Mulheres_na_Antiguidade
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MULHERES NA ANTIGUIDADE -NEA/UERJ<br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS<br />
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA<br />
NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE<br />
<strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong><br />
Novas Perspectivas e Abordagens<br />
Rio de Janeiro<br />
NEA/UERJ<br />
2012
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Copyright©2012: todos os direitos desta edição estão reservados ao Núcleo de<br />
Estudos da <strong>Antiguidade</strong> – NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,<br />
2012.<br />
Capa: Junio César Rodrigues<br />
Imagem da Capa: Oinochoe: chous (jug). Attributed to the Meidias Painter.<br />
Metropolitan Museum. Terracotta Period: Classical Date: ca. 420–410 B.C.<br />
Culture: Greek, Attic<br />
Medium: Terracotta Dimensions: H. 8 7/16 in. (21.4 cm) diameter 7 1/16 in.<br />
(17.9 cm) Classification: Vases Credit Line: Gift of Samuel G. Ward, 1875<br />
Accession Number: 75.2.11 This artwork is currently on display in Gallery 159<br />
Editoração eletrônica: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim<br />
de Assumpção<br />
Esta produção é uma reformulação e ampliação do projeto Mulher <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong>, o qual foi iniciado em 2006, pelo Núcleo de Estudos da<br />
<strong>Antiguidade</strong>.<br />
Impressão: Gráfica e Editora Rio-DG ltda. Rua Vaz Toledo, 536 - Engenho<br />
Novo - Rio de Janeiro – RJ.<br />
CATALOGAÇÃO NA FONTE<br />
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA<br />
M956 CANDIDO, Maria Regi<strong>na</strong> [org.] <strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong>: Novas<br />
Perspectivas e Abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora-<br />
DG ltda, 2012. 368 p.<br />
ISBN: 978-85-60538-08-9<br />
Palavras Chaves:<br />
1. <strong>Mulheres</strong> – História. 2. Civilização antiga - <strong>Mulheres</strong>. I. Candido, Maria<br />
Regi<strong>na</strong><br />
Núcleo de Estudos de <strong>Antiguidade</strong><br />
Site: www.nea.uerj.br / e-mail: nea.uerj@gmail.com<br />
Tel: (021) 2334-0227<br />
2
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro<br />
Vice-reitor: Christi<strong>na</strong> Maioli<br />
Extensão e cultura: Nádia Pimenta Lima<br />
Instituto de Filosofia e Ciências Huma<strong>na</strong>s<br />
Dirce Eleonora Rodrigues Solis<br />
Departamento de História<br />
Maria Theresa Toríbio<br />
Paulo Seda<br />
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UERJ)<br />
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira<br />
Conselho Editorial<br />
Alexandre Carneiro (Universidade Federal Fluminense)<br />
Carmen Isabel Leal Soares (Universidade de Coimbra)<br />
Claudia Beltrão da Rosa (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)<br />
Daniel Ogden (University of Exeter)<br />
Maria do Carmo Parente Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)<br />
Maria Regi<strong>na</strong> Candido (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)<br />
Margaret M. Bakos (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)<br />
Vicente Dobroruka(Universidade de Brasília)<br />
Assessoria Executiva<br />
Alair Figueiredo Duarte<br />
Carlos Eduardo da Costa Campos<br />
José Roberto de Paiva Gomes<br />
Junio Cesar Rodrigues Lima<br />
Luis Filipe Bantim de Assumpção<br />
Tricia Magalhães Carnevale<br />
3
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
4
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Sumário<br />
07 PREFÁCIO<br />
Prof.ª Dr.ª Maria Regi<strong>na</strong> Candido<br />
09 A “DAMA” DE VIX: PODER E PRESTÍGIO DA MULHER<br />
CELTA?<br />
Prof.ª Dr.ª Adriene Baron Tacla<br />
26 CASSANDRA: DE PROFETISA À CONCUBINA<br />
Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima<br />
34 EL FANTASMA DE LA REINA ASIRIA<br />
Prof.ª Drª. A<strong>na</strong> María Vázquez Hoys<br />
49 HELENA DE TRÓIA E HELENA DO EGITO<br />
Prof.ª Dr.ª A<strong>na</strong> Teresa Marques Gonçalves & Prof.ª Ms.ª Tatielly<br />
Fer<strong>na</strong>ndes Silva<br />
63 MAGNA MATER, CLAUDIA QUINTA, CLAUDIA<br />
METELLI (CLODIA): A CONSTRUÇÃO DE UM MITO NO<br />
PRINCIPADO AUGUSTANO<br />
Prof.ª Dr.ª Claudia Beltrão da Rosa<br />
94 MEDEIA, SENHORA DAS SERPENTES E DRAGÕES<br />
Prof. Dr. Daniel Ogden<br />
123 INTERAÇÕES PESSOAIS E VALORES MORAIS EM<br />
TÁCITO: UM ESTUDO DE ALGUMAS PERSONAGENS<br />
FEMININAS<br />
Prof. Dr. Fábio Faversani & Prof.ª Ms.ª Sarah F. L. Azevedo<br />
138 A HARPA E A HARPISTA EM ATENAS NO FINAL V<br />
SÉCULO. ENTRE A ESPOSA BEM-NASCIDA E A CORTESÃ.<br />
REGISTROS LITERÁRIOS E ICONOGRÁFICOS EM<br />
DESCOMPASSO?<br />
Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira<br />
157 AS MÚLTIPLAS SENSIBILIDADES DO FEMININO NA<br />
LITERATURA EGÍPCIA DO REINO NOVO<br />
(C. 1550-1070 A.C.)<br />
Prof. Mestrando Gregory da Silva Balthazar & Prof.ª Doutoranda Liliane<br />
Cristi<strong>na</strong> Coelho<br />
175 MULHER E RELIGIÃO: O MITO DE LILITH<br />
Prof.ª Dr.ª Jane Bichmacher de Glasman<br />
5
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
190 SENHORA DA CASA, DIVINDADE E FARAÓ AS VÁRIAS<br />
IMAGENS DA MULHER DO ANTIGO EGITO<br />
Prof. Dr. Julio Gralha<br />
203 MASCULINO E FEMININO NA SOCIEDADE ROMANA:<br />
OS DESAFIOS DE UMA ANÁLISE DE GÊNERO<br />
Prof.ª Dr.ª Lourdes Conde Feitosa<br />
219 ARTEMISA: LAS DELICIAS DE LOS MÁRGENES.<br />
MISMIDAD Y OTREDAD EN EL ROSTRO DE LA DIOSA<br />
Prof.ª Dr.ª María Cecilia Colombani<br />
237 MULHERES EM TEMPO DE GUERRA - A HÉCUBA DE<br />
EURÍPIDES<br />
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Souza e Silva<br />
251 A MULHER NO MUNDO MUÇULMANO<br />
Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo Parente Santos<br />
266 REFLETINDO SOBRE AS POSSIBILIDADES DA<br />
ARQUEOLOGIA DE GÊNERO<br />
Prof.ª Dr.ª Maria Regi<strong>na</strong> Candido<br />
277 RADEGUNDA POR BAUDONÍVIA, ALGUMAS<br />
CONSIDERAÇÕES<br />
Prof.ª Ms. Miriam Lourdes Impellizieri Siva<br />
292 A DIFERENÇA ENTRE A MULHER DOMÉSTICA E A<br />
SELVAGEM: MENADISMO NAS BACAS DE EURÍPIDES<br />
Prof.ª Dr.ª Pauli<strong>na</strong> Nólibos<br />
296 IDENTIDADES, RELAÇÕES DE GÊNERO E<br />
CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS AS REPRESENTAÇÕES DAS<br />
MULHERES CELTAS NOS TEXTOS GREGOS E LATINOS<br />
Prof. Mestrando Pedro Vieira da Silva Peixoto<br />
306 MULHER E CASAMENTO EM ROMA:<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE A MATRONA PUDENTILA<br />
Prof.ª Doutoranda Semíramis Corsi Silva<br />
346 SEXUALIDADE E COMPULSÃO PROFÉTICA NOS<br />
ORÁCULOS SIBILINOS<br />
Prof. Dr. Vicente Dobroruka<br />
358 LA MUJER CIUDADANA EN LA ATENAS DE PLATÓN<br />
Prof. Dr. Víctor Hugo Méndez Aguirre<br />
6
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
PREFÁCIO<br />
7<br />
Prof.ª Dr.ª Maria Regi<strong>na</strong> Candido 1<br />
A leitura das pági<strong>na</strong>s que se seguem nos revela que os estudos<br />
sobre as <strong>Mulheres</strong> no Mundo Antigo permanecem como tema de acentuado<br />
interesse <strong>na</strong> atualidade. Tais investigações históricas sobre as<br />
especificidades das mulheres <strong>na</strong> sociedade alinham-se com o processo de<br />
transformação historiográfico, o qual passou a privilegiar os aspectos<br />
singulares das ações sociais dos indivíduos, ao longo da segunda metade<br />
do XX. Em virtude do que fora exposto pontuamos a necessidade de<br />
problematizarmos - no meio científico atual - como as <strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong>, participavam da vida social e da esfera política <strong>na</strong> sociedade<br />
ao qual estavam inseridas, tanto nos meio formais e/ou informais de<br />
atuação. Nos capítulos contidos nesta coletânea verificamos<br />
questio<strong>na</strong>mentos sobre como a estratificação social pode ser pensada<br />
como um fator determi<strong>na</strong>nte para a definição dos status sociais das<br />
mulheres, assim como reflexões referentes às suas liberdades de ação, as<br />
suas dependências a figura masculi<strong>na</strong> e os seus possíveis lugares de fala<br />
junto à sociedade? Outra questão pertinente é sobre o espaço de ação<br />
das profetisas e quais as características ou desígnios das deusas que se<br />
encontravam presentes no imaginário social das sociedades <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong>?<br />
As respostas a estas questões estão bem dispersas neste livro As<br />
<strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong> que, diante da diversidade de região, cultura e<br />
1 Maria Regi<strong>na</strong> Candido é Professora Associada de História Antiga, <strong>na</strong><br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua <strong>na</strong> Coorde<strong>na</strong>ção do Núcleo de<br />
Estudos da <strong>Antiguidade</strong>/NEA. Professora dos Programas de Pós-Graduação<br />
PPGH/UERJ e PPGHC/UFRJ. Integra a coorde<strong>na</strong>ção do Curso de<br />
Especialização de História Antiga e Medieval / CEHAM. Diretora do conselho<br />
editorial dos periódicos NEARCO e Philia – NEA/UERJ.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
período nos apontam as especificidade de atuação e perfomance das<br />
mulheres, como objeto de pesquisa histórica. Sendo assim devemos<br />
romper com os modelos homogeneizantes de mulher, por exemplo, a<br />
mulher grega que é considerada pelo campo historiográfico como uma<br />
eter<strong>na</strong> menor devido a sua dependência a figura masculi<strong>na</strong> como o pai<br />
quando adolescente, subordi<strong>na</strong>da ao marido quando se casa e sujeita ao<br />
filho quando fica viúva. Diante de tal situação, podemos afirmar que o<br />
modelo mélissa de mulher grega, deve ser repensado de acordo com o<br />
período histórico e a região estudada.<br />
Nosso objetivo é o de lançar novos debates sobre as <strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong>, renovando as visões da historiografia tradicio<strong>na</strong>l que atribui<br />
a estas uma atuação limitada ao papel de mãe e esposa. A Arqueologia de<br />
Gênero, por exemplo, propõem uma olhar alter<strong>na</strong>tivo que confere<br />
visibilidade às ações femini<strong>na</strong>s, afastando-se do padrão tradicio<strong>na</strong>l. A<br />
referida vertente busca estabelecer o lugar social das mulheres em suas<br />
atividades cotidia<strong>na</strong>s, quer seja como parceiras dos homens ou mediante<br />
estudos que frisem as funções ativas que ocupavam em prol da<br />
manutenção das comunidades as quais estavam inseridas.<br />
Nesse sentido, <strong>na</strong> atual conjuntura do século XXI temos a<br />
necessidade de inovar, <strong>na</strong> historiografia brasileira, as abordagens que<br />
contemplem o tema, devido a sua escassez. Imbuídos dessa perspectiva<br />
parabenizamos e agradecemos aos pesquisadores pioneiros e atuantes, os<br />
quais aceitaram o desafio de revisar e produzir novas reflexões sobre a<br />
diversidade de condições sociais das mulheres em diferentes sociedades e<br />
temporalidades.<br />
A Equipe NEA/UERJ agradece a todos pela colaboração.<br />
8
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A “DAMA” DE VIX: PODER E PRESTÍGIO DA<br />
MULHER CELTA?<br />
Prof.ª Dr.ª Adriene Baron Tacla 2<br />
Muitas autoras feministas têm se voltado para o estudo da posição<br />
social da mulher, do poder 3 e das relações de gênero <strong>na</strong>s sociedades<br />
celtas considerando que a mulher encontrada nos mitos e lendas célticos<br />
registrados <strong>na</strong> Irlanda e em Gales durante a Idade Média representaria a<br />
Mulher Celta, evidenciando sua vivência em sociedade (cf.<br />
EHRENBERG, 1989: 22-23; GREEN, 1995: 15). A partir desses mitos,<br />
inferem elas a existência de um destacado papel da mulher em todas as<br />
sociedades celtas, desde a Antigüidade até a Idade Média, muitas vezes<br />
supondo, inclusive, a existência de um ―matriarcado origi<strong>na</strong>l‖.<br />
Em verdade, esquecem-se essas autoras que a mulher celta<br />
presente nos mitos não é, de forma alguma, aquela que vive em<br />
sociedade. Ao contrário, tais mitos falam-nos das deusas celtas,<br />
apontando-nos sua ligação com a <strong>na</strong>tureza, a fertilidade e a soberania, a<br />
vida e a proteção da comunidade. Logo, não se tratam de relatos que<br />
constituam indícios da participação e do poder políticos das mulheres<br />
celtas ou mesmo de seu status e prestígio social, porquanto não há<br />
equivalência possível ente o status de uma deusa e aquele de uma mulher<br />
inserida <strong>na</strong> sociedade; são esferas distintas, que não se confundem – o<br />
mundo dos deuses e o dos humanos. Tampouco podemos considerar<br />
que qualquer um desses mundos seja o ―reflexo‖ do outro, ou que um<br />
2 Professora Adjunta do Departamento de História, da Universidade Federal do<br />
Fluminense e Coorde<strong>na</strong>dora do NEREIDA/UFF. O estudo de caso aqui<br />
apresentado está relacio<strong>na</strong>do com nossa dissertação de mestrado, Diplomacia e<br />
Hospitalidade – um estudo dos contatos entre Massalía e as tribos de Vix e Hochdorf,<br />
defendida em Março de 2001, <strong>na</strong> Universidade Federal do Rio de<br />
Janeiro/Programa de Pós-graduação em História Social, sob orientação da<br />
Profa. Titular Dra. Neyde Theml e fi<strong>na</strong>nciada pela CAPES. Essa é uma versão<br />
revista do mesmo trabalho origi<strong>na</strong>lmente publicado em 2001.<br />
3 Utilizaremos, em ao longo deste trabalho, o conceito de ―poder‖ segundo<br />
Gellner (1995: 105), que o define como a possibilidade de ação presa a posições<br />
sociais especiais e que pode estar relacio<strong>na</strong>do ao controle da produção e da<br />
sociedade (meios de coerção) e à distribuição da riqueza.<br />
9
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
deles venha a ―espelhar‖ características e/ou aspectos do outro (GREEN,<br />
1995: 15).<br />
Se desejamos ir em busca da mulher celta, é preciso que nos<br />
voltemos para outra sorte de documentos, que nos permitam a<strong>na</strong>lisar a<br />
posição social dessa mulher, sua participação política <strong>na</strong> sociedade, as<br />
relações de gênero. Devemos, então, nos voltar para os relatos dos<br />
autores antigos e a cultura material.<br />
Helenos e romanos, ao descreverem em seus relatos as<br />
sociedades celtas e seus costumes, nos apresentam mulheres<br />
profundamente diferentes das helênicas ou roma<strong>na</strong>s, porque bárbara 4.<br />
Destacam eles seu caráter e bravura, seu vigor, independência e poder <strong>na</strong><br />
sociedade, evidenciando sua estranheza ante a relativa liberdade e<br />
individualidade das mulheres celtas (RANKIN, 1989: 245, 251),<br />
porquanto não somente tinham elas direito à posse bens de prestígio –<br />
tais como gado, cavalos, jóias, vasos de cerâmica ou metal, que seriam<br />
por elas geridos e, muitas vezes, eram com elas sepultados (vide o caso<br />
da chamada ―dama de Vix‖ que a<strong>na</strong>lisaremos a seguir), mas, sobretudo,<br />
porque poderiam elas exercer o poder, liderar combates (tal como<br />
Boudica que, segundo os relatos de Tácito e Dião Cássio, liderou a<br />
resistência dos icenosà conquista roma<strong>na</strong> <strong>na</strong>s Ilhas Britânicas), ser<br />
sacerdotisas ou chefes.<br />
No entanto, isso não significa que houvesse uma igualdade ple<strong>na</strong><br />
entre os sexos, que não houvesse grandes contrastes entre a posição de<br />
uma chefe e aquela das demais mulheres no seio da sociedade. Tais<br />
relatos, assim como a documentação arqueológica nos permitem afirmar<br />
que não era vetado às mulheres o acesso à chefia, havendo uma efetiva<br />
participação delas <strong>na</strong> política das comunidades, bem como em diversos<br />
âmbitos da vida social – trabalhando <strong>na</strong>s fazendas, participando de<br />
banquetes e festas, sendo sacerdotisas, profetizas ou feiticeiras.<br />
4 Para a discussão da mulher celta como exemplo de barbarismo <strong>na</strong> etnografia<br />
greco-lati<strong>na</strong>, vide SAAVEDRA, T. Women as focalizers of barbarism in<br />
conquest texts. Classical Views, XLIII, n.s. 18, 1999, 59-77; SAÏD, S. Usages de<br />
femmes et sauvagerie dans l‘ethnographie grecque d‘Herodote a Diodore et<br />
Strabon. In: La femme dans Le monde mediterranéen – Antiguité I. Paris: CNRS, 1985,<br />
137-150.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
As evidências arqueológicas, principalmente dos enterramentos,<br />
indicam, que, no primeiro milênio a.C., mais conhecido como a Idade do<br />
Ferro dessas sociedades, havia mulheres celtas que possuíam status e<br />
prestígio singulares, sendo enterradas com grandes cerimônias com a<br />
presença de toda a comunidade e aliados, ofertados vários presentes e<br />
erigidos monumentos funerários ricamente mobiliados,tal como as<br />
tumbas das damas de Vix (<strong>na</strong> Borgonha, leste da França), de<br />
Hohmichele e Reinheim (no Baden-Württemberg, sudoeste da<br />
Alemanha). Na maior parte dos casos, encontramos esqueletos<br />
femininos em tumbas de agregação, onde temos o casal enterradoem<br />
conjunto. Porém, poucos são os casos que encontramos de mulheres<br />
que vierama ser enterradas sós e a ocupar posições de chefia.<br />
Arnold (1995) conclui que a raridade desses casos aponta-nos<br />
não o poder da mulher <strong>na</strong>s sociedades celtasem geral, mas sim casos<br />
isolados demulheres com alto status e prestígio. Tal poderia, como<br />
explica ela, levar à interpretação dessas mulheres como ―honorary males”,<br />
isto é, mulheres que em vida teriam exercido atribuições tidas como<br />
masculi<strong>na</strong>s e que nos enterramentos seriam identificadas por um<br />
mobiliário supostamente masculino, a exemplo do torc e do serviço de<br />
banquete; contudo, e ao contrário do que pensava Jacobsthal (1934<br />
apud. WITT, 1996), tais itens não eram de uso exclusivo masculino, não<br />
sendo, pois, marcadores de gênero e sim de status.<br />
Nesse sentido, importante se faz destacar que não havia<br />
diferenças de gênero nos enterramentos, isto é, formas específicas de<br />
sepultamento para homens e mulheres, havendo em todas elas um<br />
mobiliário funerário que marcava o status do morto, identificando-o ante<br />
a sociedade, sem que com isso houvesse uma distinção hierárquica entre<br />
homens e mulheres. Com efeito, somente não foram encontrados em<br />
tumbas femini<strong>na</strong>s instrumentos de caça e dois símbolos 5 de status – o<br />
punhal e o chapéu, sempre associados à figura masculi<strong>na</strong> e, que, para<br />
alguns, poderia até mesmo indicar uma divisão sexual do trabalho e da<br />
5 Segundo Richards (1992: 131,133), constituem os símbolos uma forma de<br />
comunicação e instrumentos de entendimento e construção do mundo, uma<br />
linguagem capaz de definir e delimitar o status e o prestígio <strong>na</strong> economia política<br />
das tribos celtas.<br />
11
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
produção em virtude da deposição de instrumentos de caça <strong>na</strong>s tumbas<br />
masculi<strong>na</strong>s.<br />
Não desejamos, contudo, aqui discutir as relações de gênero, as<br />
atividades produtivas, a divisão dos ofícios ou os ―papéis‖<br />
desempenhados pelas mulheres celtas <strong>na</strong> Antigüidade. Propomo-nos, ao<br />
invés, a nos debruçarmos sobre o caso de uma mulher, a chamada ―dama<br />
de Vix‖.<br />
O caso de Vix<br />
Encontrada <strong>na</strong> localidade de Vix,aos pés do assentamento<br />
fortificado de Mont Lassois, às margens do Se<strong>na</strong>, no norte da Cote-d‘Or,<br />
<strong>na</strong> Borgonha (França) em 1953 por René Joffroy, a tumba de Vix<br />
revelou um dos enterramentos mais ricos e melhor preservados da Idade<br />
do Ferro <strong>na</strong> Europa Centro-Ocidental.Essa tumba, que fora datadado<br />
fi<strong>na</strong>l do período de Hallstatt D3 e início do período lateniano (LT A),<br />
constitui um dos mais famosos achados da época hallstattia<strong>na</strong>.<br />
Na câmara central dessa tumba em montículo foi encontrado o<br />
esqueleto de uma mulher de aproximadamente 35-40 anos de idade,<br />
ador<strong>na</strong>do com uma gargantilha (torc) de ouro, e diversas jóias entre<br />
colares, braceletes, tornozeleiras e fíbulas. Tinha ela um chicote <strong>na</strong> mão<br />
esquerda e uma argola grande em bronze depositada sobre o abdômen.<br />
O corpo estava deitado sobre um carro de quatro rodas (desmontado<br />
para o sepultamento) disposto com orientação norte-sul. Como vemos<br />
<strong>na</strong> figura abaixo, no lado esquerdo da câmara, encontrava-se o chamado<br />
―serviço de banquete‖, composto de uma cratera de bronze laconia<strong>na</strong>, um<br />
kýlix ático com figuras negras, um kýlixcom verniz negro, uma oenochóe<br />
de bronze etrusca, três vasilhas de bronze etruscas (duas com alças e<br />
uma grande com omphalós), e uma taça (―phiále‖) de prata.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Planta da tumba da chefe de Vix. Fonte: Joffroy, 1958, prancha IV.<br />
Entendemos que esta era a tumba da chefe de Vix, posto que não<br />
há em toda essa região uma tumba masculi<strong>na</strong> que seja comparável a esta,<br />
quer com relação ao tamanho, quer quanto à riqueza do mobiliário<br />
funerário; donde, por ser a única tumba desta região que se enquadra <strong>na</strong><br />
categoria de tumbas de chefes, consideramos que a mulher nela<br />
sepultada fosse a chefe de Vix durante o fi<strong>na</strong>l da segunda metade do<br />
século VI a.C e início do século V a.C..Foi ela desde suas primeiras<br />
análises interpretada como uma chefe/ ―princesa‖, mas foi igualmente<br />
acalentada sua condição de sacerdotisa.Nessa linha interpretativa,<br />
seguem também, mais recentemente, os estudos de Knüsel (2002) e<br />
Milcent (In: ROLLEY, 2003).<br />
Knüsel entende ser a dama de Vix uma sacerdotisa, tendo seu<br />
status singular marcado tanto pelo depósito de objetos diacríticos (carro,<br />
torc e serviço de banquete) e rituais (―phiále‖ em prata, chicote e argola<br />
13
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
em bronze) <strong>na</strong> tumba quanto por características físicas (seu tamanho<br />
diminuto, ao defeito <strong>na</strong> per<strong>na</strong> que provocaria andar claudicante, e à<br />
cabeça torcida, pendendo para a direita). Essa singularidade física<br />
constituiria a marca do sobre<strong>na</strong>tural no próprio corpo da dama de Vix.<br />
Já os depósitos <strong>na</strong> tumba, seriam não somente bens de grande prestígio<br />
social, mas também artigos de uso cerimonial. De modo semelhante,<br />
Milcent (In: ROLLEY, 2003: 325-326, 344)sugere ser ela uma ―rainhasacerdotisa‖,<br />
isto é, uma ―alta sacerdotisa‖ que proviria da família do<br />
chefe/gover<strong>na</strong>nte, tendo por base o caráter religioso da phiále, da cratera,<br />
do torc e do carro.<br />
O estudo do mobiliário das tumbas é preciso ser feito com<br />
cuidado e cautela, posto que se por um lado a premissa de insígnias de<br />
status e ofício é pertinente, por outro nem todos os objetos depositados<br />
<strong>na</strong>s tumbas eram pertences dos mortos. Seguindo essa linha de<br />
raciocínio, argumentaremos em favor da questão de seu poder e do<br />
prestígio, apontando suas relações políticas com outras chefias celtas e<br />
com Massalía, uma colônia helênica fundada em 600 a.C..<br />
Ofertas de Prestígio<br />
Nas sociedades hallstattia<strong>na</strong>s, o poder, o status e o prestígio eram<br />
construídos pelas relações pessoais constituídas por meio da oferta de<br />
presentes em banquetes e funerais; em verdade, a própria hierarquia<br />
social era estabelecida a partir dessas relações, definindo-se <strong>na</strong> distância<br />
social entre os chefes indíge<strong>na</strong>s, seus aliados e o restante da população<br />
nesses rituais 6 públicos. A análise dos usos e empregos desses presentes<br />
em cada um desses rituais nos permite enveredar pelo significado de tais<br />
relações <strong>na</strong> economia política das sociedades em questão, pois que a<br />
circulação, os usos e o consumo de bens de grande densidade simbólica 7<br />
6 Os rituais são seqüências de ações praticadas de forma a serem marcadas<br />
simbolicamente, distinguindo-se das ações cotidia<strong>na</strong>s. Aqui, interpretamos os<br />
rituais, segundo Gellner (1997), como vias de construção de identidade, de<br />
ratificação de status de um indivíduo ou grupo social e de reprodução das<br />
relações de poder.<br />
7 Weiner (1994: 394) define ―densidade simbólica‖ como o valor simbólico<br />
atribuído aos objetos <strong>na</strong>s relações sociais. Esses bens, quando expostos nos<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
encontram-se diretamente relacio<strong>na</strong>dos à construção das redes de<br />
relações pessoais, e em especial, no caso que ora estudamos, à prática da<br />
diplomacia pelos chefes hallstattianos.<br />
O banquete e a hospitalidade eram, ao mesmo tempo, um meio<br />
de criar alianças políticas com estrangeiros/hóspedes e de ratificar a<br />
desigualdade social, marcando o status e o prestígio de todos quantos dele<br />
participavam. Com efeito, a análise dos artefatos depositados <strong>na</strong> tumba<br />
da chefe de Vix – mormente do serviço de banquete– nos aponta as<br />
estratégias de seus aliados e dos integrantes de sua linhagem para a<br />
demarcação de seu prestígio, a ratificação e o reconhecimento de laços<br />
pessoais com a chefe e a continuidade de alianças políticas entre as<br />
linhagens 8 e intertribais.<br />
A deposição de um serviço de banquete nesta tumba, ao<br />
contrário do que pressupõe Miranda Green (1997: 68-69), não<br />
representaria traços de um banquete funerário, nem tampouco<br />
constituiria uma evidência da existência, <strong>na</strong> primeira Idade do Ferro, da<br />
crença céltica do ―banquete do Outro Mundo‖ 9 (onde o grupo, a família ou a<br />
linhagem procuraria prover as necessidades do morto no Outro Mundo),<br />
freqüentemente encontrada nos mitos irlandeses. Em se tratando de<br />
depósitos intencio<strong>na</strong>is, a disposição de tais artefatos em um contexto<br />
funerário segue regras mortuárias e de construção de monumentos<br />
funerários de chefes/líderes, denotando a preocupação de sua linhagem<br />
e aliados com a demonstração de sua relação com a chefe morta.<br />
Ante a remoção de um dos integrantes da rede de relações<br />
sociais, tor<strong>na</strong>va-se necessário reorganizar, por meio dos ritos funerários,<br />
banquetes ou reunidos no mobiliário da tumba do chefe, portavam uma<br />
mensagem reconhecida do valor do chefe.<br />
8 Podemos entender que entre os celtas da Idade do Ferro o parentesco era<br />
bilateral, isto é, cog<strong>na</strong>to – as mulheres nunca se desvinculavam de seu grupo de<br />
parentesco, não havendo, porém, um sistema estável de alianças de casamento<br />
(cf. GOSDEN, 1985).<br />
9 Devemos destacar que, segundo Wait (1995: 490), nos mitos célticos, não fica<br />
claro se o Outro Mundo é ape<strong>na</strong>s onde vivem os deuses ou se também inclui<br />
lugares onde habitem os mortos. Miranda Green (1997: 68) considera, porém,<br />
que este Outro Mundo seja o mundo dos deuses e dos mortos, e que seria similar<br />
ao mundo dos vivos, mas sem que houvesse doenças, envelhecimento ou ruí<strong>na</strong>.<br />
15
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
toda a teia de relações pessoais entre os líderes das linhagens, assim<br />
como as alianças intertribais, construindo o lugar social do morto e<br />
delimitando a posição de cada um de seus aliados (cf. DRISCOLL, 1988:<br />
227-228). Honrando o chefe morto com a deposição de bens de grande<br />
densidade simbólica, que evidenciassem seu status e prestígio e, da<br />
mesma forma, simbolizassem o vínculo pessoal, a relação/aliança que<br />
com ele possuíam seus aliados e descendentes do chefe e de seu grupo<br />
de parentesco. Construíam, dessa forma, seu próprio status ante a<br />
comunidade e a rede de aliados, possibilitando a continuidade das<br />
relações com a linhagem do morto e seu sucessor <strong>na</strong> chefia.<br />
No caso desta tumba de Vix, o serviço de banquete nela<br />
depositado não era formado por artefatos produzidos especialmente para<br />
os funerais da chefe e sim por bens da própria chefe e prestações 10<br />
funerárias ofertadas por seus aliados políticos. Esse serviço de banquete<br />
era composto de importações, dentre as quais destaca-se a cratera<br />
lacônia 11. Ao contrário do que considera a maioria dos arqueólogos, a<br />
nosso ver essa cratera não pode ser considerada como parte do serviço<br />
de banquete, pois suas proporções não condizem com as de um utensílio<br />
de banquete 12. Por outro lado, é ela de fato um objeto de ostentação e<br />
corresponde ao tipoclássico de presente diplomático 13.<br />
10 ― Prestação é tudo aquilo que é dado, ofertado – presentes, oferendas, pagamentos, etc.‖<br />
(KING, 2004, p.217). Trabalharemos, aqui, com somente uma dessas categorias<br />
de prestações: os presentes.<br />
11 Essa cratera, do tipo com asas em ―volutas‖, é um dos exemplares mais<br />
excepcio<strong>na</strong>is de toda a Antigüidade segundo os arqueólogos (cf. JOFFROY,<br />
1979), nunca tendo sido encontrada outra equivalente a suas proporções (1,64<br />
m de altura, 208 Kg). Possui ela decoração <strong>na</strong>s asas, ao redor do pescoço e <strong>na</strong><br />
tampa/coador.<br />
12 Não há como utilizar uma cratera deste tamanho – que precisaria ser<br />
transportada com o auxílio de vários homens e fora transportada desmontada<br />
em companhia de um ferreiro, que a remontou em Vix (JOFFROY, 1979) –<br />
para misturar vinho ou, mesmo, para conter hidromel. Além disso, não<br />
podemos assumir que todas as crateras fossem usadas pelos celtas hallstattianos<br />
tal qual entre os helenos.<br />
13 Podemos encontrar tanto <strong>na</strong> Odisséia (cf. SCHEID-TISSINIER, 1994: 167),<br />
quanto em outras situações de contatos com populações bárbaras, como no<br />
16
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Entendemos, pois, que tal cratera consistia em uma prestação<br />
funerária (ofertada provavelmente pelos massaliotas), para ser exposta<br />
no enterramento da chefe, ficando marcado seu prestígio e a aliança que<br />
os unia. Em verdade, não se tratava ape<strong>na</strong>s de ostentar essa aliança ante<br />
a comunidade e demais aliados desta chefe, como também de<br />
demonstrar que se honrava a chefe morta, ofertando-se para o seu<br />
enterramento um presente de grande densidade simbólica em metal, que<br />
reforçaria seu prestígio, e indicava que se desejaria dar continuidade a<br />
esse contato, vindo-se a estabelecer outros laços com quem a sucedesse<br />
<strong>na</strong> chefia. Exaltava-se, porém, com esta prestação o poder e o prestígio<br />
desta chefe, sua força política, ―renome‖ e distinção. A imagem contida<br />
no friso do pescoço 14 desta craterafaz alusão ao valor guerreiro, um dos<br />
fatores de identificação do gosto dos bárbaroi aos olhos dos helenos, e,<br />
assim como a estatueta de uma mulher 15 sobre a tampa da cratera, à<br />
posição privilegiada desta mulher.<br />
caso das colônias helênicas no Mar Negro e suas relações com reis trácios e citas<br />
(cf. TSETSKHLADZE, 1998a; 1998b), crateras confeccio<strong>na</strong>das em metais<br />
preciosos ofertados como presentes diplomáticos para líderes bárbaros.<br />
14 O pescoço é or<strong>na</strong>do por um friso composto de vinte e dois relevos maciços<br />
de aplique, fixados com rebites sobre o vaso. Um lado do pescoço porta doze<br />
imagens, enquanto o outro somente possui onze. A imagem deste friso é<br />
composta por sete hóplitas e oito carros, cada qual puxado por uma parelha de<br />
quatro cavalos. A ce<strong>na</strong> se desenvolve da esquerda para a direita com cada um<br />
dos carros sendo conduzido por um auriga e estando separado do carro seguinte<br />
por um hóplita. Os cavalos são vistos de perfil e só aquele que está mais<br />
próximo da mão direita do condutor é representado por inteiro; dos demais só<br />
podemos divisar algumas partes. Os hóplitas seguiam, em verdade, à frente dos<br />
carros, portando sobre a face um elmo coríntio, tendo o busto protegido por<br />
uma couraça que lhes molda o peito e as per<strong>na</strong>s cobertas por cnémides; estando o<br />
guerreiro nu entre o fim da couraça e os joelhos. No braço esquerdo, portam<br />
eles um escudo redondo e deveriam ter uma lança que se lhes encaixaria <strong>na</strong> mão<br />
direita. De acordo com Delepierre (1954) essa imagem seria uma representação<br />
da partida dos sete guerreiros para o assalto a Tebas.<br />
15 Trata-se de uma estátua de 19 cm de altura, de uma mulher vestida com um<br />
péplos fechado, <strong>na</strong> cintura, por um cinto, cabelos repartidos no meio e portando<br />
um véu, que lhe cobre as espáduas e desce até as panturrilhas, ocultando-lhe os<br />
braços.<br />
17
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
De forma semelhante, o kýlix ático em figuras negras, que<br />
possui ce<strong>na</strong>s de amazonomaquia pintadas <strong>na</strong>s duas faces 16, e a taça de<br />
verniz negro figuram nesse enterramento também como símbolos da<br />
aliança. Eram esses artefatos típicas importações do mediterrâneo,<br />
freqüentes nos enterramentos faustosos hallstattianos, e possivelmente<br />
produto de troca oupresentes ofertados no contato dos émporoi<br />
massaliotasquer em Vix ou com outras populações da região. No<br />
enterramento, estão conservados porque simbolizavam seus aliados e<br />
aumentavam seu prestígio e o de sua linhagem.<br />
Todavia, o kýlix ático possuía um caráter sobremaneira<br />
interessante. Não podemos assumir que o uso da imagem nele contida se<br />
devesse exclusivamente à condição limi<strong>na</strong>r, de alteridade das amazo<strong>na</strong>s,<br />
pois, um vaso ofertado a um chefe bárbaro para o estabelecimento de<br />
uma aliança política deveria conter imagens que interessassem e<br />
agradassem aos bárbaroi (cf. TSETSKHLADZE, 1998a), que, por sua vez,<br />
não reconheceriam o estatuto de estrangeiras das amazo<strong>na</strong>s, nem<br />
compreenderiam a relação de margem/limiar implícita <strong>na</strong> mensagem<br />
dessas imagens. Donde, entendemos que a seleção desta imagem se deve<br />
ao conhecimento que os helenos detinham acerca dessas populações e de<br />
seu interesse por imagens de combates.<br />
Devemos, aqui, destacar que entre as populações célticas em<br />
geral havia um grande interesse por temáticas de guerreiros, pois se<br />
tratava de uma declaração publicada força e da bravura de seus<br />
ancestrais. Eram elas também associadas à prática do banquete, onde<br />
eram celebradas as vitórias, contadas as histórias dos melhores guerreiros<br />
e cultuados os ancestrais que lutaram em defesa da coletividade. E nos<br />
16 Em ambas as ce<strong>na</strong>s, que se encontram separadas por uma palmeira de cada<br />
lado e representam um combate entre helenos e amazo<strong>na</strong>s, temos os guerreiros<br />
helenos à esquerda, com a cabeça coberta por um elmo coríntio e vestidos com<br />
uma túnica, protegendo-se com seus escudos e empunhando, <strong>na</strong> mão direita,<br />
uma lança. As amazo<strong>na</strong>s estão protegidas por um escudo e empunham uma<br />
lança <strong>na</strong> mão direita e trazem suas cabeças cobertas por um elmo ático (que lhes<br />
deixa a face descoberta). Uma delas parece romper o combate ao retor<strong>na</strong>r para<br />
lançar sua arma. E ao redor de todos eles, há pseudo-inscrições, feitas somente<br />
com pontos. Sobre as imagens de amazonomaquia, ver Tyrrell (1984).<br />
18
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
depósitos de outras faustosas tumbas hallstattia<strong>na</strong>s, como aquela de<br />
Hochdorf, vemos objetos com ce<strong>na</strong>s de jogos e combates guerreiros.<br />
Além desses vasos, há dois outros artefatos nesta tumba<br />
depositados que evidenciam a construção de alianças políticas e<br />
destacam o prestígio e a força política da chefe de Vix: a taça em prata 17<br />
e oenochóe etrusca 18, que tal como a cratera, consistiam em prestações<br />
funerárias ofertadas por aliados dessa chefe, que, como sugere a análise<br />
feita por Kimmig (1999), seriam provenientes da região dos Alpes,<br />
sendo, possivelmente, os chefes de comunidades dessa região.<br />
Temos, assim, que todos os presentes de aliados encontravam-se<br />
expostos no canto esquerdo (ângulo noroeste) da tumba (ver a planta da<br />
tumba), com as duas taças áticas e a taça proveniente dos Alpes dispostas<br />
sobre a tampa da cratera e, aos pés desta, a oenochóe etrusca. Com isso,<br />
17 Esta taça recebeu cuidados especiais, tendo sido depositada <strong>na</strong> tumba sobre a<br />
tampa da cratera enrolada em um tecido trançado. Os cuidados especiais<br />
sugeridos por esta forma de deposição parecem estar relacio<strong>na</strong>dos ao próprio<br />
funeral de um chefe, pois esta sorte de taça só é encontrada em enterramentos<br />
de chefes (<strong>na</strong>s chamadas Fürstengräber), sendo ela uma peça fundamental para<br />
essa sorte de ritual funerário.<br />
18 A oenochóe etrusca, à primeira vista, poderia ser considerada como uma<br />
prestação de hospitalidade dos helenos, tal qual as taças em cerâmica ática.<br />
Entretanto, sua posição no enterramento, nos faz atentar para a tipologia desta<br />
prestação, pois se a taça de prata fosse utilizada para servir a bebida <strong>na</strong>s outras<br />
taças (cf. Kimmig, 1999) não haveria razão para a deposição de um vaso como<br />
uma oenochóe, que teria a mesma fi<strong>na</strong>lidade. Quer dizer, o serviço de banquete<br />
desta tumba já estaria completo sem a presença/inserção desta oenochóe. Logo,<br />
entendemos que fora este vaso colocado nessa tumba não como mais uma peça<br />
de um serviço de banquete necessário ao enterramento da chefe da tribo e sim<br />
como uma prestação funerária ofertada por outro aliado da chefe de Vix. Foram<br />
encontradas outras oenochóes similares a essa em tumbas e cemitérios em outras<br />
regiões habitadas por tribos celtas, tal como no Marne, em Pouan (Aube), no<br />
Alto Saône (em Mercey-sur-Saône), <strong>na</strong> Alssásia (<strong>na</strong> floresta de Hatten) e <strong>na</strong><br />
Suíça (no Tessin); eis que eram elas importadas com uma certa freqüência ao<br />
norte dos Alpes, havendo, outrossim, casos de imitações desses vasos por<br />
indíge<strong>na</strong>s (JOFFROY, 1979: 76-77). Segundo Joffroy (1979: 77), esses vasos<br />
seriam obtidos pelos celtas através da rota comercial pela via transalpi<strong>na</strong>, que<br />
atravessava o vale do Tessin.<br />
19
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
vemos uma clara distinção dentro da tumba entre a disposição das<br />
ofertas de prestações da linhagem da chefe morta e aquelas de seus<br />
aliados, que marcariam sua ligação com a chefe morta por meio da<br />
deposição, <strong>na</strong> tumba, de bens que simbolizassem esses laços.<br />
Concluímos, pois, que a partir dos vestígios materiais da tumba<br />
da chefe de Vix nos é possível traçar não somente seu status e prestígio,<br />
evidenciando a condição social da mulher em uma sociedade celta da<br />
primeira Idade do Ferro, mas também enveredar pelo estudo das<br />
relações de alianças político-diplomáticas desta comunidade com outras<br />
unidades políticas. Por meio deste estudo de caso, pudemos verificar<br />
que tinha esta chefe no banquete uma via de consolidação e ostentação<br />
de seu poder, porque as relações, as alianças nele estabelecidas<br />
corroboravam para que ela exercesse um maior controle sobre sua<br />
própria comunidade e ascendesse em prestígio ante as demais linhagens,<br />
as comunidades vizinhas e os aliados distantes, tais como os massaliotas.<br />
Procuramos, destarte, ressaltar a ação política desta mulher –<br />
uma chefe que ocupava uma posição central <strong>na</strong> rede de relações<br />
intertribais no interior da Gália e Europa central, bem como <strong>na</strong> dinâmica<br />
das relações entre as populações indíge<strong>na</strong>s e a pólis dos massaliotas,<br />
demonstrando, igualmente, que seus seguidores, familiares/descendentes<br />
e aliados ratificariam seu status e prestígio através da oferta de prestações<br />
quando do enterramento da chefe da linhagem/aliada, reafirmando e<br />
reproduzindo a relação que possuíam com ela.<br />
Em outra palavras, era preciso afirmar ante a coletividade os<br />
laços que os vinculavam à chefe morta, fazendo a todos distinguir e<br />
reconhecer essa relação pessoal e o prestígio e a distinção social dela<br />
advindos. Por conseguinte, mais do que um meio de destruição da<br />
riqueza para tor<strong>na</strong>r raros os bens de grande densidade simbólica,<br />
retirando-os de circulação e, mesmo, fazendo-os i<strong>na</strong>cessíveis quer para a<br />
linhagem da chefe morta, quer para o restante da população, essa sorte<br />
de prestação significava uma via de reorganização social, de continuidade<br />
dos laços e relações, enfim, de reprodução das relações sociais no<br />
interior da sociedade e de ratificação de contatos e alianças que se<br />
desejava perpetuar.<br />
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www.iath.virginia.edu/~umw8f/Barbarians/first.htmlÚltimo acesso:<br />
27/01/2001.<br />
25
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
CASSANDRA: DE PROFETISA À CONCUBINA<br />
Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima 19<br />
O objetivo deste trabalho consiste em destacar a atuação da<br />
cativa de guerra Cassandra <strong>na</strong> peça Agamêmnon de Ésquilo. Pretendemos<br />
compreender como este poeta enfocou os múltiplos papéis desempenhados<br />
pela perso<strong>na</strong>gem <strong>na</strong> trama.<br />
Inicialmente, gostaríamos de ressaltar que os autores helenos<br />
utilizavam-se de vários termos para identificar os distintos tipos de<br />
mulheres <strong>na</strong>s póleis, do VIII ao IV séculos a. C. Dependendo do status, a<br />
mulher teria um espaço e atividades no interior de sua comunidade.<br />
Desta forma, podemos identificar os seguintes termos: koré, jovem,<br />
donzela/ virgem, sob a proteção do pai; nýmphe, recém-casada, até o<br />
momento em que a maternidade lhe proporcio<strong>na</strong> o status de esposa ‗bem<strong>na</strong>scida‘<br />
– gyné (LESSA, 2001: 61). Estes três termos estão relacio<strong>na</strong>dos à<br />
esfera do matrimônio, da família e do oîkos. As mulheres deste primeiro<br />
conjunto têm no casamento um objetivo de vida, pois elas devem gerar<br />
filhos – principalmente do sexo masculino – para a perpetuação da<br />
comunidade políade.<br />
Outros termos fazem menção às prostitutas e cortesãs. Em<br />
Ate<strong>na</strong>s Clássica, tanto <strong>na</strong> região do Pireu (porto) quanto no Cerâmico<br />
(dêmos dos artesãos), havia a concentração de prostíbulos (SALLES,<br />
1995: 15). Nestas casas de prostituição atuavam as por<strong>na</strong>í, prostitutas que<br />
ofereciam seus serviços por poucos drácmas. E além delas, os homens<br />
com recursos poderiam recorrer aos serviços de uma hetaíra. A cortesã<br />
atuava, geralmente, nos banquetes privados – symposía – e poderia ser<br />
uma escrava sob as ordens de um organizador de banquetes, este último<br />
seria um tipo muito comum no IV século a. C. Ela também poderia ser<br />
uma estrangeira e vender seus serviços, que dependendo de seu prestígio,<br />
custavam vultosas quantias (MOSSÉ, 1986: 210). Isso se deve ao fato de<br />
que muitas delas foram educadas para atuarem <strong>na</strong>s salas de banquete.<br />
Lembremos do caso de Neera, apontado por Demóstenes, ela foi<br />
19 O Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima é integra o departamento de<br />
História, da Universidade Federal Fluminense e coorde<strong>na</strong> o Núcleo de<br />
Representações e Imagens sobre <strong>Antiguidade</strong> (NEREIDA/UFF).<br />
26
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
preparada por Nicareta com o propósito de entreter os convivas por<br />
meio da música (execução da lira e do aulós), do canto, da dança e do ato<br />
sexual (LIMA, 2000: 23). Em outras póleis da Hélade existia também<br />
outra forma femini<strong>na</strong> de prostituição: a prostituição sagrada. O geógrafo<br />
Estrabão nos conta que as hierodoúles em Corinto honravam a deusa<br />
Afrodite (Geografia VIII, 6, 21) em seu santuário <strong>na</strong> Acrocorinto, bastante<br />
freqüentado pelos comerciantes que passavam pelo Istmo<br />
(VANOYEKE, 1997: 37).<br />
Além dos termos apontados acima, os autores mencio<strong>na</strong>m ainda<br />
as escravas - doúle – que aparecem como amas ou como mulheres que<br />
cuidam dos afazeres domésticos. Contudo, o tipo feminino que nos<br />
interessa aqui é o da cativa/ concubi<strong>na</strong>. Na documentação pode aparecer<br />
como cativa de guerra – aichmalotís – ou como concubi<strong>na</strong> – pallaké. Para<br />
compreendermos o papel destes termos, devemos primeiro tecer alguns<br />
comentários acerca do guerreiro e do botim de guerra nos poemas<br />
homéricos. Desta maneira, poderemos compreender os papéis<br />
desempenhados pela perso<strong>na</strong>gem Cassandra <strong>na</strong> peça esquilia<strong>na</strong>.<br />
A Ilíada é por excelência um poema de guerra, criado de forma<br />
oral por volta do VIII século a. C. Não podemos afirmar com segurança<br />
a que ‗mundo‘ Homero se refere. É provável que o aedo tenha misturado<br />
vestígios de várias sociedades em seus poemas – a realeza micênica, as<br />
comunidades do período geométrico e as dos primórdios da pólis<br />
(FINLEY, 1988: 42-43; KIRK, 1999: 123). O intuito maior do poeta<br />
Homero era o de cantar e exaltar as façanhas dos grandes chefes<br />
(basileis/aristoí) da expedição contra os troianos. O aedo evoca assim o<br />
passado heróico e o apresenta com ‗imagens‘ e valores peculiares ao seu<br />
público-alvo: os aristoí (SCHEID-TISSINIER, 1999: 25).<br />
Como já mencio<strong>na</strong>mos, a guerra é o tema central do poema. Nas<br />
passagens com batalhas há o enfoque aos combates individuais dos<br />
aristoí. Diferentemente do guerreiro políade – o hoplités – que combatia em<br />
prol de sua comunidade e deveria ficar no campo de batalha até a morte,<br />
o herói da Ilíada guerreia em busca da honra individual (timé), além dele<br />
ser seu próprio juiz quando julga ser necessário sair do campo de batalha<br />
em um momento de perigo. Mas não podemos esquecer que o objetivo<br />
de uma contenda era a aquisição de bens por meio da pilhagem. O botim<br />
de guerra constitui efetivamente em uma fonte importante de benefícios,<br />
27
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
tais como: o gado, os tesouros em metal e as cativas que serão vendidas<br />
como escravas. Para o herói homérico era vantajoso arriscar sua vida<br />
pela conquista destes bens (KIRK, 1999: 31). A partir da derrota de uma<br />
cidade, a prática habitual era o extermínio físico dos homens e a<br />
escravização de mulheres e de crianças. Todas as riquezas disponíveis,<br />
incluindo as armas dos guerreiros vencidos, são pilhadas. Como os<br />
prêmios dos jogos fúnebres, o botim dos guerreiros é depositado no<br />
centro – es mésos – em comum sob os olhos atentos da assembléia dos<br />
guerreiros (DETIENNE, 1965: 431).<br />
Em um primeiro momento são retiradas as ‗peças‘ mais valiosas<br />
para serem ofertadas aos chefes, como privilégio honorífico. Este<br />
‗privilégio‘ – chamado de géras – poderia ser uma jovem e bela cativa.<br />
Ofertar a um chefe um géras significa reconhecer sua timé (THEML,<br />
1995: 151). Contrariamente, retirar-lhe o seu géras consiste em contestar a<br />
legitimidade da sua posse e a sua honra (SCHEID-TISSINIER, 1999:<br />
45-46). Podemos perceber, então, que há a necessidade de sustentar a<br />
glória – kléos – dos heróis nos poemas, celebrando os seus grandes feitos.<br />
Por meio da poesia épica, os aedos conservaram <strong>na</strong> memória dos vivos a<br />
lembrança dos guerreiros que escolheram, ao preço de suas vidas,<br />
enfrentar os perigos e a morte.<br />
O herói Agamêmnon enfrentou muitos destes perigos até<br />
conseguir derrotar os troianos. Um de seus ‗presentes honoríficos‘ por esta<br />
vitória foi a filha de Príamo, rei de Tróia, a princesa Cassandra<br />
(Kassándra). O deus Apolo concedeu à filha de Príamo o poder de<br />
transmitir o seu pensamento, ou seja, ter o dom de profetizar.<br />
Entretanto, Cassandra não aceita se entregar à divindade, preferindo<br />
continuar virgem. Apolo, humilhado, privou-a da persuasão (peithó).<br />
Após ter cometido esta falta grave (émplakon) à divindade, as pessoas não<br />
acreditavam mais <strong>na</strong>s palavras de Cassandra (ÉSQUILO. Agamêmnon,<br />
1212). Havendo adquirido o dom profético mediante o artifício da<br />
falsidade, a palavra de Cassandra não possui credibilidade, pois a verdade<br />
(alétheia) apolínea carece de persuasão (IRIARTE, 1990: 105).<br />
Cassandra passa a ser uma estrangeira em sua própria terra, um<br />
membro estranho em sua própria comunidade. Sua mãe, Hécuba, ao ver<br />
as <strong>na</strong>us gregas zarparem não autoriza Cassandra sair da tenda e entrar em<br />
contato com os Aqueus: ―Não deixeis sair Cassandra, a bacante, a mê<strong>na</strong>de<br />
28
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
causa de desonra ante os gregos, que me evite esta nova pe<strong>na</strong>.‖ (EURÍPIDES. As<br />
Troia<strong>na</strong>s, 168-173) É interessante ressaltar que o tragediógrafo Eurípides<br />
relacio<strong>na</strong> os atos proféticos de Cassandra com o êxtase das backaí,<br />
seguidoras do deus Dionisos enlouquecidas pela manía. Mais a frente<br />
Hécuba assim se refere à Cassandra: ―Filha minha, Cassandra, tu que<br />
compartilhas os êxtases dos deuses, com que infortúnio pôs fim à tua pureza virgi<strong>na</strong>l.‖<br />
(EURÍPIDES. As Troia<strong>na</strong>s, 500-502) Estas palavras reforçam a idéia que<br />
ao dizer as palavras proféticas, Cassandra não consegue ter credibilidade,<br />
falta-lhe persuasão e ela toma o aspecto de uma mê<strong>na</strong>de em transe.<br />
Antes de a<strong>na</strong>lisarmos as passagens referentes à Cassandra em<br />
Ésquilo, vale lembrar que o guerreiro Otrioneu pediu-a em casamento a<br />
Príamo em troca da expulsão dos Aqueus de Ílion (HOMERO. Ilíada, II,<br />
13, 374). Todavia, a princesa troia<strong>na</strong> só deixou de ser casta a partir da<br />
derrota de Tróia por meio da sua união com Agamêmnon. De princesa,<br />
profetisa e virgem, ela passou a ser a concubi<strong>na</strong> – pallaké – do basileus<br />
Aqueu, chefe da expedição contra Tróia. Ela foi um géras, um presente<br />
honorífico, oferecido pelos guerreiros de Agamêmnon (stratou dórem‟)<br />
pela sua honra em combate – timé (ÉSQUILO. Agamêmnon, 955). A volta<br />
deste aristós para sua terra – Argos – inspirou o poeta Ésquilo em sua<br />
tragédia Agamêmnon, a primeira peça de sua trilogia intitulada Oréstia.<br />
Agamêmnon passou por inúmeros reveses em sua empreitada contra os<br />
troianos e mal sabia que seu fim estaria <strong>na</strong>s mãos de sua própria esposa<br />
Clitemnestra. Esta planejou com seu amante Egisto o assassi<strong>na</strong>to de seu<br />
esposo. A parte que nos interessa nesta obra é a chegada de Cassandra,<br />
junto com Agamêmnon, ao palácio argivo. A estrangeira (xéne) imóvel<br />
prevê o seu futuro e o dos Átridas, ela não consegue expressar qualquer<br />
gesto diante das portas do palácio (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1035).<br />
Clitemnestra a chama para entrar no que será o seu túmulo, mas a pobre<br />
mulher permanece inerte.<br />
Clitemnestra continua insistindo para Cassandra segui-la em<br />
direção ao palácio, junto ao fogo sagrado, e participar dos ritos: as<br />
vítimas para os sacrifícios (sphágas) (Ibid,1057). Cassandra ainda em<br />
posição estática é comparada, pelo Coro, a um ―animal selvagem recémcativo‖<br />
(therós os neairétou) (Ibid, 1062-1063) Mais uma vez Cassandra<br />
encontra-se <strong>na</strong> esfera do selvagem, como um animal de caça. Antes de<br />
entrar no palácio, Clitemnestra reitera a idéia de que Cassandra está<br />
29
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
passando por um estágio de loucura, muito semelhante aos versos de<br />
Eurípides em As Troia<strong>na</strong>s. Clitemnestra vocifera as seguintes palavras:<br />
―Ela é louca [maínetaí] e obedece a maus pensamentos [kakon klúei phrenon], ela<br />
chega aqui ao sair de uma cidade recentemente conquistada [pólin neaíreton]‖ (Ibid,<br />
1064-1065) Nesta passagem fica clara a condição atual da troia<strong>na</strong>: cativa,<br />
parte do géras de Agamêmnon e uma bárbara ensandecida.<br />
Ao descer do carro, Cassandra lamenta-se e invoca Apolo como<br />
se estivesse em transe. O Coro não compreende os lamentos da cativa e<br />
profere as seguintes palavras: ―A estrangeira [xéne] parece ter o <strong>na</strong>riz/ faro<br />
[eúris] de um cão [kunós]; ela segue a pista de mortes [phónon] que vai descobrir<br />
[aneurései]‖ (Ibid, 1093-1094) Constatamos que as metáforas de animais<br />
e de caça são constantes <strong>na</strong> descrição dos atos tanto de Clitemnestra,<br />
quanto dos de Cassandra. (VIRET-BERNAL, 1996:293) Suas palavras<br />
sobre o atentado de Clitemnestra contra Agamêmnon não são<br />
compreendidas. A cativa profetisa o banho mortal tramado pela rainha<br />
aquéia contra seu esposo, mas o Coro não consegue decifrar as palavras<br />
da estrangeira. ―Ainda não compreendo, após os enigmas [ainigmáton], obscuros<br />
oráculos [thesphátois] que me deixam perplexo.‖ (Ibid, 1112-1113)<br />
Nos versos seguintes, Cassandra continua a profetizar e o Coro<br />
intervém afirmando que a cativa está com o espírito aluci<strong>na</strong>do<br />
(phrenomanés) por uma inspiração divi<strong>na</strong> (theophóretos) (Ibid, 1140). Nesta<br />
passagem Cassandra expressa um canto oracular ‗contrário às normas‘, um<br />
nómon ánomon. Ela revela os crimes passados e futuros dos Átridas, daí o<br />
seu canto ser qualificado de ‗pouco encantador‘. A<strong>na</strong> Iriarte explica que<br />
se repararmos no sentido jurídico do termo nómos, o jogo de palavras<br />
formulado por Ésquilo parece traduzir as condições legítima e ilegítima<br />
da palavra de Cassandra; palavra apolínea que o próprio deus se nega a<br />
validar (IRIARTE, 1990: 105).<br />
A imagem da cativa e de suas palavras enigmáticas estão sempre<br />
atadas à idéia de morte iminente do perso<strong>na</strong>gem (IRIARTE, 1990: 128).<br />
As portas do palácio de Agamêmnon são as portas do Hades - morada<br />
dos mortos. As suas vidências logo serão cantadas nos rios do mundo<br />
subterrâneo: ―Agora nos rios Cócytos e Achéron irei, eu acho, logo cantar minhas<br />
profecias.” (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1160) Cassandra em um dado<br />
momento de sua aluci<strong>na</strong>ção profética enxerga as Erínias (IRIARTE,<br />
1990: 98); ela é a única perso<strong>na</strong>gem da Oréstia que consegue descrever as<br />
30
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
furiosas vingadoras, entidades do mundo ctônico: grupo impetuoso<br />
(kômos) e furioso (ménei) que ronda a casa (dómois) dos Átridas sedento de<br />
sangue (pepokós/ aima). (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1185-1190)<br />
As vinganças de sangue dos perso<strong>na</strong>gens da trilogia de Ésquilo<br />
também são proferidas por meio das vidências de Cassandra.<br />
Conferimos isto a partir do relato sobre a morte de Agamêmnon pelas<br />
mãos da própria esposa – Clitemnestra. Esta vinga a morte da filha<br />
Ifigênia pelas mãos do chefe aqueu. Ele precisava apaziguar a cólera da<br />
deusa Ártemis e, mesmo hesitando (DE ROMILLY, 1995: 12),<br />
sacrificou a sua filha virgem para prosseguir a viajem rumo à Ílion<br />
(ÉSQUILO. Agamêmnon, 200-205). Há também o episódio da vingança<br />
de Egisto contra Agamêmnon (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1584-1595): o<br />
pai de Egisto – Tiestes – cometeu adultério com a mulher de seu irmão –<br />
Atreu – pai de Agamêmnon. Atreu vingou-se do irmão oferecendo-lhe<br />
um banquete com pedaços dos sobrinhos, dos filhos desmembrados de<br />
Tiestes. A peça esquilia<strong>na</strong> mostra, justamente, a vingança do filho de<br />
Tiestes ao filho de Atreu – pelo adultério e o assassi<strong>na</strong>to. E a profecia<br />
mais importante: a volta de Orestes que derramará o sangue de Egisto e<br />
de Clitemnestra, vingando assim tanto o pai quanto a própria Cassandra.<br />
Podemos verificar isso com a própria fala da profetisa: ―um outro virá nos<br />
vingar, um filho que matará sua mãe e vingador do pai (ponátor patrós).‖<br />
(ÉSQUILO. Agamêmnon, 1280). A trilogia de Ésquilo mescla valores<br />
religiosos, jurídicos e morais. (ZAIDMAN, 2001: 118) Com o fim de<br />
suas profecias, Cassandra compreende que é o momento de encarar a<br />
morte e entrar no palácio com odor de sangue. Entretanto, não são os<br />
odores das vítimas sacrificadas que a cativa sente, mas: ―O palácio exala<br />
um odor de morte e de sangue.‖ (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1309; DE<br />
ROMILLY, 1998: 69) ―Um odor semelhante ao que se exala <strong>na</strong> tumba.‖<br />
(ÉSQUILO. Agamêmnon, 1311)<br />
Por fim gostaríamos de explicitar aqui, a partir do relato de<br />
Ésquilo, as múltiplas facetas de Cassandra. A nossa perso<strong>na</strong>gem não foi<br />
somente uma simples cativa de guerra, ela não correspondeu somente a<br />
um tipo de mulher encontrado nos textos helenos: Cassandra atuou em<br />
diversas esferas. De jovem virgem (koré) e bem <strong>na</strong>scida à profetisa de<br />
Apolo. De princesas troia<strong>na</strong> à concubi<strong>na</strong> e escrava (doúlon) de<br />
Agamêmnon (Ibid, 1038). De pallaké do chefe Atreu ela foi reduzida à<br />
31
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mendiga faminta (ptochós/ limothés) (Ibid, 1274) e chegou, segundo o poeta<br />
Ésquilo, a ser a segunda esposa (gyné) de Agamêmnon (Ibid, 1296;<br />
LESKY, 1996: 122). E não podemos esquecer que tanto para os troianos<br />
quanto para os argivos, ela era uma mulher estrangeira (xéne)<br />
(ÉSQUILO. Agamêmnon, 950). Clitemnestra chega a qualificá-la como<br />
uma bárbara. Além de ter também o epíteto de delirante e louca (phoitàs)<br />
(Ibid, 1273).<br />
Todos estes dados nos estimulam a pensar em uma questão:<br />
Clitemnestra assassinou Cassandra por esta ser uma ameaça ao seu<br />
poder. Mas como uma simples cativa poderia intimidar a sobera<strong>na</strong> de<br />
Argos? Cassandra reunia vários predicados que poderiam dificultar os<br />
planos da esposa de Agamêmnon. O primeiro era o de ter o dom<br />
concedido por Apolo: possuía a métis – inteligência e astúcia – que<br />
desvendava fatos passados e futuros dos Átridas. O segundo e, talvez o<br />
principal, a cativa passou a ser a companheira de Agamêmnon, uma rival<br />
de Clitemnestra. Ela era uma parte do géras – presente honorífico –<br />
concedido pelos companheiros de armas a Agamêmnon. Cassandra viva<br />
representava a glória – o kléos – do chefe argivo. Clitemnestra sabia que<br />
para não haver mais a memória de seu ex-esposo pelos corredores do<br />
palácio era necessário extermi<strong>na</strong>r fisicamente o ‗presente‘ de<br />
Agamêmnon. Contudo, o desfecho foi bem diferente e até hoje ficou em<br />
nossa memória os feitos do herói aqueu e os lamentos de Cassandra.<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
AESCHYLUS. Agamemnon. Trad. H.Weir Smith. Cambridge: Harvard<br />
University Press. Loeb Classical Library Vol. II, 1995.<br />
ESCHYLE. Agamemnon. Trad. Émile Chambry. Paris: Garnier Frères,<br />
1964.<br />
EURIPIDE. Les Troyennes. Trad. Marie Delcourt-Curvers. Paris:<br />
Gallimard, 1962.<br />
HOMÈRE. Iliade. Trad. Paul Mazon. Paris: Gallimard, 1975.<br />
STRABON. Géographie. Trad. Raoul Baladié. Paris: Les Belles Lettres,<br />
Tome V, Livre VIII, 1978.<br />
32
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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Sette Letras, 2000.<br />
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VANOYEKE, V. À Athènes, la Prostitution revêt un Caractère Sacré.<br />
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VIRET-BERNAL, F. Quand les Peintres exécutent une Meurtrière:<br />
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33
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
EL FANTASMA DE LA REINA ASIRIA<br />
Prof.ª Drª. A<strong>na</strong> María Vázquez Hoys 20<br />
La rei<strong>na</strong> Ešarra-hammat, esposa del rey Asarhadon ( 680-669<br />
a.C.) y madre de Asurbanipal II (668-627 ) ya había fallecido, cuando<br />
diversos problemas y enfrentamientos en el país y la familia real<br />
ocasio<strong>na</strong>ron la necesidad de regular la sucesión real y la división del<br />
reino.<br />
En aquel momento del siglo VIII a.C., el Imperio Asirio estaba<br />
formado por dos partes: Asiria y Babilonia. Y el poderoso Asarhadón<br />
creyó oportuno separarlas, dejando al primogénito la antigua Babilonia,<br />
recientemente conquistada, mientras que el núcleo origi<strong>na</strong>l del reino,<br />
Assur , quedaba en manos del culto Asurbanipal, cuya biblioteca,<br />
descubierta en el palacio real de Nínive, ha dado al mundo u<strong>na</strong> gran<br />
cantidad de textos antiguos ( VÁSQUEZ HOYS, 2007: 188).<br />
1. La extraña represión de Se<strong>na</strong>querib contra Babilonia<br />
El rey asirio Se<strong>na</strong>querib (704-681 a. C.), aprovechando la<br />
enfermedad del rey de Elam, marchó contra Babilonia, centro del<br />
avispero antisirio. Y la tomó y arrasó en diciembre del 689,<br />
sumergiéndola bajo las aguas del Eúfrates para hacerla desaparecer. Los<br />
escasos supervivientes fueron expulsados, deportados o vendidos como<br />
esclavos. Las escasas estatuas intactas de los dioses que no resultaron<br />
destrozadas, fueron llevadas cautivas a Nínive.<br />
Esta acción contra la antigua y sagrada ciudad, sus dioses y sus<br />
habitantes es incomprensible , ya que sus antecesores siempre habían<br />
respetado las ciudades santas de Babilonia y Borsippa, cuyos dioses<br />
principales, el todopoderoso dios supremo Marduk y el dios de la<br />
escritura, Nabu, eran adorados en toda Mesopotamia: Sólo si Babilonia<br />
centralizaba las intrigas políticas contra Asiria se comprende esta acción,<br />
y si los poderosos sacerdotes babilonios habían fi<strong>na</strong>nciado las acciones<br />
antiasirias y todos juntos eran los responsables de la muerte del hijo<br />
mayor y posible heredero de Se<strong>na</strong>querib , el príncipe Asur<strong>na</strong>dinsumi. En<br />
aquel momento, Asiria atravesaba u<strong>na</strong> crisis de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo agudo y<br />
20 Profesora Titular Historia Antigua, UNED, Madrid, España<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
rechazaba con violencia todo lo que pudiera ser babilonio, desde u<strong>na</strong><br />
influencia religiosa, a la cultural o política.<br />
2. El problema sucesorio<br />
Con la muerte del príncipe heredero, estalló en Asiria un grave<br />
conflicto de la sucesión. Se<strong>na</strong>querib, afectado por u<strong>na</strong> grave enfermedad<br />
crónica, tenía aún cinco hijos varones conocidos, el más joven de los<br />
cuales, Asarhadón, había <strong>na</strong>cido de su última esposa, cuyo nombre<br />
semítico del sur, o arameo, era Naqi'a, ―La más pura‖, en acadioasirio<br />
Zakutu. Esta mujer debía tener un gran carácter y además de<br />
enérgica, sin duda era ambiciosa y debió intrigar inteligentemente a<br />
favor de la elección de su hijo, no sólo perso<strong>na</strong>lmente, sino como cabeza<br />
visible de u<strong>na</strong> minoría aramea que la llevó al harén real asirio. Pero los<br />
hermanos mayores de Asarhadón, hijos de otras esposas, de las que se<br />
conoce al menos a Thasmtu-sarrat, defendían sus propias posibilidades<br />
de suceder a su padre. Para ello contaban con el apoyo de los asirios<br />
antibabilonios, que denunciaban las simpatías de la rei<strong>na</strong> aramea Naqi´a y<br />
su hijo por dicha Ciudad-Estado surmesopotámica, tal vez apoyada y<br />
dirigida por un clan arameo antiasirio y probabilonio, que ya había hecho<br />
llegar al tálamo real generaciones antes a la rei<strong>na</strong> Atalía, esposa de Sargón<br />
II, un princesa de Samaria, capital y región anexio<strong>na</strong>da por Asiria, junto<br />
con las diez tribus del norte de Israel. Algo que a veces es muy difícil de<br />
descubrir y apreciar, porque la mujer en los ámbitos mesopotámicos era<br />
un ser mudo y casi invisible. Por eso<br />
extraña encontrar datos de la posible<br />
acción política de las mujeres reales.<br />
Y más aún, que esta importancia la<br />
tenga el fantasma de u<strong>na</strong> rei<strong>na</strong><br />
fallecida.<br />
Naqi'a, la madre del rey Asarhadón de<br />
Asiria (identificada por u<strong>na</strong> inscripción), con<br />
su hijo, relieve de bronce, Museo del Louvre<br />
(AO 20185); foto de I. Seibert, Die Frau im<br />
Alten Orient (Leipzig, 1973) pl. 62.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
La sucesión de Asarhadón hizo enfrentarse a sus hijos, ya que<br />
el rey escogió para sucederle al menor de ellos, Asurbanipal, hijo de la<br />
rei<strong>na</strong> Ešarra-hammat, que ya había fallecido.<br />
La decisión real que debió ser difícil de tomar y, desde luego,<br />
difícil de cumplir, porque generalmente se pensaría que el Príncipe<br />
heredero de la parte más importante del reino, Assur, al norte de<br />
Mesopotamia, sería para el hijo mayor de Asarhadón, el príncipe<br />
Si<strong>na</strong>ndi<strong>na</strong>pli, quedando la parte sur en mano de cualquiera de los<br />
numerosos hijos del rey, entre los que sin duda el que menos<br />
posibilidades debía tener era el menor, Asurbanipal, intelectual y sensible<br />
, que gustaba del estudio y la colección de de los antiguos textos<br />
mesopotámicos y los antiguos métodos de adivi<strong>na</strong>ción.<br />
Y dos rei<strong>na</strong>s le ayudaron: Un viva, su abuela Naqi´a Zakutu y<br />
otra fallecida, su propia madre, que sin duda tenían un prominente papel<br />
político y económico en el reino (READE, 1987: 140-145). Ellas debían<br />
tener numerosos partidarios. Y sin duda los utilizaron.<br />
Nadie mejor para heredar el trono de su padre que el aplicado e<br />
inteligente Asurbanipal, cuando el anterior príncipe heredero falleció en<br />
672. Y <strong>na</strong>die mejor que el fantasma de la madre fallecida del nuevo<br />
Príncipe de la Coro<strong>na</strong>, la rei<strong>na</strong> Ešarra-hammat, para recordar a su esposo<br />
que ella apoyaba a su hijo aún después de muerta. U<strong>na</strong> curiosa trama,<br />
posiblemente ideada o propiciada por el mismo príncipe Asurbanipal,<br />
estudioso de las antiguas técnicas mágicas mesopotámicas, oniromancia<br />
incluida, y la rei<strong>na</strong>-madre, Naqia. Pero no cabe duda de que no estaban<br />
solos. Y debieron ayudarles elementos afines arameos, eunucos de la<br />
Corte incluidos, con el fin de sentar en el trono asirio uno de los<br />
miembros de su propio clan oeste-semítico. Y probabilonio, entre los<br />
que estarían posiblemente los poderosos sacerdotes de Marduk,<br />
decididamente antia-sirios, pero partidarios del nuevo príncipe.<br />
Melville explica la prominencia de Naqī'a por los planes de largo<br />
alcance político de su hijo y sugiere que la guerra civil después de la<br />
muerte de Se<strong>na</strong>querib hizo que Asarhadón desear a u<strong>na</strong> ascensión al<br />
poder más fácil para sus hijos que la que él había tenido y que esa fue la<br />
razón para la posición prominente de Naqī'a en su corte, que, en mi<br />
opinión no hubiera sido posible sin u<strong>na</strong> minoría de notables que la<br />
apoyasen, que pos su origen oeste-semítico bien podían ser de esta<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
procedencia o al menos babilonios o probabilonios. Y ella alla<strong>na</strong>ría la<br />
ascensión al trono de Asurbanipal y Šamaš-šumu-ukin.<br />
3. La Rei<strong>na</strong> y su Fantasma<br />
La esposa del rey Asarhadón, la rei<strong>na</strong> Ešarra-hammat, era muy<br />
conocida fuera de los círculos del palacio real y su muerte, en el año 673,<br />
se mencio<strong>na</strong> como un hecho prominente en las crónicas<br />
contemporáneas. Su viudo le dedicó especiales ritos funerarios en la<br />
ciudad de Assur, ocupando la vacante de la rei<strong>na</strong> fallecida la madre de<br />
Esarhaddon, la rei<strong>na</strong> Naqi'a, cuyo nombre significa ―La más pura", un<br />
nombre oeste-semítico (TEEPO 2005: 9, n.6) ), también llamada<br />
Zakutu, el mismo nombre en acadio. Naqi´a era esposa de Sen<strong>na</strong>querib,<br />
madre de Asarhadon y abuela entre otros de Asurbanipal, u<strong>na</strong> mujer que<br />
tuvo grandes posesiones en todo el Imperio, por lo que su papel no solo<br />
fue político, sino también económico (MELVELLE, 1999: 105-112). Su<br />
sucesora, Ešarra-hammat jugó u<strong>na</strong> gran papel en el nombramiento de su<br />
hijo Asurbanipal como príncipe heredero y en su acceso al trono. Y no<br />
solo viva, sino también muerta.Para ello no dudó de hacer uso del<br />
fantasma de la rei<strong>na</strong>, madre del Asurbanipal, aunque algunos<br />
investigadores duden que el fantasma sin nombre sea el de la rei<strong>na</strong><br />
fallecida. Al menos Parpola asegura que el fantasma (eṭemmu) , que no es<br />
identificado ni por su nombre ni por ningún título, es el de u<strong>na</strong> mujer,<br />
por el sufijo posesivo femenino(-ša)<br />
4. Las Rei<strong>na</strong>s Oeste-Semiticas-Arameas en Asiria<br />
Durante generaciones, la presencia de estas mujeres arameas,<br />
semitas del sur, en la Corte asiria, se revela por la onomástica de al<br />
menos tres de ellas: Atalía, Naqia y Essarra-Hamat . Teepo reconoce<br />
(TEEPO, 2005: 39) la opinión de Reade de que hay evidencias de las<br />
influencias politicas de Naqī‘a y Tašmētu-šarrat en la actuación como<br />
gober<strong>na</strong>nte de Se<strong>na</strong>querib (READE, 1987: 140-145). Todos los reyes<br />
neoasirios desde Tiglath-Pileser III a Asarhadón fueron hijos de mujeres<br />
arameas por sus nombres y hay indicios de que su lengua mater<strong>na</strong> era<br />
arameo Así, la lengua de la rei<strong>na</strong> de Sargón II, Ataliā (KAMIL, 1999: 17;<br />
PNA 1/II 433), es claramente hebreo (cf. Athaliah [‗Ătalyā(hū)]), madre<br />
de Ahaziah [c. 844/3 BC] y nieta de Omri,( 2 Reyes 11, y 2 Cron. 22-<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
24); posiblemente, fue u<strong>na</strong> princesa judía exiliada a Asiria tras la<br />
conquista de Samaría en 722 a.C. Y el nombre de la rei<strong>na</strong> de Tiglath-<br />
Pileser III, Yabâ, deriva del verbo arameo yhb ―dar‖ (FRAHM, PNA<br />
2/I s.v. Iabâ ) o el de Naqia (Aram. ―pura‖), la citada rei<strong>na</strong> de<br />
Se<strong>na</strong>querib y madre de Asarhadon (MELVILLE, 1999; STRECK, PNA<br />
2/II s.v. Naqī‘a).<br />
Ešarra-hammat fue rei<strong>na</strong> de Asiria, esposa de Asarhadón(680-<br />
669), madre de Asurbanipal y Šamaš-šumu-ukin (muerto en 672). No<br />
hay referencias a ella durante su vida , aunque se sabe el dolor que su<br />
muerte causó a su esposo y a su hijo Asurbanipal y que fue recordada<br />
con gran cariño y reverencia. Y es extraordi<strong>na</strong>rio que la fecha de su<br />
muerte en Addaru en 672 sea recordada en algu<strong>na</strong> Crónica babilonia.<br />
Asarhadón le construyó un mausoleo (BORGER, 1956: Ass. I, 5),<br />
posiblemente en Assur, que se mencio<strong>na</strong> en dos textos administrativos<br />
deestaciudad como recibiendo alimentos (SAA 12 81), de cuyo cuidad se<br />
ocupaba el principe heredero Asurbanipal, (AfO 13 T4), lo que ofrece<br />
u<strong>na</strong> evidencia indirecta de que Ešarra-hammat era su madre.<br />
Esta asunción de deberes para con el mausoleo tiene<br />
importancia en relación con la identificación del fantasma sin nombre<br />
que se cita en la tablilla SAA 10 188, que probaría la estrecha relación<br />
entre el Príncipe heredero y el fantasma de la rei<strong>na</strong> difunta.<br />
Todas ellas pudieron ser la cabeza visible de u<strong>na</strong> minoría que<br />
buscaba el poder e introdujo en la Corte asiria y el harén real sus<br />
partidarias, en colaboración con sacerdotes, magistrados, ministros y<br />
eunucos, sin cuya colaboración ningu<strong>na</strong> de las jóvenes podrán llegar al<br />
lecho real. Algo que ya había sucedido en la época de su padre y había<br />
condicio<strong>na</strong>do y confirmado su elección: Los dioses y la magia. Algo<br />
que había sucedido ya con Asarhadón, durante cuyo rei<strong>na</strong>do creció la<br />
influencia de su madre. Ella construyó un palacio para su hijo, actividad<br />
constructiva que sólo ejercían los reyes hasta ahora , y dejó contancia de<br />
ello en u<strong>na</strong> inscripción conmemorativa en Nínive (ARRIM 6 11 no. 91-<br />
5-9, 217). Se conserva también u<strong>na</strong> dedicación a la diosa Belet-Ninua<br />
por su propia vida y la de su hijo Asarhadon y otra de la rei<strong>na</strong> a la diosa<br />
Mullissu (ADD 645). En numerosas cartas se indica su extraordi<strong>na</strong>ria<br />
posición política y se la considera ―capaz como Adapa (SAA 10 244<br />
r.7ff) y se dice que [el veredicto de la madre del rey, mi señor], es tan<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
decisivo como el de los dioses (SAA 10 17 r. 1). Lo que evidencia su<br />
importancia, no sólo en materia de culto, que se recoge en varias tablilla<br />
(por ejemplo SAA 10 313, SAA 13 76 , SAA 13 77), sino lo que aquí se<br />
trata de comentar, su intervención en los asuntos políticos ( ABL 917 y<br />
SAA 10 154), los ritos que lleva a cabo para ella el exorcista Nabû<strong>na</strong>din-šumi<br />
(SAA 10 274). Se conserva u<strong>na</strong> carta del rey a su madre<br />
