Rembrandt van Rijn «Aula de Anatomia <strong>do</strong> Doutor Nicolaes Tulp» (1632) Óleo sobre tela, 169.5 × 216.5 cm Royal Picture Gallery Mauritshuis, Haia
1. Começo, portanto, por reconhecer que, como homem (isto é, por definição, um ser torpe, ou, em termos mais recursivos, mergulha<strong>do</strong> nos condicionalismos da própria contingência), não me é possível sustentar a obstinação <strong>do</strong> olhar que apresentam as personagens de Rembrandt. Reconheço que vacilo, oscilan<strong>do</strong> entre o corpo e o livro, numa prolongada indecisão. Acredito, porém, que desse gesto hesitante poderá desprender-se alguma luz para a compreensão <strong>do</strong> próprio acto de ler. Enquanto fragilidade, o movimento fracturante encerra a possibilidade de um tertitum datur. A mesma fragilidade, de um “algures entre ambos”, é justamente o que Stanley Fish averba à teoria da leitura desenvolvida por Wolfgang Iser, no que respeita à identificação da fonte de autoridade interpretativa, posição que gostaria de tomar como ponto de partida para esta reflexão. O esforço requeri<strong>do</strong> para manter esse lugar improvável, algures entre o texto e o autor, é, segun<strong>do</strong> Fish, o de acomodar contradições, isto é, suportar a tensão <strong>do</strong>s fios que se estendem da objectividade à subjectividade, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de renunciar à tentação de uma infinitude de leituras possíveis (conotada com o estigma da arbitrariedade), para, finalmente, assistir ao triunfo (ameno) <strong>do</strong> pluralismo, estranha condição daquilo que consegue gerir posições de compromisso suficientes para evitar um confronto declara<strong>do</strong> com qualquer das teorias convocadas a essa plataforma comum. Na crítica que dedica à obra de Iser, com o título mordaz “Why no one's afraid of Wolfgang Iser” 2 , Fish denuncia a inércia característica de uma tal postura, que, motivada por imperativos históricos, culturais e, essencialmente, institucionais, desemboca inevitavelmente em para<strong>do</strong>xos meto<strong>do</strong>lógicos, redundan<strong>do</strong>, tarde ou ce<strong>do</strong>, numa irresolúvel aporia prática: The (limited) tolerance of diverse views that characterizes this brand of pluralism is a concession not to the reader's creative imagination, but to the difficulty of his task (a task that is by definition incapable of completion). 3 O que resta ao leitor é, então, cumprir as tarefas que conduzem à explicitação da possibilidade de inscrição <strong>do</strong> texto nas grelhas de leitura pressupostas pela prática interpretativa, potencian<strong>do</strong> assim as propriedades implícitas que esta encerra. Fatalmente, o texto literário vê-se converti<strong>do</strong> num “script for performance” 4 que vive apenas nas suas manifestações: 2 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response, por Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The Johns Hopkins University Press. 3 Idem, p. 4. 4 Idem, ibidem.