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Entre o naufrágio e a eternidade - Universidade do Porto

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Colóquio Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura, I Encontro <strong>do</strong> Grupo de Estu<strong>do</strong>s<br />

Lusófonos (GEL), FLUP, 26 e 27 de Setembro de 2011<br />

0.<br />

ENTRE O NAUFRÁGIO E A ETERNIDADE.<br />

Reflexões em torno da interpretação, da leitura, da morte e outras ficções. 1<br />

Pedro Lopes Almeida<br />

CITCEM, Faculdade de Letras da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

um pássaro pergunta-me se<br />

existe o céu, para saber se<br />

lhe responderei ou se<br />

deve cair<br />

valter hugo mãe<br />

Ao especta<strong>do</strong>r da Aula de Anatomia <strong>do</strong> Doutor Nicolaes Tulp (1632) não passarão<br />

despercebidas as extravagantes trajectórias que descrevem os olhares das personagens<br />

retratadas por Rembrandt. Tulp, senta<strong>do</strong>, magistral, segura na ponta de uma pinça os<br />

músculos e tendões <strong>do</strong> cadáver em dissecação, enquanto gesticula vagamente, os lábios<br />

entreabertos susten<strong>do</strong> um discurso pláci<strong>do</strong>. As vestes impolutas denunciam que alguém, que<br />

não ele, preparou o corpo para a aula, um assistente invisível que não figura entre as<br />

personagens. Debruça<strong>do</strong>s sobre o cadáver, em cuja cabeça pousa a umbra mortis, um curioso<br />

grupo de cavalheiros dispara olhares em várias direcções. Ao centro, a luz derrama-se<br />

abundantemente sobre um triângulo de figuras que surge em segun<strong>do</strong> plano, sobre o peito <strong>do</strong><br />

morto. Concentremo-nos nesse triângulo. As linhas <strong>do</strong>s olhares de duas das personagens (as<br />

que ocupam o lugar <strong>do</strong> vértice superior e inferior direito) passam rasantes acima da mão<br />

erguida <strong>do</strong> Professor Tulp, distraidamente indiferentes às operações de dissecação, e vão<br />

projectar-se no canto inferior direito da tela, mergulha<strong>do</strong> em sombra, de onde emerge,<br />

1 O presente ensaio baseia-se no trabalho final apresenta<strong>do</strong> ao seminário de mestra<strong>do</strong> Leituras da Teoria II (Faculdade de Letras<br />

da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, ano lectivo 2009-2010). À Professora Doutora Maria de Lurdes Sampaio, pela orientação compreensiva<br />

e funda<strong>do</strong>ra de novos horizontes para o pensamento, a minha gratidão.


cinzento como o corpo nu, um grosso volume, aberto. A terceira figura, de barba e bigode<br />

quixotescos, sugere alguma ambiguidade, e permanece impossível dizer se observa os<br />

procedimentos que têm lugar no braço disseca<strong>do</strong> (e, se for esse o caso, é o único <strong>do</strong>s<br />

presentes em toda a cena que está olhar para o cadáver), ou se, à semelhança <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is,<br />

contempla também o livro aberto, atiran<strong>do</strong> o olhar tangencialmente por sob a mão <strong>do</strong><br />

cirurgião. Gasto, de grossas folhas retorcidas, curva<strong>do</strong>, o livro aberto em cima de um atril<br />

parece erguer-se das profundezas <strong>do</strong> escuro, magnetizan<strong>do</strong> hipnoticamente o olhar <strong>do</strong>s<br />

presentes, na quase iminência de se afundar nas sombras e desaparecer <strong>do</strong> nosso campo de<br />

visão. Cuida<strong>do</strong>sa e definitivamente afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro da tela, opon<strong>do</strong>-se de mo<strong>do</strong> radical à<br />

direcção da iluminação (a luz jorra desde um ponto situa<strong>do</strong> acima da cabeça de Tulp, oblíqua,<br />

da esquerda para a direita), obscenamente desloca<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro de massa da pintura (o bloco<br />

humano maciço no campo esquer<strong>do</strong>, com uma inflexão vertical a contrariar o livro, que parece<br />

querer “enterrar-se”), ele instaura um novo equilíbrio no to<strong>do</strong>, ao chamar a si um pólo de<br />

força, exigin<strong>do</strong> uma leitura horizontal da cena, mediada pela alvura irradiante <strong>do</strong> corpo sem<br />

vida, que, como uma linha eléctrica, é continuamente percorri<strong>do</strong>, enquanto fio condutor da<br />

tensão que se estabelece entre as personagens e o livro.<br />

No que se segue, procuro dar conta dessa tensão infinita que aproxima e afasta o<br />

especta<strong>do</strong>r e o livro. Procurarei fazê-lo a partir de uma impossibilidade objectiva: o espaço<br />

impreenchível que se abre entre o discurso <strong>do</strong> Professor Tulp, o olhar <strong>do</strong>s presentes, o corpo<br />

aberto, e o livro. Um quadra<strong>do</strong> que é, ao mesmo tempo, um hiato, a anunciar a<br />

indeterminação funda<strong>do</strong>ra da crença, da interpretação, da verdade e da morte.<br />

Provavelmente, nunca saberemos ao certo o que, naquelas duas páginas, segurava tão<br />

tenazmente a atenção <strong>do</strong>s presentes, a ponto de o preferirem à presença <strong>do</strong> corpo disseca<strong>do</strong>.<br />

Nunca saberemos se era uma confirmação que procuravam, ou se se lhes revelava alguma<br />

contradição flagrante com a anatomia prescrita pelo manual. Tulp dispensa essas mesmas<br />

páginas, quiçá tornadas supérfluas em face <strong>do</strong> saber só de experiências feito, e por isso desvia<br />

o olhar <strong>do</strong> livro (e não deixa de ser intrigante que, mesmo sob a larga aba <strong>do</strong> chapéu, e<br />

encontran<strong>do</strong>-se desvia<strong>do</strong> <strong>do</strong> foco de incidência da luz, o seu rosto resplandeça, como que<br />

ilumina<strong>do</strong> pelo próprio corpo…). Maravilhosamente, Tulp não olha, também, para a<br />

musculatura e articulações que ergue com a pinça, e oferece o gesto com a naturalidade de<br />

quem já não precisa de seguir a mão com a inteligência.<br />

Mas porque, e ao contrário <strong>do</strong> Professor Tulp, não me é da<strong>do</strong> conjurar o discurso<br />

sublime (no senti<strong>do</strong> em que o queria Longino), permito-me regressar a esse(s) livro(s)<br />

aberto(s), e procurar aí respostas para o enigma que nos traz a esta outra sala de autópsias.


