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Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

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no seu distrito jamais aconteceria algo de semelhante, culpan<strong>do</strong> a incompetência <strong>do</strong><br />

comissário da demora na resolução <strong>do</strong>s crimes. O céptico Treviranus recebe, pouco tempo<br />

depois, uma missiva anónima, revelan<strong>do</strong> a configuração geométrica que perfazia a localização<br />

<strong>do</strong>s três lugares de crime, um triângulo “equilátero e místico”, perfeito, que sugeria o fim da<br />

série de assassínios, e que correspondia à equidistância das datas a que ocorreram os crimes.<br />

A explicação satisfaz o comissário, prepara<strong>do</strong> para aceitar uma teoria tão racional (more<br />

geometrico) como esta. Mas Lönnrot estuda a hipótese, lê-a através <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s místicos que<br />

fora recolhen<strong>do</strong>, e acaba por formular uma conclusão própria. Dá o caso por resolvi<strong>do</strong> e, no<br />

dia quatro de Março, dirige-se para fora da cidade, para uma quinta desabitada no Sul.<br />

Enquanto o sol se põe, percorre os salões vazios da casa, onde toda a arquitectura é simétrica,<br />

duplicada. Ao cair da noite, Lönnrot, solitário, é agarra<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is criminosos, enquanto Red<br />

Scharlach, cujo irmão Lönnrot capturara anos antes, confirma a tese que levara o investiga<strong>do</strong>r<br />

àquela casa aban<strong>do</strong>nada. Não se tratava de um triângulo, mas de um losango, e os crimes não<br />

haviam ocorri<strong>do</strong> ao dia três de cada mês, mas a quatro, já que “o dia judeu começa ao<br />

anoitecer e dura até ao seguinte anoitecer”. Scharlach, calmamente, explica a Lönnrot que<br />

to<strong>do</strong>s os crimes haviam si<strong>do</strong> premedita<strong>do</strong>s, e que o crime estava prestes a ser consuma<strong>do</strong>.<br />

“Recuou uns passos. Depois, muito cuida<strong>do</strong>samente, fez fogo.” 30 .<br />

Lönnrot extingue-se na procura <strong>do</strong> seu mistério, mas essa evanescência é apenas a<br />

forma silenciosa e perfeita da sua presença no caso. Lönnrot suspende-se, para poder ser<br />

completamente. A entrega <strong>do</strong> detective ao caso não seria total se ficasse presa a uma suspeita<br />

que o envolvesse. De facto, é o excesso de proximidade ao crime que faz com que a sua<br />

personagem se eclipse durante to<strong>do</strong> o desenrolar <strong>do</strong>s factos, tal como uma janela desaparece<br />

<strong>do</strong> campo de visão de alguém que se poste demasia<strong>do</strong> perto <strong>do</strong> respectivo vidro. Graças a essa<br />

forma de, digamos, leitura absoluta, Lönnrot é o nosso modelo ideal de intérprete: a sua<br />

hermenêutica da diferença redescobre, como defende Reed Way Dasenbrock, a combinação<br />

sibilina de uma criatividade sensível com uma receptividade ilimitada:<br />

If we are members of an interpretative community, the point of reading is to learn, as<br />

least for a moment, not to be. 31<br />

A entrega <strong>do</strong> detective a cada uma das peças que junta e às quais confere senti<strong>do</strong>s<br />

possíveis prefigura uma interpretação da diferença que opera através de uma memória <strong>do</strong><br />

vivi<strong>do</strong>, agencian<strong>do</strong> uma subjectividade enquanto experiência, e não (como poderia levar a crer<br />

30 Idem, p. 135.<br />

31 Reed Way DASENBROCK, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan. 1991), Urbana (Illinois),<br />

National Council of Teachers of English, p. 17.

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