determinações.<br />

Em 08 de junho de 2006, através do Decreto nº 5.800 foi instituído o Sistema<br />

<strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> Aberta do Brasil - UAB, voltado para o desenvolvimento <strong>da</strong><br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação a distância, com a fi nali<strong>da</strong>de de expandir e interiorizar<br />

a oferta de cursos e programas de educação superior no País.<br />

6.3.5 Regulamentação <strong>da</strong> EAD no Brasil<br />

Conheça a Legislação Brasileira sobre EAD. Visite<br />

http://www.uab.capes.gov.br. Pesquise no link Legislação<br />

Educação a Distância é institucionaliza<strong>da</strong> através do Decreto 5.622 que<br />

regulamenta o art. 80 <strong>da</strong> Lei nº 9.394, caracterizando-a como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

educacional na qual a mediação didático–pe<strong>da</strong>gógica nos processos de ensino e<br />

aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e<br />

comunicação, com estu<strong>da</strong>ntes e professores desenvolvendo ativi<strong>da</strong>des educativas<br />

em lugares ou tempos diversos.<br />

Os Cursos oferecidos pela <strong>UFPB</strong> VIRTUAL são autorizados pelo MEC<br />

pela Portaria nº 873 de 7 de abril de 2006, com base no Art. 1o. <strong>da</strong> Lei n. 9.394,<br />

que autoriza a oferta de cursos superiores a distância nas Instituições Federais<br />

de Ensino Superior, no âmbito dos programas de indução <strong>da</strong> oferta pública de<br />

cursos superiores a distância fomentados pelo MEC. Para maiores informações<br />

sobre o credenciamento de instituições e a autorização de cursos, visite a página<br />

<strong>da</strong> UAB: htt p://www.uab.capes.gov.br/ e veja o link Credenciamento de IES.<br />

Com esta Lei a EAD ganha, de forma explícita e inquestionável, o status<br />

de mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de plenamente integra<strong>da</strong> ao sistema de ensino. É um processo que<br />

ain<strong>da</strong> não foi completado, mas os dispositivos já emanados oferecem os rumos<br />

legais para as instituições que querem atuar em EAD.<br />

Ampliando seu conhecimento<br />

Visitando o site www.virtual.ufpb.br você encontrará mais informações a<br />

respeito <strong>da</strong> autorização e regulamentação <strong>da</strong> EAD no Brasil e especifi camente<br />

dos Cursos <strong>da</strong> <strong>UFPB</strong>VIRTUAL.<br />

Veja mais...<br />

Lei de Diretrizes e Bases - Lei nº 9.394/1996 a LDB, divisor de águas na<br />

Educação brasileira, contempla aspectos genéricos <strong>da</strong> Educação a Distância no<br />

artigo 80<br />

Decreto 2.494/98 - Regulamenta a EAD no país, conforme previu o artigo<br />

80 <strong>da</strong> LDB<br />

Portaria 301/98 - Estabelece as condições para credenciamento, junto ao<br />

MEC, de instituições interessa<strong>da</strong>s em oferecer cursos de Educação a Distância


A Concepção Legal <strong>da</strong> Educação a Distância no Brasil<br />

“Educação a Distância (EAD) é a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de educacional na qual a<br />

mediação didático-pe<strong>da</strong>gógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre<br />

com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, envolvendo<br />

estu<strong>da</strong>ntes e professores no desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des educativas em lugares<br />

ou tempos diversos. Essa defi nição está presente no Decreto 5.622, de 19.12.2005<br />

(que revoga o Decreto 2.494/98), que regulamenta o Art. 80 <strong>da</strong> Lei 9394/96 (LDB)”<br />

. Site <strong>da</strong> UAB ( 2008)<br />

Avaliação do Aluno na EAD: Determinações Legais<br />

A dimensão pe<strong>da</strong>gógica <strong>da</strong> avaliação determina<strong>da</strong> pela Lei 9.394/96-LDB<br />

tem por princípio uma avaliação processual, contínua, onde os resultados devem<br />

ser cumulativos ao longo do período e com prevalência dos aspectos qualitativos<br />

sobre os quantitativos.<br />

Esses princípios aplicam-se à Educação a Distância que na sua dimensão<br />

legal exige a realização de exames ou provas presenciais, no processo ou fi nais,<br />

em caráter obrigatório. Para atender a esse dispositivo a mesma Lei, em seu Artigo<br />

47, determina que as Instituições de Ensino Superior informem aos interessados<br />

os critérios de avaliação a serem adotados, antes de ca<strong>da</strong> período letivo.<br />

“Os cursos a distância oferecidos pelo programa UAB conferem diplomas<br />

e certifi cados, <strong>da</strong> mesma forma que acontece em cursos presenciais e possuem a<br />

mesma vali<strong>da</strong>de acadêmica e profi ssional.” Site <strong>da</strong> UAB (2008)<br />