Rembrandt van Rijn<br />

«Aula de Anatomia <strong>do</strong> Doutor Nicolaes Tulp» (1632)<br />

Óleo sobre tela, 169.5 × 216.5 cm<br />

Royal Picture Gallery Mauritshuis, Haia


1.<br />

Começo, portanto, por reconhecer que, como homem (isto é, por definição, um ser<br />

torpe, ou, em termos mais recursivos, mergulha<strong>do</strong> nos condicionalismos da própria<br />

contingência), não me é possível sustentar a obstinação <strong>do</strong> olhar que apresentam as<br />

personagens de Rembrandt. Reconheço que vacilo, oscilan<strong>do</strong> entre o corpo e o livro, numa<br />

prolongada indecisão. Acredito, porém, que desse gesto hesitante poderá desprender-se<br />

alguma luz para a compreensão <strong>do</strong> próprio acto de ler. Enquanto fragilidade, o movimento<br />

fracturante encerra a possibilidade de um tertitum datur. A mesma fragilidade, de um “algures<br />

entre ambos”, é justamente o que Stanley Fish averba à teoria da leitura desenvolvida por<br />

Wolfgang Iser, no que respeita à identificação da fonte de autoridade interpretativa, posição<br />

que gostaria de tomar como ponto de partida para esta reflexão. O esforço requeri<strong>do</strong> para<br />

manter esse lugar improvável, algures entre o texto e o autor, é, segun<strong>do</strong> Fish, o de acomodar<br />

contradições, isto é, suportar a tensão <strong>do</strong>s fios que se estendem da objectividade à<br />

subjectividade, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de renunciar à tentação de uma infinitude de leituras possíveis<br />

(conotada com o estigma da arbitrariedade), para, finalmente, assistir ao triunfo (ameno) <strong>do</strong><br />

pluralismo, estranha condição daquilo que consegue gerir posições de compromisso<br />

suficientes para evitar um confronto declara<strong>do</strong> com qualquer das teorias convocadas a essa<br />

plataforma comum. Na crítica que dedica à obra de Iser, com o título mordaz “Why no one's<br />

afraid of Wolfgang Iser” 2 , Fish denuncia a inércia característica de uma tal postura, que,<br />

motivada por imperativos históricos, culturais e, essencialmente, institucionais, desemboca<br />

inevitavelmente em para<strong>do</strong>xos meto<strong>do</strong>lógicos, redundan<strong>do</strong>, tarde ou ce<strong>do</strong>, numa irresolúvel<br />

aporia prática:<br />

The (limited) tolerance of diverse views that characterizes this brand of pluralism is a<br />

concession not to the reader's creative imagination, but to the difficulty of his task (a<br />

task that is by definition incapable of completion). 3<br />

O que resta ao leitor é, então, cumprir as tarefas que conduzem à explicitação da possibilidade<br />

de inscrição <strong>do</strong> texto nas grelhas de leitura pressupostas pela prática interpretativa,<br />

potencian<strong>do</strong> assim as propriedades implícitas que esta encerra. Fatalmente, o texto literário<br />

vê-se converti<strong>do</strong> num “script for performance” 4 que vive apenas nas suas manifestações:<br />

2 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response, por<br />

Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The Johns Hopkins University Press.<br />

3 Idem, p. 4.<br />

4 Idem, ibidem.


Every time a reader builds his own structure of significance, he is simultaneously being<br />

faithful to authorial meaning, and, indeed, he can be faithful only in that way. Rather<br />

than being opposed to authorial meaning, interpreter's meaning is necessary to its<br />

actualization. 5<br />

Muito rapidamente percebemos que é o próprio leitor quem se vê refém de um significa<strong>do</strong>:<br />

não apenas no senti<strong>do</strong> passivo de uma interpretação rigidamente veiculada e sancionada pelo<br />

texto, mas, bem mais subtil e eficazmente, como uma performance necessária para o<br />

cumprimento <strong>do</strong> próprio texto. O intérprete cumpre assim o papel que lhe está pré(e)scrito<br />

pelo texto, e a atribuição de significa<strong>do</strong> não é senão o corolário <strong>do</strong> reencontro <strong>do</strong> texto com a<br />

intenção <strong>do</strong> autor. A interpretação volve-se num movimento despossuí<strong>do</strong> de individualidade<br />

ontológica: ela é, em verdade, um satélite da intenção autoral, um simulacro, uma espécie de<br />

farsa encenada que convida o especta<strong>do</strong>r a desempenhar uma figura insignificante mas<br />

materialmente indispensável, para depois continuar, indiferente, o respectivo curso.<br />

Como o médico que, no final da operação, se esquece de instrumentos cirúrgicos<br />

dentro <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> paciente, o texto caminha em frente, transportan<strong>do</strong> um bisturi e uma<br />

tesoura que só uma radiografia virá a denunciar. Com efeito, não é exagera<strong>do</strong> afirmar que<br />

toda a interpretação de motivação materialista flui para um modelo que pressupõe, mais ou<br />

menos explicitamente, uma ingenuidade essencial <strong>do</strong> leitor, gradualmente preenchida pela<br />

infinita transcendência <strong>do</strong> texto, num processo de completamento que se serve da<br />

interpretação para legitimar a extracção de narrativas a partir <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> texto.<br />

