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Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

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actuação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is joga<strong>do</strong>res corresponde estritamente a uma codificação de regras, traduzidas<br />

em acções com significa<strong>do</strong>s precisos e referenciáveis. Porém, a interrogação de Wittgenstein é<br />

acutilante: ainda há ali algum jogo a ser joga<strong>do</strong>? Talvez haja, mas de uma natureza<br />

inteiramente nova. O que importa sublinhar é a ilimitada capacidade de fazer corresponder<br />

uma praxis a uma regra, a ponto de essa estranha dança de pontapés e urros ser, ainda, uma<br />

partida de xadrez: a dimensão <strong>do</strong> nomos na interpretação exibe assim a sua condição<br />

para<strong>do</strong>xal, na ambição sublime (e impossível) de fazer pousar sobre as coisas uma nomeação<br />

de aparência qualitativamente distinta das coisas em si (os textos literários). Esse para<strong>do</strong>xo<br />

diz-nos que “uma regra não pode determinar uma forma de acção, por qualquer forma de<br />

acção ser conciliável com a regra” 12 .<br />

Em suma, a interpretação é sempre função de uma atitude <strong>do</strong> leitor perante o mun<strong>do</strong>,<br />

refractada pela sua experiência da presença <strong>do</strong> texto, e que depende de tantas variáveis<br />

quantas as que condicionam e determinam a nossa conduta diária. Teleológicas, funcionais,<br />

pragmáticas, elas engendram regras que facilitam e naturalizam as práticas que servem os<br />

propósitos de uma comunidade. Nesta medida, e a fim de evitar incorrer num non sequitur,<br />

cabe ao intérprete (re)conhecer a contingência da regra no uso consciente e criativo dessa<br />

regra, ou seja, actualizar o texto de mo<strong>do</strong> subjectivo, numa voluntária “willing suspension of<br />

disbelief”, na expressão de Coleridge, a tornar presente o espanto que paira sobre os rostos de<br />

Rembrandt.<br />

Como a revelação de Herr Prosit, Presidente da Sociedade Gastronómica de Berlim, no<br />

final <strong>do</strong> seu jantar muito original, <strong>do</strong> qual Pessoa nos dá conta.<br />

2.<br />

Pela boca morre o peixe. O decrépito clube de comensais, adeptos da luxúria sobre a<br />

mesa e fora dela, deixa-se abater pelo tédio que sugere a falta de originalidade reinante na<br />

gastronomia <strong>do</strong> momento. O tema <strong>do</strong>mina um jantar, durante o qual o Presidente se mantém<br />

alhea<strong>do</strong> e em silêncio, ostentan<strong>do</strong> o “seu perpétuo sorriso *que+ parecia a careta grotesca<br />

daqueles em cujo rosto bate o sol; nesses, a contracção natural <strong>do</strong>s músculos perante uma luz<br />

forte; neste, como expressão perpétua, extremamente antinatural e grotesca.” 13 . No final da<br />

refeição, solene, o Presidente, Herr Prosit, profere um convite e um desafio: anuncia que,<br />

12 Idem, ibidem.<br />

13 Fernan<strong>do</strong> PESSOA, “Um Jantar Muito Original” (tradução de Maria Leonor Macha<strong>do</strong> de Sousa), in Obra Poética e em Prosa (org.<br />

por António Quadros), vol. II: Prosa 1, <strong>Porto</strong>, Lello & Irmão, 2006, p. 511.

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