23.04.2013 Views

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

cinzento como o corpo nu, um grosso volume, aberto. A terceira figura, de barba e bigode<br />

quixotescos, sugere alguma ambiguidade, e permanece impossível dizer se observa os<br />

procedimentos que têm lugar no braço disseca<strong>do</strong> (e, se for esse o caso, é o único <strong>do</strong>s<br />

presentes em toda a cena que está olhar para o cadáver), ou se, à semelhança <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is,<br />

contempla também o livro aberto, atiran<strong>do</strong> o olhar tangencialmente por sob a mão <strong>do</strong><br />

cirurgião. Gasto, de grossas folhas retorcidas, curva<strong>do</strong>, o livro aberto em cima de um atril<br />

parece erguer-se das profundezas <strong>do</strong> escuro, magnetizan<strong>do</strong> hipnoticamente o olhar <strong>do</strong>s<br />

presentes, na quase iminência de se afundar nas sombras e desaparecer <strong>do</strong> nosso campo de<br />

visão. Cuida<strong>do</strong>sa e definitivamente afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro da tela, opon<strong>do</strong>-se de mo<strong>do</strong> radical à<br />

direcção da iluminação (a luz jorra desde um ponto situa<strong>do</strong> acima da cabeça de Tulp, oblíqua,<br />

da esquerda para a direita), obscenamente desloca<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro de massa da pintura (o bloco<br />

humano maciço no campo esquer<strong>do</strong>, com uma inflexão vertical a contrariar o livro, que parece<br />

querer “enterrar-se”), ele instaura um novo equilíbrio no to<strong>do</strong>, ao chamar a si um pólo de<br />

força, exigin<strong>do</strong> uma leitura horizontal da cena, mediada pela alvura irradiante <strong>do</strong> corpo sem<br />

vida, que, como uma linha eléctrica, é continuamente percorri<strong>do</strong>, enquanto fio condutor da<br />

tensão que se estabelece entre as personagens e o livro.<br />

No que se segue, procuro dar conta dessa tensão infinita que aproxima e afasta o<br />

especta<strong>do</strong>r e o livro. Procurarei fazê-lo a partir de uma impossibilidade objectiva: o espaço<br />

impreenchível que se abre entre o discurso <strong>do</strong> Professor Tulp, o olhar <strong>do</strong>s presentes, o corpo<br />

aberto, e o livro. Um quadra<strong>do</strong> que é, ao mesmo tempo, um hiato, a anunciar a<br />

indeterminação funda<strong>do</strong>ra da crença, da interpretação, da verdade e da morte.<br />

Provavelmente, nunca saberemos ao certo o que, naquelas duas páginas, segurava tão<br />

tenazmente a atenção <strong>do</strong>s presentes, a ponto de o preferirem à presença <strong>do</strong> corpo disseca<strong>do</strong>.<br />

Nunca saberemos se era uma confirmação que procuravam, ou se se lhes revelava alguma<br />

contradição flagrante com a anatomia prescrita pelo manual. Tulp dispensa essas mesmas<br />

páginas, quiçá tornadas supérfluas em face <strong>do</strong> saber só de experiências feito, e por isso desvia<br />

o olhar <strong>do</strong> livro (e não deixa de ser intrigante que, mesmo sob a larga aba <strong>do</strong> chapéu, e<br />

encontran<strong>do</strong>-se desvia<strong>do</strong> <strong>do</strong> foco de incidência da luz, o seu rosto resplandeça, como que<br />

ilumina<strong>do</strong> pelo próprio corpo…). Maravilhosamente, Tulp não olha, também, para a<br />

musculatura e articulações que ergue com a pinça, e oferece o gesto com a naturalidade de<br />

quem já não precisa de seguir a mão com a inteligência.<br />

Mas porque, e ao contrário <strong>do</strong> Professor Tulp, não me é da<strong>do</strong> conjurar o discurso<br />

sublime (no senti<strong>do</strong> em que o queria Longino), permito-me regressar a esse(s) livro(s)<br />

aberto(s), e procurar aí respostas para o enigma que nos traz a esta outra sala de autópsias.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!