A denúncia de Stanley Fish coloca em evidência a condição convencionada deste<br />

processo, demonstran<strong>do</strong> que nenhuma leitura pode ocupar esse lugar atópico, já que o texto,<br />

encara<strong>do</strong> na sua contingência imediata, se serve <strong>do</strong>s mesmos signos, códigos de significação,<br />

narrativas e ideologias de que se tece o quotidiano, o que determina simplesmente a<br />

impossibilidade de interpretar um texto a partir da sua imanência, já que ele é uma forma<br />

intrínseca de exterioridades. Neste senti<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> o que podemos afirmar é que os “signos<br />

textuais” adquirem varia<strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s, de acor<strong>do</strong> com as diferentes expectativas e valores<br />

<strong>do</strong>s diferentes leitores 6 .<br />

No fun<strong>do</strong>, a nossa realidade de seres situa<strong>do</strong>s e a impossibilidade de nos descartarmos<br />

<strong>do</strong> arquivo das nossas experiências singulares e subjectivas antes de começar o acto<br />

interpretativo, dizem-nos que temos ideias diferentes sobre o que representam os valores de<br />

5 Idem, ibidem.<br />

6 Cf. Idem, p. 7.


um texto, e isso colide com o projecto de reconstituir um plano textualmente implícito de<br />

leitura, basea<strong>do</strong> em valores intersubjectivos, imutáveis e líqui<strong>do</strong>s. Assim, até mesmo o esforço<br />

de fixação de um plano <strong>do</strong> da<strong>do</strong> e <strong>do</strong> construí<strong>do</strong> pressupõe e implica distinções baseadas em<br />

juízos de valor que irão informar e enformar o acto de leitura, produzin<strong>do</strong> o fenómeno que<br />

visam descrever. Deste mo<strong>do</strong>, a interpretação oferece-se como uma instância legitima<strong>do</strong>ra de<br />

um processo que é, em rigor, cíclico e tautológico, já que parte da imposição de critérios<br />

(como, por exemplo, o critério da unidade formal, o critério <strong>do</strong>s “da<strong>do</strong>s presentes no texto”,<br />

ou ainda o critério da linguagem poética), que, por sua vez, ditam e constroem processos<br />

direcciona<strong>do</strong>s para os “descobrir” e validar 7 .<br />

and even if one had recourse to a supposedly neutral vocabulary and described the<br />

action in terms of angles, movements, ten<strong>do</strong>ns, joints, etc., that description would itself<br />

be possible only under a theory of movement, ligatures, etc., and therefore would be<br />

descriptive only of what the theory (that is, the interpretation) prestipulates as available<br />

for description. 8<br />

Fica deste mo<strong>do</strong> exposta a fina ironia implícita no próprio conceito de rigor científico, o<br />

qual, em rigor, já não pode ser senão uma forma de “boas maneiras epistémicas” que consiste,<br />

como dirá Richard Rorty, em inscrever estilisticamente o mo<strong>do</strong> de falar no “vocabulário no<br />

qual são postos os problemas [e] é aceite por to<strong>do</strong>s aqueles que contam como contribuin<strong>do</strong><br />

para o assunto” 9 . Consequentemente, por muito persistente que seja o esforço de expurgar de<br />

marcas de subjectividade essa forma de discurso, ou seja, de alcançar um catálogo blinda<strong>do</strong><br />

por uma impenetrável objectividade (“rigor”, “precisão”, “critérios científicos reconheci<strong>do</strong>s”,<br />

“boas práticas meto<strong>do</strong>lógicas”, “standards internacionais de investigação”, “excelência<br />

científica”, etc. – nesta matéria, o glossário é abundante, e com pouca variação, se submeti<strong>do</strong><br />

a uma crítica séria), será sempre necessário reconhecer a motivação intrinsecamente<br />

contingente da interpretação que lhe subjaz. Acabamos por convergir com a impossibilidade<br />

de um “grau zero” da interpretação ao concluir que uma linguagem crítica de inspiração<br />

puramente matemática se revelaria, num primeiro momento, tão inútil quanto bizarra (não é<br />

essa a sensação com que ficamos ao ouvir os críticos que, pretenden<strong>do</strong> dar provas de<br />

“credibilidade”, se refugiam num apparatus metalinguístico mais próprio de protozoários <strong>do</strong><br />

que de textos literários?). É fácil supor que, pouco depois, as próprias etiquetas cirúrgicas se<br />

apropriariam de uma disposição moral, através de processos sub-reptícios de reinvestimento<br />

7<br />

Cf. Stanley FISH, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge/Lon<strong>do</strong>n, Harvard<br />

University Press, 1980, p. 105.<br />

8<br />

Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser”, op. cit., p. 11.<br />

9<br />

Richard RORTY, Consequências <strong>do</strong> Pragmatismo (tradução de João Duarte), Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 210.


semântico que permitiriam ao crítico emitir juízos de valor sob a aparência de uma abordagem<br />

estritamente formal. Esta trajectória, que foi, diga-se de passagem, a que trilhou a reflexão<br />

literária ao longo <strong>do</strong> século XX na deslocação <strong>do</strong> paradigma formalista para o estruturalismo,<br />

decorre das estratégias de legitimação diagnosticadas por Habermas a partir de uma<br />

consciência positivista imperante que se articula como consciência tecnocrática:<br />

[...] as informações provenientes <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> saber tecnicamente utilizável imiscuíram-<br />

se nas tradições e compeliram a uma reconstrução das interpretações tradicionais <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. 10<br />

Nesse “horizonte inultrapassável” da técnica e ciência como ideologia (título <strong>do</strong> importante<br />

trabalho de Jürgen Habermas), a interpretação reclama um hiato essencial entre a crença e o<br />

significa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual visa extrair uma forma de imunidade à crítica.<br />

Creio poder afirmar que na origem desse movimento estratégico adquire particular<br />

relevo uma deliberada manipulação <strong>do</strong> valor relacional da regra e da prática, mediante uma<br />

curto-circuitagem <strong>do</strong> sistema, indutora da castração ostensiva <strong>do</strong>s pontos-de-fuga que fariam<br />

da interpretação algo mais <strong>do</strong> que uma paráfrase ou um pretexto dissimula<strong>do</strong>. O Wittgenstein<br />

das Investigações Filosóficas fornece um quadro altamente ilustrativo deste plano:<br />