(ABL 303) y se conoce que ella u otra rei<strong>na</strong> madre tenían posesiones en<br />
Babilonia (SAA 14 469) (MELVILLE, 1999: 105; TEEPO, 2005: 37) y<br />
numerosos servidores.<br />
5. Eelementos Divinos y Mágicos en la Elección del Herdero<br />
El rey Se<strong>na</strong>querib, a pesar de todos sus esfuerzos, no pudo<br />
conservar intacto el legado de Sargón II. Las dificultades en la Corte<br />
parecían evidentes, debido a las luchas entre las diferentes facciones que<br />
actuaban como factores desestabilizadores en la elección del príncipe<br />
heredero. Se desconoce en qué momento se decidió a Se<strong>na</strong>querib a<br />
nombrar un heredero, pero, cuando al fin lo hizo, su elección, apoyada<br />
por los dioses Shamash y Adad, que manifestaron su apoyo al rey por<br />
medio de los adivinos y un acto de hepatoscopia, recayó sobre su hijo<br />
más joven, Asarhadón, quien lo describiría más tarde en sus A<strong>na</strong>les:<br />
"Aunque de mis hermanos yo fuera el benjamín,<br />
mi padre, por orden de los dioses (...), me dio<br />
legítimamente la primacía sobre mis hermanos<br />
(proclamando) 'Es el quien me sucederá'. Cuando,<br />
a este respecto, interrogó por medio de u<strong>na</strong><br />
consulta hepatoscópica a los dioses Shamash y<br />
Adad, estos dioses le respondieron con un 'sí' sin<br />
ambigüedades: 'es él quien te reemplazará'.<br />
Ateniéndose con devoción a su solemne sentencia,<br />
(mi padre) reunió entonces, todos juntos, a los<br />
habitantes de Asiria, pequeños y grandes, a mis<br />
hermanos y a la descendencia masculi<strong>na</strong> de la casa<br />
de mi padre, y delante de (...) los dioses de Asiria y<br />
los dioses que habitan el cielo y la tierra, para que<br />
todos respetaran mi derecho a la sucesión, les hizo<br />
jurar por el augusto nombre de estos dioses."<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Pero a pesar de los solemnes y sagrados compromisos, las<br />
rivalidades políticas y religiosas no solo no se acallaron sino que<br />
crecieron. Y los príncipes mayores y quienes les apoyaban se enfrentaron<br />
al nuevo príncipe heredero con toda suerte de chismes y maledicencias, a<br />
fin de desacreditarle y atemorizarle, en lo que debieron actual sin duda<br />
con gran habilidad los sacerdotes de Babilonia, que habían visto los<br />
templos de sus dioses destruidos por los asirios y debían rumiar su<br />
venganza desde su exilio, perdidas a causa de los invasores tierras,<br />
prebendas y riquezas. Los enemigos políticos de Asarhadón podían ser<br />
importantes. Pero unidos al malestar religioso y al temor supersticioso<br />
que suscitaba lo que se podía considerar un sacrilegio, podían ser<br />
indestructibles, temor que debieron tratar recontrarrestar los sacerdotes<br />
asirios y que los deportados y fugitivos babilonios alentarían.<br />
―Divide y vencerás‖ debía ser la máxima. Y las profecías<br />
clandesti<strong>na</strong>s señalaban que sería Asarhadón el libertador de Babilonia y<br />
el restaurador de los dioses y los templos, con lo que se le acusó de<br />
traidor a su patria, e incluso su padre, Se<strong>na</strong>querib, estaba algo irritado.<br />
Sin perder por ello el título de príncipe heredero, debió alejarse entonces<br />
de Nínive, buscando refugio en algún lugar desconocido, más allá de<br />
Khanigalbat. Hasta que los acontecimientos de precipitaron y Se<strong>na</strong>querib<br />
fue asesi<strong>na</strong>do:<br />
El 20 de tevet de 681 a. C., según el Antiguo<br />
Testamento, "sucedió que mientras rezaba en el templo de<br />
Nisroc, su dios, sus hijos Adramelec y Sarezer lo mataron<br />
a espada y huyeron a la tierra de Ararat".<br />
"El día 20 de Tebet, Se<strong>na</strong>querib fue muerto por sus hijos<br />
en u<strong>na</strong> revuelta. El día 18 de Sivan, Assarhadón, su hijo,<br />
ascendió al trono." 13 2Cr 32:21; Isa 37:37, 38.<br />
Estas fuerzas encontradas debían seguir existiendo durante el<br />
rei<strong>na</strong>do del rey Asarhadón, en cuya elección debió influir notablemente<br />
su madre, la rei<strong>na</strong> aramea Naqia, llamada en acadio Zaqutu. Que a la<br />
hora de elegir al heredero, esta vez de Asarhadón, debió recurrir, u<strong>na</strong> vez<br />
más, a la ayuda de sus partidarios, hepatoscopia incluída. Aunque esta<br />
vez, no dudó en utilizar un procedimiento oniromántico, recurriendo a la<br />
aparición de un fantasma, que para Parpola, era el de la fallecida rei<strong>na</strong> de<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Asarhaddon, madre del príncipe Asurbanipal, nuevamente, como en su<br />
caso, el hijo menor del rey, como había sido su propio caso.<br />
Tal vez, u<strong>na</strong> vez más, tal elección le costó la vida y Asarhadón<br />
murió en Harrán, la ciudad del dios Sin, a la vuelta de u<strong>na</strong> expedición a<br />
Egipto. El rei<strong>na</strong>do de Asurbanipal, intelectual experto en adivi<strong>na</strong>ción por<br />
aceite, entre otras discipli<strong>na</strong> adivi<strong>na</strong>torias, estaba así sancio<strong>na</strong>do por el<br />
fantasma de su madre, que había orde<strong>na</strong>do quien sabe si a su esposo, que<br />
tal vez la añorase ahora , que su hijo pequeño le sucediese. Algo que su<br />
heredero tuvo que justificar, porque no debía estar la situación muy clara.<br />
6. El Fantasma de Ešarra-Hammat<br />
Cuando Asarhadon designó a su hijo Asurbanipal oficialmente<br />
como Príncipe heredero del Asiria en 672 a.C., la fallecida madre del<br />
príncipe, Ešarra-hammat, cuya muerte debía ser muy reciente, salió de<br />
su sepulcro para asegurar el cumplimiento de la desig<strong>na</strong>ción de su hijo,<br />
que tal vez ya estaba decidida antes de que ella muriese, el mismo año<br />
que su otro hijo. Según u<strong>na</strong> tablilla contemporanea (Anexo 1 – Fi<strong>na</strong>l do<br />
Texto), su fantasma, preocupado sin duda, se apareció al nuevo Príncipe<br />
heredero en un sueño, bendiciéndole y nombrándole heredero legítimo<br />
de Asiria (SAA 10: 188; PARPOLA, NATCP, 1993).<br />
El Príncipe recibe así, el premio por honrar la memoria de su<br />
madre, que evidencia en la frase ―me bendice de la misma forma que yo<br />
le he reverenciado‖, lo que puede probar que sí se trata del fantasma de<br />
su madre, dado que él había sido encargado por su padre de ocuparse de<br />
su culto funerario.<br />
Este relación ―especial‖ con el ―posible‖ fantasma de su madre<br />
puede evidenciar también la importancia política de la rei<strong>na</strong> fallecida en<br />
vida y que continúa tras su muerte, es decir: Que sus partidarios seguían<br />
existiendo, aunque ella hubiese desaparecido, y que la piedad del<br />
príncipe para con su madre muert, es decir, que estaba políticamente de<br />
acuerdo con su madre, y cómo ella misma le desig<strong>na</strong>ba como heredero al<br />
trono de su padre como miembro de su clan.<br />
7. El Tratado de Naqi’a Zakutu<br />
La última evidencia de la rei<strong>na</strong> Naqī'a es del comienzo del<br />
rei<strong>na</strong>do de Asurbanipal, a fines del año 669 a.C., cuando exigió a la<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
familia real, la aristocracia y la <strong>na</strong>ción asiria, un juramento de fidelidad a<br />
su nieto (SAA 2 8). Según Melville, este fue el clímax y ela punto fi<strong>na</strong>l de<br />
su carrera política, consumación en ella de los planes del hijo (1999:91<br />
de MELVILLE - 92.) y quien sabe si de los arameos que la apoyaban y<br />
protegían.<br />
A la muerte de Ešarra-hammat, su suegra Naqi´a, madre de<br />
Asarhadón, ocupó la vacante política, ritual y oficial de la rei<strong>na</strong> fallecida.<br />
Ella, jefe de la casa del rey y el harén real, era la que había permitido, sin<br />
duda, que la joven llegase al lecho de su hijo, porque convenía a sus<br />
propios intereses políticos y de su facción aramea. La muerte de la joven<br />
rei<strong>na</strong> pudo desbaratar los planes de dría en Naqi´a. Pero el fantasma<br />
vendría en su ayuda. Había que hacer llegar al trono a su nieto favorito.<br />
Y además, conservárselo. Para ello hizo intervenir también a los dioses,<br />
al juramento, a la coacción, a la magia. Ningún medio era extraño ni<br />
estaba de más si se trataba de asegurar el mantenimiento en el trono de<br />
su nieto preferido.<br />
8. El Poder Politico de la Rei<strong>na</strong> Madre<br />
La rei<strong>na</strong> madre ocupaba u<strong>na</strong> posición de gran poder, ya que<br />
mantenía su status real tras la muerte de su esposo, como madre del<br />
nuevo rey, aunque si su poder crecía, a veces el rey podía alejarla de la<br />
Corte, debido a los problemas que podía causar entre los miembros de la<br />
familia real, principalmente en el harén, como hizo en Judá el rey Asa, el<br />
quinto rey de la casa de David y el tercero del Reino de Judá,<br />
gober<strong>na</strong>ndo entre 913 y 873 a. C., bisnieto de Salomón e hijo de Abías<br />
(que tuvo catorce esposas y treinta y ocho hijos), con su madre, la rei<strong>na</strong><br />
Maaca, hija de Uriel de Gibeah nieta de Absalón. El nombre arameo de<br />
esta rei<strong>na</strong> era también el de un pequeño reino arameo de Galilea, y es<br />
fácil comprobar su influencia en otros dos ejemplos bíblicos, como en el<br />
caso de de Betsabé , la esposa preferida de David, que ayudada por el<br />
profeta Natan el profeta, temiendo por el deseo de heredar a su padre<br />
de otro de los hijos de David, llamada Adonías, consiguieron que David<br />
eligiese como heredero a Salomón (el segundo hijo de Betsabé)<br />
(NNOVOTNY-SINGLETARY, 2009: 170). Así púes, estas luchas<br />
fratricidas existían y los manejos en los harenes también. Aunque el caso<br />
de los fantasmas de rei<strong>na</strong>s que confirman el poder se su hijo es el único<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
que conocemos, hecho que la rei<strong>na</strong> Naqia debió utilizar ayudada por<br />
militares, eunucos, brujas, pitonisas, exorcistas y profetas, como en el<br />
caso de Natán, que tras conde<strong>na</strong>r el adulterio de David con ella terminó<br />
apoyando la subida al trono de su hijo Salomón.<br />
A pesar de que eminentes especialistas niegan que la rei<strong>na</strong> Naqia<br />
Zekutu tuviese <strong>na</strong>da que ver con la elección de su nieto Asurbanipal<br />
como Príncipe heredero y luego rey de Asiria (MELVILLE, 1999: 29;<br />
TEEPO, 2005: 36) , lo cierto es que la rei<strong>na</strong> Naqia se apresuró a<br />
confirmar su protección a al nuevo rey. Y posiblemente obligó a firmar<br />
a sus enemigos y los del nuevo rey, un tratado de lealtad que ligase por<br />
un solemne juramento a las fuerzas en litigio, nombradas explícitamente<br />
en el texto:<br />
―Tratado de la lealtad de Naqia-Zukutu de Asiria<br />
(extractos) (h. 670 a.C.) Esposa de Se<strong>na</strong>querib<br />
(h.710 a.C.) Madre de Asarhadón (h.700 a. C.)<br />
Abuela de Asurbanipal (h. 670 a.C.)<br />
―Tratado de Zakutu, rei<strong>na</strong> de Se<strong>na</strong>querib, rey de<br />
Asiria, madre de Asarhadón, rey de Asiria.<br />
Cualquier perso<strong>na</strong> incluida en este tratado que la<br />
rei<strong>na</strong> Zakutu ha concluido con la <strong>na</strong>ción entera,<br />
referente a su nieto preferido Asurbanipal, no se<br />
rebelará contra su señor Asurbanipal, rey del<br />
Asiria, ni en sus corazones concebirán deseos u<br />
acciones malvadas contra su señor Asurbanipal, ni<br />
tramarán para asesi<strong>na</strong>rle.<br />
Quieran Ashur, Shamash e Ishtar castigar y<br />
maldecir a los violadores de este Tratado. Si<br />
alguno oye hablar de un plan para matar o elimi<strong>na</strong>r<br />
a su señor Asurbanipal, rey del Asiria, venga a<br />
informar a Zakutu, su madre y a su señor<br />
Asurbanipal, rey del Asiria. Si oye y conoce que<br />
hay hombres que intentan u<strong>na</strong> conspiración o<br />
rebelión armada contra él, sean hombres o<br />
eunucos o sus hermanos o de la familia real o sus<br />
amigos o cualquier perso<strong>na</strong> de la <strong>na</strong>ción entera, si<br />
lo oyes y lo conoces, los prenderás y matarás y les<br />
43
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
traerás a Zakutu, su madre y a Asurbanipal, rey de<br />
Asiria, tu señor‖.<br />
Los tremendos castigos para quienes violasen dicho tratado iban<br />
desde el exterminio físico de toda su familia a la intervención directa<br />
contra ellos de los dioses citados en el Tratado y desde luego, de las<br />
autoridades asirias. U<strong>na</strong> vez más, magia y política intervenían en el<br />
comportamiento de la ya vieja rei<strong>na</strong> Naqia-Zakutu, para asegurar la paz<br />
para el rei<strong>na</strong>do de su nieto preferido, a cuya elección había contribuido<br />
sin duda, como cabeza visible del clan que la había aupado al trono y al<br />
tálamo del rey Se<strong>na</strong>querib hacía ya bastantes años. Para ello, hasta un<br />
fantasma era bien recibido. Y así se constató en u<strong>na</strong> tablilla conservada<br />
para probarlo, por suerte para la posteridad.<br />
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GARELLI, P. ―Les Dames de l‘empire assyrien‖. In Prosecký, J. (ed.),<br />
Intellectual Life of the Ancient Near East: Papers Presented at the 43 rd<br />
Rencontre assyriologique inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l. Prague: Academy of Sciences of the<br />
Czech Republic Oriental Institute, 1998. pp.175-181.<br />
______. (1982): ―Importance et rôle des Araméens dans l'administration<br />
del l'empire assyrien‖. In: JAHRTAUSEND V. (ed.). Mesopotamien und<br />
seine Nachbarn. Politische und kulturelle Wechselbeziehungen im Alten Vorderasien<br />
vom 4. bis 1. Nissen and J. Renger, CRRAI 25 = Berliner Beiträge zum<br />
Vorderen Orient 1, 1982, 437-447.<br />
Kamil, A. ―Inscriptions on Objects from Yaba's Tomb in Nimrud‖, In:<br />
DAMERJI , M. Gräber assyrischer Königinnen aus Nimrud. Jahrbuch des<br />
Römisch - germanischen Zentralmuseums 45, Mainz, 13-18, 1999, PNA<br />
1/II 433<br />
LUCKENBILL, D. Ancient Records of Assyria and Babylonia, de, vol. 2,<br />
1927, 200-201.<br />
MELVILLE, S. The Role of Naqia/Zakutu in Sargonid Politics. State<br />
Archives of Assyria Studies 9. Helsinki: Neo-Assyrian Text Corpus<br />
Project, 1999.<br />
NOVOTNY, J.; SINGLETARY, J. ―Family Ties: Assurbanipal‘s Family<br />
Revisited‖, Of God(s), Trees, Kings, and Scholars. In: Neo-Assyrian and<br />
Related Studies in Honour of Simo Parpola, Edited by Mikko Luukko, Saa<strong>na</strong><br />
Svärd and Raija Mattila, Helsinki , Studia Orientalia, Published By The<br />
Finnish Oriental Society 106, Helsinki 2009, 167-177<br />
ORNAN, T. ―The Queen in Public: Royal Women in Neo-Assyrian<br />
Art‖. In: PARPOLA, S.; WHITING, R. M. (eds.). Sex and Gender in the<br />
Ancient Near East, vol 2. Proceedings of the XLVII e Rencontre<br />
Assyriologique Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>le. Helsinki: The Neo-Assyrian text Corpus<br />
project, 2002.<br />
PARPOLA, S. Letters from Assyrian scholars to the Kings Esarhaddon and<br />
Assurbanipal. Part II, Commentary and appendices. Alter Orient und<br />
Altes Testament 5/2. Kevelaer: Verlag Butzon und Bercker;<br />
Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1983.<br />
45
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
______. (ed.). The Correspondence of Sargon II, Part I: Letters from Assyria and<br />
the West. SAA 1. Helsinki: Helsinki University Press, 1987.<br />
______. ―The Neo-Assyrian word for ‗queen‘‖. SAAB II/2, 1988, pp.<br />
73-76.<br />
______. (ed.). Letters from Assyrian and Babylonian Scholars. SAA 10.<br />
Helsinki: Helsinki University Press, 1993.<br />
______. (ed.). Assyrian Prophecies. SAA 9. Helsinki: Helsinki University<br />
Press, 1997.<br />
______. ―Natio<strong>na</strong>l and Ethnic Identity in the Neo-Assyrian Empire and<br />
Assyrian Identity in Post-Empire Times― In: 48th Rencontre Assyriologique<br />
Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>le, Leiden 2002, devoted to the theme “Ethnicity in Ancient<br />
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-Id. Jour<strong>na</strong>l of Assyrian Academic Studies, Vol. 18, no. 2, 2004, pp. 55-<br />
22.<br />
PEDERSÉN, O. Archives and Libraries in the city of Assur. Studia Semitica<br />
Upsaliensia 8. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis, 1986.<br />
RADNER, K. (ed.). The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire, volume<br />
1, part I, A. Helsinki: The Neo-Assyrian Text Corpus Project, 1998.<br />
RADNER, K. (ed.). The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire, volume<br />
1, part II, B-G. Helsinki: The Neo-Assyrian Text Corpus Project, 1999a.<br />
Reade, J. ―Was Sen<strong>na</strong>cherib a Feminist?‖. In: DURAND, J.-M. (ed.). La<br />
Femme dans le Proche-Orient Antique: XXXIIIe Rencontre Assyriologique<br />
Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>le. Paris: Editions Recherche sur les Civilisations, 1987.<br />
SEIBERT, I. Woman in the Ancient Near East. Leipzig, 1974.<br />
SELMS, A. van. Marriage and Family Life in Ugaritic Literature. Pretoria<br />
Oriental Series 1. London, 1954.<br />
STEELE, F. R. Nuzi Real Estate Transactions. American Oriental Series<br />
25. New Haven, 1943<br />
TEPPO, S. Women and their agency in the Neo-assyrian empire. Tesis<br />
Doctoral, Hesinki, 4. Assirian Royal Women, 34, 4.1 Queen‘s ,34, 4.2.,<br />
Queens household, 40 ; 4.3 Daughters of kings and other royal women,<br />
.43, 2005.<br />
VÁZQUEZ HOYS, A. Mª. Historia del Mundo Antiguo (Próximo Oriente<br />
y Egipto). Madrid: Editorial Sanz y Torres, 2007.<br />
46
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ABREVIATURAS<br />
PNA 1/I = The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire 1/I, cfr.<br />
Radner 1998.<br />
PNA 1/II = The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire 1/II, cfr.<br />
Radner 1999a.<br />
PNA 2/I = The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire 2/I, cfr<br />
Baker 2000.<br />
PNA 2/II = The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire 2/II, cfr.<br />
Baker 2001.<br />
PNA 3/I = The Prosopography of the Neo-Assyrian Empire 3/I, cfr.<br />
Baker 2002.<br />
RIMA 2 = Royal Inscriptions of Mesopotamia 2, see Grayson 1991.<br />
RIMA 3 = Royal Inscriptions of Mesopotamia 3, see Grayson 1996.<br />
SAA 1 = State Archives of Assyria 1, see Parpola 1987<br />
SAA 2 = State Archives of Assyria 2, see Parpola and Wata<strong>na</strong>be 1988.<br />
SAA 3 = State Archives of Assyria 3, see Livingstone 1989.<br />
SAA 4 = State Archives of Assyria 4, see Starr 1990.<br />
SAA 5 = State Archives of Assyria 5, see Lanfranchi and Parpola 1990.<br />
SAA 6 = State Archives of Assyria 6, see Kwasman and Parpola 1991.<br />
SAA 7 = State Archives of Assyria 7, see Fales and Postgate 1992.<br />
47
Anexo – 1<br />
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
48
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
HELENA DE TRÓIA E HELENA DO EGITO<br />
Prof.ª Dr.ª A<strong>na</strong> Teresa Marques Gonçalves 21<br />
Prof.ª Ms.ª Tatielly Fer<strong>na</strong>ndes Silva 22<br />
Grande número dos trabalhos atuais dedicados ao estudo das<br />
mulheres busca demonstrar que estivemos durante longo tempo diante<br />
ape<strong>na</strong>s de discursos masculinos acerca das mulheres e que estes tendem<br />
a retratá-las como absolutamente passivas, sem participação ativa <strong>na</strong><br />
sociedade em qualquer esfera relacio<strong>na</strong>da às atividades de caráter<br />
público, por estarem as mulheres restritas ao domínio do espaço privado,<br />
das atividades domésticas, dos cuidados de do<strong>na</strong>-de-casa, mãe e esposa.<br />
Porém, iniciou-se um período, ainda em vigência, de revisão destes<br />
discursos até agora elaborados sobre o feminino, o gênero, a mulher, por<br />
ser evidente a necessidade de reelaboração destes. A oposição públicoprivado,<br />
especialmente presente nos estudos em <strong>Antiguidade</strong>, povoa de<br />
modos semelhantes a historiografia geral, quando se opõe homens e<br />
mulheres.<br />
Segundo Raquel Soihet 23 (1997: 58), após a eclosão dos<br />
movimentos feministas <strong>na</strong> década de 1970 que tiveram repercussão em<br />
diferentes níveis em todo o mundo ocidental, houve uma modificação<br />
que levou ao desenvolvimento de uma corrente historiográfica disposta a<br />
pensar a ―diferença‖, a inexistência de uma ―essência femini<strong>na</strong>‖ e observar-se<br />
com mais rigor as múltiplas identidades femini<strong>na</strong>s. Bem como as<br />
múltiplas identidades, de forma geral, estavam ganhando cada vez mais<br />
espaço <strong>na</strong>s Ciências Huma<strong>na</strong>s. Desta maneira, podemos agora fazer uma<br />
História das <strong>Mulheres</strong> em qualquer período histórico que entenda as<br />
21 Professora Adjunta de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de<br />
Goiás. Doutora em História Econômica pela USP. Bolsista Produtividade do<br />
CNPQ. anteresa@terra.com.br<br />
22 Alu<strong>na</strong> do Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal de<br />
Goiás, em nível de Mestrado. Bolsista CAPES. fer<strong>na</strong>ndes.tatielly@gmail.com<br />
23 Artigo Enfoques feministas e a História: desafios e perspectivas. In: SAMARA; E. de<br />
M; SOIHET, R. MATOS, M. I.S. Gênero em Debate. Trajetória e Perspectivas <strong>na</strong><br />
Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997.<br />
49
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
particularidades deste enfoque e, especialmente, que possa lançar um<br />
olhar para o gênero feminino e vê-lo como absolutamente plural, já que<br />
existem ―várias mulheres‖ e estas estão inseridas <strong>na</strong> sociedade de formas<br />
também absolutamente variadas.<br />
Este debate abre um extenso leque de possibilidades para os<br />
novos estudos acerca das mulheres, que ultrapassa o limite estabelecido<br />
pelo determinismo biológico, e o isolacionismo inerente a este discurso,<br />
ou seja, o universo feminino e o masculino eram a<strong>na</strong>lisados como duas<br />
esferas que não se tocavam, que se moviam autonomamente.<br />
Entendemos aqui, porém, que um não pode ser compreendido sem o<br />
outro, que são complementares, mais que isso, são componentes um do<br />
outro, haja vista que as relações sociais não se estabelecem sem<br />
comunicação.<br />
Utilizar-nos-emos ainda do artigo de Raquel Soihet para<br />
apresentar de forma bastante sucinta a forma como estamos utilizando o<br />
conceito de gênero:<br />
Gênero tem sido, desde a década de 1970, o termo<br />
utilizado para teorizar a questão da diferença<br />
sexual. Foi inicialmente usado pelas feministas<br />
america<strong>na</strong>s com vistas a conceituar o caráter<br />
fundamentalmente social das distinções baseadas<br />
no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao<br />
determinismo biológico implícito no uso de<br />
termos como ―sexo‖ ou ―diferença sexual‖. O gênero<br />
sublinha o aspecto relacio<strong>na</strong>l entre as mulheres e<br />
os homens, ou seja, nenhuma compreensão de<br />
qualquer um dos dois pode existir por meio de um<br />
estudo que os considere totalmente em separado<br />
(SOIHET, 1997: 63)<br />
O que nos interessa, principalmente, é a abertura ocasio<strong>na</strong>da por<br />
estes movimentos sociais e que nos permitem agora dedicar atenção<br />
acadêmica a perso<strong>na</strong>gens históricos femininos e considerá-las como<br />
atores sociais ativos. Ainda que o movimento feminista contenha em si<br />
inúmeras disparidades, discursos contrários, e integrantes ativas que<br />
lutam com objetivos distintos, - não cabe agora um detalhamento destes<br />
aspectos – o que suas ações trouxeram à to<strong>na</strong> adquiriu uma vida<br />
50
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
independente e são agora objeto de estudo de vários campos científicos.<br />
Cabe a ressalva de que<br />
[...] embora a história das mulheres esteja<br />
certamente associada à emergência do feminismo,<br />
este não desapareceu, seja como uma presença <strong>na</strong><br />
academia ou <strong>na</strong> sociedade em geral, ainda que os<br />
termos de sua organização e de sua existência<br />
tenham mudado (SCOTT apud GONÇALVES,<br />
2006: 63).<br />
Ao lidarmos com os vestígios que nos permitem estudar o<br />
passado humano devemos ter em vista os riscos inerentes ao trabalho<br />
historiográfico e a possibilidade de estarmos lidando com fatos que se<br />
quer ocorreram ou que podem ter se passado de forma totalmente alheia<br />
ao que conseguimos averiguar por meio de nosso esforço teóricometodológico.<br />
Lowenthal (1998: 279) afirma que, de qualquer maneira,<br />
não devemos por tudo em xeque, pois os vestígios do passado são<br />
presentes em nossas tradições e em nossa constituição enquanto seres<br />
humanos tais como somos hoje. O que é certamente verificável no que<br />
diz respeito à tradição ocidental sobre os lugares definidos para ―a<br />
mulher‖. O espaço privado, o silêncio, a obediência permeiam o<br />
imaginário relacio<strong>na</strong>do ao assunto ―sexo frágil‖, independente de todas as<br />
revisões teóricas, movimentos sociais, e da evidente presença femini<strong>na</strong><br />
em todas as esferas do espaço público.<br />
Assim, nos ocupamos agora, tendo essa ―bagagem em mãos‖ da<br />
representação feita por Eurípides da perso<strong>na</strong>gem mítica Hele<strong>na</strong>,<br />
componente do que convencio<strong>na</strong>mos chamar de mitologia grega 24,<br />
24 Segundo Marcel Detienne em A invenção da mitologia foi através de filósofos, a<br />
partir de Xenofonte (aproximadamente 530 a.C.) até Empedocles (450 a.C.) que<br />
o termo mito, mythos, passou a ser utilizado pelo pensamento racio<strong>na</strong>l, no<br />
sentido de <strong>na</strong>rrativa sagrada ou discurso sobre os deuses. Um tecido mítico<br />
homogêneo é, portanto, estranho à realidade grega arcaica e em Heródoto,<br />
Píndaro, Tucídides, o que distingue o mito da massa de ditos e <strong>na</strong>rrativas é a<br />
raridade e o absurdo. O termo mitologia é utilizado pela primeira vez por<br />
Platão, quando ―denuncia as <strong>na</strong>rrativas dos antigos como escandalosas e cria<br />
seus próprios mitos sobre a alma, sobre o <strong>na</strong>scimento do universo e sobre a<br />
51
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
integrante do ciclo troiano, <strong>na</strong> sua dramaturgia trágica, mais<br />
especificamente, <strong>na</strong> tragédia Hele<strong>na</strong>, apresentada em 412 a.C.. Tendo em<br />
vista para este fim que não existe uma distinção universal, invariável,<br />
<strong>na</strong>tural entre as categorias homem e mulher, masculino e feminino,<br />
tratando-se antes de construções discursivas presentes em todas as<br />
esferas da experiência huma<strong>na</strong>, portanto, sendo também verificável <strong>na</strong><br />
manifestação da tragédia no espaço público de Ate<strong>na</strong>s e no discurso<br />
dramático trágico de Eurípides.<br />
Eurípides é o tragediógrafo grego que mais peças teve<br />
conservadas e costuma ser lembrado por apresentar <strong>na</strong> maioria de suas<br />
obras protagonistas femini<strong>na</strong>s, além de ser considerado o autor que<br />
elevou o gênero trágico ao seu ápice e esgotamento <strong>na</strong> Grécia. A peça<br />
Hele<strong>na</strong> é assi<strong>na</strong>lada por Albin Lesky (1990: 174) como uma construção<br />
atípica do tragediógrafo e que já caminha para a comédia nova por<br />
destoar da elaboração do trágico que leva à catarse do público assistente.<br />
Essas mulheres apresentadas no palco certamente nos permitem<br />
aproximar das mulheres contemporâneas aos escritores trágicos, uma vez<br />
que a tragédia é um texto que de maneira nenhuma pode ser visto<br />
separadamente do seu contexto de produção, exatamente como qualquer<br />
outra produção cultural, no entanto, se essa observação fazemos é<br />
devido á estreita vinculação do gênero com um determi<strong>na</strong>do momento<br />
da história de Ate<strong>na</strong>s e a vida desta cidade, ―a verdadeira matéria da tragédia<br />
é o pensamento social próprio da cidade‖ (VERNANT; VIDAL-NAQUET,<br />
1999: 03)<br />
A nosso ver Hele<strong>na</strong>, <strong>na</strong> obra homônima é um autêntico modelo<br />
da mélissa, da esposa legítima do cidadão ateniense. Casta, fiel,<br />
obediente. No entanto, Hele<strong>na</strong> possui atributos que a levam a manifestar<br />
um caráter ambíguo, pois, por mais casta que seja, é dotada de uma<br />
beleza sensual, sedutora, sem igual entre as mortais, que recebeu como<br />
herança de Zeus, seu pai.<br />
Estas características, Eurípides evidencia em Hele<strong>na</strong>. A<br />
protagonista é possuidora de um caráter respeitável, honesto, porém,<br />
ainda assim capaz de despertar paixões por onde passa. Páris, quando<br />
vida do além‖ (DETIENNE, 1998: 152) e é o filósofo que aponta Hesíodo e<br />
Homero como os construtores do edifício da ―mitologia‖.<br />
52
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
solicitado por Zeus a escolher entre Hera, Ate<strong>na</strong> e Afrodite qual a mais<br />
bela, escuta as ofertas que cada uma lhe faz para ser eleita, e recusa<br />
poder, autoridade e domínio para ter Hele<strong>na</strong>, o prêmio oferecido por<br />
Afrodite e esta consegue o que deseja. Essa é a versão apresentada por<br />
Eurípides nesta tragédia, o mito, como a maioria, possui outras versões e<br />
sofre variações no decorrer do tempo.<br />
Hele<strong>na</strong> tem como pai humano, Tíndaro, rei de Esparta, esposo<br />
de sua mãe, Leda. É, portanto, uma ―cidadã‖ 25, esposa legítima de<br />
25 Segundo Giselle da Mata, em comunicação apresentada <strong>na</strong> Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro, no XVIII Ciclo de Debates em História em setembro<br />
de 2008, os argumentos disponíveis para justificar a possibilidade de uma<br />
cidadania femini<strong>na</strong> <strong>na</strong> Ate<strong>na</strong>s Clássica ocorre em virtude de sua participação <strong>na</strong><br />
transmissão da cidadania e nos ritos religiosos. Esta integração ocorre por<br />
intermédio da Lei Periclia<strong>na</strong> de 451 – 450 a.C., que restringiu a cidadania a filhos<br />
de pais e mães atenienses eupatridaí, assim como nos ritos religiosos oficiais<br />
citadinos, espaço público em que observamos a presença das Gy<strong>na</strong>ikes. Deste<br />
modo, a observação de uma cidadania femini<strong>na</strong> <strong>na</strong> polis ateniense segue duas<br />
vertentes. A primeira sugere, mesmo que indiretamente de forma não<br />
institucio<strong>na</strong>lizada, a integração da Mélissa <strong>na</strong> cidadania democrática, em virtude<br />
de sua importância para a continuidade da mesma e <strong>na</strong> vida religiosa... As<br />
Melissaí não eram definidas como cidadãs, pois não participavam da política, mas<br />
de acordo com a Lei de Péricles as condições de acesso à cidadania <strong>na</strong> polis<br />
derivava do <strong>na</strong>scimento de pais cidadãos. Desta maneira, os homens só se<br />
tor<strong>na</strong>vam cidadãos pelas mulheres. Na Até<strong>na</strong>s do século V a.C., segundo Claude<br />
Mossé, em ―Péricles: O Inventor da Democracia‖, ser cidadão não significava ape<strong>na</strong>s<br />
fazer parte de um grupo integrado à vida política, mas participar da tomada de<br />
decisões dessa mesma comunidade no plano religioso, mantendo uma boa<br />
relação com os deuses para que garantissem benefícios e proteções (MOSSÉ,<br />
2008: 47). ―Quanto às mulheres, embora excluídas da política, participavam no âmbito da<br />
civilidade definida como vida religiosa‖ Era através da religião que as mulheres tinham<br />
condições de envolver-se mais livremente <strong>na</strong> vida comunitária (MASSEY, 1988:<br />
38). As mulheres (esposas e filhas de cidadão) eram responsáveis por inúmeros<br />
rituais: casamentos, <strong>na</strong>scimentos e funerários, além dos inúmeros cultos oficiais<br />
da cidade dos quais eram parte integrante. Na esfera religiosa as mulheres<br />
desfrutavam dos mesmos direitos e deveres que os homens ao desempenharem<br />
as funções de sacerdotisas sendo tratadas com equidade (ZAIDMAN, 1990:<br />
456). Dentre os principais cultos nos quais as mulheres estavam presentes<br />
podemos citar: as Adoníades, os rituais iniciáticos de Ártemis, as Leneias, as<br />
53
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Menelau, com quem tem uma filha, Hermíone. Enquadra-se, portanto,<br />
no estatuto da mulher ateniense, - apesar de ser uma esparta<strong>na</strong>, está<br />
sendo representada por um ateniense - que baseia-se <strong>na</strong> exemplaridade<br />
doméstica. Seguindo a ordem dos deuses, do nomós e da physis uma boa<br />
esposa deve ser casta, silenciosa, dedicada à economia doméstica e ao<br />
cuidado dos filhos. Entre as próprias mulheres, segundo Andrade (2010:<br />
117), havia um par de opostos, sendo a mélissa, a boa esposa, a<br />
contraposição da mulher dotada de todos os atributos femininos como a<br />
sedução, emoção, ambigüidade de caráter, a astúcia.<br />
A mulher virtuosa deveria negar sua feminilidade. Hele<strong>na</strong>,<br />
porém, acumulava ambas as características, ainda que a contragosto, pois<br />
a vemos amaldiçoar e negar sua beleza por ter sido a causadora de tanto<br />
sofrimento. Como se pode ver nos versos abaixo:<br />
Hele<strong>na</strong>: Não houve outra mulher, ou grega ou bárbara,/ de que<br />
houvesse <strong>na</strong>scido um ovo branco,/ como aquele do qual proveio a filha/<br />
de Zeus e Leda. Minha vida/ é maravilha, como tudo quanto/ me<br />
aconteceu; minha beleza e Afrodite/ causaram-me a desgraça. / Ao céu<br />
prouvesse/ que estes meus traços se apagassem, como/ as cores da<br />
pintura, e que a beleza/ cedesse em meu semblante, á fealdade!<br />
(EURIPIDES, Hele<strong>na</strong>, vs.349 a 359).<br />
No entanto, Hele<strong>na</strong> é ardilosa, astuciosa, e é graças a esses<br />
talentos que ela consegue elaborar o plano que a salvará juntamente com<br />
seu esposo Menelau do rancor que Teoclimeno, rei do Egito após a<br />
morte de Proteu, alimenta contra os gregos, especialmente, do marido<br />
daquela que deseja esposar. E estas características ela não renega e<br />
mesmo seu esposo não a censura, pois, parte dela o plano de salvação de<br />
ambos. Teonoe, irmã de Teoclimeno, não admira o estratagema de<br />
Hele<strong>na</strong>, porque estava envolvida nele e se comprometeria com seu<br />
Antestérias, as Pa<strong>na</strong>teneias e também as Tesmofórias, sendo que deste último<br />
ritual participavam somente as esposas legítimas (LISSARRAGUE, 1990). A<br />
presença da gyné gameté no âmbito religioso constituía um traço tão marcante<br />
<strong>na</strong> organização da pólis, que Zaidman (1990: 411) a denominou de cidadã<br />
cultual: ―(...) as mulheres a priori excluídas da vida política portanto do sacrifício, estão, no<br />
entanto integradas, por diversas formas, <strong>na</strong> vida religiosa da cidade, a ponto de se poder falar a<br />
seu respeito de „cidadania cultual‟ ‖. (FARIA, 2007: 211-212).<br />
54
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
irmão, mas é este o motivo que a leva a recusar inicialmente e não outro.<br />
(EURIPIDES, Hele<strong>na</strong>, vs.1329 a 1309)<br />
No entanto, há uma outra Hele<strong>na</strong>, a que está em Tróia com<br />
Páris, que o desposa e permanece com ele até ser resgatada.<br />
Digamos que há uma Hele<strong>na</strong> que é Hele<strong>na</strong>, e que<br />
Hera, a esposa por excelência, para livrá-la de todo<br />
esse lado malsão do rapto, da ruptura de contrato,<br />
da infidelidade, encaminha para o Egito, <strong>na</strong> casa de<br />
um velho rei que já não lhe pode sequer fazer mal,<br />
Proteu. Ali ela espera o tempo passar. É o<br />
protótipo da mulher fiel, perfeita esposa de marido<br />
partido para a guerra (CASSIN, 2005: 302) 26<br />
Na leitura de Bárbara Cassin, Hele<strong>na</strong> é Penélope, porém,<br />
lutando contra um só pretendente, Teoclimeno. Enquanto a outra,<br />
espécie de fantasma, eidolon, permanece ao lado do amante em Tróia até a<br />
morte deste, sendo desposada em seguida por seu cunhado Deífobo,<br />
permanecendo, contudo, <strong>na</strong> companhia da casa real troia<strong>na</strong> até o fi<strong>na</strong>l da<br />
guerra.<br />
Nosso olhar volta-se assim, primeiramente, para a esposa<br />
legítima do cidadão ateniense, a mélissa. Porém, devemos nos lembrar de<br />
que <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong> ateniense clássica, aparecem outros modelos<br />
femininos muito distintos destes, como as concubi<strong>na</strong>s ou paláki<strong>na</strong>s, as<br />
hetairas, as por<strong>na</strong>í e as escravas, que possuem status diferenciados <strong>na</strong><br />
sociedade ateniense do século V a.C., sendo ainda possível, obviamente,<br />
acentuarmos que dentro destes modelos haverá também distinções.<br />
Portanto, falamos aqui de mulheres atenienses do século V a.C., jamais<br />
de uma mesma mulher.<br />
Ainda que as mulheres estivessem em todo o momento sob<br />
tutela de um homem, e mesmo a mélissa, não pudesse ser considerada<br />
cidadã no sentido estritamente institucio<strong>na</strong>l do termo, possuíam o seu<br />
estatuto e lugar definido dentro da organização social da cidade. Uma<br />
questão apontada por Andrade (2010: 05) é a da apropriação destas<br />
26 Artigo componente do livro Memória e Festa, organizado por Fábio de Souza<br />
Lessa e Regi<strong>na</strong> da C. Bustamante, presente <strong>na</strong> bibliografia.<br />
55
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mulheres de um discurso masculino a seu respeito. Segunda a autora,<br />
para a mélissa ateniense adequar-se a esse modelo garantia-lhes prestígio<br />
e diferenciação do restante das mulheres, tanto no espaço público<br />
quanto no privado.<br />
Andréa Lisly Gonçalves (2006: 91) acentua que os estudos sobre<br />
mulheres durante longo tempo dedicaram-se à <strong>na</strong>rração biográfica de<br />
rainhas, princesas, entre outras notáveis, que se destacavam no campo<br />
político, ou seja, em uma esfera domi<strong>na</strong>da pelo masculino e às demais<br />
mulheres a historiografia concedia papel secundário. Hele<strong>na</strong> é uma<br />
rainha, rainha de Esparta, Menelau lá gover<strong>na</strong> por haver se casado com<br />
ela, mas não a vemos destacar-se no campo político, sua atuação está<br />
limitada, como dissemos anteriormente, ao espaço de atuação de uma<br />
boa esposa, ainda que tenha sido o motivo que levou à eclosão da<br />
Guerra de Tróia. No prólogo da peça são enumerados por Hele<strong>na</strong> os<br />
motivos para justificar a guerra, são eles: a disputa entre as três deusas<br />
pelo prêmio da beleza e o excesso de homens sobre a terra que a<br />
cansavam demasiadamente, para livrá-la desse mal Zeus arquitetou a<br />
guerra com a fi<strong>na</strong>lidade de obter uma redução demográfica. Hele<strong>na</strong>, é,<br />
portanto, o ponto focal do conflito, mas todo ele é parte de um conflito<br />
olímpico e obedece á necessidade de manutenção da ordem e<br />
estabilidade da terra.<br />
Hele<strong>na</strong>: A esses males juntaram-se os desígnios/ de Zeus, que<br />
ateou a guerra cruenta entre os Gregos e os Frígios infelizes,/ para livrar<br />
a nossa mãe, a terra,/ do fardo de uma multidão inútil. (EURIPIDES,<br />
Hele<strong>na</strong>, vs.50 a 54).<br />
Lidamos ainda com o fato de nosso objeto de estudo ser uma<br />
perso<strong>na</strong>gem mítica, o que nos leva à necessidade de entender a relação<br />
estabelecida entre a representação feita por Eurípides no teatro com a<br />
forma como essa sociedade lidava com estes perso<strong>na</strong>gens. Tragédias não<br />
são mitos, são ao contrário uma releitura específica de um período da<br />
história de Ate<strong>na</strong>s do fim do século VI ao V a.C.. Não devem ser vistas<br />
ape<strong>na</strong>s como uma nova versão de um mito, possuem sentido, intenção,<br />
estruturas próprias (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999: 04)<br />
relacio<strong>na</strong>das ao contexto específico no qual os tragediógrafos<br />
produziram.<br />
56
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Na tragédia Hele<strong>na</strong>, temos como tema principal o reencontro dos<br />
esposos há muito separados. Hele<strong>na</strong> foi levada ao Egito e esteve aos<br />
cuidados de Proteu e um eidolon, um duplo seu, foi levado por Páris a<br />
Tróia, e posteriormente retomado por Menelau. A protagonista lamenta<br />
sua triste si<strong>na</strong> e as desgraças que ―seu nome‖ e não seu ―eu verdadeiro‖<br />
causaram a tantos gregos e troianos. A excepcio<strong>na</strong>lidade do discurso<br />
presente nesta obra que apresenta uma perso<strong>na</strong>gem que poderia causar<br />
certo desconforto ao unir à mulher ideal para esposar o cidadão<br />
ateniense a sensualidade, o ardil, a mentira, sendo o primeiro resultado<br />
de sua filiação e os dois seguintes, a manifestação de características<br />
típicas das mulheres. Não configurando-se desta forma como ações<br />
voluntárias de Hele<strong>na</strong>, ela ape<strong>na</strong>s lida com estes ―talentos‖ conforme as<br />
circunstâncias. ―O domínio da tragédia situa-se nessa zo<strong>na</strong> fronteiriça aonde os<br />
atos humanos vem articular-se com as potências divi<strong>na</strong>s , onde elas assumem<br />
seu verdadeiro sentido, ignorado do agente, integrando-se numa ordem que ultrapassa<br />
o homem e a ele escapa‖. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999: 23). Pois,<br />
mesmo o que é i<strong>na</strong>to às mulheres não é algo que lhes possamos atribuir<br />
como tendo tido desenvolvimento próprio ou voluntário. As<br />
características típicas do feminino foram dadas pelos deuses olímpicos a<br />
Pandora, primeira mulher, criada como castigo para o homem que agora<br />
dependeria de uma intermediária para continuar reproduzindo os seus<br />
iguais.<br />
Pandora é, num mito hesiódico, a primeira mulher.<br />
Foi criada por Hefesto e Ate<strong>na</strong>, com o auxílio de<br />
todos os outros deuses, por ordem de Zeus. Cada<br />
um deles lhe atribuiu um dom: recebeu assim a<br />
beleza, a graça, a destreza manual, a capacidade de<br />
persuadir e outras qualidades. Mas Hermes<br />
colocou no seu coração a mentira e a astúcia.<br />
Hefesto fê-la à imagem das deusas imortais, e Zeus<br />
destinou-a à punição da raça huma<strong>na</strong>, à qual<br />
Prometeu tinha acabado de dar o fogo divino<br />
(GRIMAL, 2000: 353)<br />
Ainda segundo o verbete do Dicionário da Mitologia Grega e<br />
Roma<strong>na</strong> de Pierre Grimal, Pandora é tomada como esposa por Epimeteu,<br />
irmão de Prometeu e aí seguem-se duas versões. A primeira diz que<br />
57
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Pandora teria aberto um recipiente que continha todos os males e estes<br />
se espalharam pelo mundo e a segunda afirma que o vaso continha todas<br />
as coisas boas. Depois de levantada a tampa que as continha voltaram<br />
para o Olimpo restando aos homens ape<strong>na</strong>s as coisas ruins. De qualquer<br />
maneira, por uma atitude imprudente movida pela curiosidade Pandora<br />
trouxe a desgraça à Terra.<br />
Esta é a Eva da Ate<strong>na</strong>s do século V a.C., e suas características<br />
<strong>na</strong>tas estarão presentes em todas as mulheres. Eurípides as apresenta em<br />
Hele<strong>na</strong>s bastante humanizadas, a ―real‖, presença física, em oposição ao<br />
seu ―nome‖ que perambula carregado pelo seu eidolon, feito de éter.<br />
Ainda que este seja o transgressor, o infiel, o causador da guerra, a<br />
―Hele<strong>na</strong> de Tróia‖ não é de todo distante da ―Hele<strong>na</strong> do Egito‖, pois esta é<br />
ainda mulher e, consequentemente, carrega em si a herança daquela que<br />
foi enviada como castigo para o homem e espalhou o mal pela Terra.<br />
Keila Maria de Faria 27 discorrendo sobre as ressignificações de Pandora<br />
<strong>na</strong> literatura ateniense, cita a decomposição desta em vários modelos de<br />
mulheres elaborada pelo poeta Semonides, de Amorgos, no século VII<br />
a.C., <strong>na</strong> qual a única mulher que não recebe críticas é a mulher-abelha, a<br />
mélissa.<br />
Ao comparar a mulher e os animais, o poeta<br />
[Semonides] criou um catálogo de defeitos<br />
femininos no qual as mulheres não possuíam<br />
nenhuma qualidade. Uma gostava da sujeira, a<br />
outra se banhava em excesso; uma falava demais, a<br />
outra queria ouvir demasiado o que não lhe<br />
convinha; uma roubava, a outra não trabalhava;<br />
uma comia as carnes consagradas, a outra era<br />
ardilosa e astuta; uma acolhia qualquer um em seu<br />
leito para os atos de Afrodite, a outra era<br />
dissimulada, mudando constantemente de<br />
sentimentos, assim como a água altera sua forma,<br />
segundo o recipiente em que é colocada. Desta<br />
forma, a lista de deficiências é imensa, pois não<br />
27 Dissertação de mestrado apresentada em 2007 ao Programa de Pós-<br />
Graduação em História da UFG, intitulada Medéia e Mélissa: representações do<br />
feminino no imaginário ateniense do século V a.C.<br />
58
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
pontuamos todos os defeitos... Recatada, silenciosa<br />
e discreta, assim deveria ser a esposa ideal, que<br />
possuía como função precípua conceber herdeiros<br />
legítimos mediante matrimônio, perpetuando a<br />
descendência do oikos e gerando os cidadãos à<br />
pólis, portanto, a mélissa não deveria reivindicar o<br />
prazer sexual, o sexo no casamento era<br />
exclusivamente para reprodução (FARIA. 2007:<br />
91-92).<br />
A ―Hele<strong>na</strong> de Tróia‖ é a mulher, ainda que não o seja em carne e<br />
osso, que traiu o marido, abandonou-o para seguir a Páris, cedeu aos<br />
encantos concedidos a este por Afrodite para seduzi-la. Até porque, a<br />
deusa a havia prometido como recompensa ao príncipe frígio, sendo,<br />
portanto, inevitável que este a possuísse. Não fosse o estratagema de<br />
Hera, Hele<strong>na</strong> teria sido ape<strong>na</strong>s a ―Hele<strong>na</strong> de Tróia‖, querendo ou não,<br />
como acontece <strong>na</strong>s demais tragédias de Eurípides que fazem referência a<br />
este episódio 28.<br />
Ainda que Eurípides tenha se utilizado de suas protagonistas<br />
como porta-vozes do que desejava dizer aos seus contemporâneos, da<br />
manifestação de suas opiniões a respeito de questões referentes á vida da<br />
cidade, uma vez que, a tragédia não é dissociada do espaço político, ―mas,<br />
ao contrário é reconhecida como fórum de apresentação e de debate de problemas éticos,<br />
28 O episódio possui notável destaque e desenvolvimento em As Troia<strong>na</strong>s e<br />
Orestes. Em As Troia<strong>na</strong>s, Hele<strong>na</strong> está junto das cativas, mas não é vista como<br />
uma igual por estas, é acima de tudo, a mulher adúltera que causou a destruição<br />
de Ílion, e esposa de Menelau que voltará com ele para Esparta, enquanto as<br />
demais serão enviadas como escravas para terra estrangeira, inclusive a rainha<br />
Hécuba. Em Orestes, há um clima geral de rancor contra Hele<strong>na</strong>, mas Menelau<br />
teme por sua vida e tenta protegê-la. É descrita como fútil, vaidosa, mentirosa.<br />
―Não é tão arguta como em Troia<strong>na</strong>s, nem determi<strong>na</strong>da como em Hele<strong>na</strong>.<br />
Nesta tragédia, a perso<strong>na</strong>gem recebeu um tratamento mais duro, tor<strong>na</strong>ndo-se<br />
mais superficial, mais fria e monolítica‖ (NÓLIBOS, 2006: 119). Porém, é a<br />
única ocasião em que temos um fim determi<strong>na</strong>do para a perso<strong>na</strong>gem, vemos a<br />
sua volta para casa, o reencontro com a filha, e por fim, sua imortalização<br />
quando Apolo, a pedido de Zeus, a salva de ser assassi<strong>na</strong>da por Orestes,<br />
tor<strong>na</strong>ndo-a protetora dos <strong>na</strong>vegantes. (EURIPIDES, Orestes, vs. 1638 a 1642).<br />
59
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sociais e religiosos‖ (NÓLIBOS, 2006: 83), está implícito em seu discurso e<br />
podemos ler de diversas formas a presença de um referencial feminino<br />
baseado numa tradição que ao mesmo tempo define e é construída pelas<br />
<strong>na</strong>rrativas míticas. Não queremos com isso reafirmar o discurso<br />
historiográfico que vê Eurípides como misógino nem enquadrá-lo em<br />
uma tosca espécie de pré-feminista. Afirmamos ape<strong>na</strong>s que não existe<br />
escrita neutra, que não nos dissociamos do nosso tempo por mais<br />
vanguardistas que possamos ser, que não dialogamos sozinhos ou com<br />
um interlocutor do futuro, de modo que, Eurípides ao apresentar<br />
mulheres fortes, determi<strong>na</strong>das, ativas, que chegam aos limites dos<br />
sentimentos humanos no amor ou no ódio, nos permite reconhecer,<br />
ainda que <strong>na</strong>s entrelinhas, traços característicos das mulheres com as<br />
quais ele relacio<strong>na</strong>va-se em sua comunidade ou, mais provavelmente, do<br />
imaginário 29 ateniense do século V a.C. acerca destas mulheres.<br />
O fato de assim expor uma grande diversidade de mulheres em<br />
um espaço público, certamente tem despertado a curiosidade de demais<br />
poetas, espectadores, estudiosos ao longo destes mais de dois milênios,<br />
pois Eurípides coloca no palco, representadas obviamente por atores<br />
masculinos, aquelas que deveriam ser em tudo discretas e silenciosas,<br />
comedidas, prudentes em cumprir suas funções, assim como os cidadãos<br />
atenienses deveriam ser racio<strong>na</strong>is e não passio<strong>na</strong>is. O tragediógrafo trás a<br />
público, concede voz, e ―apresenta tanto heroí<strong>na</strong>s depravadas, rebeldes,<br />
vingativas, (Estenóbeia, Fedra, Medéia) como mulheres abnegadas e devotadas ao<br />
sacrifício (Alceste, Ifigênia, Macária)‖ (FARIA, 2007: 49). Muito, assim, se<br />
discutiu acerca dos motivos específicos da vida pessoal do tragediógrafo<br />
para apresentar tantas mulheres protagonistas, motivos que vão desde<br />
ser um franco galanteador famoso entre as mulheres até a ser um<br />
29 Entendemos aqui imaginário nos termos definidos por Gilbert Durand em O<br />
Imaginário, temos então que imaginário é ao mesmo tempo os processos de<br />
produção, transmissão e recepção e o ―museu‖ de todas as imagens passadas,<br />
possíveis, produzidas e a serem produzidas em um determi<strong>na</strong>do tempo e<br />
espaço. A relação entre a memória, o imaginário, a tradição e as representações<br />
sociais, culturais, políticas, são de uma movimentação contínua <strong>na</strong> qual um gera<br />
e alimenta os demais e é simultaneamente alimentada por estes. Não podemos<br />
traçar uma seqüência linear nem mesmo circular, são ao contrário, vias diversas,<br />
<strong>na</strong>s quais se pode ir e voltar de um para todos os outros lugares.<br />
60
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
e<strong>na</strong>morado sem sucesso com o sexo oposto, possivelmente traído por<br />
uma de suas esposas. Não dispomos aqui de espaço suficiente para nos<br />
dedicarmos a esta querela, sigamos então com Hele<strong>na</strong>.<br />
Sendo, como dito anteriormente, componente de uma <strong>na</strong>rrativa<br />
mítica integrante do ciclo troiano Hele<strong>na</strong>, compõe um conjunto de<br />
<strong>na</strong>rrativas que dizem respeito a um tempo primordial, das origens de<br />
tudo o que se conhece e que, consequentemente, dão sentido à<br />
organização do cosmos e do homem dentro deste, configuram neste<br />
sentido, uma memória coletiva daqueles que se vêem como herdeiros<br />
destes heróis fundadores presentes nestas <strong>na</strong>rrativas. Segundo Mircea<br />
Eliade, os mitos são relatos de histórias sagradas que ocorreram num<br />
tempo primordial, o tempo do princípio (2001: 11). Ainda que, como<br />
observado anteriormente, estas <strong>na</strong>rrativas não possuíssem a unidade que<br />
agora lhes conferimos sob os nomes de mitos e mitologia. Mas, ao ser<br />
reinterpretada pelo teatro, Hele<strong>na</strong> tor<strong>na</strong>-se parte da memória deste e<br />
insere-se, novamente, a partir daí <strong>na</strong> memória da sociedade ateniense<br />
vinculada a ele e perpetua-se <strong>na</strong> memória ocidental, de forma geral, até a<br />
atualidade, como a personificação do ideal de mulher no sentido da<br />
beleza e sensualidade e também <strong>na</strong> perso<strong>na</strong>lidade femini<strong>na</strong> não confiável,<br />
sempre tendenciosa à mentira e à traição, de caráter fraco. Ainda que<br />
menos recorrente no teatro do que outras perso<strong>na</strong>gens euripidia<strong>na</strong>s,<br />
como Medéia, por exemplo, Hele<strong>na</strong>, povoa a literatura, o cinema, a<br />
música, a novela – entendida no sentido televisivo - e é relida e<br />
reinterpretada constantemente a partir do modelo inicial ateniense.<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
EURÍPIDES. Hele<strong>na</strong>. Tradução de José Eduardo do Prado Kelly. Rio de<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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62
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MAGNA MATER, CLAUDIA QUINTA, CLAUDIA METELLI<br />
(CLODIA): A CONSTRUÇÃO DE UM MITO NO<br />
PRINCIPADO AUGUSTANO<br />
Prof.ª Dr.ª Claudia Beltrão da Rosa 30<br />
Com os olhos fitos <strong>na</strong> divi<strong>na</strong> imagem,<br />
E desatadas pelos ombros as tranças,<br />
- Mãe dos Deuses – clama – onipotente<br />
Criadora Cibele, ouve meus rogos,<br />
E meu contrato por piedade aceita;<br />
Sou inocente, negam-no; decide.<br />
Se me fores contrária, aceito a morte;<br />
Si<strong>na</strong>l é que a mereço; eu, pobre huma<strong>na</strong><br />
De uma sentença tua apelaria?<br />
Mas, se inocente sou, que um teu prodígio<br />
O comprove e me salve. Ó tu, que és pura,<br />
Deusa, de puras mãos deixa levar-te<br />
(Ovídio, Fasti, IV).<br />
Nas últimas décadas, o impacto dos estudos de gênero tem sido<br />
grande <strong>na</strong> história, <strong>na</strong> antropologia, <strong>na</strong> sociologia, <strong>na</strong>s artes etc., e nos<br />
estudos sobre a religião roma<strong>na</strong> são também profícuos. As crenças e<br />
práticas religiosas têm um papel decisivo <strong>na</strong> formação das identidades,<br />
sejam individuais ou coletivas e, no caso específico da sociedade roma<strong>na</strong><br />
antiga, os orde<strong>na</strong>mentos jurídico, familiar, político etc., têm sua base no<br />
complexo sistema religioso romano 31. A religião dá sentido e cria um<br />
mundo orde<strong>na</strong>do para os seres humanos, ensi<strong>na</strong>ndo-lhes seus lugares,<br />
delineando suas imagens e seus corpos, formando sua compreensão de<br />
30 Professora Associada do Departamento de História, da Universidade Federal<br />
do Estado do Rio de Janeiro. Coorde<strong>na</strong>dora do Núcleo de Estudos e<br />
Referências da <strong>Antiguidade</strong> e Medievo – NERO/UNIRIO.<br />
31 Segundo K. Woodward, ―as identidades são fabricadas por meio da marcação da<br />
diferença. Essa marcação de diferença ocorre tanto por meio dos sistemas simbólicos de<br />
representação, quanto por meio de formas de exclusão social‖. WOODWARD, K.<br />
Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T.T.<br />
(org.) Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis:<br />
Vozes, 2008:40.<br />
63
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mundo, de poder, de autoridade, veiculando normas e valores, e<br />
incutindo em mulheres e homens seus papeis sociais.<br />
Ursula King chama a atenção para a importância da religião<br />
como fator central <strong>na</strong> construção e <strong>na</strong> dinâmica da relação entre os<br />
gêneros:<br />
As religiões proveem mitos e símbolos de origem e<br />
de criação, frequentemente oferecem <strong>na</strong>rrativas de<br />
redenção e de salvação (...). religiões criaram e<br />
legitimaram os gêneros, reforçaram-nos (...).<br />
Religião e gênero não são ape<strong>na</strong>s análogos,<br />
existindo paralelamente uma ao outro no mesmo<br />
nível. Tampouco são duas realidades<br />
independentes que são simplesmente reunidas<br />
numa comparação simples, pois os padrões<br />
dinâmicos do gênero estão profundamente<br />
arraigados <strong>na</strong>s diversas religiões, fundidos e<br />
interestruturados <strong>na</strong>s experiências religiosas. Este<br />
arraigamento significa que o gênero é inicialmente<br />
difícil de identificar e separar de outros aspectos da<br />
religião (...) 32 .<br />
A sociedade roma<strong>na</strong> era androcêntrica, termo que, segundo Ursula<br />
King, surgiu <strong>na</strong> sociologia norte-america<strong>na</strong> do início do século XIX,<br />
desig<strong>na</strong>ndo a adequação da experiência masculi<strong>na</strong> <strong>na</strong>s sociedades<br />
europeias e europeizadas ocidentais com a experiência huma<strong>na</strong> geral, e<br />
que deveria, portanto, ser aceita como norma por mulheres e homens,<br />
universalmente 33. Era frequente entre os escritores romanos o uso de<br />
mitos nos quais a perso<strong>na</strong>gem femini<strong>na</strong> surgia como símbolo de virtudes<br />
―as identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação de diferença<br />
ocorre tanto por meio dos sistemas simbólicos de representação, quanto por meio de formas de<br />
exclusão social‖. WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução<br />
teórica e conceitual. In: SILVA, T.T. (org.) Identidade e Diferença. A perspectiva<br />
dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2008:40.<br />
32 KING, U. Religion and Gender: Embedded patterns, interwoven<br />
frameworks. In: MEDDE, T..A; WIESNER-HANKS, M.E. (edd.). A Companion<br />
to Gender History. The Blackwell Publishing Ltd. 2004: 71.<br />
33 KING, op. cit. p. 73.<br />
64
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ou vícios passados. A<strong>na</strong>lisar mitos é uma ação cujo interesse variou (e<br />
varia) ao longo dos tempos, e o mito é um objeto de pesquisa muito<br />
complexo. Há muito que avaliar, quando lidamos com um mito, além<br />
desta ser uma área de estudos <strong>na</strong> qual as crenças e ideologias pessoais<br />
costumam interferir com visível facilidade. Particularmente no caso dos<br />
mitos romanos, a própria crença de que os romanos não tiveram mitos<br />
além dos ―importados‖ da Grécia, ainda comum entre os próprios<br />
antiquistas, nos traz problemas suplementares. De fato, criou-se um<br />
consenso de que, após o fim da mo<strong>na</strong>rquia, os romanos teriam<br />
desconhecido ou repudiado o mito, que nos parece ser fruto da crença<br />
comum de que o mito é a antítese da história, numa visão hipercrítica<br />
moder<strong>na</strong>. Ao buscar uma compreensão menos superficial das estruturas<br />
político-religiosas roma<strong>na</strong>s, percebemos que esta visão moder<strong>na</strong> é, no<br />
mínimo, redutora, se não equivocada. Transformar dados da realidade<br />
vivida em mito é um traço fundamental da sociedade roma<strong>na</strong>, que<br />
podemos detectar em momentos diversos de sua trajetória no tempo e<br />
no espaço.<br />
Considerando que não houve, <strong>na</strong> sociedade roma<strong>na</strong>, uma<br />
separação entre o que seria o religioso e o que seria o político, temos que<br />
tudo o que seria (para nós) religioso tem implicações políticas, e tudo o<br />
que seria (para nós) político, tem sua tradução e expressão no plano<br />
religioso 34. E outro traço característico do sistema religioso romano é a<br />
presença de elementos que podemos denomi<strong>na</strong>r mágicos, a despeito da<br />
(moder<strong>na</strong>) distinção rígida entre religião e magia. Os atos rituais romanos<br />
são, grosso modo, um tipo de contrato firmado entre seres humanos e seres<br />
divinos, que têm de ser formulados e respeitados religiosamente 35. A<br />
34 cf. BELTRÃO, C. A Religião <strong>na</strong> urbs. In: MENDES, N.M.; SILVA,<br />
G.V.(orgs.) Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.<br />
35 Um aspecto importante da religião roma<strong>na</strong> está contido no significado do<br />
próprio termo religio. Em linhas gerais, podemos dizer que o vocábulo indica o<br />
sentido de ―constrangimento‖, ―impedimento‖ que, pela proibição ou pelo temor<br />
reverencial, se expressa como ―escrúpulo‖.cf. BELTRÃO, C. Considerações em<br />
torno de religio em suas manifestações literárias. In: LIMA, A. C. C.; TACLA, A.<br />
B. (org.) Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA. Ano I, no. 1. Niterói:<br />
Centro de Estudos Interdiscipli<strong>na</strong>res da <strong>Antiguidade</strong> (CEIA/UFF), 2008.<br />
65
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
religião roma<strong>na</strong> é um sistema complexo de crenças e ações que garante<br />
simultaneamente a legitimidade das ações huma<strong>na</strong>s, a legitimidade do<br />
poder e o locus da comunidade huma<strong>na</strong> estabelecida <strong>na</strong> urbs. Religião,<br />
sociedade e instituições são, portanto, termos inseparáveis no estudo da<br />
Roma antiga.<br />
Isso nos leva a crer que há estruturas profundas <strong>na</strong> vida religiosa<br />
roma<strong>na</strong> que precisam ser ―escavadas‖, estruturas que são a base de<br />
instituições formadoras da sociedade roma<strong>na</strong>, como os papeis sociais de<br />
gênero, e que foram muito bem-sucedidas em termos de poder e de<br />
longevidade. Nenhuma religião, assim como nenhum gênero, é uma<br />
categoria de análise estável e a-histórica. E, apesar de não haver<br />
consenso <strong>na</strong> definição da categoria a<strong>na</strong>lítica do gênero – ou justamente<br />
por isso –, e reconhecendo que o foco de análise da maior parte dos<br />
estudos de gênero está centrado <strong>na</strong> história das mulheres, e não <strong>na</strong>s<br />
relações entre gêneros – o que também é compreensível, posto que a<br />
subcategoria mais problemática dos estudos de gênero é ―o feminino‖ –<br />
acreditamos que uma abordagem da religião roma<strong>na</strong> que inclua<br />
elementos dos estudos de gênero pode ser produtiva para a<br />
compreensão de fenômenos e instituições sociais da antiguidade roma<strong>na</strong>,<br />
permitindo lançar luz sobre a construção da identidade social roma<strong>na</strong> da<br />
qual, queiramos ou não, somos herdeiros sob muitos aspectos.<br />
Os mitos femininos romanos são, <strong>na</strong> essência, <strong>na</strong>rrativas que<br />
podemos considerar político-religiosas, veiculando e instituindo<br />
recorrentemente, <strong>na</strong>s mentes das gerações que os ouviam, o ideal<br />
romano da castidade femini<strong>na</strong>, identificada com a ―honra‖ e a própria<br />
―identidade‖ masculi<strong>na</strong>; em suma, a castidade femini<strong>na</strong> funcio<strong>na</strong>va como<br />
fundamento da honra e da identidade masculi<strong>na</strong>s. Os exemplos de<br />
mulheres que agiam de modo independente ao androcentrismo rei<strong>na</strong>nte,<br />
ou agiam ―impropriamente‖ (para usar um termo comum entre<br />
escritores romanos), eram modelos de vícios fundamentais, vistos como<br />
falhas do grupo familiar, ou mesmo da sociedade como um todo, que<br />
não conseguia exercer o devido controle sobre ―suas‖ mulheres 36.<br />
36 ver, por exemplo, o discurso de Catão sobre o movimento das mulheres da<br />
elite política roma<strong>na</strong> contra a Lei Ópia, criado por T. Lívio (AUC XXXIV, 1-8),<br />
censurando se<strong>na</strong>dores por permitirem que suas mulheres ―agissem livremente‖.<br />
66
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Acompanharemos alguns momentos da construção de um<br />
desses mitos femininos no contexto das instituições político-religiosas<br />
roma<strong>na</strong>s. Um mito trazido à ce<strong>na</strong> pela invectiva ciceronia<strong>na</strong>, assumido e<br />
desenvolvido pela restauratio augusta<strong>na</strong>: Claudia Quinta, um modelo para a<br />
matro<strong>na</strong>.<br />
Cícero, Clodia e Claudia Quinta<br />
Seria possível, já que nossas imagines viris não a<br />
comovem, nem progenitores como eu, que Claudia<br />
Quinta pudesse admoestá-la a imitar a glória<br />
femini<strong>na</strong> do elogio doméstico (...)? (Cícero. Cael.<br />
14.34).<br />
Num ponto dramático do discurso Pro Caelio 37, investindo contra<br />
P. Clodio Pulcher, Marco Túlio Cícero apresenta uma prosopopeia,<br />
assumindo o papel de Ápio Claudio, o Censor, ancestral de Clodio, cuja<br />
―voz‖ invoca a figura de Claudia Quinta, reprovando a irmã do tribuno,<br />
Clodia Pulchra, ou Claudia Metelli 38, a principal testemunha de acusação,<br />
Do mesmo modo, o caso das Baccha<strong>na</strong>lia, em 186 a.C., também relato por Lívio,<br />
nos permite entrever muitos aspectos da visão roma<strong>na</strong> sobre as mulheres.<br />
37 M. Célio Rufo era então acusado pela quaestio de ui (sedição). A acusação<br />
radicava, concretamente, em um ataque dos bandos de Célio a Nápolis, em um<br />
assalto em Puteoli e a uma propriedade de Palla e insinuava o envolvimento de<br />
Célio no assassi<strong>na</strong>do de Díon, o filósofo, embaixador alexandrino que pretendia<br />
o apoio romano contra Ptolomeu Aulete no Egito. Clodia era a principal<br />
testemunha de acusação, posto que as reuniões que planejaram o ataque a Díon<br />
foram feitas em sua casa no Palatino. A acusação também citou a alegação de<br />
Clodia de que Célio lhe teria roubado jóias a fim de subor<strong>na</strong>r escravos para<br />
permitir o acesso ao embaixador e que tentara envenená-la para garantir o seu<br />
silêncio. M. Licinio Crasso e Cícero foram seus advogados de defesa. A defesa<br />
de Cícero foi montada e conduzida de modo a desacreditar a principal<br />
acusadora, Clodia Metelli, e o fez apoiando-se num célebre discurso misógino,<br />
pontuado por elementos teatrais.<br />
38 Claudia Pulchra Tertia Metelli é também a imortal ―Lésbia‖ dos Carmi<strong>na</strong> de<br />
Catulo (Gaius Valerius Catullus). ―Lésbia‖ foi o pseudônimo usado por Catulo<br />
para falar de Clodia, à época casada com Cecílio Metelo, numa clara referência à<br />
poetisa Safo de Lesbos. Clodia escrevia poesias em grego, sendo considerada<br />
67
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
por desonrar, com seu comportamento ―imoral‖, o nome da gens Claudia.<br />
O contexto é a querela política de Cícero com os Clodios, que se<br />
estendia para além do retorno de Cícero do exílio. Os irmãos Clodios,<br />
membros da mais alta nobreza roma<strong>na</strong>, eram filhos de Ápio Claudio e<br />
Cecília Metela. Clodia foi casada com seu primo, Q. Cecílio Metelo<br />
Celer, cunhado de Pompeu e antecessor de Júlio César no comando da<br />
Gália, sua família sempre fora uma caução da ordem moral tradicio<strong>na</strong>l de<br />
Roma, e viveu <strong>na</strong> linha de frente de uma geração que cresceu nos anos<br />
turbulentos das guerras civis da República roma<strong>na</strong> tardia. Atacando a<br />
Clodia, Cícero investia contra seu principal desafeto da época, aquele que<br />
considerava responsável por seu exílio e consequente afastamento da<br />
are<strong>na</strong> política roma<strong>na</strong> 39.<br />
A perso<strong>na</strong>gem que serve de contraponto virtuoso para a ―viciosa‖<br />
Medeia do Palatino, um dos vários apelidos pejorativos que Cícero dá a<br />
Clodia, é Claudia Quinta, sua antepassada, matro<strong>na</strong> que se tor<strong>na</strong>rá, a<br />
partir de então, um mito político-religioso em Roma. Um mês depois do<br />
Pro Caelio, Cícero profere o discurso De Haruspicum responsis 40, novamente<br />
evocando Claudia Quinta como contraponto irônico a Clodia:<br />
boa escritora por Catulo e por Cícero, que elogia os poemas da ―Clodia dos<br />
belos olhos‖. Nenhum dos seus poemas chegou aos nossos dias. Sua família era<br />
ilustre e seus ancestrais foram cônsules em todas as gerações. O círculo de<br />
políticos e artistas que se reunia em torno de sua família era caracterizado pelos<br />
conservadores, como Cícero e Catão o Jovem, como nobres degenerados,<br />
dedicados somente ao prazer, à bebida, à prodigalidade e aos escândalos sexuais.<br />
39 cf. BELTRÃO, C. Clodia qua meretrix: o Pro Caelio de Cícero. II Colóquio<br />
Nacio<strong>na</strong>l de História e Historiografia no Vale do Iguaçu. Colóquios - Revista do<br />
Colegiado de História da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras<br />
(FAFIUV). União da Vitória: FAFIUV, 2007. v. 1: 56-62; LEACH, E. W.<br />
Claudia Quinta (Pro Caelio 34) and an altar to Mag<strong>na</strong> Mater. Dictyn<strong>na</strong> 4, 2007.<br />
Disponível em: http://dictyn<strong>na</strong>.revue.univlille3.fr/1Articles/4Articlespdf/Winsor.pdf;<br />
SALZMAN, M. R. Cícero, the<br />
Megalenses and the Defense of Caelius. AJP 103 (1982): 299-304.<br />
40 cf. BELTRÃO, C. De haruspicum responsis: religião e política em Cícero.<br />
Mirabilia 3 (2003). Disponível em:<br />
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num3/artigos/art2.htm<br />
68
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Foi então, pelo conselho desta profetisa [a Sibila] 41 ,<br />
num tempo em que a Itália sofria a Guerra Púnica<br />
e era devastada por Aníbal, que nossos ancestrais<br />
(maiores) fizeram vir este culto da Frigia e o<br />
estabeleceram em Roma; ele foi acolhido pelo<br />
homem mais bem considerado pelo povo romano,<br />
P. Cipião, e pela mulher reputada como a mais<br />
casta das matro<strong>na</strong>s, Q. Claudia, cuja antiga<br />
austeridade era, pensamos, assombrosamente<br />
imitada por tua irmã [Clodia]. Desse modo, nem<br />
seus ancestrais associados a esses ritos sagrados,<br />
nem teu próprio sacerdócio, sobre o qual repousa,<br />
nem a edilidade curul 42 , que tem como primeiro<br />
dever mantê-los, <strong>na</strong>da disso te impediu de<br />
profa<strong>na</strong>r os Jogos mais puros por todo tipo de<br />
infâmia, maculá-los pela desonestidade e marcá-los<br />
pelo crime (Har. resp. XIII, 27).<br />
O discurso Pro Caelio foi pronunciado em 4 de abril de 56 a.C.,<br />
no início dos Ludi Megalenses, Jogos realizados durante o festival das<br />
Megalensia, em honra da Mag<strong>na</strong> Mater, Cibele 43. No De haruspicum responsis,<br />
novamente uma referência aos Ludi Megalenses. A data do discurso é<br />
significativa, merecendo a menção de Cícero no discurso, que soube<br />
otimizar a presença de uma matro<strong>na</strong> dos Claudios <strong>na</strong> recepção da deusa<br />
em Roma. A Mater Deum Mag<strong>na</strong> Idaea (―Grande Mãe dos Deuses do Monte<br />
Ida‖), Cibele, era uma divindade ―estrangeira‖ matriarcal, aceita em<br />
41 No mesmo discurso, Cícero chama de ―sacerdote da Sibila‖ ao XVuir sacris<br />
faciundis, um dos quinze sacerdotes responsáveis pelos Livros Sibilinos.<br />
42 A edilidade era o primeiro grau do cursus honorum das magistraturas superiores<br />
roma<strong>na</strong>s, havendo edis de origem plebeia e edis de origem patrícia (edis curuis).<br />
Os edis eram responsáveis, dentre outras, pela supervisão dos Jogos, e Cícero,<br />
<strong>na</strong> passagem, censura a Clodio por não ter, quando edil curul, cumprido com os<br />
deveres de seu ofício, com base em ataques de seus bandos armados (as famosas<br />
operae de Clodio) em Roma durante um festival das Megalensia.<br />
43 As Megalensia (Megale = Mag<strong>na</strong>) ocorriam entre 4 e 10 de abril, incluindo<br />
mimos (os ludi Megalenses). Outro rito era a lauatio, o banho ritual da deusa no<br />
Almo, riacho perto de Roma.<br />
69
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Roma à época da crise instaurada pela invasão de Aníbal, quando os<br />
quindecimuiri sacris faciundis, sacerdotes responsáveis pelos Livros Sibilinos,<br />
consultados pelo Se<strong>na</strong>do, declararam que as divindades roma<strong>na</strong>s, com<br />
seu apelo tradicio<strong>na</strong>l à fides, não conseguiriam frear o avanço do<br />
cartaginês e que era necessário apelar a Cibele, para que os romanos<br />
pudessem lidar com a astúcia (métis) de Aníbal. Cibele sempre foi vista<br />
com reserva pelos conservadores romanos, que tinham dificuldade de<br />
lidar com um sistema religioso encabeçado por uma divindade femini<strong>na</strong><br />
autônoma 44.<br />
No seio do embate contra os Clodios, Cícero utiliza, então, uma<br />
figura femini<strong>na</strong> para desmoralizar outra da mesma família. E o público<br />
ouvinte de Cícero provavelmente não teria dificuldades de relacio<strong>na</strong>r as<br />
duas representantes da gens Claudia, bem como, provavelmente, conhecia<br />
a estátua de Claudia Quinta no vestíbulo do templo da deusa no<br />
Palatino 45. O argumento de Cícero era, portanto, fortíssimo, radicando<br />
<strong>na</strong> tradição religiosa e moral familiar roma<strong>na</strong> 46. Cícero apresenta Claudia<br />
Quinta como uma matro<strong>na</strong> ―virtuosa‖, sem fornecer nenhuma indicação<br />
de que teria ocorrido qualquer tipo de prodígio ou milagre durante a<br />
recepção da Mag<strong>na</strong> Mater. Claudia Quinta é, para Cícero, um modelo de<br />
emulação para mulheres roma<strong>na</strong>s, um modelo de castidade, contrastado<br />
com o suposto comportamento vicioso de Clodia, em dois discursos que<br />
se revelam preciosos para o estudo dos papeis de gênero <strong>na</strong> Roma tardorepublica<strong>na</strong>.<br />
44 Em geral, as divindades femini<strong>na</strong>s lati<strong>na</strong>s são paredras subordi<strong>na</strong>das às<br />
masculi<strong>na</strong>s.<br />
45 Esta estátua, que não chegou até nós, escapara a um incêndio no templo,<br />
ocorrido em 111 a.C., e era reputada prodigiosa por ter escapado ao fogo que<br />
destruiu o edifício. Um novo incêndio no templo, desta feita em 3 a.C, também<br />
deixou a estátua ilesa, e Valério Máximo a cita como milagrosa (Memorabilia,<br />
1.8.11).<br />
46 cf. LEEN, A. Claudia Oppug<strong>na</strong>trix: the Domus Motif in Cicero‘s Pro Caelio. The<br />
