23.04.2013 Views

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Colóquio Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura, I Encontro <strong>do</strong> Grupo de Estu<strong>do</strong>s<br />

Lusófonos (GEL), FLUP, 26 e 27 de Setembro de 2011<br />

0.<br />

ENTRE O NAUFRÁGIO E A ETERNIDADE.<br />

Reflexões em torno da interpretação, da leitura, da morte e outras ficções. 1<br />

Pedro Lopes Almeida<br />

CITCEM, Faculdade de Letras da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

um pássaro pergunta-me se<br />

existe o céu, para saber se<br />

lhe responderei ou se<br />

deve cair<br />

valter hugo mãe<br />

Ao especta<strong>do</strong>r da Aula de Anatomia <strong>do</strong> Doutor Nicolaes Tulp (1632) não passarão<br />

despercebidas as extravagantes trajectórias que descrevem os olhares das personagens<br />

retratadas por Rembrandt. Tulp, senta<strong>do</strong>, magistral, segura na ponta de uma pinça os<br />

músculos e tendões <strong>do</strong> cadáver em dissecação, enquanto gesticula vagamente, os lábios<br />

entreabertos susten<strong>do</strong> um discurso pláci<strong>do</strong>. As vestes impolutas denunciam que alguém, que<br />

não ele, preparou o corpo para a aula, um assistente invisível que não figura entre as<br />

personagens. Debruça<strong>do</strong>s sobre o cadáver, em cuja cabeça pousa a umbra mortis, um curioso<br />

grupo de cavalheiros dispara olhares em várias direcções. Ao centro, a luz derrama-se<br />

abundantemente sobre um triângulo de figuras que surge em segun<strong>do</strong> plano, sobre o peito <strong>do</strong><br />

morto. Concentremo-nos nesse triângulo. As linhas <strong>do</strong>s olhares de duas das personagens (as<br />

que ocupam o lugar <strong>do</strong> vértice superior e inferior direito) passam rasantes acima da mão<br />

erguida <strong>do</strong> Professor Tulp, distraidamente indiferentes às operações de dissecação, e vão<br />

projectar-se no canto inferior direito da tela, mergulha<strong>do</strong> em sombra, de onde emerge,<br />

1 O presente ensaio baseia-se no trabalho final apresenta<strong>do</strong> ao seminário de mestra<strong>do</strong> Leituras da Teoria II (Faculdade de Letras<br />

da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, ano lectivo 2009-2010). À Professora Doutora Maria de Lurdes Sampaio, pela orientação compreensiva<br />

e funda<strong>do</strong>ra de novos horizontes para o pensamento, a minha gratidão.


cinzento como o corpo nu, um grosso volume, aberto. A terceira figura, de barba e bigode<br />

quixotescos, sugere alguma ambiguidade, e permanece impossível dizer se observa os<br />

procedimentos que têm lugar no braço disseca<strong>do</strong> (e, se for esse o caso, é o único <strong>do</strong>s<br />

presentes em toda a cena que está olhar para o cadáver), ou se, à semelhança <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is,<br />

contempla também o livro aberto, atiran<strong>do</strong> o olhar tangencialmente por sob a mão <strong>do</strong><br />

cirurgião. Gasto, de grossas folhas retorcidas, curva<strong>do</strong>, o livro aberto em cima de um atril<br />

parece erguer-se das profundezas <strong>do</strong> escuro, magnetizan<strong>do</strong> hipnoticamente o olhar <strong>do</strong>s<br />

presentes, na quase iminência de se afundar nas sombras e desaparecer <strong>do</strong> nosso campo de<br />

visão. Cuida<strong>do</strong>sa e definitivamente afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro da tela, opon<strong>do</strong>-se de mo<strong>do</strong> radical à<br />

direcção da iluminação (a luz jorra desde um ponto situa<strong>do</strong> acima da cabeça de Tulp, oblíqua,<br />

da esquerda para a direita), obscenamente desloca<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro de massa da pintura (o bloco<br />

humano maciço no campo esquer<strong>do</strong>, com uma inflexão vertical a contrariar o livro, que parece<br />

querer “enterrar-se”), ele instaura um novo equilíbrio no to<strong>do</strong>, ao chamar a si um pólo de<br />

força, exigin<strong>do</strong> uma leitura horizontal da cena, mediada pela alvura irradiante <strong>do</strong> corpo sem<br />

vida, que, como uma linha eléctrica, é continuamente percorri<strong>do</strong>, enquanto fio condutor da<br />

tensão que se estabelece entre as personagens e o livro.<br />

No que se segue, procuro dar conta dessa tensão infinita que aproxima e afasta o<br />

especta<strong>do</strong>r e o livro. Procurarei fazê-lo a partir de uma impossibilidade objectiva: o espaço<br />

impreenchível que se abre entre o discurso <strong>do</strong> Professor Tulp, o olhar <strong>do</strong>s presentes, o corpo<br />

aberto, e o livro. Um quadra<strong>do</strong> que é, ao mesmo tempo, um hiato, a anunciar a<br />

indeterminação funda<strong>do</strong>ra da crença, da interpretação, da verdade e da morte.<br />

Provavelmente, nunca saberemos ao certo o que, naquelas duas páginas, segurava tão<br />

tenazmente a atenção <strong>do</strong>s presentes, a ponto de o preferirem à presença <strong>do</strong> corpo disseca<strong>do</strong>.<br />

Nunca saberemos se era uma confirmação que procuravam, ou se se lhes revelava alguma<br />

contradição flagrante com a anatomia prescrita pelo manual. Tulp dispensa essas mesmas<br />

páginas, quiçá tornadas supérfluas em face <strong>do</strong> saber só de experiências feito, e por isso desvia<br />

o olhar <strong>do</strong> livro (e não deixa de ser intrigante que, mesmo sob a larga aba <strong>do</strong> chapéu, e<br />

encontran<strong>do</strong>-se desvia<strong>do</strong> <strong>do</strong> foco de incidência da luz, o seu rosto resplandeça, como que<br />

ilumina<strong>do</strong> pelo próprio corpo…). Maravilhosamente, Tulp não olha, também, para a<br />

musculatura e articulações que ergue com a pinça, e oferece o gesto com a naturalidade de<br />

quem já não precisa de seguir a mão com a inteligência.<br />

Mas porque, e ao contrário <strong>do</strong> Professor Tulp, não me é da<strong>do</strong> conjurar o discurso<br />

sublime (no senti<strong>do</strong> em que o queria Longino), permito-me regressar a esse(s) livro(s)<br />

aberto(s), e procurar aí respostas para o enigma que nos traz a esta outra sala de autópsias.