É naturalmente pensável que, num povo em que o xadrez não é conheci<strong>do</strong>, duas<br />

pessoas se sentem diante de um tabuleiro e executem os lances de uma partida de<br />

xadrez; e incluin<strong>do</strong> mesmo to<strong>do</strong>s os fenómenos psíquicos de que estes são<br />

acompanha<strong>do</strong>s. E se nós víssemos isto diríamos que elas estavam a jogar xadrez. Mas<br />

agora imagina uma partida de xadrez traduzida, a partir de certas regras, numa série de<br />

acções, que não estamos habitua<strong>do</strong>s a associar com um jogo – talvez como soltar gritos<br />

e bater com os pés. Suponhamos agora que aquelas duas pessoas, em vez de jogarem a<br />

forma de xadrez que nós conhecemos, soltam gritos e batem com os pés; e de facto de<br />

tal mo<strong>do</strong>, que é possível, a partir de regras apropriadas, traduzir o que fazem numa<br />

partida de xadrez. Ainda estaríamos inclina<strong>do</strong>s a dizer que jogam um jogo? E com que<br />

direito o poderíamos dizer? 11<br />

Soltar gritos e bater com os pés – algo corrente, como é sabi<strong>do</strong>, na actividade <strong>do</strong><br />

crítico... – pode não ser exactamente a forma mais elegante de interpretar uma partida de<br />

xadrez (e aqui a polissemia <strong>do</strong> verbo des<strong>do</strong>bra matizes interessantes). Sem embargo, a<br />

10 Jürgen HABERMAS, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 2009, p. 84.<br />

11 Ludwig WITTGENSTEIN, Trata<strong>do</strong> Lógico-Filosófico segui<strong>do</strong> de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

2008, p. 321.


actuação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is joga<strong>do</strong>res corresponde estritamente a uma codificação de regras, traduzidas<br />

em acções com significa<strong>do</strong>s precisos e referenciáveis. Porém, a interrogação de Wittgenstein é<br />

acutilante: ainda há ali algum jogo a ser joga<strong>do</strong>? Talvez haja, mas de uma natureza<br />

inteiramente nova. O que importa sublinhar é a ilimitada capacidade de fazer corresponder<br />

uma praxis a uma regra, a ponto de essa estranha dança de pontapés e urros ser, ainda, uma<br />

partida de xadrez: a dimensão <strong>do</strong> nomos na interpretação exibe assim a sua condição<br />

para<strong>do</strong>xal, na ambição sublime (e impossível) de fazer pousar sobre as coisas uma nomeação<br />

de aparência qualitativamente distinta das coisas em si (os textos literários). Esse para<strong>do</strong>xo<br />

diz-nos que “uma regra não pode determinar uma forma de acção, por qualquer forma de<br />

acção ser conciliável com a regra” 12 .<br />

Em suma, a interpretação é sempre função de uma atitude <strong>do</strong> leitor perante o mun<strong>do</strong>,<br />

refractada pela sua experiência da presença <strong>do</strong> texto, e que depende de tantas variáveis<br />

quantas as que condicionam e determinam a nossa conduta diária. Teleológicas, funcionais,<br />

pragmáticas, elas engendram regras que facilitam e naturalizam as práticas que servem os<br />

propósitos de uma comunidade. Nesta medida, e a fim de evitar incorrer num non sequitur,<br />

cabe ao intérprete (re)conhecer a contingência da regra no uso consciente e criativo dessa<br />

regra, ou seja, actualizar o texto de mo<strong>do</strong> subjectivo, numa voluntária “willing suspension of<br />

disbelief”, na expressão de Coleridge, a tornar presente o espanto que paira sobre os rostos de<br />

Rembrandt.<br />

Como a revelação de Herr Prosit, Presidente da Sociedade Gastronómica de Berlim, no<br />

final <strong>do</strong> seu jantar muito original, <strong>do</strong> qual Pessoa nos dá conta.<br />

2.<br />

Pela boca morre o peixe. O decrépito clube de comensais, adeptos da luxúria sobre a<br />

mesa e fora dela, deixa-se abater pelo tédio que sugere a falta de originalidade reinante na<br />

gastronomia <strong>do</strong> momento. O tema <strong>do</strong>mina um jantar, durante o qual o Presidente se mantém<br />

alhea<strong>do</strong> e em silêncio, ostentan<strong>do</strong> o “seu perpétuo sorriso *que+ parecia a careta grotesca<br />

daqueles em cujo rosto bate o sol; nesses, a contracção natural <strong>do</strong>s músculos perante uma luz<br />

forte; neste, como expressão perpétua, extremamente antinatural e grotesca.” 13 . No final da<br />

refeição, solene, o Presidente, Herr Prosit, profere um convite e um desafio: anuncia que,<br />

12 Idem, ibidem.<br />

13 Fernan<strong>do</strong> PESSOA, “Um Jantar Muito Original” (tradução de Maria Leonor Macha<strong>do</strong> de Sousa), in Obra Poética e em Prosa (org.<br />

por António Quadros), vol. II: Prosa 1, <strong>Porto</strong>, Lello & Irmão, 2006, p. 511.


dentro de dez dias, servirá um banquete para os membros da Sociedade Gastronómica, um<br />

evento que, nas suas palavras, será “original para além <strong>do</strong> que possamos esperar” 14 , porque tal<br />

originalidade “não está no que ele tem ou parece, mas naquilo que significa, no que<br />

contém” 15 . Instala-se a curiosidade entre os convivas. Qual o motivo de tão enigmática<br />

promessa? A resposta <strong>do</strong> Presidente parece lacónica: “Sou leva<strong>do</strong> a isso *…+ por uma discussão<br />

que tive antes <strong>do</strong> jantar” 16 . A discussão, disse quem presenciou, fora entre Prosit e cinco<br />

jovens gastrónomos de Frankfort, e centrara-se numa rivalidade entre o prato de um <strong>do</strong>s<br />