Dialogando e Construindo Conhecimento<br />

Refl ita sobre o conceito de EAD e sobre as possibili<strong>da</strong>des de avaliação do<br />

processo determina<strong>da</strong>s pelo Decreto nº 2.494/98.<br />

Busque conceitos de EAD na literatura especializa<strong>da</strong>. Formule seu<br />

próprio conceito contextualizando-o com a nossa reali<strong>da</strong>de social, regional, e<br />

tecnológica.<br />

Refl ita sobre o seu papel enquanto participante desse projeto educacional<br />

e sobre a postura a ser adota<strong>da</strong> num processo de avaliação processual. Exerça<br />

sua autonomia. Resgate os conhecimentos que já construiu ao longo de sua<br />

vi<strong>da</strong> e busque aperfeiçoá-los!<br />

Números recentes <strong>da</strong> EAD no Brasil<br />

Em 2006, o Brasil teve 2,279 milhões de alunos a distância matriculados em<br />

vários tipos de cursos credenciados, fazendo educação corporativa e em outros<br />

projetos educacionais, nacionais e regionais de acordo com o Anuário Brasileiro<br />

Estatístico de Educação Aberta e a Distância (Abraead/2007), publicação <strong>da</strong><br />

Associação Brasileira de Educação a Distância – ABED e do Instituto Monitor,<br />

com o apoio <strong>da</strong> Secretaria de Educação a Distância do MEC (Seed/MEC).<br />

343


344<br />

Isso signifi ca que um em ca<strong>da</strong> oitenta brasileiros estudou por EAD no ano<br />

de 2006. O número de alunos no ensino credenciado a distância cresceu 54%<br />

em 2006, e já chegou a 778 mil pessoas. Se forem contados apenas os alunos de<br />

graduação e pós-graduação, o aumento foi de 91% em 2006.<br />

A Região Sudeste deixou de ser a região com maior número de alunos a<br />

distância no Brasil. Atualmente, ela tem 31% do total. A região Sul do país é agora<br />

a que tem maior número de alunos (33%). As regiões Sul e Centro-Oeste são as<br />

que mais crescem em número de alunos de EAD. Há em todo o Brasil 889 cursos<br />

a distância (credenciados pelo Sistema de Ensino – MEC e conselhos estaduais de<br />

educação), sem contar os livres.<br />

O maior grupo isolado é o de pós-graduação lato-sensu (246 cursos);<br />

os de graduação são 205. A mídia mais utiliza<strong>da</strong> em cursos a distância no país<br />

é o material impresso (86% <strong>da</strong>s instituições a utilizam). A segun<strong>da</strong> mídia mais<br />

utiliza<strong>da</strong> é o e-learning (56%) Os <strong>da</strong>dos indicam que os paradigmas presenciais<br />

resistem na EAD, de modo que a maioria <strong>da</strong>s instituições ain<strong>da</strong> utiliza o professor<br />

presencial (72%) e a reunião presencial (58%). Fonte: ABED www.abed.org.br<br />

Em 2004 havia 166 instituições autoriza<strong>da</strong>s a ministrar cursos de EAD ou<br />

com cursos credenciados no Brasil. Em 2006, este número chegou a 225, com<br />

crescimento de 36%. O número de alunos, que em 2004 era de 309.957 passou<br />

para 778.458, um crescimento de 150%.<br />

6.4 - Avaliando o que foi construído<br />

Esperamos que esta <strong>uni<strong>da</strong>de</strong> tenha possibilitado refl exões sobre a história <strong>da</strong><br />

EAD e sobre sua confi guração como uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação em contínuo<br />

desenvolvimento. Neste contexto somos levados a refl etir principalmente sobre<br />

que tipo de desafi os a EAD no Brasil necessita superar: desafi os tecnológicos,<br />

infra-estrutura básica ou professores e alunos dispostos a enfrentar a mu<strong>da</strong>nça de<br />

paradigma?<br />

Em nível mundial o panorama observado desde o ano de 1995 se revela<br />

bastante promissor e o Brasil não fi cou excluído, embora ain<strong>da</strong> esteja distante<br />

historicamente de países <strong>da</strong> Europa como a Espanha, Alemanha e Inglaterra e <strong>da</strong><br />

América do Norte como os Estados Unidos e Canadá que têm uma longa tradição<br />

em EAD.<br />

Hoje no Brasil, a EAD situa-se como uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de ensino que, nas<br />

suas bases legais, volta-se preferencialmente para uma parcela <strong>da</strong> população que<br />

por inúmeros motivos não tem acesso ao ambiente escolar tradicional. Representa<br />

a possibili<strong>da</strong>de de democratizar o acesso à educação pública e gratuita.<br />

Como você avalia essa possibili<strong>da</strong>de? Como percebe a posição do Brasil<br />

nesse cenário? Acompanhar e capitalizar a tendência mundial <strong>da</strong> educação virtual<br />

é um grande desafi o, especialmente para aqueles que enfrentam problemas<br />

de atraso econômico tecnológico, que paradoxalmente, são os que de fato mais<br />

precisam desenvolver essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de educação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Bibliografi a Básica<br />

LITWIN, Edith.(org.) Educação a Distância: temas para o debate de uma nova<br />

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psicológicos superiores. 6ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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