Rembrandt van Rijn<br />

«Aula de Anatomia <strong>do</strong> Doutor Nicolaes Tulp» (1632)<br />

Óleo sobre tela, 169.5 × 216.5 cm<br />

Royal Picture Gallery Mauritshuis, Haia


1.<br />

Começo, portanto, por reconhecer que, como homem (isto é, por definição, um ser<br />

torpe, ou, em termos mais recursivos, mergulha<strong>do</strong> nos condicionalismos da própria<br />

contingência), não me é possível sustentar a obstinação <strong>do</strong> olhar que apresentam as<br />

personagens de Rembrandt. Reconheço que vacilo, oscilan<strong>do</strong> entre o corpo e o livro, numa<br />

prolongada indecisão. Acredito, porém, que desse gesto hesitante poderá desprender-se<br />

alguma luz para a compreensão <strong>do</strong> próprio acto de ler. Enquanto fragilidade, o movimento<br />

fracturante encerra a possibilidade de um tertitum datur. A mesma fragilidade, de um “algures<br />

entre ambos”, é justamente o que Stanley Fish averba à teoria da leitura desenvolvida por<br />

Wolfgang Iser, no que respeita à identificação da fonte de autoridade interpretativa, posição<br />

que gostaria de tomar como ponto de partida para esta reflexão. O esforço requeri<strong>do</strong> para<br />

manter esse lugar improvável, algures entre o texto e o autor, é, segun<strong>do</strong> Fish, o de acomodar<br />

contradições, isto é, suportar a tensão <strong>do</strong>s fios que se estendem da objectividade à<br />

subjectividade, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de renunciar à tentação de uma infinitude de leituras possíveis<br />

(conotada com o estigma da arbitrariedade), para, finalmente, assistir ao triunfo (ameno) <strong>do</strong><br />

pluralismo, estranha condição daquilo que consegue gerir posições de compromisso<br />

suficientes para evitar um confronto declara<strong>do</strong> com qualquer das teorias convocadas a essa<br />

plataforma comum. Na crítica que dedica à obra de Iser, com o título mordaz “Why no one's<br />

afraid of Wolfgang Iser” 2 , Fish denuncia a inércia característica de uma tal postura, que,<br />

motivada por imperativos históricos, culturais e, essencialmente, institucionais, desemboca<br />

inevitavelmente em para<strong>do</strong>xos meto<strong>do</strong>lógicos, redundan<strong>do</strong>, tarde ou ce<strong>do</strong>, numa irresolúvel<br />

aporia prática:<br />

The (limited) tolerance of diverse views that characterizes this brand of pluralism is a<br />

concession not to the reader's creative imagination, but to the difficulty of his task (a<br />

task that is by definition incapable of completion). 3<br />

O que resta ao leitor é, então, cumprir as tarefas que conduzem à explicitação da possibilidade<br />

de inscrição <strong>do</strong> texto nas grelhas de leitura pressupostas pela prática interpretativa,<br />

potencian<strong>do</strong> assim as propriedades implícitas que esta encerra. Fatalmente, o texto literário<br />

vê-se converti<strong>do</strong> num “script for performance” 4 que vive apenas nas suas manifestações:<br />

2 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response, por<br />

Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The Johns Hopkins University Press.<br />

3 Idem, p. 4.<br />

4 Idem, ibidem.


Every time a reader builds his own structure of significance, he is simultaneously being<br />

faithful to authorial meaning, and, indeed, he can be faithful only in that way. Rather<br />

than being opposed to authorial meaning, interpreter's meaning is necessary to its<br />

actualization. 5<br />

Muito rapidamente percebemos que é o próprio leitor quem se vê refém de um significa<strong>do</strong>:<br />

não apenas no senti<strong>do</strong> passivo de uma interpretação rigidamente veiculada e sancionada pelo<br />

texto, mas, bem mais subtil e eficazmente, como uma performance necessária para o<br />

cumprimento <strong>do</strong> próprio texto. O intérprete cumpre assim o papel que lhe está pré(e)scrito<br />

pelo texto, e a atribuição de significa<strong>do</strong> não é senão o corolário <strong>do</strong> reencontro <strong>do</strong> texto com a<br />

intenção <strong>do</strong> autor. A interpretação volve-se num movimento despossuí<strong>do</strong> de individualidade<br />

ontológica: ela é, em verdade, um satélite da intenção autoral, um simulacro, uma espécie de<br />

farsa encenada que convida o especta<strong>do</strong>r a desempenhar uma figura insignificante mas<br />

materialmente indispensável, para depois continuar, indiferente, o respectivo curso.<br />

Como o médico que, no final da operação, se esquece de instrumentos cirúrgicos<br />

dentro <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> paciente, o texto caminha em frente, transportan<strong>do</strong> um bisturi e uma<br />

tesoura que só uma radiografia virá a denunciar. Com efeito, não é exagera<strong>do</strong> afirmar que<br />

toda a interpretação de motivação materialista flui para um modelo que pressupõe, mais ou<br />

menos explicitamente, uma ingenuidade essencial <strong>do</strong> leitor, gradualmente preenchida pela<br />

infinita transcendência <strong>do</strong> texto, num processo de completamento que se serve da<br />

interpretação para legitimar a extracção de narrativas a partir <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> texto.<br />

A denúncia de Stanley Fish coloca em evidência a condição convencionada deste<br />

processo, demonstran<strong>do</strong> que nenhuma leitura pode ocupar esse lugar atópico, já que o texto,<br />

encara<strong>do</strong> na sua contingência imediata, se serve <strong>do</strong>s mesmos signos, códigos de significação,<br />

narrativas e ideologias de que se tece o quotidiano, o que determina simplesmente a<br />

impossibilidade de interpretar um texto a partir da sua imanência, já que ele é uma forma<br />

intrínseca de exterioridades. Neste senti<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> o que podemos afirmar é que os “signos<br />

textuais” adquirem varia<strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s, de acor<strong>do</strong> com as diferentes expectativas e valores<br />

