Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto
Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto
Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
1.<br />
Começo, portanto, por reconhecer que, como homem (isto é, por definição, um ser<br />
torpe, ou, em termos mais recursivos, mergulha<strong>do</strong> nos condicionalismos da própria<br />
contingência), não me é possível sustentar a obstinação <strong>do</strong> olhar que apresentam as<br />
personagens de Rembrandt. Reconheço que vacilo, oscilan<strong>do</strong> entre o corpo e o livro, numa<br />
prolongada indecisão. Acredito, porém, que desse gesto hesitante poderá desprender-se<br />
alguma luz para a compreensão <strong>do</strong> próprio acto de ler. Enquanto fragilidade, o movimento<br />
fracturante encerra a possibilidade de um tertitum datur. A mesma fragilidade, de um “algures<br />
entre ambos”, é justamente o que Stanley Fish averba à teoria da leitura desenvolvida por<br />
Wolfgang Iser, no que respeita à identificação da fonte de autoridade interpretativa, posição<br />
que gostaria de tomar como ponto de partida para esta reflexão. O esforço requeri<strong>do</strong> para<br />
manter esse lugar improvável, algures entre o texto e o autor, é, segun<strong>do</strong> Fish, o de acomodar<br />
contradições, isto é, suportar a tensão <strong>do</strong>s fios que se estendem da objectividade à<br />
subjectividade, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de renunciar à tentação de uma infinitude de leituras possíveis<br />
(conotada com o estigma da arbitrariedade), para, finalmente, assistir ao triunfo (ameno) <strong>do</strong><br />
pluralismo, estranha condição daquilo que consegue gerir posições de compromisso<br />
suficientes para evitar um confronto declara<strong>do</strong> com qualquer das teorias convocadas a essa<br />
plataforma comum. Na crítica que dedica à obra de Iser, com o título mordaz “Why no one's<br />
afraid of Wolfgang Iser” 2 , Fish denuncia a inércia característica de uma tal postura, que,<br />
motivada por imperativos históricos, culturais e, essencialmente, institucionais, desemboca<br />
inevitavelmente em para<strong>do</strong>xos meto<strong>do</strong>lógicos, redundan<strong>do</strong>, tarde ou ce<strong>do</strong>, numa irresolúvel<br />
aporia prática:<br />
The (limited) tolerance of diverse views that characterizes this brand of pluralism is a<br />
concession not to the reader's creative imagination, but to the difficulty of his task (a<br />
task that is by definition incapable of completion). 3<br />
O que resta ao leitor é, então, cumprir as tarefas que conduzem à explicitação da possibilidade<br />
de inscrição <strong>do</strong> texto nas grelhas de leitura pressupostas pela prática interpretativa,<br />
potencian<strong>do</strong> assim as propriedades implícitas que esta encerra. Fatalmente, o texto literário<br />
vê-se converti<strong>do</strong> num “script for performance” 4 que vive apenas nas suas manifestações:<br />
2 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response, por<br />
Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The Johns Hopkins University Press.<br />
3 Idem, p. 4.<br />
4 Idem, ibidem.