Classical Jour<strong>na</strong>l 96.2 (2000-01): 141-162.<br />
70
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Mag<strong>na</strong> Mater e Claudia Quinta<br />
Sua reputação que, como a tradição registra, era<br />
inicialmente duvidosa fez sua castidade mais<br />
famosa pela escrupulosa realização de seus deveres<br />
(T. Lívio, XXIX. 14, 9).<br />
Observemos com mais detalhes um elemento deste argumento:<br />
a relação entre Claudia Quinta e a Mag<strong>na</strong> Mater. Nosso contexto, agora, é<br />
o fi<strong>na</strong>l da II Guerra Púnica e o expansionismo romano no Mediterrâneo.<br />
As guerras e os pactos de aliança que pontuaram o século III a.C.<br />
trouxeram importantes conseqüências para as instituições roma<strong>na</strong>s.<br />
Roma era, agora, senhora da Itália, e englobava populações e realidades<br />
bastante diversas: poleis helênicas meridio<strong>na</strong>is, centros agrícolas <strong>na</strong><br />
Campânia, cidades etruscas, além de comunidades pastoris nos<br />
Apeninos. A unidade da península itálica sob sua hegemonia era um<br />
grande desafio, agravado pelo contato, agora direto, com Cartago 47.<br />
Após vencer a I Guerra Púnica, Roma tor<strong>na</strong>ra-se também uma potência<br />
marítima e territorial: com a conquista da Sicília (241 a.C.), da Sardenha e<br />
da Córsega (237 a. C), pôde organizar estas ilhas como as primeiras<br />
províncias roma<strong>na</strong>s e expandir-se pelo mar Mediterrâneo. E a II Guerra<br />
47 Cartago, cidade fundada pelos fenícios no século IX a.C. no norte da África,<br />
era uma superpotência do Mediterrâneo antigo. As cidades do Mediterrâneo<br />
ocidental reconheciam a supremacia cartaginesa, mas a rapidez da expansão<br />
roma<strong>na</strong> funcionou como um alerta para Cartago, pois significava o surgimento<br />
de uma possível ameaça em sua zo<strong>na</strong> de domínio comercial. Os enfrentamentos<br />
entre as duas poderosas cidades tiveram início <strong>na</strong> Sicília, ilha situada entre Roma<br />
e Cartago, e rica o bastante para despertar o interesse da aristocracia fundiária<br />
roma<strong>na</strong>. Ao longo da I Guerra Púnica (264-241 a.C.), Roma, que jamais<br />
enfrentara um combate <strong>na</strong>val, precisou construir uma frota para proteger sua<br />
costa e bloquear os estabelecimentos cartagineses <strong>na</strong> Sicília, e conseguiu destruir<br />
uma grande frota púnica <strong>na</strong>s ilhas Egates, levando Cartago a aceitar um tratado<br />
de paz. Os vencidos desocuparam a Sicília e aceitaram pagar em dez anos uma<br />
pesada indenização. Aproveitando as dificuldades de Cartago, Roma ocupou<br />
também a Sardenha. Foi o início da expansão territorial roma<strong>na</strong> fora da<br />
Península Itálica.<br />
71
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Púnica, a guerra de Aníbal (218-201), trouxe grandes dificuldades para<br />
Roma 48.<br />
Os Livros Sibilinos e o Oráculo de Delfos teriam, segundo a<br />
tradição, recomendado o culto de Cibele aos romanos, a fim de que<br />
pudessem vencer Aníbal e os cartagineses. Ressaltamos aqui o fato de<br />
que as divindades roma<strong>na</strong>s, como <strong>na</strong> maior parte dos povos<br />
mediterrânicos antigos e ao contrário do deus judaico-cristão,<br />
respeitavam algumas leis físicas relativas ao tempo e ao espaço. Sua<br />
presença numa cidade ou num ritual não podia ser considerada certa de<br />
antemão, por mais importante que fosse o grupo humano que as<br />
invocava 49. A divindade tinha de ser convidada a participar de um ritual,<br />
de um festival, ou convidada a vir em socorro ou a ser testemunha dos<br />
48 Em 218 a.C., o general Aníbal retomou a guerra contra Roma a partir da<br />
Península Ibérica, invadindo a Itália pelo noroeste, chegando a atravessar os<br />
Alpes. A travessia de Aníbal com seu exército se tornou um mito, que incluía<br />
seus temíveis elefantes, verdadeiros tanques de guerra. Os itálicos, que nunca<br />
tinham visto um elefante, ficaram apavorados, e os cavalos aterrorizados<br />
quando viram a chegada do exército cartaginês. Os romanos foram obrigados a<br />
defender o Vale do Pó, e sofreram uma grave derrota no lago Trasímene.<br />
Aníbal, então, se dirigiu para a Itália meridio<strong>na</strong>l, e conseguiu a adesão de muitos<br />
dos aliados dos romanos, enfraquecendo o poder da urbs. Seguiu-se uma guerra<br />
de devastação de ambas as partes, causando graves problemas sociais <strong>na</strong> Itália.<br />
A derrota roma<strong>na</strong> em Can<strong>na</strong>e (216 a.C.), foi um marco. Vários aliados de Roma<br />
passaram para o lado de Aníbal, que se instalou em Cápua. A partir de 215 a.C.,<br />
seguiu-se uma guerra de desgaste, <strong>na</strong> qual Roma chegou a recrutar 25 legiões. Só<br />
em 211 a.C., Roma conseguiu tomar Cápua e Siracusa. Em 209 a.C., recuperou<br />
Tarento e Cartage<strong>na</strong>, com seus arse<strong>na</strong>is e mi<strong>na</strong>s de prata. Fi<strong>na</strong>lmente, Públio<br />
Cornélio Cipião foi enviado para invadir a África, e Aníbal foi chamado de volta<br />
para defender a cidade, abando<strong>na</strong>ndo a península itálica. Derrotados em Zama,<br />
perto de Cartago, os cartagineses aceitaram a paz em 201 a.C.<br />
49 Segundo Durkheim, ―a religião é algo eminentemente social. As<br />
representações religiosas são representações coletivas que expressam realidades<br />
coletivas; os ritos são uma maneira de agir que ocorre quando os grupos se<br />
reúnem, sendo desti<strong>na</strong>dos a estimular, manter ou recriar certos estados mentais<br />
nesses grupos‖, Durkheim apud WOODWARD, op cit., p. 41.<br />
72
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
pleiteantes, e isso implicava um esforço por parte dos seres humanos<br />
para atrair seu interesse 50.<br />
Segundo Erick Gruen 51, a Mag<strong>na</strong> Mater chegou a Óstia em 204,<br />
sendo recebida por P. Cipião Nasica e por Claudia Quinta, líder das<br />
matro<strong>na</strong>s roma<strong>na</strong>s, numa grande cerimônia cuidadosamente orquestrada<br />
pelo Se<strong>na</strong>do romano, culmi<strong>na</strong>ndo <strong>na</strong> instalação da imagem da deusa no<br />
Templo da Vitória, no Palatino. No mesmo momento, P. Cipião (futuro<br />
Africano) viaja para a África com suas legiões. Cibele permaneceu no<br />
Templo da Vitória até que seu próprio templo fosse dedicado, em 191<br />
a.C. Gruen ressalta o significado simbólico da cerimônia:<br />
... a instalação de Cibele no templo da Vitória<br />
ocorreu próximo à partida de Cipião Africano para<br />
Cartago. O favor divino, endossado tanto pelos<br />
Livros Sibilinos quanto por Delfos, poderia agora<br />
favorecer a expedição que prometia encerrar a<br />
guerra contra Cartago. A Mag<strong>na</strong> Mater foi parte<br />
deste simbolismo; sua recepção em Roma<br />
coincidindo com a afirmação da solidariedade<br />
roma<strong>na</strong>, simbolizada por sua recepção conjunta<br />
por Cipião Nasica e Claudia Quinta 52 .<br />
A deusa teria vindo acompanhada por seus sacerdotes, os galli, e<br />
seus rituais foram gradativamente incorporados ao calendário dos<br />
festivais. Apesar de seu caráter radicalmente ―estrangeiro‖, Cibele passou<br />
à lista das maiores divindades a partir desta data 53. Pela documentação<br />
percebemos que, quando chegou a Roma, sua imagem e seu culto foram<br />
50 Quando os atenienses cortaram as asas da deusa Niké, a nova deusa sem asas<br />
(Niké Ápteros) não poderia mais deixar o território da polis. Por sua vez, os<br />
efésios, ao declararem que Apolo e Ártemis <strong>na</strong>sceram em sua cidade,<br />
automaticamente negavam o <strong>na</strong>scimento dos deuses gêmeos em Delos (cf.<br />
Tácito. Ann. 3.61.1).<br />
51 GRUEN, E. S. Studies in Greek Culture and Roman Policy. Cincin<strong>na</strong>ti Classical<br />
Studies 7: Leiden, 1990.<br />
52 GRUEN, op. cit., p. 27.<br />
53 BELTRÃO, C. A Religião <strong>na</strong> urbs. In: MENDES, N.M.; SILVA, G.V.(orgs.)<br />
Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006:146.<br />
73
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
cuidadosamente controlados, além de ter sido domesticada como Mag<strong>na</strong><br />
Mater, dado que alguns rituais e práticas exóticas do culto de Cibele não<br />
eram aceitáveis para os romanos, a começar pela autocastração de seus<br />
sacerdotes, sua autodenomi<strong>na</strong>ção, suas vestes e penteados femininos,<br />
dentre outros elementos que dificilmente seriam compatíveis com a<br />
notória ―falocracia‖ roma<strong>na</strong> 54. A própria cerimônia de recepção trazia a<br />
deusa, simultaneamente, ao centro da religião roma<strong>na</strong> pelas mãos de um<br />
futuro paterfamilias e uma matro<strong>na</strong> de gentes ilustrissimas.<br />
Desse modo, a introdução do culto era uma inovação dramática,<br />
mas o título que recebeu em Roma e a localização do novo templo<br />
fizeram com que ela não parecesse uma deusa nova e estrangeira, mas<br />
simplesmente a ―Mãe do Monte Ida‖, uma montanha próxima de Tróia 55.<br />
O Monte Ida teria sido o local para onde se dirigiu Enéas após a<br />
destruição de Tróia, e dali ele iniciou seu périplo que o levaria ao Lácio,<br />
onde seu filho, ou neto, fundaria Alba Longa, a mítica predecessora de<br />
Roma 56. Então, se o culto era novo e, de certo modo, i<strong>na</strong>ceitável para a<br />
tradição roma<strong>na</strong>, esta interpretatio 57 garantiu-lhe um estreito contato com<br />
as mais profundas raízes da identidade roma<strong>na</strong>.<br />
54 cf. Dion. Hal. Ant. Rom. 2.19; Ovídio, Fasti 4.247-72<br />
55 Sobre a conexão mítica com Ida, ver os Fasti 4.247-72 de Ovídio; cf. tb.<br />
Wiseman, T.P. ―Cybele, Virgil and Augustus‖, Poetry and Politics in the Age of<br />
Augustus e Gruen, E.S. ―Studies in Greek Culture and Roman Policy‖.<br />
56 As pesquisas arqueológicas jamais conseguiram identificar uma cidade com<br />
este nome, contudo, as aldeias dos Montes Albanos, existentes desde o período<br />
do Bronze, e cuja comunidade era expressa por ritos comuns, como o festival<br />
do Latiar, celebrado anualmente num santuário arcaico no monte Albano,<br />
reunindo os povos latinos, podem explicar a cidade mítica, a extensa Alba. Ver,<br />
e.g. COLONNA, G.I. I Latini e gli altri popoli del Lazio. In: Itália Omnium<br />
Terrarum Alum<strong>na</strong>. Milano: Scwegwiler, 1988; MARTINEZ-PINNA, J. Italia y<br />
Roma desde u<strong>na</strong> perspectiva legendária. Patria diversis gentibus u<strong>na</strong>? Unità politica<br />
e identità etniche nell‘Italia antica, Cividale del Friuli, 20-22 settembre 2007/a<br />
cura di Gianpaolo Urso. – Pisa: Edizioni ETS, 2008: 9-26.<br />
57 Interpretatio, derivado de interpres, cujo sentido nos negócios é o mais antigo<br />
atestado, é um vocábulo que tem sua origem <strong>na</strong> língua do direito (ERNOUT-<br />
MEILLET, s.v. interpres), e a expressão interpretatio roma<strong>na</strong> surge <strong>na</strong> Germania de<br />
Tácito (Germ. 43.3). Este termo enfatiza a integração, e é certamente preferível a<br />
sincretismo, que ganhou um sentido disfórico <strong>na</strong> modernidade. Mas o termo<br />
74
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A deusa proveria a caução exter<strong>na</strong> para a investida roma<strong>na</strong><br />
contra Cartago e, ao mesmo tempo, provia uma justificativa para a<br />
expansão roma<strong>na</strong> no Mediterrâneo oriental, como sustenta Gruen.<br />
Ressalte-se sua instalação no Palatino, uma coli<strong>na</strong> ligada à mais antiga<br />
tradição roma<strong>na</strong>, um símbolo de antiguidade e perpetuidade da urbs, e a<br />
vinculação do culto da deusa com a ―herança troia<strong>na</strong>‖, simbolizando o<br />
pertencimento de Roma à cultura helenística. Gruen chama, por fim, a<br />
atenção para o fato de que os Cipiões e os Claudios, à época da II<br />
Guerra Púnica, chocavam-se politicamente com frequência; a escolha<br />
se<strong>na</strong>torial de um jovem membro dos Cipiões, e de uma matro<strong>na</strong><br />
destacada dos Claudios simbolizava a união das lideranças políticas em<br />
prol da salvação da urbs 58.<br />
A urbs estava unida por seus mais destacados membros,<br />
recebendo a deusa que lhe garantiria a vitória contra Cartago, e o estudo<br />
de inovações religiosas, como a introdução do culto da Mag<strong>na</strong> Mater e a<br />
associação entre Cibele com o Monte Ida pode, então, nos ajudar a<br />
responder a questões como: até que ponto as novas divindades<br />
mantinham suas características origi<strong>na</strong>is após a interpretatio? Qual é o tipo<br />
de equilíbrio nesta ―mistura‖? Até que ponto a interpretatio teria obliterado<br />
as características das divindades apropriadas por Roma?<br />
Lucrécio, em seu poema político-filosófico De rerum <strong>na</strong>tura, nos<br />
apresenta uma imagem da deusa e de seu ritual:<br />
A ela (Grande mãe dos deuses) cantavam os<br />
doutos poetas gregos (...) juntaram-lhe as feras<br />
porque toda a descendência, por mais brava que<br />
seja, se deve abrandar vencida pelos benefícios dos<br />
pais. Cingiram-lhe a cabeça com uma coroa de<br />
muralhas, porque ela sustenta e defende as cidades<br />
em lugares escolhidos. E é ainda com essas<br />
também tem seus limites, especialmente em tempos de Teoria Pós-Colonial,<br />
pois destaca tão-somente o papel de Roma no processo. A introdução do culto<br />
da Mag<strong>na</strong> Mater permite entrever o modo como se processava a introdução de<br />
uma nova divindade e/ou culto em Roma, e sua interpretatio.<br />
58 Gruen, op. cit., p. 26.<br />
75
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
insígnias que a imagem da mãe divi<strong>na</strong> é levada<br />
pelas terras, no meio de um respeitoso temor.<br />
Vários povos, segundo os antigos costumes<br />
sagrados, chamaram-lhe Mãe do Ida, e dão-lhe por<br />
guarda bandos frígios porque, segundo dizem, foi<br />
desta região que se espalharam pelo orbe as<br />
produções da seara. Juntaram-lhe eunucos, porque<br />
querem mostrar que todos aqueles que violarem a<br />
divindade da mãe e se mostrarem ingratos a seus<br />
progenitores devem ser considerados indignos de<br />
trazer à luz da vida qualquer posteridade. (...)<br />
Tocam tambores tensos, as mãos fazem soar, à<br />
volta, côncavos címbalos, as tubas cantam roucas<br />
suas ameaças, a oca flauta com seu ritmo frígio<br />
exalta os corações e vão os dardos como si<strong>na</strong>is de<br />
violento fervor, para que aterrorizem os ânimos<br />
ingratos e os peitos ímpios do vulgo com o temor<br />
da poderosa deusa. (...)<br />
Logo que, levada através da cidade, silenciosa,<br />
beneficia os mortais com sua calada proteção, os<br />
fieis, com generosa oferta, juncam com bronze e<br />
prata as ruas que percorre e uma chuva de rosas<br />
sobre a mãe e os bandos que a acompanham.<br />
Grupos armados (...) vão lutando entre si, pulam<br />
em cadência, alegres como sangue (...). Por isso,<br />
homens armados acompanham a grande mãe; ou<br />
talvez queiram antes dizer que a dança aconselha<br />
que defendamos com armas o valor da pátria, e<br />
sejamos a guarda da honra de nossos pais<br />
(Lucrécio. RN, II, 600-642).<br />
Apesar de seu ceticismo epicurista, que lhe faz dizer ―... e, no<br />
entanto, tudo isso, apesar de tão belo e tão bem imagi<strong>na</strong>do, anda muito longe da<br />
verdade‖ (RN, II, 643-44), Lucrecio nos apresenta a deusa ―interpretada‖<br />
das Megalensia. No festival da Mag<strong>na</strong> Mater, cuja supervisão estava sob a<br />
responsabilidade dos quindecemuiri sacri faciundis 59, o santuário do Palatino<br />
59 A supervisão deste colégio sacerdotal, responsável pelos Livros Sibilinos e<br />
pelos cultos estrangeiros, revela-nos que Cibele, apesar da interpretatio, sempre foi<br />
76
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
era aberto entre 4 e 10 de abril, e os edis ofereciam ao povo ence<strong>na</strong>ções<br />
teatrais 60 e corridas no Circus Maximus, para onde a estátua de Cibele era<br />
levada 61.<br />
Tito Lívio descreve o transporte de sua imagem (uma pedra<br />
negra) de Pessinus, <strong>na</strong> Frigia 62, até Roma, e o cerimonial que<br />
acompanhou a chegada da nova deusa a Roma:<br />
Foi uma decisão de importância incomum que<br />
ocupou o Se<strong>na</strong>do: quem era o melhor homem do<br />
Estado. (...) A Públio Cornélio [Cipião Nasica] foi<br />
orde<strong>na</strong>do que fosse a Óstia com todas as matro<strong>na</strong>s<br />
para receber a deusa. Ele deveria retirá-la do barco<br />
pessoalmente e, após ser retirada com segurança,<br />
entregá-la às matro<strong>na</strong>s para ser levada. (...). Dentre<br />
elas, um nome se sobressaía, o de Claudia Quinta.<br />
Sua reputação que, como a tradição registra, era<br />
inicialmente duvidosa fez sua castidade mais<br />
famosa pela escrupulosa realização de seus<br />
deveres. As matro<strong>na</strong>s passaram-<strong>na</strong> [a imagem da<br />
deusa] de mão em mão, de uma a outra sem falhas,<br />
enquanto a cidade se preparava para conhecê-la.<br />
(...) Eles instalaram a deusa no Templo da Vitória,<br />
no Palatino, no dia que antecede os Idos de abril.<br />
Este era um dia de festival. Multidões levaram<br />
presentes para as deusas do Palatino, e houve um<br />
lectisternium, e Jogos, que foram chamados<br />
Megalensia (T. Lívio, XXIX, 14.5-14).<br />
considerada uma deusa estrangeira, cujo culto tinha de ser mantido sob rigorosa<br />
inspeção e controle.<br />
60 Muitas peças de Terêncio que chegaram até nós foram ence<strong>na</strong>das pela<br />
primeira vez durante as Megalensia.<br />
61 ver mais detalhes sobre Cibele e as Megalensia, e.g., em TURCAN, R. The<br />
Great Mother and her Eunuchs. In: ______. The cults of the Roman Empire.<br />
Oxford: The Blackwell Publishing Ltda., 1996: 28-74, e em BEARD, NORTH<br />
& PRICE. op.cit.vol.1, p. 96 ss.<br />
62 Segundo Varrão, a Mag<strong>na</strong> Mater teria vindo de Pérgamo (L.L. VI, 15) e em<br />
BEARD, NORTH & PRICE. op. cit. vol. 1, p. 96 ss.<br />
77
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A presença do ―melhor homem do Estado‖, de ―todas as matro<strong>na</strong>s‖, e<br />
a preparação da cidade para receber a deusa, são elementos significativos<br />
para nós. A figura de Cibele, com seus ritos estrangeiros incompatíveis<br />
com a tradição roma<strong>na</strong>, exigia, para ser aceita, o expurgo de suas<br />
características ameaçadoras ao status quo, e seu culto demandava controle.<br />
Sua inclusão no pomerium tinha sido recomendada divi<strong>na</strong>mente, mas sua<br />
domesticação foi operada pelos seres humanos.<br />
Esta versão de T. Lívio destaca a presença de Claudia Quinta,<br />
por seus escrúpulos religiosos, entre as matro<strong>na</strong>s, mas a apresenta como<br />
ape<strong>na</strong>s uma dentre todas, sem lhe indicar nenhuma ação especial no<br />
evento. E acrescenta um dado a mais: uma inicial reputação duvidosa,<br />
com base <strong>na</strong> tradição. Cícero, antes de Lívio, <strong>na</strong>da comenta sobre esta<br />
suposta reputação, talvez por não querer diminuir a força de seu<br />
argumento, talvez por desconhecer – o que nos parece improvável – tal<br />
reputação, ou ainda por esta reputação não existir à época do Pro Caelio e<br />
do De Haruspicum responsis. Assim, vemos um ponto acrescentado à<br />
história de Claudia Quinta, a matro<strong>na</strong> com prévia reputação duvidosa,<br />
―redimida‖ pela escrupulosa realização de seus deveres. E o papel desempenhado<br />
por Claudia Quinta, no desenvolvimento do mito, pode não ape<strong>na</strong>s nos<br />
ajudar a compreender como foi realizada a interpretatio de Cibele, como a<br />
identificar elementos constituintes dos papeis e das relações de gênero <strong>na</strong><br />
Roma antiga.<br />
A construção do mito: a matro<strong>na</strong> casta <strong>na</strong> restauratio augusta<strong>na</strong><br />
De torpeza era ré <strong>na</strong> voz da fama.<br />
(Ovídio. Fasti, IV, 253-56)<br />
Voltemos à figura de Claudia Quinta. Em versões posteriores,<br />
sua história se desenvolveu de um modo cada vez mais patético. Em<br />
Ovídio (Fasti, IV, 247-348) Claudia Quinta tornou-se uma mulher de<br />
reputação imoral que é ―redimida‖ ao salvar a deusa, quando o barco que<br />
levava a pedra negra encalhou num banco de areia. O poeta <strong>na</strong>rra a<br />
chegada de Cibele a Óstia:<br />
Plebe, se<strong>na</strong>do, cavaleiros, tudo<br />
Conflui alvoroçado à tusca praia,<br />
78
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A saudar desde a barra a imortal hóspede,<br />
Matro<strong>na</strong>s, virgens, noivas, e as que, ó Vesta,<br />
Virgens velam no altar teu santo lume,<br />
Lá vão correndo em confusão festiva.<br />
Mas em vão longo cabo atado à proa<br />
Valentes braços puxam, suam, cansam;<br />
Pela corrente o barco peregrino<br />
Recusa remontar.<br />
Secura estranha<br />
Tis<strong>na</strong>va já há muito os chãos ervosos;<br />
Sem ousar a surdir; todos no empenho<br />
Põem mais que humano esforço; alta celeuma<br />
Dobra vigor aos obsti<strong>na</strong>dos pulsos;<br />
Que prol, se firme a <strong>na</strong>u dá mostras de ilha<br />
Que tem sáxea raiz no mar profundo!<br />
Pasmo, já o pavor domi<strong>na</strong> o povo!<br />
Claudia Quinta, do antigo Clauso prole,<br />
Tão bela quanto ilustre, era uma dessas<br />
Que a pudica inocência em vão defende<br />
Contra calúnia atroz; pura <strong>na</strong> vida,<br />
De torpeza era ré <strong>na</strong> voz da fama.<br />
Dos penteados seus, e a lingua feri<strong>na</strong><br />
Entre os graves anciãos a conde<strong>na</strong>vam,<br />
Forte com a aprovação da consciência<br />
Dos rumores plebeus zombava e ria;<br />
Contudo, a crer no mal propendem todos,<br />
De hora a hora o descrédito medrava.<br />
Claudia, que entre as matro<strong>na</strong>s virtuosas<br />
Lá se achava também, rompe da turba,<br />
Chega ao Tibre, enche d‘água as palmas côncavas,<br />
Sobre a cabeça a verte por três vezes,<br />
Por três vezes as mãos aos céus levanta;<br />
Delirante todos a crêem, ajoelha;<br />
Com os olhos fitos <strong>na</strong> divi<strong>na</strong> imagem,<br />
E desatadas pelos ombros as tranças,<br />
- Mãe dos Deuses – clama – onipotente<br />
Criadora Cibele, ouve meus rogos,<br />
79
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
E meu contrato por piedade aceita;<br />
Sou inocente, negam-no; decide.<br />
Se me fores contrária, aceito a morte;<br />
Si<strong>na</strong>l é que a mereço; eu, pobre huma<strong>na</strong><br />
De uma sentença tua apelaria?<br />
Mas, se inocente sou, que um teu prodígio<br />
O comprove e me salve. Ó tu, que és pura,<br />
Deusa, de puras mãos deixa levar-te –<br />
Diz; puxa manso a corda<br />
O que refiro é, portanto, que ainda hoje espanta em ce<strong>na</strong>,<br />
Bóia a <strong>na</strong>u! Fende o rio! A deusa avança!<br />
E seguindo a formosa condutora,<br />
Ante o povo a protege, a glorifica.<br />
Sobe uníssono aos céus clamor fervente.(...)<br />
(Ovídio. Fasti IV, 247-348)<br />
Ovídio insere muitos elementos em sua versão da chegada de<br />
Cibele: o barco que trazia a deusa para Roma, por exemplo, encalha num<br />
banco de areia. Entre a multidão que assistia à chegada da deusa, havia<br />
uma jovem de origem nobre, Claudia Quinta, de quem, por ser muito<br />
bela e expor suas opiniões livremente, muitos levantavam calúnias.<br />
Quando o barco encalha, Claudia Quinta se separa da multidão, asperge<br />
sua cabeça com a água do Tibre por três vezes, e ergue seus braços,<br />
invocando a Mag<strong>na</strong> Mater, pedindo que, se fosse casta, lhe permitisse<br />
mover o barco com suas mãos nuas. A deusa atende ao pedido e Claudia<br />
Quinta, puxando o cabo do barco, solta-o e o conduz ao porto.<br />
O ―milagre‖ de Claudia Quinta se desenvolveu no período<br />
augustano. Na poesia de Ovídio, tor<strong>na</strong>-se a lenda de uma matro<strong>na</strong> casta<br />
difamada. Pela acclamatio de Claudia Quinta, a deusa testemunha sua<br />
virtude, e os versos de Ovídio podem ser vistos como a dramatização de<br />
um ritual 63.<br />
63 Segundo J. Scheid, o ritual é performativo, e o discurso verbal é inseparável da<br />
ação. Geralmente, os rituais incluíam fórmulas imperativas, seguindo a<br />
linguagem oficial dos magistrados romanos. Seus atos eram, então,<br />
complementados com fórmulas verbais e, muitas vezes, os oficiantes liam os<br />
textos, ou estes eram lidos por um assistente – uerba praeire – para que não<br />
80
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
As acclamationes 64 eram um elemento-chave dos rituais romanos,<br />
e podem ser definidas como fórmulas rituais vocalizadas por um grupo<br />
ou um indivíduo, <strong>na</strong> presença de uma audiência, esperando ou<br />
solicitando não ape<strong>na</strong>s a aprovação da divindade, mas também a<br />
aprovação verbal desta audiência. A mesma aclamação podia ser, por<br />
vezes, repetida, e geralmente adotava-se fórmulas estereotipadas, apesar<br />
de haver registros de variações e elaborações estilísticas, tanto <strong>na</strong><br />
estrutura rítmica, quanto no uso de neologismos, de figuras como a<br />
hipérbole e outras, contribuindo para aumentar seu impacto emocio<strong>na</strong>l<br />
<strong>na</strong> audiência.<br />
As acclamationes visavam, pois, a emocio<strong>na</strong>r sua audiência durante<br />
a realização de rituais, sendo um importante meio de comunicação no<br />
mundo romano, e desempenhavam várias funções: davam testemunho<br />
público do poder de uma divindade, confirmavam a crença de seus fiéis,<br />
propiciavam o favor da divindade, contribuíam para criar o elemento<br />
emocio<strong>na</strong>l durante uma cerimônia ou ritual, expressavam a solidariedade<br />
e a identidade de um grupo, invocavam o poder protetor da divindade<br />
para este grupo etc.<br />
O estudo da acclamatio tor<strong>na</strong>-se difícil devido ao fato de que<br />
acclamationes são pouco mencio<strong>na</strong>das em leis ou decretos concernentes a<br />
houvesse erros, pois uma vez pronunciada a fórmula ritual, não se podia voltar<br />
atrás. Assim, os celebrantes eram cuidadosos, por exemplo, ao pronunciarem os<br />
nomes das divindades que invocavam. Esses cuidados eram especialmente<br />
relevantes <strong>na</strong>s acclamationes: SCHEID, J. An introduction to Roman Religion.<br />
Bloomington, India<strong>na</strong>polis: India<strong>na</strong> University Press, 2003:98.<br />
64 O termo acclamatio, derivado de clamo/clamare, bem como outras derivações<br />
(exclamo, proclamo, reclamo etc.) remete à vocalização, com o sentido de ―criar<br />
versos‖, ―pedir em voz alta em favor ou contra alguém‖ (ERNOUT-<br />
MEILLET, s.v. clamo). As acclamationes eram elementos fundamentais nos rituais,<br />
ou seja, <strong>na</strong>s ocasiões de comunicação institucio<strong>na</strong>l entre seres humanos e seres<br />
divinos. Outros elementos importantes dos rituais, desta feita extraverbais, eram<br />
as roupas brilhantes, coroas e guirlandas, belos animais com chifres or<strong>na</strong>dos,<br />
altares decorados, mesas enfeitadas etc. Tais si<strong>na</strong>is visuais eram<br />
complementados por si<strong>na</strong>is auditivos como hinos, preces, performances<br />
musicais, e si<strong>na</strong>is aromáticos de perfumes e incensos, vinho e carnes queimando<br />
no altar.<br />
81
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
assuntos religiosos 65, o que aumenta o valor documental de fontes<br />
literárias como as poesias. Pelos relatos e <strong>na</strong>rrativas que nos chegaram,<br />
podemos entrever três funções das acclamationes: a) a função propiciatória,<br />
em rituais como a euocatio 66, b) a função testemunhal, atestando o poder da<br />
divindade e/ou convidando-a para testemunhar em favor do celebrante,<br />
como no caso de Claudia Quinta nos Fasti, e c) a função de instauratio<br />
(repetição), ou seja, de reconciliar alguém com uma divindade ou, mais<br />
frequentemente, de propiciar a retomada de um rito que tenha sido<br />
conspurcado por alguma falha em sua execução 67.<br />
As acclamationes podem ser vistas, portanto, como performances orais<br />
endereçadas às divindades, decerto visando atraí-las para o ritual ou a<br />
ação que se desejava realizar, mas também serviam para impressio<strong>na</strong>r a<br />
audiência, ou público, de um ritual em espaços cerimoniais. Podemos<br />
65 VAN HAEPEREN, F. Le Collège Pontifical (3ème s.a.C.-4ème s.p.C.)<br />
Contribuition à l‘étude de la religion publique romaine. Bruxelles-Rome :<br />
Institut Historique Belge de Rome, Brepols Publishers, 2002<br />
66 A euocatio era um antigo ritual, realizado no acampamento militar romano, que<br />
prometia domicílio e/ou culto, em Roma, a divindades de povos inimigos. Era,<br />
portanto, um dos ritos relacio<strong>na</strong>dos à guerra em Roma, cuja condução era ple<strong>na</strong><br />
de rituais e fórmulas religiosas.<br />
67 Um bom exemplo da terceira função da acclamatio, ou seja, a instauratio, foi o<br />
que se seguiu à irrupção de Clodio, irmão de Clodia Metelli, <strong>na</strong> casa do então<br />
pretor e pontifex maximus Júlio César, durante a cerimônia da Bo<strong>na</strong> Dea, celebrada<br />
pro populo pelas Vestais e por matro<strong>na</strong>s em 13 de dezembro de 62 a.C. Os ritos<br />
da Bo<strong>na</strong> Dea eram interditos aos homens, e o caso provocou um escândalo e<br />
uma discussão no Se<strong>na</strong>do. Este, em primeiro lugar, remeteu a questão aos<br />
pontifices e às Vestais que, decidindo que o caso fora nefas, indicaram a repetição<br />
da celebração que fora interrompida pela invasão. Segundo Cícero, contudo, as<br />
Vestais realizaram a instauratio logo após a expulsão de Clódio da casa, e J.<br />
Scheid considera que a instauratio realizada tinha a intenção de restaurar<br />
imediatamente a pax deorum. Ver esp. MOREAU, Ph. Clodia<strong>na</strong> religio. Un procès<br />
politique en 61 av. J.-C.(Coll. D »Etudes anciennes, 17) Paris: Les Belles Lettres,<br />
1982 : 58-62 ; TATUM, W. J. The Patrician Tribune Publius Clodius Pulcher. Chapel<br />
Hill-London: University of North Caroli<strong>na</strong> Press, 1999: 62-86, e SCHEID, J. Le<br />
délit religieux dan la Rome tardo-républicaine. In : Le délit religieux dans la cité<br />
antique (Table Ronde – Rome, 6-7 avril 1978) Coll. de l‘École Française de<br />
Rome. Paris : Palais Farnese, 1981.<br />
82
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
considerar que as acclamationes eram parte integrante e importante da<br />
criação/consolidação da identidade coletiva do grupo que o<br />
realiza/assiste. Sua performance levava à ilusão de um contato direto com a<br />
divindade, de uma relação privilegiada com uma deidade, e podemos<br />
imagi<strong>na</strong>r o poder dramático da acclamatio bem-sucedida de Claudia<br />
Quinta. A própria indicação de que teria uma reputação duvidosa<br />
reforçava a mensagem: pela castidade, a matro<strong>na</strong> roma<strong>na</strong> encontraria sua<br />
gloria.<br />
A <strong>na</strong>rrativa ovidia<strong>na</strong> desenvolveu-se, consolidando a versão<br />
milagrosa da chegada de Cibele a Roma. Propércio, por exemplo,<br />
fazendo o elogio da castidade da matro<strong>na</strong> roma<strong>na</strong> e de sua grandeza, que<br />
residiria <strong>na</strong> observância dos deveres familiares, apresenta a protagonista<br />
Claudia Quinta como uma sacerdotisa da deusa, que realiza um milagre 68.<br />
Plínio o Antigo a caracteriza como a pudicissima femi<strong>na</strong> que conduziu a<br />
Mag<strong>na</strong> Mater a Roma 69.<br />
A versão milagrosa da chegada de Cibele em Roma popularizouse<br />
em Roma. Mary Beard, John North e Simon Price 70 e,<br />
posteriormente, Eleanor W. Leach 71 a<strong>na</strong>lisaram um interessante altar<br />
encontrado no início do século XVIII d.C., <strong>na</strong> margem do Tibre, sob o<br />
Aventino:<br />
68 …uel tu, quae tardam mouisti Cybeben (Cybelen), Claudia, turritae rara ministra deae:<br />
Propercio, Elegia 4, 10, 51-52.<br />
69 Pudicissima femi<strong>na</strong> semel matro<strong>na</strong>rum sententia iudicata est Sulpicia Paterculi filia, uxor<br />
Fulvi Flacci, electa ex centum praeceptis quae simulacrum Veneris ex Sibyllinis libris<br />
dedicaret, iterum religionis experimento Claudia inducta Romam deum matre:Plínio, o<br />
Antigo. Naturalis historia, VI, 38.<br />
70 BEARD, M.; NORTH, J.A.; PRICE, S.R.F. Religions of Rome. vol. 2 (A<br />
Sourcebook). Cambridge: Cambridge University Press, 1998: 45-46.<br />
71 LEACH, E. W. Claudia Quinta (Pro Caelio 34) and an altar to Mag<strong>na</strong> Mater.<br />
Dictyn<strong>na</strong> 4, 2007. Disponível em: http://dictyn<strong>na</strong>.revue.univlille3.fr/1Articles/4Articlespdf/Winsor.pdf<br />
83
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
(fonte http://www.vroma.org/images/raia_images/claudia_syntyche.jpg )<br />
O altar, datado do século I d.C., traz uma inscrição votiva 72 e<br />
uma representação figurativa referente à chegada da deusa a Roma, em<br />
um <strong>na</strong>vio. O evento representado imageticamente remete a Claudia<br />
Quinta, apesar de alguma idiossincrasia <strong>na</strong> iconografia. Na imagem, a<br />
deusa surge no centro, sentada num trono, com uma provável aedicula<br />
atrás dela. A deusa está vestida com um véu, com o chiton e o himation, ou<br />
seja, sua imagem está ple<strong>na</strong>mente interpretada segundo as tradições<br />
figurativas religiosas roma<strong>na</strong>s. A imagem femini<strong>na</strong> em frente ao <strong>na</strong>vio da<br />
deusa segura um cabo ligado a ele, e projeta-se numa plataforma. Esta<br />
figura também está velada e usa um chiton, ao modo da deusa. Não se<br />
sabe exatamente quem é a ―Claudia‖ que dedica o voto, mas<br />
provavelmente pertence, <strong>na</strong>scida livre ou liberta, a um ramo da gens<br />
Claudia.<br />
72 A tradução da inscrição proposta é: À mãe dos deuses e ao <strong>na</strong>vio salvia/Como um<br />
voto feito à Salvia/Claudia Syntyche/Dedicou este dom.<br />
84
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
E, no estágio fi<strong>na</strong>l do desenvolvimento dessa <strong>na</strong>rrativa já<br />
lendária, Claudia Quinta se tornou uma Virgem Vestal, suspeita de ter<br />
violado seus deveres de castidade, cujo milagre deu testemunho de sua<br />
virgindade, como surge, no século II d.C. 73, em Herodiano (Hist. 1, 11) 74.<br />
E é como Vestal que Claudia Quinta atravessará os séculos futuros,<br />
marcados pela vinculação cristã do modelo feminino ao ideal de<br />
virgindade 75.<br />
73 cf. BEARD, NORTH & PRICE. Religions of Rome. v. 2. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 1998: 45.<br />
74 A tardia associação de Claudia Quinta com uma Virgem Vestal é significativa,<br />
num período já marcado pela propaganda cristã da virgindade. Esta associação<br />
teve um longo sucesso, especialmente em representações imagéticas, <strong>na</strong> poesia e<br />
<strong>na</strong> pintura através dos séculos, até a modernidade. Uma interessante<br />
interpretação das Virgens Vestais foi proposta por Patricia Horvat: ―... podemos<br />
dizer que as Vestais, que desenvolviam atividades aparentemente domésticas, não tinham o<br />
cândido significado das meni<strong>na</strong>s, geração em potencial, que <strong>na</strong> vida doméstica faziam o pão,<br />
nem o das matro<strong>na</strong>s, geração consumada, responsáveis pelo calor e pela proteção da casa, corpo<br />
da família. No que concerne aos comuns atributos da identidade femini<strong>na</strong>, as Vestais eram<br />
revestidas de sacralidade, exercendo o fascínio do interdito, e, para tal, lhes era conferido um<br />
caráter de incolumidade, materializado pela exigência férrea de castidade, para os homens<br />
romanos a principal virtude femini<strong>na</strong>. Se eram mulheres com privilégios cívicos, que<br />
ultrapassavam o limiar dos apanágios masculinos, e a quem era facultado observar a vida<br />
pública, sempre elegantemente paramentadas, o fogo que elas manipulavam não seria o<br />
reservado fogo acalentador, que remeteria a um regaço materno, mas o mítico veículo de<br />
sublimação e renovação de todas as coisas, próprio aos rituais agrícolas, que repetiam a<br />
destruição e a regeneração da <strong>na</strong>tureza, e a consciência desta oposição. Se eram matro<strong>na</strong>s, o<br />
eram da terra, protagonista da criação e, como tal, do devir dos elementos e de toda história. O<br />
fogo das Vestais era, portanto, o prolongamento ígneo da luz. Quanto ao mola salsa, pão<br />
sagrado reservado aos banquetes em honra a Júpiter e às principais divindades do Estado, os<br />
Di consenti, seria antes uma poção sagrada do que um alimento.‖ cf. HORVAT, P. O<br />
Templo de Vesta e a idéia roma<strong>na</strong> de centro do mundo. Phoînix 13. Rio de<br />
Janeiro, 2007. Em relação à dubiedade do papel de gênero das Vestais, ver:<br />
BEARD, M. ―The sexual status of the Vestal virgins‖ Jour<strong>na</strong>l of Roman Studies, 70<br />
(1980): 12-27.<br />
75 ver o tema de Claudia Quinta como Vestal <strong>na</strong> pintura do Re<strong>na</strong>scimento, e.g.,<br />
em Bartolommeo Nerone (il Riccio) e em Lambert Lombard.<br />
85
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Esses textos e imagens nos permitem entrever como a imagem e o<br />
status das mulheres foram prescritos, idealizados ou vilipendiados através<br />
dos séculos, com a ênfase positiva <strong>na</strong> castidade femini<strong>na</strong>, exaltando a<br />
figura da matro<strong>na</strong>. Importa, agora, observar esta figura.<br />
A matro<strong>na</strong> roma<strong>na</strong> é uma figura que surge e tem o seu sentido<br />
dentro da instituição do casamento. A questão da mulher e do<br />
casamento exige um marco mais amplo para o seu estudo, tendo em<br />
conta sua relação com o religioso e o econômico, que são, ambos,<br />
aspectos centrais da reforma augusta<strong>na</strong>. A família patriarcal roma<strong>na</strong> era<br />
um agrupamento de pessoas livres e não livres 76, que implica<br />
propriedade e patrimônio, sem maiores considerações a laços<br />
sentimentais. Do mesmo modo, o laço religioso é o fundamento da<br />
família, e o casamento é a uma instituição estabelecida pela religião<br />
doméstica, instituição que significava a passagem da mulher de um culto<br />
– o da família de seu pai – a outro – o da família de seu marido. E a<br />
mulher, no casamento, garantia a continuidade, por meio da geração de<br />
filhos homens, do culto dos maiores. Do fundamento religioso do<br />
casamento se depreende a ênfase <strong>na</strong> desejada castidade femini<strong>na</strong>, que<br />
não corresponde à virgindade, e sim à proibição às mulheres do adultério<br />
e da poligamia, já que a matro<strong>na</strong>, por procriar filhos legítimos para a<br />
familia de seu marido, não podia pertencer a mais de um culto familiar. A<br />
sacralidade dessa instituição se manteve após a fundação e o<br />
desenvolvimento das instituições cívicas da urbs.<br />
A tradição da religio domestica, portanto, está <strong>na</strong> base do<br />
regramento romano de gênero, que teve um impacto direto em suas<br />
principais instituições. A casa familiar (domus) roma<strong>na</strong> é um santuário,<br />
com seus Lares e Pe<strong>na</strong>tes, no qual oficiava como sacerdote o paterfamilias.<br />
Em um altar (ara) de pedra, de forma quadrangular, próximo à lareira<br />
eram oferecidos os sacrifícios propiciatórios que estabeleciam as relações<br />
com os seres divinos e com os numi<strong>na</strong> dos antepassados, cujos restos<br />
repousavam em um sítio que <strong>na</strong> urbs encontrou lugar fora das casas.<br />
Com o passar do tempo, o lararium passou a ser o centro da religião<br />
doméstica, local no qual residia o Lar familiaris, e os principais ritos<br />
76 famuli, escravos, de onde deriva o nome família: ERNOUT; MEILLET, s.v.<br />
familia<br />
86
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
familiares ocorriam, presididos pelo paterfamilias (casamentos,<br />
manumissões, ritos de passagem à idade adulta etc.). Do paterfamilias, por<br />
exemplo, Paul Halsall diz:<br />
... sua masculinidade pública era definida por seus<br />
direitos de propriedade e seu papel como soldado,<br />
e ape<strong>na</strong>s ele era um cidadão completo. Sua<br />
masculinidade privada derivava de seu direito de<br />
gover<strong>na</strong>r sua mulher, seus filhos e seus escravos<br />
(patria potestas). O poder de agir em ambas as<br />
esferas, a pública e a privada, definia a identidade<br />
masculi<strong>na</strong>, apesar de, <strong>na</strong> prática, o poder absoluto<br />
do pai ser limitado de vários modos. E a exaltada<br />
ideologia da familia estimulava o culto da matro<strong>na</strong><br />
roma<strong>na</strong>, uma mulher que produzia filhos valorosos<br />
e lhes incutia os valores romanos 77 .<br />
A atitude recomendável do marido em relação à mulher era<br />
pautada <strong>na</strong> própria essência da uirtus que, como sabemos, tem a mesma<br />
raiz de uir (homem). A uirtus é, portanto, uma qualidade exclusivamente<br />
masculi<strong>na</strong>, significando o domínio que o homem tem sobre si mesmo. A<br />
mulher, por sua <strong>na</strong>tural falta de uirtus, e por sua consequente falta de<br />
domínio sobre si mesma, é considerada débil.<br />
Uma transformação do sistema familiar da elite roma<strong>na</strong> ocorrera<br />
com a expansão do Império. A antiga prática do acordo entre duas<br />
famílias pelo qual a mulher deixava a casa de seu pai e passava ao<br />
controle do marido, que adquiria o manus sobre ela, tendia a ser<br />
substituída por um sistema no qual a mulher retor<strong>na</strong>va à casa de seu pai<br />
uma vez por ano, preservando assim a ligação com sua família de origem<br />
e sua independência do marido em matéria de propriedade. Na verdade,<br />
sua propriedade mantinha-se no domus de origem. Esta mudança<br />
dificilmente teria correspondido a um processo de ―libertação femini<strong>na</strong>‖;<br />
tratava-se de um assunto do interesse dos homens de família, tangendo<br />
77 HALSALL, P. Early Western Civilization under the sign of Gender: Europe<br />
and the Mediterranean. In: MEDDE, T..A; WIESNER-HANKS, M.E. (edd.).<br />
A Companion to Gender History. The Blackwell Publishing Ltd. 2004: 293.<br />
87
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
as transferências de direitos de herança que o casamento tradicio<strong>na</strong>l cum<br />
manus garantia.<br />
Voltemos à restauratio augusta<strong>na</strong>, observando alguns de seus<br />
elementos religiosos. Se <strong>na</strong> Roma monárquica, o rei é o sacerdote e<br />
desempenha o papel principal da comunidade cívica, dotado de uma<br />
grande capacidade de inovação político-institucio<strong>na</strong>l, i<strong>na</strong>ugurador (pela<br />
investidura auspicial), senhor do tempo (pela proclamação do<br />
calendário), senhor do espaço (pela construção da cidade), senhor do<br />
corpo cívico (pela condução da guerra e garantia da unidade civil), <strong>na</strong><br />
República oligárquica seu poder será dissemi<strong>na</strong>do, pulverizado entre<br />
magistrados, se<strong>na</strong>dores e collegia sacerdotais. O principado augustano<br />
buscará recompor esta unidade. E se, <strong>na</strong> República tardia podemos<br />
distinguir entre os escritores uma recusa ao mito em prol da<br />
racio<strong>na</strong>lidade cívica – recusa correspondente à defesa da libertas<br />
aristocrática –, sob Augusto, o passado tomará as cores do mito, numa<br />
restauratio mundi que terá, <strong>na</strong> exaltação da figura da matro<strong>na</strong> da tradicio<strong>na</strong>l<br />
familia roma<strong>na</strong> um de seus pontos principais 78.<br />
É, contudo, consenso entre os estudiosos que as mulheres<br />
roma<strong>na</strong>s desempenhavam papeis limitados no culto público. Podemos<br />
argumentar, porém, que a própria presença de mulheres em rituais de<br />
grande importância política como a chegada de Cibele a Roma seria um<br />
indício seguro de sua importância nos rituais. Tais registros demandam<br />
maior atenção dos antiquistas. Para Beryl Rawson 79, por exemplo, os<br />
registros da participação política femini<strong>na</strong> ocorrem em tempos de crise<br />
institucio<strong>na</strong>l. As crises multiplicadas e reiteradas <strong>na</strong> República tardia<br />
abriram espaço para o surgimento de alguns nomes femininos com<br />
destaque <strong>na</strong> vida pública, como Sempronia, Servília, Fulvia e Clodia. E a<br />
autora verifica, a partir de 18 a.C., uma virada <strong>na</strong> restauratio augusta<strong>na</strong>;<br />
após a pacificação política, a intensa atenção e as ações relativas às<br />
78 BELTRÃO, C. Fortu<strong>na</strong>, uirtus e a sujeição do feminino em Horácio. Phoînix<br />
14, Rio de Janeiro, 2008:130-146.<br />
79 RAWSON, B. Finding Roman Women. In: ROSENSTEIN, N.; ORSTEIN-<br />
MARX, R. A Companion to the Roman Republic. The Blackwell Publishing Ltd.<br />
2006: 324-341<br />
88
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
questões de temas da ―moralidade pública‖, com as leis relativas ao<br />
casamento e à vida familiar (e.g. lex Iulia de adulteriis).<br />
As novas disposições de Augusto sobre a moral e o casamento:<br />
a lex Iulia, relativa aos casamentos e que dispunha, entre outras coisas,<br />
sobre o novo casamento para as viúvas e divorciadas, com o qual era<br />
reformulado o costume da mulher uniuira (de um só homem). A mesma<br />
lei, como sabemos, criava incentivos aos casamentos que gerassem três<br />
ou mais filhos, e pe<strong>na</strong>lizava aos pais que impediam o casamento de seus<br />
filhos. A lex Iulia sobre o adultério, além disso, pe<strong>na</strong>lizava as relações<br />
extraconjugais da mulher, com o desterro, e dificultava o divórcio sob o<br />
pretexto de adultério.<br />
A restauração da urbs passava necessariamente pela instituição do<br />
casamento, tanto por motivos religiosos quanto econômicos. A exaltação<br />
da uirtus e da traditio como valores centrais se traduzia <strong>na</strong> necessidade de<br />
controle do elemento feminino, que deveria se vincular a um homem<br />
pelo casamento, numa espécie de ―administração do feminino‖ que<br />
surge como absolutamente necessária para a manutenção dos mores, a<br />
ponto de a legislação sobre o casamento reformular o costume de que a<br />
mulher deveria ―pertencer‖ a um único homem durante toda a sua vida, a<br />
fim de evitar as ―viúvas‖, ou seja, as mulheres sem marido. A legislação<br />
sobre o divórcio foi também um claro indício do objetivo de restauração<br />
da urbs, objetivo também buscado por meio de outros atos de governo:<br />
uma hierarquização rigorosa das classes sociais, a reorganização militar e<br />
fi<strong>na</strong>nceira etc.<br />
A família roma<strong>na</strong>, considerada pelos moralistas e pelo governo<br />
augustano em perigo de desintegração, o que era interpretado como um<br />
desequilíbrio do elemento feminino, deveria ser conservada mediante a<br />
restauração do casamento.<br />
A figura da matro<strong>na</strong> Claudia Quinta serviu a Cícero para<br />
construir uma argumentação baseada <strong>na</strong> ideia de uma radical oposição<br />
moral entre Claudia Quinta e Clodia Metelli, e conseguiu difamar a<br />
segunda. Retratada deste modo por Cícero, tornou-se o símbolo da<br />
―decadência moral‖ de fins da República roma<strong>na</strong> para tradição literária<br />
ocidental: a mulher livre e desregrada que dá vazão aos seus impulsos<br />
sexuais e que não obedece a ninguém senão a si mesma, desprezando<br />
seus ilustres antepassados, Ápio Claudio Censor e Claudia Quinta.<br />
89
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Nos primeiros anos do principado de Augusto, a imagem de Lívia,<br />
a pudica e reservada mulher do imperador que dedicava seus dias a fiar<br />
os mantos do seu dominus, será apresentada como o oposto de Clodia,<br />
―perpétuo escândalo‖, ―Medéia do Palatino‖. Ovídio fez do relato políticoreligioso<br />
de Claudia Quinta a ocasião de uma acclamatio bem-sucedida,<br />
resultando num milagre. Segundo R. J. Littlewood, Ovídio exaltava,<br />
assim, a Lívia e a seu filho Tibério, também ligados à gens Claudia,<br />
tor<strong>na</strong>da modelo de virtudes por seu marido e pai adotivo, Augusto. E tal<br />
tema disseminou-se rapidamente, seguindo os passos da ascensão da gens<br />
Claudia no principado 80, contribuindo significativamente para o<br />
conservadorismo moral do principado e de seus porta-vozes.<br />
Ressaltamos, então, a tese de Judith Butler do gênero como<br />
―performativo‖, ou seja, constituindo uma identidade proposta por um<br />
processo político e educacio<strong>na</strong>l, entendendo-o como uma construção<br />
social, culturalmente contingente, e não como uma concretização de uma<br />
distinção ―biológica‖, e assumindo que ―verdades‖ sobre as diferenças entre<br />
mulheres e homens, são enraizadas no discurso e <strong>na</strong>s práticas sociais e<br />
culturais 81. Nas estruturas religiosas roma<strong>na</strong>s vemos uma hierarquia<br />
institucio<strong>na</strong>lizada, baseada em relações assimétricas de gênero, tanto em<br />
termos de organização institucio<strong>na</strong>l quanto de representação social.<br />
Assim, parafraseando P. Bourdieu, tais estruturas consagram a ordem<br />
(masculi<strong>na</strong>) desejada e imposta, ―trazendo-a à existência conhecida e<br />
reconhecida, oficial‖ 82.<br />
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93
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MEDEIA, SENHORA DAS SERPENTES E DRAGÕES 83<br />
94<br />
Prof. Dr. Daniel Ogden 84<br />
Introdução<br />
No fi<strong>na</strong>l da <strong>Antiguidade</strong>, a tradição relacio<strong>na</strong>da a Medeia fez dela<br />
uma verdadeira senhora de serpentes e, em particular, de grandes e<br />
sobre<strong>na</strong>turais membros dessa raça, os drakontes (dracones) ou dragões, com<br />
habilidades tanto de controlá-los como de destruí-los. Em sua última<br />
biografia, dentro da ordem sequencial aproximada dos episódios<br />
canônicos, temos:<br />
1. Ela fornece a Jasão uma poção de invencibilidade contra os<br />
guerreiros de Eetes <strong>na</strong>scidos da terra a partir do dente do<br />
Dragão de Ares, que fora destruído por Cadmus.<br />
2. Ela repousa, ou mata o dragão de Cólquida, que jamais<br />
dorme e que guarda o velo de ouro.<br />
3. Ela se utiliza de drogas para evocar dragões fantasmas<br />
contra Pélias.<br />
4. Ela reúne serpentes e dragões de todas as espécies<br />
(comuns, cósmicos e míticos), a fim de tirar-lhes sua peçonha<br />
para elaborar o veneno que queima para o vestido de casamento<br />
de Glauce.<br />
5. Depois de ter matado suas crianças, ela escapa de Corinto<br />
numa carruagem puxada por um par de dragões.<br />
6. Ela lança a praga de serpentes que afligia a região de<br />
Absoris para dentro da tumba de Apsirto, fazendo com que as<br />
serpentes permaneçam confi<strong>na</strong>das lá.<br />
7. Ela visita os Marsi <strong>na</strong> Itália e lhes ensi<strong>na</strong> como controlar e<br />
destruir serpentes, sendo por eles reconhecida como a deusa<br />
Angitia.<br />
83 . Meus mais sinceros agradecimentos à Profª. Maria Regi<strong>na</strong> Candido, por terme<br />
gentilmente feito o convite de apresentar este artigo <strong>na</strong> UERJ durante o I<br />
Congresso Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de Religião, Mito e Magia no Mundo Antigo entre os<br />
dias 8-12 de Novembro de 2010, e a Pedro V. S. Peixoto da UFRJ por sua<br />
cuidadosa tradução.<br />
84 Prof. Dr. Daniel Ogden, lecio<strong>na</strong> <strong>na</strong> Universidade de Exeter, Inglaterra
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Este artigo busca investigar os episódios e formas pelas quais<br />
Medeia adquiriu os drakōn e as serpentes, para entender os contextos e<br />
significações de tais aquisições. A maioria das evidências principais é<br />
iconográfica. 85<br />
1. A carruagem de dragões<br />
A primeira associação que podemos fazer entre Medeia e serpentes<br />
ou dragões remonta a cerca de 530 a.C. Esta é a data de uma série<br />
distinta de quatro lekythoi áticos, um dos quais possui uma inscrição com<br />
o nome Medeia ( nós, talvez, não seríamos capazes de identificá-la de<br />
outra forma). Esses lekythoi são decorados com um busto feminino de<br />
perfil localizado entre um par de serpentes com barbas e de bocas<br />
abertas. 86 Se estas, por sua vez, pudessem ser relacio<strong>na</strong>das com alguma<br />
outra representação da tradição de Medeia, então, certamente, seria com<br />
aquelas relativas ao par de serpentes aladas que puxam a carruagem <strong>na</strong><br />
qual ela escapou de Corinto, primeiramente atestadas em c. 400 a.C., em<br />
vasos. É válido notar que uma descrição dessa mesma ce<strong>na</strong>, contida em<br />
um vaso de c. 330 a.C. de Canosa di Puglia, mostra a carruagem em<br />
movimento com Medeia em pé, entre um par de serpentes que olham<br />
para ela, de modo muito semelhante. 87 Por isso, inclino-me a acreditar<br />
que as imagens de c.530, de fato, façam alusão ao episódio da carruagem.<br />
Contudo, se dissociarmos os lekythoi do episódio da carruagem,<br />
resta-nos pouco para contextualizá-los. Direcio<strong>na</strong>r, ainda, o olhar sobre a<br />
então conhecida ‗deusa serpente‘ minoa<strong>na</strong>, que segura serpentes em cada<br />
uma de suas mãos, seria um caso de trocar o obscurum per obscurius (o<br />
obscuro pelo mais obscuro). Ainda que certas conexões a níveis<br />
85 Para discussões gerais a respeito da tradição de Medeia, conferir Heydemann<br />
1986, Jessen 1914, Séchan 1927, Lesky 1931, Simon 1954, Tupet 1976,<br />
Zinserling-Paul 1979, Meyer 1980, Belloni 1981, Braswell 1988:6-23, Vojatzi<br />
1982, Neils 1990, Parry 1992, Schmidt 1992, Gantz 1993:358-73, Halm-<br />
Tisserant 1993, Moreau 1994, Clauss e Johnston 1997, Corti 1998, Gentili e<br />
Perusino 2000, Moreau e Turpin 2000:ii, 245–333 (especialmente, Gaggadis-<br />
Robin 2000), Mastro<strong>na</strong>rde 2002:44-57, Griffiths 2006, Ogden 2008:27-38,<br />
2009:78-93, 312-15, Candido 2010.<br />
86 LIMC Medeia 3-6.<br />
87 LIMC Medeia 29.<br />
95
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
iconográficos possam ser feitas, ou não descartadas, uma relação<br />
iconográfica mais forte pode ser obtida entre essas figuras e aquelas<br />
pertencentes aos mitos arcaicos e clássico, como as Erinyes (Erínias),<br />
que eram frequentemente representadas, a partir de c. 460 a.C. em<br />
diante, correndo atrás de suas vítimas com uma serpente em cada mão. 88<br />
Desde c. 400 a.C., uma série de bem decorados vasos provenientes<br />
da Lucânia e Apúlia exibe a ce<strong>na</strong> das serpentes e da carruagem em todo<br />
o seu esplendor, em diferentes configurações. 89 Um dos primeiros vasos<br />
desse tipo relacio<strong>na</strong>-se, de maneira muito próxima, à conclusão de Medeia<br />
de Eurípedes apresentando um triste e angustiado Creonte que alcança<br />
uma Glauce derretida pelo fogo e que jaz caída no chão, parecendo,<br />
portanto, ter sido elaborado tendo a peça, especificamente, em mente. 90<br />
As serpentes não aparecem com asas, nesses vasos, embora os artistas<br />
tenham deixado bem claro que eles estavam desenhando a carruagem<br />
cruzando os ares, então, elas seriam possuidoras da habilidade mágica de<br />
voar. Isto, no entanto, não era bom o suficiente para um artista falisco<br />
que, <strong>na</strong> segunda metade do quarto século a.C., efetivamente, deu asas as<br />
suas serpentes. Elas possuíam barbas bem elaboradas e longas cristas<br />
que, combi<strong>na</strong>das com as asas, conferiam-lhes uma aparência<br />
surpreendente, porém, não intimidadora, de galinhas. 91 As serpentes<br />
mantiveram suas asas, mas foram capazes de se tor<strong>na</strong>r mais<br />
intimidadores em uma série de esculturas roma<strong>na</strong>s em relevo datadas do<br />
segundo século d.C., muitas das quais, igualmente, de boa qualidade. 92<br />
Tem sido especulado (e isso não é irrelevante, tendo em vista o vaso<br />
que saúda o desfecho da Medeia de Eurípedes) que as primeiras<br />
representações da carruagem de Medeia surgidas a partir de c.400 a.C.<br />
em diante podem ter sido inspiradas <strong>na</strong> ence<strong>na</strong>ção de tal peça. No<br />
próprio texto, Medeia aparece em sua ―carruagem do Sol‖, <strong>na</strong> qual ela<br />
88 LIMC Erinys 1 (460-50 a.C.), 11, 12, 18, 27-30, 34-7, 38, 39, 41, 42, 48, 50-1,<br />
52, 55, 58, 64, 67-9, 70, 73-4, 80, 96-7, 105, 107, 108, 112, 113, 114, 115, 116,<br />
117, 118, 119.<br />
89 LIMC Iason 70 = Medeia 35 (c.400 a.C.), Iason 71 (c.400 a.C.), Iason 72,<br />
Iason 73 = Medeia 37, Medeia 29, 36 (c.400 a.C.), 38.<br />
90 LIMC Iason 70 = Medeia 35.<br />
91 LIMC Medeia 39.<br />
92 LIMC Medeia 46, 51, 53, 55, 57, 58, 62, 63.<br />
96
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
escapa de Corinto, e o contexto, certamente, sugere que ela possuía a<br />
habilidade de voar, embora nenhuma menção explícita seja feita em<br />
relação às serpentes e a sua conexão com a carruagem. 93 A presença de<br />
serpentes aladas (ἅρματος δρακόντων πτερωτῶν) é, entretanto,<br />
demonstrada <strong>na</strong> Hypothesis, 94 que a tor<strong>na</strong> válida (o detalhe de asas é<br />
suspeito dada a ausência de dados iconográficos anteriores à segunda<br />
metade do século IV a.C.), 95 e serpentes poderiam, de fato, ter aparecido<br />
no palco, se não <strong>na</strong> performance origi<strong>na</strong>l de 431 a.C., em uma<br />
reence<strong>na</strong>ção distinta da peça, anterior a c.400 a.C.<br />
Se, efetivamente, foi somente em 431 a.C. ou 400 a.C. que Medeia<br />
adquiriu sua carruagem de serpentes, logo é possível que olhemos para<br />
outras influências sobre a temática e, novamente, debruçarmo-nos sobre<br />
os registros iconográficos. O par de serpentes que move ou acompanha<br />
a carruagem voadora que Deméter havia dado a Triptólemo é<br />
representado em vasos áticos a partir de c. 480 a.C., e Mastro<strong>na</strong>rde, por<br />
exemplo, efetivamente identifica aí uma linha de influências. 96 Nas ce<strong>na</strong>s<br />
de Triptólemo, um par de serpentes acompanha protegendo os flancos<br />
da carruagem em vez depuxando o veículo, contudo, não obstante,<br />
temos que admitir que essas imagens causam-nos uma impressão muito<br />
próxima àquela da carruagem de Medeia. Mas já que o mito de<br />
Triptólemo não possui <strong>na</strong>da de óbvio a oferecer à tradição de Medeia, a<br />
justificativa para a sua carruagem ter sido remodelada como uma versão<br />
daquela possuída por Triptólemo pode ser, presumivelmente, ape<strong>na</strong>s<br />
pelo fato de que Medeia tenha já desenvolvido uma associação<br />
convincente com dragões em outras partes e momentos de sua tradição.<br />
A menção mais distinta <strong>na</strong> literatura posterior a carruagens com<br />
serpentes vem da Metamorfose de Ovídio, quando Medeia parte em sua<br />
carruagem em busca das drogas do rejuvenescimento de que ela vai<br />
93 Eurípedes Medeia 1321.<br />
94 N.T: Termo técnico utilizado pelos antigos e pelos bizantinos, que se refere,<br />
neste contexto, a uma introdução de uma peça, e que, frequentemente, aparece<br />
impressa junto ao texto principal <strong>na</strong>s melhores edições.<br />
95 Hypothesis, Eurípedes Medeia.<br />
96 LIMC Triptolemos 87 = Demeter 344 (c. 480 a.C.); cf. LIMC Triptolemos 91,<br />
100, 105, 111, 114, 116 (c. 470 – c. 450 a.C.).<br />
97
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
precisar para restaurar a juventude de Éson. O cheiro das plantas, uma<br />
vez colhidas, faz com que as serpentes se soltem de suas peles antigas,<br />
tor<strong>na</strong>ndo-se jovens de novo. 97 Outra tradição interessante conta que,<br />
enquanto Medeia voava em sua carruagem-serpente, ela deixou cair uma<br />
caixa de drogas mágicas sobre a Tessália: isso fez com que a terra fosse,<br />
então, semeada com plantas mágicas e nocivas, dando origem à famosa<br />
cultura de bruxaria/feitiçaria <strong>na</strong> Tessália. 98<br />
2. O dragão de Cólquida repousa para dormir<br />
Parece que <strong>na</strong>s primeiras versões do mito do dragão de Cólquida,<br />
Eetes desig<strong>na</strong> Jasão para pegar e trazer até ele o velo de ouro que ficava<br />
guardado pelo dragão em um pequeno bosque. O dragão engoliu e<br />
regurgitou Jasão antes do heroi matá-lo. Em versões tardias, Jasão rouba<br />
o velo de ouro de Eetes que estava escondido, com a ajuda da filha do<br />
rei, Medeia. Ela teria usado uma de suas drogas para fazer com que o<br />
dragão, que jamais dormia, caísse no sono, permitindo, então, a Jasão<br />
roubar o velo. 99 A dificuldade inicial em reconstruir o episódio do dragão<br />
é identificar o ponto no qual Medeia se insere nele. Parece mais seguro<br />
concluir que ela não participava de nenhuma forma central antes da era<br />
da Medeia de Eurípedes, em 431 a.C.<br />
Uma das primeiras evidências diretas e positivas do dragão de<br />
Cólquida é, igualmente, uma das mais magníficas: a kylix (taça) de Douris<br />
de c. 480-70 a.C., <strong>na</strong> qual a parte superior do corpo de Jasão (ele é<br />
nomeado) projeta-se para fora da boca de um dragão desenhado em<br />
detalhes. O velo está pendurado em uma árvore e Ate<strong>na</strong> observa a<br />
ce<strong>na</strong>. 100 Com base nessa imagem, podemos conjecturar que uma série de<br />
imagens semelhantes (sem o velo, no entanto) sobre uma série de<br />
97 Ovídio Metamorfose 7.179-237, esp. 236-7.<br />
98 Schol. Aristófanes, As Nuvens 749a.<br />
99 Píndaro Ode Pítica 4.242-50, Ferécides F31 Fowler, Eurípedes Medeia 480-2,<br />
Hypsipyle F752f TrGF/Collard linhas 19-25 (F I.ii.24 Bond, p.26), Naupactica<br />
FF6, 8 West, Herodorus of Heracleia FGrH 31 FF53-4, Apolônio Argonáutica<br />
4.123-66, Diodoro da Sicília 4.48, Ovídio Metamorfose 7.149-58, Valério Flaco<br />
Argonáutica 8.54-121, [Apolodoro] Biblioteca 1.9.23, Hyginus Fabulae 22,<br />
Argonáutica Órfica887-1021. LIMC Iason 22-54, Medeia 2-4.<br />
100 LIMC Iason 32.<br />
98
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
diferentes meios de comunicação também mostrem Jasão sendo<br />
projetado da boca do dragão. O primeiro destes é um par de imagens de<br />
Corinto do fi<strong>na</strong>l do século VII a.C. 101 Este tipo de imagem não<br />
corresponde a <strong>na</strong>da do que possuímos através dos registro literário<br />
preservado do mito, mas oferece duas amplas possibilidades de leitura.<br />
Uma delas é a de que o dragão conseguiu engolir Jasão, ou pelo menos<br />
metade dele, até que Jasão conseguisse lutar e resistir, abrindo caminho<br />
para sair da boca do animal, ou fosse cuspido fora por alguma outra<br />
razão. Outra possibilidade é a de que Jasão, deliberadamente, tenha<br />
deixado-se engolir pelo dragão gigante, a fim de matá-lo por dentro,<br />
como Hércules fez com kētos 102 em Tróia. 103 A taça de Douris<br />
provavelmente favorece esta última alter<strong>na</strong>tiva: o estado de Jasão nesta<br />
imagem, sem resistência e acabado, sugere que ele, provavelmente, já<br />
teria sido totalmente engolido, encontrando-se, então, no caminho para<br />
fora da boca do dragão.<br />
Duas outras peças do século VII a.C. observadas em conjunto<br />
podem ser pensadas como indicadores da existência de uma tradição que<br />
lembra aquela encontrada em Apolônio, em que Medeia, através de suas<br />
drogas, ajudou Jasão a obter o velo do dragão que o guardava: uma<br />
ânfora de figuras vermelhas e brancas de Caere 104 de c. 660-40 a.C. e um<br />
fragmento de Mimnermo. A imagem contida <strong>na</strong> ânfora de Caere, crua<br />
embora eloquente, representa uma mulher com veu, acariciando (ou<br />
alimentando?) duas das cabeças de um contorcido enorme dragão de três<br />
cabeças. 105 O fragmento de Mimnermo de c. 632-29 a.C. afirma que<br />
―Jasão sozinho jamais teria conseguido trazer de volta o grandioso velo de Aea...‖ 106<br />
101 LIMC Iason 30-1 (vii a.C.), 33-5.<br />
102 N.T: monstro marinho gigante enviado por Poseidon.<br />
103 Homero Ilíada 20.145-8, Helânico F26b Fowler, [Licofron] Alexandra 31-6,<br />
470-8, Diodoro da Sicília 4.32, 42, Ovídio Metamorfose 11.199-215, Valério Flaco<br />
Argonáutica 2.451-578, [Apolodoro] Bibliotheca 2.5.9.2.6.4, Hyginus Fabulae 31 and<br />
89, Philostratus Minor Imagines 12. LIMC Hesione 6.<br />
104 N.T: As hydriae de Caere foram produzidas por um pequeno grupo de artistas<br />
jônicos que se estabeleceram <strong>na</strong> Etrúria no momento das invasões pérsicas.<br />
105 LIMC Medeia 2.<br />
106 Mimnermus F11 West.<br />
99
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Mas em relação à ânfora, não há como estarmos certos de que a<br />
mulher que aparece é, de fato, Medeia, e algumas boas considerações<br />
argumentam em sentindo oposto a tal identificação: não existe nenhum<br />
signo relativo ao velo, o dragão de Cólquida em nenhum outro lugar foi<br />
representado com três cabeças, e Medeia não possui envolvimento<br />
algum com o dragão de Cólquida no próximo conjunto de fontes<br />
iconográficas, a começar com a taça de Douris. É possível que a mulher<br />
<strong>na</strong> imagem trate-se de uma das Hespérides tomando conta de Ládon:<br />
mesmo que ela esteja sozinha e não exista nenhum signo relativo a<br />
maçãs, é digno de nota que Ládon é, seguramente, apresentado com três<br />
cabeças em algumas de suas primeiras representações imagéticas e que as<br />
Hespérides apareçam de tal maneira carinhosas com Ládon desde c.500<br />
a.C., muito antes de Medeia ser encontrada pela primeira vez acariciando<br />
o dragão de Cólquida, c.380-60 a.C., como nós veremos a seguir. 107<br />
Quanto ao fragmento de Mimnermo, nós não somos capazes de<br />
saber se o dragão aparece em qualquer momento da história e, ainda, se a<br />
ajuda à qual se faz referência seria aquela fornecida por Medeia ou, ao<br />
contrário, qualquer outra como, por exemplo, de deusas como Hera,<br />
Ate<strong>na</strong> ou Afrodite. Se Mimnermo se referia à ajuda de Medeia, não<br />
obrigatoriamente essa ajuda necessitaria estar vinculada ao episódio do<br />
dragão; ele poderia, ao contrário, estar referindo-se ao auxílio prestado<br />
por Medeia em derrotar, primeiramente, os touros de fogo, <strong>na</strong> medida<br />
em que ela fornece a Jasão a poção da invencibilidade (como é<br />
primeiramente atestado por Píndaro), ou em relação aos guerreiros<br />
<strong>na</strong>scidos da terra, ou até mesmo em levar o velo do palácio de Eetes,<br />
como é encontrado no conjunto de fontes do século V a.C.<br />
As fontes literárias e iconográficas do quinto século a.C., anteriores<br />
a Medeia de Eurípedes, parecem não concordar – ou em nenhum nível<br />
serem compatíveis – com a versão de que Jasão teria roubado o velo de<br />
Eetes sem que o rei o soubesse, ou ainda que tivesse tido a ajuda direta<br />
107 Uma cabeça: LIMC Herakles 2716 (c. 500 a.C.), LIMC Herakles 2681 =<br />
Ladon i 1 (c. 480-70 a.C.). Duas cabeças: LIMC Herakles 2692 (c. 500 a.C.),<br />
LIMC Herakles 2714 = Hesperides 24 (c. 500 a.C.), Ladon i 12 (450-30 a.C.), 15<br />
(450-400 a.C.). Três cabeças: LIMC Atlas 8 = Herakles 1702/2680 (c. 490 a.C.),<br />
LIMC Ladon i 13 (c. 450 a.C.), 16 (450-25 a.C.).<br />
100
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
de Medeia. Ao contrário, Eetes estabelece a tomada do velo tão somente<br />
como um desafio a Jasão. Este, tendo atuado sozinho, eventualmente,<br />
obtém sucesso e traz o velo de volta para o palácio de Eetes. O soberano<br />
então dá um jantar em honra aos Argo<strong>na</strong>utas no qual ele planeja matálos,<br />
mas Afrodite acaba com seus planos fazendo com que o rei caísse no<br />
sono, permitindo, então, aos Argo<strong>na</strong>utas fugirem e levarem Medeia<br />
consigo, que acaba pegando para os Argo<strong>na</strong>utas o velo do local onde ele<br />
estava guardado no palácio.<br />
O dragão entra nos registros literários de forma bastante<br />
surpreendente, <strong>na</strong> quarta Ode Pítica de Píndaro de 462 a.C.:<br />
Imediatamente Eetes, o filho maravilhoso de<br />
Hélios, contou-lhe a respeito da pele brilhante e do<br />
lugar em que as facas de sacrifício de Frixo<br />
recaíram sobre ela. Mas esse era um trabalho que<br />
não esperava que ele concluísse. Pois ele recaía em<br />
um pequeno bosque, adjacente às agressivas<br />
mandíbulas de um dragão (drakōn), o qual superava<br />
em largura e comprimento um <strong>na</strong>vio de cinquenta<br />
remos, feito pelos golpes de ferramentas de ferro...<br />
Com dispositivos (tech<strong>na</strong>is), ele matou a cobra<br />
(ophis) de olhos cinza e coloração negra, Arcesilau,<br />
e levou consigo Medeia com sua cooperação;<br />
Medeia, a matadora de Pélias. (Píndaro Ode Pítica<br />
4.242-50)<br />
Não existe aqui nenhuma menção à conexão direta entre Medeia e o<br />
dragão, mas é possível imagi<strong>na</strong>rmos que Jasão estaria se beneficiando,<br />
ainda, nesta batalha, dos efeitos da poção de invencibilidade (tech<strong>na</strong>is?)<br />
que Medeia havia lhe dado antes, quando ele teve de enfrentar o desafio<br />
dos touros de fogo. 108 Com base nisso, podemos olhar para a taça de<br />
Douris, de talvez ape<strong>na</strong>s alguns anos antes, e nos perguntarmos se<br />
Jasão, aparentemente inerte, está sendo vomitado pelo dragão, não<br />
porque ele teria lutado por seu próprio caminho para fora do animal de<br />
maneira impestuosa, mas porque ele era impossível de ser digerido<br />
108 Píndaro Ode Pítica 4.220-23.<br />
101
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
graças à loção de invencibilidade. Relativamente contemporânea a<br />
Píndaro é a imagem de uma cratera ática de c. 470-60 a.C., que mostra<br />
Jasão, sozinho, furtando o velo de debaixo de uma peque<strong>na</strong> serpente,<br />
enquanto Ate<strong>na</strong> observa novamente a ce<strong>na</strong>; mais uma vez, não há<br />
nenhum si<strong>na</strong>l de Medeia. 109 Um conciso fragmento de Ferécides, c. 454<br />
a.C., relata que o dragão fora morto por Jasão; igualmente, não há,<br />
portanto, também, referência à participação direta de Medeia. 110<br />
Fragmentos de Naupactica ( séc V ?) e de Herodorus de Heracleia<br />
(séc V – IV a.C.) podem ajudar a dar sentido a essas informações<br />
desfragmentadas. Herodorus diz que "Após os Argo<strong>na</strong>utas terem partido,<br />
Jasão foi enviado em busca do velo por Eetes. Ele matou o dragão e trouxe o velo de<br />
volta para Eetes. Mas ardilosamente ele [Eetes] convidou-os [os Argo<strong>na</strong>utas] para<br />
um banquete". 111 Tanto a Naupactica como Herodorus contam que os<br />
Argo<strong>na</strong>utas escaparam, com a ajuda de Afrodite, do jantar no qual eles<br />
deveriam ser assassi<strong>na</strong>dos, pois a deusa inspirou em Eetes desejos<br />
car<strong>na</strong>is por sua esposa Eurílite, fazendo com que, então, após ter feito<br />
amor com ela, ele caísse no sono, possibilitando a fuga dos<br />
Argo<strong>na</strong>utas. 112 Em seguida, a Naupactica <strong>na</strong>rra que Medeia levou consigo<br />
o velo guardado <strong>na</strong> casa de Eetes, enquanto ela fugia com os<br />
Argo<strong>na</strong>utas. 113<br />
Essa <strong>na</strong>rrativa, aparentemente, começa a mudar com a Medeia de<br />
Eurípedes. Nesta, Medeia protesta: ―E eu matei o dragão (δράκων) que<br />
jamais dorme e que guardava o todo dourado velo abraçado a ele em<br />
muitas dobras de suas escamas; eu indiquei para vocês a luz da<br />
libertação‖. 114 É possível que esta afirmação, <strong>na</strong> qual nós podemos ou<br />
não, supostamente, acreditar, dentro do contexto, constitua a base do<br />
envolvimento direto ou mais explícito de Medeia no episódio do dragão,<br />
<strong>na</strong> tradição posterior.<br />
109 LIMC Iason 36.<br />
110 Ferécides F31 Fowler.<br />
111 Herodorus FGrH 31 F53.<br />
112 Naupactica F6 West e Herodorus FGrH 31 F54.<br />
113 Naupactica F8 West.<br />
114 Eurípedes Medeia 480-2.<br />
102
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
O conto canônico no qual Medeia ajuda diretamente Jasão a roubar<br />
o velo do dragão, <strong>na</strong> medida em que droga a besta fazendo com que ela<br />
durma, emerge pela primeira vez em aspectos literários através da<br />
Argonáutica de Apolônio (c. 270-45 a.C.). 115 Mais à frente, encontra-se<br />
também presente em Ovídio, Valério Flaco, ps.-Apolodoro, Hyginus e<br />
<strong>na</strong> Argonáutica Órfica. 116 Iconograficamente, ela pode ser atestada desde<br />
c.415 a.C., <strong>na</strong> medida em que uma cratera voluta originária de Apúlia<br />
mostra Medeia atrás de Jasão, segurando uma caixa de ervas, e o heroi<br />
com a espada desembainhada tenta retirar o velo de debaixo do<br />
dragão. 117 Contudo, já que o dragão está visivelmente acordado, a<br />
mensagem parece ter sido a de que Medeia, provavelmente, em vez de<br />
fazer o animal dormir, teria feito uso de suas drogas, a fim de fazer Jasão<br />
invencível diante do dragão (tal como Píndaro e Apolônio nos contam<br />
que ela fez em situações anteriores em que Jasão enfrentava os touros de<br />
fogo). 118 Estamos pisando em terreno mais firme, quando nos<br />
deparamos com uma hydria da Lucânia de c. 380-60 a.C., 119 <strong>na</strong> qual<br />
Medeia senta-se adjacente à cobra e sua árvore, segurando uma phialē, da<br />
qual somos induzidos a acreditar que a serpente tenha bebido e, da<br />
mesma maneira, uma cratera em formato de sino da Apúlia c.360 a.C.,<br />
representa uma Medeia bem orientalizada, segurando uma caixa de<br />
drogas e alcançando a cabeça da serpente. 120<br />
Como já vimos, a temática do feitiço que faz adormecer parece ter<br />
origi<strong>na</strong>do-se em qualquer lugar no conto de Cólquida. Na Naupactica (<br />
séc V a.C.?), Afrodite inspira desejos em Eetes por sua esposa Eurílite,<br />
de modo que ele, então, após ter feito sexo com ela, caia em sono ,<br />
portanto, permitindo que os Argo<strong>na</strong>utas escapem com Medeia e com o<br />