<strong>do</strong>s diferentes leitores 6 .<br />

No fun<strong>do</strong>, a nossa realidade de seres situa<strong>do</strong>s e a impossibilidade de nos descartarmos<br />

<strong>do</strong> arquivo das nossas experiências singulares e subjectivas antes de começar o acto<br />

interpretativo, dizem-nos que temos ideias diferentes sobre o que representam os valores de<br />

5 Idem, ibidem.<br />

6 Cf. Idem, p. 7.


um texto, e isso colide com o projecto de reconstituir um plano textualmente implícito de<br />

leitura, basea<strong>do</strong> em valores intersubjectivos, imutáveis e líqui<strong>do</strong>s. Assim, até mesmo o esforço<br />

de fixação de um plano <strong>do</strong> da<strong>do</strong> e <strong>do</strong> construí<strong>do</strong> pressupõe e implica distinções baseadas em<br />

juízos de valor que irão informar e enformar o acto de leitura, produzin<strong>do</strong> o fenómeno que<br />

visam descrever. Deste mo<strong>do</strong>, a interpretação oferece-se como uma instância legitima<strong>do</strong>ra de<br />

um processo que é, em rigor, cíclico e tautológico, já que parte da imposição de critérios<br />

(como, por exemplo, o critério da unidade formal, o critério <strong>do</strong>s “da<strong>do</strong>s presentes no texto”,<br />

ou ainda o critério da linguagem poética), que, por sua vez, ditam e constroem processos<br />

direcciona<strong>do</strong>s para os “descobrir” e validar 7 .<br />

and even if one had recourse to a supposedly neutral vocabulary and described the<br />

action in terms of angles, movements, ten<strong>do</strong>ns, joints, etc., that description would itself<br />

be possible only under a theory of movement, ligatures, etc., and therefore would be<br />

descriptive only of what the theory (that is, the interpretation) prestipulates as available<br />

for description. 8<br />

Fica deste mo<strong>do</strong> exposta a fina ironia implícita no próprio conceito de rigor científico, o<br />

qual, em rigor, já não pode ser senão uma forma de “boas maneiras epistémicas” que consiste,<br />

como dirá Richard Rorty, em inscrever estilisticamente o mo<strong>do</strong> de falar no “vocabulário no<br />

qual são postos os problemas [e] é aceite por to<strong>do</strong>s aqueles que contam como contribuin<strong>do</strong><br />

para o assunto” 9 . Consequentemente, por muito persistente que seja o esforço de expurgar de<br />

marcas de subjectividade essa forma de discurso, ou seja, de alcançar um catálogo blinda<strong>do</strong><br />

por uma impenetrável objectividade (“rigor”, “precisão”, “critérios científicos reconheci<strong>do</strong>s”,<br />

“boas práticas meto<strong>do</strong>lógicas”, “standards internacionais de investigação”, “excelência<br />

científica”, etc. – nesta matéria, o glossário é abundante, e com pouca variação, se submeti<strong>do</strong><br />

a uma crítica séria), será sempre necessário reconhecer a motivação intrinsecamente<br />

contingente da interpretação que lhe subjaz. Acabamos por convergir com a impossibilidade<br />

de um “grau zero” da interpretação ao concluir que uma linguagem crítica de inspiração<br />

puramente matemática se revelaria, num primeiro momento, tão inútil quanto bizarra (não é<br />

essa a sensação com que ficamos ao ouvir os críticos que, pretenden<strong>do</strong> dar provas de<br />

“credibilidade”, se refugiam num apparatus metalinguístico mais próprio de protozoários <strong>do</strong><br />

que de textos literários?). É fácil supor que, pouco depois, as próprias etiquetas cirúrgicas se<br />

apropriariam de uma disposição moral, através de processos sub-reptícios de reinvestimento<br />

7<br />

Cf. Stanley FISH, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge/Lon<strong>do</strong>n, Harvard<br />

University Press, 1980, p. 105.<br />

8<br />

Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser”, op. cit., p. 11.<br />

9<br />

Richard RORTY, Consequências <strong>do</strong> Pragmatismo (tradução de João Duarte), Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 210.


semântico que permitiriam ao crítico emitir juízos de valor sob a aparência de uma abordagem<br />

estritamente formal. Esta trajectória, que foi, diga-se de passagem, a que trilhou a reflexão<br />

literária ao longo <strong>do</strong> século XX na deslocação <strong>do</strong> paradigma formalista para o estruturalismo,<br />

decorre das estratégias de legitimação diagnosticadas por Habermas a partir de uma<br />

consciência positivista imperante que se articula como consciência tecnocrática:<br />

[...] as informações provenientes <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> saber tecnicamente utilizável imiscuíram-<br />

se nas tradições e compeliram a uma reconstrução das interpretações tradicionais <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. 10<br />

Nesse “horizonte inultrapassável” da técnica e ciência como ideologia (título <strong>do</strong> importante<br />

trabalho de Jürgen Habermas), a interpretação reclama um hiato essencial entre a crença e o<br />

significa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual visa extrair uma forma de imunidade à crítica.<br />

Creio poder afirmar que na origem desse movimento estratégico adquire particular<br />

relevo uma deliberada manipulação <strong>do</strong> valor relacional da regra e da prática, mediante uma<br />

curto-circuitagem <strong>do</strong> sistema, indutora da castração ostensiva <strong>do</strong>s pontos-de-fuga que fariam<br />

da interpretação algo mais <strong>do</strong> que uma paráfrase ou um pretexto dissimula<strong>do</strong>. O Wittgenstein<br />

das Investigações Filosóficas fornece um quadro altamente ilustrativo deste plano:<br />

