Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto
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que, se houver tal possibilidade, seja afasta<strong>do</strong> de si esse cálice... No núcleo simbólico de toda a<br />
praxis, um centro ausente – espaço por definição impreenchível, e que podemos designar,<br />
inspira<strong>do</strong>s na astrofísica einsteiniana como a ‘antimatéria’ que habita o coração da matéria –<br />
sustém a gravidade da própria significação, garantin<strong>do</strong> a sua indeterminada continuidade, em<br />
torno dessa concreção negativa. É esta condição de uma ‘negação negociada’ que garante a<br />
perpetuação da nossa relação com o mun<strong>do</strong> (<strong>do</strong>s signos), enquanto contínua renovação de um<br />
contrato de nomeação que se nega, para melhor se consumar.<br />
A interpretação – enquanto acto de uma hermenêutica <strong>do</strong> mesmo – não pode<br />
sobreviver à presença sígnica <strong>do</strong> real, isto é, à presença da alteridade bruta <strong>do</strong> texto enquanto<br />
corpo maciço de significação infinita no contínuo reenvio da referencialidade. A sua existência<br />
fulgura nos interstícios <strong>do</strong> objecto, antes de se extinguir. Todavia, talvez seja mais sensato<br />
considerarmos aqui que ela só lhe pode sobreviver como uma forma de morte – to<strong>do</strong>s os<br />
comensais se sentiram profundamente indispostos, e muitos desmaiaram ao sair da casa de<br />
Prosit. Só nessa forma espectral lhe é possível continuar a durar. Por outras palavras, o gesto<br />
interpretativo não pode emergir senão como um reconhecimento crítico e criativo da falência<br />
da racionalidade – com todas as implicações <strong>do</strong> carácter experimental que isso convoca –, ou<br />
como um esqueleto falante, que será já uma forma de falência <strong>do</strong> próprio texto na leitura (os<br />
escribas medievais recorriam com facúndia a nuances simbólicas <strong>do</strong> termo ‘falecer’<br />
particularmente certeiras para este propósito). O texto, enquanto fenómeno literário e criação<br />
estética, sucumbe na interpretação. Temos, pois, que apenas uma entidade poderá sobreviver<br />
ao encontro fatal entre o leitor e o texto: a coerção <strong>do</strong> processo de significação <strong>do</strong> literário<br />
implica intimamente uma forma de prostração <strong>do</strong> intérprete, o qual, se desejar manter a sua<br />
condição de nomea<strong>do</strong>r, será obriga<strong>do</strong> a apagar ou esquecer-se da presença <strong>do</strong> texto. Uma tal<br />
tese, nesta segunda possibilidade, encontra confirmação nas estratégias de entrincheiramento<br />
<strong>do</strong> gesto interpretativo no esqueleto <strong>do</strong> nomos que é a sua forma de persistência no mun<strong>do</strong>.<br />
3.<br />
À luz destas reflexões, parece-me tornar-se imperativa uma nova condição de validade para<br />
o acto interpretativo. Uma vez reconhecida a sua dimensão contingente e subjectiva, não é<br />
mais possível fazê-lo depender de uma «correspondência» a algo exterior a si mesmo, como se