velo que o rei guardava em sua casa. 121<br />
115 Apolônio Argonáutica 4.128.<br />
116 Ovídio Metamorfose 7.149-58, Valério Flaco Argonáutica 8.69-121, [Apolodoro]<br />
Biblioteca 1.9.23, Hyginus Fabulae 22, Orphic Argo<strong>na</strong>utica 887-933.<br />
117 LIMC Iason 37.<br />
118 Píndaro Ode Pítica 4.220-3, Argonáutica Órfica 3.1026-62, 1191-1267.<br />
119 LIMC Iason 40.<br />
120 LIMC Iason 38; cf. LIMC Iason 39, 41-2.<br />
121 Naupactica FF6 e 8 West.<br />
103
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Como o sono é lançado sobre a serpente? Na maioria das imagens<br />
ela alimenta a criatura com drogas, presumivelmente em forma líquida, a<br />
partir de uma phialē (boa parte destas são de c.380-60 a.C.), 122 embora<br />
em alguns casos ela pareça segurar uma erva em forma de folha ou<br />
ramo, por vezes, tiradas de uma caixa de medicamentos, seja para<br />
alimentar diretamente a serpente ou para esfregar as drogas <strong>na</strong> criatura<br />
(c. 360 a.C.). 123 Em Apolônio, Medeia lança o sono primeiramente<br />
pronunciando um feitiço verbal, invocando o Sono e Hécate, senhora do<br />
subterrâneo; em seguida, ela entoa encantamentos enquanto esfrega os<br />
olhos da serpente com uma infusão de drogas através de ramos recémcortados<br />
de zimbro; e por último, ela continua untando, manchando a<br />
cabeça adormecida da serpente com o líquido até que Jasão tenha<br />
conseguido o velo. 124 Em Ovídio, uma técnica similar é usada: Jasão, ele<br />
próprio, lambuza o draco com a ‗erva do suco do Leteu, fornecido por Medeia,<br />
repetindo três vezes o feitiço.‘ 125 Para Valerius Flaccus, Medeia levantou suas<br />
mãos e sua varinha para as estrelas e invocou o ‗Sono‘ com feitiços<br />
tártaros, de uma maneira bárbara, pedindo-lhe que ele tomasse uma<br />
forma muito próxima à do seu irmão gêmeo, a Morte, e abando<strong>na</strong>sse a<br />
todos os que existiam no mundo para que entrasse, em sua totalidade, no<br />
dragão. Sua Medeia também agita um ramo de árvore do Leteu. 126<br />
(Pseudo) Apolodoro e Hyginus ape<strong>na</strong>s mencio<strong>na</strong>m brevemente que<br />
Medeia usou drogas para induzir o dragão ao sono. 127<br />
No sentido oposto ao da tradição, a dificilmente canônica<br />
Argonáutica Órfica coloca Medeia junto ao dragão e a Jasão, mas o seu<br />
papel é, então, praticamente e inteiramente reduzido, já que o poema<br />
favorece a atuação de Orfeu. É-nos dito que Medeia teria colhido raízes<br />
venenosas, mas suas funções parecem ter sido ape<strong>na</strong>s as de fornecer<br />
coragem suficiente para enfrentar a besta.É o próprio Orfeu que lança o<br />
sono sobre o dragão <strong>na</strong> medida em que canta e toca sua lira. Novamente,<br />
122 LIMC Iason 40 (c. 380-60 a.C.), 42-3, 46, 47b.<br />
123 LIMC Iason 38 (c. 360 a.C.), 39, 41.<br />
124 Apolônio Argonáutica 4.145-66.<br />
125 Ovídio Metamorfose 7.149-58.<br />
126 Valério Flaco Argonáutica 8.69-121.<br />
127 [Apolodoro] Biblioteca 1.9.23; Hyginus Fabulae 22.<br />
104
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
o Sono personificado é invocado a tomar lugar e fazer o serviço de<br />
adormecer o dragão.<br />
3. A interação de Medeia com a tradição de Ládon e das<br />
Hespérides<br />
A convergência da <strong>na</strong>rrativa da história do dragão Cólquida, em sua<br />
forma canônica, com o conto Ládon é próxima. Em ambos os casos,<br />
uma serpente que vive em uma árvore onde se enrosca, vigia e guarda<br />
um tesouro de ouro; tesouros estes, curiosamente interligados,<br />
conectados pelo termo mēla, que significa, igualmente, "maçãs" e<br />
"ovelhas". 128 Nas duas circunstâncias, a serpente recebe cuidados e<br />
mantém um relacio<strong>na</strong>mento especial com uma ou mais jovens virgens.<br />
Nos dois casos, de acordo com algumas variantes, o tesouro é roubado<br />
por um visitante homem enquanto a serpente é drogada ou distraída<br />
com alimentos pela virgem que lhe tomava conta. Não surpreende,<br />
portanto, que a tradição iconográfica dos dois dragões devam convergir<br />
fortemente.<br />
As Hespérides eram perso<strong>na</strong>gens ambivalentes. Fontes tardias, em<br />
todos os casos, afirmam explicitamente que elas atuavam ao lado de<br />
Ládon guardando as maçãs (de Afrodite 129 ou Héracles 130). Apolônio<br />
parece achar que elas lamentaram também sobre o abate do dragão<br />
realizado por Hércules (em oposição a ape<strong>na</strong>s o roubo das maçãs). 131<br />
(Pseudo)Apolodoro deixou bem claro que a serpente guardava as maçãs<br />
<strong>na</strong> companhia das Hespérides, as quais ele nomeia individualmente. 132<br />
Pediásimo, semelhantemente, e talvez, consequentemente, apresenta o<br />
dragão e as Hespérides como guardiões das maçãs lado a lado. 133<br />
Entretanto, uma porção significativa da iconografia relacio<strong>na</strong>da às<br />
Hespérides de c. 470-60 a.C. as representa tentando pegar ou até mesmo<br />
128 Cf. Agroitas FGrH 762 F3a (iii-ii a.C.) e Diodoro 4.26-7.<br />
129 Hesíodo Catálogo de <strong>Mulheres</strong> F76 MW, schol. Teócrito 3.40, Sérvio Comentários<br />
sobre a Eneida de Virgílio 3.113, Primeiro mitógrafo vaticano 1.39.<br />
130 E.g. [Eratóstenes] Catasterismi 1.4.<br />
131 Apolônio Argonáutica 4.1396-1407.<br />
132 [Apolodoro] Biblioteca 2.5.11.<br />
133 Pediásimo 11.<br />
105
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
conseguindo pegar as maçãs elas próprias. 134 Ferécides, c. 454 a.C., conta<br />
que uma serpente estava parada sobre as maçãs porque as ―virgens filhas de<br />
Atlas ficavam pegando-as muito frequentemente‖. 135 De acordo com algumas<br />
tradições (não todas, como veremos), as Hespérides eram de fato as<br />
filhas de Atlas. 136 É possível que a noção de que as Hespérides<br />
estivessem envolvidas no furto do seu próprio dragão pode ter<br />
incentivado Medeia a mudar para um papel mais central dentro do<br />
episódio do dragão de Cólquida.<br />
Sabemos que <strong>na</strong> iconografia Ládon estava convencio<strong>na</strong>lmente<br />
enrolado <strong>na</strong> árvore com as maçães que ele guardava, pelo menos desde c.<br />
550 a.C. 137 e, de fato, existem imagens que sobreviveram que revelam a<br />
mesma ce<strong>na</strong> de c.500 a.C. em diante. 138 Mas é somente no período de c.<br />
380-60 a.C. que o dragão de Cólquida sobe em sua árvore ao lado do<br />
velo que ele guarda. 139 A este respeito, a linha de influência entre as duas<br />
tradições iconográficas é evidente. No entanto, é também nesse período<br />
que encontramos pela primeira vez tanto Medeia como as Hespérides<br />
dando de comer aos seus dragões de suas mãos ou oferecendo-lhes uma<br />
bebida a partir de um phialē . A imagem em si de uma mulher<br />
alimentando uma serpente com uma phialē é provável que tenha sida<br />
derivada de uma terceira tradição iconográfica, como veremos em breve.<br />
No caso de Medeia, é difícil não ler esse tipo de imagem como uma<br />
primeira representação do momento em que a mulher droga a serpente<br />
para que esta, em seguida, caia no sono. No caso das Hespérides,<br />
enquanto o gesto poderia, em teoria, representar um simples cuidado ou<br />
ato de alimentar o animal, o contexto sugere que as Hespérides também<br />
estão drogando sua serpente, ou pelo menos, distraindo-a com comida e<br />
bebidas, a fim de roubarem as maçãs. Nas imagens de 380-60 a.C.,<br />
encontramos uma das Hespérides alimentando a serpente, enquanto<br />
134 LIMC Herakles 2703, 2707a, 2717, 2726, Hesperides 2, 3, 7 (c. 470-60 a.C.),<br />
28 (?), 30, 36, 41, 63, Ladon i 6, 9.<br />
135 Ferécides F16c Fowler.<br />
136 Diodoro 4.27.2-1, Sérvio Sobre a Eneida de Virgílio 4.484, Primeiro mitógrafo<br />
vaticano 1.38.<br />
137 Pausânias 6.29.8 = LIMC Hesperides 64.<br />
138 LIMC Herakles 2692.<br />
139 LIMC Iason 40.<br />
106
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
outra delas pega as maçãs do outro lado da árvore: a artemanha, de<br />
qualquer tipo, faz-se visível. 140 Também existem imagens que deixam<br />
claro que esse truque foi praticado para o benefício de Héracles. Em<br />
uma imagem no início do século IV a.C., semelhantemente, uma<br />
Hespéride presenteia Heracles com um galho de maçãs de ouro. 141 Em<br />
uma imagem de c. 350-30 a.C., uma Hespéride, similarmente, presenteia<br />
Héracles com um galho semelhante (este contendo exatamente três<br />
maçãs), enquanto do outro lado da árvore outra Hespéride alimenta<br />
Ládon com uma tigela. 142 Em uma imagem de c. 350 a.C., Héracles situase<br />
entre duas Hespérides que realizam seus habituais truques com as<br />
mãos, evidentemente, à espera de receber os frutos que elas ganhariam<br />
dessa forma. 143 Em duas imagens de c. 340 a.C., uma Hespéride alimenta<br />
Ládon com uma tigela em um lado da árvore, enquanto no outro, o<br />
próprio Héracles pega as maçãs. 144 Especula-se frequentemente que, em<br />
uma versão das histórias relacio<strong>na</strong>das às Hespérides, uma delas tenha se<br />
apaixo<strong>na</strong>do por Héracles e, então, aceitado a proposta de pegar algumas<br />
maçãs para ele: em algumas ce<strong>na</strong>s de vasos, uma Hespéride em especial<br />
parece ser atraída por Hércules, 145 e em outras delas erōtes assiste à<br />
ce<strong>na</strong>. 146<br />
Se essa hipótese estiver correta, então nós teríamos mais um<br />
paralelo entre a história das Hespérides e o episódio de Cólquida, no<br />
qual Medeia ajuda Jasão contra a serpente, após ter-se apaixo<strong>na</strong>do por<br />
ele. E é possível que a Hespéride tenha sido traída em seu amor, tal<br />
como Medeia eventualmente foi. Tal traição pode ter sido aludida por<br />
Sêneca em seu Hercules Furens: ―Que [Héracles] engane as irmãs e traga consigo<br />
as maçãs, quando o dragão que jamais dorme, guardião dos valiosos frutos, deixar<br />
seus olhos caírem no sono‖. 147 Tanto com Ládon como com o dragão de<br />
Cólquida, a sedução de uma virgem implica a perda de um tesouro<br />
140 LIMC Hesperides 3 (380-60 a.C.), 4, 36, 63, Ladon i 9.<br />
141 LIMC Herakles 2719.<br />
142 LIMC Herakles 2726.<br />
143 LIMC Hesperides 36<br />
144 LIMC Hesperides 38, 62.<br />
145 LIMC Hesperides 26 (410 a.C.), 29-31, 33-5.<br />
146 LIMC Hesperides 30-2 (370-60 a.C.), 34-5.<br />
147 Sêneca Hercules Furens 530-2.<br />
107
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
dourado: em Lanúvio (discutido a seguir), a sedução por uma virgem<br />
resultará em um ano infértil.<br />
Mas de qualquer forma, é mais provável que a temática relacio<strong>na</strong>da<br />
ao ato de drogar a serpente parece ter-se deslocado mais do conto de<br />
Medeia para os das Hespérides, do que vice-versa. À parte da associação<br />
geral e antiga de Medeia com as drogas 148, nós fomos capazes de ver que<br />
a temática do ―feitiço do sono‖ provavelmente pode ser inicialmente<br />
encontrada em uma parte diferente da história de Cólquida: ela parece ter<br />
se deslocado, portanto, de Afrodite a Eetes para Medeia em relação ao<br />
dragão de Cólquida e, dessa, para as Hespérides em relação a Ládon.<br />
Logo, devemos concluir que o período entre 380-60 testemunhou uma<br />
contami<strong>na</strong>ção de mão dupla entre as iconografias de Medeia e das<br />
Hespérides.<br />
A noção de que as Hespérides devem ter drogado Ládon para fazêlo<br />
dormir tal como uma bruxa eventualmente faria remonta, embora, em<br />
todo o caso, de maneira intrigante, a uma famosa passagem da fala de<br />
Dido <strong>na</strong> Eneida. Aí, a vinheta que ela constroi de uma bruxa Massalia<strong>na</strong>,<br />
supostamente uma conhecida sua, acrescenta detalhes intrigantes:<br />
Próximo aos confins do Oceano e do sol que se<br />
põe, está a mais remota terra dos Etíopes, onde o<br />
grande Atlas carrega em seus ombros a esfera que<br />
é posta com as estrelas em chamas. Desta região<br />
uma sacerdotisa dos Massalianos foi indicada a<br />
mim como guardiã do templo das Hespérides. Ela<br />
costumava dar as refeições ao dragão (draco), e ela<br />
tomava conta dos galhos e ramos sagrados da<br />
árvore, untando uma mistura de mel com papoulas<br />
dormideiras. 149<br />
Portanto, a imagem parece ser inicialmente de uma mulher que, tal<br />
como as Hespérides, alimenta e toma conta de uma serpente. O mel<br />
pode ou não possuir um significado apropriado: ele é o adoçante<br />
148 LIMC Medeia 1 (c. 630 a.C.), Homero Ilíada 11.738-41 (‗Agamede‘), Nostoi<br />
F6 West (c. 550 a.C.?).<br />
149 Virgílio Eneida 4.480-6.<br />
108
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
tradicio<strong>na</strong>l ou o alimento doce ofertado em bolos para obter as graças<br />
dos deuses em formato de serpente. 150 Mas a papoula dormideira parece<br />
fora de contexto. Ela não parece um presente apropriado a ser dado para<br />
um guardião ideal feroz. Por que alguém iria dar tal presente ao guardião<br />
que se esperava estar sempre alerta, e que, nunca, jamais dormia?<br />
A afirmação potencialmente intrigante de que um vaso de c.410 a.C.<br />
representa Medeia, em um vestido oriental, carregando sua caixa<br />
característica de drogas nos jardins das Hespérides pode ser descartada:<br />
pode de fato ser que se trate de Medeia, porém não há motivo algum<br />
para identificar as Hespérides <strong>na</strong>s duas figuras femini<strong>na</strong>s, pois não há<br />
nenhum de seus atributos específicos ao lado dela- não existem maçãs,<br />
árvores e, tampouco, a presença de Ládon. 151<br />
4. Medeia e Higeia<br />
A temática de uma jovem alimentando uma serpente com um phialē<br />
é difícil de ser dissociada, no início do século IV a.C., da iconografia de<br />
Higeia. Higeia ganhou proeminência no fi<strong>na</strong>l do século V a.C.<br />
juntamente com uma falange de outros seres em forma de serpente ou<br />
divindades relacio<strong>na</strong>das, de alguma forma, a serpentes, sendo a mais<br />
proeminente de todas, é claro, o seu próprio pai e companheiro,<br />
Asclépio, e junto com ele Amfiarau e Trofônio (em diferentes níveis<br />
relacio<strong>na</strong>dos a divindades serpentes), Zeus Meiliquios e Agathos<br />
Daimon. Higeia, a personificação da Saúde, permanece sem um mito, tal<br />
como diversas outras divindades, mas sua iconografia é distinta, vívida e<br />
largamente consistente. As primeiras imagens de Higeia relacio<strong>na</strong>da a<br />
serpentes às quais temos acesso nos dias de hoje provêm de um relevo<br />
do século V a.C., que apesar de ter se perdido no tempo, aparece<br />
representado em uma cópia do século IV a.C., em Istambul. Aí, Asclépio<br />
e Higeia aparecem sentados lado a lado, enquanto o deus segura um<br />
bastão (sem serpentes) coroado com uma pinha: ele ainda não adquiriu<br />
sua própria serpente como atributo <strong>na</strong> tradição iconográfica existente,<br />
embora esteja prestes a fazê-lo. Esse deus observa com interesse<br />
150 E.g. oikouros ophis: Heródoto 8.41, Hesíquio s.v. οἰκουρὸν ὄφιν; Trofônio:<br />
Aristófanes As Nuvens 508 (com schol.), Pausânias 9.40.<br />
151 LIMC Medeia 70.<br />
109
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
enquanto Higeia faz uma performance daquilo que viria a ser seu gesto<br />
mais canônico: alimentar uma serpente com a sua phialē. Na medida em<br />
que a serpente bebe, ela se enrosca <strong>na</strong>quilo que parece ser um tipo de<br />
lâmpada ou candelabro: daí para a ce<strong>na</strong> em que Medeia alimenta a<br />
serpente que se enrosca em uma árvore é um pulo pequeno. 152<br />
Dada a falta de descrições e <strong>na</strong>rrativas textuais, até mesmo de<br />
inscrições, no tocante a Higeia, nós dependemos unicamente de suas<br />
imagens para construir um sentido para o seu relacio<strong>na</strong>mento com a sua<br />
serpente. Já que a relação de Higeia e, ainda, seu atributo, a serpente, é<br />
posto no mesmo nível que Asclépio com seu igual atributo paralelo da<br />
serpente, pode-se presumir que a relação de Higeia com sua serpente se<br />
assemelhe a de Asclépio com a sua respectiva criatura; em outras<br />
palavras, que tal relacio<strong>na</strong>mento poderia recair em qualquer lugar ao<br />
longo das diferentes modalidades possíveis, desde avatar ou símbolo, até<br />
como um animal de estimação. A única qualificação a qual poderíamos<br />
nos aventurar aqui a fazer é a de que, ao alimentar a serpente, Higeia<br />
interage com ela de uma maneira mais frequente do que aquela que<br />
Asclépio faz, e de que tal interação pode sugerir – ou não – um pequeno<br />
nível de diferenciação entre a divindade e a serpente.<br />
Mas o que poderia ser dito a respeito da noção de equivalência entre<br />
uma figura huma<strong>na</strong> e a serpente alimentada no caso das Hespérides e de<br />
Medeia? No tocante às Hespérides, ao menos, um argumento pode ser<br />
feito no sentindo de que elas compartilhavam de um profundo vínculo e<br />
ligação com a sua serpente. De acordo com Hesíodo, a serpente das<br />
Hespérides era um dos filhos de Ceto, o arquétipo de monstro marinho,<br />
e de Fórcis. Como tal, Ládon é irmão das Górgo<strong>na</strong>s e das Greias e, de<br />
acordo com a tradição preservada por Apolônio, também seria um irmão<br />
das próprias Hespérides. 153 Todos esses grupos femininos encontram-se<br />
açambarcados no mito de Perseu. Entre essas figuras femini<strong>na</strong>s, exibemse<br />
diferentes níveis de integração com as serpentes. As Górgo<strong>na</strong>s tinham<br />
cabeças de serpentes em seu próprio corpo, tanto nos cabelos como<br />
também em volta de seus pescoços e suas cinturas. As Greias<br />
manipulavam um olho e um dente em comum que compartilhavam<br />
152 LIMC Hygieia 5 = Asklepios 98.<br />
153 Schol. Apolônio Argonáutica 4.1399.<br />
110
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
entre si: duas partes do corpo que podem ser características de uma<br />
serpente, já que o próprio nome drakōn, segundo alguns etimologistas<br />
antigos (ou, de qualquer maneira, bizantinos) e modernos, significa<br />
―aquele que olha fixamente‖ (cf. δέρκομαι). 154 Se as Hespérides, elas<br />
próprias, trabalham em conjunto com uma serpente que possui partes do<br />
corpo separadas, não obstante o seu paralelismo com esses outros<br />
grupos femininos pode desde já implicar que elas gozavam de um<br />
vínculo estreito com a serpente.<br />
5. “As virgens criadoras de dragões”<br />
As ―virgens que cuidam de dragões‖ são um fenômeno da cultura grecoroma<strong>na</strong><br />
menos divulgado do que deveria ter sido. Higeia, a filha de<br />
Asclépio que nunca se casou (como também suas correspondentes<br />
roma<strong>na</strong>s, Salus e Valetudo), pode ser considerada uma virgem <strong>na</strong> medida<br />
em que alimentava sua serpente com uma phialē ou patera e, por isso, essa<br />
serpente é, em sentido maior ou menor, um aspecto de si mesma. O<br />
papel das Hespérides como virgens que cuidam de um dragão, ainda que<br />
com retidão ou com artimanhas, é também evidente. Virgílio não nos<br />
conta se a bruxa massalia<strong>na</strong>, à qual ele faz alusão junto a elas<br />
[Hespérides], também seria uma virgem (embora deva-se admitir que<br />
bruxas roma<strong>na</strong>s não costumavam ser).<br />
A própria Medeia, igualmente, é uma virgem até ser seduzida por<br />
Jasão. Certamente, à época de Valério Flaco, fica claro que o dragão de<br />
Cólquida é o animal de estimação de Medeia. A sua Medeia diz para<br />
Jasão: ―Eu sou a única para a qual ele olha com medo. Ele costuma me chamar por<br />
livre vontade e me pede por comida com uma língua bajuladora (blanda).‖ 155 Ela,<br />
portanto, dá a entender que a serpente confia nela: ―Que artimanhas você<br />
teme enquanto estou por perto? Eu mesma tomarei conta do bosque por um momento,<br />
enquanto você descansa um pouco de seu longo trabalho penoso?‖ 156 Quando ela<br />
fi<strong>na</strong>lmente põe seu ‗querido‘ dragão para descansar, ela se atira sobre ele e<br />
154 Etymologicum Gudianum, Etymologicum Parvum, Etymologicum Magnum, s.v.<br />
δράκων.<br />
155 Valério Flaco Argonáutica 8.62-3.<br />
156 Valério Flaco Argonáutica 8.77-8.<br />
111
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
o abraça, chorando por si mesma e por sua cria para com quem ela foi<br />
tão cruel.<br />
Você não estava assim quando tarde da noite eu<br />
lhe trouxe oferendas e banquetes, nem eu era<br />
assim quando coloquei bolos de mel em sua boca<br />
vazia e fidedig<strong>na</strong>mente alimentei você com meus<br />
feitiços/venenos. Como você pesa quando<br />
descansa! Como você respira devagar quando está<br />
aí deitado imóvel. Pelo menos, pobre<br />
desafortu<strong>na</strong>do, eu não matei você. Ai de mim,<br />
você está predesti<strong>na</strong>do a vivenciar um dia cruel.<br />
Em breve, você não verá o velo nem oferendas<br />
brilhantes sob sua sombra. Então, retire-se e passe<br />
sua velhice em outros bosques e esqueça-me, eu<br />
imploro. 157<br />
Por quanto tempo, antes de Valério Flaco, imaginou-se que Medeia<br />
possuísse tal relacio<strong>na</strong>mento íntimo com o dragão de Cólquida é algo<br />
incerto, mas provavelmente isto está implícito <strong>na</strong> boa vontade<br />
demonstrada pela serpente em receber alimento das mãos dela, como foi<br />
primeiramente atestado em vasos de c. 380-60 a.C.<br />
Se a hydria proveniente de Caere de c.660-40 a.C. não está<br />
representando nem Medeia nem as Hespérides, então ela nos fornece<br />
mais um outro exemplo de uma mulher que, de qualquer maneira, (não<br />
podemos especificar se ela era virgem ou não) tomava conta de um<br />
dragão. Mas, seja qual for o caso, ela felizmente localiza a origem deste<br />
fenômeno em um estágio bem antigo e inicial. 158<br />
E há as instâncias em que o fenômeno parece recair,<br />
hesitantemente, sobre um elemento externo. Heródoto implica que o<br />
oikouros ophis da acrópole ateniense, o qual havia celebremente ficado sem<br />
seus bolos de mel para prever o saque persa à cidade, era alimentado e<br />
cuidado por uma sacerdotisa da Ate<strong>na</strong> Polias. 159 Afirma-se geralmente<br />
que tal sacerdotisa tinha de ser casta em seu ofício, embora ainda não<br />
157 Valério Flaco Argonáutica 8.93-103.<br />
158 LIMC Medeia 2.<br />
159 Heródoto 8.41.<br />
112
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
necessariamente uma verdadeira virgem. Eliano fala de um santuário de<br />
Apolo em Épiro cheio de cobras, e estas eram os animais de estimação<br />
do deus. Elas teriam surgido de Píton em Delfos. As serpentes eram<br />
alimentadas com meiligmata ("mitigações/ apaziguamentos") por uma<br />
sacerdotisa virgem. Se elas comessem muito rapidamente de maneira<br />
ansiosa, previa-se que estava por vir um ano de saúde e prosperidade.<br />
Mas caso elas se assustassem ou recusassem a comida, então previa-se o<br />
oposto. 160 Isso levanta questões a respeito da possibilidade de ter havido<br />
uma conexão importante entre o pensamento antigo relacio<strong>na</strong>do a Píton<br />
de Delfos e à pítia ou pitonisa (a sacerdotisa pura e virgem de Apolo). O<br />
mais próximo que somos capazes de chegar é da fantasia astrológica<br />
caleidoscópica de Luciano, <strong>na</strong> qual a sacerdotisa pítia, que obviamente<br />
pertence ao período pós-Píton, o momento Apolíneo do oráculo, é<br />
inspirada por um drakōn que fala debaixo de sua trípode e compartilha<br />
algum tipo de vínculo com o drakōn das estrelas. 161<br />
Roma e a Itália também oferecem alguns exemplos desse mesmo<br />
fenômeno, ambas em níveis míticos (ou o que efetivamente é o mito) e<br />
dos cultos. Em relação ao primeiro, tem-se o dragão do rio Bagrada<br />
pertencente a um dos últimos grandes mitos clássicos relacio<strong>na</strong>dos à<br />
temática do combate a essas criaturas. O dragão teria sido supostamente<br />
morto em 256-5 a.C. pelo exército de Régulo que teria se valido de<br />
catapultas, uma espécie de equivalente antigo aos filmes americanos<br />
modernos em que estes combatem extraterrestres utilizando-se de armas<br />
nucleares. Esse dragão também tinha seu próprio grupo de virgens,<br />
embora Silius coloque o dragão como seu servo e não vice-versa:<br />
160 Eliano Sobre a <strong>na</strong>tureza dos animais 11.2.<br />
161 Luciano Da Astrologia 23.<br />
Ai de nós, com que sanções futuras fomos nós<br />
desti<strong>na</strong>dos a concordar com essa guerra! Quão<br />
grandiosos foram os castigos, quão intensas foram<br />
as raivas, tivemos nós a experiência! Nossos<br />
profetas piedosos explicaram a questão.<br />
Aconselharam-nos que nós destruíssemos com<br />
nossas próprias mãos o servo (famulus) das irmãs<br />
Naiad, o qual o rio Bagrada alimenta em suas<br />
113
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
águas quentes, e que iríamos, posteriormente,<br />
enfrentar os perigos como resultado. 162<br />
Quanto aos cultos, uma inesperada nota de Propércio conta-nos de<br />
um rito praticado em Lanúvio. Aqui, virgens, as quais devem ser<br />
cuidadosas ao caminhar, carregam, em cestas, pedacinhos de comida,<br />
descendo um caminho sagrado até o local onde havia um antigo draco. Se<br />
elas se mantivessem castas, elas conseguiriam retor<strong>na</strong>r para os seus pais e<br />
os agricultores gritavam: ―o ano vai ser fértil‖. No início do século III d.C.,<br />
Eliano nos dá outro relato do rito, o qual ele acidentalmente transfere<br />
para Lavínio localizando-o em um santuário de ‗Hera Argiva‘. Ele conta<br />
que em certos dias, virgens carregavam bolos de cevada em suas mãos<br />
em um bosque sagrado de árvores espesssas e que eram guiadas através<br />
dele até o covil do dragão pela sua respiração. O dragão, por sua vez,<br />
seria capaz de detectar quais delas eram virgens e quais não eram, e<br />
comia somente o bolo daquelas que eram, deixando os demais bolos<br />
para as formigas. A meni<strong>na</strong> cujo bolo não era comido caía em desgraça e<br />
era punida (embora não da mesma forma como é indicado <strong>na</strong> leitura de<br />
Propércio, ou seja, sendo devorada pela criatura). Este rito prestado fazse<br />
de uma maneira mais visível a nós através de moedas cunhadas entre<br />
64 e 54 a.C. por Lúcio Róscio Fabato. O anverso mostra a cabeça de<br />
Juno Sospita (pois esta era a Hera à qual o culto de fato pertencia). O<br />
reverso representa uma meni<strong>na</strong> alimentando uma cobra que se enrola em<br />
um nó. A jovem segura seu vestido <strong>na</strong> frente para fazer uma peque<strong>na</strong><br />
rede de apoio para o bolo ou bolos que, nós podemos supor, estão<br />
embrulhados no pano.<br />
Tais tradições pagãs foram curiosamente levadas para o interior da<br />
tradição cristã, onde elas foram transferidas para Roma e então<br />
associadas com as ainda mais famosas Virgens Vestais, cuja condição de<br />
virgindade era também, <strong>na</strong>turalmente, um pré-requisito. Em sua carta a<br />
sua esposa, escrita em c. 207 d.C. (anterior, portanto, aos escritos de<br />
Eliano), Tertuliano faz alusão ao sacrifício de uma mulher cristã em<br />
162 Lívio Periochae 18, Valério Máximo 1.8 ext.19, Plínio História Natural<br />
8.36-7, Sílio Púnica 6.140-293, Floro 1.18, Aulo Gélio 7.3, Arnóbio Adversus<br />
Nationes 7.46.<br />
114
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
permanecer celibata após a viuvez, chamando a atenção para o fato de<br />
que até mesmos os pagãos eram capazes de suportar e lidar com tal<br />
problema, a serviço de seu Satã: ―Pois em Roma, as mulheres que<br />
lidavam com as imagens <strong>na</strong>quele fogo que jamais se estinguia<br />
consideradas como possuidoras de pressários sobre seus próprios<br />
sofrimentos, junto ao dragão (draco), são indicadas tendo como base sua<br />
virgindade‘. 163 Esta fantasia cristã foi tomada pela tradição hagiográfica.<br />
Os Atos de Silvestre, compostos primeiramente, acredita-se, no fi<strong>na</strong>l do<br />
século IV a.D., conta-nos que um dragão vivia a 365 passos no fundo de<br />
uma caver<strong>na</strong>, e que uma vez por vez, magos e ‗virgens profa<strong>na</strong>s‘<br />
carregavam até lá comida e oferendas. Privado de suas ofertas, sob o<br />
governo cristão de Constantino, o dragão soprou seu hálito fétido no ar,<br />
matando, então, os romanos. São Silvestre foi ele próprio lá embaixo <strong>na</strong><br />
caver<strong>na</strong> e trancou o dragão para sempre no fundo de seu buraco. 164 Um<br />
texto anônimo do século V, De Promissionibus, fala a respeito de virgens<br />
levando oferendas para o dragão no fundo da caver<strong>na</strong> em Roma até a<br />
época de Estilicão (portanto, <strong>na</strong> virada do século IV para o V). Mas o<br />
monge ele próprio resolveu descer à caver<strong>na</strong> e descobriu que o dragão<br />
era, <strong>na</strong> verdade, um dispositivo mecânico com olhos feitos de pedras<br />
preciosas e uma língua afiada de aço. Ele, então, o destruiu. 165<br />
6. A defesa contra os guerreiros semeados a partir do dente do<br />
dragão de Ares<br />
Jason passou pela prova de ter de enfrentar os guerreiros-da-terra<br />
<strong>na</strong>scidos do dente semeado do dragão de Ares que fora morto por<br />
Cadmo, como pode ser visto em descrito por Eumelo já desde meados<br />
do século VI a.C. (?). O fragmento relevante que diz respeito a tal<br />
passagem foi preservado em um comentário de Apolônio, e o quadro<br />
defeituoso no qual o comentário mencio<strong>na</strong> o fragmento pode implicar<br />
que Medeia teve algum envolvimento no episódio, mas isto também é<br />
muito pouco e precário para que se monte algo de consistente a<br />
163 Tertuliano Ad Uxorem 1.6.3<br />
164 Atos de Silvestre A (1).<br />
165 De Promissionibus, PL 51, p.835.<br />
115
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
respeito 166. O envolvimento de Medeia no episódio aparece de maneira<br />
segura somente a partir de Apolônio. Em sua Argonáutica Medeia usa sua<br />
magia para criar uma poção que faça Jasão invencível para que ele possa<br />
lutar contra os touros-de-fogo e os guerreiros-de-terra. 167 Tanto Valério<br />
Flaco como (Pseudo)Apolodoro seguem Apolônio em relação a este<br />
aspecto. 168 Valério Flaco também coloca Medeia usando sua magia de<br />
um modo diferente contra os guerreiros <strong>na</strong>scidos da trerra: Jasão joga no<br />
meio deles, não uma pedra, mas o seu elmo, o qual Medeia havia<br />
imbuído de drogas mágicas. 169<br />
7. As serpentes fantasmas de Ártemis<br />
Os longos relatos de Diodoro sobre as aventuras de Medeia são<br />
derivados dos trabalhos de Dionísio Scytobrachion, contemporâneo de<br />
Apolônio de Rodes. Em um episódio singular, como parte de sua<br />
elaborada descrição de Pélias, Medeia usa suas drogas para conjurar<br />
fantasmas (eidōla) de dragões (drakontes), os quais ela alega terem<br />
arrastado Ártemis pelos ares em sua carruagem até Pélias, desde a terra<br />
dos Hiperbóreos. Claramente, isto saúda o tema da própria carruagem de<br />
serpentes de Medeia. 170<br />
8. Medeia se tor<strong>na</strong> a Angítia dos Marsi<br />
Ovídio já sabia que Medeia tinha o poder de fazer aparecer<br />
serpentes com seus encantamentos. 171 Embora outras bruxas<br />
similarmente possam ser atribuídas com as mesmas habilidades <strong>na</strong><br />
tradição poética lati<strong>na</strong>, 172 a habilidade de matar serpentes através de<br />
mágicas que as separassem ou as explodissem era origi<strong>na</strong>lmente<br />
associada, sobretudo, aos Marsi. 173 Os Marsi viviam ao longo do lago<br />
166 Eumelo F 21 West = schol. Apolônio Argonáutica 3.1354.<br />
167 Apolônio Argonáutica 3.401-21, 1026-62, 1176-1224, 1246-67.<br />
168 Valério Flaco Argonáutica 7.355-643, [Apolodoro] Biblioteca 1.9.23.<br />
169 Valério Flaco Argonáutica 7.467-72, 631-4, 8.106-8.<br />
170 Diodoro 4.51.<br />
171 Ovídio Metamorfose 7.203.<br />
172 E.g. Lucano Farsália 6. 488-91.<br />
173 Lucílio Livro 20 F7 Charpin (575-6 Marx), Virgílio Eclogues 8.71, Horácio<br />
Epodes 17.29, Ovídio Medicami<strong>na</strong> Faciei Femineae 39.<br />
116
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Fucino, onde se localizava o santuário de sua deusa especial, Angítia. 174<br />
Desde Sílio Itálico em diante, nós encontramos Medeia identificada de<br />
maneira muito próxima, ou ainda, completa, com a referida deusa. Sílio<br />
diz que Angítia, ‗a filha de Eetes‘, foi a primeira a ensi<strong>na</strong>r aos Marsi como<br />
anular o veneno das víboras utilizando-se de ervas e encantamentos, e<br />
como domar animais venenosos tocando neles. 175 Solino, em meados do<br />
século IV, porém, faz de Angítia uma irmã de Medeia (e de Circe) que<br />
teria vivido pelo lago Fucino, tendo combatido doenças com sua arte de<br />
curar, e até mesmo restaurando a vida <strong>na</strong>s pessoas, e que, por tal razão,<br />
teria sido elevada à condição e status de uma deusa. 176 Sérvio Honorato,<br />
no fi<strong>na</strong>l do século IV d.C., conta que Medeia veio aos Marrubianos (os<br />
Marsi cuja capital era Marruvium), e ensinou-lhes remédios contra as<br />
serpentes e como torturá-las (angerent), causa pela qual eles a chamaram<br />
de Angítia (cf. também anguis, serpente). 177 Os poucos pobres<br />
fragmentos que sobreviveram da estatuária de Angítia sugerem que ela<br />
pode ter sido representada sentada ou em pé de modo semelhante a<br />
Higeia/Salus e deusa roma<strong>na</strong> Bo<strong>na</strong> Dea, alimentando uma serpente a<br />
partir de uma phialē ou patera. De tal modo, ela pode também revocar<br />
Medeia em sua posição como aquela que fornece alimentos ao dragão de<br />
Cólquida.<br />
9. A coleção de venenos para as poções mágicas<br />
Na Medeia de Sêneca, a bruxa é representada reunindo cobras a fim<br />
de coletar suas peçonhas para elaborar o veneno com o qual ela iria<br />
imbuir o vestido de Glauce. No entanto, ela decide que serpentes<br />
comuns não seriam suficientes para tal tarefa, e que ela deveria assim<br />
também retirar a peçonha de cobras cósmicas e míticas. Ela recorre,<br />
portanto, à serpente controlada por Ofiúco, a Píton, a Hidra, e, é claro,<br />
ao seu próprio dragão de Cólquida. 178<br />
174 Virgílio Eneida 7.759-60.<br />
175 Sílio Punica 8.495-99.<br />
176 Solino 2.27-9.<br />
177 Sérvio Sobre a Eneida de Virgílio 7.750.<br />
178 Sêneca Medeia 684-705.<br />
117
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
10. Absoris e Apsirtos<br />
Nós dependemos dos escritos de Higino, no século II d.C., para<br />
identificar a tradição que associa Medeia ao controle das serpentes de<br />
Absoris: ―Medeia pegou seus dragões e retornou de Ate<strong>na</strong>s para<br />
Cólquida. Ao longo de sua viagem ela foi até Absoris, onde seu irmão<br />
Apsirto foi enterrado. Os habitantes locais estavam sendo oprimidos por<br />
uma multidão de cobras. Respondendo aos seus pedidos, Medeia reuniu<br />
todas as cobras e lançou-as dentro da tumba de seu irmão. Elas<br />
permanecem lá até hoje, e se alguma delas acaba saindo, tem de pagar<br />
uma dívida para com a <strong>na</strong>tureza‘. 179 O que temos nesse caso, uma praga<br />
de cobras, ao invés de somente uma única serpente, pode ser lido, em<br />
certo nível, como uma manifestação do heroi morto Apsirto. Os mortos<br />
heroicos frequentemente se manifestavam sob a forma de cobras: a<br />
manifestação de Anquises em sua tumba, em forma de cobra, tal como<br />
consta <strong>na</strong> Eneida, oferece um exemplo bem conhecido disto. 180 A<br />
própria multidão de cobras que infestavam o local pode ser lida como<br />
um modo de expressar a ira e o descontentamento do assassi<strong>na</strong>do<br />
Apsirto, ao passo que o confi<strong>na</strong>mento das serpentes de volta <strong>na</strong> tumba<br />
por parte de Medeia pode ser considerado como uma medida do mesmo<br />
tipo que o confi<strong>na</strong>mento do ‗fantasma‘, em paralelo com a tradição <strong>na</strong><br />
qual Medeia e Jasão sujeitam o corpo de Apsirto (e, assim, seu espírito) a<br />
dificuldades e impedimentos advindos do ‗maschalismos‟ ou<br />
esquartejamento. 181<br />
11. Medeia e Ate<strong>na</strong><br />
Enquanto sendo uma compreensiva senhora de dragões,<br />
subjugando-os e destruindo-os de acordo com seus próprios interesses, a<br />
figura mitológica de Medeia muito proximamente se assemelha à de<br />
Ate<strong>na</strong>. Por um lado, Ate<strong>na</strong> repetitivamente combate monstros em<br />
formatos de serpente. Com suas próprias mãos ela lutou contra a<br />
Górgo<strong>na</strong>, 182 a Aegis (a dupla de quimeras-dragões venenosas) 183 e o<br />
179 Hyginus Fabulae 26.<br />
180 Virgílio Eneida 5.95-6.<br />
181 Apolônio Argonáutica 4.477; cf. Suda s.v μασχαλίσθηναι.<br />
182 Eurípedes Ion 987-96; Hyginus De astronomia 2.12 (citing Euhemerus).<br />
118
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
gigante anguípede (com partes de serpentes). 184 Mais frequentemente<br />
ainda ela fornece auxilio a herois que lutam contra figuras em formato de<br />
serpentes. Em uma ordem estreita, as evidências apresentam os seguintes<br />
herois: Perseu que mata a Medusa; 185 Héracles que mata a Hidra; 186<br />
Cadmus que destroi a serpente de Ares em Tebas; 187 Belerofonte que<br />
mata a Quimera; 188 e, é claro, Jasão que mata o dragão de Cólquida. 189<br />
Muito frequentemente, da mesma forma, Ate<strong>na</strong> aparece alinhada com<br />
serpentes que lutam em seu nome: assim é tal com as serpentes <strong>na</strong> Aegis<br />
que ela porta ou com a cabeça da Górgo<strong>na</strong> incorporada a ela, 190 o<br />
escudo-brasão de serpente 191 e as serpentes que independentemente<br />
lutam ao seu lado <strong>na</strong> Gigantomáquia , 192 a serpente que guarda seu<br />
santuário <strong>na</strong> ilha de Chryse, 193 o par de cobras que (de acordo com<br />
Virgílio) ela manda contra Laocoonte e seus filhos 194 e a serpente que<br />
183 Diodoro 3.70.3-6 = Dionysius Scytobrachion FGrH 32 F8.<br />
184 LIMC Gigantes 389, etc.<br />
185 Píndaro Ode Pítica 10.29-48, 12.6-26, Ésquilo Fórcides F261 TrGF,<br />
Ferécides FGrH F11 Fowler, Lucano 9.666-70, Sérvio Sobre a Eneida de Virgílio<br />
6.289; LIMC Perseus 113, 120-2, 132, 151 (675-50 a.C.), 314.<br />
186 Hesíodo Teogonía 313-18, Higínio Fábula 30.3, Pausânias 5.17.11; LIMC<br />
Herakles 1991 (c. 600-595 a.C.), 1990 (= Athe<strong>na</strong> 11; c. 600-590 a.C.), 1992 (c.<br />
590 a.C.), 1995 (c. 585-75 a.C.), 1996 (565-50 a.C.), 2029 (c. 550), 2000 (c. 530<br />
a.C.), 1999 (c. 520-10 a.C.), 2002 (c. 500 a.C.), 2003-4 (c. 500-490 a.C.), 2005-6,<br />
2008 (c. 500-480 a.C.), 2010 (c.370-50 a.C.).<br />
187 Estesícoro F195 PMG/Campbell; Ferécides 22ab Fowler, Eurípedes As<br />
Fenícias 638-48 (com schol.), Helânico F51ab Fowler, [Apolodoro] Biblioteca<br />
3.4.1; LIMC Harmonia 1 (c. 440 a.C.), 3, Kadmos i 7-9 (no. 8 is ca. 440-30 a.C.),<br />
15 (= Harmonia 1), 16 (ca. 440-35 a.C.), 19, 21, 23 26a, 35.<br />
188 Píndaro Olímpio 13.63-6 e 84-90; cf. Ode Pítica 7.44-7.<br />
189 LIMC Iason 32 (c. 480-70 a.C., a taça de Douris) e 36.<br />
190 Homero Ilíada 5.741-2, etc.<br />
191 LIMC Gigantes 343 (fi<strong>na</strong>l do séc.VI a.C.).<br />
192 LIMC Gigantes 311-12 (c. 460-50 a.C.), LIMC Gigantes 425 (c. 460 a.C.)<br />
428 (iv-iii a.C.) 24 (início do II d.C).<br />
193 Sófocles Philoctetes 1326-8 (cf. 263-70), com schol. Homero Ilíada 2.722,<br />
Eustátio Sobre a Ilíada de Homero 2.274, Tzetzes sobre [Lícofron] Alexandra 911.<br />
194 Virgílio Eneida 2.199-231 (com Sérvio ad loc.); cf. Quinto Smirneo<br />
Posthomerica 12.444-97.<br />
119
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ataca Ajax quando este tenta violentar Cassandra diante da estátua. 195 Na<br />
cidade de Ate<strong>na</strong>s, ela acompanha ou preside um bom grupo de<br />
serpentes: Cécrope, o anguipede (que possui a parte inferior do corpo tal<br />
como uma serpente); 196 o par de serpentes que guardam Erictónio em<br />
seu peitoral; 197 o oikouros ophis de Erectónio (mencio<strong>na</strong>do antes), que<br />
Heródoto, de fato, parece até identificar como a própria deusa; 198 a<br />
serpente que se enrosca abaixo de seu escudo <strong>na</strong> famosa estátua de<br />
Fídias no Partenon, possivelmente a ser identificada como a própria<br />
Ate<strong>na</strong> (como um atributo ou um avatar) ou com o oikouros ophis ou com<br />
Erictónio. 199 E de acordo com Filóstrato, no tocante a uma possível<br />
informação a respeito de Erictónio, ―A deusa [Ate<strong>na</strong>], certa vez, criou<br />
um drakōn entre os atenienses‖. 200 De fato, a serpente que constitui o<br />
avatar de Higeia pode ter sido também de Ate<strong>na</strong>, se a Higeia de<br />
Asclépio/Esculápio realmente tiver suas origens no culto da Higeia da<br />
acrópole de Ate<strong>na</strong>s.<br />
Conclusão<br />
A extensa <strong>na</strong>tureza do envolvimento de Medeia com serpentes e<br />
dragões permanece única e intrigante como um todo. Entretanto, os<br />
episódios individuais das serpentes – ou dragões – de sua biografia,<br />
frequentemente, apresentam fortes paralelos, tanto em suas <strong>na</strong>rrativas<br />
como também <strong>na</strong> iconografia, com os episódios relacio<strong>na</strong>dos a outras<br />
figuras mitológicas. Enquanto uma figura femini<strong>na</strong> especializada por um<br />
lado em controlar e domesticar amistosos dragões e por outro lado capaz<br />
de destruir dragões e serpentes, ela, Medeia traz uma ampla semelhança<br />
195 LIMC Erechtheus 47 = Aias II 42 (c. 500 a.C.).<br />
196 [Apolodoro] Biblioteca 3.14; LIMC Kekrops 34.<br />
197 Amelesagoras FGrH 330 F1, Eurípedes Ion 16-28, Ovídio Metamorfose 2.561,<br />
[Apolodoro] Biblioteca 3.14; LIMC Aglauros 19 (c. 435-30 a.C.), Erechtheus 30<br />
(c. 450-40 a.C.), 32 (fi<strong>na</strong>l do séc. V a.C.), 36 (c. 440-30 a.C.).<br />
198 Heródoto 8.41, Aristófanes Lisístrata 758-9 com schol., Filarco FGrH 81<br />
F72 = Fócio Lexicon s.v. οἰκουρὸς ὄφις, Plutarco Temístocles 10, Etymologicum<br />
Magnum s.v. Ἐρεχθεύς.<br />
199 Pausânias 1.24.7, Hyginus Astronomica 2.13, Etymologicum Magnum s.v.<br />
Ἐρεχθεύς.<br />
200 Filóstráto Apolônio 7.24.<br />
120
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
estrutural com a deusa Ate<strong>na</strong>. A carruagem voadora arrastada por<br />
dragões pode ter suas origens em Medeia, mas, <strong>na</strong> forma pela qual a<br />
conhecemos, pode também possuir certo débito à tradição da carruagem<br />
de Triptólemo. A sua interação com o dragão de Cólquida, que pode ter<br />
começado meramente como uma relação de reciprocidade, parece então<br />
ter sido influenciada pela figura de Higeia e pela tradição de Ládon e das<br />
Hespérides, <strong>na</strong> medida em que ela fornece a Jasão uma porção da<br />
invencibilidade contra a criatura. Contudo, a sua própria mitologia, <strong>na</strong><br />
qual ela era uma celebrada manipuladora de drogas, pode ter, por sua<br />
vez, exercido um impacto sobre a tradição das Hespérides. Higeia, as<br />
Hespérides e Medeia podem todas, não obstante, funcio<strong>na</strong>r como<br />
representativas de uma tradição antiga e contínua envolvendo virgens<br />
que cuidam de dragões. Uma vez levada para a Itália, Medeia foi, não<br />
somente assemelhada como, inclusive, identificada com a própria<br />
Angítia, a deusa-serpente dos Marsi.<br />
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122
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
INTERAÇÕES PESSOAIS E VALORES MORAIS EM<br />
TÁCITO: UM ESTUDO DE ALGUMAS PERSONAGENS<br />
FEMININAS<br />
Prof. Dr. Fábio Faversani 201<br />
Prof.ª Ms.ª Sarah F. L. Azevedo 202<br />
―Occidat inquit dum imperet‖ 203. Segundo o historiador Tácito, esta<br />
foi a resposta de Agripi<strong>na</strong> aos Caldeus, quando foi consultá-los sobre o<br />
futuro de Nero e lhe foi revelado que Nero gover<strong>na</strong>ria, mas que a<br />
mataria. Agripi<strong>na</strong> tinha a suprema ambição de ver o filho gover<strong>na</strong>r,<br />
ambição que a fazia exceder os limites de sua <strong>na</strong>tureza femini<strong>na</strong>. Ela é<br />
retratada por Tácito como uma mulher ávida por poder, capaz de todos<br />
os tipos de perversidade para realizar seus intentos. A figura de Agripi<strong>na</strong>,<br />
considerada como um exemplum, apresenta um interessante<br />
distanciamento do modelo ideal de matro<strong>na</strong> roma<strong>na</strong>. Bisneta, filha, irmã,<br />
esposa e mãe de césares, Agripi<strong>na</strong> é a principal perso<strong>na</strong>gem femini<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa tacitea<strong>na</strong> sobre o período neroniano, e foi estudada largamente<br />
ao longo da história 204.<br />
Ela é a principal, mas não é a única perso<strong>na</strong>gem femini<strong>na</strong> a<br />
figurar nos livros neronianos dos A<strong>na</strong>is. Nos livros XIII a XVI, nos<br />
quais Tácito relata acontecimentos do principado de Nero, contamos 49<br />
perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s. Observando ser uma quantidade expressiva de<br />
201 Professor de História Antiga da Universidade Federal de Ouro Preto. A<br />
presente pesquisa conta com fi<strong>na</strong>nciamento do CNPq. Membro do Laboratório<br />
de Estudos sobre o Império Romano (LEIR).<br />
202 Mestranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, bolsista da<br />
UFOP. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (LEIR)<br />
203 ―Que me mate desde que reine.‖ Ann. XIV, 9, 3.<br />
204 Sobre a produção historiográfica, especialmente durante o século XX, que<br />
tiveram como objeto Agripi<strong>na</strong> e as outras mulheres da <strong>na</strong>rrativa tacitea<strong>na</strong>, ver:<br />
WALLACE, 1991, p.3556-3574. A perso<strong>na</strong>gem de Agripi<strong>na</strong> não foi estudada<br />
ape<strong>na</strong>s por historiadores, <strong>na</strong>turalmente. Para um exemplo notável destas<br />
reapropriações, bastará dizer que a primeira ópera de George Frideric Handel<br />
(HMV6), estreada em 1709, foi dedicada a Agripi<strong>na</strong>, que dá título à peça. A obra<br />
foi apresentada em uma sequência inédita de 27 aparições consecutivas e<br />
projetou seu autor <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> musical.<br />
123
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
menções a mulheres, tor<strong>na</strong>-se pertinente questio<strong>na</strong>r as razões desta forte<br />
presença em uma <strong>na</strong>rrativa historiográfica e a<strong>na</strong>lisar não ape<strong>na</strong>s aquelas<br />
que ganham maior visibilidade <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa tacitea<strong>na</strong> e nos estudos<br />
posteriores, mas também esta miríade de inserções de mulheres no relato<br />
de Tácito.<br />
As perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s, todas elas, denotam o caráter de<br />
exemplaridade. Ou seja, elas mereceram um lugar <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa por<br />
apresentarem um comportamento que pode ser louvável ou vituperado.<br />
Junte-se a isso também o fato delas aparecerem muitas vezes<br />
relacio<strong>na</strong>das a homens da domus a que pertenciam, notadamente da domus<br />
gover<strong>na</strong>nte (que é o foco principal da <strong>na</strong>rração tacitea<strong>na</strong>), no interior da<br />
qual elas possuíam funções relacio<strong>na</strong>das à política, como por exemplo,<br />
gerar sucessores legítimos (e lutar para garantir seu sucesso) ou mesmo<br />
vir a se ligar à casa gover<strong>na</strong>nte através de casamento com motivação<br />
política. Deste modo, considerando que elas eram peças do jogo político<br />
do império, a sua inserção em um relato historiográfico é algo que não<br />
surpreende. Por isso, compreendemos também que o envolvimento<br />
delas com a política nem sempre é representado como uma transgressão,<br />
ou seja, nem sempre apresentam comportamento com características<br />
viris 205. Desde que o envolvimento da mulher com a política permaneça<br />
no âmbito da domus e relacio<strong>na</strong>do aos seus deveres com os membros<br />
desta, não há transgressão 206. Mas, embora a percepção da divisão de<br />
espaços, gêneros e funções - como, por exemplo, a relação entre público,<br />
masculino e política em contraposição a privado, feminino e doméstico -<br />
ser de extrema importância, não é suficiente para uma compreensão<br />
pormenorizada da representação das mulheres <strong>na</strong> historiografia. Uma<br />
vez que as próprias fronteiras entre público e privado não representavam<br />
205 Muitas vezes a influência e participação das mulheres <strong>na</strong> política, como<br />
apresentada pelas fontes, é considerada como transgressão do comportamento<br />
feminino. Entretanto, esta é uma definição básica da transgressão femini<strong>na</strong>. O<br />
fato de mulheres demonstrarem comportamento com característica viris não<br />
representa, em todos os casos, uma transgressão, como por exemplo, a relação<br />
entre Agripi<strong>na</strong> Maior e o exército romano em A<strong>na</strong>is, I, 69. (Sobre o<br />
envolvimento de Agripi<strong>na</strong> Maior com a política e exército, cf: BAUMAN, 1992:<br />
130-154.)<br />
206 MILNOR, In: FELDHERR, 2009: 277.<br />
124
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
uma linha, mas uma ampla e muitas vezes pouco clara área, aberta a<br />
negociações e a sobreposições, o mesmo pode se dizer para os espaços<br />
da política que podiam ser o fórum e a domus e os papéis masculino e<br />
feminino, que não são fixos e delimitados como campos apartados e<br />
nitidamente separados que se definem pela relação de um com o outro.<br />
A própria figura de Agripi<strong>na</strong>, embora considerada ícone da transgressão,<br />
apresenta valor por vezes positivo, por vezes negativo e, em outros<br />
casos, ambivalentes. Estas perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s aparecem associadas a<br />
perso<strong>na</strong>gens masculi<strong>na</strong>s, com um claro objetivo de evidenciar algum<br />
aspecto destas últimas, como por exemplo, quando perso<strong>na</strong>gens<br />
femini<strong>na</strong>s apresentam virtudes que não são próprias de sua <strong>na</strong>tureza,<br />
frente a homens que deveriam estimular tal comportamento, mas não o<br />
fazem. Em outras palavras, foram inseridas <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa com efeito de<br />
auxiliar <strong>na</strong> caracterização de uma outra perso<strong>na</strong>gem. Este recurso<br />
retórico é muito comum <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa tacitea<strong>na</strong>, e não é utilizado somente<br />
para caracterizar perso<strong>na</strong>gens masculi<strong>na</strong>s, pois Tácito também faz<br />
associações entre perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s com objetivo de ressaltar vícios<br />
ou virtudes de uma determi<strong>na</strong>da mulher. Ademais, nossa análise aqui não<br />
se centra exclusivamente <strong>na</strong> relação entre masculino e feminino, pois,<br />
como veremos, outros tipos de relações perpassam este campo e se<br />
fazem importantes para o entendimento da presença de mulheres nos<br />
A<strong>na</strong>is. O nosso principal objetivo neste texto é tentar compreender<br />
como Tácito fez uso de associações entre perso<strong>na</strong>gens, partindo das<br />
perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s. Procuramos identificar quais os efeitos dessas<br />
associações <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, mais do que o estudo de cada perso<strong>na</strong>gem<br />
isoladamente. A<strong>na</strong>lisaremos também questões relativas à participação das<br />
mulheres <strong>na</strong> política imperial.<br />
Dentre estas 49 perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s que são mencio<strong>na</strong>das<br />
por Tácito ao longo do relato do principado de Nero, notamos que 29,<br />
ou seja, 59%, aparecem somente uma vez <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa. Vale ressaltar que<br />
a maior parte dessas perso<strong>na</strong>gens de ocorrência única no texto apresenta<br />
virtudes. Muitas delas, não por acaso, estão relacio<strong>na</strong>das a homens<br />
virtuosos. Já Agripi<strong>na</strong>, a figura femini<strong>na</strong> mais frequente <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, é<br />
mencio<strong>na</strong>da em 31 capítulos, quase sempre associada a perso<strong>na</strong>gens ou<br />
eventos de valor negativo. Percebemos que, para além das características<br />
individuais das perso<strong>na</strong>gens, Tácito as caracteriza também pela<br />
125
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
associação ou dissociação entre perso<strong>na</strong>gens (masculi<strong>na</strong>s ou femini<strong>na</strong>s) e<br />
os vícios e virtudes de suas respectivas <strong>na</strong>turezas. Em outras palavras,<br />
uma perso<strong>na</strong>gem pode ser mostrada como virtuosa ou viciosa quando<br />
associada ou se afastada de uma perso<strong>na</strong>gem antes mostrada como<br />
virtuosa ou viciosa. Assim, as características das perso<strong>na</strong>gens e a<br />
construção dos exempla decorre muitas vezes de como as perso<strong>na</strong>gens<br />
são colocadas em interação, como se ligadas umas às outras.<br />
Para explorar esta hipótese, em razão do espaço disponível para<br />
a apresentação do estudo, a<strong>na</strong>lisaremos neste texto ape<strong>na</strong>s alguns<br />
episódios envolvendo as perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s ―menos visíveis‖.<br />
Tratamos como menos visíveis as perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s a que Tácito<br />
faz menção entre uma e quatro vezes durante o relato. Elas não são<br />
menos importantes no sentido de necessariamente terem um papel<br />
menor no relato e também não necessariamente gozam de uma posição<br />
social menos destacada. Muitas aparecem em determi<strong>na</strong>dos momentos<br />
da <strong>na</strong>rrativa com função de evidenciar as virtudes ou vícios de outra<br />
perso<strong>na</strong>gem. Ou seja, elas foram intencio<strong>na</strong>lmente inseridas no relato em<br />
momentos ideais, de maneira que, como já ressaltamos acima, auxiliam<br />
<strong>na</strong> caracterização de outras perso<strong>na</strong>gens.<br />
Comecemos pelas perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s de ocorrência única e<br />
positiva <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa. Dentre estas, identificamos dois tipos<br />
paradigmáticos: Primeiro temos aquelas que constituem exemplos de<br />
mulheres fiéis e leais aos maridos e em segundo lugar temos aquelas que<br />
sofreram injustiças, ou seja, mulheres virtuosas que foram acusadas<br />
injustamente. Dentre as mulheres leais aos maridos, destacam-se:<br />
Antonia Flacila e Inácia Maximila 207, esposas de Nónio Prisco e Glício<br />
Galo. Elas acompanharam os maridos no desterro depois de eles serem<br />
acusados de envolvimento <strong>na</strong> conspiração pisonia<strong>na</strong>. Além dessas, temos<br />
Antístia 208, esposa de Rubélio Plauto, que também o acompanhou,<br />
quando ele foi forçado a sair de Roma. Por fim, temos Árria Menor 209,<br />
esposa de Traseia Peto, que quis imitar a mãe e morrer com o marido.<br />
Acompanhar o marido no desterro é um comportamento louvável,<br />
207 Ann. XV, 71.<br />
208 Ann. XIV, 22.<br />
209 Ann. XVI, 34.<br />
126
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sendo que Tácito, no prefácio das Histórias, indica que estas mulheres<br />
representam bo<strong>na</strong> exempla:<br />
Non tamen adeo uirtutum sterile<br />
saeculum ut non et bo<strong>na</strong> exempla<br />
prodiderit. Comitatae profugos liberos<br />
matres, secutae maritos in exilia conuiges:<br />
propinqui audentes, constantes generi,<br />
contumax etiam aduersos tormenta<br />
seruorum fides; supremae clarorum<br />
uirorum necessitates, ipsa necessitas<br />
fortiter tolerata et laudatis antiquorum<br />
mortibus pares exitus.<br />
Entretanto, o século não foi de tal forma<br />
estéril que não produzisse bons<br />
exemplos: mães acompanharam os filhos<br />
proscritos, esposas seguiram os maridos<br />
no exílio; parentes corajosos, genros<br />
perseverantes, escravos cuja lealdade fora<br />
contumaz mesmo diante dos maiores<br />
tormentos; homens ilustres que toleraram<br />
corajosamente as circunstâncias<br />
derradeiras, equiparando seu fim com as<br />
mortes gloriosas dos antigos. 210<br />
Tácito emprega o topos da mulher leal com o claro objetivo de<br />
evidenciar as virtudes do marido. Ou seja, as virtudes dele é que fazem<br />
surgir <strong>na</strong> esposa o sentimento de lealdade e superar os i<strong>na</strong>tos vícios<br />
femininos (luxúria, vaidade, ambição). Vejamos o exemplo de Árria<br />
Menor: ela não acompanha o marido no desterro, mas sua lealdade vai<br />
além. Quando Traseia Peto foi conde<strong>na</strong>do por envolvimento <strong>na</strong><br />
conspiração pisonia<strong>na</strong>, ela logo demonstrou desejo de morrer junto ao<br />
marido e imitar o exemplo de sua mãe, Árria Maior, famosa pela frase<br />
―Paete, non dolet‖ 211. No entanto, foi persuadida por Traseia, que lhe pediu<br />
que continuasse a viver para não deixar a filha desamparada. Suicidar<br />
junto ao marido é a prova máxima da lealdade de uma esposa, além de<br />
perpetuar a imagem da mulher honrada, faz aumentar a glória deste.<br />
Traseia negou esta glória a Árria, o que não interferiu <strong>na</strong> reputação<br />
elevada do casal, uma vez que a preservação da própria vida é<br />
apresentada como um sacrifício mater<strong>na</strong>l. Acresça-se que neste caso, a<br />
mulher se tor<strong>na</strong> testemunha viva da injustiça sofrida pelo marido, além<br />
de sua sobrevivência ser também prova de sua lealdade (já que obedeceu<br />
ao marido, o único que, neste dilema, poderia persuadi-la a continuar<br />
viva). Tácito mencio<strong>na</strong> os nomes de cada uma destas esposas leais<br />
210 Tradução nossa.<br />
211 ―Peto, não dói‖. Plínio, Ep. 3,16, 13.<br />
127
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
somente uma vez durante todo o relato, ape<strong>na</strong>s para <strong>na</strong>rrar suas ações de<br />
lealdade. Elas aparecem em um determi<strong>na</strong>do momento da <strong>na</strong>rrativa,<br />
quando o historiador pretende exaltar a virtude de alguma perso<strong>na</strong>gem<br />
masculi<strong>na</strong>. Não por acaso, todos os maridos destas esposas leais são<br />
homens de virtudes. A lealdade das esposas, associada a estes, evidencia<br />
tais virtudes.<br />
O segundo tipo de perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s de ocorrência única e<br />
positiva <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa são as mulheres que foram acusadas injustamente,<br />
destas, destacamos: Agripi<strong>na</strong> Maior 212, que foi conde<strong>na</strong>da ao desterro<br />
por Tibério; Júlia 213, conde<strong>na</strong>da ao desterro por Cláudio (sob influência<br />
de Messali<strong>na</strong>); Calpurnia, 214 também conde<strong>na</strong>da ao desterro por Cláudio<br />
(agora sob influência de Agripi<strong>na</strong> Menor); Lólia Pauli<strong>na</strong> 215, outra vítima<br />
de Agripi<strong>na</strong> Menor, recebeu ordem para morrer depois de ser falsamente<br />
acusada; e Popeia 216, (mãe de Popeia, a segunda esposa de Nero), foi<br />
persuadida a se matar por intrigas de Messali<strong>na</strong>.<br />
Diferente das esposas leais, estas mulheres que sofreram<br />
injustiças estão diretamente associadas a outras mulheres. Elas auxiliam<br />
<strong>na</strong> construção da imagem de outra perso<strong>na</strong>gem femini<strong>na</strong>. Vejamos,<br />
Agripi<strong>na</strong> Maior e Júlia aparecem somente no capítulo 63 do livro XIV,<br />
quando Tácito <strong>na</strong>rra as falsas acusações de Nero contra Octávia e seu<br />
desterro para a ilha Pandatária. O sofrimento de Octávia é comparado ao<br />
de Agripi<strong>na</strong> Maior 217 e Júlia, que também foram desterradas,<br />
possivelmente para a mesma ilha que Octávia. Ao comparar, Tácito<br />
ressalta que Octávia, por ter aproximadamente 20 anos, e ser mais jovem<br />
que Agripi<strong>na</strong> Maior e Júlia, inspirava ainda mais compaixão. Ou seja, o<br />
foco da <strong>na</strong>rrativa, neste momento, é a injustiça sofrida por Octávia, de<br />
212 Ann. XIV, 63<br />
213 Ann. XIV, 63. Tácito não especifica se é Júlia, filha de Germânico, ou Júlia,<br />
filha de Druso. Ambas morreram no desterro <strong>na</strong> época de Cláudio.<br />
214 Ann. XIV, 12<br />
215 Ann. XIV, 12. Para o relato da acusação contra Calpúrnia e Lólia Pauli<strong>na</strong>,<br />
ver: Ann. XII, 22.<br />
216 Ann. XIII, 43. Sobre a intriga de Messali<strong>na</strong> para matar Popeia, ver: Ann. XI,<br />
1 - 2.<br />
217 Sobre o desterro de Agripi<strong>na</strong> Maior para esta ilha: SUETONIUS, Tiberius, 53,<br />
2.<br />
128
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
modo que o contraste com outras mulheres de virtude, que sofreram<br />
injustiças semelhantes, faz realçar mais o caráter virtuoso de Octávia. Já<br />
Calpúrnia e Lólia Pauli<strong>na</strong> são perso<strong>na</strong>gens que fazem tor<strong>na</strong>r evidente a<br />
crueldade de Agripi<strong>na</strong>. Elas foram acusadas no ano de 49 218, o mesmo<br />
ano do casamento de Cláudio e Agripi<strong>na</strong>. As acusações foram forjadas<br />
por Agripi<strong>na</strong>, e a razão dela para querer elimi<strong>na</strong>r essas mulheres era<br />
ape<strong>na</strong>s o ciúme. Lólia Pauli<strong>na</strong> foi uma das concorrentes ao casamento<br />
com Cláudio, e Calpúrnia foi, certa vez, elogiada por Cláudio. O César<br />
proferiu as acusações frente ao se<strong>na</strong>do. Lólia Pauli<strong>na</strong> foi acusada de<br />
consultar adivinhos sobre as núpcias de Cláudio, e foi sentenciada à<br />
morte. Tácito não mencio<strong>na</strong> qual foi a acusação contra Calpúrnia, mas<br />
sua sentença foi o desterro. As razões femini<strong>na</strong>s de Agripi<strong>na</strong> e as<br />
sentenças sofridas pelas acusadas revelam a crueldade de Agripi<strong>na</strong>, além<br />
de demonstrar a influência que ela exercia sobre Cláudio, já no início do<br />
casamento. Tácito <strong>na</strong>rra estas acusações no capítulo 22 do livro XII, ou<br />
seja, durante a <strong>na</strong>rrativa dos acontecimentos do principado de Cláudio.<br />
O efeito das interações entre as perso<strong>na</strong>gens se reforça uma vez mais.<br />
Agripi<strong>na</strong> não é uma má esposa por si. Cláudio ao abrigar as acusações<br />
injustas e usar de seu poder para fazê-las prosperar estimula o perfil<br />
negativo da sua esposa. O historiador recoloca essas duas mulheres <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa ape<strong>na</strong>s no livro XIV. Portanto, elas aparecem uma vez <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa sobre o principado de Cláudio, e uma vez durante o principado<br />
de Nero. Tácito relata que, depois da morte da mãe, Nero perdoou<br />
algumas vítimas de Agripi<strong>na</strong>, dentre elas estava Calpúrnia, que foi<br />
chamada do desterro, e Lólia Pauli<strong>na</strong>, para a qual o príncipe permitiu que<br />
erigissem um túmulo para as suas cinzas. Estas ações de Nero visavam<br />
mostrar sua clemência, e, ao mesmo tempo agravar o sentimento de<br />
aversão a Agripi<strong>na</strong>. 219 Nos dois momentos da <strong>na</strong>rrativa em que Tácito<br />
218 A fim de compreender o motivo da inserção destas mulheres <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa<br />
dos A<strong>na</strong>is durante o relato dos acontecimentos do principado de Nero (livros<br />
XIII a XVI), resolvemos retroceder um pouco, e deste modo, percebemos que<br />
as perso<strong>na</strong>gens Calpúrnia, Lólia Pauli<strong>na</strong>, além de serem perso<strong>na</strong>gens de<br />
ocorrência única <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa dos livros neronianos, também aparecem uma vez<br />
<strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa dos acontecimentos do principado de Cláudio (livros XI e XII).<br />
219 “Ceterum quo gravaret invidiam matris eaque demota auctam lenitatem suam<br />
testificaretur”. (Ann. XIV, 12, 3)<br />
129
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mencio<strong>na</strong> Calpúrnia e Lólia Pauli<strong>na</strong>, a intenção é clara: a caracterização<br />
de Agripi<strong>na</strong>, através de seus atos cruéis e, por decorrência, tanto o elogio<br />
dos que se opunham a seus desmandos, quanto a crítica àqueles que a<br />
estimulavam.<br />
Seguindo esta mesma lógica, notamos que a perso<strong>na</strong>gem de<br />
Popeia, mãe da segunda esposa de Nero, também aparece <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa<br />
com função de evidenciar a crueldade de Messali<strong>na</strong>. As intrigas da<br />
imperatriz são <strong>na</strong>rradas no início do livro XI 220. Tácito retoma o<br />
episódio no livro XIII, capítulo 43, quando relata as acusações feitas a P.<br />
Suílio, e uma delas era estar envolvido <strong>na</strong> morte de Popeia, por ser aliado<br />
de Messali<strong>na</strong>. Deste modo, a lembrança do episódio, neste ponto do<br />
relato, serve mais para incrimi<strong>na</strong>r Suílio do que para caracterizar<br />
Messali<strong>na</strong>, que, neste momento da <strong>na</strong>rrativa, já estava estabelecida.<br />
Messali<strong>na</strong>, aliás, já havia sido morta neste momento do relato.<br />
A<strong>na</strong>lisaremos agora as perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s que foram<br />
mencio<strong>na</strong>das entre duas e quatro vezes nos livros neronianos. Algumas<br />
delas também auxiliam <strong>na</strong> caracterização de uma perso<strong>na</strong>gem de maior<br />
visibilidade <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa. Como exemplos, citamos Pythias 221, a escrava<br />
leal de Octávia, e Acerrônia 222, a escrava desleal de Agripi<strong>na</strong>. Para se<br />
separar de Octávia, Nero a acusou falsamente de adultério e mandou<br />
submeter à tortura todas as suas escravas. Tácito <strong>na</strong>rra que algumas,<br />
devido à dor, fizeram confissões que poderiam comprometer Octávia,<br />
enquanto outras foram persistentes em afirmar a inocência da ama. Uma<br />
das escravas, a qual Dio Cassius nomeia Pythias 223, demonstrou lealdade<br />
de tal maneira que chegou a insultar o torturador, dizendo-lhe que até as<br />
partes íntimas de Octávia eram mais puras que a boca dele 224. Segundo<br />
220 Esta Popeia é perso<strong>na</strong>gem de ocorrência única <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa dos livros<br />
neronianos dos A<strong>na</strong>is. Entretanto, durante o relato dos acontecimentos do<br />
principado de Cláudio, é mencio<strong>na</strong>da em três capítulos: Ann. XI, 1-2, 4.<br />
221 Ann. XIV, 60 e 62.<br />
222 Ann. XIV, 5-6.<br />
223 Tácito não cita este nome, mas o encontramos em Dio Cassius, História<br />
Roma<strong>na</strong>, LXII 13, 4. Devemos atentar para o sentido deste nome: Pythias remete<br />
a um modelo de amizade verdadeira.<br />
224 ―…ex quibus u<strong>na</strong> instanti Tigellino castiora esse muliebria Octaviae respondit quam os<br />
eius.‖ (Ann. XIV, 60, 3-4)<br />
130
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Holt Parker 225, nos exempla de escravos leais, as virtudes apresentadas<br />
pelo escravo se tor<strong>na</strong>m uma testemunha do bom caráter do senhor.<br />
Deste modo, as histórias de virtudes de escravos são devidas à fama do<br />
senhor e reforçam a imagem deste, ou seja, fazem parte do exemplum que<br />
o senhor representa. Nesta perspectiva, Pythias é um exemplo claro de<br />
perso<strong>na</strong>gem que foi inserida <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa para evidenciar as virtudes de<br />
Octávia. Em contraposição, Acerrônia, a escrava de Agripi<strong>na</strong>, apresenta<br />
raciocínio servil e, portanto, ambicioso e desleal. Acerrônia<br />
acompanhava Agripi<strong>na</strong> <strong>na</strong> embarcação que Nero mandou construir para<br />
forjar um <strong>na</strong>ufrágio, pois assim a morte da mãe teria aparência de<br />
acidente. O plano de Nero falhou, porque além dos tripulantes terem se<br />
atrapalhado no momento do <strong>na</strong>ufrágio, Agripi<strong>na</strong> e Acerrônia<br />
conseguiram se salvar, apesar de terem ficado presas debaixo da armação<br />
de um leito. Acerrônia, num ato de esperteza, gritou que ela era Agripi<strong>na</strong>,<br />
imagi<strong>na</strong>ndo que isto faria com que a salvassem primeiro. Mas seu ardil<br />
levou a que fosse morta de imediato por golpes de remos e outros<br />
objetos <strong>na</strong>vais. Agripi<strong>na</strong>, percebendo toda a trama, ficou calada e se pôs<br />
a <strong>na</strong>dar até a margem. Interessante notar, então, que a escrava que<br />
apresenta virtudes está associada à Octávia, modelo virtuoso, enquanto a<br />
que apresenta vícios está associada à Agripi<strong>na</strong>, modelo vicioso. Assim, as<br />
interações não só reforçam as características individuais, mas promovem<br />
uma nova realidade para além das individualidades. Pessoas virtuosas<br />
geram coletivos virtuosos, especialmente se elas são superiores<br />
hierárquicos e têm poder sobre a ação alheia. Mas em Tácito, como<br />
temos visto, os inferiores não são constrangidos a agir bem ou mal,<br />
simplesmente o fazem. As interações não são circunstâncias isoladas,<br />
mas criam em seu conjunto, uma existência virtuosa ou viciosa.<br />
Um outro exemplo interessante relacio<strong>na</strong>do à lealdade de<br />
libertos é o da liberta Epícaris. Como as escravas de Octávia e Acerrônia,<br />
ela também aparece duas vezes <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa 226, mas diferente daquelas, a<br />
perso<strong>na</strong>gem de Epícaris é utilizada para gerar uma contraposição de<br />
comportamentos 227. Envolvida <strong>na</strong> conspiração pisonia<strong>na</strong>, a liberta foi<br />
225 PARKER, In: JOSHEL; MURNAGHAN, 1998, p. 167.<br />
226 Ann. XV, 51 e 57.<br />
227 DAITZ, 1960: 48.<br />
131
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
submetida à tortura e preferiu suicidar ao invés de denunciar os<br />
conjurados. Tácito compara a conduta dela, que <strong>na</strong> condição de liberta e<br />
mulher foi muito mais leal que se<strong>na</strong>dores, equestres e cidadãos<br />
romanos, que sem sofrer tortura alguma, denunciavam aqueles que lhes<br />
deviam ser caros. 228<br />
Os escravos leais, assim como as esposas leais, demonstram a<br />
superação de sua <strong>na</strong>tureza, ao adotar um comportamento excepcio<strong>na</strong>l.<br />
Escravos e mulheres geralmente são caracterizados tendo a ambição<br />
como um vício em comum. Esta ambição é caracterizada pela busca de<br />
vantagens pessoais. Sem ter <strong>na</strong> respublica uma via de ascensão e distinção<br />
sociais, mulheres e escravos construiriam mecanismos de promoção que<br />
desconsidera as regras cívicas, e muitas vezes perverte estas mesmas<br />
regras. A ambição e o individualismo são características próprias da<br />
condição servil, e também fazem parte da <strong>na</strong>tureza femini<strong>na</strong>. 229 Como<br />
bem nos lembra Joly 230: ―Para Tácito, uma das principais características do que<br />
poderíamos denomi<strong>na</strong>r de uma „racio<strong>na</strong>lidade servil‟ é a conduta pautada pela<br />
satisfação de interesses pessoais do escravo.‖ Um exemplo típico deste tipo de<br />
comportamento seria o liberto Milicho 231 e sua esposa. Milicho, liberto<br />
de Cevino, descobriu que seu patrono estava envolvido <strong>na</strong> conspiração<br />
pisonia<strong>na</strong>. Em dúvida, se o denunciava ou não, resolveu pedir conselhos<br />
a sua esposa. Tácito <strong>na</strong>rra que ela, como mulher, lhe aconselhou o pior,<br />
já que recomendou ao marido que denunciasse o patrono 232. O<br />
argumento usado pela mulher para convencer o esposo demonstra sua<br />
ambição e individualismo, pois lhe disse que se ele fosse o primeiro a<br />
228 ―clariore exemplo liberti<strong>na</strong> mulier in tanta necessitate alienos ac prope ignotos protegendo,<br />
cum ingenui et uiri et equites Romani se<strong>na</strong>toresque intacti tormentis carissima suorum quisque<br />
pignorum proderent.‖ (Ann. XV, 57, 2.)<br />
229 Como já ressaltamos, no início do texto, Agripi<strong>na</strong> é uma perso<strong>na</strong>gem<br />
marcadamente ambiciosa. Esta ambição a faz superar sua <strong>na</strong>tureza femini<strong>na</strong>, o<br />
que, no caso dela, significa uma transgressão. Agripi<strong>na</strong> é exemplo de ambição<br />
excessiva e extremada.<br />
230 JOLY, 2003: 71.<br />
231 Ann. XV, 54-55.<br />
232 “Etenim uxoris quoque consilium adsumpserat muliebre ac deterius: quippe ultro metum<br />
intentabat, multosque adstitisse libertos ac servos, qui eadem viderint: nihil profuturum unius<br />
silentium, at praemia penes unum fore, qui indicio praevenisset.‖ (Ann. XV, 54, 4)<br />
132
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
denunciar, os ganhos seriam maiores. Milicho, igualmente ambicioso e<br />
desleal ao patrono, o denunciou. A denúncia se dá porque ambos<br />
acreditam que ninguém atuará eticamente, obedecendo aos deveres da<br />
―amizade‖. Aqui, claramente, predomi<strong>na</strong>m ações pautadas em uma lógica<br />
egoísta em detrimento de uma lógica altruísta.<br />
Mas é importante ressaltar que apesar de apresentarem<br />
semelhanças em suas caracterizações, escravos e mulheres não devem ser<br />
considerados como agentes equivalentes. Embora estejam inseridos em<br />
um quadro jurídico de inferioridade em relação a seus esposos e<br />
senhores, as noções de deveres e obediência com aquele que possui a<br />
tutelas destes eram diferentes 233. As diferentes relações estabelecidas por<br />
mulheres e escravos com seu paterfamilias fazia com que suas condições<br />
sociais fossem desiguais. Richard Saller aponta que a base da distinção<br />
entre mulheres e escravos está <strong>na</strong> ideia de honor (honra) 234, que é<br />
reconhecida <strong>na</strong> materfamilias, mas que se faz ausente no escravo. O autor<br />
demonstra esta diferença através da análise de alguns hábitos cotidianos<br />