É naturalmente pensável que, num povo em que o xadrez não é conheci<strong>do</strong>, duas<br />

pessoas se sentem diante de um tabuleiro e executem os lances de uma partida de<br />

xadrez; e incluin<strong>do</strong> mesmo to<strong>do</strong>s os fenómenos psíquicos de que estes são<br />

acompanha<strong>do</strong>s. E se nós víssemos isto diríamos que elas estavam a jogar xadrez. Mas<br />

agora imagina uma partida de xadrez traduzida, a partir de certas regras, numa série de<br />

acções, que não estamos habitua<strong>do</strong>s a associar com um jogo – talvez como soltar gritos<br />

e bater com os pés. Suponhamos agora que aquelas duas pessoas, em vez de jogarem a<br />

forma de xadrez que nós conhecemos, soltam gritos e batem com os pés; e de facto de<br />

tal mo<strong>do</strong>, que é possível, a partir de regras apropriadas, traduzir o que fazem numa<br />

partida de xadrez. Ainda estaríamos inclina<strong>do</strong>s a dizer que jogam um jogo? E com que<br />

direito o poderíamos dizer? 11<br />

Soltar gritos e bater com os pés – algo corrente, como é sabi<strong>do</strong>, na actividade <strong>do</strong><br />

crítico... – pode não ser exactamente a forma mais elegante de interpretar uma partida de<br />

xadrez (e aqui a polissemia <strong>do</strong> verbo des<strong>do</strong>bra matizes interessantes). Sem embargo, a<br />

10 Jürgen HABERMAS, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 2009, p. 84.<br />

11 Ludwig WITTGENSTEIN, Trata<strong>do</strong> Lógico-Filosófico segui<strong>do</strong> de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

2008, p. 321.


actuação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is joga<strong>do</strong>res corresponde estritamente a uma codificação de regras, traduzidas<br />

em acções com significa<strong>do</strong>s precisos e referenciáveis. Porém, a interrogação de Wittgenstein é<br />

acutilante: ainda há ali algum jogo a ser joga<strong>do</strong>? Talvez haja, mas de uma natureza<br />

inteiramente nova. O que importa sublinhar é a ilimitada capacidade de fazer corresponder<br />

uma praxis a uma regra, a ponto de essa estranha dança de pontapés e urros ser, ainda, uma<br />

partida de xadrez: a dimensão <strong>do</strong> nomos na interpretação exibe assim a sua condição<br />

para<strong>do</strong>xal, na ambição sublime (e impossível) de fazer pousar sobre as coisas uma nomeação<br />

de aparência qualitativamente distinta das coisas em si (os textos literários). Esse para<strong>do</strong>xo<br />

diz-nos que “uma regra não pode determinar uma forma de acção, por qualquer forma de<br />

acção ser conciliável com a regra” 12 .<br />

Em suma, a interpretação é sempre função de uma atitude <strong>do</strong> leitor perante o mun<strong>do</strong>,<br />

refractada pela sua experiência da presença <strong>do</strong> texto, e que depende de tantas variáveis<br />

quantas as que condicionam e determinam a nossa conduta diária. Teleológicas, funcionais,<br />

pragmáticas, elas engendram regras que facilitam e naturalizam as práticas que servem os<br />

propósitos de uma comunidade. Nesta medida, e a fim de evitar incorrer num non sequitur,<br />

cabe ao intérprete (re)conhecer a contingência da regra no uso consciente e criativo dessa<br />

regra, ou seja, actualizar o texto de mo<strong>do</strong> subjectivo, numa voluntária “willing suspension of<br />

disbelief”, na expressão de Coleridge, a tornar presente o espanto que paira sobre os rostos de<br />

Rembrandt.<br />

Como a revelação de Herr Prosit, Presidente da Sociedade Gastronómica de Berlim, no<br />

final <strong>do</strong> seu jantar muito original, <strong>do</strong> qual Pessoa nos dá conta.<br />

2.<br />

Pela boca morre o peixe. O decrépito clube de comensais, adeptos da luxúria sobre a<br />

mesa e fora dela, deixa-se abater pelo tédio que sugere a falta de originalidade reinante na<br />

gastronomia <strong>do</strong> momento. O tema <strong>do</strong>mina um jantar, durante o qual o Presidente se mantém<br />

alhea<strong>do</strong> e em silêncio, ostentan<strong>do</strong> o “seu perpétuo sorriso *que+ parecia a careta grotesca<br />

daqueles em cujo rosto bate o sol; nesses, a contracção natural <strong>do</strong>s músculos perante uma luz<br />

forte; neste, como expressão perpétua, extremamente antinatural e grotesca.” 13 . No final da<br />

refeição, solene, o Presidente, Herr Prosit, profere um convite e um desafio: anuncia que,<br />

12 Idem, ibidem.<br />

13 Fernan<strong>do</strong> PESSOA, “Um Jantar Muito Original” (tradução de Maria Leonor Macha<strong>do</strong> de Sousa), in Obra Poética e em Prosa (org.<br />

por António Quadros), vol. II: Prosa 1, <strong>Porto</strong>, Lello & Irmão, 2006, p. 511.


dentro de dez dias, servirá um banquete para os membros da Sociedade Gastronómica, um<br />

evento que, nas suas palavras, será “original para além <strong>do</strong> que possamos esperar” 14 , porque tal<br />

originalidade “não está no que ele tem ou parece, mas naquilo que significa, no que<br />

contém” 15 . Instala-se a curiosidade entre os convivas. Qual o motivo de tão enigmática<br />

promessa? A resposta <strong>do</strong> Presidente parece lacónica: “Sou leva<strong>do</strong> a isso *…+ por uma discussão<br />

que tive antes <strong>do</strong> jantar” 16 . A discussão, disse quem presenciou, fora entre Prosit e cinco<br />

jovens gastrónomos de Frankfort, e centrara-se numa rivalidade entre o prato de um <strong>do</strong>s<br />