“rapazes” e os feitos gastronómicos <strong>do</strong> Presidente. Quan<strong>do</strong> saiu, declara-lhes que fora a<br />

pensar neles que lançara o desafio, acrescentan<strong>do</strong>: “Estareis lá bem presentes. Estareis lá em<br />

corpo, garanto-vos.” 17 . Chega<strong>do</strong> o dia em que se cumpriria o convite, o jantar decorre com<br />

aparente normalidade. Prosit oferece aos membros da Sociedade Gastronómica um elegante<br />

banquete, porém, sem marcas de excentricidade. Debalde os contubernais procuraram em<br />

cada detalhe uma prova que denunciasse o ónus da anunciada originalidade:<br />

Tu<strong>do</strong> era, ao mesmo tempo, sugestivo e insatisfatório. Bem considera<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> continha<br />

uma singularidade (tal como qualquer coisa em qualquer sítio). Mas nada apresentava<br />

claramente, nitidamente, indubitavelmente, o sinal de ser a chave <strong>do</strong> problema, a<br />

palavra escondida <strong>do</strong> enigma. 18<br />

Os pratos sucederam-se, servi<strong>do</strong>s por cinco cria<strong>do</strong>s negros que se moviam junto às paredes<br />

que circunscreviam o salão, por detrás das cadeiras, abriga<strong>do</strong>s pela penumbra. A luz cingia-se<br />

ao centro da mesa, deixan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o resto na noite. Apesar da generalizada incógnita, to<strong>do</strong>s se<br />

repastavam alegremente, benevolamente envolvi<strong>do</strong>s pela curiosidade que intrigava sem<br />

incomodar excessivamente qualquer <strong>do</strong>s presentes. Perto <strong>do</strong> final <strong>do</strong> jantar, porém, o<br />

narra<strong>do</strong>r ensaia levantar uma ponta <strong>do</strong> véu. Vin<strong>do</strong>-lhe à memória as palavras de Prosit aos<br />

cinco gastrónomos de Frankfort, recorda-se <strong>do</strong> incómo<strong>do</strong> deste quan<strong>do</strong>, momentos antes, lhe<br />

haviam pergunta<strong>do</strong> a raça <strong>do</strong>s cinco cria<strong>do</strong>s negros, e associa os factos, concluin<strong>do</strong><br />

provisoriamente terem os rapazes si<strong>do</strong> força<strong>do</strong>s a desempenhar o papel de cria<strong>do</strong>s negros.<br />

Contu<strong>do</strong>, para além da dificuldade material em compreender como fora tal coisa possível,<br />

subsiste uma outra objecção, ainda: “A originalidade que eu descobrira não residia, é verdade,<br />

propriamente no jantar; mas estava nos cria<strong>do</strong>s, em algo liga<strong>do</strong> ao jantar.” 19 . Pouco após ter<br />

exposto a sua conjectura a Herr Prosit, imediatamente antes da sobremesa, o Presidente da<br />

14 Idem, p. 516.<br />

15 Idem, ibidem.<br />

16 Idem, ibidem.<br />

17 Idem, pp. 518-519.<br />

18 Idem, p. 522.<br />

19 Idem, p. 527.


Sociedade Gastronómica de Berlim propõe um brinde, revelan<strong>do</strong>, finalmente, onde residira a<br />

originalidade <strong>do</strong> jantar:<br />

“«Bebo», disse ele, «à memória <strong>do</strong>s cinco rapazes de Frankfort, que estiveram presentes<br />

em corpo a este jantar e contribuíram para ele da forma mais material.» E mal-<br />

encara<strong>do</strong>, selvagem, completamente louco, apontou com um de<strong>do</strong> excita<strong>do</strong> para os<br />

restos de carne que estavam na travessa que tinha manda<strong>do</strong> deixar sobre a mesa.” 20<br />

À revelação segue-se um silêncio – um silêncio de morte... – e, acto contínuo, os presentes são<br />

toma<strong>do</strong>s de uma ira incoercível e sem medidas, numa explosão de violência dirigida para o<br />

anfitrião, em cuja cara se despedaça um jarro de vinho, “misturan<strong>do</strong> sobre ela sangue e<br />

vinho” 21 . Numa orgia de fúria sacrificial, os membros da Sociedade Gastronómica tomam<br />

Prosit e lançam-no janela fora. O balofo senhor tomba sobre o passeio, com um baque seco<br />

“que teria transtorna<strong>do</strong> os mais fortes mas que levou a calma aos *…+ corações ansiosos e<br />

expectantes” 22 <strong>do</strong>s canibais. Os cria<strong>do</strong>s, membros de uma tribo “assassina e abominável” 23 ,<br />

ainda tentaram fugir, mas, com excepção de um, foram apanha<strong>do</strong>s e “bem e justamente<br />

castiga<strong>do</strong>s” 24 . Depois de saírem da casa de Prosit, muitos <strong>do</strong>s que tomaram parte no<br />

espectáculo perderam os senti<strong>do</strong>s, e to<strong>do</strong>s, sem excepção, se sentiram mal.<br />

Havia corpos sobre a mesa, e a carne foi repartida pelos presentes. O jantar reunia-os<br />

numa inefável inconsciência, num espaço utópico onde o desejo os aproxima, afastan<strong>do</strong>-os,<br />

colectivamente, para um ponto remoto da contingência <strong>do</strong> acto canibal. Retira<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

são conduzi<strong>do</strong>s a essa zona de indefinição, onde a ética se dilui na volição de uma palavra – a<br />

originalidade <strong>do</strong> jantar. (E é impossível não nos recordarmos, aqui, da curiosidade de Hansel e<br />

Gretel, que os levará à casa de chocolate e guloseimas.) Neste jantar, uma espécie de nevoeiro<br />

paira entre os convivas, infundin<strong>do</strong> em cada um uma cegueira que se mistura com o desejo <strong>do</strong><br />

nomos. Preten<strong>do</strong> sustentar que esse desejo de nomos é justamente o canibalismo <strong>do</strong>s<br />

membros da sociedade gastronómica.<br />

A vontade de nomeação <strong>do</strong> original é o gesto constitutivo da transgressão da regra, só<br />

possível mediante a instauração de uma ordem de perversão. Deste ponto de vista, temos <strong>do</strong>is<br />

movimentos paralelos, evoluin<strong>do</strong> a um mesmo ritmo: o da deglutição <strong>do</strong>s gastrónomos de<br />