domésticos relacio<strong>na</strong>dos ao campo linguístico, como por exemplo, o fato<br />
da mulher ser respeitosamente chamada domi<strong>na</strong> (Senhora), enquanto<br />
escravos eram algumas vezes desig<strong>na</strong>dos pueres (meninos), o que denota a<br />
ausência de dignidade adulta e julgamento independente. Práticas<br />
jurídicas também demonstram esta assimetria, como o fato da mulher ter<br />
direito à propriedade, incluindo a possibilidade de ela ser proprietária até<br />
mesmo de uma domus, considerando tanto a casa, propriedade física,<br />
como também o controle sobre os residentes desta. Entretanto,<br />
importante lembrar que o direito romano não a reconhecia como ‗chefe‘<br />
de família, pois apesar de possuir honor, ela não detinha a potestas<br />
(autoridade), reservada ao paterfamilias. Todavia, o direito à propriedade<br />
conferia certa autonomia às mulheres, fazendo até com que algumas<br />
delas pudessem ser reconhecidas como patro<strong>na</strong>e 235. Mas o que melhor<br />
demonstra as diferenças entre escravos e mulheres do ponto de vista<br />
estatutário e jurídico é que as esposas podiam ter escravos, enquanto<br />
233 Sobre os princípios legais da autoridade do paterfamilias sobre a mulher e as<br />
práticas sociais das mulheres da elite, cf: POMEROY, 1995: 149-163.<br />
234 SALLER, 1998: 87-93.<br />
235 DIXON, 2001: 95.<br />
133
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
escravos não podiam ter esposas (no máximo estabeleciam conubium com<br />
o consentimento de seus senhores). Deste modo, as relações que esposas<br />
e escravos estabelecem com os senhores são claramente distintas. Ao<br />
mesmo tempo, é de se esperar que esposas conquistem um espaço mais<br />
destacado <strong>na</strong>s domus e sejam mais impactantes <strong>na</strong>s suas intervenções fora<br />
deste ambiente doméstico.<br />
Um exemplo é Júnia Sila<strong>na</strong>, uma mulher rica, viúva, e sem filhos.<br />
Tácito a mencio<strong>na</strong> em quatro capítulos <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa 236 sobre o período<br />
neroniano. Nos capítulos 19, 21 e 22 do livro XIII, Júnia Sila<strong>na</strong> aparece<br />
associada à Domícia, tia de Nero. Estas duas perso<strong>na</strong>gens são<br />
importantes <strong>na</strong> medida em que nos permitem mapear a extensão de<br />
algumas redes de influência encabeçadas por mulheres 237. Inimigas de<br />
Agripi<strong>na</strong>, estas duas mulheres aparecem no relato relacio<strong>na</strong>das a uma<br />
denúncia de falsa conspiração <strong>na</strong> qual Agripi<strong>na</strong> estaria envolvida 238. Para<br />
produzir essa intriga e fazer a notícia chegar até Nero, elas contaram<br />
com o auxílio de clientes e libertos, dentre eles estava o liberto Páris,<br />
que, segundo Tácito, tinha acesso à casa imperial. Agripi<strong>na</strong> conseguiu<br />
provar sua inocência, e Júnia Sila<strong>na</strong> foi desterrada. Domícia parece não<br />
ter sofrido punição.<br />
Essas perso<strong>na</strong>gens com menor visibilidade, mencio<strong>na</strong>das entre<br />
duas ou quatro vezes no relato, não só auxiliam <strong>na</strong> compreensão do<br />
processo de caracterização de uma perso<strong>na</strong>gem mais destacada <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa, como também podem nos ajudar no entendimento de<br />
questões relacio<strong>na</strong>das à presença das mulheres <strong>na</strong> política roma<strong>na</strong>. A<br />
presença de perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s em uma <strong>na</strong>rrativa histórica pode ter<br />
vários motivos, e nos leva a refletir sobre as modalidades do<br />
envolvimento das mulheres em assuntos políticos. Um exemplo<br />
destacado e que já mencio<strong>na</strong>mos é a legitimidade política transmitida ou<br />
reforçada por elas. Na di<strong>na</strong>stia Júlio-Cláudia as mulheres foram peças<br />
políticas essenciais <strong>na</strong> sucessão de poder, primeiro, devido à ausência de<br />
herdeiros masculinos e, segundo, devido às conexões que poderiam<br />
estabelecer com o centro de poder, principalmente através de<br />
236 Ann. XIII, 19, 21 e 22; XIV, 12.<br />
237 RODRIGUES, 2008: 291.<br />
238 Ann. XIII,19.<br />
134
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
casamentos e filhos. Os imperadores desta di<strong>na</strong>stia procuravam legitimar<br />
o seu poder estabelecendo uma relação direta com Augusto, e muitas<br />
vezes esta ligação se deu através das mulheres 239. Cláudio, por exemplo,<br />
depois de sua ascensão, mandou divinizar Lívia 240, sua avó, pois ela<br />
representava a conexão direta dele com Augusto. Casamentos também<br />
serviam para aumentar a legitimidade do César, como por exemplo, o<br />
casamento de Nero com Octávia, logo depois dele já ter sido adotado<br />
por Cláudio.<br />
Retomando as perso<strong>na</strong>gens com menos visibilidade, percebemos<br />
que as duas menções que Tácito faz de Claudia Antonia 241, filha de<br />
Claudio e sua primeira esposa, Aelia Paeti<strong>na</strong>, são, sobre este ponto,<br />
elucidativas. Ela aparece pela primeira vez no livro XIII, relacio<strong>na</strong>da a<br />
uma falsa denúncia de conspiração, <strong>na</strong> qual foram acusados de<br />
envolvimento Palas e Burro, que pretenderiam transferir o império a<br />
Cornélio Sula, ex-marido de Claudia Antonia. Curiosamente, no livro<br />
XV, ela aparece mais uma vez relacio<strong>na</strong>da a uma conspiração. De acordo<br />
com os planos da conspiração pisonia<strong>na</strong>, Claudia Antonia iria<br />
acompanhar Pison <strong>na</strong> apresentação que fariam dele, depois da<br />
pretendida morte de Nero. Tácito deixa claro que a intenção dos<br />
conjurados em fazer com que a filha de Claudio acompanhasse Pison era<br />
obter aprovação do povo através da presença de uma representante da<br />
gens Cláudia como garantia de continuidade 242. Nos dois momentos em<br />
que aparece durante a <strong>na</strong>rrativa, a perso<strong>na</strong>gem de Claudia Antonia<br />
confere legitimidade a um possível César. Vale lembrar que as duas filhas<br />
de Cláudio, Claudia Antonia e Claudia Octavia, receberam os nomes da<br />
mãe e avó mater<strong>na</strong> de Cláudio, através das quais o César mantinha uma<br />
conexão com Augusto, além da avó pater<strong>na</strong> Lívia. Como nos lembra<br />
Corbier 243, o prestígio destas matro<strong>na</strong>s foi, de certo modo, transmitido<br />
para as filhas de Cláudio através dos nomes, o que explica a recorrência<br />
239 CORBIER, In: HAWLEY; LEVICK: 178.<br />
240 SUETONIUS, Claudius, XI, 2.<br />
241 Ann. XIII, 23 e XV, 53.<br />
242 ―...comitante Antonia, Claudii Caesaris filia, ad eliciendum vulgi favorem...‖ (Ann. XV,<br />
53, 3-4)<br />
243 CORBIER, In: HAWLEY; LEVICK: 187.<br />
135
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
dos conspiradores a Antônia e a revolta do povo quando Nero se<br />
separou de Octávia 244.<br />
Concluímos que para o estudo das perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s nos<br />
A<strong>na</strong>is, de Tácito, uma análise sistemática das menções a estas se faz<br />
importante, pois permite o entendimento de processos retóricos de<br />
caracterização de perso<strong>na</strong>gens, além de denotar os meios utilizados por<br />
Tácito para, fazendo uso de perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s, construir um<br />
imagem da política imperial como sendo domi<strong>na</strong>da pelas grandes casas.<br />
Para esta análise das perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s se mostra desafiador ir além<br />
das relações de gêneros, uma vez que além de mulheres, elas são também<br />
aristocratas ou escravas, ricas ou pobres, estabelecendo, portanto, todo<br />
um escopo de relações que transpõem aquelas que são próprias do<br />
campo masculino-feminino. Ademais, como pudemos observar, as<br />
relações entre masculino-feminino não se dão em contraste ape<strong>na</strong>s,<br />
como identidades se construindo em oposição. A fronteira entre<br />
masculino e feminino não pode ser representada por uma linha e tanto<br />
menos entendida como um jogo de soma zero. É relevante para o estudo<br />
de Tácito o entendimento dos princípios éticos em que estavam<br />
pautados os exempla, <strong>na</strong> medida em que podemos perceber quais eram as<br />
virtudes e os vícios que estas perso<strong>na</strong>gens ressaltavam <strong>na</strong>s suas relações e<br />
não em si mesmas, como indivíduos. Uma condição ética positiva ou<br />
negativa surge muito mais como resultado de interações do que como<br />
resultado de convicções ou ações ―absolutas‖ individuais sem relação<br />
com o ambiente onde ocorrem e com os outros indivíduos que<br />
comparecem às ce<strong>na</strong>s construídas por Tácito.<br />
DOCUMENTAÇÕES TEXTUAIS<br />
CASSIUS, Dio. Roman History. Translated by Earnest Cary. Cambridge: Harvard<br />
University Press, 1925. (Loeb Classical Library). v. 8<br />
PLINY, The younger. Complete Letters. Translated by P. G. Walsh. Oxford:<br />
Oxford University Press, 2006.<br />
SUETONIUS. Lives of the Caesars. Translated by J.C. Rolfe. Cambridge: Harvard<br />
University Press, 1989. (Loeb Classical Library). 2 vv.<br />
TACITE. Histoires. Texte établi et traduit par Henri Goelzer. Paris : Société<br />
d‘édition ―Les Belles Lettres‖, 1951, v.1.<br />
244 Ann. XIV, 60-61.<br />
136
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
TACITUS, An<strong>na</strong>ls. Translated by John Jackson. Cambridge: Harvard University<br />
Press, 1937. (Loeb Classical Library). v. 5<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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1992.<br />
CORBIER, Mireille. Male power and legitimacy through women: the domus<br />
Augusta under the Julio-Claudians. In: HAWLEY, Richard and LEVICK,<br />
Barbara. Women in Antiquity: New assessments. London: Routledge, 1995, pp.178-<br />
193.<br />
DAITZ, Stephen G. Tacitus‘ Technique of Character Portrayal. The American<br />
Jour<strong>na</strong>l of Philology, v. 81, pp. 30-52, 1960.<br />
DIXON, Suzanne. Reading the Public Face: Legal and Economic Roles. In:<br />
Reading Roman Women. London: Duckworth, 2001, pp.69-156.<br />
JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2003.<br />
MILNOR, Kristi<strong>na</strong>. Women in Roman Historiography. In: FELDHERR,<br />
Andrew (ed.). The Cambridge Companion to The Roman Historians. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 2009, pp.276-287.<br />
PARKER, Holt. Loyal slaves and loyal wives: the crisis of the outsider – within<br />
and roman exemplum literature. In: JOSHEL, Sandra R. and MURNAGHAN,<br />
Sheila (ed.). Women and Slaves in Greco-Roman culture: Differential Equations.<br />
London: Routledge, 1998, pp.157-178.<br />
POMEROY, Sarah B. The Roman Matron of the Late Republic and Early<br />
Empire. In: Goddesses, Whores, Wives, and Slaves: Women in Antiquity. New York:<br />
Shocken books, 1995, pp.149-189.<br />
RODRIGUES, Nuno Simões. Agripi<strong>na</strong> e as outras: Redes femini<strong>na</strong>s de poder<br />
<strong>na</strong>s cortes de Calígula, Cláudio e Nero. Gerión, Madrid, 26, núm.1, p.281-295,<br />
2008.<br />
SALLER, Richard. Symbols of gender and status hierarchies in the roman<br />
household. In: JOSHEL, Sandra R. and MURNAGHAN, Sheila (ed.). Women<br />
and Slaves in Greco-Roman culture: Differential Equations. London: Routledge, 1998,<br />
p.87-93.<br />
WALLACE, Kristine Gilmartin. Women in Tacitus, 1903–1986. ANRW II<br />
33.5: 3556–3574, 1991.<br />
137
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A HARPA E A HARPISTA EM ATENAS NO FINAL V<br />
SÉCULO. ENTRE A ESPOSA BEM-NASCIDA E A<br />
CORTESÃ. REGISTROS LITERÁRIOS E<br />
ICONOGRÁFICOS EM DESCOMPASSO?<br />
Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira 245<br />
Ao estudarmos a série iconográfica de pinturas de vasos áticos de<br />
figuras vermelhas da segunda metade do século quinto, retratando<br />
mulheres com instrumentos musicais no gineceu, chamam-nos a<br />
atenção, pela sua singularidade, as ce<strong>na</strong>s que representam o trígōnon, uma<br />
harpa de forma triangular, instrumento completamente ausente de<br />
qualquer outro contexto <strong>na</strong> pintura vascular ática, salvo entre as Musas.<br />
De acordo com o registro arqueológico, a harpa inclui-se entre<br />
os mais antigos instrumentos musicais de cordas <strong>na</strong>s regiões<br />
mediterrânica e levanti<strong>na</strong>, registrada desde os primórdios da civilização<br />
suméria, no terceiro milênio antes de nossa era, segundo testemunhos<br />
arqueoorganológicos 246 e iconográficos das harpas com or<strong>na</strong>mento em<br />
forma de cabeça de touro (Figura 1 e 2).<br />
245 Professor de História Antiga, da Universidade Federal de Pelotas.<br />
246 A arqueoorganologia é uma especialização arqueológica que se dedica ao<br />
estudo dos vestígios materiais, parciais ou integrais, de instrumentos musicais<br />
pré-históricos e históricos.<br />
138
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Figura 1 – Harpa de Ur, em forma de cabeça de<br />
touro.<br />
Londres, Museu Britânico, inv. 121199. Proveniente das<br />
tumbas reais de Ur. Meados do terceiro milênio.<br />
Fonte: SPYCKET, 1989 : 32-33.<br />
139<br />
Figura 2 – Face da Paz do Estandarte<br />
de Ur 247 , mostra harpista animando<br />
banquete (detalhe).<br />
Londres, Museu Britânico. Proveniente<br />
de um dos três túmulos do Cemitério<br />
Real de Ur, datado de 2600 a 2400.<br />
Fonte: SPYCKET, 1989: 34-35.<br />
247 Conforme Kátia Pozzer (2007: 147, fig.2), ―uma caixa de madeira, recoberta de<br />
betume, onde foram incrustados fragmentos de lápis-lázuli, conchas e calcário vermelho, com<br />
duas faces: a Face da Guerra e a Face da Paz. Acredita-se que este objeto, medindo 47 cm de<br />
comprimento e 20 cm de altura, serviria como uma caixa de ressonância para um instrumento<br />
musical. A Face da Paz representa a realização de um banquete com as diversas etapas de<br />
sua preparação‖.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Os indícios arqueológicos apontam também que já era utilizada<br />
no espaço cultural do Egeu desde um período tão recuado quanto a<br />
civilização cicládica (2800-2300) e minóica (Minoano Médio II: 1900-<br />
1700) (Figura 3).<br />
140<br />
Figura 3 – Estatueta de Harpista<br />
Museu Arqueológico Nacio<strong>na</strong>l de<br />
Ate<strong>na</strong>s, inv. 3908. Mármore de<br />
Paros. Proveniente de Keros.<br />
Cicládico Recente II (cultura Keros-<br />
Syros, 2800 a 2300 a.C.).Fonte:<br />
Foto do autor.<br />
Apesar dos quase três<br />
mil anos de história desse<br />
instrumento <strong>na</strong>s regiões<br />
circunvizinhas à Grécia, para<br />
o grego da Ática ou Grécia<br />
balcânica do século quinto,<br />
esse instrumento aparecia<br />
como uma novidade, como<br />
um estrangeirismo, sendo<br />
registrado <strong>na</strong> cerâmica ática<br />
ape<strong>na</strong>s a partir da segunda<br />
metade do século quinto. É de se imagi<strong>na</strong>r que sua inserção <strong>na</strong> Ate<strong>na</strong>s<br />
clássica deve ter sido interpretada como mais uma renovação entre os<br />
vários modismos trazidos pela Nova Música introduzida e desenvolvida<br />
precipuamente por músicos vindos da Grécia do Leste. Parece-nos<br />
irônico que ela pudesse ser vista como novidade nesta Ate<strong>na</strong>s que queria<br />
ser vista como tão cosmopolita, uma vez que as referências literárias<br />
gregas a este instrumento remontam à lírica arcaica, ao fi<strong>na</strong>l do século<br />
sétimo, a Safo, Alceu, A<strong>na</strong>creonte e Píndaro. Eles mencio<strong>na</strong>vam duas<br />
formas de harpa denomi<strong>na</strong>das paktís (no dialeto lesbiano e no dórico) ou<br />
pēktís (no jônico-ático) e mágadis. Mas, de fato, mesmo nestes autores,
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
constavam como instrumentos estrangeiros, requintes orientais,<br />
supostamente alheios à tradição organológica grega tida como <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Os textos arcaicos e clássicos citavam, então, três tipos de harpa,<br />
o trígōnon, a pēktís e a mágadis. A iconografia ática, por sua vez, apresentanos<br />
três formatos distintos de harpas angulares: a harpa triangular – a<br />
forma registrada <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s de gineceu –, e duas outras formas, ambas<br />
representadas exclusivamente entre as Musas, uma delas ou as duas<br />
devendo ser identificadas com a pēktís. Os autores discordam sobre a<br />
identificação da mágadis, sendo conhecida <strong>na</strong> historiografia da música<br />
grega a celeuma entre Giovanni Comotti e Martin West a esse respeito.<br />
Para West, a mágadis corresponderia a outra forma de harpa, não angular,<br />
com a capacidade de produzir um acorde de oitava; para Comotti, pēktís<br />
e mágadis seriam duas denomi<strong>na</strong>ções do mesmo instrumento.<br />
De modo geral, as harpas podem receber a denomi<strong>na</strong>ção de<br />
psaltē rion, termo derivado do verbo psállein, que desig<strong>na</strong> o ato de fazer<br />
soar as cordas com os dedos, dispensando o uso do plêktron; o termo<br />
psaltría, por sua vez, identificava a harpista – a forma geral do termo no<br />
feminino reforça a ligação desse instrumento com as mulheres (WEST,<br />
1992: 70-74; COMOTTI, 1991; 1983: 57-71; MAAS, SNYDER, 1989:<br />
147-151.) 248.<br />
A cultura grega do período clássic o, como apontam os textos<br />
antigos e a iconografia dos vasos áticos, conferiu à mulher a atribuição<br />
de tocar esse instrumento, sendo o gênero masculino excluído de sua<br />
prática. O único perso<strong>na</strong>gem masculino que lhe é associado é Museu,<br />
figura mitológica de perso<strong>na</strong>lidade eminentemente musical, associado a<br />
Orfeu, de quem seria filho, amante, aluno ou mestre, e a Linos, de quem<br />
seria aluno, bem como a perso<strong>na</strong>gens lendários notabilizados como<br />
músicos, tais como Antiphemos ou Eumolpos, apontados ambos<br />
também como pai dele. Segundo Pierre Grimal, seria o ―doublet‖ de<br />
Orfeu <strong>na</strong> tradição lendária ática (GRIMAL, 1994: 304, verbete ―Musée‖).<br />
Na iconografia ática, como membro da confraria musical divi<strong>na</strong>, Museu<br />
aparece com freqüência associado às Musas, a Apolo, a Tamiras, a Linos<br />
248 O texto de referência mais detalhado sobre a harpa grega continua sendo:<br />
HERBIG, Heinhard. ―Griechische Harfen‖, Mitteilungen des deutschen<br />
archäologischen Instituts, Athenische Abteilung 54, 1929, p. 164-193.<br />
141
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
e ao ambiente escolar. Sua representação se confunde muito com a<br />
imagem juvenil de Apolo, comum nos vasos da segunda metade do<br />
século quinto, de modo que os pintores costumam apelar ao recurso da<br />
inscrição para assegurar sua identificação. De certa forma, simboliza o<br />
jovem ateniense livre, aluno de música e freqüentador da escola<br />
patroneada pelas Musas e por Apolo. É assim que encontramos Museu,<br />
numa kýlix de Paris, retratado como aluno de Linos: o jovem está de pé,<br />
nu, olhando um díptykhos aberto, enquanto o professor, sentado sobre<br />
um klismós, está abrindo um rolo. 249 Nessa mesma perspetiva,<br />
encontramos uma peque<strong>na</strong> série de vasos áticos, estudados por Giulia<strong>na</strong><br />
Ricioni, em que Museu está associado às Musas: tratam-se de 5 vasos,<br />
produzidos no período que se estende dos anos 460-50 aos fins deste<br />
século. No exemplar conservado no Museo Nazio<strong>na</strong>le di Villa Giulia, o<br />
pintor o representa de forma coerente com sua associação a Apolo e à<br />
condição de aluno: Museu segura uma lýra. Já no excepcio<strong>na</strong>l fragmento<br />
de uma pýxis do Museu Nacio<strong>na</strong>l de Ate<strong>na</strong>s, o pintor nos surpreende,<br />
apresentando Museu com um trígōnon, qual uma Musa ou mulher (Figura<br />
4).<br />
Figura 4 - Museu toca trígōnon, Tamiras toca kithára, entre seis Musas (uma com lýra,<br />
outra com rolo) e Apolo. Ate<strong>na</strong>s, Museu Nacio<strong>na</strong>l, 19.636. Pýxis. Figuras vermelhas.<br />
Pintor de Meidias (Para 479/91bis). Em torno de 420-10.Fonte: Foto do autor.<br />
249 Kýlix. Paris, Louvre, G 457. 430-20. Bib.: MURRAY, Oswyn. ―Life and<br />
Society in Classical Greece. The Education.‖, In: BOARDMAN, J.; GRIFFIN,<br />
J. & MURRAY, O. (org.) The Oxford History of the Classical World. Oxford, p. 227,<br />
c/fig.<br />
142
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Se pensássemos <strong>na</strong> acusação de efemi<strong>na</strong>ção que recaía sobre<br />
Orfeu e outros músicos históricos e lendários, seria plausível pensarmos<br />
que o pintor desta pýxis estaria acusando Museu de efemi<strong>na</strong>ção; no<br />
contexto da iconografia das Musas e das representações idealizadas da<br />
escola comuns no último quartel do século quinto, é mais provável<br />
pensarmos que o pintor quis mostrar Museu como aluno das Musas,<br />
usufruindo o privilégio de tocar o instrumento que era prerrogativa<br />
exclusiva delas entre os olimpianos, a harpa (RICCIONI, 1986: 730-744)<br />
250.<br />
O paradigma mitológico que inspira os pintores de vaso coloca a<br />
harpa como um instrumento feminino e ligado, tal qual às Musas, à<br />
cultura e à educação. Dada sua i<strong>na</strong>propriação para simbolizar a educação<br />
dos meninos, sendo a única exceção a pýxis ateniense do Pintor de<br />
Meidias com um Museu harpista, o Pintor do Banho (the Washing<br />
Painter) transportou-a para o universo feminino do gineceu de modo a<br />
simbolizar a cultura musical da qual muitas mulheres atenienses bem<strong>na</strong>scidas<br />
seriam detentoras.<br />
Retor<strong>na</strong>ndo à classificação organológica, a única forma de harpa<br />
representada no gineceu é o trígōnon, enquanto as Musas ocupam-se<br />
igualmente da pēktís, quase nunca representada pelos pintores em<br />
contexto humano (Figura 5). 251<br />
250 Hydría. Figuras vermelhas. Pintor de Villa Giulia. (ARV² 623/70bis; Para<br />
398/70bis). Roma, Villa Giulia, 64917. 460-450.<br />
251 Musas com pēktís: 1) Ânfora. Figuras vermelhas. Pintor de Peleu. (ARV²<br />
1039/13; Para 443; Add² 319) Londres, Museu Britânico, E 271. Ca. 440. Bib.:<br />
CVA Museu Britânico 3 (Grã-Bretanha 4) III I c, pr. 11.1a-c. Descrição: Mousaios<br />
com lýra, Terpsichore com pēktís, Melousa com aulós; ―cítara de berço‖ no campo.<br />
2) Hydría. Figuras vermelhas. Berlim, Staatliche Antikesammlungen, 2391. Bib.:<br />
MAAS, SNYDER, 1989: 163, fig.15.<br />
143
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
144<br />
Figura 5 – Museu com<br />
lýra, Terpsichore toca pēktís e<br />
Melousa segura aulós; ―cítara de<br />
berço‖ suspensa. Londres, Museu<br />
Britânico, E 271. Ânfora. Figuras<br />
vermelhas. Pintor de Peleu (ARV²<br />
1039/13). Em torno de 440.Fonte:<br />
CVA Museu Britânico 3, III I c, pr.<br />
11.1a-c.<br />
A representação do trígōnon, tanto entre as Musas quanto entre<br />
mulheres, nos idos dos anos 430-20, indica uma dissemi<strong>na</strong>ção desse<br />
instrumento <strong>na</strong> Ate<strong>na</strong>s desse período. A pēktís somente aparecerá<br />
representada em mãos de figuras femini<strong>na</strong>s huma<strong>na</strong>s <strong>na</strong> arte italiota de<br />
fi<strong>na</strong>is do séc. V e do séc. IV. 252<br />
É portanto o trígōnon que nos interessa para o estudo das ce<strong>na</strong>s<br />
de musicistas no gineceu ateniense. Se observarmos a relação entre a<br />
tradição literária e tradição gráfica no contexto ático, constataremos um<br />
desacordo entre ambas, apesar da sincronia existente (Sófocles, fr. 412-<br />
Pearson, Phérekrates, fr. 42-Edmonds, Eupolis, fr. 77-Edmonds e Platão<br />
comediógrafo, 69.10-14-Edmonds). Na iconografia ática do Estilo<br />
Clássico, a harpa, notadamente o trígōnon, aparece idealizada como<br />
símbolo da sociedade musical femini<strong>na</strong>, figura iconográfica que, ao<br />
mesmo tempo, remete-se à ocupação e educação musical das mulheres<br />
252 1) Peliké. Lucania<strong>na</strong>. Figuras vermelhas. Nápoles, Museo Nazio<strong>na</strong>le, 81392.<br />
Fi<strong>na</strong>l do séc. V. Alabastro. Ápulo. Figuras vermelhas. Boston, Museum of Fine<br />
Arts, 00.360. Séc. IV. 2) Cratera em cálice. Ápula. Figuras vermelhas. Nova<br />
Iorque, Metropolitan Museum of Arts, 1.63.21.6. Séc. IV. 3) Ânfora. Ápula,<br />
Figuras vermelhas. Nápoles, Museo Nazio<strong>na</strong>le, 81953. Séc. IV. 4) Oinokhóe.<br />
Ápula. Figuras vermelhas. Ruvo, Museo Archeologico, 1554. Séc. IV.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
―cidadãs‖, bem como à assimilação ideológica das mulheres bem<strong>na</strong>scidas<br />
às Musas.<br />
Nos textos coetâneos, no entanto, a harpa é associada às<br />
cortesãs (BUNDRICK, 2000: 36; MAAS, SNYDER, 1989: 150). Entre o<br />
vasto repertório de vasos áticos retratando ce<strong>na</strong>s de banquete (que<br />
constituem, junto com as ce<strong>na</strong>s de kômos, de longe, as séries<br />
iconográficas numericamente mais representativas nos séculos sexto e<br />
quinto), encontramos um único exemplo que registra o uso da harpa, em<br />
mãos de uma cortesã, durante um sympósion. Um único vaso, contra 165<br />
exemplos catalogados, em nosso inventário de ce<strong>na</strong>s cotidia<strong>na</strong>s com<br />
instrumentos musicais, que retratam predomi<strong>na</strong>ntemente o uso do aulós e<br />
do bárbitos, e, casualmente, da lýra (CERQUEIRA, 2001). Trata-se de<br />
uma khoûs ática, datada de aproximadamente 425-20, atribuída ao Pintor<br />
de Eretria. Encontrado <strong>na</strong>s escavações junto ao Teatro de Dioniso em<br />
Ate<strong>na</strong>s, esse exemplar foi consumido no mercado local, reforçando a<br />
conexão da imagem representada com a vida social ateniense de fi<strong>na</strong>is do<br />
século quinto (Figura 6).<br />
145<br />
Figura 6 - Banquete. Jovem<br />
recli<strong>na</strong>do, em companhia de<br />
uma cortesã que toca a<br />
pēktís. Ate<strong>na</strong>s, Museu<br />
Nacio<strong>na</strong>l, inv. 15308. Khoûs<br />
ática. Figuras vermelhas.<br />
Pintor de Eretria.425-420<br />
a.C.<br />
Fonte: Foto do autor.<br />
O dado mais interessante nesta khoûs do Pintor de Eretria é que a<br />
cortesã-harpista está tocando uma pēktís,
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
instrumento usualmente associado às Musas. Constitui-se, assim, no<br />
único exemplo iconográfico, que registrei, da psaltría, termo<br />
frequentemente usado, nos textos antigos, para se referir à hetaira que<br />
tocava harpa durante os banquetes.<br />
No último quartel do século quinto, as fontes escritas apontam<br />
que a harpa se tornou popular no sympósion, não para ser tocada pelos<br />
convivas, nem tampouco para acompanhar nobres e respeitosas canções<br />
da lírica tradicio<strong>na</strong>l. O trígōnon e a sambýkē 253 eram usados por hetairas<br />
para cantar canções notur<strong>na</strong>s de Gnesippos 254 dedicadas a adúlteros<br />
(Ateneu, 14.638; Eupolis, fr. 139-Edmonds). Tocadoras de trígōnon,<br />
acompanhando as tradicio<strong>na</strong>is aulētrídes, tor<strong>na</strong>ram-se figuras usuais nos<br />
banquetes bem aparatados (Platão comediógrafo, fr. 69.10-14-Edmonds).<br />
Num outro fragmento de Eupolis, fica clara a associação que os poetas<br />
cômicos faziam da harpa, bem como do týmpanon, com a obscenidade:<br />
―Você que toca bem o týmpanon / e dedilha as cordas do trígōnon / e requebra seu<br />
traseiro / e joga suas per<strong>na</strong>s pro ar‖ (Eupolis, fr. 77-Edmonds).<br />
Devemos imagi<strong>na</strong>r a possibilidade de esses comediógrafos áticos<br />
terem levado harpas ao palco, associando-as à pecha da prostituição.<br />
Aguça-se assim a incompreensão de como esse instrumento poderia<br />
estar ligado a mulheres bem-<strong>na</strong>scidas – ligação simbólica preferida pelos<br />
pintores de vasos áticos. Assim, defrontamo-nos diante de uma dúvida: o<br />
trígōnon representado <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s de gineceu pelos pintores seria um<br />
instrumento efetivamente utilizado nesse contexto (Figura 7)?<br />
253 Sambýkē ou iambýkē são, conforme West (1992: 79), uma forma de harpa com<br />
caixa de ressonância em forma barco.<br />
254 Há controvérsias sobre este poeta do século V. Alguns o associam à poesia<br />
trágica, outros à comédia, outros ainda à poesia erótica e ao elogio ao adultério.<br />
De qualquer modo, provavelmente pertenceu ao grupo da Nova Música, que<br />
trouxe novidades musicais e que recebeu, como os demais, ásperos julgamentos<br />
morais. Ver: MILES, 2009: 26-29, 40, 51, 63-64.<br />
146
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Figura 7 - Mulher com harpa no gineceu durante epaulía Nova Iorque, Metropolitan<br />
Museum of Art, 16.73. Lébēs gamikós. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV 2 1126/6;<br />
Add 2 332) Período: 430-20. Fonte: West, 1992, pr.22. Cerqueira, 2001, cat. 332.<br />
Sheramy D. Bundrick, diante das evidências literárias e da<br />
imperfeição do desenho desses instrumentos, em coerência com suas<br />
interpretações simbolistas, afirma que essas ce<strong>na</strong>s com harpa apresentam<br />
uma idealização, não correspondendo a uma situação cotidia<strong>na</strong> real. 255<br />
Esse argumento é improcedente, haja vista não haver relação alguma, em<br />
255 BUNDRICK, 2000: 37-38: ―Despite the care lavished on the harp‘s<br />
representation, however, there are anomalies. As has been pointed out<br />
elsewhere, the arrengement of the strings on the Würzbug pyxis (CERQUEIRA,<br />
2001, cat. 333) and the Athens lebes gamikos (CERQUEIRA, 2001, cat. 334)<br />
appear contrary to reality. The strings run from the soundbox into both the<br />
neck and the post of the frame, whereas in reality they would run from<br />
soundbox to neck alone. The way the woman holds the harp sometimes seems<br />
improbable; on MMA 16.73 (CERQUEIRA, 2001, cat. 332), the rather large<br />
harp is preciously balanced on the player‘s knee as her right arm is draped over<br />
the back of her chair. On the Athens lebes gamikos (CERQUEIRA, 2001, cat.<br />
334), the standing position of the harpist also appears unlikely, because in reality<br />
the unwiedly harp would be difficult to hold and play while standing. These<br />
instances show that the representations of musical instruments on vases should<br />
not be taken as necessarily realistic or illustrative of actual practice.‖<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
iconografia, entre a exatidão de representação do referente (do objeto) e<br />
a intenção de realismo ou idealismo da mesma. O pintor pode<br />
representar com perfeição o objeto e dar uma abordagem<br />
completamente idealista à ce<strong>na</strong> – o contrário também podendo ocorrer.<br />
O fato é que Bundrick (2000) sempre reluta em aceitar a relação que os<br />
instrumentos musicais representados têm com situações reais.<br />
Efetivamente, o que incomoda ao historiador é a radical diferença entre<br />
o testemunho literário e o iconográfico. Enquanto a psaltría (harpista) era<br />
incluída, no rol das prostitutas, <strong>na</strong> categoria de musicista-cortesã, desde<br />
os comediógrafos do fim do século quinto até Aristóteles no século<br />
quarto (A Constituição de Ate<strong>na</strong>s 50.2) 256, o Pintor do Banho, por sua vez,<br />
a retrata como dig<strong>na</strong> noiva ou esposa.<br />
A dissemi<strong>na</strong>ção da arte da harpa, mesmo que impulsio<strong>na</strong>da<br />
inicialmente por cortesãs vindas da Grécia do Leste e regiões<br />
circunvizinhas, pode ter atingido inclusive o círculo respeitável das<br />
mulheres bem-<strong>na</strong>scidas. Contudo, o estudo detalhado da iconografia<br />
cotejada com os textos apresenta vários percursos do uso dos<br />
instrumentos musicais, deslizando de um grupo social a outro, de uma<br />
situação social a outra. E... moda é moda! Atravessa diferentes grupos<br />
sociais. E, afi<strong>na</strong>l, se a harpa fosse de fato completamente indig<strong>na</strong> como<br />
sugere o uso generalizado do termo psaltría para identificar uma cortesãmusicista,<br />
tampouco um pintor de vaso colocaria esse instrumento <strong>na</strong>s<br />
mãos de uma Musa.<br />
Tudo indica que a harpa integrou dois ambientes sociais<br />
antagônicos: a aclamada decência e recato do gineceu e a promiscuidade<br />
dos banquetes e prostíbulos. O argumento de que não há referências<br />
literárias a mulheres bem-<strong>na</strong>scidas tocando harpa não tem o valor<br />
definitivo que lhe é freqüentemente conferido, <strong>na</strong> medida em que não há<br />
referência literária alguma, de modo geral, à música praticada pelas<br />
mulheres em contexto doméstico. A falta de exatidão no desenho do<br />
trígōnon, apontada por Bundrick como argumento contrário a uma<br />
interpretação de fundo realista, deve decorrer do fato de ser uma<br />
novidade em Ate<strong>na</strong>s e de que o Pintor do Banho foi o único que se<br />
dedicou a representá-lo em contexto humano – nenhum outro pintor<br />
256 ―kai tás te auletrídas kai tas psaltrías kai tas kitharistrías‖.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ático o fez, antes ou depois dele, de modo que não se desenvolveu uma<br />
técnica apropriada de representação desse instrumento, como ocorreu<br />
com a lýra, a kithára e o aulós.<br />
Se a ligação da harpa com as ce<strong>na</strong>s de casamento fosse ape<strong>na</strong>s<br />
uma idealização ática localizada <strong>na</strong> pintura dos anos 30 e 20 do século<br />
quinto, como o quer Bundrick, por que essa mesma idealização se<br />
repetiria num contexto cultural distinto, como aquele da Mag<strong>na</strong> Grécia?<br />
Ora, <strong>na</strong> cerâmica italiota também são comuns as ce<strong>na</strong>s de noivas<br />
tocando harpa, envolvidas em preparativos ou festejos nupciais (MAAS,<br />
SNYDER, 2000: 181-182).<br />
É interessante fazermos também o raciocínio inverso: por que<br />
os pintores áticos quase nunca representaram prostitutas tocando harpas,<br />
enquanto os textos nos informam que elas o faziam? A resposta está em<br />
que a pintura dos vasos mistura cargas variadas de realismo e idealização:<br />
de um lado, a forte associação simbólica do aulós à prostituição, mesmo<br />
que saibamos que as cortesãs tocassem também instrumentos como a<br />
harpa, apesar de os pintores, com a única exceção do Pintor de Eretria,<br />
não o representarem; de outro lado, a forte associação simbólica da<br />
harpa às Musas, pelo meio do que as mulheres eram assimiladas<br />
ideologicamente à dignidade e à atividade musical e poética das mesmas,<br />
não obstante acreditemos que elas de fato tocassem esse instrumento <strong>na</strong><br />
sua vida doméstica, muito embora não haja nenhuma referência literária<br />
a esse respeito.<br />
Com base nessas considerações, julgamos legítima a<br />
interpretação que vê <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s de gineceu com mulheres harpistas um<br />
retrato, mesmo que idealizado, de uma situação real dos festejos<br />
matrimoniais: a epaulía. Ele<strong>na</strong> Zevi foi a primeira a identificar essas ce<strong>na</strong>s<br />
com essa cerimônia: apesar de se confundir com as ce<strong>na</strong>s comuns de<br />
gineceu, os presentes trazidos pelas outras mulheres (caixas, alábastroi,<br />
cofres, lekanídēs, kálathoi) bem como o uso do diadema pela esposa<br />
apresentam-nos a cerimônia da epaulía, quando a noiva começava sua<br />
vida de esposa <strong>na</strong> casa do marido, que passava a ser a sua (ZEVI, 1938:<br />
366-369). Ellen Reeder acrescenta mais alguns detalhes que garantem a<br />
identificação desses vasos do Pintor do Banho representando mulheres<br />
harpistas: o fato da mulher central não estar usando véu ou stéphanos,<br />
nem tampouco estar se vestindo ou sendo vestida, indica seguramente a<br />
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epaulía, quando, <strong>na</strong> manhã após a noite de núpcias, ela já era considerada<br />
esposa, não sendo mais retratada envolvida em preparativos nupciais,<br />
mas recepcio<strong>na</strong>ndo suas amigas e parentes que lhe traziam presentes<br />
(REEDER, 1995: 225).<br />
E. Reeder percebe uma significação especial do trígōnon <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s<br />
de epaulía do Pintor do Banho. Por um lado, a harpa seria uma referência<br />
sinóptica a toda música que acompanhava o ritual do casamento: a<br />
loutrophoría, o banquete, a a<strong>na</strong>kalyptēría, a nymphagōgía e o canto do<br />
epithalámion <strong>na</strong> noite de núpcias. Por outro, sua presença traria outras<br />
conotações. A concentração da nubente em sua música conotaria sua<br />
nova identidade de mulher casada. Enfim, para uma noiva, a<br />
representação de uma mulher recém-casada distraindo-se com a harpa<br />
lhe indicaria os momentos de lazer prometidos para sua vida de casada<br />
(REEDER, 1995: 226).<br />
Essa análise, porém não vale para todo conjunto de ce<strong>na</strong>s com<br />
trígōnon. Seguramente, pode ser aplicada aos lébētes de Nova Iorque (ver<br />
Figura 7). Todavia, a composição iconográfica da pýxis de Würzburg<br />
(Cerqueira, 2001, cat. 333) e do lébēs de Ate<strong>na</strong>s (Cerqueira, 2001, cat. 334)<br />
apresentam a harpista numa situação diferente. No caso da pýxis, temos,<br />
como é comum nessa forma de superfície cilíndrica, ce<strong>na</strong>s seqüenciadas,<br />
alusivas aos festejos nupciais: uma ce<strong>na</strong> mostra dois Erotes lutando,<br />
simbolizando o conflito psicológico pelo qual a noiva passava, ao<br />
abando<strong>na</strong>r seu passado ingênuo de meni<strong>na</strong> para seguir seu futuro incerto<br />
de esposa (SIMON, 1972, pr. 6.1-3); <strong>na</strong> outra, ela está sentada sobre o<br />
leito nupcial, flanqueada por duas mulheres e sendo coroada por Eros,<br />
simbolizando a concretização do casamento após a noite de núpcias; <strong>na</strong><br />
terceira ce<strong>na</strong>, a noiva aparece retratada como harpista, acompanhada por<br />
outra moça. O vaso de Würzburg, assim, mesmo não retratando o<br />
momento da epaulía, confirma a idealização da noiva como harpista<br />
proposta por Reeder, como invocação do lazer almejado <strong>na</strong> sua futura<br />
vida de casada. Já no lébēs de Ate<strong>na</strong>s (Figura 8), a situação é bem<br />
diferente: a harpista não ocupa um lugar de centralidade, não devendo<br />
ser identificada com a noiva ou esposa. Ela está desconfortavelmente de<br />
pé, tocando esse instrumento pesado que devia preferencialmente ser<br />
tocado <strong>na</strong> posição sentada. A figura central está sentada sobre um<br />
klismós, ouvindo sua companheira tocar o trígōnon.<br />
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Figura 8 - <strong>Mulheres</strong> no gineceu. Preparativos para casamento ou recepção de presentes.<br />
Mulher toca harpa de pé; presentes para a noiva.Ate<strong>na</strong>s, Museu Nacio<strong>na</strong>l, 14791 (1171).<br />
Proveniência: santuário da Ninfa das escarpas da acrópole de Ate<strong>na</strong>s.Lébēs gamikós.<br />
Figuras vermelhas. Pintor do Banho ARV 2 1126/5) Em torno de 420.Fonte: Cerqueira,<br />
2001, cat. 334. Bundrick, 2000, cat. 24, fig. 8. Fonte: Foto do autor.<br />
A ce<strong>na</strong> traz claramente uma representação da apaulía, a recepção<br />
de presentes. Os presentes trazidos para a noiva sugerem que tenhamos<br />
aqui de fato uma representação da epaulía. O fato de a harpista ser uma<br />
companheira e não a própria noiva, retratada aqui como aulētrís, mostra<br />
como essas representações não se prendiam completamente a<br />
idealizações. Os pintores mais criativos e requisitados, como o talentoso<br />
Pintor do Banho, procuravam fazer variações temáticas, evitando que<br />
suas peças se tor<strong>na</strong>ssem repetitivas demais. Davam vazão assim às<br />
variações da própria realidade: conforme a educação recebida pela<br />
meni<strong>na</strong>, chegando o momento de se casar, a noiva poderia saber tocar<br />
algum instrumento, especificamente o bárbitos, o aulós, a lýra, a phórminx<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ou o trígōnon. A variação dos instrumentos representados se deve a esse<br />
leque de escolha aberto pela educação musical femini<strong>na</strong>. Todavia, a<br />
repetição do trígōnon em ce<strong>na</strong>s relativas à epaulía, tocado pela própria<br />
noiva ou por uma convidada, sugere que, <strong>na</strong> Ate<strong>na</strong>s da época do Pintor<br />
do Banho, nos últimos anos do século quinto, esse instrumento pode ter<br />
sido utilizado para acompanhar o himeneu 257 executado nesse momento<br />
dos festejos.<br />
Considerações fi<strong>na</strong>is<br />
A harpa, em suas diferentes formas conhecidas entre os gregos<br />
do período clássico (o trígōnon, a pēktís e a mágadis), foi um instrumento<br />
representado em escala bastante reduzida nos suportes iconográficos<br />
mais usuais da época que se conservaram até nossos dias (escultura,<br />
pintura de vasos, terracotas). A iconografia sugere que,<br />
comparativamente ao aulós, à lýra, à kithára ou ao bárbitos, foi um<br />
instrumento menos usual. Os registros visuais apontam que seu uso se<br />
espalhou em Ate<strong>na</strong>s, em certos contextos sociais, nos últimos anos do<br />
século quinto e primeiras décadas do século quarto.<br />
É interessante observar que, apesar de ser um instrumento<br />
conhecido há muito tempo no espaço cultural do Egeu, a sociedade<br />
grega do século quinto ainda o via como uma novidade e, mais que isso,<br />
como um estrangeirismo. Ao nos propormos interpretar os usos sociais<br />
deste instrumento e seus respectivos sentidos, constatamos, <strong>na</strong> relação<br />
entre os testemunhos textuais e imagéticos, a existência de convergências<br />
e divergências.<br />
A principal convergência é a vinculação da harpa, <strong>na</strong> cultura<br />
grega, ao feminino. A única exceção constatada ocorre <strong>na</strong> iconografia de<br />
um perso<strong>na</strong>gem mitológico: Museu figura, em uma pýxis do Pintor de<br />
Meidias, tocando harpa, associado às Musas (Figura 4). De resto, a<br />
pintura dos vasos e demais suportes imagéticos são muito claros: a<br />
harpa, entre os gregos, é um instrumento para ser tocado por mulheres.<br />
As convergências param por aí. Os autores antigos usam o<br />
termo psaltría (harpista), por via de regra, para se referir a cortesãs que<br />
atuavam como musicistas nos banquetes, contratadas para alegrar o<br />
257 Canto cuja performance ocorria durante a noite de núpcias.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ambiente, até mesmo satisfazendo desejos sexuais dos convivas.<br />
Aristóteles chega ao ponto de informar a remuneração devida a estas<br />
profissio<strong>na</strong>is em Ate<strong>na</strong>s, que não devia exceder dois dracmas (A<br />
Constituição de Ate<strong>na</strong>s 50.2; CERQUEIRA, 2001: 198). De outro lado, os<br />
pintores de vasos inserem a harpa sobretudo em dois contextos<br />
iconográficos correlatos e divergentes com relação ao ambiente da<br />
prostituição, caracterizado nos textos coetâneos: o ambiente mitológico<br />
das Musas e o ambiente cotidiano do gineceu.<br />
Constata-se, ainda, entre os pintores de vasos áticos, um<br />
tratamento particularizado com relação aos diferentes tipos de harpas. O<br />
trígōnon é representado tanto no ambiente humano quanto no mitológico.<br />
No gineceu, é tocado tanto pelo perso<strong>na</strong>gem central, identificável como<br />
a noiva ou esposa (Figura 7), quanto por um perso<strong>na</strong>gem secundário,<br />
identificável como amiga ou parente da noiva ou esposa (Figura 8). No<br />
ambiente mitológico, é tocado por alguma Musa. A pēktís, por sua vez,<br />
nunca aparece, <strong>na</strong> cerâmica ática conhecida por nós, retratado no<br />
ambiente do gineceu.<br />
Assim, podemos dizer que a harpa, para os pintores de vasos<br />
áticos, é sobretudo um instrumento do gineceu, no ambiente humano, e<br />
das Musas, no ambiente mitológico. De fato, com a exceção de Museu,<br />
nenhum outro perso<strong>na</strong>gem mitológico aparece <strong>na</strong> iconografia associado<br />
à harpa.<br />
Ficaria assim a pergunta: existiria uma dissociação total entre a<br />
conotação social da harpa e das harpistas entre os produtores de textos e<br />
de registros visuais? Nos textos, a indignidade da prostituição; <strong>na</strong><br />
pinturas de vasos, a dignidade do gineceu e das Musas. A khoûs ática do<br />
Pintor de Eretria (Figura 6) aponta uma convergência entre os textos e a<br />
iconografia: apresenta-nos uma cortesã tocando harpa, no caso, uma<br />
pēktís – trata-se portanto, de uma psaltría, uma cortesã-harpista, de que<br />
tanto nos falam os textos.<br />
O contraste entre o registro visual e textual aponta-nos que a<br />
harpa, em Ate<strong>na</strong>s, tão logo se espalhou entre os atenienses, <strong>na</strong>s últimas<br />
décadas do século quinto, foi vista como um instrumento refi<strong>na</strong>do. Sua<br />
percepção de refi<strong>na</strong>mento gerou dois resultados distintos: de um lado,<br />
mulheres bem-<strong>na</strong>scidas, em seus divertimentos no gineceu, inclusive<br />
durante os festejos da epaulía, tocavam o trígōnon entre suas amigas e<br />
153
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
parentes; de outro, tocar harpa (trígōnon ou pēktís) tornou-se um<br />
predicado para uma hetaira. Alguns colocaram em cheque o tom realista<br />
do uso da harpa no ambiente do gineceu entre as mulheres atenienses.<br />
No entanto, a comparação com a cerâmica italiota, sobretudo a cerâmica<br />
ápula do início do século quarto, indica a crescente popularidade que as<br />
harpas conquistaram no mundo grego, entre as mulheres bem-<strong>na</strong>scidas,<br />
como instrumento para entretenimento no gineceu.<br />
O estudo da harpa nos permitiu, assim, fazer um interessante<br />
exercício sobre o cotejamento entre os testemunhos literários e<br />
imagéticos <strong>na</strong> interpretação arqueológica, identificando convergências e<br />
divergências. Ao mesmo tempo, possibilitou-nos ver a cristalização,<br />
entre os gregos, da harpa como instrumento feminino, circulando entre<br />
diferentes esferas sociais de gênero: das bem-<strong>na</strong>scidas às hetairas.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente, seu estudo enseja reflexões sobre questões de etnicidade e<br />
geografia cultural. Sua percepção como um estrangeirismo foi sempre<br />
muito presente nos principais centros da Grécia balcânica, o que se<br />
traduz <strong>na</strong> baixíssima incidência de sua representação pelos pintores de<br />
vasos áticos. Já os pintores ápulos representaram este instrumento de<br />
forma mais freqüente que os pintores áticos, indicando que <strong>na</strong> Grécia<br />
ocidental o preconceito de estrangeirismo não fazia muito sentido. O<br />
que prevaleceu foi o gosto pelo instrumento, consolidando-se como um<br />
instrumento apreciado pelas mulheres bem-<strong>na</strong>scidas e pelos homens<br />
freqüentadores dos banquetes, que gostavam de ter uma psaltría tocando<br />
harpa e cantando canções eróticas nessas festas.<br />
154
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
ARISTÓTELES. A Constituição de Ate<strong>na</strong>s. Tradução e comentários de<br />
Francisco Murari Pires. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.<br />
ATHENAEUS. The Deipnosophists. Translation by Charles Burton Gulick.<br />
7 volumes. Londres: William Heinemann Ltd. / Cambridge,<br />
Massachusetts: Harvard University Press, 1959.<br />
EDMONDS, John Maxwell. The Fragments of Attic Comedy. Leiden, 1957-<br />
1961.<br />
Aristóteles Constituição de Ate<strong>na</strong>s 50.2<br />
PEARSON, A. C. The Fragments of Sophocles. Edited with aditio<strong>na</strong>l notes<br />
from the papers of Sir. R. C. Jebb and Dr. W. G. Headlam. Cambridge:<br />
University Press, 2010 (1917).<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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UMI – Dissertation Service, 2000 (1998).<br />
CERQUEIRA, F.V. Os instrumentos musicais <strong>na</strong> vida diária da Ate<strong>na</strong>s tardoarcaica<br />
e clássica (540-400 a.C.). O testemunho dos vasos áticos e de textos<br />
antigos. 3 vols. Tese de doutoramento. São Paulo, Universidade de São<br />
Paulo, 2001.<br />
COMOTTI, Giovanni. Un‘antica arpa, la magadis, in un frammento di<br />
Teleste (fr. 808 P).‖, Quad. Urb., 15, 44, 1983, p.57-71.<br />
COMOTTI, Giovanni. Music in Greek and Roman Culture.<br />
Baltimore/Londres: Hopkins University Press, 1991<br />
GRIMAL, Pierre. Diction<strong>na</strong>ire de la Mythologie Grecque et Romaine. 12ª ed.,<br />
Paris: PUF, 1994.<br />
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archäologischen Instituts, Athenische Abteilung, 54, 1929, p. 164-93.<br />
MAAS, Martha; SNYDER, Jane MacIntosh. Stringed Instruments of Ancient<br />
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155
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
POZZER, Kátia. O banquete do rei e a política nos tempos de paz, In:<br />
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Pelotas: Laboratório de Antropologia e Arqueologia da UFPEL, 2007, p.<br />
147, fig. 2<br />
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WEST, Martin. Ancient Greek Music. Oxford: Clarendon Press, 1992.<br />
ZEVI, Ele<strong>na</strong>. Scene di gineceo e di idillio nei vasi greci della seconda metà del secolo<br />
quinto. (Memorie della R. Accademia Nazio<strong>na</strong>le dei Linci, serie VI,<br />
volume VI, fascicolo IV), Roma, Tipografo della Accademia Nazio<strong>na</strong>le<br />
dei Lincei, 1938.<br />
156
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
AS MÚLTIPLAS SENSIBILIDADES DO FEMININO NA<br />
LITERATURA EGÍPCIA DO REINO NOVO<br />
(C. 1550-1070 A.C.)<br />
Prof. Mestrando Gregory da Silva Balthazar 258<br />
Prof. Doutorando Liliane Cristi<strong>na</strong> Coelho 259<br />
Introdução<br />
O silêncio é o comum das mulheres, faz parte de seu papel<br />
socialmente construído. Assim, escrever uma História das <strong>Mulheres</strong> foi<br />
durante muito tempo uma questão incongruente ou ausente. Portanto,<br />
discorrer sobre o feminino por vezes é difícil, sobretudo das<br />
individualidades desse sexo, que, longe de ser tratado como vítima, como<br />
proposto por uma historiografia tradicio<strong>na</strong>l, tem seu perfil construído ao<br />
longo da história.<br />
Nos últimos vinte e cinco anos observou-se o crescimento dos<br />
estudos sobre o feminino, fruto da busca de novos campos de interesse<br />
da História. Essa mudança, tanto dos objetos quanto dos métodos de<br />
estudo, que produziram uma revisão no modo de fazer a pesquisa<br />
histórica, tem sua origem em um movimento de contestação social: o<br />
feminismo.<br />
O debate crítico acerca da História das <strong>Mulheres</strong>, que ao se<br />
centrar <strong>na</strong> figura femini<strong>na</strong> acabou isolando-as do resto do contexto,<br />
resultou no aparecimento do termo Gênero. Este vocábulo surgiu do<br />
esforço intelectual das feministas america<strong>na</strong>s que buscavam marcar o<br />
caráter primariamente social das diferenças baseadas no sexo (SCOTT,<br />
1990: 7). Assim, para a historiadora Joan Scott, ―estudar as mulheres de<br />
258 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade<br />
Federal do Paraná, sob orientação da Profa. Dra. Re<strong>na</strong>ta Sen<strong>na</strong> Garraffoni.<br />
Pesquisador adjunto da Comissão de Estudos e Jor<strong>na</strong>das de História<br />
Antiga (CEJHA) da PUCRS. gsbalthazar@gmail.com<br />
259 Mestre e doutoranda em História Antiga pela Universidade Federal<br />
Fluminense. Pesquisadora do Grupo de Estudos Egiptológicos Maat (GEE-<br />
MAAT) do Centro de Estudos Interdiscipli<strong>na</strong>res da <strong>Antiguidade</strong> (CEIA) da<br />
UFF. Professora do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval das<br />
Faculdades Itecne – Curitiba – PR. lilianemeryt@hotmail.com<br />
157
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tenha<br />
muito pouco, ou <strong>na</strong>da, a ver com o outro sexo‖ (SCOTT, 1990: 07). Nesse<br />
sentido:<br />
O gênero é então um meio de decodificar o<br />
sentido e de compreender as relações complexas<br />
entre as diversas formas de interação huma<strong>na</strong>.<br />
Quando as (os) historiadoras (es) buscam<br />
encontrar as maneiras pelas quais o conceito de<br />
gênero legitima e constrói as relações sociais elas<br />
(eles) começam a compreender a <strong>na</strong>tureza<br />
recíproca do gênero e da sociedade e as maneiras<br />
particulares e situadas dentro de contextos<br />
específicos, pelas quais a política constrói o gênero<br />
e o gênero constrói a política (SCOTT, 1990: 16).<br />
Para além desses aspectos, a categoria gênero amplia a<br />
investigação sobre as mulheres no passado, pois afirma que o mundo<br />
feminino faz parte do mundo dos homens, sendo resultado de uma<br />
criação masculi<strong>na</strong>. E é nesse contexto, portanto, que as primeiras<br />
feministas se voltaram para o passado buscando encontrar sociedades<br />
pré-patriarcais, ou melhor, determi<strong>na</strong>r a existência de sociedades<br />
ginecocráticas.<br />
Nessa premissa, a aparente proeminência das mulheres egípcias,<br />
que ―(...) usufruíram de maiores direitos legais e privilégios que as mulheres de<br />
muitas <strong>na</strong>ções do mundo de hoje‖, (LESKO, 1996: 01) tornou a civilização<br />
egípcia um refúgio para a crítica feminista, que via nessa sociedade a<br />
prova da existência de culturas pré-patriarcais. De fato, tal teoria<br />
influenciou toda a produção historiográfica sobre o antigo Egito, que,<br />
até o fi<strong>na</strong>l do século XX, defendeu a ideia da existência de uma igualdade<br />
entre os sexos <strong>na</strong> sociedade egípcia. 260<br />
260 Leiam-se, por exemplo, as palavras de Christiane Noblecourt (1994: 207):<br />
―(...) assim se apresentava a mulher egípcia, feliz cidadã de um país em que a igualdade dos<br />
sexos parece ter sido considerada, desde a origem, como um fato <strong>na</strong>tural e tão profundamente<br />
enraizado que o problema foi sequer levantado. (...). Assim, <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong>, o Egito é o<br />
único país que verdadeiramente dotou a mulher de um estatuto igual ao do homem‖.<br />
158
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Esse pensamento, origi<strong>na</strong>do no seio dos estudos feministas, é<br />
uma clara recorrência a uma história das origens, um tempo anterior ao<br />
que se conhece por patriarcado. No último século o meio acadêmico<br />
fervia com discussões acerca da existência ou não de culturas prépatriarcais,<br />
que se dividiriam em duas formas: o matriarcado, que é a<br />
forma social <strong>na</strong> qual o poder é exercido pelas mulheres, em especial pelas<br />
mães, e a matrilinearidade, onde a tradição sociocultural é transmitida e<br />
assegurada pela figura da mulher.<br />
Nessa perspectiva, essa linha historiográfica entende, tendo<br />
como premissa que a mulher do antigo Egito exerceu certa influência <strong>na</strong><br />
esfera pública e/ou o fato de que muitos homens egípcios descreviam a<br />
si mesmo fazendo alusão ao nome da mãe ao invés daquele do pai, que o<br />
poder régio egípcio foi assegurado por um sistema social matrilinear. Os<br />
estudos de Barbara Wattersom (1998: 23-24), por exemplo, com base no<br />
monismo egípcio e <strong>na</strong>s características apontadas outrora, corroboram<br />
com este processo matrilinear, ou ―teoria da herdeira‖, onde o trono<br />
egípcio seria transmitido por uma linhagem femini<strong>na</strong>.<br />
Há trabalhos, contudo, como o da inglesa Gay Robins, que<br />
refutam tais teorias. A egiptóloga, em um estudo sobre a XVIII Di<strong>na</strong>stia,<br />
comprovou a impossibilidade de se traçar uma linhagem de mulheres de<br />
descendência real. Para tanto, evidenciou que o estudo das titulações de<br />
―filha do rei‖, concedidas às mulheres de sangue real, não se provou<br />
recorrente <strong>na</strong> primeira linhagem dinástica do Reino Novo, já que<br />
algumas mulheres de sangue não-real receberam tal titulação. Por fim, a<br />
estudiosa britânica fi<strong>na</strong>liza seu raciocínio apresentando o fato de que as<br />
esposas principais dos faraós Thutmés III, Amenhotep II e Amenhotep<br />
III eram de origem não real (ROBINS, 1996: 23-24).<br />
Acredita-se, nessa perspectiva, que essa busca de um passado<br />
utópico (sociedades matriarcais ou matrilineares), como foi o caso do<br />
Egito, tornou-se problemática <strong>na</strong> materialização de uma noção idealizada<br />
do passado, uma retificação de uma esfera pré-cultural do autêntico<br />
feminino. Nesse contexto, a filósofa Judith Butler explica que:<br />
Esse recurso a uma feminilidade origi<strong>na</strong>l ou<br />
genuí<strong>na</strong> é um ideal nostálgico e provinciano que<br />
rejeita a demanda contemporânea de formular uma<br />
159
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
abordagem de gênero como uma construção<br />
cultural. Esse ideal tende não só a servir a<br />
objetivos culturalmente conservadores, mas a<br />
construir uma prática excludente no seio do<br />
feminismo, precipitando precisamente o tipo de<br />
fragmentação que o ideal pretende superar<br />
(BUTLER, 2008: 65).<br />
De fato, a história das origens (sociedades pré-patriarcais)<br />
desmascara as afirmações auto-reificadoras da domi<strong>na</strong>ção social<br />
masculi<strong>na</strong>, mas acaba promovendo uma retificação politicamente<br />
problemática das experiências das mulheres. Sendo assim,<br />
as mulheres [egípcias], embora respeitadas como<br />
membros da família, não tinham realmente<br />
nenhum tipo de regalia que as igualasse a seus<br />
companheiros do sexo masculino, já que muito do<br />
que era permitido aos homens estava<br />
completamente vedado às mulheres (OLIVEIRA,<br />
2005: 205).<br />
As fontes sobre a mulher egípcia e sua representação durante a<br />
história do período faraônico, tradicio<strong>na</strong>lmente datada de c. 3000-332<br />
a.C., 261 são provenientes de diferentes contextos. As fontes disponíveis<br />
para o estudo sobre a mulher egípcia (arqueológicas, iconográficas e<br />
textuais), contudo, foram produzidas pela elite masculi<strong>na</strong> egípcia. Nessa<br />
perspectiva, é importante entender que, segundo Liliane Coelho, <strong>na</strong> arte<br />
egípcia:<br />
Independente do tipo de monumento e de sua<br />
fi<strong>na</strong>lidade, as representações huma<strong>na</strong>s, assim<br />
como <strong>na</strong>s outras fases da vida, se diferenciam<br />
entre aquelas que mostram homens e aquelas que<br />
trazem mulheres. Assim, é importante ter em<br />
mente que, no Egito antigo, a arte era produzida<br />
261 As datas seguem a cronologia proposta por BAINES, John & MÁLEK,<br />
Jaromir. Atlas of Ancient Egypt. Oxford: Phaidon, 1980, p. 30-52.<br />
160
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
por homens, e que reflete o ponto de vista<br />
masculino. A mulher era sempre representada de<br />
maneira ideal, conforme a visão idealizada pelo<br />
homem (COELHO, 2009: 162).<br />
A literatura, ao ser produzida por homens, assim como a arte,<br />
traduz uma visão idealiza do feminino. Durante o Reino Novo (c. 1550-<br />
1070 a.C.), entretanto, foi produzido um gênero literário que evidencia o<br />
olhar egípcio acerca do amor e da sexualidade – os Poemas de Amor. O<br />
objetivo deste trabalho, então, é compreender como os antigos egípcios<br />
percebiam a relação das mulheres egípcias com as questões que<br />
envolvem o amor e a sexualidade.<br />
O Ideal Feminino <strong>na</strong> Literatura Egípcia<br />
Antes de passarmos aos Poemas de Amor é importante discutirmos<br />
como a imagem femini<strong>na</strong> foi idealizada pela literatura egípcia, de maneira<br />
contínua, até chegarmos ao Reino Novo. O Reino Médio (c. 2040-1640<br />
a.C.) é considerado o período clássico da literatura no Egito antigo, e as<br />
composições desta época, em conjunto com aquelas do Reino Novo,<br />
formam um grande corpus que pode auxiliar para o entendimento de<br />
alguns aspectos da sociedade egípcia como, por exemplo, a forma como<br />
os homens construíam a imagem do feminino – nosso objetivo nessa<br />
seção. Muitos dos textos surgidos nestes dois períodos foram difundidos<br />
por escribas e estudantes, por meio de cópias, ao longo dos períodos<br />
históricos que se sucederam, e desta maneira, já <strong>na</strong> contemporaneidade<br />
foi possível a sua transmissão e seu resgate pelos pesquisadores da língua<br />
e da literatura egípcias, que as traduziram e revelaram ao público atual.<br />
Tais obras estão entre as mais conhecidas da literatura egípcia, e<br />
os nomes de alguns destes autores foram eternizados justamente por<br />
meio de seus textos. Segundo a visão de mundo egípcia, associar o nome<br />
ao escrito era uma forma de preservar a própria existência e esta era mais<br />
eficiente, inclusive, do que construir uma tumba em uma necrópole. Essa<br />
afirmativa fica bem clara no trecho abaixo, retirado do Papiro Chester<br />
Beatty IV, datado origi<strong>na</strong>lmente da Época Raméssida:<br />
Quanto aos escribas sábios, ...que prediziam o que<br />
estava por vir, seus nomes durarão para sempre,<br />
161
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
embora tivessem partido, tendo completado sua<br />
vida, enquanto todos os seus contemporâneos<br />
foram esquecidos. ...Eles não planejaram deixar<br />
herdeiros, crianças que conservassem seu nome,<br />
mas fizeram como herdeiros de si os livros e<br />
ensi<strong>na</strong>mentos, que escreveram. ...Sua lápide está<br />
coberta de areia e seu túmulo esquecido, mas seu<br />
nome é pronunciado por causa dos livros. ...Um<br />
homem morre, seu cadáver vira pó, todos os seus<br />
contemporâneos perecem, mas um livro faz com<br />
que seja lembrado <strong>na</strong> boca de quem o lê.<br />
(ARAÚJO, 2000: epígrafe)<br />
Ainda dentro da mesma visão de mundo, outra maneira<br />
encontrada pelos escribas para preservar seu nome foi por meio do<br />
colofão, ou a nota fi<strong>na</strong>l de um texto, onde ficaram anotados os nomes de<br />
alguns escribas copistas. Um exemplo aparece nos Ensi<strong>na</strong>mentos de Amenem-ope:<br />
―(O texto) chegou a seu fim <strong>na</strong> escrita de Senu, filho do pai do deus Pamiu"<br />
(ARAÚJO, 2000: 280). Os nomes de Senu e de seu pai, assim,<br />
foram eternizados por meio do texto escrito.<br />
Tendo em vista tais considerações, para este artigo, a<strong>na</strong>lisamos<br />
composições que podem ser classificadas, segundo Emanuel Araújo<br />
(2000: 53-57), como literatura fantástica, que se caracteriza por uma<br />
quebra da realidade que resulta em eventos extraordinários; literatura<br />
gnômica, gênero no qual se inserem os chamados ensi<strong>na</strong>mentos ou<br />
instruções; e, por fim, a literatura lírica, gênero do qual fazem parte os<br />
poemas de amor. As referências à mulher nestes gêneros literários se fazem<br />
de diferentes maneiras, dependendo da função à qual se aplica o texto.<br />
Dentro da literatura fantástica, a mulher aparece pelo menos de<br />
duas formas diferentes. Em um dos contos do Papiro Westcar 262, datado<br />
do Reino Médio e intitulado ―O marido enga<strong>na</strong>do‖, a mulher do sacerdote<br />
Ubaoner apaixonou-se por um homem da cidade e passava com ele ―dias<br />
262 As traduções do Papiro Westcar, do Conto dos Dois Irmão e do conto Verdade e<br />
Falsidade consultadas para a elaboração deste artigo foram aquelas presentes <strong>na</strong><br />
obra: ARAÚJO, Luís Manuel de. Mitos e Lendas: Antigo Egipto. Lisboa: Livros e<br />
Livros, 2005.<br />
162
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
felizes‖ 263 em um pavilhão no jardim da casa do sacerdote. Avisado pelo<br />
jardineiro, Ubaoner confeccionou um crocodilo de cera, que o servidor<br />
deveria colocar no lago do jardim, no qual o homem da cidade se<br />
purificava ao fi<strong>na</strong>l de cada tarde. Certo dia, o homem foi banhar-se no<br />
lago e o crocodilo de cera ali colocado pelo jardineiro, transformado em<br />
um animal de verdade, o levou para o fundo. O sacerdote, que passara<br />
um tempo com o faraó, chamou o rei para ver uma coisa extraordinária<br />
em sua casa, e pediu então ao crocodilo para que viesse à to<strong>na</strong>. O<br />
crocodilo aproximou-se com o homem <strong>na</strong> boca e, após a explicação do<br />
ocorrido ao faraó, este autorizou Ubaoner a fazer o que achasse sensato<br />
ao homem. Ele então mandou que o crocodilo o levasse, e eles sumiram<br />
para sempre. A mulher, associada ao adultério, foi castigada, sendo<br />
queimada e suas cinzas lançadas <strong>na</strong> água.<br />
A mesma imagem femini<strong>na</strong> é transmitida pelo Conto dos Dois<br />
Irmãos, datado do fi<strong>na</strong>l da XIX Di<strong>na</strong>stia. Nesta história, Bata vivia com<br />
seu irmão mais velho, Anpu, e a esposa deste, cujo nome não é citado,<br />
assim como <strong>na</strong> história de Ubaoner. Certo dia, <strong>na</strong> estação da semeadura,<br />
Anpu pediu a seu irmão que fosse até o sítio onde viviam e trouxesse<br />
mais sementes, pois o que levaram para o campo não fora suficiente.<br />
Quando saía da propriedade, no entanto, Bata foi interpelado pela<br />
cunhada, que queria ―passar com ele uma hora feliz‖. Bata negou-se,<br />
respondendo que a considerava como uma mãe, e seguiu seu caminho. A<br />
mulher, contudo, com medo do que Bata poderia ter contado a Anpu,<br />
fingiu que fora abusada sexualmente e disse a seu marido que quem a<br />
atacara fora o irmão mais novo. Anpu então se escondeu no estábulo<br />
para matar o irmão, mas este foi avisado pelas vacas e fugiu, sendo<br />
perseguido por Anpu. Bata disse então que iria para o Vale dos Cedros e<br />
contou o que realmente havia acontecido ao irmão. Bata disse também<br />
que colocaria seu coração em um cedro, e que o irmão deveria procurálo<br />
assim que recebesse um copo de cerveja que transbordasse. Furioso<br />
com a atitude de sua mulher, Anpu voltou para casa, matou a esposa<br />
mentirosa e jogou seu corpo aos cães.<br />
263 Os egípcios antigos costumavam referir-se ao sexo com algumas figuras de<br />
linguagem. ―Passar um dia feliz‖ é uma das formas correntes <strong>na</strong> literatura para<br />
referir-se ao tema.<br />
163
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Em outro momento, no mesmo conto, Bata foi presenteado<br />
pela Enéada com uma mulher que era muito bela. Apaixo<strong>na</strong>do por ela,<br />
Bata a avisou que não se aproximasse do mar, mas certo dia,<br />
desobedecendo às ordens do marido, a mulher foi à praia e teve um dos<br />
cachos de seu cabelo cortado por uma árvore e jogado à água. Tal cacho<br />
chegou ao local onde a roupa do faraó era lavada, e o rei apaixonou-se<br />
pelo cheiro da moça. Depois de levá-la consigo, o faraó pesou em matar<br />
Bata, já que este poderia ir atrás da esposa. A mulher, então, contou ao<br />
rei onde estava o coração de Bata e este, por sua vez, mandou que o<br />
cedro que guardava o órgão fosse cortado. Ao fi<strong>na</strong>l do conto, após<br />
muitas transfigurações, Bata consegue fi<strong>na</strong>lmente se vingar da mulher e<br />
ela tem um fi<strong>na</strong>l trágico.<br />
Temos, <strong>na</strong>s três situações ilustradas nestes contos, mulheres que<br />
retratam um comportamento que não era o ideal esperado para o<br />
feminino egípcio, e que por isso acabaram punidas. Os textos<br />
transmitem uma clara mensagem às mulheres: que elas não seguissem o<br />
exemplo da esposa infiel e mentirosa, pois as consequências poderiam<br />
ser trágicas.<br />
Em outro conto do Papiro Westcar, no entanto, a mulher aparece<br />
como a mãe e provedora. Em ―O <strong>na</strong>scimento dos príncipes‖, é <strong>na</strong>rrada a<br />
história de Reddjedet, que dá à luz os três primeiros faraós da V Di<strong>na</strong>stia<br />
– Userkaf, Sahure e Neferirkare –, filhos de Ra. No conto, Ra enviou as<br />
deusas Ísis, Néftis, Meskhenet e Heket, acompanhadas por Khnum, para<br />
auxiliar a mulher <strong>na</strong> hora do parto. Assim, é apresentada a imagem da<br />
mulher ideal, mãe e provedora, que passa pelas agruras do parto para dar<br />
continuidade à família, que era um bem precioso para os antigos<br />
egípcios. Reddjedet, no entanto, pratica um mau ato quando manda que<br />
uma servidora utilize o cereal das deusas, que foi deixado<br />
propositalmente <strong>na</strong> casa por elas, sem uma autorização do marido. O<br />
fi<strong>na</strong>l da história, contudo, foi perdido, e não há como saber o que<br />
aconteceu depois disso a Reddjedet.<br />
Outro conto que mostra a mulher com bom comportamento é<br />
Verdade e Falsidade, composição que data da XIX Di<strong>na</strong>stia. Nesta história,<br />
Verdade foi punido pela Enéada com a cegueira por ter perdido uma<br />
faca que pertencia a seu irmão, Falsidade, que mentira a respeito do<br />
artefato. Alguns dias depois Verdade tornou-se porteiro de Falsidade,<br />
164
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mas, com o tempo, este percebeu que nunca se livraria da culpa pela<br />
cegueira do irmão enquanto o outro estivesse próximo. Verdade foi<br />
então abando<strong>na</strong>do num local rochoso, onde ficou protegido, e no qual<br />
foi encontrado por uma mulher, que se apaixonou por ele e pediu a seus<br />
serviçais que o levassem para servir como porteiro em sua casa. Juntos,<br />
Verdade e a mulher tiveram um filho, que só soube quem era seu pai<br />
muito tempo depois, já rapaz, quando perguntou para a mãe quem era<br />
seu progenitor. Sabendo da verdade, o filho decidiu vingar o pai e fez o<br />
tio ser julgado e punido pela Enéada.<br />
Nos dois últimos casos, a mulher é mostrada como a mãe<br />
protetora. Nos dois, também, a mulher apresenta uma falha: no<br />
primeiro, por usar o cereal das deusas sem a permissão do marido e, no<br />
segundo, por não revelar, desde o princípio a verdade sobre o filho de<br />
Verdade. O comportamento mais marcante, no entanto, é o da mãe, e é<br />
este deveria ser seguido pelas mulheres egípcias.<br />
Já <strong>na</strong> literatura gnômica são comuns os conselhos direcio<strong>na</strong>dos a<br />
como tratar as mulheres, sejam elas esposas, concubi<strong>na</strong>s ou as mulheres<br />
que poderiam ser encontradas <strong>na</strong>s casas de outros homens. Ptah-hotep,<br />
por exemplo, aconselha àquele que entra <strong>na</strong> casa de um homem como<br />
seu convidado: ―... em qualquer lugar onde entres evitas aproximar-te das<br />
mulheres! (...) Aquele que se consome por causa de seu desejo por elas não prosperará<br />
em nenhuma atividade.‖ (ARAÚJO, 2000: 251-252). É importante observar<br />
que Ptah-hotep refere-se, neste caso, às mulheres desconhecidas, que<br />
posteriormente foram tratadas pelo escriba Any, em uma composição<br />
que data origi<strong>na</strong>lmente da XVIII Di<strong>na</strong>stia, de maneira semelhante:<br />
―Cuidado com uma mulher que é estranha, alguém não conhecida <strong>na</strong> sua cidade; não<br />
a fixe quando ela passa, não a conheça car<strong>na</strong>lmente (...) ela está pronta para engodar<br />
você‖ (BAKOS, 2001: 35).<br />
As posições de Ptah-hotep e Any com relação à esposa, porém,<br />
são outras: nestes casos, ela aparece como o ideal feminino, e seu<br />
comportamento deve ser seguido por todas as mulheres. Ptah-hotep<br />
aconselha ao marido para que trate bem de sua esposa, pois ―... ela é um<br />
campo fértil para o seu senhor‖ (ARAÚJO, 2000: 252). A esposa, segundo<br />
ele, deveria ser bem nutrida, provida com vestimentas e cosméticos e<br />
muito amada, pois ela seria a responsável pela continuidade da família e<br />
também pela educação dos filhos pequenos, e deveria ser sempre um<br />
165
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
exemplo a ser seguido. Ptah-hotep aconselha, contudo: ―não a julgues,<br />
(mas) afasta-a de uma posição de poder‖ (ARAÚJO, 2000: 252). Ou seja, para<br />
este sábio, a mulher deveria servir ao homem, e não ocupar uma posição<br />
<strong>na</strong> qual pudesse mandar nele. Any também considera que a esposa deve<br />
ser respeitada pelo marido por suas qualidades: ―Não controle sua mulher <strong>na</strong><br />
sua casa, quando você sabe que ela é eficiente: nunca diga para ela: „Onde está isto?<br />
Pegue-o!‟ quando ela o tinha colocado em lugar certo‖ (BAKOS, 2001: 35). Para<br />
ele, todo homem deveria observar com cuidado sua esposa para ver o<br />
quanto ela era habilidosa em seu trabalho.<br />
Por último, as concubi<strong>na</strong>s também foram lembradas por Ptahhotep.<br />
Estas deveriam ser bem tratadas para que continuassem alegres e<br />
distribuíssem sempre a felicidade: ―se tomares uma mulher como concubi<strong>na</strong>,<br />
alegre e conhecida pelos de sua cidade (...) Sê bom para ela (durante) algum tempo,<br />
não a repilas, deixe-a comer (à vontade)‖ (ARAÚJO, 2000: 256-257). As<br />
concubi<strong>na</strong>s, então, também mereciam um tratamento especial, tal qual o<br />
das esposas e, assim como elas, não deveriam ocupar posições de poder.<br />
Em ape<strong>na</strong>s um caso a<strong>na</strong>lisado, <strong>na</strong> literatura gnômica, a mulher<br />
aparece como sofredora. Trata-se de uma comparação feita por Khéti, <strong>na</strong><br />
―Sátira das Profissões‖, entre a condição femini<strong>na</strong> e a de um tecelão: ―o<br />
tecelão <strong>na</strong> ofici<strong>na</strong> é mais desventurado que uma mulher‖ (ARAÚJO, 2000: 221).<br />
Não é fácil precisar a que se devia tal desventura, mas o sábio diz que o<br />
tecelão seria açoitado caso não cumprisse uma determi<strong>na</strong>da meta. Em<br />
nenhum outro documento se fala de tal maneira sobre a sorte da mulher,<br />
e por isso não podemos chegar a uma conclusão precisa.<br />