“rapazes” e os feitos gastronómicos <strong>do</strong> Presidente. Quan<strong>do</strong> saiu, declara-lhes que fora a<br />

pensar neles que lançara o desafio, acrescentan<strong>do</strong>: “Estareis lá bem presentes. Estareis lá em<br />

corpo, garanto-vos.” 17 . Chega<strong>do</strong> o dia em que se cumpriria o convite, o jantar decorre com<br />

aparente normalidade. Prosit oferece aos membros da Sociedade Gastronómica um elegante<br />

banquete, porém, sem marcas de excentricidade. Debalde os contubernais procuraram em<br />

cada detalhe uma prova que denunciasse o ónus da anunciada originalidade:<br />

Tu<strong>do</strong> era, ao mesmo tempo, sugestivo e insatisfatório. Bem considera<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> continha<br />

uma singularidade (tal como qualquer coisa em qualquer sítio). Mas nada apresentava<br />

claramente, nitidamente, indubitavelmente, o sinal de ser a chave <strong>do</strong> problema, a<br />

palavra escondida <strong>do</strong> enigma. 18<br />

Os pratos sucederam-se, servi<strong>do</strong>s por cinco cria<strong>do</strong>s negros que se moviam junto às paredes<br />

que circunscreviam o salão, por detrás das cadeiras, abriga<strong>do</strong>s pela penumbra. A luz cingia-se<br />

ao centro da mesa, deixan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o resto na noite. Apesar da generalizada incógnita, to<strong>do</strong>s se<br />

repastavam alegremente, benevolamente envolvi<strong>do</strong>s pela curiosidade que intrigava sem<br />

incomodar excessivamente qualquer <strong>do</strong>s presentes. Perto <strong>do</strong> final <strong>do</strong> jantar, porém, o<br />

narra<strong>do</strong>r ensaia levantar uma ponta <strong>do</strong> véu. Vin<strong>do</strong>-lhe à memória as palavras de Prosit aos<br />

cinco gastrónomos de Frankfort, recorda-se <strong>do</strong> incómo<strong>do</strong> deste quan<strong>do</strong>, momentos antes, lhe<br />

haviam pergunta<strong>do</strong> a raça <strong>do</strong>s cinco cria<strong>do</strong>s negros, e associa os factos, concluin<strong>do</strong><br />

provisoriamente terem os rapazes si<strong>do</strong> força<strong>do</strong>s a desempenhar o papel de cria<strong>do</strong>s negros.<br />

Contu<strong>do</strong>, para além da dificuldade material em compreender como fora tal coisa possível,<br />

subsiste uma outra objecção, ainda: “A originalidade que eu descobrira não residia, é verdade,<br />

propriamente no jantar; mas estava nos cria<strong>do</strong>s, em algo liga<strong>do</strong> ao jantar.” 19 . Pouco após ter<br />

exposto a sua conjectura a Herr Prosit, imediatamente antes da sobremesa, o Presidente da<br />

14 Idem, p. 516.<br />

15 Idem, ibidem.<br />

16 Idem, ibidem.<br />

17 Idem, pp. 518-519.<br />

18 Idem, p. 522.<br />

19 Idem, p. 527.


Sociedade Gastronómica de Berlim propõe um brinde, revelan<strong>do</strong>, finalmente, onde residira a<br />

originalidade <strong>do</strong> jantar:<br />

“«Bebo», disse ele, «à memória <strong>do</strong>s cinco rapazes de Frankfort, que estiveram presentes<br />

em corpo a este jantar e contribuíram para ele da forma mais material.» E mal-<br />

encara<strong>do</strong>, selvagem, completamente louco, apontou com um de<strong>do</strong> excita<strong>do</strong> para os<br />

restos de carne que estavam na travessa que tinha manda<strong>do</strong> deixar sobre a mesa.” 20<br />

À revelação segue-se um silêncio – um silêncio de morte... – e, acto contínuo, os presentes são<br />

toma<strong>do</strong>s de uma ira incoercível e sem medidas, numa explosão de violência dirigida para o<br />

anfitrião, em cuja cara se despedaça um jarro de vinho, “misturan<strong>do</strong> sobre ela sangue e<br />

vinho” 21 . Numa orgia de fúria sacrificial, os membros da Sociedade Gastronómica tomam<br />

Prosit e lançam-no janela fora. O balofo senhor tomba sobre o passeio, com um baque seco<br />

“que teria transtorna<strong>do</strong> os mais fortes mas que levou a calma aos *…+ corações ansiosos e<br />

expectantes” 22 <strong>do</strong>s canibais. Os cria<strong>do</strong>s, membros de uma tribo “assassina e abominável” 23 ,<br />

ainda tentaram fugir, mas, com excepção de um, foram apanha<strong>do</strong>s e “bem e justamente<br />

castiga<strong>do</strong>s” 24 . Depois de saírem da casa de Prosit, muitos <strong>do</strong>s que tomaram parte no<br />

espectáculo perderam os senti<strong>do</strong>s, e to<strong>do</strong>s, sem excepção, se sentiram mal.<br />

Havia corpos sobre a mesa, e a carne foi repartida pelos presentes. O jantar reunia-os<br />

numa inefável inconsciência, num espaço utópico onde o desejo os aproxima, afastan<strong>do</strong>-os,<br />

colectivamente, para um ponto remoto da contingência <strong>do</strong> acto canibal. Retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

são conduzi<strong>do</strong>s a essa zona de indefinição, onde a ética se dilui na volição de uma palavra – a<br />

originalidade <strong>do</strong> jantar. (E é impossível não nos recordarmos, aqui, da curiosidade de Hansel e<br />

Gretel, que os levará à casa de chocolate e guloseimas.) Neste jantar, uma espécie de nevoeiro<br />

paira entre os convivas, infundin<strong>do</strong> em cada um uma cegueira que se mistura com o desejo <strong>do</strong><br />

nomos. Preten<strong>do</strong> sustentar que esse desejo de nomos é justamente o canibalismo <strong>do</strong>s<br />

membros da sociedade gastronómica.<br />

A vontade de nomeação <strong>do</strong> original é o gesto constitutivo da transgressão da regra, só<br />

possível mediante a instauração de uma ordem de perversão. Deste ponto de vista, temos <strong>do</strong>is<br />

movimentos paralelos, evoluin<strong>do</strong> a um mesmo ritmo: o da deglutição <strong>do</strong>s gastrónomos de<br />

Frankfort, e o da crescente vontade de nomear o desconheci<strong>do</strong>. Ambos se dirigem, fatalmente,<br />

incoercivelmente, para um mesmo ponto: a revelação. Nela, consuma-se a própria<br />

