23.04.2013 Views

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

um texto, e isso colide com o projecto de reconstituir um plano textualmente implícito de<br />

leitura, basea<strong>do</strong> em valores intersubjectivos, imutáveis e líqui<strong>do</strong>s. Assim, até mesmo o esforço<br />

de fixação de um plano <strong>do</strong> da<strong>do</strong> e <strong>do</strong> construí<strong>do</strong> pressupõe e implica distinções baseadas em<br />

juízos de valor que irão informar e enformar o acto de leitura, produzin<strong>do</strong> o fenómeno que<br />

visam descrever. Deste mo<strong>do</strong>, a interpretação oferece-se como uma instância legitima<strong>do</strong>ra de<br />

um processo que é, em rigor, cíclico e tautológico, já que parte da imposição de critérios<br />

(como, por exemplo, o critério da unidade formal, o critério <strong>do</strong>s “da<strong>do</strong>s presentes no texto”,<br />

ou ainda o critério da linguagem poética), que, por sua vez, ditam e constroem processos<br />

direcciona<strong>do</strong>s para os “descobrir” e validar 7 .<br />

and even if one had recourse to a supposedly neutral vocabulary and described the<br />

action in terms of angles, movements, ten<strong>do</strong>ns, joints, etc., that description would itself<br />

be possible only under a theory of movement, ligatures, etc., and therefore would be<br />

descriptive only of what the theory (that is, the interpretation) prestipulates as available<br />

for description. 8<br />

Fica deste mo<strong>do</strong> exposta a fina ironia implícita no próprio conceito de rigor científico, o<br />

qual, em rigor, já não pode ser senão uma forma de “boas maneiras epistémicas” que consiste,<br />

como dirá Richard Rorty, em inscrever estilisticamente o mo<strong>do</strong> de falar no “vocabulário no<br />

qual são postos os problemas [e] é aceite por to<strong>do</strong>s aqueles que contam como contribuin<strong>do</strong><br />

para o assunto” 9 . Consequentemente, por muito persistente que seja o esforço de expurgar de<br />

marcas de subjectividade essa forma de discurso, ou seja, de alcançar um catálogo blinda<strong>do</strong><br />

por uma impenetrável objectividade (“rigor”, “precisão”, “critérios científicos reconheci<strong>do</strong>s”,<br />

“boas práticas meto<strong>do</strong>lógicas”, “standards internacionais de investigação”, “excelência<br />

científica”, etc. – nesta matéria, o glossário é abundante, e com pouca variação, se submeti<strong>do</strong><br />

a uma crítica séria), será sempre necessário reconhecer a motivação intrinsecamente<br />

contingente da interpretação que lhe subjaz. Acabamos por convergir com a impossibilidade<br />

de um “grau zero” da interpretação ao concluir que uma linguagem crítica de inspiração<br />

puramente matemática se revelaria, num primeiro momento, tão inútil quanto bizarra (não é<br />

essa a sensação com que ficamos ao ouvir os críticos que, pretenden<strong>do</strong> dar provas de<br />

“credibilidade”, se refugiam num apparatus metalinguístico mais próprio de protozoários <strong>do</strong><br />

que de textos literários?). É fácil supor que, pouco depois, as próprias etiquetas cirúrgicas se<br />

apropriariam de uma disposição moral, através de processos sub-reptícios de reinvestimento<br />

7<br />

Cf. Stanley FISH, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge/Lon<strong>do</strong>n, Harvard<br />

University Press, 1980, p. 105.<br />

8<br />

Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser”, op. cit., p. 11.<br />

9<br />

Richard RORTY, Consequências <strong>do</strong> Pragmatismo (tradução de João Duarte), Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 210.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!