Fica demonstrado, assim, que a imagem femini<strong>na</strong> nos textos,<br />
produzidos por homens, é marcada pela idealização. Comportamentos<br />
que não devem ser seguidos, sejam eles sexuais ou não – e que não<br />
condizem com o ideal feminino – são punidos com a destruição do<br />
corpo e, consequentemente, da vida após a morte. Já a esposa fiel e boa<br />
mãe é recompensada, e aparece, assim, como o ideal a ser seguido pelas<br />
mulheres egípcias.<br />
Os Poemas de Amor e as Múltiplas Sensibilidades do Feminino<br />
A estabilidade política que passou a existir após a expulsão dos<br />
hicsos – os estrangeiros que gover<strong>na</strong>ram o Egito durante o Segundo<br />
Período Intermediário (c. 1640-1550 a.C.) –, no início do Reino Novo,<br />
166
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
trouxe novamente aos escribas egípcios a possibilidade de usar a escrita<br />
para a apreciação e o deleite. Posener (apud ARAÚJO, 2000: 302)<br />
argumenta que os banquetes, tão em voga neste período, representavam<br />
a ocasião ideal para a apreciação de um novo tipo de canção surgido<br />
nessa época e logo transformado em literatura escrita: os Poemas de Amor.<br />
As versões que nos chegaram de tais poemas foram escritas em<br />
três papiros e um óstraco, a saber: Papiro Chester Beatty I, atualmente<br />
em Dublin; Papiro Harris 500, conservado no Museu Britânico; Papiro<br />
Turim 1996, do Museu Egípcio de Turim; e Óstraco do Cairo<br />
1266+25218, fragmentos de um vaso encontrado em Deir el-Medi<strong>na</strong><br />
(ARAÚJO, 2000: 302). Cada um dos poemas presentes nos conjuntos é<br />
um monólogo, ou do homem ou da mulher. Barbara Lesko, pautada<br />
nesta distinção, divide-os em poemas de fala masculi<strong>na</strong>, que apresentam<br />
uma linguagem mais refi<strong>na</strong>da, e poemas de fala femini<strong>na</strong>, que têm<br />
origem mais popular e cujos temas estão mais voltados ao cotidiano<br />
(WIEDEMANN, 2007: 226). Os amantes nunca se tratam pelo nome,<br />
sendo desig<strong>na</strong>dos ape<strong>na</strong>s como ―irmão‖ e ―irmã‖, mas sem que tal forma<br />
de tratamento tenha qualquer conotação familiar.<br />
Não há como saber se os poemas de fala femini<strong>na</strong> – que<br />
correspondem a setenta e cinco por cento do conjunto – foram<br />
realmente escritos por mulheres, mas eles transmitem, segundo aponta<br />
Emanuel Araújo (2000: 301), a sensibilidade femini<strong>na</strong> de maneira<br />
aguçada, chamando a atenção, nestes casos, a delicadeza de sentimentos<br />
e um erotismo velado. Diferentemente do que acontece com os poemas<br />
de fala masculi<strong>na</strong> – que, como os textos a<strong>na</strong>lisados anteriormente,<br />
constroem uma imagem idealizada da mulher –, os de fala femini<strong>na</strong> não<br />
apresentam uma imagem autoconstruída ou de uma mulher ideal.<br />
As sensibilidades, a que aqui se refere, são sutis e difíceis de<br />
capturar, pois se inscrevem sob os signos da alteridade, traduzindo<br />
emoções, sentimentos e valores que não são mais os nossos<br />
(PESAVENTO, 2007: 10). Portanto, a análise das sensibilidades implica<br />
<strong>na</strong> percepção e <strong>na</strong> tradução das subjetividades da experiência huma<strong>na</strong> no<br />
mundo, por meio de práticas sociais, discursos, imagens e materialidades,<br />
tais como espaços e objetos construídos.<br />
A literatura, por sua vez, é o registro de alguma coisa que também<br />
se passou <strong>na</strong> esfera do sensível: é o registro de algo que diz respeito a<br />
167
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
anseios, sensibilidades, medos, apreensões, percepções sobre o mundo e<br />
é, também, <strong>na</strong>rrativa. De fato, as fontes literárias, neste caso específico<br />
os Poemas de Amor, se constituem como um espaço das sensibilidades<br />
que se manifestam em uma esfera anterior à reflexão; sensibilidades que<br />
correspondem ―(...) às manifestações do pensamento ou do espírito, pelas quais<br />
aquela relação originária é organizada, interpretada e traduzida em termos mais<br />
estáveis e contínuos‖ (PESAVENTO, 2007: 10).<br />
Deste modo, as falas femini<strong>na</strong>s dos Poemas de Amor, ao<br />
contrário das masculi<strong>na</strong>s, traduzem um amor sensível, como o disparar<br />
de um coração ao ouvir a voz do amado, conforme apresentado nestes<br />
versos do segundo poema do primeiro conjunto do Papiro Chester<br />
Beatty I: ―Meu irmão agita meu coração com sua voz, o tormento apodera-se de<br />
mim‖ (ARAÚJO, 2000: 304). Observa-se, no quarto poema do mesmo<br />
conjunto, que o simples fato de pensar no homem amado, também faz<br />
com que o ―coração palpite‖. Tais sentimentos, contudo, deviam ser<br />
velados, pois a mulher espera que ―(...) não se diga [dela]: „Esta mulher está<br />
caída de amor‟‖, e por isso pede ―ó, meu coração, não palpites‖ (ARAÚJO,<br />
2000: 306).<br />
Este poema demonstra a relação das mulheres egípcias com o<br />
amor antes do casamento, em sua maioria velado e platônico, como é<br />
visível no sexto poema do conjunto, onde a mulher passa em frente a<br />
uma porta aberta e é observada por seu amado, o que desperta nela<br />
―extrema alegria‖, pois, seu ―coração rebenta de felicidade‖ à vista de seu irmão!<br />
(ARAÚJO, 2000: 307). Assim, ela ora à deusa Hathor: ―Se minha mãe<br />
soubesse o que passa em meu coração (...). Ó, Deusa de Ouro, põe isso no coração<br />
dela e então correrei ao meu irmão, eu o beijarei <strong>na</strong> frente dos que o cercam (...)‖<br />
(ARAÚJO, 2000: 307).<br />
O segundo conjunto de poemas do Papiro Chester Beatty I<br />
mostra a necessidade do coração feminino da presença de seu amado:<br />
―Ó, vem depressa para tua irmã‖ (ARAÚJO, 2000: 308-9), é a maneira como<br />
se iniciam os três poemas do conjunto. Esta urgência, da necessidade da<br />
presença do ―irmão‖, se justifica pela busca de uma efêmera felicidade<br />
proporcio<strong>na</strong>da pelo encontro dos apaixo<strong>na</strong>dos.<br />
168
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Os Poemas de Amor, além de contar sobre as ânsias e<br />
sentimentos femininos, também ajudam a entender o cotidiano 264 das<br />
mulheres <strong>na</strong> sociedade egípcia. Os poemas de fala femini<strong>na</strong> do conjunto<br />
intitulado ―Começo dos belos poemas de prazer de tua irmã amada quando ela volta<br />
do campo‖, do Papiro Harris 500, descrevem atividades desempenhadas<br />
pelas mulheres no dia-a-dia e as dificuldades de se concentrar nestas<br />
tarefas ao pensar em seu amado. Como é o caso da mulher que foi<br />
―preparar a armadilha (de pássaros), tendo em uma das mãos a gaiola e <strong>na</strong> outra<br />
a rede e o bastão‖ e, ao capturar um pássaro do Punt, desejava soltá-lo para<br />
ficar sozinha com o amado (ARAÚJO, 2000: 316). O quarto poema do<br />
mesmo conjunto descreve como a distância do amado faz com que<br />
sabor do ―bolo doce é para [ela] como sal, e <strong>na</strong> [sua] boca o suave vinho de romã<br />
parece [a ela] ser de fel‖ (ARAÚJO, 2000: 317). Além de instrumentos de<br />
caça e de alguns alimentos, utilizados <strong>na</strong> época, encontra-se a descrição<br />
do papel da Senhora da Casa, quando o amor faz surgir, <strong>na</strong> mulher do<br />
quinto poema, ―o desejo de cuidar de tuas coisas [refere-se ao amado] como<br />
do<strong>na</strong> de tua casa, com o teu braço no meu braço, servindo-te meu amor‖. Pretende,<br />
portanto, tê-lo ―como esposo, sem ele sou como alguém no túmulo‖ (ARAÚJO,<br />
2000: 317). Desta forma, o estudo destes poemas, com seu tom de<br />
confidência, de sua singularidade, seu gosto pelo detalhe fútil, daquele<br />
―insignificante‖, tão repleto de sentido, permite perceber as sensibilidades<br />
que tecem o cotidiano do feminino no antigo Egito.<br />
264 Na linguagem comum, o termo cotidiano significa ‗o que se faz ou sucede<br />
todos os dias‘. Mas entende-se este termo como algo mais profundo que isso,<br />
compreende-se, por meio das palavras de Agnes Heller (2008: 31), que a vida<br />
cotidia<strong>na</strong> é, antes de qualquer coisa, a vida de todo homem, pois ―Todos a<br />
vivem, sem nenhuma exceção qualquer que seja seu posto <strong>na</strong> divisão do<br />
trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade<br />
huma<strong>na</strong> genérica a ponto de desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao<br />
contrário, não há nenhum homem, por mais ‗insubstancial‘ que seja, que viva<br />
tão somente <strong>na</strong> cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente.<br />
Nesse sentido, é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa <strong>na</strong> vida<br />
cotidia<strong>na</strong> com todos os aspectos de sua individualidade, de sua perso<strong>na</strong>lidade.<br />
Nela, colocam-se ‗em funcio<strong>na</strong>mento‘ todos os seus sentimentos, paixões, idéias<br />
e ideologias‖.<br />
169
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A religiosidade, por exemplo, sempre ocupou um lugar de<br />
destaque <strong>na</strong> vida dos antigos egípcios e não pode ser diferente <strong>na</strong> relação<br />
das mulheres com o amor. Logo, a magia, travestida em preces à deusa<br />
Hator 265, se faz presente no cotidiano dos egípcios, que esperavam, ―Ao<br />
invocá-la, [que] ela ou[ça suas] súplicas e mand[e]‖ a pessoa amada ao<br />
encontro da suplicante. O quinto poema, acima citado, traz como eram<br />
as preces: ―Adoro a Deusa de Ouro, cultuo sua majestade, louvo a Senhora do<br />
Céu, venero Hator, dou graças à minha senhora divi<strong>na</strong>‖ (ARAÚJO, 2000: 306) e,<br />
após, segue-se o pedido, usualmente que trouxesse a pessoa amada para<br />
si.<br />
A importante relação que os egípcios mantinham com a <strong>na</strong>tureza<br />
transpassa os poemas do Papiro de Turim 1996. Neste, cada poema<br />
começa com o nome de uma árvore, cuja fala se direcio<strong>na</strong> ao casal. O<br />
terceiro poema, por exemplo, contado por um sicômoro, explicita como<br />
atrai ―para sua fresca sombra‖ os apaixo<strong>na</strong>dos, tor<strong>na</strong>ndo-se um abrigo para<br />
os casais que buscavam sua proteção para passarem ―um dia feliz‖<br />
(ARAÚJO, 2000: 323).<br />
De todas as fontes que contêm estes poemas, a que se encontra<br />
mais fragmentada é o Óstraco do Cairo. Neste, a maioria dos poemas é<br />
de fala masculi<strong>na</strong>, mas chama a atenção o terceiro poema do primeiro<br />
conjunto – este de fala femini<strong>na</strong> – no qual a mulher se banha com uma<br />
túnica branca e deseja: ―Ó, meu irmão, meu amor, vem, olha para mim!‖<br />
(ARAÚJO, 2000, 325). Percebe-se, em tal poema, a sutil sensualidade da<br />
conquista.<br />
A aflição do amor não correspondido, contudo, também<br />
transparece <strong>na</strong>s linhas dos poemas: ―Ele não sabe o desejo que tenho em tomálo<br />
nos braços, (...), Ó, meu irmão, queria ser dada a ti pela Deusa de Ouro das<br />
265 Hator foi uma das mais importantes deidades do antigo Egito. Existem<br />
traços de seu culto já no Reino Antigo, e este se estendeu durante todo o<br />
período faraônico. Essa deusa é um dos mais complexos membros do panteão<br />
egípcio, pois incorpora diversas características, perso<strong>na</strong>lidades e funções, a<br />
saber, a música, a dança, o amor, a sexualidade, a fertilidade e o <strong>na</strong>scimento,<br />
bem como sua relação protetora com o rei ou como uma divindade funerária,<br />
que auxiliava o morto a ter uma jor<strong>na</strong>da pacifica no além túmulo. O resultado<br />
foi uma multifacetada deusa, cujo culto se tornou especialmente influente<br />
durante o Reino Novo, particularmente para as mulheres (ROBINS, 1995: 99).<br />
170
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mulheres‖ (ARAÚJO, 2000: 305). Consequentemente, o feminino se<br />
resguarda <strong>na</strong> espera de que o ―irmão‖ venha tomá-la como sua senhora:<br />
―Meu olhar voltou-se para a porta do jardim (...). Olhos <strong>na</strong> estrada, ouvidos atentos,<br />
espero por aquele que me despreza‖, mas, às vezes, a notícia por tanto tempo<br />
aguardada não se apresenta como se esperava: ―Ele te enga<strong>na</strong>, em outras<br />
palavras arranjou outra mulher e ela fasci<strong>na</strong> os seus olhos‖ (ARAÚJO, 2000:<br />
319). O que demonstra que, comumente, as mulheres assumiam um<br />
papel de espectadoras de suas vidas, ora esperando que o ―irmão‖<br />
percebesse e correspondesse seus sentimentos ou que os pais<br />
permitissem a sua união com o amado.<br />
Este estudo, acerca dos Poemas de Amor de fala femini<strong>na</strong>,<br />
evidencia sensibilidades passadas, isto é, esse gênero literário permite<br />
compreender as subjetividades daquilo que já foi vivido e sentido em um<br />
outro tempo. Em outras palavras, as múltiplas formas de sensibilidades,<br />
expressas nos Poemas de Amor, revelam como estas mulheres, tão<br />
distantes temporalmente de nós, percebiam e se relacio<strong>na</strong>vam com o<br />
mundo que as rodeava.<br />
Considerações Fi<strong>na</strong>is<br />
A civilização do antigo Egito é conhecida, de maneira geral, por<br />
sua cultura singular, marcada por uma arquitetura grandiosa e pela crença<br />
<strong>na</strong> imortalidade. De fato, as formas culturais que <strong>na</strong>sceram às margens<br />
do Nilo, há cerca de seis mil anos, sempre exerceram um enorme<br />
fascínio sobre a humanidade, sentimento este capaz de resistir aos<br />
séculos, assim, mantendo-se, ainda hoje, como um povo que permanece<br />
envolto em uma aura de mistério e magia (BALTHAZAR, 2009: 12).<br />
A crença egípcia <strong>na</strong> vida após a morte, transmitida por<br />
testemunhos de várias ordens, como os monumentos e a literatura, é<br />
uma das principais características estudadas e conhecidas daquela<br />
sociedade. Sergio Do<strong>na</strong>doni (1994: 217), por exemplo, pontua essa<br />
questão explicando que os traços sobre a vida cotidia<strong>na</strong> dos antigos<br />
egípcios são pouco acessíveis às pesquisas arqueológicas, em especial,<br />
pela localização das cidades em zo<strong>na</strong>s de inundação, o que ocasionou o<br />
seu desaparecimento. As diversas formas de enterramento, contudo,<br />
foram resguardadas pelo clima favorável à preservação no deserto, o que<br />
permitiu a sobrevivência de um grande número de fontes que expressam<br />
171
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
a relação dos antigos egípcios com a morte, como as pirâmides e os<br />
textos funerários, e, consequentemente, acabou tor<strong>na</strong>ndo a morte o<br />
principal objeto de estudo da egiptologia (DONADONI, 1994: 12).<br />
Nessa premissa, a análise dos poemas de amor, com vistas a<br />
perceber as sensibilidades femini<strong>na</strong>s explicitadas nesse gênero literário,<br />
ao contrário da tendência apontada por Do<strong>na</strong>doni, se materializa como<br />
um estudo sobre a visão egípcia acerca da vida. Assim, tentar entender as<br />
sensibilidades, implícitas <strong>na</strong>s entrelinhas dos poemas, é incidir sobre as<br />
formas de valorização e classificação de mundo dos egípcios. Em suma:<br />
(...) as sensibilidades estão presentes <strong>na</strong><br />
formulação imaginária do mundo que os<br />
homens produzem em todos os tempos.<br />
Pensar <strong>na</strong>s sensibilidades, no caso, é não<br />
ape<strong>na</strong>s mergulhar no estudo do indivíduo e da<br />
subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É<br />
também lidar com a vida privada e com todas<br />
as suas nuances e formas de exteriorizar – ou<br />
esconder – os sentimentos (PESAVENTO,<br />
2003: 58).<br />
Portanto, a fala femini<strong>na</strong>, inscrita nos poemas aqui a<strong>na</strong>lisados,<br />
faz com que o fascínio que os egípcios sentiam pela morte se desvaneça<br />
frente à sede de vida implícita nos sentimentos de diferentes mulheres,<br />
que foram resguardados <strong>na</strong>s linhas destes Poemas de Amor. Nesse<br />
sentido, entende-se, com o presente texto, um pouco mais sobre a<br />
relação que as mulheres egípcias mantinham com o amor e a sua<br />
sexualidade. Portanto, as sensibilidades aqui se traduzem como<br />
representações de uma visão de mundo específica: a relação das<br />
mulheres egípcias com a vida, ou melhor, com o seu cotidiano.<br />
Assim, ao invés de termi<strong>na</strong>r este artigo com argumentos<br />
científicos, acredita-se ser mais coerente fi<strong>na</strong>liza-lo com um poema,<br />
retirado do conjunto que integra o Papiro Chester Beatty I, que ressalta a<br />
paixão pela vida, que é desapertada pela companhia do homem amado:<br />
Eu desenhei perto de você para ver seu amor,<br />
172
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Ó, príncipe do meu coração!<br />
Tão doces são as horas com você,<br />
Elas fluem de mim para a eternidade...<br />
Começa quando deito com você.<br />
Na tristeza e <strong>na</strong> alegria,<br />
Você exaltou meu coração (Papyrus Chester Beatty<br />
I, Recto 7,3, LESKO, 1996: 45)<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: A Literatura no Egito Faraônico.<br />
Brasília: UNB, 2000.<br />
ARAÚJO, Luís Manuel de. Mitos e Lendas: Antigo Egipto. Lisboa: Livros e<br />
Livros, 2005.<br />
BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e Mitos do Antigo Egito. Porto Alegre:<br />
EdIPUCRS, 2001.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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1980.<br />
BALTHAZAR, Gregory da Silva. Cleópatra, Poder e Sedução: A Imagem Através<br />
do Tempo. Porto Alegre: FFCH-PUCRS, 2009. (Monografia de Bacharelado)<br />
______. Plutarco e Cleópatra. In: SILVA, Maria Aparecida de Oliveira &<br />
CERQUEIRA, Fábio Vergara. Ensaios sobre Plutarco: Leituras Latino-<br />
America<strong>na</strong>s. Pelotas: Editora da UFPel, 2010.<br />
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade.<br />
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.<br />
COELHO, Liliane Cristi<strong>na</strong>. A Mulher no Reino Médio (c. 2040-1640). In:<br />
BAKOS, Margaret M; MATOS, Júlia S; BALTHAZAR, Gregory S. Diálogos com<br />
o Mundo Faraônico. Rio Grande: Editora da FURG, 2010.<br />
______. Vida Pública e Vida Privada no Egito do Reino Médio (c. 2040-1640 a.C.).<br />
Niterói: UFF, 2009. (Dissertação de Mestrado)<br />
DONADONI, Sergio. O Morto. In: DONADONI, Sergio. O Homem Egípcio.<br />
Lisboa: Editora Presença, 1994, pp. 215-136.<br />
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2008.<br />
LESKO, Barbara. The Remarkable Women of Ancient Egypt. Providence: Scribe,<br />
1996.<br />
NOBLECOURT, Christiane. A Mulher no Tempo dos Faraós. Campi<strong>na</strong>s: Papirus,<br />
1994.<br />
173
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
OLIVEIRA, Haydée. Mãe, Filha, Esposa Irmã: Um Estudo Iconográfico acerca da<br />
condição da Mulher no Antigo Egito Durante a XIX Di<strong>na</strong>stia (1307-1196 a.C.). O Caso<br />
de Deir el-Medi<strong>na</strong>. Niterói: UFF, 2005. (Tese de Doutorado).<br />
ROBINS, Gay. Reflections of Woman in the New Kindom: Ancient Egyptian Art<br />
from the British Museum. Van Siclen Books: San Antonio, 1995.<br />
______. Women in Ancient Egypt. Cambridge: Harvard University Press, 1996.<br />
PESAVENTO, Sandra J. Sensibilidades: Escrita e Leitura da Alma<br />
PESAVENTO, Sandra Jatahy e LANGUE, Frédérique. Sensibilidades <strong>na</strong> História:<br />
Memórias, Singulares e Identidades Sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS,<br />
2007.<br />
SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e<br />
Realidade, Porto Alegre, nº 16, vº 2, jul/dez, 1990, pp. 5-22.<br />
WATTERSOM, Bárbara. Women in Ancient Egypt. London: Wrens Park, 1998.<br />
WIEDEMANN, Amanda B. A Questão do Gênero <strong>na</strong> Literatura Egípcia do IIº<br />
Milênio a.C.. Niterói: UFF, 2007. (Tese de Doutorado).<br />
174
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MULHER E RELIGIÃO: O MITO DE LILITH 266<br />
Prof.ª Dr.ª Jane Bichmacher de Glasman 267<br />
Introdução: Literatura Hebraica e Misticismo<br />
―De uma forma sintética, pode-se dizer que o<br />
pensamento judaico tem se caracterizado, através<br />
de sua longa história, por duas tendências<br />
principais, complementares uma da outra. A mais<br />
preponderante tem sido sem dúvida, a do<br />
racio<strong>na</strong>lismo - representada pela maior parte do<br />
Talmud e pela vasta literatura de comentários<br />
escrita em torno dela desde o século VI. A outra é<br />
a do misticismo, sistematizada em várias obras<br />
coletivamente chamadas de Cabalá. É falso,<br />
porém, presumir que o Talmud não é, também,<br />
mesclado de misticismo e obscuridade, ou que a<br />
Cabalá seja inteiramente divorciada da razão,<br />
oposta ao conhecimento. A diferença entre as duas<br />
correntes reside, principalmente, <strong>na</strong> ênfase dada à<br />
lógica e à mágica‖. (GLASMAN, 1998)<br />
A magia sempre fez parte do universo cultural e literário judaico.<br />
Desde os relatos bíblicos, encontramos mitos e lendas que,<br />
alegoricamente, compõem um acervo da ordem do fantástico. Anjos,<br />
milagres, seres fantásticos e eventos desafiando as leis <strong>na</strong>turais fazem<br />
parte deste imaginário, que gerou incontáveis interpretações e releituras.<br />
Um corpus de lendas, mitos e superstições trouxe para a tradição judaica<br />
266 Texto apresentado no I Congresso Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de Religião, Mito e Magia<br />
no Mundo Antigo e IX Fórum de Debates em História Antiga, NEA -UERJ,<br />
em 9 de novembro de 2010.<br />
267 Jane Bichmacher de Glasman é Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e<br />
Cultura Judaica (USP), Professora Adjunta do Departamento de Letras Clássicas<br />
e Orientais da UERJ; fundou e coordenou o Setor de Hebraico da UERJ;<br />
fundou e dirigiu o Programa de Estudos Judaicos UERJ; Professora e<br />
Coorde<strong>na</strong>dora do Setor de Hebraico UFRJ (aposentada); escritora.<br />
janeglasman@terra.com.br ou janebg@hotmail.com<br />
175
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
perso<strong>na</strong>gens como o Golem, Lilith e Dibuk, através do misticismo judaico,<br />
protagonizando a literatura da Cabalá.<br />
Lilith, o <strong>na</strong>scimento de um mito<br />
Há 4.000 anos Lilith tem vagado pela terra, figurando <strong>na</strong>s<br />
imagi<strong>na</strong>ções míticas de escritores, artistas e poetas. Ela é, sem dúvida,<br />
uma perso<strong>na</strong>gem bastante controversa, que traz em si o conflito e o<br />
paradoxo que constituiu a visão do feminino <strong>na</strong> história huma<strong>na</strong>.<br />
Lilith é uma figura mitológica cujas origens se perdem em priscas eras.<br />
Os relatos de sua biografia são contraditórios, depois de milênios de<br />
misturas entre crenças de vários povos. O sincretismo mais conhecido é<br />
a combi<strong>na</strong>ção entre lendas mesopotâmicas e israelitas.<br />
Suas origens remontam à demonologia babilônica, onde amuletos e<br />
encantamentos eram usados contra os poderes sinistros deste espírito<br />
alado que vitimava mulheres grávidas e crianças. Na Suméria, a raiz Lil,<br />
que significa vento, aparece, por exemplo, no nome de Enlil (deus<br />
sumério do Ar, senhor das tempestades, do raio e do trovão). Existe um<br />
parentesco também entre Lilith e as palavras sumérias lulti (lascívia) e lulu<br />
(liberti<strong>na</strong>gem) e de palavras sumeria<strong>na</strong>s para demônios femininos ou<br />
espíritos de vento: lilītu e ardat lilǐ. 268 Na etimologia hebraica, Lilith תיליל<br />
deriva de Layl ליל que significa noite.<br />
A mais antiga menção do nome Lilith aparece em Gilgamesh e a<br />
árvore Hulupu, um poema épico sumeriano encontrado numa tábua em<br />
Ur e datando de aproximadamente 2000 a. C. O poderoso gover<strong>na</strong>nte<br />
Gilgamesh é o primeiro herói literário do mundo. Ele foi um dos reis<br />
sumérios que gover<strong>na</strong>ram após o dilúvio histórico. Segundo o mito, era<br />
2/3 deus e 1/3 humano, e autor de feitos sobre-humanos, tendo se<br />
livrado de armadilhas colocadas por eventos fantásticos e divinos;<br />
intrepidamente matava monstros e procurava em vão o segredo da vida<br />
eter<strong>na</strong>.<br />
268 Lilītu habita em desertos e espaços abertos e é especialmente perigosa para<br />
mulheres grávidas e crianças. Seus peitos são cheios de veneno, não leite. Ardat<br />
lilī é uma fêmea sexualmente frustrada e estéril que se comporta agressivamente<br />
com homens jovens.<br />
176
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Num episódio, "depois que céu e terra tinham se separado e<br />
homem tinha sido criado," Gilgamesh corre para ajudar I<strong>na</strong><strong>na</strong>, deusa do<br />
amor, do erotismo e da fertilidade entre os antigos sumérios. Em seu<br />
jardim às margens do Rio Eufrates, I<strong>na</strong><strong>na</strong> amorosamente cuida de uma<br />
árvore hulupu (identificada como<br />
um salgueiro), de cuja madeira<br />
ela espera moldar um trono e<br />
uma cama para si. Os planos de<br />
I<strong>na</strong><strong>na</strong> quase são frustrados, no<br />
entanto, quando um vil<br />
triunvirato se apodera da árvore.<br />
Um dos vilões é Lilith:<br />
―Então uma serpente (dragão)<br />
que não podia ser encantada<br />
Fez seu ninho <strong>na</strong>s raízes da<br />
árvore huluppu.<br />
177<br />
O pássaro Zu (Anzu) pôs seus filhotes<br />
nos galhos da árvore.E a donzela negra<br />
Lilith construiu sua casa no tronco. ‖ 269<br />
Usando armadura pesada, o bravo Gilgamesh mata a serpente,<br />
fazendo o Pássaro Zu voar para as montanhas e Lilith horrorizada fugir<br />
"para o deserto".<br />
Originária da mesma época do épico de Gilgamesh é uma placa<br />
de terracota, conhecida como o Relevo Burney, identificada como a<br />
primeira representação pictórica conhecida de Lilith 270, o que tem sido<br />
alvo de críticas por parte da comunidade acadêmica.<br />
Neste baixo-relevo em terracota, sumério ou assírio, datado de cerca de<br />
1950 a.C., a mulher-pássaro nua segura dois pares do ―círculo mágico‖ e da<br />
―arma santa‖ (a vara ou cetro de madeira de cedro), ambos empregados<br />
269 Traduzi de Kramer, 1938.<br />
270 Samuel Kramer identificou Lilith no Relevo Burney, peça da coleção<br />
particular do coronel Norman Corville
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
em cerimônias religiosas. Na iconografia babilônica os deuses podem<br />
presentear humanos (reis e sacerdotes) com estes dois objetos, que são<br />
representados em afrescos coloridos por cores diferentes. Porém, ao que<br />
parece, esta mulher-pássaro estaria utilizando sua magia para subjugar<br />
feras. Além disso, sabemos que ela é uma deusa, pois ostenta um chapéu<br />
triangular escalo<strong>na</strong>do (mitra), ador<strong>na</strong>do com enfeites laterais e um disco<br />
solar no topo 271.<br />
O que sabemos é que a entidade femini<strong>na</strong> representada no<br />
Relevo Burney é a mesma retratada em uma placa do antigo período<br />
babilônico, que integra atualmente o acervo do Louvre 272. Em ambos os<br />
casos esta jovem mulher com asas e pés de pássaro é o elemento central<br />
de um complexo tema heráldico, esculpida de pé sobre um par de leões e<br />
entre duas corujas, aparentemente curvando-os à sua vontade. A<br />
associação de Lilith com a coruja -um pássaro predatório e noturno-<br />
evidencia uma conexão com vôo e terrores noturnos.<br />
O problema em identificar esta mulher-pássaro com Lilith está<br />
nos objetos que ela porta. Este tipo de chapéu é de uso exclusivo de<br />
divindades, o que significa que os escultores que a moldaram não lhe<br />
deram o tratamento de uma simples huma<strong>na</strong> nem tampouco de um<br />
demônio que se desejasse exorcizar. Afi<strong>na</strong>l, por que alguém esculpiria<br />
uma demônia portando mitra, varinha e báculo? Por que or<strong>na</strong>ria tal ser<br />
com colares e braceletes dignos da realeza? Por que lhe conceder a<br />
coragem de um rei, domi<strong>na</strong>dor de leões? A resposta é simples: Quando<br />
essas peças foram moldadas ela ainda era retratada como deusa; teria<br />
sido transformada em demônio em época posterior, como muitos deuses<br />
de povos vencidos.<br />
Em primitivos encantamentos contra Lilith, ela voa com asas de<br />
demônio, um modo convencio<strong>na</strong>l de transporte para residentes do<br />
submundo.<br />
Datando do oitavo ou sétimo século a.C. há uma placa de<br />
parede de pedra calcária, descoberta em Arslan Tash (que significa ―leão de<br />
271 Assim figura, por exemplo, no topo da Estela de Hamurábi (séc. XVIII a.C.)<br />
e num tablete representando a reedificação de um templo de (Sippar, séc. IX<br />
a.C. British Museum), onde o deus sol Shamash porta os objetos de poder.<br />
272 Mais recentemente, acadêmicos identificaram a figura como I<strong>na</strong><strong>na</strong>.<br />
178
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
pedra‖ em turco), <strong>na</strong> Síria, em 1933, que contém uma menção horrível de<br />
Lilith. A placa provavelmente foi pendurada <strong>na</strong> casa de uma mulher<br />
grávida e servia como um amuleto contra Lilith, que se acreditava estar<br />
espreitando <strong>na</strong> porta e figurativamente bloqueando a luz.<br />
Presumivelmente, se Lilith visse seu nome escrito <strong>na</strong> placa, ela temeria<br />
ser reconhecida e partiria. A placa assim oferecia proteção contra más<br />
intenções de Lilith para com uma mãe ou criança.<br />
Em situações críticas <strong>na</strong> vida da mulher- me<strong>na</strong>rca, casamento,<br />
perda da virgindade ou parto - povos antigos achavam que forças<br />
sobre<strong>na</strong>turais estavam em ação. Para explicar o alto índice de<br />
mortalidade infantil, por exemplo, uma demônia foi creditada como<br />
responsável. As histórias de Lilith e amuletos provavelmente ajudaram<br />
gerações a enfrentar seu temor.<br />
Com o tempo, pessoas por todo o Oriente Próximo tor<strong>na</strong>ram-se<br />
crescentemente familiares com o mito de Lilith, que migrou para o<br />
mundo dos antigos hititas, egípcios, israelitas e gregos. Fez uma<br />
aparência solitária <strong>na</strong> Bíblia.<br />
No texto bíblico<br />
Na Bíblia, ela é mencio<strong>na</strong>da só uma vez, em Isaias 34. O Livro<br />
de Isaias é um compêndio de profecia hebraica através de muitos anos;<br />
os primeiros 39 capítulos do livro, referidos frequentemente como<br />
Primeiro Isaias, podem ser desig<strong>na</strong>dos ao tempo quando o profeta viveu<br />
(aproximadamente 742–701 a.C.). Por todo o livro, ele encoraja os<br />
judeus a evitar embaraços com estrangeiros que adoram divindades<br />
alheias. No Capítulo 34, um Yahweh empunhando espada busca<br />
vingança contra os infiéis edomitas, forasteiros perenes e inimigos dos<br />
israelitas antigos. De acordo com este poema apocalíptico poderoso,<br />
Edom tor<strong>na</strong>r-se-á uma terra caótica e deserta onde o solo é estéril e<br />
animais selvagens vagam:<br />
םָשׁ-ךְַא<br />
; א ָרְקִי וּהֵע ֵר -לַע<br />
ריִעָשְו , םיִיִא -תֶא<br />
םיִיִצ וּשְׁגָפוּ<br />
ַחוֹנָמ הָּל האְָצָמוּ ,תיִליִל הָעיִג ְרִה<br />
"E as feras do deserto se encontrarão com hie<strong>na</strong>s<br />
(raposas/chacais); e o sátiro (bode/demônio) clamará<br />
ao seu companheiro; e Lilith descansará ali, e achará<br />
pouso para si." (Isaias 34: 14).<br />
179
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Lilith demônio era aparentemente tão conhecida do público de<br />
Isaias que não era necessária nenhuma explicação sobre sua identidade.<br />
A passagem carece de detalhes ao descrever Lilith, mas a situa em lugares<br />
desolados. O verso bíblico liga assim Lilith ao demônio do épico<br />
Gilgamesh que foge "para o deserto". O descampado tradicio<strong>na</strong>lmente<br />
simboliza aridez mental e física; é um lugar onde a criatividade e a vida<br />
em si facilmente são extintas. Lilith é banida de território fértil e exilada<br />
para deserto estéril.<br />
Aos tradutores ingleses do versículo às vezes carece confiança<br />
no conhecimento dos seus leitores de demonologia babilônica. Talvez<br />
dada a sua longa associação à noite, a Versão King James, tradução<br />
inglesa da bíblia, traduz lilith como "o pio da coruja", lembrando as<br />
qualidades de pássaro sinistro da demônia babilônica. A Versão Normal<br />
Revisada escolhe seus hábitos noturnos e a etiqueta como "a bruxa de<br />
noite" em vez de lilith, enquanto que as Escrituras Sagradas da Sociedade<br />
Judaica de Publicação de 1917 a chamam de ―monstro da noite.‖ O texto<br />
hebraico e suas melhores traduções empregam a palavra lilith <strong>na</strong><br />
passagem de Isaias, mas outras versões são fiéis à sua antiga imagem<br />
como um pássaro, criatura da noite e bruxa 273.<br />
Manuscritos do Mar Morto<br />
Apesar de Lilith não ser mencio<strong>na</strong>da outra vez <strong>na</strong> Bíblia, ela<br />
reaparece nos Manuscritos do Mar Morto. A seita de Qumran absorveu<br />
demonologia, e Lilith aparece <strong>na</strong> Canção para um Sábio, um hino usado<br />
em exorcismos:<br />
273 É preciso salientar, comparativamente, que <strong>na</strong> versão em língua portuguesa<br />
da Bíblia de João Ferreira de Almeida, esta passagem relata que ―os animais<br />
noturnos ali pousarão‖, não havendo menção da coruja, como é freqüente<br />
embora erroneamente citado no Brasil (tratando-se de um exemplo da forte<br />
influência da cultura anglo saxã no mundo lusófono).<br />
As traduções também diferem para se'ir: é bode, demônio ou sátiro?<br />
Provavelmente o significado de se'ir tem sido determi<strong>na</strong>do pelo de lilith. Se lilith<br />
é uma demônia, então se'ir é uma espécie de demônio; se lilith é um animal<br />
indetermi<strong>na</strong>do, se'ir é um bode. A tradição judaica aponta <strong>na</strong> direção da criatura<br />
mitológica.<br />
180
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
―E Eu, o Sábio, proclamo a majestade de seu<br />
esplendor a fim de assustar e aterrorizar todos os<br />
espíritos dos anjos da destruição e os espíritos<br />
bastardos, demônios, Liliths, corujas e chacais... e<br />
os que atacam inesperadamente para<br />
desencaminhar o espírito de entendimento‖<br />
(11QPsAp 274 )<br />
A comunidade de Qumran era familiar da passagem de Isaias, e<br />
a caracterização incompleta de Lilith ecoa por este Manuscrito do Mar<br />
Morto litúrgico. O contexto deixa claro que vê o versículo bíblico<br />
referindo-se ao demoníaco mais do que a animais do deserto. Outro<br />
ponto a destacar é que aqui temos lilith no plural, ao contrário de Isaias,<br />
no singular. Provavelmente não é ape<strong>na</strong>s uma licença poética, pois a<br />
tradição diz que Lilith teria filhos chamados de Lilim, sendo que este<br />
termo aparece no Targum Yerushalami 275, ao comentar a bênção sacerdotal<br />
de Números 6: 26 com esta versão: "O Senhor te abençoe em todo ato teu e te<br />
proteja dos Lilim!"<br />
Lilith no Talmud<br />
Séculos depois que os Manuscritos do Mar Morto foram<br />
escritos, rabinos eruditos completaram o Talmud Babilônico (redação<br />
fi<strong>na</strong>l ao redor de 500 a 600 d.C.), e demônios femininos transitaram por<br />
investigações acadêmicas judaicas. O Talmud (o nome vem da raiz<br />
274 4 QCânticos do Instrutor/ 4QShir — 4Q510 frag. 11.4-6a // frag. 10.1f<br />
275 Um Targum aramaico é qualquer uma das traduções, mais ou menos literal,<br />
de porções do Antigo Testamento utilizado em si<strong>na</strong>gogas da Palesti<strong>na</strong> e da<br />
Babilônia. Quando, após o cativeiro da Babilônia no século VI a.C., o aramaico<br />
substituiu o hebraico como língua falada em geral, tornou-se necessário explicar<br />
o significado de leituras das Escrituras. Ape<strong>na</strong>s uma peque<strong>na</strong> parcela dos muitos<br />
Targumim orais que foram produzidos sobreviveu. O Targum Yerushalmi é<br />
também chamado de Fragmentário porque o de todo o Pentateuco não foi<br />
preservado, somente porções do mesmo em inúmeras passagens,<br />
frequentemente ape<strong>na</strong>s de versos individuais ou de partes. Estes fragmentos<br />
foram impressas <strong>na</strong> primeira Bíblia Rabínica de 1517.<br />
181
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
hebraica que significa "estudo") é um compêndio de discussões legais,<br />
contos rabínicos e comentários sobre passagens bíblicas.<br />
As referências talmúdicas a Lilith são poucas, mas fornecem um<br />
vislumbre do que intelectuais pensavam sobre ela. A Lilith do Talmud<br />
lembra imagens babilônicas mais antigas, por ela ter "cabelo longo" (Eruvin<br />
100b) e ―asas‖ (Nidah 24b). Também reforça impressões mais antigas<br />
dela como um súcubo, um demônio em forma femini<strong>na</strong> que fazia sexo<br />
com homens enquanto eles dormiam. Práticas sexuais nocivas são<br />
ligadas a Lilith quando ela poderosamente incorpora o mito de demônioamante.<br />
Durante o período de 130 anos entre a morte de Abel e o<br />
<strong>na</strong>scimento de Seth, o Talmud informa, Adão transtor<strong>na</strong>do separa-se de<br />
Eva. Durante este tempo ele tor<strong>na</strong>-se o pai de "fantasmas e demônios<br />
masculinos e femininos [ou demônios da noite]‖ (Eruvin 18b).<br />
E os que tentaram construir a Torre de Babel transformaram-se<br />
em "macacos, espíritos, demônios e demônios da noite‖ (Sanhedrin 109a). O<br />
demônio feminino da noite é Lilith.<br />
Vasos de encantamento<br />
Ao tempo que o Talmud foi completado, pessoas que viviam <strong>na</strong><br />
colônia judaica de Nipur, Babilônia, também souberam de Lilith. Sua<br />
imagem foi desenterrada em numerosos pratos de cerâmicas conhecidos<br />
como vasos de encantamento pelas inscrições aramaicas de feitiços neles.<br />
Se o Talmud demonstra o que acadêmicos pensavam sobre Lilith, os<br />
vasos de encantamento, de cerca de 600 d.C., mostram em que pessoas<br />
comuns acreditavam.<br />
Por vezes, Lilith atacava mesmo os homens casados e, para combatê-la,<br />
os judeus desenvolveram rituais elaborados para bani-la de suas casas. O<br />
"exorcismo" de Lilith e de quaisquer espíritos que a acompanhavam muitas<br />
vezes tomava a forma de um mandado de divórcio, expulsando-os nus,<br />
noite adentro, como o prato 276 que é um amuleto persa com Lilith no<br />
centro, circundada por um texto profilático em aramaico.<br />
A inscrição é para oferecer a uma mulher chamada Rashnoi<br />
proteção de Lilith. De acordo com folclore popular, demônios não só<br />
276 Em exposição no Museu Semítico da Universidade de Harvard.<br />
182
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
matavam crianças huma<strong>na</strong>s, eles também produziam prole depravada<br />
unindo-se a seres humanos e copulando de noite. Neste vaso em<br />
particular, uma ordem judaica de divórcio expulsa os demônios da casa<br />
de Rashnoi.<br />
Lilith no Alfabeto de Ben Sira<br />
Até o século VII EC, Lilith era conhecida como uma perigosa<br />
encar<strong>na</strong>ção de obscuros poderes femininos. Na Idade Média, no entanto,<br />
ela recebeu características novas e mais sinistras. Entre os séculos VIII e<br />
X d.C., o Alfabeto de Ben Sira 277 foi introduzido no mundo judaico<br />
medieval, embora alguns pesquisadores sustentem que a história possa<br />
ser mais antiga. É um texto anônimo, com 22 episódios, correspondendo<br />
às 22 letras do alfabeto hebraico. Até certo ponto, o Alfabeto de Ben<br />
Sira mostra uma Lilith familiar: é destrutiva, pode voar e tem atração por<br />
sexo. Mas o quinto episódio inclui uma Lilith que iria atormentar o povo<br />
por gerações, ao acrescentar ao enredo: é a primeira esposa do Adão,<br />
antes de Eva, que audaciosamente deixa o Éden porque é tratada como<br />
inferior ao homem.<br />
A <strong>na</strong>rrativa do Alfabeto sobre Lilith é moldada dentro de um<br />
conto sobre o Rei Nabucodonosor da Babilônia. O jovem filho do rei<br />
está doente, e ele orde<strong>na</strong> a um cortesão chamado Ben Sira a curar o<br />
rapaz. Invocando o nome de Deus, Ben Sira grava um amuleto com os<br />
nomes de três anjos curadores. Então relata uma estória de como estes<br />
anjos viajam ao redor do mundo para subjugar espíritos do mal, como<br />
Lilith, que causam doença e morte. Ben Sira cita a passagem da Bíblia<br />
onde depois de criar Adão, Deus percebe que não é bom para o homem<br />
estar só (Gênesis 2: 18).<br />
277 Ben Sira: Texto grego dos apócrifos baseado num origi<strong>na</strong>l hebraico,<br />
considerado parte do cânon das escrituras por algumas denomi<strong>na</strong>ções cristãs. É<br />
uma coleção de provérbios e máximas, como os da Literatura bíblica de<br />
Sabedoria. O autor revela uma tendência marcante para as idéias religiosas dos<br />
fariseus, enfatizando a grandeza de Israel e a fruição dos prazeres deste mundo<br />
dentro dos limites proscritos. Um tesouro em manuscritos foi descoberto numa<br />
guenizá do Cairo, depois que um erudito inglês, Solomon Shechter, teve acesso a<br />
uma pági<strong>na</strong> de um origi<strong>na</strong>l hebraico de Ben Sira proveniente de lá. Entre os<br />
manuscritos que ele recuperou estava uma grande parte do origi<strong>na</strong>l.<br />
183
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Nas adições fantásticas de Ben Sira ao conto bíblico, Deus<br />
forma outra pessoa da terra, uma fêmea chamada Lilith. Logo o casal<br />
humano começa a discutir, mas nenhum realmente ouve o outro. Lilith<br />
se recusa a deitar embaixo de Adão durante o sexo, mas ele insiste que<br />
este é seu lugar. Ele aparentemente acredita que Lilith deve executar<br />
deveres de esposa submissa. Lilith, por outro lado, não tenta domi<strong>na</strong>r<br />
ninguém; simplesmente afirma sua liberdade pessoal e declara: "somos<br />
iguais porque ambos fomos criados da terra".<br />
A validade do argumento de Lilith é mais aparente em hebraico,<br />
pois as palavras para homem (Adão) e terra vêm da mesma raiz, adm<br />
(Adam = Adão; adamah = terra). Como Lilith e Adão são formados da<br />
mesma substância, eles são semelhantes em importância.A luta continua<br />
até que Lilith tor<strong>na</strong>-se tão frustrada com a obsti<strong>na</strong>ção e a arrogância de<br />
Adão que audaciosamente pronuncia o Tetragrama, o nome inefável do<br />
Senhor. O nome de Deus YHWH, traduzido como "Senhor Deus" <strong>na</strong><br />
maioria das Bíblias e aproximadamente equivalente ao termo Yahweh, por<br />
muito tempo tem sido considerado tão sagrado que é inexprimível.<br />
Durante os dias do Templo de Jerusalém, só o Sumo Sacerdote dizia a<br />
palavra em voz alta e só uma vez por ano, no Dia da Expiação. Em<br />
teologia e prática judaica, há ainda mistério e majestade ligados ao nome<br />
especial de Deus. O Tetragrama é considerado "o nome que abrange o todo"<br />
(Zohar 19a). No episódio bíblico da sarça ardente em Êxodo 3, Deus<br />
explica o significado do nome divino como "sou o que sou" ou "serei o que<br />
serei" um tipo de fórmula para YHWH, associado com a raiz hebraica de<br />
"ser". O total da Torá considera-se ser contido dentro do nome sagrado.<br />
No Alfabeto, Lilith peca por insolentemente proferir as letras<br />
sagradas, demonstrando assim a uma audiência medieval ser indig<strong>na</strong> de<br />
residir no Paraíso. Então Lilith alça vôo e vai-se, tendo obtido poder<br />
para tal ao pronunciar o nome de Deus.<br />
Sua partida dramática restabelece para uma nova geração uma<br />
Lilith de caráter sobre<strong>na</strong>tural como um demônio alado.<br />
Na epopeia de Gilgamesh e no episódio de Isaias, Lilith foge<br />
para espaços desertos. No Alfabeto de Ben Sira seu destino é o Mar<br />
vermelho, local de importância histórica e simbólica para o povo judeu.<br />
Assim como os israelitas alcançaram a liberdade do Faraó aí, Lilith ganha<br />
184
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
independência de Adão indo para lá. Mas mesmo sendo quem parte, é<br />
ela que se sente rejeitada e zangada.<br />
Deus conta a Adão que se Lilith não retor<strong>na</strong>r, 100 de seus filhos<br />
devem morrer a cada dia. Aparentemente, Lilith não é ape<strong>na</strong>s uma<br />
feiticeira assassi<strong>na</strong> de crianças, mas também uma mãe incrivelmente<br />
fértil, ajudando assim a manter o equilíbrio do mundo entre bem e mal.<br />
Três anjos são enviados à procura de Lilith. Quando eles a<br />
encontram no Mar Vermelho, ela se recusa a retor<strong>na</strong>r ao Éden,<br />
reivindicando que foi criada para ferir crianças. A história de Ben Sira<br />
sugere que Lilith é compelida a matar bebês em retaliação ao mau<br />
tratamento de Adão e à insistência de Deus em matar 100 de sua prole<br />
diariamente.<br />
Para que os anjos não a afoguem no mar, Lilith jura em nome de<br />
Deus que não prejudicará qualquer criança que usar um amuleto<br />
portando seu nome. Ironicamente, forjando um acordo com Deus e os<br />
anjos, Lilith demonstra que não é totalmente separada do divino.<br />
Para GAINES (2009), o conflito de Lilith com Adão é o da<br />
autoridade patriarcal contra o desejo matriarcal de emancipação, sem<br />
reconciliar. Eles representam a batalha arquetípica dos sexos. Nenhum<br />
dos dois tenta resolver a disputa ou alcançar alguma espécie de<br />
compromisso onde alternem estar no topo (literal e figurativamente). O<br />
homem não consegue lidar com o desejo da mulher por liberdade e a<br />
mulher não se contentará com <strong>na</strong>da menos. No fim, ambos perdem.<br />
O que compeliu o autor a teorizar que Adão teve uma<br />
companheira antes de Eva? A resposta pode ser encontrada nos dois<br />
relatos bíblicos da Criação.<br />
Em Gênesis 1, os seres vivos aparecem numa ordem específica;<br />
plantas, animais e fi<strong>na</strong>lmente homem e mulher são feitos<br />
simultaneamente no sexto dia: "Macho e fêmea Ele os criou" (Gênesis 1:27).<br />
Nesta versão, homem e mulher são criados juntos e parecem ser<br />
semelhantes. Em Gênesis 2, no entanto, homem é criado primeiramente,<br />
seguido por plantas, animais e fi<strong>na</strong>lmente a mulher. Vem por último<br />
porque dentre os animais que Deus tinha criado, "nenhuma ajuda adequada<br />
foi achada" (Gênesis 2: 20). Deus então lança um sono profundo sobre<br />
Adão, formando a mulher de uma costela sua. Deus apresenta a mulher a<br />
Adão, que a aprova e a nomeia Eva. Uma interpretação tradicio<strong>na</strong>l desta<br />
185
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
segunda história de Criação 278 é que essa mulher foi feita para agradar o<br />
homem e ser inferior a ele. Considerando que cada palavra da Bíblia é<br />
exata e sagrada, comentaristas necessitavam que um midrash ou história<br />
explicasse a disparidade <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas da Criação de Gênesis 1 e 2. Deus<br />
cria a mulher duas vezes - uma vez com homem, outra vez da costela do<br />
homem - então devem ter sido duas mulheres. A Bíblia nomeia a<br />
segunda mulher de Eva; Lilith foi identificada como a primeira para<br />
completar a história.<br />
Outra teoria plausível sobre a criação desta história de Lilith, no<br />
entanto, é que o conto de Ben Sira é uma peça deliberadamente satírica<br />
que zomba, ridiculariza a Bíblia, o Talmud e outras exegeses rabínicas.<br />
De fato, a linguagem do Alfabeto é freqüentemente grosseira e seu tom<br />
irreverente, expondo as hipocrisias de heróis bíblicos como Jeremias e<br />
oferecendo discussões de questões vulgares como masturbação,<br />
flatulência e cópula por animais. Neste contexto, a história de Lilith<br />
talvez tenha sido uma paródia que nunca representou o verdadeiro<br />
pensamento rabínico. Pode ter servido como divertimento lascivo para<br />
estudantes e o público, mas era em parte desconhecido por acadêmicos<br />
sérios da época.<br />
Embora leitores medievais possam ter rido da linguagem<br />
obsce<strong>na</strong> da história, no fim, o desejo de Lilith por liberação é oposto ao<br />
determi<strong>na</strong>do pela sociedade macho-domi<strong>na</strong>da. Por esta razão, de todos<br />
os mitos de Lilith, sua descrição no Alfabeto de Ben Sira é hoje a mais<br />
alardeada, apesar da possibilidade de que seu autor ludibriasse textos<br />
sagrados.<br />
Lilith <strong>na</strong> Cabalá: Zohar<br />
O próximo marco <strong>na</strong> jor<strong>na</strong>da de Lilith está no Zohar, que<br />
elabora o conto anterior ao <strong>na</strong>scimento de Lilith no Éden.<br />
O Zohar (que quer dizer "Esplendor") é o título hebraico de um<br />
tomo fundamental cabalístico, compilado <strong>na</strong> Espanha por Moisés de<br />
Leon (1250–1305), usando fontes anteriores. Aos cabalistas (membros<br />
da escola medieval de pensamento místico), as interpretações místicas e<br />
alegóricas da Torá do Zohar são consideradas sagradas. A Lilith do Zohar<br />
278 Acadêmicos a identificam como a mais antiga das duas <strong>na</strong>rrativas.<br />
186
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
depende de uma releitura de Gênesis 1: 27 ("E Deus criou homem à Sua<br />
imagem, à imagem de Deus Ele criou-o; macho e fêmea Ele os criou"), e a<br />
interpretação desta passagem no Talmud. Baseado <strong>na</strong> mudança de<br />
pronomes de "criou-o" ao plural "criou-os," em Gênesis 1: 27, o Talmud<br />
sugere que o primeiro ser humano era uma única criatura de andrógi<strong>na</strong>,<br />
com duas distintas metades: "A princípio era a intenção que dois [macho e<br />
fêmea] deviam ser criados, mas fi<strong>na</strong>lmente só um foi criado" (Eruvin 18a).<br />
Séculos mais tarde o Zohar elabora que macho e fêmea logo foram<br />
separados. A porção femini<strong>na</strong> do ser humano era unida no lado, então<br />
Deus colocou Adão num sono fundo e "serrou-a fora dele e adornou-a como<br />
uma noiva e a trouxe para ele". Esta porção desprendida é "a Lilith origi<strong>na</strong>l,<br />
que esteve com ele [Adão] e que concebeu dele" (Zohar 34b). Outra passagem<br />
indica que logo que Eva é criada e Lilith vê sua rival unir-se a Adão,<br />
Lilith vai-se embora.<br />
O Zohar, como os tratamentos anteriores de Lilith, a vê como<br />
uma sedutora de homens inocentes, criadora de espíritos do mal e<br />
portadora de doença: "Vagueia à noite, atormentando os filhos de homens e<br />
causando-os a se poluir [emitir semente]" (Zohar 19b). A passagem vai além<br />
dizendo que ela paira sobre suas vítimas sem desconfiança, inspira sua<br />
luxúria, concebe suas crianças e então as infecta com doença. Adão é<br />
uma de suas vítimas, pois ele serve como pai de "muitos espíritos e demônios,<br />
pela força da impureza que ele tinha absorvido" de Lilith.<br />
Em vários pontos, o Zohar escapa da apresentação tradicio<strong>na</strong>l<br />
da perso<strong>na</strong>lidade divi<strong>na</strong> como exclusivamente masculi<strong>na</strong> e discute um<br />
lado feminino de Deus, chamado Shekhiná 279. No Zohar, a luxúria que<br />
Lilith instiga em homens envia a Shekhiná ao exilo. Se a Shekhiná é a mãe<br />
de Israel, então Lilith é a mãe da apostasia de Israel.<br />
A inovação fi<strong>na</strong>l do Zohar concernente ao mito de Lilith é a<br />
associação dela com a personificação masculi<strong>na</strong> do mal, chamada Samael<br />
ou Asmodeus. É associado com Satã, a serpente e o líder dos anjos<br />
caídos. Lilith e Samael formam uma aliança ímpia (Zohar 23b, 55a) e<br />
incorporam a obscura esfera negativa do depravado.<br />
279 A Shekhiná, cujo nome significa "a Presença Divi<strong>na</strong>" em hebraico, também<br />
aparece no Talmud.<br />
187
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Tendo Lilith aparecido no Zohar e em muitas lendas populares<br />
anônimas por toda a Europa, através dos séculos ela atraiu a atenção de<br />
alguns dos artistas e escritores mais conhecidos da Europa 280.<br />
Nos dois últimos séculos a imagem de Lilith começou a passar<br />
por uma notável transformação em certos círculos intelectuais seculares<br />
europeus, por exemplo, <strong>na</strong> literatura e <strong>na</strong>s artes, quando os românticos<br />
passaram a se ater mais a imagem sensual e sedutora de Lilith, e aos seus<br />
atributos considerados impossíveis de serem obtidos, em um contraste<br />
radical à sua tradicio<strong>na</strong>l imagem demoníaca, notur<strong>na</strong>, devoradora de<br />
crianças, causadora pragas, depravação, homossexualidade e vampirismo.<br />
Podemos citar os nomes de Goethe, John Keats, Robert Browning,<br />
Dante Gabriel Rossetti, John Collier, etc.<br />
Michelangelo<br />
280 Johann Goethe da Alemanha (1749–1832) refere-se a Lilith em Fausto, e o<br />
poeta vitoriano inglês Robert Browning (1812–1889) escreveu "Adão, Lilith e<br />
Eva", outro testamento ao poder duradouro da demônio. O poeta e pintor<br />
Dante Gabriel Rossetti (1828–1882) imagi<strong>na</strong>tivamente descreve um pacto entre<br />
Lilith e a serpente da Bíblia. Uma Lilith conspiradora e malévola convence seu<br />
amante anterior, a cobra, a emprestar-lhe uma forma de réptil. Disfarçada como<br />
uma cobra Lilith retor<strong>na</strong> ao Éden, convence Eva e Adão a pecar comendo a<br />
fruta proibida, e causa grande tristeza a Deus.<br />
188
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Conclusão<br />
A figura mítica de Lilith ilustra bem a passagem, quando a<br />
Grande Deusa é vilipendiada do seu trono e metamorfoseada em<br />
consorte do demônio e símbolo do mal; em que a noite escura com seus<br />
mistérios passa a ser temida e não mais celebrada.<br />
As peregri<strong>na</strong>ções de Lilith continuam hoje. Esta criatura alada da<br />
noite é, com efeito, a única mulher demônio "sobrevivente" do império<br />
babilônico, pois ela é re<strong>na</strong>sce a cada vez que sua perso<strong>na</strong>gem é<br />
reinterpretada. O recontar do mito de Lilith reflete visões do papel<br />
feminino a cada geração. À medida que crescemos e mudamos com os<br />
milênios, Lilith sobrevive porque é o arquétipo para o papel cambiável<br />
da mulher.<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL:<br />
The Babylonian Talmud, trans. Isidore Epstein, 17 vols. London: Soncino,<br />
1948.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALFABETO DE BEN SIRA em: Ozar Midrashim: A Library of Two<br />
Hundred Minor Midrashim (New York: J.D. Eisenstein, 1915), vol. 1, pp.<br />
35–49.<br />
CHUMASH. Bíblia. Com comentários de Rashi. São Paulo: Trejger<br />
Editores, 1993.<br />
GAINES, Janet Howe. Lilith: Seductress, Heroine or Murderer? In:<br />
Biblical Archeology Review, March/April 2009, on line http://www.bibarch.org:80/e-features/lilith.asp<br />
acesso em 21/5/09.<br />
GLASMAN, Jane Bichmacher de. Cabalá: Misticismo e Pensamento<br />
Judaico. Revista IDEA, ano II, nº 2, jan/jun 98, ISTARJ. Rio de Janeiro,<br />
1998.<br />
SCHOLEM, Gershom. Zohar: The Book of Splendor. New York: Schocken<br />
Books, 1963.<br />
KRAMER, Samuel N. Gilgamesh and the Huluppu-Tree: A<br />
Reconstructed Sumerian Text, Assyriological Studies 10. Chicago:<br />
University of Chicago, 1938.<br />
189
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
SENHORA DA CASA, DIVINDADE E FARAÓ AS VÁRIAS<br />
IMAGENS DA MULHER DO ANTIGO EGITO<br />
Prof. Dr. Julio Gralha 281<br />
As várias faces da mulher egípcia<br />
O presente artigo é um breve trabalho sobre o papel (em boa<br />
parte através da iconografia), desempenhado pela mulher no Antigo<br />
Egito tomando por base três aspectos que consideramos significativos.<br />
O primeiro, relativo ao cotidiano da egípcia comum como ―senhora da<br />
casa‖ (nbt-pr). O segundo como divindade, notadamente membros da<br />
família real, tanto após a morte (mais comum) quanto em vida. Por<br />
último a mulher <strong>na</strong> condição de mo<strong>na</strong>rca, Rei do Alto e Baixo Egito (nsw<br />
bity).<br />
Apesar de tomarmos exemplos dos três mil anos do Egito<br />
Faraônico (aproximadamente entre 3000 a.C. e 30 a.C.) nos<br />
concentraremos principalmente <strong>na</strong> 18 a, 19 a e 20 a di<strong>na</strong>stias, ou seja,<br />
entre 1550 e 1070 a.C. Momento em que a mulher, apesar da<br />
inconstância, apresentou uma projeção sócio-política e religiosa<br />
aparentemente sem precedentes.<br />
Senhora da Casa: ser ou não ser eis a questão<br />
Dentre os vários aspectos da vida cotidia<strong>na</strong> da senhora da casa alguns<br />
são bem significativos. Tomando por base os estudos sobre stelas<br />
votivas e funerárias e, tumbas de privados (ver Ciro Flamarion<br />
Cardoso e Sheila Whale), de um modo geral, é possível perceber que<br />
<strong>na</strong> iconografia o homem está invariavelmente numa posição de<br />
destaque em relação a mulher. Seja estando a frente, seja <strong>na</strong> posição<br />
em pé ou sentando e aparecendo como o proprietário da tumba.<br />
Entretanto, é possível verificar algo que denota uma outra forma de<br />
poder pendendo para a mulher. Nas inscrições destaca-se a<br />
descendência da família dada sempre pela mãe. Assim sendo, o que<br />
281 Prof. Adjunto de História Antiga e Medieval da UFF-PUCG, Coord. do<br />
Núcleo de Estudos em História Medieval, Antiga e Arqueologia Transdiscipli<strong>na</strong>r<br />
(NEHMAAT) e Coord. do Estudos Orientais no Lato Sensu em História<br />
Antiga e Medieval do Núcleo de Estudos da <strong>Antiguidade</strong> da UERJ (NEA).<br />
190
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
chamamos de sobrenome era derivado do nome da mãe – ―Fulano<br />
filho da senhora da casa fula<strong>na</strong>‖.<br />
No que concerne a realeza a mesma prática cultural parece ter sido<br />
usada com algumas variações uma vez que a perpetuação da<br />
linhagem da teocracia faraônica ou mo<strong>na</strong>rquia divi<strong>na</strong> deveria ser<br />
dada através da rainha-mãe ou parentes femininos próximas. Assim,<br />
todo mo<strong>na</strong>rca deveria <strong>na</strong>scer de uma rainha ou legitimar-se pelo<br />
casamento do pretendente ao trono com um membro da família real<br />
do sexo feminino (princesa, rainhas ou parentes próximos). Um bom<br />
exemplo pode ser encontrado nos momentos que se seguiram o<br />
período de Amar<strong>na</strong>. Através do casamento de Mutnedjmet — irmã<br />
da rainha Nefertiti, esposa do faraó Akhe<strong>na</strong>ton —, com o general<br />
Horemheb que assim, pode estabelecer sua legitimidade como<br />
mo<strong>na</strong>rca e ascender ao trono do Egito, mesmo não sendo ele de<br />
linhagem real (GRALHA, 2000: 104). Assim sendo, tanto como<br />
senhora da casa ou rainha a legitimidade da família e sua linhagem<br />
deveria ser dada pela mulher.<br />
Elemento igualmente interessante era o matrimônio. Este não era<br />
―sacramentado por qualquer sanção ritual ou administrativa‖ (CARDOSO,<br />
1993: 2). Segundo Gay Robins:<br />
Não existe qualquer menção em nossas fontes de<br />
qualquer cerimônia legal ou religiosa para<br />
formalizar o casamento. De fato um ato<br />
significante parece ter sido a coabitação.<br />
Assim sendo, tal ato social e cultural possivelmente envolveria<br />
festividades, talvez como forma de formalizar ou demonstrar para os<br />
grupos sociais locais o estabelecimento do casamento. Um dos termos<br />
usados para tal era estabelecer um lar. Todavia expressões como tomar<br />
alguém ou no caso feminino tomar um marido também poderia ser<br />
encontrada, o que pode significar que a expressão não tem exclusividade<br />
masculi<strong>na</strong>.<br />
Não está claro como os contratos de casamentos eram<br />
produzidos durante o Reino Novo uma vez que, os primeiros contratos<br />
encontrados são de pelo menos 300 anos depois (por volta do século<br />
191
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
VIII a.C.). Neste sentido é possível questio<strong>na</strong>r se foram realmente<br />
produzidos pelo egípcio comum. Talvez estivessem implícitos por uma<br />
espécie de regras de costume ou direito consuetudinário.<br />
Os contratos são significativos durante o período ptolomaico e é<br />
possível identificar uma grande quantidade com regulações e<br />
pe<strong>na</strong>lidades para os membros infratores. Assim, pe<strong>na</strong>lidades contra o<br />
adultério masculino e agressão masculi<strong>na</strong> são particularmente<br />
interessantes e podiam levar ao divórcio e compensações fi<strong>na</strong>nceiras.<br />
Weidemann (2007) em um estudo significativo salienta em sua tese que:<br />
Não fica claro qual seria o papel do amor <strong>na</strong><br />
escolha de um parceiro no casamento: parece que<br />
a maioria dos casamentos no Antigo Egito era<br />
arranjada (2007:134).<br />
Por outro lado, é possível, através dos poemas de amor (ver<br />
diversos em ARAUJO, 2000: 301-330), perceber (ou inferir) que existia<br />
grande afeição pelos nubentes (ROMANO, 1990: 5) o que em parte<br />
pode significar certa liberdade para a escolha do parceiro, seja ele<br />
masculino ou feminino. Um destes poemas é particularmente<br />
interessante:<br />
Poema do Papiro Chester Beatty I datado da 20ª di<strong>na</strong>stia (1196-1070<br />
a.C.)<br />
Meu irmão (trata-se da pessoa amada e não o<br />
irmão biológico) agita meu coração com sua voz, o<br />
tormento apodera-se de mim.<br />
Ele é vizinho da casa de minha mãe<br />
e não posso chegar até ele.<br />
Minha mãe tem razão ao dizer-me:<br />
"Pára de olha-lo!"<br />
Mas meu coração sofre quando penso nele,<br />
sou tomada pelo amor que sinto por ele.<br />
De fato ele é um tolo,<br />
mas sou como ele.<br />
Ele não sabe o desejo que tenho de toma-lo nos<br />
braços,<br />
senão já teria escrito à minha mãe.<br />
192
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Ó, meu irmão, quisera eu ser dada a ti<br />
pela Deusa de Ouro das mulheres! (deusa Hathor)<br />
Vem a mim, para que contemple tua beleza,<br />
meu pai e minha mãe ficarão encantados,<br />
toda minha família te aclamará em uníssono,<br />
eles te aclamarão, ó meu irmão (ARAUJO, 2000:<br />
303-304)<br />
Provavelmente tal poema foi escrito por um escriba (existe a<br />
possibilidade de escribas femini<strong>na</strong>s, entretanto os indícios não são claros)<br />
a partir de experiências femini<strong>na</strong>s. Em todo caso em uma análise rápida e<br />
sintética é possível perceber que a jovem amante e sua família aceitariam<br />
o jovem amado. Ela se insinua para o jovem e a mãe alerta Pára de olhalo!<br />
O poema parece demonstrar a afeição livre da jovem e da família, e<br />
como tal, pode não configurar uma prática de contratos sem amor,<br />
sobretudo, nos matrimônios comuns e de segmentos menos favorecidos.<br />
Mesmo em segmentos de egípcios bem <strong>na</strong>scidos poderia haver amor e o<br />
estabelecimento de laços matrimonias de modo a manter ou aumentar o<br />
patrimônio familiar. Em certa medida não é tão diferente de hoje, pois é<br />
possível verificar segmentos sociais similares unidos pelo amor e pelo<br />
poder/patrimônio, bem como segmentos sociais distintos estabelecendo<br />
matrimônios.<br />
Particularmente defendo a possibilidade de ambas as formas de<br />
casamento — por contrato de arranjo e por amor — , mas é<br />
significativo que admitindo a possibilidade de casamento por amor<br />
também haja a possibilidade da mulher aceitar ou não determi<strong>na</strong>do<br />
parceiro. Ou mesmo ―escolhendo-o‖. É claro que a posição social, cultural<br />
e econômica do casal (e da família) também deve ser levada em conta.<br />
Na tradição egípcia o divórcio era permitido e praticado por<br />
ambas as partes, as causas poderiam ser relativas ao adultério, à<br />
infertilidade e a não compatibilidade por exemplo. A parte repudiada no<br />
matrimônio recebia uma compensação, que no caso da mulher, podia ser<br />
de 1/3 das propriedades do marido mais as pe<strong>na</strong>lidades do divórcio.<br />
Uma clausula comum parece ser uma espécie de dote para a noiva em<br />
função da perda da virgindade (ROMANO, 1990:5).<br />
Apesar de administrada pelo marido a mulher podia ter<br />
propriedades, ―sair para fazer compras‖, cuidava do lar e dos filhos, mas<br />
193
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
isso não a impedia de ter outras ocupações <strong>na</strong> sociedade egípcia, pois<br />
poderiam ter ocupação urba<strong>na</strong> em estabelecimentos comerciais da época.<br />
Mesmo não tendo uma posição domi<strong>na</strong>nte <strong>na</strong> sociedade egípcia, mas<br />
tendo certa igualdade de posição em relação aos homens, algumas<br />
conseguiram ocupar posições relevantes <strong>na</strong> sociedade egípcia. Tais<br />
como: inspetoras e escribas além de cargos religiosos. Elas também<br />
podiam testemunhar e estabelecer testamentos como os homens<br />
(ROMANO, 1990:5).<br />
Exemplo interessante da ocupação da mulher em cargos<br />
significativos <strong>na</strong> administração egípcia se refere à dama Peseshet, mãe de<br />
Akhethetep (mastaba G 8942 em Gizeh) que viveu <strong>na</strong> 4ª di<strong>na</strong>stia (aprox.<br />
2400 a.C.). Em uma porta falsa <strong>na</strong> mastaba é possível identificar um<br />
título de um de caráter religioso como a diretora das sacerdotisas do ka da<br />
mãe do rei (imyt-r hm(wt)-ka mwt-nswt), e um outro que faz conexão com a<br />
medici<strong>na</strong> como supervisora das mulheres médicas, (com o) conhecimento real<br />
(imyt-r swnwt rxt nswt).<br />
Apesar de raros, o exemplo de Peseshet pode indicar que outras<br />
mulheres tenham ocupado cargos de importância.<br />
Durante o momento de rainhas poderosas como Hatshepsut,<br />
Tiy e Nefertiti <strong>na</strong> iconografia dos templos é possível identificar que tais<br />
egípcias podiam aparecer oficiando determi<strong>na</strong>dos cultos. Era comum<br />
também encontrar damas da corte encomendando estelas votivas e<br />
funerárias em função de determi<strong>na</strong>dos cultos e oferendas.<br />
Deusas e <strong>Mulheres</strong> Divi<strong>na</strong>s<br />
O panteão egípcio esta repleto de divindades femini<strong>na</strong>s que ao<br />
lado das divindades masculi<strong>na</strong>s expressam a dualidade da <strong>na</strong>tureza<br />
egípcia e do pensamento religioso. Assim sendo, cada divindade parece<br />
ter uma função e/ou posição <strong>na</strong> visão dos segmentos sociais egípcios<br />
que em certa medida expressam as relações sociais a partir de práticas<br />
culturais e desejos. Em algumas situações certas divindades assimilam<br />
funções ou atributos de outras. Como exemplo é possível identificar a<br />
relação entre Isis e Hathor e, a Hathor e Sekhmet no mito da destruição<br />
da humanidade.<br />
Elas estão presentes nos principais mitos primordiais ou<br />
cosmogônicos: refiro-me aos mitos da criação de Heliópolis, Mênfis,<br />
194
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Hermópolis, Tebas e Elefanti<strong>na</strong>. Por outro lado, é interessante notar<br />
que não figuravam como divindade que dá início a criação do Cosmos,<br />
característica específica de deuses como Ra/Atum, Ptah, Thot, Amon-<br />
Ra e Khnum dos referidos mitos acima.<br />
Assim sendo, no mito de Heliópolis Atum emerge do oceano<br />
celestial (Nu) e a partir de suas ações cria o primeiro casal divino: Shu<br />
representando o ar e caráter masculino; e Tefnut, representação da<br />
umidade e de aspecto feminino. Em variantes do mito Atum gera os<br />
seres humanos a partir de suas lágrimas e encerra sua função <strong>na</strong> criação.<br />
O casal Shu-Tefnut então continua o processo de criação do Cosmos<br />
gerando um novo casal — Geb a terra e Nut divindade femini<strong>na</strong> da<br />
abobada celeste — Por sua vez, este casal gera Osíris e Isis, e Seth e<br />
Neftís outros dois casais <strong>na</strong> criação fi<strong>na</strong>lizando ao processo simbólico da<br />
origem do Cosmos.<br />
Em outros episódios divindades femini<strong>na</strong>s demonstram o<br />
grande poder que possuem. Em um dos mitos relativo à deusa Isis, a<br />
grande maga, através de estratagema faz com que um escorpião de uma<br />
picada no deus Ra durante sua caminhada diária. Com a promessa de<br />
livrá-lo da dor que divindade alguma consegue sa<strong>na</strong>r, Isis faz o<br />
impossível, obtém do deus Ra seu nome secreto, o que confere um<br />
poder significativo a Isis. Ou seja, o poder de Ra.<br />
Em outro mito, o deus Ra – o deus criador – tendo se<br />
arrependido de haver criado a espécie huma<strong>na</strong>, pois esta havia se voltado<br />
contra ele, enviou a deusa Sekhmet para destruir a humanidade. Tal<br />
deusa era identificada com o olho do sol e, neste contexto, possuía o<br />
aspecto destrutivo do raio solar. Sekhmet (deusa com a cabeça de leoa)<br />
em um dado momento destruiu e se satisfez com a morte e o sangue dos<br />
rebeldes humanos que haviam fugido para o deserto. O deus Ra, tendo<br />
aplacado sua ira e lamentando seu desejo de destruição que poria fim à<br />
humanidade, se utilizou de um artifício ou estratagema e não de uma<br />
ordem direta à deusa Sekhmet com o intuito de findar a carnifici<strong>na</strong>. Ele<br />
fez com que fossem derramados no caminho da deusa 7.000 cântaros de<br />
cerveja tingidos de vermelho para que esta acreditasse que era sangue e,<br />
embriagando-se ao bebê-lo, foi posto um fim a destruição (GRALHA,<br />
2000: 93).<br />
195
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Outra deusa bastante significativa está ligada ao firmamento que<br />
também possuía ligações com o deus Ra. Era do ventre da deusa Nut<br />
que Ra <strong>na</strong>scia em uma variante do mito. Em parte a observação do sol<br />
cruzando céu seria o mesmo que <strong>na</strong>vegar em sua barca (o sol) pelo<br />
corpo de Nut saindo do seu ventre no leste chegando ao que parece <strong>na</strong><br />
boca ao oeste, entrada para as 12 horas da noite. (ver NOBLECOURT,<br />
1994; LESKO, 1999) Tal viagem acontecia todos os dias e expressava<br />
um aspecto da eternidade cíclica (o <strong>na</strong>scimento do sol todos os dias após<br />
a noite).<br />
Talvez o mais importante princípio no pensamento mágicoreligioso<br />
egípcio seja personificado pela deusa Maat – o princípio de<br />
Verdade e Justiça – Tal princípio era elemento significativo da<br />
manutenção da Ordem Cósmica e luta contra o Caos e apesar desta<br />
qualidade importante não foram encontrados templos ou cultos. E ao<br />
que parece, não havia um corpo sacerdotal reforçando assim a idéia<br />
central de princípio divino.<br />
Tendo em vistas estes exemplos não é de se estranhar que<br />
algumas mulheres, notadamente rainhas, fossem cultuadas como<br />
divindades, sobretudo após o seu falecimento. Provavelmente o caso<br />
mais importante seja da mãe de Amonhotep I, a rainha Ahmés-Nefertari.<br />
Na estela abaixo, ambos são cultuados pelo capataz Neferhotep Na<br />
verdade uma ação mítica se processa ao criar-se uma estela <strong>na</strong> qual o<br />
deus Amonhotep I, com apoio de sua mãe, a deusa Ahmés-Nefertari, faz<br />
uma proclamação em favor do capataz pela qual ―Eles concedem vida,<br />
prosperidade e saúde‖.<br />
196
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Figura – Estela do Capataz Neferhotep<br />
Legenda: <strong>na</strong> parte superior da estela (luneta) podem ser identificados Amonhotep I e<br />
sua mãe Ahmés Nefertari. O capataz Neferhotep está em posição de adoração<br />
(ROBINS, 1993: 123; GRALHA, 2002: 98).<br />
O culto ao rei e rainha já falecidos não era algum incomum,<br />
entretanto, o Reino Novo parece trazer uma novidade – o culto em vida<br />
de mo<strong>na</strong>rcas e rainhas. É o caso de Hatshepsut, que ao se tor<strong>na</strong>ndo<br />
faraó, estabeleceu seu culto, e o caso de Nefertiti, rainha do faraó<br />
Akhe<strong>na</strong>ton, que formavam o casal divino do culto ao deus Aton.<br />
197
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
No caso de Hatshepsut existem duas ce<strong>na</strong>s da Capela Vermelha<br />
que ratificam sua posição como deus vivo. Na primeira, Thutmés III,<br />
está queimando incenso diante de Hatshepsut em uma forma osiríaca.<br />
Em um segundo bloco, encontramos a expressão máxima de Hatshepsut<br />
como deus vivo. Nesta ce<strong>na</strong>, sua imagem representada está oficiando o<br />
culto diante de sua representação <strong>na</strong> forma osiríaca. Hatshepsut deve ter<br />
sido o primeiro exemplo do culto ao mo<strong>na</strong>rca em vida por ele mesmo. O<br />
caso mais conhecido, entretanto é o de Amonhotep III que algumas<br />
décadas depois, far-se-ia representar como deus que se auto-cultuava em<br />
vida.<br />
Figura – Hatshepsut em culto<br />
198<br />
Legenda: A figura da<br />
esquerda é a<br />
representação da rainhafaraó<br />
com o seu nome de<br />
coroação no cartucho<br />
(Henemet-Amen<br />
Hatshepsut). A figura da<br />
direita tem acima o nome<br />
de <strong>na</strong>scimento da rainhafaraó<br />
(Maat-Ka-Ra) e a<br />
inscrição filha de Amon.<br />
Tal figura parece ser um<br />
híbrido de Hatshepsut<br />
em forma osiríaca e o<br />
deus Amon. O registro<br />
hieroglífico abaixo e no<br />
centro da ce<strong>na</strong> pode ser<br />
traduzido como:<br />
queimando (lit. fazer incenso)<br />
incenso para Amon-Ra.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
No culto de Amar<strong>na</strong>, o deus Aton não tinha uma deusa ao<br />
seu lado, ele era único e é provável que possuísse os aspectos<br />
masculino e feminino da divindade. No entanto, como formar uma<br />
tríade se só há a dualidade (Aton e o rei)? Na verdade, a tríade da<br />
religião de Aton era invertida, ou seja, como deus único, se<br />
desdobrava no mo<strong>na</strong>rca e <strong>na</strong> rainha – princípio masculino e<br />
feminino que deveriam ser cultuados em vida como o próprio deus.<br />
Tor<strong>na</strong>-se mais claro, o porquê de Nefertiti ser representada de<br />
forma atuante e importante em todos os cultos ligados à nova<br />
religião. Pela primeira e única vez, dois seres humanos em vida<br />
estavam desempenhado papéis divinos <strong>na</strong> tríade e são os únicos<br />
(filhas também) tocados pelos raios de Aton.<br />
<strong>Mulheres</strong> Mo<strong>na</strong>rcas<br />
Parece ter havido rainhas fortes ao longo da história do<br />
Egito tais como: Hetepheres, mãe de Queóps (4ª di<strong>na</strong>stia); Thetisheri<br />
(17ª di<strong>na</strong>stia); Ahmés Nefertari, Hatshepsut, Tiy, Nefertiti (18ª<br />