20 Idem, pp. 528-529.<br />

21 Idem, p. 530.<br />

22 Idem, pp. 530-531.<br />

23 Idem, p. 531.<br />

24 Idem, ibidem.


originalidade <strong>do</strong> jantar. Não haveria revelação sem a curiosidade, e não seria possível a Prosit<br />

oferecer um jantar muito original sem a morte <strong>do</strong>s gastrónomos (o que nos leva a pensar que,<br />

no limite, é a própria discussão que tivera lugar no jantar precedente da sociedade<br />

gastronómica que desencadeia o canibalismo <strong>do</strong>s respectivos membros). Estes pressupostos<br />

exigem uma tese mais consistente: é a necessidade de encontrar uma ordem de nomos que<br />

seja transcendente à contingência da evidência que guia os comensais ao canibalismo, e, logo,<br />

à negação da própria arte gastronómica. Com efeito, eles não desejavam apenas interpretar,<br />

porque na interpretação encontravam apenas a sensaboria <strong>do</strong> mesmo. Desejavam, no limiar<br />

<strong>do</strong> inconsciente, a fulguração de uma enormidade, ou, mais propriamente, de uma<br />

monstruosidade. E o seu desejo foi cumpri<strong>do</strong>. A aberração é a própria nomeação<br />

transcendental, enquanto exasperação <strong>do</strong> acto de nomeação.<br />

A tranquilidade curiosa com que devoram os seres humanos corresponde ao simulacro<br />

de uma leitura ingénua, uma leitura cega, que é o mesmo que dizer – e a tentação de<br />

reescrever a etimologia de ‘esquecimento’ a partir <strong>do</strong> latim ‘caecus’ é demasia<strong>do</strong> grande para<br />

ser ignorada 25 –, uma leitura esquece<strong>do</strong>ira <strong>do</strong> real: o jantar é, com efeito, uma forma perversa<br />

de anamnese, na justa medida em que corporiza, na sua duração como progresso, um esforço<br />

contraverti<strong>do</strong> de encontrar um denomina<strong>do</strong>r comum – isto é, conheci<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s,<br />

reconhecível, desprovi<strong>do</strong> de alteridade, ‘mesmiza<strong>do</strong>’ – para o sublimar enquanto outro, isto é,<br />

original, novo, pretensamente entrópico. Um tal esforço, na sua condição de tentativa de<br />

dúplice falsificação da memória e da experiência, facilmente assimilável ao que Ricoeur<br />

designa mémoire oublieuse 26 , depois de encenar uma (contrafaccionada) virgindade<br />

nomotética, convoca o deus ex machina <strong>do</strong> ressentimento contra o real como dispositivo<br />

para<strong>do</strong>xal de convalidação da entropia <strong>do</strong> real. No fun<strong>do</strong>, era forçoso que o acto canibal<br />

redundasse na revolta <strong>do</strong>s canibais, e que essa forma de ressentimento levasse à morte de<br />

Prosit 27 . Com efeito, esse desenlace é a negação necessária para o reconhecimento <strong>do</strong><br />

canibalismo: ele não estaria completo – e institucionaliza<strong>do</strong> – sem essa dimensão negativa. A<br />

relação que se estabelece é, então, semelhante à <strong>do</strong> messias que, conhecen<strong>do</strong> o seu destino, e<br />

saben<strong>do</strong> claramente que a condição ôntica de que se encontra investi<strong>do</strong> é função da sua<br />

morte sacrificial, se dirige ao Horto das Oliveiras para suplicar ao Deus-Pai (uma forma de si)<br />

25 ‘Esquecer’. Etm. <strong>do</strong> lat. ‘excadescere’ v. Freq. De ‘excadere’, ‘cair para fora’, de ‘exca<strong>do</strong>, is, cecidi, casum, ere’, cair, escorregar;<br />

abaixar-se, desfalecer, perecer. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia –<br />

Portugal/Temas e Debates, 2003, p. 1606, sb. V. ‘esquecer’.<br />

26 Paul RICOEUR, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 576.<br />

27 Não podemos deixar de registar o irónico volte-face que, neste final, vitima os serventes negros. Depois de se limitarem ao lugar<br />

de especta<strong>do</strong>res passivos <strong>do</strong> banquete canibal (não diremos certamente que a tarefa de servir os pratos de carne humana os<br />

torna propriamente culpa<strong>do</strong>s, e se alguma participação tiveram na morte <strong>do</strong>s cinco gastrónomos, poderão incorrer no crime de<br />

homicídio – como, de resto, incorreram também os membros da Sociedade Gastronómica pelo linchamento de Prosit –, mas não<br />

tomaram parte da ceia canibal, nem partilharam <strong>do</strong> espírito ufano em que esta se desenrolara), é sobre eles que recai a ira<br />

daqueles que comeram a carne <strong>do</strong>s concidadãos.


que, se houver tal possibilidade, seja afasta<strong>do</strong> de si esse cálice... No núcleo simbólico de toda a<br />

praxis, um centro ausente – espaço por definição impreenchível, e que podemos designar,<br />

inspira<strong>do</strong>s na astrofísica einsteiniana como a ‘antimatéria’ que habita o coração da matéria –<br />

sustém a gravidade da própria significação, garantin<strong>do</strong> a sua indeterminada continuidade, em<br />

torno dessa concreção negativa. É esta condição de uma ‘negação negociada’ que garante a<br />

perpetuação da nossa relação com o mun<strong>do</strong> (<strong>do</strong>s signos), enquanto contínua renovação de um<br />

contrato de nomeação que se nega, para melhor se consumar.<br />

A interpretação – enquanto acto de uma hermenêutica <strong>do</strong> mesmo – não pode<br />

sobreviver à presença sígnica <strong>do</strong> real, isto é, à presença da alteridade bruta <strong>do</strong> texto enquanto<br />

corpo maciço de significação infinita no contínuo reenvio da referencialidade. A sua existência<br />

fulgura nos interstícios <strong>do</strong> objecto, antes de se extinguir. Todavia, talvez seja mais sensato<br />

considerarmos aqui que ela só lhe pode sobreviver como uma forma de morte – to<strong>do</strong>s os<br />

comensais se sentiram profundamente indispostos, e muitos desmaiaram ao sair da casa de<br />

