Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto
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originalidade <strong>do</strong> jantar. Não haveria revelação sem a curiosidade, e não seria possível a Prosit<br />
oferecer um jantar muito original sem a morte <strong>do</strong>s gastrónomos (o que nos leva a pensar que,<br />
no limite, é a própria discussão que tivera lugar no jantar precedente da sociedade<br />
gastronómica que desencadeia o canibalismo <strong>do</strong>s respectivos membros). Estes pressupostos<br />
exigem uma tese mais consistente: é a necessidade de encontrar uma ordem de nomos que<br />
seja transcendente à contingência da evidência que guia os comensais ao canibalismo, e, logo,<br />
à negação da própria arte gastronómica. Com efeito, eles não desejavam apenas interpretar,<br />
porque na interpretação encontravam apenas a sensaboria <strong>do</strong> mesmo. Desejavam, no limiar<br />
<strong>do</strong> inconsciente, a fulguração de uma enormidade, ou, mais propriamente, de uma<br />
monstruosidade. E o seu desejo foi cumpri<strong>do</strong>. A aberração é a própria nomeação<br />
transcendental, enquanto exasperação <strong>do</strong> acto de nomeação.<br />
A tranquilidade curiosa com que devoram os seres humanos corresponde ao simulacro<br />
de uma leitura ingénua, uma leitura cega, que é o mesmo que dizer – e a tentação de<br />
reescrever a etimologia de ‘esquecimento’ a partir <strong>do</strong> latim ‘caecus’ é demasia<strong>do</strong> grande para<br />
ser ignorada 25 –, uma leitura esquece<strong>do</strong>ira <strong>do</strong> real: o jantar é, com efeito, uma forma perversa<br />
de anamnese, na justa medida em que corporiza, na sua duração como progresso, um esforço<br />
contraverti<strong>do</strong> de encontrar um denomina<strong>do</strong>r comum – isto é, conheci<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s,<br />
reconhecível, desprovi<strong>do</strong> de alteridade, ‘mesmiza<strong>do</strong>’ – para o sublimar enquanto outro, isto é,<br />
original, novo, pretensamente entrópico. Um tal esforço, na sua condição de tentativa de<br />
dúplice falsificação da memória e da experiência, facilmente assimilável ao que Ricoeur<br />
designa mémoire oublieuse 26 , depois de encenar uma (contrafaccionada) virgindade<br />
nomotética, convoca o deus ex machina <strong>do</strong> ressentimento contra o real como dispositivo<br />
para<strong>do</strong>xal de convalidação da entropia <strong>do</strong> real. No fun<strong>do</strong>, era forçoso que o acto canibal<br />
redundasse na revolta <strong>do</strong>s canibais, e que essa forma de ressentimento levasse à morte de<br />
Prosit 27 . Com efeito, esse desenlace é a negação necessária para o reconhecimento <strong>do</strong><br />
canibalismo: ele não estaria completo – e institucionaliza<strong>do</strong> – sem essa dimensão negativa. A<br />
relação que se estabelece é, então, semelhante à <strong>do</strong> messias que, conhecen<strong>do</strong> o seu destino, e<br />
saben<strong>do</strong> claramente que a condição ôntica de que se encontra investi<strong>do</strong> é função da sua<br />
morte sacrificial, se dirige ao Horto das Oliveiras para suplicar ao Deus-Pai (uma forma de si)<br />
25 ‘Esquecer’. Etm. <strong>do</strong> lat. ‘excadescere’ v. Freq. De ‘excadere’, ‘cair para fora’, de ‘exca<strong>do</strong>, is, cecidi, casum, ere’, cair, escorregar;<br />
abaixar-se, desfalecer, perecer. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia –<br />
Portugal/Temas e Debates, 2003, p. 1606, sb. V. ‘esquecer’.<br />
26 Paul RICOEUR, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 576.<br />
27 Não podemos deixar de registar o irónico volte-face que, neste final, vitima os serventes negros. Depois de se limitarem ao lugar<br />
de especta<strong>do</strong>res passivos <strong>do</strong> banquete canibal (não diremos certamente que a tarefa de servir os pratos de carne humana os<br />
torna propriamente culpa<strong>do</strong>s, e se alguma participação tiveram na morte <strong>do</strong>s cinco gastrónomos, poderão incorrer no crime de<br />
homicídio – como, de resto, incorreram também os membros da Sociedade Gastronómica pelo linchamento de Prosit –, mas não<br />
tomaram parte da ceia canibal, nem partilharam <strong>do</strong> espírito ufano em que esta se desenrolara), é sobre eles que recai a ira<br />
daqueles que comeram a carne <strong>do</strong>s concidadãos.