di<strong>na</strong>stia); Nefertari (19ª di<strong>na</strong>stia) e Cleópatra (di<strong>na</strong>stia ptolomaica).<br />
Parece haver a possibilidade que durante o Reino Antigo, algumas<br />
rainhas teriam sido faraós. Contudo, os indícios claros desta prática<br />
cultural e político-mágico-religiosa só foram observados no Reino<br />
Novo (1550-1070 a.C.)<br />
O Egito, que 70 anos antes do rei<strong>na</strong>do de Hatshepsut, tinha<br />
sido reunificado e ainda estava em processo de reorganização, não<br />
poderia ser palco de um novo conflito, agora interno, entre duas<br />
linhagens: thutméssidas e ahméssidas. Para que tal possibilidade fosse<br />
afastada, era necessário que o futuro mo<strong>na</strong>rca, pudesse estar ligado às<br />
duas linhagens. Somente Hatshepsut possuía as qualidades<br />
necessárias. Ou seja, filha do primeiro faraó Thutméssida (Thutmés I)<br />
e da rainha Ahméssida Ahmés; Esposa do Deus (de Thutmés II) e coregente<br />
de Thutmés III (o futuro e jovem rei de fato ainda muito<br />
novo para assumir o trono). Como o cargo de faraó deveria ser<br />
ocupado por um membro da família real do sexo masculino, ela<br />
deveria tor<strong>na</strong>-se o mo<strong>na</strong>rca para assumir o trono do Egito, não<br />
configurando usurpação e muito menos regência. Segundo Gay<br />
199
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Robins, a posição de rainha, com o título de Esposa do Deus seria<br />
dado a sua filha Neferu-Ra como forma de manter o princípio<br />
masculino e feminino <strong>na</strong> mo<strong>na</strong>rquia egípcia (ROBINS: 1993, 44-51).<br />
Entretanto, não podemos esquecer que um provável casamento de<br />
Neferu-Ra com o jovem Thutmés III deve também ter ocorrido. É<br />
possível, que a idéia de um governo conjunto, uma forma de<br />
mo<strong>na</strong>rquia dual, com o jovem rei Thutmés III, não configurando<br />
uma co-regência tradicio<strong>na</strong>l, complementaria a manutenção do<br />
equilíbrio de poder entre as linhagens (GRALHA: 2000, 139-140).<br />
Outro exemplo que <strong>na</strong>s últimas décadas tem atraído a<br />
atenção dos pesquisadores é papel desempenhado por Nefertiti,<br />
esposa de Akhe<strong>na</strong>ton, através da descoberta de iconografia<br />
descrevendo a rainha como faraó. Em uma ce<strong>na</strong> ela aparece<br />
golpeando inimigos com uma massa iconografia tradicio<strong>na</strong>l e ritual<br />
executada somente pelos faraós. Como rainha ela parecia ter grande<br />
poder, pois em várias ce<strong>na</strong>s aparece oficiando culto ao deus Aton<br />
sem a presença do rei, algo no mínimo raro (ver ROBINS: 1993, 53-<br />
54).<br />
Com estes exemplos tentamos evidenciar o papel da mulher<br />
em alguns segmentos da sociedade egípcia e em certa medida tal<br />
papel não é tão diferente daquele que podemos presenciar no mundo<br />
moderno e contemporâneo.<br />
Existem controvérsias entre os pesquisadores em certos<br />
objetos o que é algo salutar e estudos significativos estão sendo (e<br />
podem ser) realizados, dado a documentação escrita e iconográfica<br />
que existe (já impressa).<br />
Neste sentido gostaria fi<strong>na</strong>lizar ressaltando alguns trabalhos<br />
de pesquisadores brasileiros (disponíveis on-line) tais como: a tese de<br />
Haydée Oliveira (UFF, 2005), Mãe, Filha, Esposa, Irmã: um estudo<br />
iconográfico acerca da condição da mulher no Antigo Egito durante a 19ª<br />
di<strong>na</strong>stia (1307-1196 a.C.); a tese de Amanda Weidemann (UFF, 2007)<br />
A questão do Gênero <strong>na</strong> Literatura Egípcia do II milênio a.C.; a dissertação<br />
de Alex dos Santos Almeida (MAE-USP, 2007) O culto a Arsione II<br />
Filadelfo; e a dissertação de Aline Fer<strong>na</strong>ndes de Sousa (UFF, 2010) A<br />
mulher-faraó: representações da rainha Hatshepsut como instrumento de<br />
legitimação (Egito Antigo – sécu XV a.C.).<br />
200
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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202
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MASCULINO E FEMININO NA SOCIEDADE<br />
ROMANA: OS DESAFIOS DE UMA ANÁLISE<br />
DE GÊNERO<br />
Prof.ª Dr.ª Lourdes Conde Feitosa 282<br />
A mulher no Mundo Antigo, título desse livro, nos remete a uma<br />
temática que vem ganhando maior interesse, discussão e visibilidade a<br />
partir das últimas décadas do século XX, quando diversos movimentos<br />
organizaram-se contra as desigualdades sociais, as diferenças de cunho<br />
sexual e racial e as formas de domi<strong>na</strong>ção origi<strong>na</strong>das pelas sociedades<br />
capitalistas. Nesse ambiente, tor<strong>na</strong>ram-se mais freqüentes as lutas contra<br />
as diferenças sociais, étnicas, religiosas, sexuais e de gênero, bem como o<br />
desenvolvimento de importantes discussões que estimularam a busca de<br />
novas referências para entender os significados atribuídos à feminilidade,<br />
à masculinidade e ao conceito de sexualidade, focos de minhas análises.<br />
Essas questões influenciaram de modo decisivo as Ciências<br />
Huma<strong>na</strong>s e nos temas históricos essas abordagens passaram a refletir o<br />
anseio de pesquisadores preocupados em questio<strong>na</strong>r enraizados<br />
pressupostos e a buscar outras histórias e suportes teóricos que<br />
permitissem inserir, em sua área de conhecimento, a história daqueles até<br />
então dela excluídos.<br />
Esta atenção em escrever a história de pessoas comuns, de seu<br />
cotidiano e de suas percepções e valores, foi fortemente influenciada<br />
pela reelaboração do significado de cultura, já não mais limitada às<br />
expressões das elites brancas, e pela valorização dos registros e<br />
manifestações de grupos periféricos àqueles eruditos e europeus.<br />
Esse anseio pelas ―histórias de gente sem história‖ (MATOS, 2009:<br />
279) não tem sido uma tarefa simples, uma vez que para torná-las<br />
possível faz-se necessário a revisão dos paradigmas da História<br />
tradicio<strong>na</strong>l e a busca por novas fontes, novas abordagens e novos<br />
métodos para organizar e desenvolver as pesquisas históricas, o que<br />
significa vencer obstáculos e tradições acadêmicas. O primeiro desafio<br />
foi suplantar as grandes <strong>na</strong>rrativas universalizantes, centradas <strong>na</strong>s elites<br />
282 Doutora em História Cultural pela Unicamp. Professora da Universidade<br />
Sagrado Coração. Bauru/SP.<br />
203
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
masculi<strong>na</strong>s brancas e nos heróis, no Estado e no espaço público. Dentre<br />
essas abordagens e debates estão os estudos feministas, que enfatizam as<br />
desigualdades entre homens e mulheres <strong>na</strong>s sociedades contemporâneas<br />
e a exclusão femini<strong>na</strong> da análise histórica.<br />
A participação mais intensa da mulher no mercado de trabalho e<br />
no universo acadêmico, a busca de maior liberdade, de igualdade de<br />
direitos e de representação ocasio<strong>na</strong>ram um avanço significativo dos<br />
estudos sobre a mulher. Colocou-se em debate o papel das mulheres <strong>na</strong><br />
História, <strong>na</strong> busca por compreender como foram construídas as<br />
diferenças instituídas entre os sexos e as relações de poder estabelecidas<br />
entre eles. Com esse olhar, o papel feminino passa a ser investigado nos<br />
mais diversos tempo e espaços históricos.<br />
Essas discussões feministas vieram acompanhadas de uma<br />
redefinição do conceito de documento histórico e, além dos tradicio<strong>na</strong>is<br />
escritos oficiais, também ganharam valor documental as inscrições, a<br />
iconografia, a numismática, as estátuas, as tumbas funerárias, e muitos<br />
outros vestígios arqueológicos que permitiram, desde então, ―trazer para a<br />
História‖ as experiências e os olhares femininos.<br />
Sobre a História Antiga Roma<strong>na</strong>, esses estudos têm possibilitado<br />
rever as áreas de atuação tradicio<strong>na</strong>lmente atribuídas às mulheres, bem<br />
como repensar conceitos como ―público‖ e ―privado‖, formas de atuação<br />
política e os fundamentos, composição e participação dos grupos sociais<br />
<strong>na</strong>s diversas esferas da organização social. Nos estudos publicados entre<br />
os anos de 1960 a 1980 percebe-se a preocupação em evidenciar quem<br />
eram essas mulheres e quais as atividades e papéis sociais<br />
desempenhados por elas <strong>na</strong> sociedade, juntamente com discussões mais<br />
particularizadas sobre a sua influência e participação <strong>na</strong>s esferas pública e<br />
de poder.<br />
Ampliaram-se os estudos principalmente daquelas pertencentes a<br />
grupos aristocráticos. 283 Embora em menor número, valiosas pesquisas<br />
283 Alguns exemplos são os textos de POMEROY, S. Donne in Atene e Roma.<br />
Torino: Giulio Ei<strong>na</strong>udi, 1978; BERNSTEIN, F. S. The public role of Pompeian<br />
women. Michigan: Ann Arbor, 1987; CHERRY, D. The minician Law: marriage and<br />
the Roman citizenship. Phoenix, v. 44, n. 3, p. 244-266, 1990; CANTARELLA, E.<br />
Passato Prossimo. Donne romane da Tacita a Sulpicia. Milano: Feltrinelli, 1998;<br />
204
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
também foram realizadas a respeito das atividades desempenhadas por<br />
aquelas das ―classes baixas‖ plebéias, livres e escravas em seus ofícios<br />
e <strong>na</strong> política local, que trouxeram importantes contribuições para o<br />
conhecimento do mundo do trabalho urbano no âmbito popular. 284<br />
Entretanto, desde a década de 1980, no interior desse debate<br />
sobre o papel das mulheres <strong>na</strong> História, surgem as reflexões sobre as<br />
relações de gênero. Nos estudos de sociedades antigas esse tipo de<br />
abordagem ganha maior destaque a partir dos anos de 1990, e no Brasil<br />
os estudos de gênero em sociedades antigas mostram os seus primeiros<br />
resultados <strong>na</strong> virada do século.<br />
Permeadas pela perspectiva do olhar crítico feminista<br />
(MACHADO, 1992: 09), mas distante dela em relação a uma definição<br />
binária de masculino e de feminino, as análises de gênero ampliam o<br />
campo da discussão e acirram os debates em torno da construção dos<br />
conceitos de ―feminino‖ e ―masculino‖, apresentando diferentes e mesmo<br />
DUBY, G., PERROT, M. (Dir.) História das mulheres no Ocidente. A <strong>Antiguidade</strong>.<br />
Tradução de Coelho, M. H. C. et alli. v. 1. Porto: Afrontamento, 1993;<br />
FRANCO, H. G. Participación de la mujer hispanorroma<strong>na</strong> en la producción y<br />
comercio del aceite Bético. Actas del Congreso Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l ex Baetica Amphorae:<br />
Conservas, aceite y vino de la Bética en el Imperio Romano. V. 4, pp. 1269-<br />
1278, 2000.<br />
284 Cf. LeGALL, J. Metiers des femmes ou Corpus Inscriptionum. REL, v. 47<br />
bis, p. 123-130, 1970. TREGGIARI, S. Jobs for women. AJAH, 1, P. 76-104,<br />
1976; TREGGIARI, S. Questions on women domestics in the Roman west. In:<br />
Schiavitù, manumissione e classi dipendenti nel mondo antico. Atti del<br />
Colloquio Inter<strong>na</strong>zio<strong>na</strong>le su la Schiavitù. Roma: L´Erma, 1981. p. 185-201.<br />
TREGGIARI, S. Jobs for women. AJAH, 1, P. 76-104, 1976; TREGGIARI, S.<br />
Questions on women domestics in the Roman west. In: Schiavitù,<br />
manumissione e classi dipendenti nel mondo antico. Atti del Colloquio<br />
Inter<strong>na</strong>zio<strong>na</strong>le su la Schiavitù. Roma: L´Erma, 1981. pp. 185-201; KAMPEN, N.<br />
Image and status: Roman working women in Ostia. Berlin: Mann, 1981;<br />
LEFKOWITZ, M. R., FANT, M. B. (Eds.) Women‟s life in Greece and Rome.<br />
Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1982; KATZ, M. A. Ideology<br />
and ‗the status of women‘ in ancient Greece. In: HAWLEY, R., LEVICK, B.<br />
Women in Antiquity. London: Routledge, 1995 e JOSHEL, S. R.,<br />
MURNAGHAN, S. (Eds.) Women & slaves in Greco-Roman culture. London:<br />
Routledge, 1998.<br />
205
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
divergentes abordagens e trajetórias pelas quais os estudos de gênero têm<br />
sido pensados e polemicamente utilizados em diversas áreas do<br />
conhecimento 285.<br />
Pesquisar e escrever sobre gênero não significa o mesmo que<br />
traçar uma História das <strong>Mulheres</strong>. Ainda que essas instâncias a<strong>na</strong>líticas<br />
sejam próximas, elas são diferentes. A distinção está, justamente, no<br />
tratamento privilegiado das mulheres, por contraposição à ênfase <strong>na</strong>s<br />
relações entre o feminino e o masculino introduzidas pela Historiografia<br />
de Gênero. A sua proposta é questio<strong>na</strong>r o uso dos conceitos ―homem‖ e<br />
―mulher‖ como categorias biológicas, fixas e universais. A aceitação de<br />
características próprias e inerentes ao feminino e ao masculino confere à<br />
diferença sexual a condição de <strong>na</strong>turalidade e não de construção social.<br />
Ainda que resguardadas as devidas especificidades físicas entre o<br />
masculino e o feminino, as contribuições de gênero são importantes <strong>na</strong><br />
medida em que vêm conferir à diferença sexual não ape<strong>na</strong>s um<br />
parâmetro exclusivo e <strong>na</strong>tural da distinção entre eles, mas das marcas<br />
culturais estabelecidas no ambiente social 286. Com isso, a complexidade e<br />
variedade de acepções levantadas em torno das palavras ―homens‖ e<br />
―mulheres‖ têm permitido questio<strong>na</strong>r os paradigmas interpretativos<br />
alicerçados em modelos rígidos e generalizantes de comportamento, que<br />
atribuem à mulher a condição de passiva e submissa e ao homem, o<br />
papel de comando e domínio. É justamente nesse ponto, a<br />
des<strong>na</strong>turalização das identificações por meio das características físicas,<br />
sexuais, que se encontra um dos maiores méritos dos estudos de gênero<br />
— a constatação de que as categorias de identidades foram e são cultural<br />
e socialmente construídas.<br />
Desta maneira, para além das essências, uma preocupação das<br />
epistemologias de gênero é a de compreender como, em momentos<br />
históricos específicos e no interior das diferentes classes sociais, grupos<br />
étnicos e tradições culturais, são estabelecidos os papéis entre o feminino<br />
e o masculino em suas atribuições familiares e domésticas, <strong>na</strong>s relações<br />
285 Como exemplo, pode-se citar Costa e Bruschini, 1992; Pedro e Grossi, 1998<br />
e Bessa, 1998, onde diversas áreas apresentam a complexidade e a diversidade<br />
de posicio<strong>na</strong>mentos, tanto no Brasil como no exterior.<br />
286 Maria Lygia Quartim de Moraes, 1998; Fu<strong>na</strong>ri, Silva, Feitosa, 2003.<br />
206
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sexo-afetivas e com o mundo do trabalho e da educação, dentre outros<br />
aspectos. 287 Como enfatiza Matos, ―existem muitos gêneros, muitos<br />
―femininos‖ e ―masculinos‖, e temos que reconhecer a diferença dentro da<br />
diferença‖ ... o que significa ―pensar a mulher e o homem enquanto diversidade<br />
no bojo da historicidade de suas inter-relações‖ (2009: 289).<br />
Com essa proposta de a<strong>na</strong>lisar os significados de feminino e de<br />
masculino formulados em relações sociais específicas, faz-se necessário<br />
uma discussão a respeito de algumas premissas e da pertinência, ou não,<br />
de seu uso para a sociedade roma<strong>na</strong> antiga. A primeira delas é a idéia de<br />
imposição do poder do homem sobre a mulher, denunciada pelo<br />
feminismo.<br />
Para Jean Scott, uma das grandes teóricas sobre as relações de<br />
gênero no mundo contemporâneo, gênero é ―um elemento constitutivo de<br />
relações sociais baseadas <strong>na</strong>s diferenças percebidas entre os sexos‖. Nesse aspecto, a<br />
autora partilha com Foucault a idéia de uma imposição, em nível<br />
discursivo e social, de um poder masculino sobre o feminino, pelo<br />
menos para algumas sociedades: ―gênero não é o único campo, mas parece ter<br />
sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder no<br />
Ocidente, <strong>na</strong>s tradições judaico-cristãs e islâmicas‖ (SCOTT, 1995: 88). Em<br />
função disso, construíram-se discursos que estabeleceram e<br />
padronizaram determi<strong>na</strong>das imagens de homem e mulher, pondo esta<br />
em situação de detrimento e subordi<strong>na</strong>ção em relação àquele. Também<br />
Heilborn (1992: 93) e Montserrat (2000: 164) destacam a importância das<br />
construções discursivas constituídas no interior das sociedades com o<br />
propósito de justificarem as diferenças sexuais. Formuladas entre os<br />
grupos sociais, as representações de si e do outro são alicerçadas em<br />
abordagens que evidenciam marcas das tensões, dos conflitos e das<br />
contradições origi<strong>na</strong>das <strong>na</strong>s relações sociais em que são articuladas.<br />
Nesse aspecto, é sob o prisma das inquietações de gênero que se<br />
faz presente a possibilidade de contemplar análises históricas<br />
preocupadas em apreender como as distinções sociais fundadas sobre o<br />
sexo são perpassadas por relações de poder, resultantes não de um<br />
consenso social, ―mas das disputas, dos conflitos e das repressões‖ (SCOTT,<br />
287 Como exemplo da teorização sobre as questões de gênero, ver Scott, 1988 e<br />
1995; Baxter, Western, 2001, Piscitelli, 2009.<br />
207
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
1995: 86-87). Contudo, uma opção é pressupor uma generalizada<br />
domi<strong>na</strong>ção masculi<strong>na</strong> sobre o feminino, outra é a de evitar oposições<br />
binárias fixas e <strong>na</strong>turalizadas. A noção generalizante de imposição<br />
masculi<strong>na</strong> sobre o feminino, além de não conseguir dar respostas<br />
satisfatórias à diversidade de comportamentos atribuídos tanto a um<br />
quanto a outro, obscurece a percepção de diferentes poderes, muitas<br />
vezes instalados no feminino e não no masculino; por isso a necessidade<br />
de estudos localizados e atentos às variações das relações entre os<br />
indivíduos (LÓPEZ, 1994: 44).<br />
Desta maneira, ―é importante observar as diferenças sexuais enquanto<br />
construções culturais e históricas, que incluem relações de poder não localizadas<br />
exclusivamente num ponto fixo, masculino, mas presente <strong>na</strong> trama histórica‖<br />
(MATOS, 2009: 287). Diante disso, pode-se considerar que as relações<br />
de gênero, além dos vínculos de poder, podem ser de reciprocidade,<br />
complementares ou de prestígio (MACHADO, 1992: 35; MATTOSO,<br />
1988: 192). O que significa retomar a experiência coletiva articulada entre<br />
o feminino e o masculino em toda a sua complexidade e as contribuições<br />
de cada um deles no processo de construção histórica (MATOS, 2009:<br />
283).<br />
Essa observação é particularmente significativa para a análise do<br />
mundo romano. O vasto território que compôs a sociedade roma<strong>na</strong> dos<br />
séculos I e II d. C circundava todo o mar Mediterrâneo e integrava<br />
inúmeras regiões anexadas ao longo do processo de conquista, com<br />
grande variedade de povos. Esse imenso império emaranhado de latinos,<br />
gálatas, egípcios, béticos, germanos, dácios, gregos, entre tantos outros,<br />
apresenta diversidades jurídicas, econômicas, étnicas, de idade, sexo,<br />
profissão e língua que acabam sendo camufladas e simplificadas pela<br />
expressão ―povo romano‖. Variedades que interferiam no lugar social<br />
ocupado pelos diferentes indivíduos e que são elementos importantes a<br />
serem considerados pelo pesquisador interessado em uma análise de<br />
gênero no Mundo Antigo (FUNARI, 1995: 180; SKINNER, 1997: 13).<br />
Por isso uma preocupação ainda presente <strong>na</strong>s reflexões de gênero é com<br />
o seu emprego em conotação vaga e geral para desig<strong>na</strong>r ape<strong>na</strong>s a<br />
existência de homens e mulheres, conferindo-lhes um sentido descritivo,<br />
neutro e consensual, ou seja, a da existência do feminino e do masculino<br />
208
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
singularizado por suas características físicas (PANTEL, 1990: 595-596),<br />
deslocado da complexidade histórica <strong>na</strong> qual é formulado.<br />
Aliado a esse, outro aspecto que ainda merece atenção é a<br />
superação da escrita de uma ―História das <strong>Mulheres</strong>‖ que não veja esta<br />
última de um ponto de vista relacio<strong>na</strong>l. Para Maria Izilda Matos, como<br />
nova categoria, o gênero vem procurando dialogar com outras categorias<br />
históricas já existentes, mas vulgarmente ainda é usado como sinônimo<br />
de mulher, e muitas análises que utilizam esse conceito referem-se a<br />
mulheres, já que seu uso teve uma acolhida maior entre os historiadores<br />
desse tema (1998, p. 67), o que ainda caracteriza um número significativo<br />
de abordagens historiográficas que privilegia as experiências femini<strong>na</strong>s<br />
em detrimento da relação de seu universo com o masculino, ou com a<br />
homossexualidade (MATOS, 2009: 289). 288 Destarte, é imprescindível para<br />
a afirmação da proposta de ―gênero‖ superar a ideia de ser sinônimo de<br />
História das <strong>Mulheres</strong> e assumir a ampla conotação que lhe caracteriza,<br />
que concerne focar o feminino e o masculino no universo romano, com<br />
destaque para a pluralidade das articulações vivenciadas entre ele.<br />
Dentre as poucas análises revisionistas do papel masculino<br />
romano 289 e da sexualidade, raríssimas são as que abordam grupos nãoaristocráticos.<br />
A ênfase de Skinner, de 1997, é atual e desafiadora:<br />
[…]further research on the rhetoric of sexuality is<br />
in order, with special attention to finding evidence<br />
of how margi<strong>na</strong>l populations women, slaves,<br />
noncitizens desig<strong>na</strong>te themselves in respect to<br />
the conjunction of class and gender (SKINNER,<br />
1997: 25).<br />
Para uma breve reflexão a respeito das masculinidades roma<strong>na</strong>s, é<br />
comum encontrarmos referências aos homens das elites como fortes<br />
guerreiros, domi<strong>na</strong>dores e virtuosos, enquanto os das camadas populares<br />
são referenciados como dependentes, desocupados, parasitas da elite.<br />
Libertos, livres, escravos, das mais distintas origens étnicas e ocupações<br />
288 Como contraponto, cf, por exemplo, Feitosa, L. C., 2005 e Feitosa e<br />
Garraffoni, 2010.<br />
289 Cf. Boswell (1990); Hallett e Skinner (1997).<br />
209
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
profissio<strong>na</strong>is, foram constantemente taxados de figuras ambíguas e<br />
infames por estes modelos interpretativos 290. Autores modernos como,<br />
por exemplo, Finley (1985) e Garnsey e Saller (2001), vinculam o estilo<br />
de vida da elite roma<strong>na</strong> à tradicio<strong>na</strong>l exploração agrária. Assim, terra,<br />
tradição e riqueza seriam os componentes característicos desse estilo<br />
aristocrático e de seu distanciamento das atividades consideradas<br />
vulgares ou infames. O simples fato de ser gladiador, ator, prostituta ou<br />
dono de bordel já implicava, em restrições jurídicas e políticas 291.<br />
Se, por um lado, a atuação econômica desempenhou um papel<br />
importante <strong>na</strong> definição de dignitas e infamia para a historiografia<br />
moder<strong>na</strong>, por outro, o aspecto social também foi considerado um<br />
diferencial dos homens dignos, a iniciar por sua própria identificação.<br />
Segundo Walters, o vocábulo latino Vir era utilizado para caracterizar<br />
um aristocrático como homem em sua plenitude, diferente de outros<br />
termos usados para apresentar indivíduos do mesmo sexo, mas de idades<br />
e categorias sociais diferenciadas como, por exemplo, puer ou juvenis para<br />
os filhos da aristocracia ainda menores e homines ou puer para adultos<br />
escravos, libertos, não cidadãos e mesmo cidadãos de classes mais baixas<br />
(WALTERS, 1997: 30).<br />
Além disso, a integridade do Vir consolidar-se-ia, também, por<br />
meio do tratamento social dispensado ao seu corpo, como a sua<br />
integridade física e não violação de seu corpo, e a partir de uma<br />
determi<strong>na</strong>da prática sexual, que lhe asseguraria o papel de ser o ativo em<br />
toda e qualquer relação sexual, à medida que a atividade ―lícita‖,<br />
―normal‖, seria aquela que lhe caberia a ação de penetrar. Se a prática<br />
sexual ativa tanto com homens quanto com mulheres era aceita, a justa<br />
medida estaria em respeitar a norma social estabelecida para os<br />
290 Para a imagem decadente ou ambígua da plebs roma<strong>na</strong> cf, por exemplo,<br />
Mommsen 1983 (ambos autores publicaram a primeira edição de seus trabalhos<br />
ainda no século XIX); Grimal, 1981. Para uma reflexão crítica acerca dessa<br />
questão, cf. Garraffoni 2005.<br />
291 Vale ressaltar que há profissões relacio<strong>na</strong>das ao espetáculo público e que não<br />
são infames como, por exemplo, músicos e corredores de bigas. Cf. Justiniano,<br />
D. 3, 2.<br />
210
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
aristocráticos, que indicava a não penetração de outro cidadão, jovem ou<br />
adulto, e de mulheres aristocráticas, casadas, solteiras ou viúvas.<br />
Ser o ativo passou a ser interpretado como uma atividade<br />
essencialmente masculi<strong>na</strong>, pois a penetração acontece com o pênis e<br />
tanto a felação como a cunilíngua caracterizar-se-iam como violações às<br />
práticas lícitas. Nesse comportamento sexual idealizado por essa elite<br />
roma<strong>na</strong> haveria uma ―escala de humilhação‖: ser penetrado <strong>na</strong> vagi<strong>na</strong>, o que<br />
punha todas as mulheres em condição inferior; ser penetrado pelo ânus e<br />
receber o pênis em suas bocas, sendo essa a mais humilhante e vexatória<br />
das três situações (PARKER, 1997: 51).<br />
Esse conjunto de normas deixa claro que não seria o aspecto<br />
físico o definidor do conceito de homem para essa elite, mas um<br />
conjunto de pré-requisitos estabelecido para destacá-lo dos demais. A<br />
idealização desse padrão de atividade sexual estaria intrinsecamente<br />
atrelada a uma projeção de prática social que lhe atribuía o comando e a<br />
manutenção da ordem, bem como a conquista, o domínio e a autoridade<br />
sobre os outros indivíduos e povos. Desta maneira, a atuação em<br />
uma sociedade guerreira e conquistadora consolidaria uma imagem de<br />
virilidade associada à força física, à superioridade bélica, ao caráter e à<br />
sexualidade do cidadão aristocrático romano.<br />
Esse discurso idealizado de masculinidade tinha a fi<strong>na</strong>lidade de<br />
representar, publicamente, o pensamento dessa elite roma<strong>na</strong>, o que não<br />
significava que todos acatassem e respeitassem tais idéias. E como<br />
exemplo mais significativo de infração a essa convenção sexual podemos<br />
citar o caso de Júlio César que, segundo Suetônio, em De vita duodecim<br />
Caesarum (I, L), era homem de toda mulher e mulher de todo homem 292. Embora<br />
satirizado por Suetônio, nem por isso deixou de ocupar o cargo de<br />
cônsul romano, um dos mais importantes da política roma<strong>na</strong>.<br />
Se as fontes escritas são imprescindíveis para entendermos<br />
aspectos dos ideais de masculinidade da elite roma<strong>na</strong>, por outro lado<br />
também expressam argumentos e pontos de vista que induziram os<br />
estudiosos modernos a produção de uma visão bastante negativa das<br />
camadas populares. Essa conotação pejorativa atribuída às camadas<br />
populares e sua relação com a infamia podem ser interpretadas como um<br />
292 ‗omnium mulierum uirum et omnium uirorum mulierem‘.<br />
211
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
tipo de censura moral a determi<strong>na</strong>das ações e modos de vida dos<br />
populares pelos membros das elites roma<strong>na</strong>s (Garraffoni, 2005: 184).<br />
Esta censura moral aristocrática a um conjunto de profissões<br />
exercidas por populares levou muitos estudiosos modernos a classificálas<br />
como degradantes, aproximando a vida de populares à condição de<br />
infamia. Entretanto, ao olharmos os grafites nos muros de Pompéia<br />
percebemos milhares de registros feitos pelos próprios populares que<br />
indicam, em suas escritas, conotações diferentes às aristocráticas. Entre<br />
tantas inscrições encontramos referências a pequenos proprietários de<br />
taber<strong>na</strong>s, ofici<strong>na</strong>s e padarias 293; a funções autônomas de professor,<br />
alfaiate, vendedor de roupas e jóias 294, a inúmeras associações como as<br />
de vendedores de frutas, cocheiros, ourives, padeiros, lenhadores,<br />
vendedores de alho e de aves, tecelões, perfumistas, ajudantes de<br />
cozinha, taberneiros e trabalhadores agrícolas 295.<br />
Esses grafites indicam-nos a valorização dessas atividades<br />
profissio<strong>na</strong>is e a importância que possuíam para essas pessoas que a<br />
praticavam e a vontade de perpetuar uma imagem de sucesso, de vitória,<br />
dentre aqueles que partilhavam desse universo. Se para as elites essas<br />
atividades si<strong>na</strong>lizavam funções vis e desprezíveis, parece-nos que tais<br />
conotações perdem esses sentidos entre aqueles que viviam,<br />
cotidia<strong>na</strong>mente, o mundo do trabalho, que dependiam dele para a sua<br />
subsistência e que ali estabeleciam as suas relações e referências. Inserida<br />
e construída nesse âmbito do labor, a masculinidade popular também era<br />
modelada pela experiência sexo-afetiva, comentado a seguir.<br />
O apreço e a consideração pela mulher querida foram registrados<br />
com freqüência em Pompéia. Efusivas declarações podem ser<br />
encontradas, como esta deixada a Taine, <strong>na</strong> parede de uma casa:<br />
293 Cf. CIL, IV, 368, 4472/3 (Ofici<strong>na</strong> dos Atti), 7749.<br />
294 CIL, IV, 275 (professor); 3130, 7669/71/74 (joalheiro).<br />
295 Pomari , CIL, IV, 180, 183, 202, 206; Muliones, CIL, IV, 97, 113, 134;<br />
Aurificis, CIL, IV, 710; Pistori, CIL, IV, 429, 4227, 4888, 5380; Lig<strong>na</strong>ri, CIL, IV,<br />
485, 951, 960; Aliarii, CIL, IV, 3485; Gali<strong>na</strong>rii, CIL, IV, 241, 373; Fullones (os<br />
que preparam o pano depois de tecido), CIL, IV, 998, 2966, 3478, 3529, 4100,<br />
4102/03/07/09/12/18/20; Unguentari, CIL, IV, 609; Culi<strong>na</strong>ri, CIL, IV, 373;<br />
Caupones, CIL, IV, 336; Agricolae, CIL, IV, 480, 490.<br />
212
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Dulcis amor, perias eta (pro ita)<br />
Taine bene amo dulcissima /<br />
Mea / Dulc (CIL, IV, 8137)<br />
Oxalá pereça, doce amor. Amo tanto a<br />
Taine,<br />
minha dulcíssima amada.<br />
Já <strong>na</strong> inscrição CIL, IV, 4858 é possível saber o valor que<br />
Valenti<strong>na</strong> teve para a vida de Ametusto, registrado por ele em um dos<br />
muros:<br />
Amethusthus nec sine sua Valenti<strong>na</strong><br />
Ametusto não vive sem sua Valenti<strong>na</strong>,<br />
As paredes também guardam os registros das muitas súplicas<br />
amorosas, feitas por homens que, em uma linguagem simples e direta,<br />
pedem o amor da mulher estimada. Desta maneira expressou-se<br />
Secundo, no átrio de uma casa:<br />
Secundus Prim(a)e suae ubi/que isse salute(m).<br />
Rogo, domi<strong>na</strong>, ut me ames (CIL, IV, 8364)<br />
Secundo a sua querida Prima, uma<br />
saudação cordial.<br />
Peço, senhora, me ame!<br />
A forte mentalidade guerreira e conquistadora atribuída aos<br />
―romanos‖, em obras da historiografia, reflete-se sobre aqueles que estão<br />
distantes dos campos de batalha, ou que foram um dia neles<br />
conquistados, por meio do relacio<strong>na</strong>mento amoroso. O verso de Ovídio<br />
inspirou a escrita deste grafite:<br />
Militat omnes amans (CIL, IV, 3149)<br />
Todo e<strong>na</strong>morado é um soldado! 296<br />
296 Cf. Am. I 9, 1, indicado no próprio CIL.<br />
213
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Aqui a batalha é travada no campo sexo-afetivo. Fotu<strong>na</strong>to<br />
escreveu dando glórias pelo ―combate amoroso‖ estabelecido com<br />
Antusa, cuja vitória lhe foi tão significativa que mereceu ser festejada<br />
com uma paráfrase à conquista de César <strong>na</strong> Gália:<br />
Fortu<strong>na</strong>tus<br />
futuet t.<br />
hinc vine veni vide<br />
Anthusa (CIL, IV, 230)<br />
Fortu<strong>na</strong>to fodeu. Aqui vim, vi e venci<br />
Antusa 297.<br />
A frase de Fortu<strong>na</strong>to, quando relacio<strong>na</strong>da ao conjunto de<br />
inscrições em análise, além de indicar a satisfação de um conquistador,<br />
também evidencia um jogo amoroso instituído <strong>na</strong> afetividade, no desejo,<br />
nos obstáculos e nos acordos estabelecidos entre os amantes. Mas, a<br />
batalha amorosa também exigia mobilização femini<strong>na</strong>, como faz<br />
Calpurnia:<br />
Suauis ui<strong>na</strong>ria sitit rogo uos et ualde<br />
Sitit Calpurnia tibi dicit. Val(e) (CIL, IV, 1819)<br />
Digo a você: desejo teu doce vinho e desejo muito.<br />
Calpurnia te diz. Saudações.<br />
Esses grafites são exemplos que podem nos indicar a construção<br />
de outros parâmetros sexo-afetivo vivenciados por esses homens e<br />
mulheres que trocavam opiniões, interagiam em ambientes de trabalho,<br />
de lazer e por meio das paredes da cidade. A partir dessa amostra de<br />
textos e grafites podemos perceber experiências de vida e de valores<br />
muito distantes daqueles das elites, ou idealizados por eles e para eles.<br />
Assim, <strong>na</strong> tarefa de focar a diversidade, o heterogêneo, o local e o<br />
específico, os estudos de gênero deslocam-se para a trama política do<br />
297 César: ueni, uini, uidi. Suetônio, Diuus Iulius, 37 . Inscrição encontrada <strong>na</strong> Casa do<br />
Cirurgião, <strong>na</strong> Via Consolare.<br />
214
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
cotidiano, das sociabilidades, das tensões, do imaginário e do discurso,<br />
aspectos esses vivenciados no interior dos grupos, mas que precisam se<br />
entrecruzar com a dinâmica das transformações sociais, econômicas,<br />
culturais e políticas. Portanto, ainda é grande o desafio de construir uma<br />
história que não seja ape<strong>na</strong>s descritiva das atribuições masculi<strong>na</strong>s e<br />
femini<strong>na</strong>s, mas relacio<strong>na</strong>l e a<strong>na</strong>lítica, <strong>na</strong> qual o feminino seja<br />
compreendido em sua articulação com o masculino e vice-versa e ambos<br />
com a sociedade a qual pertencem.<br />
A idéia é que não basta ape<strong>na</strong>s aumentar a quantidade de<br />
informações sobre as mulheres ou os homens, mas de estudá-las em<br />
conjunto. Como considera Mattoso,<br />
[...]a História não se compreende ape<strong>na</strong>s pelo<br />
papel que nela exercem os indivíduos, nem só<br />
pelas estruturas e distribuições dos homens em<br />
classes sociais, nem só pelo funcio<strong>na</strong>mento da<br />
economia e da produção, nem só pelos<br />
movimentos demográficos, mas também pela<br />
dialética feminino-masculino (1988: 182-183).<br />
Assim, segundo Scott, é pertinente aos estudos de gênero a<br />
construção de uma ―nova história‖, ou seja, é preciso reescrever a História<br />
(MATTOSO, 1988: 181) para que seja possível vislumbrarmos outras<br />
conotações e entendimentos da complexa construção histórica e de suas<br />
relações sociais, apresentada não ape<strong>na</strong>s pelo olhar de grupos<br />
privilegiados e masculinos ou pelo viés das estruturas econômicas que se<br />
sobrepõem aos Homens <strong>na</strong> trama histórica, mas também por meio das<br />
sensibilidades, articulações e conflitos vivenciados entre os muitos<br />
femininos e masculinos.<br />
Desta maneira, a questão de gênero, embora relativamente nova<br />
enquanto categoria de análise científica e permeada por incertezas,<br />
ambigüidades e obstáculos, apresenta-se com um campo profícuo para<br />
pensarmos a pluralidade e como os variados agentes, masculinos e<br />
femininos, a partir de seus valores, conceitos, visões e espaços sociais,<br />
formulam múltiplos vínculos, comportamentos, atitudes e embates em<br />
suas relações sociais; o que possibilita vislumbrarmos as experiências<br />
215
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
huma<strong>na</strong>s, do passado e atuais, de modo complexo, heterogêneo e<br />
vibrante.<br />
Agradecimentos: Meus sinceros agradecimentos aos colegas Maria<br />
Regi<strong>na</strong> Candido, Re<strong>na</strong>ta S. Garraffoni e Pedro Paulo Fu<strong>na</strong>ri. As idéias<br />
apresentadas são de minha responsabilidade.<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
CIL - Corpus Inscriptionum Lati<strong>na</strong>rum. v. IV. Berlim: Akademie Verlag,<br />
desde 1863.<br />
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218
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ARTEMISA: LAS DELICIAS DE LOS MÁRGENES.<br />
MISMIDAD Y OTREDAD<br />
EN EL ROSTRO DE LA DIOSA<br />
Prof.ª Dr.ª María Cecilia Colombani 298<br />
Hija de Zeus y de Leto, herma<strong>na</strong> de Apolo,<br />
portadora como él del arco y la lira Artemisa<br />
presenta un doble aspecto. Es la cazadora, la que<br />
recorre los bosques, la Salvaje, la Flechadora que<br />
mata a las bestias salvajes con sus dardos (…) Es<br />
también la Joven, la Parthenos pura, consagrada a la<br />
virginidad eter<strong>na</strong>. 299<br />
A.Introducción 300<br />
El propósito de la siguiente comunicación consiste en efectuar<br />
u<strong>na</strong> lectura de las distintas funciones de Artemisa al interior de la<br />
consolidación de la polis como estructura compleja, no sólo desde u<strong>na</strong><br />
perspectiva política, histórica o económica, sino desde u<strong>na</strong> dimensión<br />
antropológica, andarivel que hemos elegido para transitar las complejas<br />
relaciones entre los hombres y la divinidad.<br />
Pensando en la clásica definición de Louis Gernet en torno a la<br />
noción de antropología, intentaremos u<strong>na</strong> lectura crítica de la presencia<br />
de Artemisa en la consolidación de la Mismidad, tarea que lleva<br />
necesariamente u<strong>na</strong> mirada-incorporación de la Otredad al esce<strong>na</strong>rio<br />
antropológico. Tal como sostiene Gernet la antropología constituye la<br />
representación del ser humano en el plano religioso del mundo, a partir<br />
de la distancia que separa a hombres y dioses; distancia que debe medirse<br />
298 Prof.ª Dr.ª María Cecilia Colombani integra o corpo docente das<br />
Universidades de Morón e Mar del Plata, no campo da Filosofia Antiga.<br />
299 Ver<strong>na</strong>nt, J. P. La muerte en los ojos.200.,<br />
300 Esta introducción, que abre el horizonte de la antropología como marco<br />
interpretativo del presente trabajo, acompaña las consideraciones vertidas en mi<br />
libro Foucault y lo político, Prometeo, Buenos Aires, 2009, donde la tensión<br />
Mismidad-Otredad es a<strong>na</strong>lizada como factor determi<strong>na</strong>nte de la construcción de<br />
la trama cultural, de la consolidación del topos simbólico que la cultura<br />
determi<strong>na</strong> en su poiesis<br />
219
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
en parámetros ontológicos porque lo que está en juego es la condición<br />
de mortales que sostienen los anthropoi en relación a los Sempiternos<br />
Inmortales como los denomi<strong>na</strong> Hesíodo. Es esta distancia lo que<br />
determi<strong>na</strong> los dos planos, razas o mundos de los que habla el propio<br />
Gernet 301.<br />
A su vez el campo antropológico despliega la relación entre lo<br />
Mismo y lo Otro como categorías constitutivas y problemáticas del<br />
propio topos discipli<strong>na</strong>r.<br />
El presente artículo propone moverse en esa complejidad que el<br />
esce<strong>na</strong>rio antropológico sugiere.<br />
La tensión entre la Mismidad y la Otredad al interior del<br />
esce<strong>na</strong>rio antropológico-filosófico representa la tensión entre lo<br />
homogéneo y lo heterogéneo, lo semejante y lo desemejante, la<br />
continuidad y la discontinuidad; aquello que conserva la tradición y la<br />
memoria y aquello que desde su diferencia irrumpe discontinuando la<br />
tradición como suelo de pertenencia.<br />
A partir de esta tensión que borda la trama cultural, aparecen<br />
diferentes modos y tekh<strong>na</strong>i de abordar la problemática del Otro;<br />
diferentes modelos de instalación que suponen diferentes miradas, que se<br />
juegan, fundamentalmente, en el modo de concebir al otro, de<br />
considerarlo, el modo de aproximarse o de alejarse, incluso por el propio<br />
temor, rechazo o fasci<strong>na</strong>ción que su presencia áltera genera.<br />
La problemática transita, sin duda, por u<strong>na</strong> dimensión ontotopológica,<br />
ya que la tensión aludida parece resolverse en u<strong>na</strong> metáfora<br />
espacial, que se juega en prácticas de territorialización y<br />
desterritorialización, al tiempo que se define el registro de ser del Otro.<br />
La metáfora impacta, en primer lugar, sobre el topos mental que<br />
le asigno a la diferencia y siempre implica la perspectiva de un centro<br />
como núcleo-territorio de instalación de lo Mismo y como preservaciónconservación<br />
del topos de la identidad, y la dimensión de un margen<br />
como geografía de espacialización de lo Otro, y como forma de la<br />
exclusión-fijación de la diferencia.<br />
Lo Otro abre el campo de lo fantasmagórico porque suele estar<br />
asociado a la idea de lo extraño, inédito, raro, poco común. Pensar y<br />
301 Gernet, L. Antropología de la Grecia Antigua<br />
220
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
enfrentar al Otro es u<strong>na</strong> forma de mirar aquello opaco, extraño por<br />
extranjero y extranjero por extraño, que siempre conmueve las<br />
identidades conservadas y convoca a u<strong>na</strong> mirada interpretativa, a un<br />
gesto de traducción de esa ininteligibilidad desde la certeza interpretativa<br />
que la Mismidad se arroga, como modo incluso de conjurar su<br />
peligrosidad, su paradojal fasci<strong>na</strong>ción y su inusual presencia, que viene a<br />
discontinuar-fracturar el apacible topos de lo Mismo, en su doble<br />
acepción de lugar y condición.<br />
Es el mismo topos de la Otredad el que refuerza el dominio de la<br />
Mismidad como espejo invertido. La construcción de lo Otro es la<br />
mismísima condición de posibilidad de la reafirmación de lo Mismo. Por<br />
eso la construcción de la Otredad es histórica y deviniente. Lo normal y<br />
lo anormal, lo legal y lo ilegal, lo moral y lo inmoral, y otras tantas díadas<br />
conceptuales se nutren al amparo de esa primaria partición entre lo<br />
Mismo y lo Otro. Lo Mismo se mira en ese espacio extraño y refuerza su<br />
propia imagen, familiar y conocida, al tiempo que niega esa extrañeza<br />
radical, alejándose del imagi<strong>na</strong>rio que ella misma genera.<br />
Mirar esas otredades sobre las que se depositan los fantasmas es<br />
situarse en el borde, en el límite, en el margen donde claudican las<br />
propias certezas.<br />
Lo Otro porta con su presencia el germen de la discontinuidad. Se<br />
trata siempre de u<strong>na</strong> irrupción de la diferencia en el marco de lo Mismo,<br />
que introduce u<strong>na</strong> fractura en el paisaje onto-antropológico, regido por<br />
las pautas de la semejanza, homogeneidad, conservación, identidad. Lo<br />
Otro irrumpe desde su radical heterogeneidad, desde su lógica áltera,<br />
horadando las certezas que lo Mismo otorga.<br />
A la luz del marco teórico precedente, proponemos ubicarnos en<br />
el territorio de la divinidad, puntualmente en el topos de Artemisa, u<strong>na</strong><br />
diosa ―aparentemente‖ margi<strong>na</strong>l, para ver cómo repercuten los<br />
conceptos vertidos a propósito de topos recortado.<br />
En esa línea iniciaremos el apartado desplegando algu<strong>na</strong>s marcas<br />
identitarias de la diosa, para luego en el marco de las funciones que las<br />
caracterizan, ver cómo se juega en la tensión Mismidad-Otredad, tópico<br />
que hemos puesto en juego.<br />
221
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
B. Artemisa: las huellas de la distancia. Las paradojas de lo<br />
próximo y lo lejano<br />
Artemisa es u<strong>na</strong> diosa leja<strong>na</strong> por excelencia; tal como la describe<br />
Otto, ―ama la solicitud de las selvas y montañas y juega con los animales<br />
salvajes‖ 302. La lejanía parece estar vinculada no sólo con ciertas<br />
preferencias geográficas y de compañías, sino también con cierta<br />
experiencia ambigua y paradojal de su propio registro divino. Es como si<br />
lo lejano se solidarizara con lo extraño y misterioso que su propio<br />
estatuto como divinidad guarda.<br />
Diosa vinculada a la <strong>na</strong>turaleza, su registro parece estar asociado a<br />
la libertad que ésta encar<strong>na</strong>; no se trata de lo femenino desde el registro<br />
canónico de las especificidades del género; no es la gran madre universal,<br />
que pare y alimenta la vida toda como rasgo domi<strong>na</strong>nte.<br />
La ambigüedad parece marcar su campo identitario. Diosa virgen,<br />
mater<strong>na</strong>l y delicadamente solícita, enlazada con la lógica del parto, sin ser<br />
ella misma madre. Alejada de la función mater<strong>na</strong> en su calidad de virgen,<br />
no obstante, es ella quien preside la ritualidad femeni<strong>na</strong>. Comanda y<br />
preside el parto desde la distancia de quien no se involucra en él.<br />
También es propio de ella desaparecer hacia la lejanía: ya los<br />
argivos celebraban su salida y su entrada, y, al igual que su hermano, se<br />
relacio<strong>na</strong> con los hiperbóreos. Su reino es siempre lejano: las regiones<br />
despobladas, solitarias, sólo pobladas por animales salvajes. Las marcas<br />
territoriales como constitutivas de su identidad parecen asociarse a su ser<br />
en lejanía.<br />
La misma distancia habla de su condición virgi<strong>na</strong>l, conjurando<br />
cualquier cercanía que suponga contacto con el otro. Esto no implica<br />
contradicción algu<strong>na</strong> con su ser mater<strong>na</strong>l. El tipo de maternidad que<br />
Artemisa representa supone la lejanía de quien sólo preside la función,<br />
alejada de todo contacto. Presencia paradojal que, desde la distancia,<br />
cumple u<strong>na</strong> función íntima, tensio<strong>na</strong>ndo la díada cercano-lejano. Tal<br />
como sostiene Otto, ―la maternidad solícita se aviene con la frialdad virgi<strong>na</strong>l‖ 303.<br />
Divinidad concebida exclusivamente como virgen, rodeada siempre de<br />
doncellas divi<strong>na</strong>s que constituyen sus infaltables compañeras, que sí se<br />
302 Otto, W. Los dioses de Grecia, p. 50.<br />
303 Otto, W. Los dioses de Grecia, p. 67.<br />
222
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
entregan al amor. Por ello Atalanta es la más artemisia<strong>na</strong> de las jóvenes,<br />
siempre leja<strong>na</strong> y rehusando las delicias de los contactos más cercanos.<br />
Alejada del matrimonio, de los lugares poblados, de los propios<br />
hombres en su proximidad con los animales salvajes, Artemisa es u<strong>na</strong><br />
divinidad que, tal como hemos intentado referir, se juega en los<br />
márgenes de la lejanía; no obstante, y, en el marco de la lógica identitaria<br />
que se impone, es, asimismo, u<strong>na</strong> divinidad cerca<strong>na</strong> y próxima al mundo<br />
de la cultura, u<strong>na</strong> diosa civilizadora por excelencia.<br />
He aquí el primer hilván de u<strong>na</strong> trama que asocia a la diosa con la<br />
construcción de lo Mismo como ficción cultural. Artemisa, en su<br />
identidad civilizadora, delinea el topos de lo Mismo, al tiempo que borda<br />
las fronteras entre lo permitido y lo no aceptado.<br />
C. Artemisa: u<strong>na</strong> cuestión de gendarmería<br />
Artemisa es u<strong>na</strong> diosa de los márgenes. Su territorialidad es el<br />
enclave donde se demarcan territorios, donde se bordan las fronteras y<br />
los espacios que obedecen a ciertas reglas o no. Los topoi en cuestión son<br />
los que representan la Mismidad y la Otredad como categorías<br />
domi<strong>na</strong>ntes, lo civilizado y lo salvaje, como términos constituyentes de la<br />
configuración identitaria, tanto del individuo, como de la sociedad en su<br />
conjunto. Términos no sólo constituyentes, sino instituyentes del topos<br />
identitario.<br />
Dicha configuración se articula, en última instancia., a partir de<br />
los juegos y tensiones de ambas estructuras, de la domi<strong>na</strong>ncia de u<strong>na</strong><br />
sobre otra, de la hegemonía o sumisión que desplieguen en el esce<strong>na</strong>rio<br />
de constitución aludido.<br />
Un individuo se constituye culturalmente a partir de la victoria<br />
de los rasgos civilizatorios sobre las marcas de salvajismo. Del mismo<br />
modo, la polis organiza su identidad socio-antropológica a partir de la<br />
misma hegemonía.<br />
La polis misma se instituye sólo a partir del triunfo de lo Mismo<br />
sobre lo Otro, más allá de que toda construcción implica la tensión de<br />
los términos.<br />
Artemisa cumple un lugar preponderante en este juego de<br />
gendarmería, en esta vigilia sostenida para termi<strong>na</strong>r alzándose con el<br />
223
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
triunfo de lo civilizado frente a lo salvaje. Artemisa civilizadora, capaz de<br />
custodiar las fronteras que delinean conductas y valores.<br />
Pensemos cuál es el territorio comprometido y cuáles son las<br />
funciones para ver sus rasgos civilizatorios. Sus espacios son los lugares<br />
generalmente húmedos, donde el agua, o bien permanece, como los<br />
pantanos o las cié<strong>na</strong>gas, o bien, se ha retirado, dejando un topos anegado.<br />
Fundamentalmente se trata de ese espacio entre el agua y la tierra, entre<br />
un topos firme, asiento de la ciudad y otro acuoso, deviniente y móvil.<br />
Así, no son los bosques y las montañas sus únicos enclaves, sino<br />
un conjunto de lugares limi<strong>na</strong>les, marcados por la noción de límite, de<br />
confín, de margen que delimita espacios heterogéneos, de distinta<br />
densidad topológica, pero también de distinta densidad antropológica. El<br />
fondo del espacio a delimitar es el topos de lo civilizado frente al territorio<br />
incivilizado, la tierra cultivada de la no cultivada, la geografía humanizada<br />
de la no humanizada, la región marcada por la cultura de la porción aún<br />
no culturalizada. La domi<strong>na</strong>ncia del verbo colo asociado a la noción de<br />
cultura marca el gesto interpretativo; el espacio otro es el espacio no<br />
cultivado; pero hay un espacio vinculado a la noción de lo Mismo y es<br />
{ese que ha pasado por el gesto civilizatorio.<br />
El espacio en realidad es el referente metafórico de u<strong>na</strong><br />
especialidad otra que tensio<strong>na</strong> lo civilizado y lo incivilizado, lo culto y lo<br />
bárbaro, lo humano y lo salvaje. El relato topológico es excusa de la<br />
<strong>na</strong>rrativa antropológica. Artemisa se juega en u<strong>na</strong> espacialidad difusa<br />
entre lo Uno y lo Otro pero la lección es de neto corte antropológico: es<br />
ella la que custodia el espacio Mismo.<br />
Cuando los espacios son heterogéneos la función de gendarmería<br />
es capital porque implica la custodia de las fronteras, la vigilancia de lo<br />
que no puede mezclarse ni confundirse, a riesgo de caer en los peligros<br />
que uno de los topoi conlleva. Hay siempre un topos mismo y un topos otro,<br />
un topos que representa el territorio donde se constituye la Mismidad y<br />
uno donde se territtorializa la Otredad.<br />
Artemisa es la divinidad territorializante por excelencia. Su tarea es<br />
precisamente esa tarea de gendarmería, que instituye la custodia de los<br />
territorios, la delimitación de los espacios para mantener los respectivos<br />
estatutos; tecnología indispensable para el dispositivo orde<strong>na</strong>dor; lógica<br />
224
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
discipli<strong>na</strong>r que evita las mezclas y las confusiones a-cósmicas 304. Nada<br />
más peligroso que las intersecciones indeseables; <strong>na</strong>da más<br />
imprescindible que u<strong>na</strong> divinidad capaz de conducir los tránsitos de un<br />
espacio a otro y de territorializar los elementos heterogéneos. Se trata de<br />
u<strong>na</strong> acción cosmificante, guardia<strong>na</strong> del orden. El horizonte del verbo<br />
kosmeo se reactualiza en esta Artemisa funcio<strong>na</strong>l a la gesta civilizatoria.<br />
Orde<strong>na</strong>r, arreglar, disponer, preparar, gober<strong>na</strong>r, celebrar. Escogemos<br />
algunos sentidos porque impactan directamente en el esce<strong>na</strong>rio de<br />
configuración de u<strong>na</strong> divinidad que, desde cierto lugar margi<strong>na</strong>l, prepara<br />
el pasaje al meson. Artemisa orde<strong>na</strong> el espacio, configurando sus límites,<br />
arregla las condiciones del tránsito, allí donde se trata de traspasar las<br />
fronteras de lo salvaje para penetrar en el espacio de lo civilizado, dispone<br />
la ritualización que todo pasaje implica cuando el desplazamiento está<br />
subtenido por las regulaciones que la divinidad exige, gobier<strong>na</strong> y manda<br />
sobre todos los espacios, los mismos y los otros, celebra el pasaje porque<br />
de él depende la consolidación del espacio cívico.<br />
D. Artemisa: Las exigencias de la ciudad.<br />
La ciudad es un espacio reglado, que exige orden para su<br />
constitución y organización. Lejos de ser un territorio improvisado, que<br />
responde a la a<strong>na</strong>rquía del azar, la ciudad es un kosmos, un microcosmos<br />
que refleja en su organización la misma regulación que el kosmos. Se trata<br />
entonces de u<strong>na</strong> geografía sobrecargada de marcas culturales que la<br />
convierten en un esce<strong>na</strong>rio textil: allí se despliega el tejido de la urdimbre<br />
cultural, convirtiendo a la ciudad en un espacio común, en un topos<br />
donde se coloca lo que es de todos.<br />
La ciudad tiene sus exigencias. El tránsito de lo salvaje a lo<br />
civilizado, rasgo instituyente de la polis en su configuración políticoantropológica,<br />
implica la observancia de ciertos enclaves que deben ser<br />
considerados con esmero: la guerra, la batalla, el matrimonio, el parto,<br />
304 El relato referido al dispositivo orde<strong>na</strong>dor supone la interpretación de Michel<br />
Foucault sobre las exigencias del orden y de la discipli<strong>na</strong> en la constitución de lo<br />
Mismo y de lo Otro. No hay topos de inscripción de las palabras y las cosas, de lo<br />
que se ve y de lo que se nombra sin esa planicie que el control delinea en su<br />
gesta instituyente.<br />
225
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
todos intersticios por donde circula la tensión entre hybris y sophrosyne, el<br />
peligroso límite entre lo salvaje y lo civilizado, entre lo humano y lo<br />
bestial, entre lo mismo y lo otro.<br />
Artemisa es funcio<strong>na</strong>l a las exigencias de la ciudad. Interviene allí,<br />
en cada u<strong>na</strong> de las regiones que la polis exige para su consolidación cívica.<br />
Esto abre u<strong>na</strong> dimensión política de la diosa, en tanto involucrada<br />
directa en el orden de la misma, en tanto co-gestora de u<strong>na</strong> legalidad que<br />
no puede prescindir de sus dones regulativos. Artemisa política, ya que su<br />
acción es productora de efectos.<br />
Hay en ella un punto de contacto con su hermano Apolo; hijos<br />
ambos de Zeus y Leto, la asaeteadora Artemisa como la llama Hesíodo<br />
muy i<strong>na</strong>uguralmente cuando describe la primera genealogía olímpica, es,<br />
como su hermano, la guardia<strong>na</strong> del orden, aquella que conjura el tránsito<br />
peligroso hacia la otredad.<br />
Apolo con su función legislativa, en su dimensión de nomothetes,<br />
también vela por el triunfo de la sophrosyne. Sus recomendaciones en<br />
torno a la mesura y los riesgos de la hybris se inscriben en u<strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa<br />
análoga que hace de la cuestión del límite u<strong>na</strong> pieza domi<strong>na</strong>nte en la<br />
economía cívico-religiosa griega. Si los hombres, por su propia<br />
precariedad antropológica, no saben delimitar fronteras, entonces allí<br />
están los hermanos, desde sus peculiaridades identitarias, desde sus<br />
territorialidades singulares, velando por las demarcaciones constituyentes<br />
de la subjetividad.<br />
En el marco de la expansión colonial griega, el proceso de<br />
fundación de las ciudades exigió la presencia de ese Apolo nomothetes<br />
como garante de la configuración cartográfica que terminó desplegando<br />
el mapa de los griegos 305. Artemisa se hace presente complementando la<br />
labor familiar. También de ella la ciudad requiere funciones capaces de<br />
aliviar el difícil trance hacia la vida cívica. En cierto sentido, la ciudad<br />
reclama expertos en el arte de la conducción. La figura del pastor que<br />
caracteriza a su prestigioso hermano, se perpetúa en esta divinidad<br />
305 Sobre este tema, puede consultarse el libro de Marcel Detienne, Apolo con el<br />
cuchillo en la mano, en el cual el autor presenta esa dimensión cartográfica del<br />
Apolo arquitecto, constructor de ciudades, rasgos que suponen, a su vez,<br />
reconocer al Apolo de los caminos.<br />
226
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
acostumbrada a conducir no sólo los tránsitos necesarios, sino también<br />
la guerra, la batalla, lugar propicio de un posible triunfo de la desmesura;<br />
conductora del parto y por ende, de la vida misma, Artemisa parece<br />
conjugar como bue<strong>na</strong> olímpica las dimensiones del verbo ago: conduce la<br />
batalla para cuidar sus límites humanos, lleva de u<strong>na</strong> orilla a otra, produce<br />
el pasaje de un estado a otro, por ejemplo, de la niñez a la adultez, dirige<br />
la transición de u<strong>na</strong> categoría a otra, traza las condiciones de los rituales<br />
que el propio tránsito exige, educa a las niñas en vista de su formación de<br />
esposas, celebra los pasajes aludidos como corresponde a semejante<br />
momento, guarda las fronteras entre lo Mismo y lo Otro, observa que se<br />
cumplan sus regulaciones. Artemisa conductora.<br />
D.1. El esce<strong>na</strong>rio de la caza<br />
―En las fronteras de dos mundos, señalando sus límites y asegurando con su<br />
presencia su justa articulación, Artemisa preside la caza‖ 306. La caza es u<strong>na</strong><br />
actividad fundamental al interior de la constitución de la subjetividad<br />
griega. Es el espacio de consolidación de la virilidad, ya que está<br />
atravesada por un marco sobrecargado de reglas y valores que ponen a<br />
prueba la integridad del varón. Es el esce<strong>na</strong>rio propicio para u<strong>na</strong><br />
demostración de destreza y tekhne que posicio<strong>na</strong> al varón en el lugar<br />
privilegiado del vencedor del pequeño agon que la pieza opone. Es u<strong>na</strong><br />
justa entre hombre y bestia, entre lo humano y lo no humano, lo<br />
estrictamente antropológico y lo Otro en tanto bestia, que obedece a<br />
cierta legalidad porque es también el lugar propicio para la desmesura,<br />
para transgredir la frontera huma<strong>na</strong> y mimetizarse con la presa. Como<br />
otras tantas actividades que la vida social propone, es el kairos, el<br />
momento oportuno, la coyuntura favorable, la oportunidad, para medir<br />
la conducta del varón prudente, quien se ve obligado a desplegar la<br />
estilística que la caza supone como actividad pautada. El peligro de caer<br />
en el salvajismo es directamente proporcio<strong>na</strong>l al peligro de caer presa de<br />
la desmesura, de convertirse él mismo en presa, cuando el imperativo es<br />
conducir con arte y mesura la caza de la presa deseada.<br />
Aretemisa es la gran conductora; es ella la que advierte los peligros<br />
que tamaña empresa entraña. Si la actividad se inscribe en el horizonte<br />
306 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 24.<br />
227
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
de ciertas prescripciones socio-religiosas, la función de la diosa es<br />
imprescindible. Tarea cartográfica de deslindar lo Mismo de lo Otro<br />
como forma de conjurar los peligros que las mezclas reportan. Tal como<br />
sostiene Ver<strong>na</strong>nt:<br />
Por consiguiente, Artemisa no es el salvajismo.<br />
Actúa de manera tal que las fronteras entre lo<br />
salvaje y la civilización se vuelven permeables, por<br />
así decirlo, porque la caza permite atravesarlas.<br />
Pero al mismo tiempo las fronteras conservan su<br />
nitidez, caso contrario los hombres caerían en el<br />
salvajismo 307 .<br />
Artemisa vuelve a parecer en ese topos delicado que constituye la<br />
frontera entre lo Mismo y lo Otro, lo bestial y lo humano, lo incivilizado<br />
y lo civilizado, lo cultivado y lo no cultivado en términos humanos.<br />
Artemisa se vuelve ella misma nomothetes porque, como dig<strong>na</strong><br />
herma<strong>na</strong> de Apolo, vela por la observancia de las leyes que hacen de la<br />
caza u<strong>na</strong> actividad huma<strong>na</strong>, culturalmente valorada y socialmente<br />
observada. Artemisa legisladora.<br />
D. 2. El esce<strong>na</strong>rio de la crianza<br />
Su dimensión de nodriza no conoce distinción de categorías; tanto<br />
animales como humanos conocen y se benefician de su función. Se trata<br />
de la nodriza que conoce las reglas de maduración y sabe el camino que<br />
conduce a la etapa adulta. Tránsito y pasaje de estado es el imperativo de<br />
esta nueva función socio-política que asegura la constitución de las poleis<br />
en la medida que reporta el recurso adulto que ejerce la función política.<br />
Se trata de conducir el pasaje de la niñez a la adultez, más precisamente,<br />
a la adolescencia, momento nodular en la historia del individuo porque<br />
marca el inicio de la sociabilidad. Artemisa conoce las reglas del tránsito,<br />
au<strong>na</strong>ndo en su función la dupla saber-poder, que la territorializa a esa<br />
doble condición política: sabe y puede. Se trata de depositar al joven en<br />
ese exacto lugar que la ciudad sabe capturar para ejercer sobre el futuro<br />
hombre político el trabajo de la paideia como empresa modeladora y<br />
moral. Para que la ciudad haga del joven el ciudadano que espera y<br />
307 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 24.<br />
228
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sueña, funcio<strong>na</strong>l al dispositivo político, es menester cumplir con las<br />
pautas que el tránsito exige. Artemisa es u<strong>na</strong> artista en las filigra<strong>na</strong>s del<br />
tránsito.<br />
La función tampoco conoce de sexos. Si el efebo es conducido<br />
hasta el umbral del soldado-ciudadano, la niña es conducida hasta el<br />
margen del matrimonio. Su función se vuelve, u<strong>na</strong> vez más, sociopolítica,<br />
consolidando y asegurando los modelos genéricos que la polis<br />
delinea. La esposa y el polites constituyen las figuras emblemáticas de u<strong>na</strong><br />
sociedad que monta su modelo de constitución en cierta partición<br />
genérica en torno a las funciones, espacialidades y roles atribuidos.<br />
La función de la diosa es altamente calificada, ya que prepara lo<br />
que va a constituir el esce<strong>na</strong>rio cívico: los varones ciudadanos y soldados,<br />
velando por los límites orde<strong>na</strong>dos de la ciudad y las mujeres<br />
coadministrando el oikos en u<strong>na</strong> tarea de gendarmería, ya que se trata de<br />
administrar prudentemente lo acumulado y conservado en su interior.<br />
De eso se trata la función de la synergos al interior de la gestión<br />
económica, como arte de administración del oikos. La tarea de vigilancia<br />
se repite pues en el plano humano. Aquella tarea reservada a Artemisa en<br />
su función de delimitar las fronteras entre el mundo infantil, casi animal,<br />
y el mundo adulto, retor<strong>na</strong> en el cuidado de las fronteras que vigilan el<br />
orden de la ciudad, como ciudadela a proteger y el orden del oikos, como<br />
estructura isomorfa 308.<br />
No sin u<strong>na</strong> serie de rituales perfectamente delimitados y<br />
custodiados por Artemisa, llevan a niños y niñas a los umbrales de la<br />
edad adulta y las exigencias de la vida cultural de la polis.<br />
U<strong>na</strong> vez más su lugar es el topos de la frontera; frontera entre dos<br />
topoi, categorías, estatutos. No en vano estos últimos términos forman<br />
parte de las acepciones de la palabra topos. Del niño al joven, de la niña a<br />
la parthenos, pura, virgen, futura esposa que ha de darle a la polis los hijos<br />
que ésta requiere para el recambio político. Tal como sostiene Ver<strong>na</strong>nt:<br />
[…] durante su crecimiento, antes de dar ese paso,<br />
los jóvenes, como la diosa, ocupan u<strong>na</strong> posición<br />
308 Tal parece ser la preocupación político-económica que Jenofonte plantea en<br />
su Económica como problematización del arte de gober<strong>na</strong>r la casa.<br />
229
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
limi<strong>na</strong>r, incierta y equívoca, donde las fronteras<br />
que separan a los niños de las niñas, los jóvenes de<br />
los adultos, las bestias de los hombres, todavía no<br />
están cristalizadas 309 .<br />
Conductora del tránsito, Artemisa logra que se franqueen las<br />
fronteras entre lo Mismo y lo Otro. Facilita la entrada al mundo de la<br />
mismidad, plasmada en la organización de la ciudad, reglada por sus<br />
instituciones, distribuidoras de roles y funciones. Sólo Atalanta parece<br />
haberse quedado sin cruzar las fronteras; aferrada a u<strong>na</strong> virginidad que le<br />
imposibilita hacerse mujer, obturando el salto hacia la orilla del<br />
matrimonio.<br />
En cambio, las hijas de Atenea sí logran el pasaje<br />
satisfactoriamente. Para ello, desde los cinco a los diez permanecen junto<br />
a Artemisa, para hacerse osas, abando<strong>na</strong>r su estatuto de osas salvajes y<br />
domesticarse junto a la artesa<strong>na</strong> de los tránsitos. Son estas niñas que<br />
siguen el camino de la osa las mejores discípulas de u<strong>na</strong> Artemisa nodriza<br />
que conoce como <strong>na</strong>die las delicias de los cambios de registro.<br />
Ritual y discipli<strong>na</strong> parecen ser los ejes que posibilitan el tránsito.<br />
Alejadas de sus hogares, esto es de la condición de niña o cachorra, las<br />
mujeres aprenden en su estadía junto a Artemisa las delicias de la vida<br />
conyugal, instalándolas en la comunidad civilizada.<br />
Artemisa instituye, en última instancia, la consolidación de lo<br />
Mismo, vela por la realización del modelo instituido y cumple u<strong>na</strong><br />
función crítica. En efecto, al configurar las consolidaciones identitarias,<br />
despeja las mezclas y las confusiones y así discrimi<strong>na</strong>, distingue,<br />
discierne, asume el campo lexical del verbo krino, distingue entre lo<br />
femenino y lo masculino, lo niño y lo adulto, lo animal y lo humano.<br />
Artemisa pedagoga.<br />
D. 3. La dimensión del parto<br />
Artemisa se hace presente en cada lugar vinculado al tránsito. No<br />
sólo al pasaje de estadios y registros, sino también al más contundente de<br />
los tránsitos: el que supone el <strong>na</strong>cimiento, como tránsito hacia la vida<br />
309 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 25.<br />
230
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
misma. Artemisa, completando su función de nodriza, preside el parto,<br />
con lo cual consolida su dimensión fuertemente ligada a lo femenino.<br />
Matrimonio y parto parecen ser los enclaves de u<strong>na</strong> tradición que ubica a<br />
las mujeres en el centro de la vida socio-cultural. Capital paradoja de<br />
quien vela por los topoi emblemáticos de la consolidación familiar<br />
manteniéndose ella misma alejada del topos.<br />
La Artemisa Lochia, conductora del parto y del <strong>na</strong>cimiento, cierra<br />
así u<strong>na</strong> tarea que se ha iniciado con la preparación para este momento<br />
culmi<strong>na</strong>nte. Es como si la diosa acompañara los distintos momentos,<br />
desde la primera infancia, confusa, tan emparentada aún con lo animal y<br />
con la indefinición sexual, hasta la madurez del alumbramiento,<br />
momento de nitidez en los registros antropológicos: es u<strong>na</strong> mujer adulta,<br />
la única capaz de parir. Artemisa está así fuertemente vinculada a los<br />
procesos de constitución identitaria: las niñas que se hacen mujeres y<br />
madres, los niños que se hacen hombres y soldados o ciudadanos.<br />
Podemos afirmar que se trata de u<strong>na</strong> divinidad subjetivante, porque<br />
interviene directamente en los procesos de constitución de los sujetos.<br />
Todo proceso de subjetivación implica cruzar fronteras, ya que supone el<br />
movimiento y el cambio como motor de la constitución. Artemisa parece<br />
delinear el camino que recorre las fases subjetivantes de las respectivas<br />
identidades que la polis alberga.<br />
Artemisa es u<strong>na</strong> diosa nomádica, acompaña el desplazamiento, ya<br />
que sin movimiento no hay pasaje de fronteras. El movimiento es la<br />
antítesis de lo inmutable, por eso Artemisa está fuertemente<br />
emparentada con la vida: crecimiento, pasajes, matrimonio, parto, caza,<br />
guerra. Puro movimiento de u<strong>na</strong> divinidad que conjura con su presencia<br />
las configuraciones estáticas y cristalizadas.<br />
Artemisa parece estar marcada por la proximidad a lo animal; un<br />
rasgo de animalidad suele acompañarla en cada instancia; cada tránsito<br />
que posibilita entraña cierto parentesco con lo Otro. Presente en la caza,<br />
las bestias devuelven su rostro otro, insistente en la guerra, la posibilidad<br />
de la muerte acecha a cada paso, visible en el parto, lo más salvaje de la<br />
vida se muestra en estado crudo. En efecto, el alumbramiento constituye<br />
el momento más animal, más sanguíneo de la institución matrimonial,<br />
articulada con el <strong>na</strong>cimiento.<br />
231
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
El parto parece evocar con los distintos elementos que lo<br />
constituyen, gritos, gemidos, dolores, imágenes de ese mundo salvaje,<br />
bestial, <strong>na</strong>tural, no civilizado aún; imágenes de un topos otro que es<br />
precisamente el que Artemisa permite abando<strong>na</strong>r, posibilitando la<br />
entrada a otro territorio sobrecargado de gesto cultural.<br />
La llegada del recién <strong>na</strong>cido aleja ese mundo y pone al niño en el<br />
umbral del topos civilizado, en el inicio de u<strong>na</strong> vida atravesada por la<br />
cultura, aunque, en un primer momento, él mismo evoca la imagen de un<br />
indefenso animal. Tal como sostiene Ver<strong>na</strong>nt a propósito de la mujer<br />
parturienta, es precisamente ella la que<br />
[…] expresa a los ojos de los griegos el aspecto<br />
salvaje y animal de la femineidad en el preciso<br />
momento cuando la esposa, al entregar un futuro<br />
ciudadano a la ciudad -reproduciéndola- parece<br />
más integrada que nunca al mundo de la cultura 310 .<br />
Si Artemisa cumple u<strong>na</strong> función socio-política, marcada en el<br />
presente trabajo más de u<strong>na</strong> vez, es ahora la mujer la que, desde su rol<br />
subordi<strong>na</strong>do en un universo viril por excelencia, despliega u<strong>na</strong> función<br />
socio-política brindando los hijos que la polis requiere para su<br />
conservación como estructura organizada.<br />
Artemisa ha demostrado vocación por los cuidados y la<br />
observancia. El parto es el momento oportuno, el nuevo kairos para que<br />
la diosa ejerza su función de gendarmería. Su contacto con la animalidad,<br />
el riesgo que el propio momento conlleva la pone en u<strong>na</strong> actitud atenta y<br />
vigilante para que ese tránsito hacia la vida sea satisfactorio, para que ese<br />
tránsito quede perfectamente vigilado en su funcio<strong>na</strong>lidad específica y<br />
los topoi heterogéneos que el mismo entraña queden cuidadosamente<br />
preservados.<br />
D. 4. La dimensión de la guerra y la batalla<br />
La guerra constituye un nuevo kairos para u<strong>na</strong> diosa acostumbrada<br />
a la conducción, u<strong>na</strong> nueva oportunidad para entrar en esce<strong>na</strong> y<br />
310 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 29.<br />
232
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
deleitarnos con u<strong>na</strong> acción humanizadora. La asaeteadora Artemisa<br />
conduce la guerra, velando por ella, por su posible des-orbitancia, hybris.<br />
Hay en ella u<strong>na</strong> dimensión salvífica porque guía a los hombres para que<br />
no caigan en la animalidad, en ese ámbito Otro; topos desubjetivante que<br />
acarrea el mayor de los peligros, dejar de ser hombres al transgredir con<br />
su ación el topos de la cultura, vale decir el universo pautado que hace de<br />
la ciudad un kosmos habitable.<br />
El salvajismo constituye un estado otro, un cruce de límites entre<br />
lo aceptado y lo rechazado, precisamente porque retrotrae al hombre a<br />
un estado animal que lo aleja de su dimensión antropológica. Con el<br />
estado bestial al que la guerra puede conducir, el hombre cruza<br />
nuevamente el límite de lo otro y así peligra su condición.<br />
Por ello debe velar Artemisa. Mucho ha costado delimitar las<br />
fronteras, cuidar los límites y las demarcaciones para que el furor bélico<br />
no vuelva el universo a-cósmico. En ese sentido:<br />
Artemisa interviene en el enfrentamiento cuando<br />
el empleo excesivo de la violencia rompe los<br />
marcos civilizados en cuyo interior rigen las<br />
normas de la lucha militar, y la impulsan<br />
brutalmente al salvajismo 311 .<br />
Guardia<strong>na</strong> de los órdenes, Artemisa cumple, u<strong>na</strong> vez más, con el<br />
