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Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

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semântico que permitiriam ao crítico emitir juízos de valor sob a aparência de uma abordagem<br />

estritamente formal. Esta trajectória, que foi, diga-se de passagem, a que trilhou a reflexão<br />

literária ao longo <strong>do</strong> século XX na deslocação <strong>do</strong> paradigma formalista para o estruturalismo,<br />

decorre das estratégias de legitimação diagnosticadas por Habermas a partir de uma<br />

consciência positivista imperante que se articula como consciência tecnocrática:<br />

[...] as informações provenientes <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> saber tecnicamente utilizável imiscuíram-<br />

se nas tradições e compeliram a uma reconstrução das interpretações tradicionais <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. 10<br />

Nesse “horizonte inultrapassável” da técnica e ciência como ideologia (título <strong>do</strong> importante<br />

trabalho de Jürgen Habermas), a interpretação reclama um hiato essencial entre a crença e o<br />

significa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual visa extrair uma forma de imunidade à crítica.<br />

Creio poder afirmar que na origem desse movimento estratégico adquire particular<br />

relevo uma deliberada manipulação <strong>do</strong> valor relacional da regra e da prática, mediante uma<br />

curto-circuitagem <strong>do</strong> sistema, indutora da castração ostensiva <strong>do</strong>s pontos-de-fuga que fariam<br />

da interpretação algo mais <strong>do</strong> que uma paráfrase ou um pretexto dissimula<strong>do</strong>. O Wittgenstein<br />

das Investigações Filosóficas fornece um quadro altamente ilustrativo deste plano:<br />

É naturalmente pensável que, num povo em que o xadrez não é conheci<strong>do</strong>, duas<br />

pessoas se sentem diante de um tabuleiro e executem os lances de uma partida de<br />

xadrez; e incluin<strong>do</strong> mesmo to<strong>do</strong>s os fenómenos psíquicos de que estes são<br />

acompanha<strong>do</strong>s. E se nós víssemos isto diríamos que elas estavam a jogar xadrez. Mas<br />

agora imagina uma partida de xadrez traduzida, a partir de certas regras, numa série de<br />

acções, que não estamos habitua<strong>do</strong>s a associar com um jogo – talvez como soltar gritos<br />

e bater com os pés. Suponhamos agora que aquelas duas pessoas, em vez de jogarem a<br />

forma de xadrez que nós conhecemos, soltam gritos e batem com os pés; e de facto de<br />

tal mo<strong>do</strong>, que é possível, a partir de regras apropriadas, traduzir o que fazem numa<br />

partida de xadrez. Ainda estaríamos inclina<strong>do</strong>s a dizer que jogam um jogo? E com que<br />

direito o poderíamos dizer? 11<br />

Soltar gritos e bater com os pés – algo corrente, como é sabi<strong>do</strong>, na actividade <strong>do</strong><br />

crítico... – pode não ser exactamente a forma mais elegante de interpretar uma partida de<br />

xadrez (e aqui a polissemia <strong>do</strong> verbo des<strong>do</strong>bra matizes interessantes). Sem embargo, a<br />

10 Jürgen HABERMAS, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 2009, p. 84.<br />

11 Ludwig WITTGENSTEIN, Trata<strong>do</strong> Lógico-Filosófico segui<strong>do</strong> de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

2008, p. 321.

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