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Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

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de uma novíssima metafísica se tratasse, uma entidade sem rosto que, na penumbra, legitima<br />

e sanciona os rasgos generalizantes de leitores-arúspices. Afinal,<br />

The world <strong>do</strong>es not speak. Only we <strong>do</strong>. The world can, once we have programmed<br />

ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for<br />

us to speak. Only other human beings can <strong>do</strong> that. 28<br />

Impõe-se então criar condições de possibilidade para a emergência de um modelo<br />

interpretativo funda<strong>do</strong> nos laços de necessidade que nos atravessam, enquanto leitores,<br />

redescobrin<strong>do</strong> no texto um lugar de encontro de crenças, muito para além de um mostruário<br />

de abstractas fórmulas, estruturas e ossaturas. Assim encarada, a interpretação não se furtará<br />

à responsabilidade de inclusão <strong>do</strong> outro, abrin<strong>do</strong> o espaço <strong>do</strong> Eu à visitação de múltiplas<br />

presenças, numa aventura trágica ou sublime, mas jamais inócua.<br />

Abraçar a dimensão subjectiva da leitura significa, também, assumir o risco <strong>do</strong><br />

conhecimento como ficção, toman<strong>do</strong> a literatura enquanto promessa e anúncio de uma forma<br />

de conhecimento imprevisível, embora iminente. E essa é, a meu ver, a forma mais sensata de<br />

encarar a interpretação: como o detective apanha<strong>do</strong> no seu caso.<br />

Esse detective pode muito bem ser Erik Lönnrot, e conhecemo-lo num conto de<br />

Borges, “A morte e a bússola” 29 .<br />

Um influente rabi, o Tetrarca da Galileia, é assassina<strong>do</strong> num quarto de hotel na noite<br />

de três de Dezembro. Lönnrot e o comissário Treviranus investigam o caso, procuran<strong>do</strong> entre a<br />

simbologia talmúdica a chave para desvendar a identidade <strong>do</strong> assassino. Perto <strong>do</strong> corpo, numa<br />

máquina de escrever, é encontrada uma folha com as palavras: “A primeira letra <strong>do</strong> Nome já<br />

foi articulada”. O segun<strong>do</strong> crime ocorre na noite de três de Janeiro: um criminoso aparece<br />

morto nos subúrbios, e, na parede junto à qual o corpo jaz, sobre os azulejos em losango,<br />

escrita a giz, a frase: “A segunda letra <strong>do</strong> Nome já foi articulada”. O terceiro crime ocorre na<br />

noite de três de Fevereiro. Num bar duvi<strong>do</strong>so, um hóspede é leva<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is arlequins para<br />

uma sala recolhida. Quan<strong>do</strong> sai, embriaga<strong>do</strong> e cambaleante, é leva<strong>do</strong> para o interior de uma<br />

berlinda, de cujo estribo um <strong>do</strong>s arlequins risca nas ardósias da arcada “A última das letras <strong>do</strong><br />

Nome já foi articulada”. No chão da sala para onde o hóspede fora leva<strong>do</strong>, Lönnrot encontra<br />

uma estrela de sangue. Os crimes inspiram uma atmosfera de me<strong>do</strong> na cidade, e até Red<br />

Scharlach, o mais ilustre <strong>do</strong>s pistoleiros <strong>do</strong> Sul, inimigo de longa data de Lönnrot, declarou que<br />

28 Richard RORTY, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008], p. 6.<br />

29 Jorge Luis BORGES, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa, Editorial Teorema, 1998<br />

[1989], pp. 121-135.

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