Frankfort, e o da crescente vontade de nomear o desconheci<strong>do</strong>. Ambos se dirigem, fatalmente,<br />

incoercivelmente, para um mesmo ponto: a revelação. Nela, consuma-se a própria<br />

20 Idem, pp. 528-529.<br />

21 Idem, p. 530.<br />

22 Idem, pp. 530-531.<br />

23 Idem, p. 531.<br />

24 Idem, ibidem.


originalidade <strong>do</strong> jantar. Não haveria revelação sem a curiosidade, e não seria possível a Prosit<br />

oferecer um jantar muito original sem a morte <strong>do</strong>s gastrónomos (o que nos leva a pensar que,<br />

no limite, é a própria discussão que tivera lugar no jantar precedente da sociedade<br />

gastronómica que desencadeia o canibalismo <strong>do</strong>s respectivos membros). Estes pressupostos<br />

exigem uma tese mais consistente: é a necessidade de encontrar uma ordem de nomos que<br />

seja transcendente à contingência da evidência que guia os comensais ao canibalismo, e, logo,<br />

à negação da própria arte gastronómica. Com efeito, eles não desejavam apenas interpretar,<br />

porque na interpretação encontravam apenas a sensaboria <strong>do</strong> mesmo. Desejavam, no limiar<br />

<strong>do</strong> inconsciente, a fulguração de uma enormidade, ou, mais propriamente, de uma<br />

monstruosidade. E o seu desejo foi cumpri<strong>do</strong>. A aberração é a própria nomeação<br />

transcendental, enquanto exasperação <strong>do</strong> acto de nomeação.<br />

A tranquilidade curiosa com que devoram os seres humanos corresponde ao simulacro<br />

de uma leitura ingénua, uma leitura cega, que é o mesmo que dizer – e a tentação de<br />

reescrever a etimologia de ‘esquecimento’ a partir <strong>do</strong> latim ‘caecus’ é demasia<strong>do</strong> grande para<br />

ser ignorada 25 –, uma leitura esquece<strong>do</strong>ira <strong>do</strong> real: o jantar é, com efeito, uma forma perversa<br />

de anamnese, na justa medida em que corporiza, na sua duração como progresso, um esforço<br />

contraverti<strong>do</strong> de encontrar um denomina<strong>do</strong>r comum – isto é, conheci<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s,<br />

reconhecível, desprovi<strong>do</strong> de alteridade, ‘mesmiza<strong>do</strong>’ – para o sublimar enquanto outro, isto é,<br />

original, novo, pretensamente entrópico. Um tal esforço, na sua condição de tentativa de<br />

dúplice falsificação da memória e da experiência, facilmente assimilável ao que Ricoeur<br />

designa mémoire oublieuse 26 , depois de encenar uma (contrafaccionada) virgindade<br />

nomotética, convoca o deus ex machina <strong>do</strong> ressentimento contra o real como dispositivo<br />

para<strong>do</strong>xal de convalidação da entropia <strong>do</strong> real. No fun<strong>do</strong>, era forçoso que o acto canibal<br />

redundasse na revolta <strong>do</strong>s canibais, e que essa forma de ressentimento levasse à morte de<br />

Prosit 27 . Com efeito, esse desenlace é a negação necessária para o reconhecimento <strong>do</strong><br />

canibalismo: ele não estaria completo – e institucionaliza<strong>do</strong> – sem essa dimensão negativa. A<br />

relação que se estabelece é, então, semelhante à <strong>do</strong> messias que, conhecen<strong>do</strong> o seu destino, e<br />

saben<strong>do</strong> claramente que a condição ôntica de que se encontra investi<strong>do</strong> é função da sua<br />

morte sacrificial, se dirige ao Horto das Oliveiras para suplicar ao Deus-Pai (uma forma de si)<br />

25 ‘Esquecer’. Etm. <strong>do</strong> lat. ‘excadescere’ v. Freq. De ‘excadere’, ‘cair para fora’, de ‘exca<strong>do</strong>, is, cecidi, casum, ere’, cair, escorregar;<br />

abaixar-se, desfalecer, perecer. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia –<br />

Portugal/Temas e Debates, 2003, p. 1606, sb. V. ‘esquecer’.<br />

26 Paul RICOEUR, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 576.<br />

27 Não podemos deixar de registar o irónico volte-face que, neste final, vitima os serventes negros. Depois de se limitarem ao lugar<br />

de especta<strong>do</strong>res passivos <strong>do</strong> banquete canibal (não diremos certamente que a tarefa de servir os pratos de carne humana os<br />

torna propriamente culpa<strong>do</strong>s, e se alguma participação tiveram na morte <strong>do</strong>s cinco gastrónomos, poderão incorrer no crime de<br />

homicídio – como, de resto, incorreram também os membros da Sociedade Gastronómica pelo linchamento de Prosit –, mas não<br />

tomaram parte da ceia canibal, nem partilharam <strong>do</strong> espírito ufano em que esta se desenrolara), é sobre eles que recai a ira<br />

daqueles que comeram a carne <strong>do</strong>s concidadãos.


que, se houver tal possibilidade, seja afasta<strong>do</strong> de si esse cálice... No núcleo simbólico de toda a<br />

praxis, um centro ausente – espaço por definição impreenchível, e que podemos designar,<br />

inspira<strong>do</strong>s na astrofísica einsteiniana como a ‘antimatéria’ que habita o coração da matéria –<br />

sustém a gravidade da própria significação, garantin<strong>do</strong> a sua indeterminada continuidade, em<br />

torno dessa concreção negativa. É esta condição de uma ‘negação negociada’ que garante a<br />

perpetuação da nossa relação com o mun<strong>do</strong> (<strong>do</strong>s signos), enquanto contínua renovação de um<br />

contrato de nomeação que se nega, para melhor se consumar.<br />

A interpretação – enquanto acto de uma hermenêutica <strong>do</strong> mesmo – não pode<br />

sobreviver à presença sígnica <strong>do</strong> real, isto é, à presença da alteridade bruta <strong>do</strong> texto enquanto<br />

corpo maciço de significação infinita no contínuo reenvio da referencialidade. A sua existência<br />

fulgura nos interstícios <strong>do</strong> objecto, antes de se extinguir. Todavia, talvez seja mais sensato<br />

considerarmos aqui que ela só lhe pode sobreviver como uma forma de morte – to<strong>do</strong>s os<br />

comensais se sentiram profundamente indispostos, e muitos desmaiaram ao sair da casa de<br />