Prosit. Só nessa forma espectral lhe é possível continuar a durar. Por outras palavras, o gesto<br />

interpretativo não pode emergir senão como um reconhecimento crítico e criativo da falência<br />

da racionalidade – com todas as implicações <strong>do</strong> carácter experimental que isso convoca –, ou<br />

como um esqueleto falante, que será já uma forma de falência <strong>do</strong> próprio texto na leitura (os<br />

escribas medievais recorriam com facúndia a nuances simbólicas <strong>do</strong> termo ‘falecer’<br />

particularmente certeiras para este propósito). O texto, enquanto fenómeno literário e criação<br />

estética, sucumbe na interpretação. Temos, pois, que apenas uma entidade poderá sobreviver<br />

ao encontro fatal entre o leitor e o texto: a coerção <strong>do</strong> processo de significação <strong>do</strong> literário<br />

implica intimamente uma forma de prostração <strong>do</strong> intérprete, o qual, se desejar manter a sua<br />

condição de nomea<strong>do</strong>r, será obriga<strong>do</strong> a apagar ou esquecer-se da presença <strong>do</strong> texto. Uma tal<br />

tese, nesta segunda possibilidade, encontra confirmação nas estratégias de entrincheiramento<br />

<strong>do</strong> gesto interpretativo no esqueleto <strong>do</strong> nomos que é a sua forma de persistência no mun<strong>do</strong>.<br />

3.<br />

À luz destas reflexões, parece-me tornar-se imperativa uma nova condição de validade para<br />

o acto interpretativo. Uma vez reconhecida a sua dimensão contingente e subjectiva, não é<br />

mais possível fazê-lo depender de uma «correspondência» a algo exterior a si mesmo, como se


de uma novíssima metafísica se tratasse, uma entidade sem rosto que, na penumbra, legitima<br />

e sanciona os rasgos generalizantes de leitores-arúspices. Afinal,<br />

The world <strong>do</strong>es not speak. Only we <strong>do</strong>. The world can, once we have programmed<br />

ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for<br />

us to speak. Only other human beings can <strong>do</strong> that. 28<br />

Impõe-se então criar condições de possibilidade para a emergência de um modelo<br />

interpretativo funda<strong>do</strong> nos laços de necessidade que nos atravessam, enquanto leitores,<br />

redescobrin<strong>do</strong> no texto um lugar de encontro de crenças, muito para além de um mostruário<br />

de abstractas fórmulas, estruturas e ossaturas. Assim encarada, a interpretação não se furtará<br />

à responsabilidade de inclusão <strong>do</strong> outro, abrin<strong>do</strong> o espaço <strong>do</strong> Eu à visitação de múltiplas<br />

presenças, numa aventura trágica ou sublime, mas jamais inócua.<br />

Abraçar a dimensão subjectiva da leitura significa, também, assumir o risco <strong>do</strong><br />

conhecimento como ficção, toman<strong>do</strong> a literatura enquanto promessa e anúncio de uma forma<br />

de conhecimento imprevisível, embora iminente. E essa é, a meu ver, a forma mais sensata de<br />

encarar a interpretação: como o detective apanha<strong>do</strong> no seu caso.<br />

Esse detective pode muito bem ser Erik Lönnrot, e conhecemo-lo num conto de<br />

Borges, “A morte e a bússola” 29 .<br />

Um influente rabi, o Tetrarca da Galileia, é assassina<strong>do</strong> num quarto de hotel na noite<br />

de três de Dezembro. Lönnrot e o comissário Treviranus investigam o caso, procuran<strong>do</strong> entre a<br />

simbologia talmúdica a chave para desvendar a identidade <strong>do</strong> assassino. Perto <strong>do</strong> corpo, numa<br />

máquina de escrever, é encontrada uma folha com as palavras: “A primeira letra <strong>do</strong> Nome já<br />

foi articulada”. O segun<strong>do</strong> crime ocorre na noite de três de Janeiro: um criminoso aparece<br />

morto nos subúrbios, e, na parede junto à qual o corpo jaz, sobre os azulejos em losango,<br />

escrita a giz, a frase: “A segunda letra <strong>do</strong> Nome já foi articulada”. O terceiro crime ocorre na<br />

noite de três de Fevereiro. Num bar duvi<strong>do</strong>so, um hóspede é leva<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is arlequins para<br />

uma sala recolhida. Quan<strong>do</strong> sai, embriaga<strong>do</strong> e cambaleante, é leva<strong>do</strong> para o interior de uma<br />

berlinda, de cujo estribo um <strong>do</strong>s arlequins risca nas ardósias da arcada “A última das letras <strong>do</strong><br />

Nome já foi articulada”. No chão da sala para onde o hóspede fora leva<strong>do</strong>, Lönnrot encontra<br />

uma estrela de sangue. Os crimes inspiram uma atmosfera de me<strong>do</strong> na cidade, e até Red<br />

Scharlach, o mais ilustre <strong>do</strong>s pistoleiros <strong>do</strong> Sul, inimigo de longa data de Lönnrot, declarou que<br />

28 Richard RORTY, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008], p. 6.<br />

29 Jorge Luis BORGES, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa, Editorial Teorema, 1998<br />

[1989], pp. 121-135.


no seu distrito jamais aconteceria algo de semelhante, culpan<strong>do</strong> a incompetência <strong>do</strong><br />

comissário da demora na resolução <strong>do</strong>s crimes. O céptico Treviranus recebe, pouco tempo<br />

depois, uma missiva anónima, revelan<strong>do</strong> a configuração geométrica que perfazia a localização<br />

<strong>do</strong>s três lugares de crime, um triângulo “equilátero e místico”, perfeito, que sugeria o fim da<br />

série de assassínios, e que correspondia à equidistância das datas a que ocorreram os crimes.<br />

A explicação satisfaz o comissário, prepara<strong>do</strong> para aceitar uma teoria tão racional (more<br />

geometrico) como esta. Mas Lönnrot estuda a hipótese, lê-a através <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s místicos que<br />

fora recolhen<strong>do</strong>, e acaba por formular uma conclusão própria. Dá o caso por resolvi<strong>do</strong> e, no<br />

dia quatro de Março, dirige-se para fora da cidade, para uma quinta desabitada no Sul.<br />