Prosit. Só nessa forma espectral lhe é possível continuar a durar. Por outras palavras, o gesto<br />

interpretativo não pode emergir senão como um reconhecimento crítico e criativo da falência<br />

da racionalidade – com todas as implicações <strong>do</strong> carácter experimental que isso convoca –, ou<br />

como um esqueleto falante, que será já uma forma de falência <strong>do</strong> próprio texto na leitura (os<br />

escribas medievais recorriam com facúndia a nuances simbólicas <strong>do</strong> termo ‘falecer’<br />

particularmente certeiras para este propósito). O texto, enquanto fenómeno literário e criação<br />

estética, sucumbe na interpretação. Temos, pois, que apenas uma entidade poderá sobreviver<br />

ao encontro fatal entre o leitor e o texto: a coerção <strong>do</strong> processo de significação <strong>do</strong> literário<br />

implica intimamente uma forma de prostração <strong>do</strong> intérprete, o qual, se desejar manter a sua<br />

condição de nomea<strong>do</strong>r, será obriga<strong>do</strong> a apagar ou esquecer-se da presença <strong>do</strong> texto. Uma tal<br />

tese, nesta segunda possibilidade, encontra confirmação nas estratégias de entrincheiramento<br />

<strong>do</strong> gesto interpretativo no esqueleto <strong>do</strong> nomos que é a sua forma de persistência no mun<strong>do</strong>.<br />

3.<br />

À luz destas reflexões, parece-me tornar-se imperativa uma nova condição de validade para<br />

o acto interpretativo. Uma vez reconhecida a sua dimensão contingente e subjectiva, não é<br />

mais possível fazê-lo depender de uma «correspondência» a algo exterior a si mesmo, como se


de uma novíssima metafísica se tratasse, uma entidade sem rosto que, na penumbra, legitima<br />

e sanciona os rasgos generalizantes de leitores-arúspices. Afinal,<br />

The world <strong>do</strong>es not speak. Only we <strong>do</strong>. The world can, once we have programmed<br />

ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for<br />

us to speak. Only other human beings can <strong>do</strong> that. 28<br />

Impõe-se então criar condições de possibilidade para a emergência de um modelo<br />

interpretativo funda<strong>do</strong> nos laços de necessidade que nos atravessam, enquanto leitores,<br />

redescobrin<strong>do</strong> no texto um lugar de encontro de crenças, muito para além de um mostruário<br />

de abstractas fórmulas, estruturas e ossaturas. Assim encarada, a interpretação não se furtará<br />

à responsabilidade de inclusão <strong>do</strong> outro, abrin<strong>do</strong> o espaço <strong>do</strong> Eu à visitação de múltiplas<br />

presenças, numa aventura trágica ou sublime, mas jamais inócua.<br />

Abraçar a dimensão subjectiva da leitura significa, também, assumir o risco <strong>do</strong><br />

conhecimento como ficção, toman<strong>do</strong> a literatura enquanto promessa e anúncio de uma forma<br />

de conhecimento imprevisível, embora iminente. E essa é, a meu ver, a forma mais sensata de<br />

encarar a interpretação: como o detective apanha<strong>do</strong> no seu caso.<br />

Esse detective pode muito bem ser Erik Lönnrot, e conhecemo-lo num conto de<br />

Borges, “A morte e a bússola” 29 .<br />

Um influente rabi, o Tetrarca da Galileia, é assassina<strong>do</strong> num quarto de hotel na noite<br />

de três de Dezembro. Lönnrot e o comissário Treviranus investigam o caso, procuran<strong>do</strong> entre a<br />

simbologia talmúdica a chave para desvendar a identidade <strong>do</strong> assassino. Perto <strong>do</strong> corpo, numa<br />

máquina de escrever, é encontrada uma folha com as palavras: “A primeira letra <strong>do</strong> Nome já<br />

foi articulada”. O segun<strong>do</strong> crime ocorre na noite de três de Janeiro: um criminoso aparece<br />

morto nos subúrbios, e, na parede junto à qual o corpo jaz, sobre os azulejos em losango,<br />

escrita a giz, a frase: “A segunda letra <strong>do</strong> Nome já foi articulada”. O terceiro crime ocorre na<br />

noite de três de Fevereiro. Num bar duvi<strong>do</strong>so, um hóspede é leva<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is arlequins para<br />

uma sala recolhida. Quan<strong>do</strong> sai, embriaga<strong>do</strong> e cambaleante, é leva<strong>do</strong> para o interior de uma<br />

berlinda, de cujo estribo um <strong>do</strong>s arlequins risca nas ardósias da arcada “A última das letras <strong>do</strong><br />

Nome já foi articulada”. No chão da sala para onde o hóspede fora leva<strong>do</strong>, Lönnrot encontra<br />

uma estrela de sangue. Os crimes inspiram uma atmosfera de me<strong>do</strong> na cidade, e até Red<br />

Scharlach, o mais ilustre <strong>do</strong>s pistoleiros <strong>do</strong> Sul, inimigo de longa data de Lönnrot, declarou que<br />

28 Richard RORTY, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008], p. 6.<br />

29 Jorge Luis BORGES, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa, Editorial Teorema, 1998<br />

[1989], pp. 121-135.


no seu distrito jamais aconteceria algo de semelhante, culpan<strong>do</strong> a incompetência <strong>do</strong><br />

comissário da demora na resolução <strong>do</strong>s crimes. O céptico Treviranus recebe, pouco tempo<br />

depois, uma missiva anónima, revelan<strong>do</strong> a configuração geométrica que perfazia a localização<br />

<strong>do</strong>s três lugares de crime, um triângulo “equilátero e místico”, perfeito, que sugeria o fim da<br />

série de assassínios, e que correspondia à equidistância das datas a que ocorreram os crimes.<br />

A explicação satisfaz o comissário, prepara<strong>do</strong> para aceitar uma teoria tão racional (more<br />

geometrico) como esta. Mas Lönnrot estuda a hipótese, lê-a através <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s místicos que<br />

fora recolhen<strong>do</strong>, e acaba por formular uma conclusão própria. Dá o caso por resolvi<strong>do</strong> e, no<br />

dia quatro de Março, dirige-se para fora da cidade, para uma quinta desabitada no Sul.<br />

Enquanto o sol se põe, percorre os salões vazios da casa, onde toda a arquitectura é simétrica,<br />

duplicada. Ao cair da noite, Lönnrot, solitário, é agarra<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is criminosos, enquanto Red<br />

Scharlach, cujo irmão Lönnrot capturara anos antes, confirma a tese que levara o investiga<strong>do</strong>r<br />

àquela casa aban<strong>do</strong>nada. Não se tratava de um triângulo, mas de um losango, e os crimes não<br />

haviam ocorri<strong>do</strong> ao dia três de cada mês, mas a quatro, já que “o dia judeu começa ao<br />

anoitecer e dura até ao seguinte anoitecer”. Scharlach, calmamente, explica a Lönnrot que<br />

to<strong>do</strong>s os crimes haviam si<strong>do</strong> premedita<strong>do</strong>s, e que o crime estava prestes a ser consuma<strong>do</strong>.<br />

“Recuou uns passos. Depois, muito cuida<strong>do</strong>samente, fez fogo.” 30 .<br />

Lönnrot extingue-se na procura <strong>do</strong> seu mistério, mas essa evanescência é apenas a<br />

forma silenciosa e perfeita da sua presença no caso. Lönnrot suspende-se, para poder ser<br />

completamente. A entrega <strong>do</strong> detective ao caso não seria total se ficasse presa a uma suspeita<br />

que o envolvesse. De facto, é o excesso de proximidade ao crime que faz com que a sua<br />

personagem se eclipse durante to<strong>do</strong> o desenrolar <strong>do</strong>s factos, tal como uma janela desaparece<br />

<strong>do</strong> campo de visão de alguém que se poste demasia<strong>do</strong> perto <strong>do</strong> respectivo vidro. Graças a essa<br />

forma de, digamos, leitura absoluta, Lönnrot é o nosso modelo ideal de intérprete: a sua<br />

hermenêutica da diferença redescobre, como defende Reed Way Dasenbrock, a combinação<br />

sibilina de uma criatividade sensível com uma receptividade ilimitada:<br />

If we are members of an interpretative community, the point of reading is to learn, as<br />

least for a moment, not to be. 31<br />

A entrega <strong>do</strong> detective a cada uma das peças que junta e às quais confere senti<strong>do</strong>s<br />

possíveis prefigura uma interpretação da diferença que opera através de uma memória <strong>do</strong><br />

vivi<strong>do</strong>, agencian<strong>do</strong> uma subjectividade enquanto experiência, e não (como poderia levar a crer<br />

30 Idem, p. 135.<br />

31 Reed Way DASENBROCK, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan. 1991), Urbana (Illinois),<br />

National Council of Teachers of English, p. 17.


a postulação de Stanley Fish), como opacidade. É na medida em que Lönnrot toma a palavra<br />

<strong>do</strong> outro em toda a extensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s possíveis que ele pode, finalmente, aliar a crença à<br />

interpretação, oferecen<strong>do</strong> o corpo <strong>do</strong> seu pensamento à actuação produtiva de senti<strong>do</strong>s<br />

outros: para descodificar a série de crimes, ele deve concordar com o modelo de racionalidade<br />

requeri<strong>do</strong> pelas pistas recolhidas, isto é, ele deve a<strong>do</strong>ptar como válidas as premissas que visa<br />

compreender, certo de que apenas essa forma de solidariedade o poderá conduzir à verdade<br />

que outros construíram para si. Nesse pressuposto, Lönnrot dá corpo ao “leitor radical” que<br />

Donald Davidson encontra ao procurar pensar uma condição interpretativa universalmente<br />

válida, capaz de dar conta de qualquer afirmação, sem reservas contextuais. Um tal intérprete<br />

encontra-se em situação de plena receptividade, já que não acolhe o texto com os<br />

instrumentos cirúrgicos de um “manual de instruções”, mas com a ilimitada compreensão de<br />

uma partilha da crença como condição para o estabelecimento de uma plataforma de verdade:<br />

Since knowledge of beliefs comes only with the ability to interpret words, the only<br />

possibility at the start is to assume general agreement on beliefs. 32<br />

O que há de precioso em Lönnrot é ele fornecer-nos uma razão para continuarmos a ler:<br />

cada vez mais e melhor, nessa procura incessante da qual não poderemos sair ilesos, porque,<br />

mais <strong>do</strong> que abstractas estruturas, ensinar-nos-á algo sobre a vida, ou, pelo menos, sobre a<br />

memória dela.<br />

32 Donald DAVIDSON, «On the Very Idea of a Conceptual Scheme” (1974), in Inquiries into Truth and Interpretation, Oxford, Oxford<br />

University Press, 2009 [2001], p. 196.


Referências bibliográficas<br />

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Portugal/Temas e Debates, 2003.<br />

BORGES, Jorge Luis, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa,<br />

Editorial Teorema, 1998 [1989].<br />

DASENBROCK, Reed Way, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan.<br />

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FISH, Stanley, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities,<br />

Cambridge/Lon<strong>do</strong>n, Harvard University Press, 1980.<br />

--------- “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of<br />

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HABERMAS, Jürgen, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70,<br />

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RICOEUR, Paul, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000.<br />

RORTY, Richard, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008].<br />

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WITTGENSTEIN, Ludwig, Trata<strong>do</strong> Lógico-Filosófico segui<strong>do</strong> de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação<br />

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