Enquanto o sol se põe, percorre os salões vazios da casa, onde toda a arquitectura é simétrica,<br />

duplicada. Ao cair da noite, Lönnrot, solitário, é agarra<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is criminosos, enquanto Red<br />

Scharlach, cujo irmão Lönnrot capturara anos antes, confirma a tese que levara o investiga<strong>do</strong>r<br />

àquela casa aban<strong>do</strong>nada. Não se tratava de um triângulo, mas de um losango, e os crimes não<br />

haviam ocorri<strong>do</strong> ao dia três de cada mês, mas a quatro, já que “o dia judeu começa ao<br />

anoitecer e dura até ao seguinte anoitecer”. Scharlach, calmamente, explica a Lönnrot que<br />

to<strong>do</strong>s os crimes haviam si<strong>do</strong> premedita<strong>do</strong>s, e que o crime estava prestes a ser consuma<strong>do</strong>.<br />

“Recuou uns passos. Depois, muito cuida<strong>do</strong>samente, fez fogo.” 30 .<br />

Lönnrot extingue-se na procura <strong>do</strong> seu mistério, mas essa evanescência é apenas a<br />

forma silenciosa e perfeita da sua presença no caso. Lönnrot suspende-se, para poder ser<br />

completamente. A entrega <strong>do</strong> detective ao caso não seria total se ficasse presa a uma suspeita<br />

que o envolvesse. De facto, é o excesso de proximidade ao crime que faz com que a sua<br />

personagem se eclipse durante to<strong>do</strong> o desenrolar <strong>do</strong>s factos, tal como uma janela desaparece<br />

<strong>do</strong> campo de visão de alguém que se poste demasia<strong>do</strong> perto <strong>do</strong> respectivo vidro. Graças a essa<br />

forma de, digamos, leitura absoluta, Lönnrot é o nosso modelo ideal de intérprete: a sua<br />

hermenêutica da diferença redescobre, como defende Reed Way Dasenbrock, a combinação<br />

sibilina de uma criatividade sensível com uma receptividade ilimitada:<br />

If we are members of an interpretative community, the point of reading is to learn, as<br />

least for a moment, not to be. 31<br />

A entrega <strong>do</strong> detective a cada uma das peças que junta e às quais confere senti<strong>do</strong>s<br />

possíveis prefigura uma interpretação da diferença que opera através de uma memória <strong>do</strong><br />

vivi<strong>do</strong>, agencian<strong>do</strong> uma subjectividade enquanto experiência, e não (como poderia levar a crer<br />

30 Idem, p. 135.<br />

31 Reed Way DASENBROCK, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan. 1991), Urbana (Illinois),<br />

National Council of Teachers of English, p. 17.


a postulação de Stanley Fish), como opacidade. É na medida em que Lönnrot toma a palavra<br />

<strong>do</strong> outro em toda a extensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s possíveis que ele pode, finalmente, aliar a crença à<br />

interpretação, oferecen<strong>do</strong> o corpo <strong>do</strong> seu pensamento à actuação produtiva de senti<strong>do</strong>s<br />

outros: para descodificar a série de crimes, ele deve concordar com o modelo de racionalidade<br />

requeri<strong>do</strong> pelas pistas recolhidas, isto é, ele deve a<strong>do</strong>ptar como válidas as premissas que visa<br />

compreender, certo de que apenas essa forma de solidariedade o poderá conduzir à verdade<br />

que outros construíram para si. Nesse pressuposto, Lönnrot dá corpo ao “leitor radical” que<br />

Donald Davidson encontra ao procurar pensar uma condição interpretativa universalmente<br />

válida, capaz de dar conta de qualquer afirmação, sem reservas contextuais. Um tal intérprete<br />

encontra-se em situação de plena receptividade, já que não acolhe o texto com os<br />

instrumentos cirúrgicos de um “manual de instruções”, mas com a ilimitada compreensão de<br />

uma partilha da crença como condição para o estabelecimento de uma plataforma de verdade:<br />

Since knowledge of beliefs comes only with the ability to interpret words, the only<br />

possibility at the start is to assume general agreement on beliefs. 32<br />

O que há de precioso em Lönnrot é ele fornecer-nos uma razão para continuarmos a ler:<br />

cada vez mais e melhor, nessa procura incessante da qual não poderemos sair ilesos, porque,<br />

mais <strong>do</strong> que abstractas estruturas, ensinar-nos-á algo sobre a vida, ou, pelo menos, sobre a<br />

memória dela.<br />

32 Donald DAVIDSON, «On the Very Idea of a Conceptual Scheme” (1974), in Inquiries into Truth and Interpretation, Oxford, Oxford<br />

University Press, 2009 [2001], p. 196.


Referências bibliográficas<br />

AAVV, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia –<br />

Portugal/Temas e Debates, 2003.<br />

BORGES, Jorge Luis, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa,<br />

Editorial Teorema, 1998 [1989].<br />

DASENBROCK, Reed Way, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan.<br />

1991), Urbana (Illinois), National Council of Teachers of English.<br />

DAVIDSON, Donald, «On the Very Idea of a Conceptual Scheme” (1974), in Inquiries into Truth and<br />

Interpretation, Oxford, Oxford University Press, 2009 [2001].<br />

FISH, Stanley, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities,<br />

Cambridge/Lon<strong>do</strong>n, Harvard University Press, 1980.<br />

--------- “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of<br />

Aesthetic Response, por Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The<br />

Johns Hopkins University Press.<br />

HABERMAS, Jürgen, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70,<br />

2009, p. 84.<br />

PESSOA, Fernan<strong>do</strong>, “Um Jantar Muito Original” (tradução de Maria Leonor Macha<strong>do</strong> de Sousa), in Obra<br />

Poética e em Prosa (org. por António Quadros), vol. II: Prosa 1, <strong>Porto</strong>, Lello & Irmão, 2006.<br />

RICOEUR, Paul, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000.<br />

RORTY, Richard, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008].<br />

RORTY, Richard, Consequências <strong>do</strong> Pragmatismo (tradução de João Duarte), Lisboa, Instituto Piaget,<br />

1999.<br />

WITTGENSTEIN, Ludwig, Trata<strong>do</strong> Lógico-Filosófico segui<strong>do</strong> de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação<br />

Calouste Gulbenkian, 2008, p. 321.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!