imperativo del verbo fulasso, guardar, custodiar, estar de guardia o<br />
centinela, vigilar, estar en guardia o con cuidado, atender, observar,<br />
proteger, conservar, mantener, tener cuidado de. Magnífico abanico<br />
semántico, donde cada término parece impactar en las dimensiones de la<br />
diosa gendarme. No hay constitución algu<strong>na</strong> por fuera de un dispositivo<br />
de gendarmería: ni política, ni territorial, ni moral, ni subjetiva. La<br />
delimitación de cualquier territorio supone la cuidadosa partición de los<br />
elementos. Artemisa guardia<strong>na</strong>.<br />
La batalla es el esce<strong>na</strong>rio propicio para u<strong>na</strong> nueva presencia de la<br />
diosa. El peligro acecha nuevamente en ese lugar limi<strong>na</strong>r donde la<br />
dimensión agonística que la batalla implica pone a los hombres en el<br />
311 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 30.<br />
233
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
umbral de u<strong>na</strong> muerte no huma<strong>na</strong>, de u<strong>na</strong> muerte transida por las pautas<br />
bestiales del salvajismo, de u<strong>na</strong> muerte salvaje. La muerte es también un<br />
acto cultural, transido por u<strong>na</strong> legalidad que le es propia para que pueda<br />
ser encerrada en los parámetros civilizados. Hybris y sophrosyne persisten e<br />
insisten en cada manifestación de la vida de los hombres que han<br />
pactado vivir en sociedad. La muerte no escapa a las generales de la ley.<br />
Por lo tanto allí está Artemisa, con su esbelta talla, velando por la lucha<br />
dig<strong>na</strong>. Tal como sostiene Ver<strong>na</strong>nt,<br />
[…]en la intersección de los dos campos, en el<br />
momento crítico, en u<strong>na</strong> situación limi<strong>na</strong>l, la<br />
sphage, el deguello sangriento de la bestia, no sólo<br />
representa la frontera entre la vida y la muerte, la<br />
paz y la batalla; también cuestio<strong>na</strong> el límite entre el<br />
orden civilizado (…) y el reino del caos 312 .<br />
E. Conclusiones<br />
Sin duda la Antropología, tanto desde el pasado como en la<br />
actualidad, enfrenta la compleja tensión entre la Mismidad y la Otredad<br />
como uno de los núcleos domi<strong>na</strong>ntes de problematización al interior de<br />
su campo discipli<strong>na</strong>r.<br />
En ese otro se juegan ciertas dimensiones que pasaremos a<br />
enmarcar en un juego de metáforas. Hay en el Otro u<strong>na</strong> cierta dimensión<br />
de opacidad, que suele ubicarlo en un punto de irracio<strong>na</strong>lidad.<br />
La problemática transita por u<strong>na</strong> cuestión topológica, ya que la<br />
tensión aludida parece resolverse en u<strong>na</strong> metáfora espacial, que se juega en<br />
prácticas de territorialización y desterritorialización. Los sujetos quedan<br />
siempre espacializados al interior de ciertos topoi, territorios, según su<br />
cualificación antropológica. Los espacios suelen ser funcio<strong>na</strong>les a las<br />
utopías clasificatorias y a las necesidades ficcio<strong>na</strong>das por los dispositivos<br />
de poder. La metáfora implica la perspectiva de un centro como núcleo<br />
de instalación de lo Mismo y como preservación del topos de la identidad,<br />
y la perspectiva de un margen como espacio de lo Otro, y como forma<br />
de la exclusión-fijación de la diferencia.<br />
312 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 31.<br />
234
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
La Mismidad construye la familiar consideración autorreferencial<br />
de la humanidad y la Otredad interpone la duda de la no humanidad, o<br />
de u<strong>na</strong> humanidad disminuida en su plenitud de ser; se trata siempre de<br />
cierta e incomodante forma de la anormalidad, de la extrañeza, que<br />
rompe las certezas que lo Mismo otorga como suelo firme, como Grund,<br />
cimiento, inconmovible para toda construcción identitaria.<br />
Si lo Otro constituye esa ame<strong>na</strong>za latente, entonces se explica la<br />
metáfora espacial de un cuidadoso trabajo de gendarmería, que incluye<br />
prácticas de inter<strong>na</strong>miento, exclusión, secuestro, entre otras experiencias<br />
políticas tendientes a fijar a los sujetos a los espacios que sus<br />
peculiaridades exigen.<br />
Los topoi, espacios, territorios, serán cuidadosamente delimitados<br />
y celosamente custodiados, al tiempo que se generarán saberes y<br />
discursos a los efectos de poder visibilizar la diferencia. Sabemos de la<br />
solidaridad entre los espacios y las configuraciones mentales. El espacio<br />
es u<strong>na</strong> variable insustituible a la hora de delinear ciertos dispositivos de<br />
poder. La otredad no escapa a la regla. Visibilizarla, territorializarla y<br />
manejarla tecnológicamente, como modo de conjurar su peligrosidad,<br />
supone cierta cartografía, cierta distribución de los sujetos en el espacio.<br />
En el corazón de esta preocupación, Artemisa es funcio<strong>na</strong>l al<br />
dispositivo de consolidación del territorio de lo Mismo.<br />
313 Ver<strong>na</strong>nt, J.P. La muerte en los ojos. p. 31.<br />
Cazadora, nodriza, partera, salvadora de la guerra y<br />
la batalla, Artemisa es siempre la divinidad de las<br />
márgenes, con el doble poder de administrar el<br />
pasaje necesario entre el salvajismo y la civilización<br />
y delinear estrictamente sus fronteras precisamente<br />
cuando llega el momento de franquearlas 313 .<br />
235
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
XENOPHON (Jenofonte), A<strong>na</strong>base,Èconomique, Librairie Garnier Frères,<br />
Paris, s/d<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
COLOMBANI, M. C. Foucault y lo político, Buenos Aires, Prometeo, 2009<br />
DETIENNE, M. Maestros de Verdad en la Grecia Arcaica. Madrid, Taurus,<br />
1986.<br />
______. .Apolo con el cuchillo en la mano: U<strong>na</strong> aproximación experimental al<br />
politeísmo griego. Madrid, Akal, 2001.<br />
FOUCAULT, M. Las Palabras y las Cosas Siglo XXI, México, 1968<br />
GARRETA, M. y BELLELI, C. La trama cultural. Textos de Antropología.<br />
Buenos Aires: Editorial Caligraf, 1999.<br />
GERNET, L. Antropología de la Grecia antigua. Madrid, Taurus, 1981.<br />
NILSSON, M. P. Historia de la religiosidad griega. Madrid, Editorial Gredos,<br />
1969<br />
OTTO, W. Los dioses de Grecia. Buenos Aires, Editorial Eudeba, 1973.<br />
VERNANT, J.-P. La muerte en los ojos. Buenos Aires, F.C.E., 2000.<br />
______. Mito y pensamiento en la Grecia antigua. Barcelo<strong>na</strong>, Ariel, 2001.<br />
236
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MULHERES EM TEMPO DE GUERRA - A HÉCUBA DE<br />
EURÍPIDES<br />
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Souza e Silva 314<br />
A Hécuba pertence ao número das peças que Eurípides dedicou a<br />
um retrato do pós-guerra, centrado não sobre a glória que os heróis<br />
almejam retirar do combate, mas sobre os destroços que restam quando<br />
os combatentes, enfim, baixam os braços. É a memória de uma cidade<br />
feita em fumo e a imagem de mulheres e jovens conde<strong>na</strong>das à servidão e<br />
à morte, o quadro e os agentes que interagem, em primeiro plano, no<br />
acampamento aqueu <strong>na</strong> Trácia, perante os Aqueus vencedores que, de<br />
regresso à pátria, lá se detêm.<br />
Com a ruí<strong>na</strong>, colectiva e pessoal, coincide uma profunda crise de<br />
valores que a guerra inevitavelmente instala. E são claros os princípios<br />
que Eurípides traz à discussão, com insistência, e sem dúvida inspirado<br />
<strong>na</strong> experiência em que quase uma década de guerra mergulhara o mundo<br />
grego 315. Em diversos tons e contextos, valores como charis, philia, dike,<br />
nomos, axioma são avaliados <strong>na</strong> pureza do seu sentido, em confronto com<br />
uma relatividade a que a guerra e a nova ordem social que Ate<strong>na</strong>s vive os<br />
sujeitou 316. A vivência democrática que estrutura a sociedade ateniense<br />
reparte, desde logo, os princípios que a tradição consagrou, segundo uma<br />
perspectiva individual e colectiva. Charis e philia, por exemplo, valores<br />
que regiam as relações interpessoais com base no reconhecimento,<br />
gratidão e reciprocidade, tor<strong>na</strong>m-se polémicos, quando os interesses da<br />
colectividade – honrar os seus heróis, aliciar o apoio das massas,<br />
condicio<strong>na</strong>r a opinião pública, impor paradigmas cívicos – se lhes<br />
314 Professora da Universidade de Coimbra, a qual atua <strong>na</strong> Faculdade de Letras e<br />
Ciências Huma<strong>na</strong>s.<br />
315 Embora a data da peça não seja precisa, tudo indica que seja anterior a 423 a.<br />
C. Sobre o assunto da datação da Hécuba, vide P. Schubert (2000), ‗L‘Hécube<br />
d‘Euripide et la définition de l‘étranger‘, Quaderni Urbi<strong>na</strong>ti di Cultura Clássica 64.<br />
1, 96-99.<br />
316 Sobre a aplicação e discussão destes princípios <strong>na</strong> Hécuba, vide R. Meridor<br />
(1978), ‗Hecuba‘s revenge‘, American Jour<strong>na</strong>l of Philology 99. 1, 28-35; G. R.<br />
Stanton (1995), ‗Aristocratic obligation in Euripides‘ Hekabe‘, Mnemosyne 48. 1,<br />
11-33.<br />
237
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sobrepõem. O que vale a vida de uma jovem, para mais mulher,<br />
estrangeira, inimiga, cativa, perante a home<strong>na</strong>gem devida a Aquiles, o<br />
primeiro dos heróis, um símbolo helénico de glória militar? Com a<br />
própria interrogação é o respeito fundamental pela vida huma<strong>na</strong>, um<br />
traço superior de civilização, que se vê abalado e relativizado por um<br />
nomos meramente político e circunstancial. Entrelaçada com charis e philia,<br />
a solidariedade, prática e salvadora, ou permeada de afecto, sofre do<br />
mesmo mal, despojada do seu carácter absoluto para se ver objecto de<br />
todos os condicio<strong>na</strong>mentos e contradições. Entendida, mais do que<br />
como um vínculo pessoal que age em situações de dificuldade e salva,<br />
como um processo de alianças políticas, susceptíveis e frágeis <strong>na</strong> sua<br />
contingência, a philia tor<strong>na</strong>-se um processo destrutivo, se a ela se puder<br />
recorrer para justificar a legitimidade da conde<strong>na</strong>ção de uma jovem ao<br />
sacrifício, ou para defender o assassínio de um hóspede por motivos de<br />
mera ambição. No meio do mesmo descalabro social, dike perdeu a<br />
limpidez de um conceito norteador em sociedade. Como protectora<br />
essencial da vida e dos direitos humanos, a justiça deixou-se abalar por<br />
outros interesses e motivações pessoais. Além de consentir o sacrifício<br />
injustificado de uma vida, claramente hesita <strong>na</strong> indigitação das suas<br />
vítimas (quando permite a conde<strong>na</strong>ção de uma Políxe<strong>na</strong> inocente em vez<br />
de Hele<strong>na</strong>), ou <strong>na</strong> avaliação das infracções grotescas que é chamada a<br />
punir (como o crime agravado por todos os maus motivos e estratégias<br />
que é o cometido por Polimestor contra o troiano Polidoro). Por fim,<br />
sobre todas essas regras construtivas de um verdadeiro sentido de<br />
humanidade, impõe-se um conflito de culturas, onde Gregos, Troianos e<br />
Bárbaros se polemizam, como se os grandes princípios universais, de<br />
respeito pela vida e coesão huma<strong>na</strong>s, estivessem condicio<strong>na</strong>dos por<br />
barreiras geográficas ou políticas.<br />
A ficção dramática permite a Eurípides incumbir a sua<br />
protagonista, Hécuba, a velha rainha de Tróia, símbolo extremo da ruí<strong>na</strong><br />
huma<strong>na</strong>, decepada de todos os bens que estruturam a civilização – ‗sem<br />
filhos, sem marido, sem pátria‟, 669 -, de fazer uma avaliação do mundo que<br />
a cerca, como uma espécie de cúmulo exemplar de decadência pessoal e<br />
cívica. Mais do que envolvê-la, com habilidade oratória, em sucessivos<br />
conflitos retóricos com os mais temíveis adversários – com Ulisses, o<br />
exemplar completo do retórico contemporâneo; com Agamémnon, o<br />
238
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
comandante em chefe do inimigo; ou, fi<strong>na</strong>lmente, com a violência<br />
grotesca do bárbaro Polimestor -, o poeta conferiu-lhe a competência<br />
geral de um crítico, capaz de apontar, com exactidão, os vícios essenciais<br />
desse produto cultural contemporâneo.<br />
A reprovação essencial que Hécuba pronuncia contra os oradores<br />
incide sobre a retórica política (254-255): ‗Ingrata raça a vossa, de quantos<br />
ambicio<strong>na</strong>is, com os vossos discursos, os favores populares‘. Um primeiro conflito<br />
se afirma, latente; charis, ‗a gratidão‘, ‗o reconhecimento‘, que deveria suscitar<br />
o seu recíproco, baqueia perante o objectivo de uma time, ‗honraria ou<br />
prestígio‘, que se conquista por uma técnica simplesmente amoral ou<br />
pragmática. Mas já charis se associa à philia, como um outro valor<br />
interpessoal, que não resiste às exigências da sedução política (255-257):<br />
‗Vocês que se não preocupam com prejudicar os amigos, desde que aliciem os ouvidos<br />
das massas‘. Consciente dos propósitos mesquinhos que os animam,<br />
Hécuba faz-se porta-voz da animosidade com que a opinião pública<br />
avalia os peritos em retórica, ela mesma uma vítima modelo do vazio de<br />
um discurso, mero sofisma, que é capaz de defender a conde<strong>na</strong>ção,<br />
criminosa, de uma vida inocente e promissora.<br />
Pelo poder do dinheiro, eis que se pode comprar a chave<br />
invencível do êxito, a persuasão, uma receita de comprovados efeitos;<br />
tudo se vence e tudo se consegue com esse produto milagreiro (812-<br />
819) 317. O que distingue a sagrada Persuasão é a sua versatilidade, a<br />
capacidade de discutir ‗em todos os tons‘, ‗com todo o tipo de argumentos‘ (840);<br />
nesta maleabilidade vai incluída a falta de ética e um tremendo<br />
pragmatismo, que tem por adquirido que ‗não é com honestidade que se vence o<br />
infortúnio‘. A mentira ou uma verdade simplesmente virtual ganha terreno<br />
sobre a realidade objectiva, num contexto onde palavras e factos<br />
parecem ter perdido a mais elementar correspondência.<br />
Após anos de aplicação, no entanto, o efeito conseguido é<br />
realmente assustador. Sobre o cidadão comum, o curso dos tempos,<br />
difíceis, imprimiu um processo de limitação de liberdades. Por motivos<br />
vários, que vão da própria sobrevivência económica às contingências da<br />
sorte, a verdade é que o cidadão se tornou num escravo, incapaz de fazer<br />
317 É clara a alusão que Hécuba aqui faz ao ensino dos sofistas, pago a preço de<br />
ouro, mas capaz de todas as vitórias.<br />
239
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
prevalecer os ditames da sua consciência sobre as múltiplas pressões que<br />
o condicio<strong>na</strong>m, num padrão de vida onde a liberdade e a igualdade se<br />
apregoam como alicerces de uma partilha social. Em contrapartida, o<br />
próprio modelo de sucesso parece dar também os primeiros si<strong>na</strong>is de<br />
ruptura, que deixam prever, no caos social que se adivinha, a inevitável<br />
decadência (1192-1194): ‗São hábeis os inventores dessas subtilezas, mas não<br />
conseguem manter-se eter<strong>na</strong>mente hábeis. Triste é o fim que lhes está reservado, a que<br />
nenhum ainda conseguiu escapar‘.<br />
Num contexto de dificuldades profundas, esse acampamento<br />
aqueu, que é uma espécie de microcosmos da realidade grega<br />
contemporânea, tornou-se um ponto de confluência de todas as<br />
sensibilidades sociais. Ulisses figura nele como protótipo do orador<br />
contemporâneo, sem escrúpulos, ousado, ambicioso. A sedução do seu<br />
discurso é claramente superficial; versátil, cativante, fluente, demagógico,<br />
é este o registo que sobressai numa primeira avaliação, onde a forma se<br />
impõe ao conteúdo. E a verdade é que, no primeiro confronto em que,<br />
<strong>na</strong> peça, Ulisses afirma a sua arete retórica, <strong>na</strong> assembleia dos Aqueus<br />
onde se discutia a satisfação da exigência de Aquiles de um geras para o<br />
seu túmulo, esses atributos lhe valem a vitória: ‗persuade‘, ou seja, ‗vence‘<br />
(133). Perante as posições controversas que aí se geraram, Ulisses soube<br />
esgrimir um argumento agluti<strong>na</strong>dor, decisivo, capaz de criar uma<br />
conivência colectiva, que se verificasse esmagadora perante qualquer<br />
outra ordem de razões (138-140): para que se não pudesse dizer ‗que<br />
ingratos perante os Dâ<strong>na</strong>os mortos ao serviço da pátria, os Dâ<strong>na</strong>os deixaram a<br />
planície de Tróia‘. Charis é usada por Ulisses, diante da mole imensa do<br />
exército, com um real sentido da oportunidade, como o argumento<br />
másculo e político, que aniquila quaisquer outros motivos, sentimentais<br />
ou privados, que se pudessem aduzir.<br />
Face à competência suprema do filho de Laertes, o coro de<br />
mulheres, que antevê o prolongamento iminente da discussão, agora no<br />
privado, perante Hécuba, a mãe que vai perder uma filha em nome da<br />
vénia devida a um herói já morto, encar<strong>na</strong> a população anónima,<br />
desarmada diante da habilidade retórica, frágil face ao poder esmagador<br />
de um universo que desconhece. Não lhes vem à cabeça a ideia de<br />
contra-argumentar, um processo que lhes está, <strong>na</strong> sua condição de<br />
mulheres detentoras de uma mentalidade tradicio<strong>na</strong>l e impreparada,<br />
240
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
distante e i<strong>na</strong>cessível. À rainha sugerem o recurso a súplicas e preces, aos<br />
deuses e ao poder dos homens, sem consciência da inutilidade de tais<br />
recursos quando o verdadeiro pragmatismo se instala (144-147).<br />
Hécuba, apesar de mulher, de troia<strong>na</strong>, de uma velha rainha<br />
vencida pelos acontecimentos, tem, <strong>na</strong> peça, uma verdadeira<br />
competência retórica. Aos gritos e lamentos, simples armas da<br />
emotividade femini<strong>na</strong>, ela antepõe os argumentos, ‗o que poderei aduzir?‘<br />
Despojada de qualquer apoio, de pátria, de parentes e de amigos, Hécuba<br />
sente que é antes de mais de si mesma e dos argumentos que conseguir<br />
encontrar que depende o sucesso da sua causa: salvar a vida de Políxe<strong>na</strong>.<br />
Há que reconhecer-lhe, nos diversos agones que é chamada a travar, uma<br />
clara competência retórica. Sabe escolher os argumentos certos, ordenálos<br />
com lógica, esgrimi-los de acordo com a circunstância. É acutilante<br />
no enunciado, seleccio<strong>na</strong>ndo as palavras certas e sublinhando, pela<br />
insistência oportu<strong>na</strong> em vocábulos chave, os conceitos que, a cada<br />
momento, traz a debate. Condimenta a racio<strong>na</strong>lidade do discurso com o<br />
espectáculo emotivo do apelo e da súplica, sobretudo a rematar cada<br />
uma das suas intervenções, de modo a susceptibilizar o auditório difícil<br />
que é o que lhe está desti<strong>na</strong>do. Há, no entanto, uma aprendizagem que<br />
as circunstâncias lhe impõem ex abrupto. Não basta usar argumentos<br />
éticos e justos, não são esses os que obtêm sucesso num mundo feito de<br />
compromissos e de condicio<strong>na</strong>lismos. Como lembra a Políxe<strong>na</strong> (382-<br />
383): ‗Não é com um discurso honesto que se escapa à adversidade‘. Se necessário,<br />
é preciso avançar para razões amorais, apelar a motivos adika, não hesitar<br />
perante qualquer baixeza, legítima em nome do supremo objectivo da<br />
vitória. É esta a degradação retórica que acompanha todo o processo de<br />
decadência huma<strong>na</strong> que a antiga senhora de Tróia sofre <strong>na</strong> peça. De<br />
vencida, ela sai tristemente vencedora, obtendo não uma desejável e<br />
honrosa liberdade – o maior objectivo de quem, de soberano, se vê<br />
escravo -, mas a satisfação de uma sede insaciável de vingança.<br />
O relato de uma assembleia dos Aqueus, de que o coro foi<br />
testemunha, envolve, desde logo, um dos grandes motivos da tragédia –<br />
o sacrifício de Políxe<strong>na</strong> – numa moldura de debate retórico. À distância,<br />
os Gregos agem de acordo com os seus hábitos democráticos, num<br />
contexto onde a vontade dos homens públicos se sujeita à das massas<br />
populares, onde a autoridade verdadeira de um chefe cede lugar a um<br />
241
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
hábil exercício de persuasão. Esta é uma causa que justifica dois debates<br />
<strong>na</strong> peça: uma assembleia pública, masculi<strong>na</strong> e política, que decorre fora<br />
de ce<strong>na</strong>, seguida de um agon a dois, pessoal e directo, entre Ulisses e<br />
Hécuba. Vários são os fios que estreitam estes dois momentos retóricos:<br />
o filho de Laertes, como interventor em ambos, e a questão em debate, a<br />
sorte de duas filhas de Hécuba, Políxe<strong>na</strong> e Cassandra, cujo destino, a<br />
diferentes níveis, está em causa. Ainda que numa terminologia genérica,<br />
sem usar os vocábulos apropriados que se vão tor<strong>na</strong>r adiante insistentes,<br />
o coro, desabituado destas lides, captou-lhes no entanto o sentido<br />
essencial. Tratava-se de um confronto de duas argumentações<br />
simetricamente opostas (117) – ou seja, de um puro exercício de retórica<br />
– em torno de um caso onde charis e philia ponderavam: a concessão de<br />
um geras devido a Aquiles e por ele reclamado do além-túmulo. Ao que<br />
parecia ser um entendimento colectivo, cívico, dos deveres para com um<br />
companheiro de armas e herói público, vieram subrepticiamente<br />
adicio<strong>na</strong>r-se motivações pessoais e íntimas, de credibilidade duvidosa.<br />
Agamémnon (120-122), por charis e philia, ‗gratidão e sentimento‘ para com<br />
assandra, com quem gostosamente partilhava o leito, contrariava a<br />
pretensão de Aquiles, aliás seu rival <strong>na</strong>s honras em debate junto a Tróia.<br />
A voz ateniense, a própria encar<strong>na</strong>ção do modelo democrático de<br />
retórica, representada pelos dois filhos de Teseu, Acamas e Demofonte<br />
(123-124), em uníssono defendia a reivindicação do herói morto, mas<br />
não pelos melhores motivos; não era sobretudo a time devida a um<br />
companheiro que os movia, mas o desejo de contrariar o comandante,<br />
Agamémnon, e os seus inconfessáveis impulsos pela cativa troia<strong>na</strong>.<br />
Afi<strong>na</strong>l, neste debate, a vida de Políxe<strong>na</strong> não se discute perante os<br />
interesses de um único opositor, o herói da Ftia; com a sua eventual<br />
sobrevivência joga-se, como um preço a pagar, ‗a escravização de<br />
Cassandra‘. Ulisses interveio para aniquilar escrúpulos, repor a discussão<br />
no plano colectivo e recolocar, no centro da polémica, o conceito em<br />
debate, a charis devida ao herói (138).<br />
Quando Ulisses chega, como mensageiro da decisão dos Aqueus<br />
(218-228), omite a sua intervenção no processo e escuda-se no voto<br />
colectivo. É manifesto o seu desejo de executar rapidamente uma<br />
sentença, imoral e controversa, sem deixar margem a quaisquer outros<br />
argumentos (220-224): ‗Decretaram os Aqueus que a tua filha Políxe<strong>na</strong> fosse<br />
242
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
degolada sobre o túmulo de Aquiles. Foi-me dada a incumbência de escoltar e<br />
conduzir a jovem; quanto ao sacrifício, terá por executor desig<strong>na</strong>do e celebrante o filho<br />
de Aquiles‘. Hécuba, porém, não se deixa iludir pela frieza burocrática da<br />
comunicação. Sente que é chegada a hora de um agon supremo (229), da<br />
troca decisiva de argumentos, para além dos inevitáveis soluços e<br />
lágrimas. Hécuba assume a prioridade <strong>na</strong>s intervenções, colando ao<br />
argumento antes aduzido por Ulisses <strong>na</strong> assembleia, que conde<strong>na</strong>va<br />
Políxe<strong>na</strong>, os conteúdos próprios de uma rhesis de defesa.<br />
Com uma clara competência, o primeiro motivo que introduz é o<br />
de charis; o reconhecimento e a reciprocidade que exige de um favor<br />
prestado transita de um plano colectivo, o que relacio<strong>na</strong> o exército com<br />
o mais prestigiado dos seus elementos, para o privado, o que vincula<br />
Ulisses a uma Hécuba, outrora poderosa, a quem ficou a dever a própria<br />
vida, quando penetrou, como espião, em terreno inimigo e se viu<br />
identificado por Hele<strong>na</strong> 318. A charis associam-se as ideias de xenia e philia,<br />
diversificando o conteúdo do conceito (251-257). Ao protesto pela<br />
reciprocidade de obrigações, como eco das razões invocadas por Ulisses,<br />
Hécuba soma questões de ‗justiça‘. Mede, em primeiro lugar, a imposição<br />
que tor<strong>na</strong>ria o sacrifício de Políxe<strong>na</strong> uma fatalidade ou uma conveniência<br />
(260-261; cf. 265, 267). Mistura a ‗necessidade‘ com ‗vontade‘ para colocar a<br />
exigência do ritual a um nível puramente humano, que se pode contestar<br />
ou repudiar. E não hesita em o referir como um ‗crime‘, assumindo, para<br />
a própria interrogativa, uma opinião clara: não é legítimo sacrificar vidas<br />
huma<strong>na</strong>s. O sacrifício é então, sem reservas, colocado no plano de um<br />
delito, que, mesmo assim, admite níveis de rigor e de justiça: se há que<br />
encontrar uma vítima, porque há-de ser Políxe<strong>na</strong>, que <strong>na</strong>da fez contra<br />
Aquiles, a pagar com a vida? É Hele<strong>na</strong> quem deve ser sacrificada, porque<br />
a ela o herói deve o sofrimento e a morte (265-266). De resto, como<br />
vítima, Hele<strong>na</strong> cumpre todos os requisitos: é bela como nenhuma outra,<br />
além da culpa que lhe assiste (267-268). Após esta incursão pelo tema da<br />
justiça – ‗é em nome da justiça que uso este argumento‘ -, Hécuba volta a charis<br />
318 D. J. Co<strong>na</strong>cher (1961), ‗Euripides‘ Hecuba‘, American Jour<strong>na</strong>l of Philology 82, 5,<br />
sublinha que este episódio relatado por Hécuba parece invenção de Eurípides; o<br />
efeito que produz, ainda que margi<strong>na</strong>l, é curioso, pelo contributo que dá à<br />
discussão do tema charis que persiste em toda a peça.<br />
243
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
(176), sublinhando com insistência a simetria dos favores prestados. É<br />
este para ela, como também para Ulisses, o argumento forte; ‗dar em troca‘<br />
(272) e ‗trocar um gesto recíproco de súplica‘ (275) sublinham o justo paralelo<br />
de duas situações (273-276), ‗tocaste-me mão e face … também eu te toco mão e<br />
face‘. A reciprocidade introduz o assunto do amor pela filha e da<br />
necessidade premente que a desventura lhe exige desse último afecto. Do<br />
seu infortúnio, Hécuba parte, num encadeamento lógico – como se de<br />
salvar a própria vida se tratasse –, para a desventura que é, <strong>na</strong> existência<br />
huma<strong>na</strong>, o contraponto da felicidade e do poder (282-283): ‗Os poderosos<br />
não devem abusar do seu poder, nem julgar, enquanto a sorte os bafeja, que ela<br />
durará para sempre‘. E logo recorre ao exemplo, o seu próprio, para abo<strong>na</strong>r<br />
o princípio (284-285). À efemeridade, o tempo vem opor um toque de<br />
ironia: o que parecia ‗eterno‘ (283) desmoro<strong>na</strong>-se ‗num só dia‘ (285). Na<br />
súplica fi<strong>na</strong>l, Hécuba retoma, sinteticamente, os argumentos anteriores,<br />
agora acrescidos de pontos que lhe parecem dever tocar um grego,<br />
homem público e prestigiado pelos seus; nomos,‗a prática ou a lei‘, que, <strong>na</strong><br />
Grécia, em questões de sangue, trata por igual homens livres e escravos<br />
(291-292); axioma, ‗o prestígio‘, com a sua capacidade particular de<br />
persuadir e de imprimir aos argumentos uma distinção de que um<br />
simples anónimo não é capaz (293-295) 319.<br />
Ulisses, instigado ao debate, não hesita <strong>na</strong> resposta que organiza,<br />
como expert que é em matéria retórica. Passando em claro o argumento<br />
da justiça, visivelmente desfavorável ao lado da conde<strong>na</strong>ção, expande-se<br />
sobre charis. O mesmo conceito regressa ao debate, agora torneado com<br />
cautela por um orador que se diz disposto a respeitar a reciprocidade que<br />
lhe é exigida, mas de um modo directo, circunscrito à sua benfeitora de<br />
outrora, Hécuba, e não à filha (301-305). Mas além dessa charis pessoal,<br />
há uma outra pública, que o enleia, a que deve, como membro de um<br />
colectivo, a um herói (304-305). E sem falar de justiça, Ulisses relativiza<br />
o valor da vida huma<strong>na</strong>, sobrepondo ao carácter absoluto do princípio o<br />
condicio<strong>na</strong>mento político do nomos (304-308). Estão em jogo, lado a<br />
lado, os interesses de um homem, o primeiro dos heróis entre os seus<br />
319 Sobre a valorização relativa dos argumentos aqui usados por Hécuba, vide A.<br />
W. H. Adkins (1966), ‗Basic Greek values in Euripides‘ Hecuba and Hercules<br />
Furens‘, Classical Quarterly 16, 193-219.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
pares, a par de uma jovem, mulher, anónima, estrangeira e cativa. Ulisses<br />
fala como se Hécuba não fosse capaz de entender a lógica dos valores<br />
colectivos e másculos, que além de distinguirem os homens das<br />
mulheres, opõem também Gregos e Bárbaros. ‗Para nós‘ - argumenta<br />
com uma carga irónica que coloca este ‗nós‘ num ascendente i<strong>na</strong>tingível<br />
de nobreza e de glória – ‗Aquiles é digno do nosso reconhecimento‘. Na morte,<br />
como <strong>na</strong> vida, merece a vénia dos companheiros (310). A charis e philia<br />
Ulisses associa time, um valor masculino e militar que Hécuba<br />
desconhece, mas sobre que, <strong>na</strong> sua opinião de homem e de guerreiro, se<br />
constrói a verdadeira e duradoira (320) estabilidade social (315-316):<br />
‗Haverá disposição para se dar a vida pela pátria, ao ver-se um morto despojado da<br />
honra que lhe é devida?‘ Confrontando-se depois com a súplica de Hécuba,<br />
o senhor de Ítaca <strong>na</strong>da diz sobre o argumento do poder contraposto à<br />
fragilidade da fortu<strong>na</strong>, nem sobre o prestígio que faria dele um decisor<br />
escutado. Aduz o exemplo paralelo das mulheres gregas, também elas<br />
vítimas sofredoras da guerra, e aconselha resig<strong>na</strong>ção (322-326). A<br />
questão do nomos, Ulisses alarga-a à falta de perspectiva da prática<br />
bárbara e avalia-a, não de acordo com uma desejável equidade <strong>na</strong><br />
preservação da vida, um valor universal, mas ainda uma vez por um<br />
critério político, o de uma time que, do seu ponto de vista, é a verdadeira<br />
razão de ser da comunidade social (326-327). A essa vénia, ao prestígio e<br />
à glória, que a Grécia, como Ulisses a conhece, reverencia acima de tudo,<br />
opõe os ‗pobres‘ bárbaros, que acusa de indiferença para com os seus<br />
heróis e de uma amathia sem sentido.<br />
Hécuba sai vencida deste recontro retórico, não porque lhe falte<br />
competência oratória, mas porque se limita a argumentos de justiça, a<br />
valores éticos, que não têm, perante a sociedade ambiciosa, amoral e<br />
pragmática que Ulisses representa, um peso decisivo. A debilidade de<br />
uma causa justa fá-la pagar um preço elevado para o seu coração de mãe:<br />
a perda de uma filha. Mas o que parecia o último dos golpes era ape<strong>na</strong>s<br />
mais uma etapa num calvário de amarguras; pois já uma escrava, activa<br />
<strong>na</strong> preparação das exéquias de Políxe<strong>na</strong>, era portadora de mais um golpe,<br />
a morte de Polidoro, desta vez vítima simplesmente da falsidade e da<br />
ambição do trácio Polimestor, a quem Príamo o confiara como a última<br />
esperança para a ressurreição futura de Tróia. Não se tratava agora da<br />
crueldade de um inimigo, mas do crime de traição cometido por um<br />
245
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
amigo e aliado, igualmente bárbaro. Hécuba compreende que está diante<br />
de uma nova crise e, <strong>na</strong> sua aposta, percebemos um si<strong>na</strong>l de defesa de<br />
um princípio de retribuição 320 a que as próprias circunstâncias a<br />
conde<strong>na</strong>m (756-757) 321: ‗que somente eu castigue os culpados e aceito ser escrava a<br />
vida inteira‘. Hécuba muda simplesmente de tom, passa a dar prioridade à<br />
vingança, a agir em nome de um objectivo reprovável a que tem de<br />
ajustar argumentos igualmente reprováveis.<br />
Como se, mesmo assim, a nobreza de alma que ainda resiste a<br />
orientasse, são éticos os argumentos que ensaia junto de Agamémnon, o<br />
seu novo interlocutor, o chefe supremo dos Aqueus, de quem suplica<br />
justiça e a punição dos culpados. Vemo-la repetir a estratégia retórica 322<br />
primeiro usada com Ulisses, antes de passar ao seu principal argumento<br />
<strong>na</strong> circunstância, a falta de respeito pela piedade devida às leis divi<strong>na</strong>s,<br />
além da quebra dos deveres impostos pela xenia e philia. Hécuba brada<br />
contra a impiedade do gesto de Polimestor, no seu desrespeito pela vida<br />
320 Como é sabido, se, no código moral grego, a philia exige um código<br />
retributivo, está também consagrada a vingança como um dever de<br />
compensação perante um inimigo. Cf. M. Nussbaum (1986), The fragility of<br />
goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy, Cambridge, 416; M. W.<br />
Blundell (1989), Helping friends and arming enemies. A study in Sophocles and Greek<br />
ethics, Cambridge. A mesma regra tinha aplicação em sociedade, impondo-se às<br />
famílias obter a desforra pelo crime de que algum dos seus membros tivesse<br />
sido vítima; cf. D. M. MacDowell (1963), The Athenian homicide law in the age of the<br />
Orators, 1.<br />
321 Não se trata, para Eurípides, de contrapor, a uma primeira Hécuba, uma<br />
outra, determi<strong>na</strong>da, activa, vingativa, como é a posição defendida por W. Steidle<br />
(1968), Studien zum antiken Drama, Munich.<br />
322 Na verdade, o motivo retórico que cruza a peça, e que se repete, com<br />
simetria de argumentos, quando estão em causa os interesses de Políxe<strong>na</strong> ou de<br />
Polidoro, é mais um factor a contrariar a interpretação de alguns estudiosos de<br />
que a Hécuba seja a colagem, mais ou menos incoerente, de dois temas distintos;<br />
cf. D. J. Co<strong>na</strong>cher, op. cit., 1-2; G. M. Kirkwood (1980), ‗Hecuba and nomos‘,<br />
Transactions of the American Philological Association 14, 30-44; P. Schubert, op. cit.,<br />
87-88. Entra <strong>na</strong>quilo que Ch. Segal (1990), ‗Violence and the other: Greek,<br />
female and barbarian in Euripides‘Hecuba‘, Transactions of the American Philological<br />
Association 120, 109, desig<strong>na</strong> por factores de ‗unidade temática‘.<br />
246
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
huma<strong>na</strong>, agora agravado pelo vínculo de xenia que o ligava à sua vítima.<br />
Reclama uma reciprocidade infringida por quem outrora partilhou da sua<br />
hospitalidade em Tróia, do convívio à sua mesa, e da distinção de uma<br />
afinidade particular (793-796). E numa escala ascendente, após a<br />
impiedade e o assassínio, coloca o desrespeito pelos mortos, que o levou<br />
a deixar insepulto o cadáver da sua vítima. Entre o comportamento de<br />
Ulisses e o de Polimestor há claramente ape<strong>na</strong>s uma diferença de grau,<br />
que tor<strong>na</strong> o bárbaro mais grotesco e o grego mais sofisticado <strong>na</strong> medida<br />
dos seus gestos; mas, sob as aparências, a indiferença pelos princípios<br />
mais elementares de uma verdadeira civilização é rigorosamente a<br />
mesma.<br />
O apelo fi<strong>na</strong>l de Hécuba perante Agamémnon retoma os motivos<br />
anteriores, usados para com Ulisses; nomos, ‗a lei‘, é um valor divino,<br />
superior a todas as hierarquias huma<strong>na</strong>s, absoluto, inspirador de uma<br />
distinção essencial entre o que é justo e injusto. Aos homens compete<br />
tão somente a execução das regras superiormente estabelecidas e aos que<br />
detêm o poder o seu arbítrio, de modo que a desejada igualdade entre os<br />
homens persista (802-805).<br />
Tor<strong>na</strong>-se, mais uma vez, evidente que os princípios de que a<br />
rainha de Tróia se faz defensora perderam sentido nos representantes de<br />
um novo estado democrático. Como afirma D. Kovacs 323: ‗À mentalidade<br />
colectivística não interessa a compreensão pelas razões do privado. (…) Logo não se<br />
tomam quaisquer medidas sobre crimes contra xenoi.‟ Dentro de igual princípio,<br />
a súplica, que pretende suscitar respeito ou consideração por quem se<br />
encontra à mercê de um inimigo, deixa os Gregos insusceptíveis 324.<br />
É a aparente indiferença de um Agamémnon que se afasta,<br />
incapaz de exercer as responsabilidades de chefe que lhe incumbem, que<br />
traz enfim ao de cima, <strong>na</strong> alma da rainha de Tróia, o seu lado mais<br />
tenebroso e, com ele, uma argumentação pragmática e amoral, mas que<br />
vence. Hécuba sabe ponderar a validade relativa dos argumentos que tem<br />
323 (1987), The heroic Muse. Studies in the Hippolytus and Hecuba of Euripides,<br />
Baltimore and London, 83.<br />
324 Segal, op. cit., 124, defende com razão que Agamémnon não deixa de ser<br />
tocado pela piedade e pela justiça, ao contrário do que antes se passara com<br />
Ulisses.<br />
247
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ao seu dispor, quando reflecte (824-825): ‗Talvez este seja um argumento<br />
vazio, o apelo a Cípris. Mas pouco importa, vou usá-lo‘. Na sua nova abordagem<br />
da causa que defende, mantém-se fiel aos valores em discussão,philia e<br />
charis; mas ao retomá-los, mostra como são relativos no seu mérito,<br />
como podem ser distorcidos e amesquinhados, por interesses pequenos<br />
e condenáveis. Philia é, neste caso, o vínculo erótico que Agamémnon<br />
mantém com Cassandra, as noites partilhadas, os abraços de amor (828-<br />
829); charis, o reconhecimento face a uma amante, a quem se deve o<br />
prazer de noites memoráveis (830, 832) 325. Tomada enfim por algum<br />
desespero que se vai tor<strong>na</strong>ndo em delírio, Hécuba remata num apelo,<br />
como interessante metamorfose de uma súplica num golpe de retórica<br />
(836-840): ‗Que ganhassem voz os meus braços, mãos, cabelos, pés, por artes de<br />
Dédalo ou de um deus, para se prenderem, todos a um tempo, aos teus joelhos, por<br />
entre lágrimas e apelos, com todo o tipo de argumentos‘. E só depois do fulgor<br />
desta Persuasão, encar<strong>na</strong>da num gesto falante de súplica, uma última<br />
palavra, discreta e apagada, é ainda devida à justiça (844-845), como a<br />
desejável punição para quem prevarica. Não restam dúvidas sobre a<br />
escala de valores com que Hécuba apela, nem da sua hierarquização em<br />
sociedade. Porque fi<strong>na</strong>lmente eis que a primeira vitória lhe sorri, <strong>na</strong><br />
cedência de Agamémnon a arbitrar o último dos agones a que o poeta a<br />
sujeita, contra Polimestor. O Atrida afirma-se sensível à súplica (850-<br />
851), respeitador dos princípios da piedade, justiça e hospitalidade (852-<br />
853), mas também ele, como Ulisses, se vê enleado em compromissos.<br />
Uma teia controversa de razões deixa-o manietado; teria todo o prazer<br />
em agradar a Hécuba, se não parecesse, perante o exército, dar<br />
prioridade ao amor de Cassandra (855). Porque o exército vê no Trácio<br />
um amigo (858) e no morto um inimigo (859-860). Este é o padrão do<br />
árbitro que tem <strong>na</strong> mão a execução da justiça, comprometido, peado por<br />
325 Segal, op. cit., 123, sublinha o tom degradante que este argumento reveste <strong>na</strong><br />
boca de Hécuba, quando se serve da escravização a que Cassandra está sujeita, o<br />
que a tor<strong>na</strong> tão vítima quanto a própria Políxe<strong>na</strong>. Diz Segal: ‗Os Gregos usam o<br />
corpo de Políxe<strong>na</strong> como oferenda a Aquiles para lhe expressarem charis e para<br />
obterem o seu patrocínio; Hécuba usa o corpo de Cassandra para obter charis de<br />
Agamémnon e o seu favor‘. A passagem abrupta, <strong>na</strong> rhesis de Hécuba, do<br />
argumento da justiça para o do sexo deixa bem clara a ineficácia profunda da<br />
legalidade e a sua inoperância como valor pessoal e social..<br />
248
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
interesses em conflito, entalado entre prioridades cívicas e pessoais que<br />
parecem talhadas para um eterno conflito.<br />
Resta um último agon, entre Hécuba e Polimestor, com<br />
Agamémnon por juiz (1129-1131). É simples a intervenção de Hécuba,<br />
quando se trata ape<strong>na</strong>s de legitimar um castigo violento que já foi<br />
aplicado antes da sentença. De resto, tudo parece tão nítido de razões<br />
que a conde<strong>na</strong>ção é segura (1234-1235). Em discussão persiste um valor<br />
que cruza toda a peça, a philia, que é, no limite, invocado como<br />
justificação para um assassi<strong>na</strong>to. Polimestor não pode, por qualquer<br />
habilidade retórica, negar o homicídio de que é acusado, uma evidência.<br />
Por isso adopta a táctica ajustada à situação: confessa o crime (1132-<br />
1136), como ponto de partida para o argumento da legitimidade. O bom<br />
senso e uma louvável prudência (1137), que o levou a aniquilar um<br />
possível re<strong>na</strong>scimento de Tróia por iniciativa do mais novo dos<br />
herdeiros de Príamo; orientava-o um rasgo de philia para com os Aqueus<br />
seus aliados, suprimindo-lhes de vez o inimigo, e um gesto de protecção<br />
para com o seu povo, assim acautelado de qualquer previsível invasão<br />
por uma nova arremetida contra Tróia (1138-1144, 1175-1177).<br />
Depois de um preâmbulo doutrinário sobre a justeza dos<br />
argumentos face aos actos cometidos, Hécuba desmonta, com cuidadosa<br />
simetria, cada argumento do adversário (1187-1196). A philia invocada<br />
por Polimestor, como uma aliança entre Gregos e Bárbaros, parece, à luz<br />
da evidência, pura falácia (1197-1201). Despida de uma capa de<br />
dignidade, a verdade crua, despojada de argumentos, chama-se ‗ouro‘, a<br />
ambição primária que justificou o mais vil dos actos (1206-1207). Mas<br />
por trás desse móbil prioritário está o jogo político; Polimestor não agiu<br />
quando Tróia era poderosa, só a ruí<strong>na</strong> da corte de Príamo o incentivou<br />
ao crime. Que philia poderia recomendar que Polimestor guardasse para<br />
si o ouro, em vez de o pôr à disposição dos aliados fustigados pela<br />
dureza de um longo combate (1217-1223)? Teria então, em momento de<br />
crise, sido oportuno que desse mostras de uma verdadeira philia, para<br />
com aqueles que eram os seus verdadeiros aliados, os senhores de Tróia<br />
(1228-1232). E Hécuba termi<strong>na</strong> com uma definição do que seja a<br />
verdadeira philia como que impulsio<strong>na</strong>da, no meio de uma controvérsia<br />
de valores, a recordar o seu mérito essencial (1226-1227): ‗É <strong>na</strong> desgraça<br />
249
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
que se reconhece a amizade verdadeira, porque à ventura, enquanto dura, não faltam<br />
os amigos‘.<br />
Nos sucessivos debates que perpassam toda a peça, que, além de<br />
confrontarem comportamentos e princípios, opõem também Bárbaros<br />
contra Gregos, é óbvio que aos primeiros, quando encar<strong>na</strong>dos pelos<br />
Troianos, compete representar um nomos tradicio<strong>na</strong>l, patroci<strong>na</strong>do por<br />
uma autoridade firme e coesa; enquanto aos Gregos cabe a imagem de<br />
uma sociedade democratizada, incapaz de persistir nos valores solidários,<br />
em nome do predomínio asfixiante dos interesses colectivos. Em toda<br />
esta polémica radical uma arma se impõe como decisiva, vitoriosa sobre<br />
todas as considerações: o poder persuasivo do discurso.<br />
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Furens‘, Classical Quarterly 16, 1966, 193-219.<br />
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Philological Association 14, 1980, 30-44.<br />
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Euripides ‗Hecuba‘, Transactions of the American Philological Association 1990, 120,<br />
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STANTON, G. R. ‗Aristocratic obligation in Euripides‘ Hekabe‘, Mnemosyne<br />
48. 1995, 1, 11-33.<br />
250
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
AS MULHERES NO MUNDO MUÇULMANO<br />
Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo Parente Santos 326<br />
A oposição entre cristãos e muçulmanos é bastante antiga.<br />
Podemos afirmar que <strong>na</strong>sceu no momento em que Maomé iniciou a<br />
unificação das tribos arábicas, formando a Umma. Após a sua morte, a<br />
expansão islâmica destruiu o império sassânida e colocou as populações<br />
cristãs do império Bizantino em permanente estado de guerra contra os<br />
seguidores desta nova religião monoteísta.<br />
Na <strong>Antiguidade</strong> Tardia a religião não era uma questão de foro<br />
íntimo, como no mundo contemporâneo. Ela era a base da própria<br />
identidade coletiva, determi<strong>na</strong>ndo quem pertencia ao grupo e quem era<br />
considerado o ―outro‖. A demonização do ―outro‖ é, sem dúvida, uma<br />
estratégia para evitar uma aproximação perigosa entre ―nós‖ e ―eles‖,<br />
evitando assim, o perigo da contami<strong>na</strong>ção doutrinária. Era necessário<br />
que se apontasse, que se denunciasse com veemência os hábitos<br />
escandalosos e chocantes do inimigo, marcando a enorme diferença<br />
existente entre os que professavam a verdadeira fé, sublinhando a<br />
alteridade destes em contraposição aos crentes de um falso deus.<br />
Nesta estratégia, a questão sexual, muitas vezes, ganhou uma<br />
grande importância. A poligamia praticada pelos árabes foi apontada<br />
como prova de sua bestialidade e da dificuldade sentida por eles de<br />
refrearem os instintos. Na campanha difamatória, Maomé era retratado<br />
como um lúbrico ancião, que buscava o deleite sexual ao casar-se com<br />
mulheres muito jovens. Além disso, a questão do harém muçulmano<br />
incendiava a imagi<strong>na</strong>ção dos cristãos, distorcendo a realidade sobre a<br />
família árabe. Desta maneira, ao longo dos séculos foram se cristalizando<br />
estereótipos relacio<strong>na</strong>dos ao mundo muçulmano, impedindo, muitas<br />
vezes, uma maior compreensão de suas estruturas sociais.<br />
Mas, mesmo hoje o conhecimento sobre a família muçulma<strong>na</strong> e<br />
o lugar que a mulher ocupava <strong>na</strong> sociedade é bastante restrito. Isto<br />
326 Professora Associada do Departamento de História da Universidade do<br />
Estado do Rio de Janeiro. Coorde<strong>na</strong>dora do Curso de Especialização em<br />
História Antiga e Medieval – UERJ e membro do Núcleo de Estudos da<br />
Antigade.<br />
251
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
ocorre, pela própria <strong>na</strong>tureza das fontes. O historiador vê-se limitado a<br />
recorrer a escritos oficiais, cujos autores eram soberanos e vizires,<br />
redigidos numa linguagem pública e oratória.<br />
A pesquisa em outras fontes, como a análise do trabalho de<br />
poetas e contadores de história também não leva a um maior<br />
esclarecimento da questão, uma vez que as tramas dos relatos são<br />
calcadas em esquemas criados por outros povos, herança mesopotâmica,<br />
egípcia, persa, judaica, helenística e, até mesmo caucasia<strong>na</strong>. Tal fato não<br />
deve causar admiração, uma vez que corresponde a aculturação sofrida<br />
pelos conquistadores árabes ao se estabelecerem em regiões distantes de<br />
seu local de origem.<br />
Sabemos que o Profeta, ao contrário do que se pensa, tentou<br />
melhorar a situação da mulher. O costume tribal, além de permitir a<br />
poligamia, fazia com que o repúdio de uma esposa fosse bastante fácil,<br />
deixando as mulheres mais velhas numa situação de imensa fragilidade.<br />
Maomé para evitar isto, estabeleceu que ape<strong>na</strong>s uma peque<strong>na</strong> parte do<br />
douaire, devido pelo homem à mulher, quando da consumação do<br />
casamento seria entregue a esta. A parte principal só lhe seria entregue<br />
em caso de repúdio, o que de certa maneira, levava a que o marido<br />
pensasse melhor antes de fazê-lo, pois isto significava uma perda<br />
fi<strong>na</strong>nceira.<br />
Embora, a mulher vivesse enclausurada e não dispusesse<br />
livremente de seu corpo, podia comerciar e dispor de seus bens. O<br />
Profeta quis proteger a mulher, o que indiretamente levaria a um<br />
progresso da condição femini<strong>na</strong>, embora, <strong>na</strong> prática, isto nem sempre<br />
tenha ocorrido. A partir da época dos abássidas, os juristas resistiam em<br />
aplicar esta legislação modernizadora.<br />
Para muitos, a iniciativa de Maomé parece ter sido muito tímida,<br />
mas quando verificamos a situação das mulheres antes do<br />
estabelecimento do islamismo, daremos o devido mérito ao Profeta. A<br />
vida <strong>na</strong>s estepes desérticas era extremamente difícil para os membros das<br />
tribos nômades e somente os fortes podiam sobreviver. Assim, se um<br />
número expressivo de meni<strong>na</strong>s <strong>na</strong>scesse, o infanticídio era praticado sem<br />
que isso despertasse nenhum protesto. As mulheres como os escravos<br />
recebiam um tratamento muito cruel, não gozavam de nenhum direito,<br />
sendo considerados meras propriedades. Os homens podiam casar-se<br />
252
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
com quantas mulheres quisesse e, embora a descendência considerada<br />
fosse a matrilinear e a propriedade fosse herdada pelas mulheres isto não<br />
lhes garantia nenhum poder.<br />
Mas, aparentemente uma viuvez transformava esta condição de<br />
subordi<strong>na</strong>ção. Pelo menos, é o que podemos depreender , quando lemos<br />
a forma como Maomé foi abordado por sua primeira esposa, que lhe<br />
propôs o casamento. Khadija, assim se chamava ela, já havia enviuvado<br />
duas vezes, tinha filhos e vivia desfrutando de conforto, graças aos<br />
lucros auferidos <strong>na</strong> atividade comercial. Não devemos acreditar que ela<br />
mesma viajasse pelo deserto acompanhando as carava<strong>na</strong>s, mas como<br />
uma empresária contratasse aqueles que fariam esta tarefa. Foi deste<br />
modo, que ela contratou o seu futuro marido para que levasse suas<br />
mercadorias à Síria.<br />
Mas, embora, o tratamento dispensado às mulheres possa<br />
parecer chocante aos olhos contemporâneos, como já acima já<br />
mencio<strong>na</strong>mos, podemos afirmar que a idéia de que todos os homens<br />
desprezassem as mulheres, tratando-as com crueldade também deve ser<br />
repensada. O próprio matrimônio do Profeta com Khadija parece ter<br />
sido pleno de companheirismo e amizade. Durante os episódios da<br />
Revelação em que ele ficava aterrorizado após ter tido visões, para ele<br />
incompreensíveis e que o faziam por vezes acreditar estar sendo<br />
possuído por algum jinni, era para a esposa que corria em busca de<br />
amparo e consolo. Foi ela que o instou a procurar um cristão chamado<br />
Waraqa, para que o aconselhasse.<br />
A questão da avaliação do grau de submissão das mulheres <strong>na</strong>s<br />
tribos beduí<strong>na</strong>s é sempre uma questão delicada e complexa, pois se para<br />
os olhos da cultura ocidental, o elemento feminino não desfrutava de<br />
quaisquer direitos, não tendo nenhuma capacidade de decisão sobre<br />
nenhum assunto, alguns episódios da vida de Maomé oferecem-nos uma<br />
outra visão.<br />
Quando o Profeta começou a ter suas visões apoiou-se em<br />
alguns parentes chegados, dividindo com estes a mensagem recebida,<br />
que foi pouco a pouco se materializando <strong>na</strong> recitação das suras do<br />
Corão. Mas, a proposta religiosa monoteísta ia de encontro à religião<br />
tradicio<strong>na</strong>l das tribos beduí<strong>na</strong>s, e, principalmente, á dos coraixitas, <strong>na</strong><br />
qual Maomé havia <strong>na</strong>scido.<br />
253
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Um fato interessante é que Alá como um deus já era conhecido<br />
pelos coraixitas, mas ninguém, até então havia lhe conferido o status de<br />
Deus único. Aceitar esta nova postura religiosa significava quebrar a<br />
tradição e, se para nós, isto, muitas vezes é considerado algo desejável e<br />
benéfico, o mesmo não se aplica a uma sociedade de aspectos arcaicos,<br />
cuja sobrevivência está profundamente vinculada à obtenção de recursos<br />
no espaço geográfico em que vive. Para estas dar as costas aos antigos<br />
deuses representava um enorme perigo, pois os desprezados podiam<br />
enviar-lhes todo tipo de infortúnios.<br />
Dentre estes antigos deuses encontravam-se três entidades<br />
femini<strong>na</strong>s – al-Lat, al-Uzza e Ma<strong>na</strong>t--bastante reverenciadas pelo povo de<br />
Meca, mas também em cidades , como Taif, onde existia um importante<br />
templo da deusa al-Lat. O que Maomé propunha significava o abandono<br />
de crenças ancestrais e, como era de se esperar nem todos estavam<br />
dispostos a fazê-lo e adotar a nova proposta religiosa. Assim, podemos<br />
afirmar que o islamismo dividiu os clãs da tribo dos coraixitas., entre os<br />
que apoiavam o Profeta, tendo se convertido à nova fé e aqueles que<br />
persistiam <strong>na</strong> religião tradicio<strong>na</strong>l.<br />
Mas, a divisão podia ser percebida mesmo entre pessoas da<br />
mesma família e neste ponto, pode causar estranheza a liberdade de<br />
certas mulheres em fazer a opção religiosa. Embora Maomé fosse muito<br />
estimado tanto em Meca, quanto no meio familiar as conversões<br />
ocorridas demonstraram que ema<strong>na</strong>vam de decisões pessoais. Assim, o<br />
Profeta ficou decepcio<strong>na</strong>do quando seus tios Abu Talib, Abbas e<br />
Hamzah negaram-se a fazer a apostasia e persistiram <strong>na</strong> prática de sua<br />
antiga religião. Contudo, as esposas dos dois últimos converteram-se ao<br />
islamismo, discordando assim da postura de seus maridos.<br />
Uma reflexão sobre os episódios conhecidos da vida do Profeta<br />
no seu relacio<strong>na</strong>mento com as mulheres pode levar-nos a um razoável<br />
grau de conhecimento acerca da posição do sexo feminino <strong>na</strong> Arábia<br />
medieval. Como acima já falamos a iniciativa de contrair o primeiro<br />
matrimônio não partiu exatamente de Maomé, mas no caso de Khadija,<br />
mostrando desta maneira não ser ela submissa a nenhum poder<br />
masculino quando ficou viúva.<br />
O casamento parece ter se constituído num feliz consórcio,<br />
tendo o casal tido seis filhos. O que aponta para isto é o fato de que,<br />
254
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
enquanto Khadija foi viva, Maomé não tomou mais nenhuma outra<br />
esposa, o que não causaria nenhuma estranheza no meio social, uma vez<br />
que a poligamia era uma prática comum, constituindo-se a monogamia<br />
numa exceção.<br />
Os vários casamentos de Maomé posteriormente realizados fez<br />
com que muitos ocidentais, ao longo do tempo o criticassem e, de forma<br />
levia<strong>na</strong> ou totalmente desinformada tenham construído uma imagem<br />
distorcida do Profeta, imagem esta que, de forma nenhuma corresponde<br />
à realidade. Os diversos casamentos do Profeta atenderam a questões<br />
vinculadas à própria afirmação de Maomé como líder espiritual e político<br />
do que a considerações sentimentais. A análise de alguns destes<br />
matrimônios é bastante pertinente, para um maior entendimento da vida<br />
das mulheres árabes. Mas, -- nunca é demais sublinharmos — este<br />
entendimento só será conseguido, se procurarmos realizar esta análise<br />
levando em consideração os valores sociais das tribos árabes, embora<br />
para alguns estes possam parecer estranhos, ou até mesmo pervertidos.<br />
O matrimônio numa sociedade tribal era um recurso, muitas<br />
vezes utilizado para promover alianças, dirimindo conflitos. No período<br />
em que os convertidos ao Islã enfrentavam resistências e até mesmo<br />
hostilidade <strong>na</strong> cidade de Meca com a divisão das próprias famílias os<br />
arranjos nupciais tor<strong>na</strong>ram-se ainda mais importantes e necessários.<br />
Assim, o tio de Maomé, Abu Lahab fora desde o começo hostil à sua<br />
pregação, mas tentando aproximar-se dele, prometeu em casamento dois<br />
de seus filhos às filhas do Profeta. Contudo, após este haver se recusado,<br />
de uma vez por todas, reconhecer a divindade das ba<strong>na</strong>t al-Llah ele<br />
decidiu ser melhor aliar-se ao clã de sua esposa , forçando os rapazes a<br />
repudiarem as duas moças.<br />
Após a morte de Khadija, Maomé casou-se com uma mulher de<br />
nome Sawdah, prima e cunhada de Suhayl, chefe dos Amir. Ela era viúva<br />
e a união pareceu bastante adequada para todos. Mas, Abu Bakr, que se<br />
convertera fervorosamente ao Islã e se ligara ao Profeta, desejando<br />
estreitar ainda mais seus laços de amizade, ofereceu-lhe como esposa<br />
aquela que no futuro deveria exercer uma forte influência sobre ele, a sua<br />
filha Aisha, uma criança de seis anos de idade. A aceitação de Maomé fez<br />
com que se realizasse a cerimônia do noivado, a qual não contou com a<br />
presença da noiva.<br />
255
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Como já afirmamos, numa sociedade tribal o casamento era<br />
utilizado para amai<strong>na</strong>r a violência, uma vez que, embora o ato do<br />
homicídio não fosse condenável em si, tor<strong>na</strong>va-se fortemente<br />
reprovável, quando a vítima era um parente do criminoso ou até mesmo<br />
seu aliado. Assim, a família que conseguia por meio de acordos<br />
matrimoniais estabelecer uma extensa rede de alianças, protegia melhor<br />
seus membros.<br />
Por isso, poucas pessoas <strong>na</strong> região deveriam ser partidárias da<br />
monogamia, constituindo-se os inúmeros casamentos de Maomé uma<br />
sábia estratégia para estabelecer laços de parentesco, o que lhe garantiria<br />
uma maior proteção, num momento em que sua pregação já criara uma<br />
grande agitação em Meca, sendo não pouco numeroso o grupo de seus<br />
inimigos.<br />
Além disso, um episódio da vida de Maomé parece apontar para<br />
um certo sentimento de respeito à figura femini<strong>na</strong>.O fato ocorreu pouco<br />
antes da ida de Maomé para Yatrib. Sua vida em Meca corria um grande<br />
perigo, uma vez que sua obsti<strong>na</strong>ção em pregar a nova fé e sua recusa<br />
peremptória de fazer qualquer concessão à antiga religião dos árabes,<br />
levara a formação de uma conspiração para matá-lo.<br />
O plano dos envolvidos era praticar esta ação de uma forma<br />
que não acarretasse uma vendeta. Para isso, cada clã escolheria um homem<br />
forte e de prestígio. Todos juntos participariam do assassi<strong>na</strong>to. Desta<br />
maneira, os Hashim não tendo condições de lutar contra todos os<br />
coraixitas, deveriam contentar-se com uma indenização.<br />
No dia combi<strong>na</strong>do, os jovens reuniram-se em frente a casa de<br />
Maomé e, já se dispunham à ação, quando ouviram vindo de uma janela<br />
a voz de Sawdah e das filhas dele. Avaliaram ser um ato vergonhoso<br />
matar um homem <strong>na</strong> frente de suas mulheres e decidiram esperar até que<br />
o Profeta saísse de casa para atacá-lo. Mas, ele tendo anteriormente<br />
tomado conhecimento da conspiração, conseguiu fugir sem ser notado.<br />
Algumas esposas que ao longo dos anos vieram a integrar o<br />
harém do Profeta casaram-se com ele ao ficarem viúvas, como foi o caso<br />
da jovem de dezoito anos, Hafsah, cujo marido morrera pouco depois da<br />
batalha de Badr. Ela era filha de um leal servidor de Maomé- Umar- e,<br />
segundo relatos era culta como seu pai, sabendo ler e escrever. As<br />
batalhas e, até mesmo as escaramuças entre os seguidores de Maomé e<br />
256
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
os habitantes de Meca criaram um sério problema, ou seja, os<br />
muçulmanos mortos deixavam mulheres e filhos que precisavam de<br />
amparo e sustento. Só para se ter uma idéia no confronto em Uhdu<br />
morreram 65 homens.<br />
Deste modo, a revelação recebida por Maomé em que Alah<br />
permitia a cada muçulmano ter quatro esposas resolveu um grave<br />
problema social. O próprio Profeta casou-se pela quarta vez. A escolhida<br />
era viúva de um homem que perecera <strong>na</strong> batalha de Badr , sendo<br />
também filha de um chefe beduíno da tribo dos Amir, o que significou<br />
para o noivo uma nova aliança política.<br />
Maomé incentivou os homens a seguir o seu exemplo, casando-se<br />
com mulheres que haviam perdido seus maridos no campo de batalha.<br />
Não se tratava, de nenhum modo, de proporcio<strong>na</strong>r prazer sexual a estes,<br />
mas visava, isto sim, a proteção daquelas. O islamismo acolheu a prática<br />
tradicio<strong>na</strong>l da poligamia, contudo restringindo-a, uma vez que, a cada<br />
homem só era permitido ter quatro esposas, e assim mesmo, desde que<br />
pudesse sustentá-las do mesmo modo, querendo isto dizer que o homem<br />
deveria passar exatamente a mesma quantidade de tempo com cada uma<br />
das esposas, além de tratá-las equanimemente do ponto de vista<br />
fi<strong>na</strong>nceira e legal. Tais determi<strong>na</strong>ções, se levadas em consideração<br />
desestimulavam a prática da poligamia, uma vez que seria uma tarefa<br />
impossível cumpri-las.<br />
Ao longo do tempo, somente os homens da elite mantiveram-se<br />
polígamos. Mas, surpreendentemente a prática tornou-se mais difundida<br />
<strong>na</strong>s zo<strong>na</strong>s rurais do que <strong>na</strong>s cidades. A explicação é de ordem<br />
econômica. Os camponeses não dispunham de recursos para comprar<br />
escravos, tor<strong>na</strong>ndo-se assim os casamentos múltiplos um ótimo<br />
expediente para conseguir uma mão-de-obra femini<strong>na</strong> sempre disposta<br />
ao trabalho.<br />
Nas zo<strong>na</strong>s urba<strong>na</strong>s, o quadro era bem outro, múltiplos<br />
matrimônios podiam tor<strong>na</strong>rem-se mais uma fonte de despesas<br />
insuportáveis do que qualquer outra coisa, isto porque a cada esposa<br />
deveria ser dada uma moradia, além do que <strong>na</strong>s cidades as mulheres<br />
eram mais preocupadas com suas roupas e de seus filhos, o que<br />
significava um enorme gasto, ao qual só os poderosos poderiam arcar.<br />
257
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A concepção do Islã como uma grande família deu uma ainda<br />
maior importância ao casamento, uma vez que ter filhos era um dever<br />
dos muçulmanos. Mas, até que ponto o consentimento da mulher era<br />
necessário para que o matrimônio se realizasse? Ao que parece, Maomé<br />
teria recomendado que era necessário a concordância da noiva, contudo,<br />
após a sua morte fontes provavelmente apócrifas, relatavam que os<br />
muçulmanos haviam conseguido do Profeta a alteração desta<br />
recomendação. Argumentando que o pudor de uma virgem impediria<br />
que ela manifestasse seu desejo, haviam obtido a determi<strong>na</strong>ção de que<br />
bastaria um simples si<strong>na</strong>l de consentimento, ou mesmo, somente uma<br />
ausência de recusa. Contudo, tal não podia ser aplicado às viúvas ou<br />
àquelas que haviam sido repudiadas. Estas deveriam expressar<br />
claramente sua vontade. Mas a subordi<strong>na</strong>ção da mulher ao homem foi<br />
sacramentada <strong>na</strong> charia, uma vez que, este sistema legal estipulava que<br />
toda mulher deveria ter um guardião homem – o pai, irmão ou <strong>na</strong> falta<br />
destes um membro da família.<br />
A questão do consentimento feminino para a realização do<br />
matrimônio podia ser contor<strong>na</strong>da contratando-se o casamento da mulher<br />
quando ela ainda fosse criança. Além disso, fica patente a desigualdade<br />
dos direitos entre homens e mulheres no Islã, quando a<strong>na</strong>lisamos a<br />
questão do divórcio. Os casos em que a esposa poderia pedi-lo eram<br />
bastante restritos, loucura, impotência e negação por parte do consorte<br />
dos direitos da esposa; por outro lado, este poderia solicitá-lo sem<br />
nenhum motivo, bastando ape<strong>na</strong>s pronunciar determi<strong>na</strong>da fórmula<br />
verbal <strong>na</strong> presença de testemunhas. A mulher repudiada contaria com a<br />
proteção e solidariedade de seus parentes masculinos, podendo voltar<br />
com seus bens para a casa da família pater<strong>na</strong>. A criação dos filhos ficaria<br />
a seu cargo até estes completarem uma determi<strong>na</strong>da idade, que variou ao<br />
longo do tempo, como pode ser comprovado pela leitura de diversos<br />
códigos legais.<br />
Na questão da repartição da herança, podemos afirmar que<br />
havia uma clara vantagem dos homens, uma vez que uma filha receberia<br />
metade da parte que cabia ao descendente masculino. Caso um homem<br />
viesse a falecer sem deixar herdeiro masculino, só caberia às suas filhas<br />
uma certa proporção dos bens, sendo o restante herdado pelos parentes<br />
258
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
masculinos. Tais determi<strong>na</strong>ções visavam evitar a fragmentação do<br />
patrimônio do grupo.<br />
Para conjurar este mal, apelava-se também para a endogamia. O<br />
Islã admite o casamento entre primos, até mesmo de primeiro grau. Esta<br />
prática evitando a rotação de mulheres evitava a dispersão do<br />
patrimônio, mas impedia a realização amorosa de qualquer matrimônio<br />
contrário aos interesses do grupo.<br />
A expansão muçulma<strong>na</strong> colocou os seguidores do Islã em contato<br />
com judeus e cristãos, o que inevitavelmente levaria ao contato sexual<br />
entre homens e mulheres de diferentes religiões. Isto levantou uma<br />
questão da qual se ocuparam os juristas, elaborando normas que<br />
enquadrassem estas relações dentro da moral islâmica. As regras<br />
elaboradas permitiam o casamento de um muçulmano com uma cristã<br />
ou judia, sem exigir a conversão, sendo os filhos da união considerados<br />
muçulmanos; por outro lado era proibido o casamento de uma mulher<br />
muçulma<strong>na</strong> com um seguidor de outra religião, a não ser que este se<br />
convertesse.<br />
O casamento entre uma mulher livre e um escravo era permitido e<br />
tor<strong>na</strong>va-o emancipado. Mas, contrariamente, ao homem livre era vedado<br />
casar-se com uma escrava. Podia ape<strong>na</strong>s tê-la como concubi<strong>na</strong>, embora o<br />
<strong>na</strong>scimento de uma criança do sexo masculino origi<strong>na</strong>do da relação,<br />
emancipasse a mãe.<br />
Alguns traços referentes à moral imposta às mulheres era comum<br />
aos seguidores das três religiões monoteístas. A virgindade da jovem<br />
antes do casamento e a fidelidade da mulher casada são exemplos destes,<br />
embora não devamos interpretá-los como uma exigência ligada à virtude<br />
pessoal ou a necessidade da manutenção de um compromisso assumido,<br />
mas sim a de que os traços referidos ligavam-se a idéia de honra familiar.<br />
Assim, todos os homens da família consideravam-se responsáveis pela<br />
entrega de uma noiva virgem no dia do matrimônio, pois se tal não<br />
ocorresse era a estes que o marido e sua família apresentavam a queixa<br />
exigindo reparação.<br />
Mas, mesmo que a noiva chegasse ao casamento com sua<br />
integridade hime<strong>na</strong>l preservada, ainda assim a responsabilidade de<br />
defendê-la de uma futura injúria permanecia sendo de responsabilidade<br />
de seus irmãos e de seus tios maternos.<br />
259
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Não devemos acreditar que esta norma levasse a constantes e<br />
sangrentas querelas, isto porque o fato de a endogamia patrilinear ter<br />
sido freqüente fazia com que os conflitos fossem resolvidos de maneira<br />
mais tranqüila do que se envolvessem grupos familiares estranhos.<br />
A existência da poligamia, a permissão do concubi<strong>na</strong>to e a própria<br />
existência do harém, leva a que no mundo ocidental se torne bastante<br />
difícil avaliar a real importância do casamento para a sociedade islâmica.<br />
Mas, ela é enorme. Os jurisconsultos da lei religiosa – alfaquis – foram<br />
unânimes em afirmar que todo homem ou mulher de condição livre e<br />
pertencente a comunidade islâmica , uma vez tendo se casado legalmente<br />
estavam adstritos a uma estrita fidelidade conjugal.<br />
Sendo assim, o casamento legal reservava a pessoa unicamente<br />
para o seu cônjuge. As relações sexuais fora do casamento ou da<br />
concubi<strong>na</strong>gem eram consideradas espúrias e, por isso mesmo,<br />
repreensíveis. O adultério, quando praticado entre duas pessoas casadas,<br />
quando descoberto, levava a aplicação da pe<strong>na</strong> máxima: os dois seriam<br />
apedrejados até a morte.<br />
O casamento era compreendido como o estabilizador da ordem<br />
social, e não somente o reconhecimento da legitimidade das relações<br />
sexuais entre homem e mulher. Esta importância pode ser percebida <strong>na</strong><br />
exigência de publicidade do ato matrimonial, que deveria ser realizado<br />
numa festa, <strong>na</strong> qual não poderiam faltar as danças e os cantos.<br />
O concubi<strong>na</strong>to dava-se entre os senhores e suas escravas, sendo<br />
quase desconhecido no mundo rural. Diferentemente do casamento,<br />
limitado a quatro, o número de concubi<strong>na</strong>s era ilimitado. À princípio a<br />
concubi<strong>na</strong> não deveria procriar, pois as relações car<strong>na</strong>is com o seu<br />
senhor desti<strong>na</strong>vam-se ape<strong>na</strong>s a satisfazê-lo sexualmente. Mas, quando ela<br />
engravidava e dava a luz mudava de status, tor<strong>na</strong>ndo-se um-al-walad,<br />
adquirindo certos direitos, que amenizavam sua condição servil.<br />
A concubi<strong>na</strong> gozava de uma liberdade desconhecida da esposa<br />
legítima, de quem o marido exigia seriedade, o que explica a clausura em<br />
que vivia. Além disso, a primeira, <strong>na</strong> maioria das vezes recebeu uma<br />
instrução refi<strong>na</strong>da, o que não é de admirar, uma vez que sua habilidade<br />
<strong>na</strong> poesia e <strong>na</strong> música fazia com que fosse mais hábil em distrair os<br />
homens, aumentando o seu preço no mercado.<br />
260
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Embora, para a visão ocidental, a concubi<strong>na</strong> possa ser aproximada<br />
à figura da prostituta, não há <strong>na</strong>da de mais falso. O Islã ao organizar as<br />
relações sexuais dentro de uma estrutura centrada <strong>na</strong> família polígama,<br />
onde o casamento podia ser desfeito de forma rápida ensejando a<br />
realização de um novo casamento de forma rápida permitiu que a<br />
satisfação do desejo sexual fosse conseguida de maneira quase<br />
permanente e lícita.<br />
Mas, este desejo só pode legalmente ser satisfeito por meio do<br />
casamento e do concubi<strong>na</strong>to, nunca pela prostituição. A escrava pode<br />
prestar favores sexuais ao seu senhor, mas não poderia ser forçada por<br />
ele a prostituir-se. Mas, esta determi<strong>na</strong>ção ia de encontro aos costumes<br />
árabes pré-islâmicos, uma vez que antes da pregação do Profeta a<br />
prostituição era bastante difundida e considerada uma prática legítima.<br />
Mas, a pergunta se impõe. Embora, os ensi<strong>na</strong>mentos de Maomé<br />
sejam bastante claros quanto ao tema, podemos afirmar que o sexo pago<br />
era uma prática desconhecida no mundo árabe-muçulmano?<br />
A resposta é negativa. No mundo muçulmano, assim como em<br />
qualquer outra cultura há uma grande distância entre a doutri<strong>na</strong> e a<br />
prática. Profundamente arraigada <strong>na</strong> cultura da Arábia pré-islâmica, a<br />
prostituição, apesar dos esforços de Maomé, jamais foi erradicada.<br />
Assim, em todas as regiões do império muçulmano a presença de<br />
mulheres que vendiam seu corpo <strong>na</strong>s chamadas ―casas de tolerância‖ era<br />
tão grande que o viajante podia encontrar bairros inteiros reservados à<br />
prática.<br />
Apesar das determi<strong>na</strong>ções religiosas os Estados islâmicos<br />
acabaram por admitir a existência da prática e numa atitude<br />
extremamente pragmática viu que poderia obter lucro, estabelecendo<br />
uma taxa que deveria ser paga pelas meretrizes. Na cidade de Caiurão,<br />
mais da metade dos imóveis onde as mulheres se prostituíam eram<br />
prédios religiosos.<br />
Mas, <strong>na</strong> sociedade muçulma<strong>na</strong> a prostituta era uma ―fora da lei‖,<br />
que, contudo, não parece ter sido alvo de discrimi<strong>na</strong>ção e ódio. Nas<br />
cidades peque<strong>na</strong>s eram conhecidas pelo nome e até mesmo convidadas<br />
para festas familiares, principalmente as celebrações de casamento. Nada<br />
impedia que se casassem abando<strong>na</strong>ndo seu ofício.<br />
261
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A quem ela atendia? Principalmente jovens recém-chegados à<br />
puberdade. Não podemos esquecer que um jovem para casar-se<br />
necessitava dispor de recursos para pagar o dote, o que nem sempre<br />
ocorria.<br />
Apesar, de Maomé ter durante sua vida afirmado haver uma<br />
complementaridade entre os sexos, o que consequentemente levava a<br />
uma amabilidade conjugal, não é isto que se consolidou <strong>na</strong> sociedade<br />
muçulma<strong>na</strong>, onde se pode, sem nenhuma dificuldade perceber a<br />
institucio<strong>na</strong>lização do poder masculino, desti<strong>na</strong>ndo as mulheres um<br />
duplo papel: objeto de fruição e de reprodutora.<br />
Tal situação, impedindo que a mulher muçulma<strong>na</strong> pudesse realizar<br />
suas potencialidades e cerceando-lhe qualquer outra escolha, fez com<br />
que a maternidade se constituísse no foco de sua vida e fosse procurada<br />
a qualquer custo.<br />
A maternidade conferia uma importância e segurança, que jamais<br />
seria conseguida por uma esposa estéril. Na verdade, é a maternidade<br />
que funda a relação entre marido e mulher, criando no homem um claro<br />
sentimento de gratidão à esposa que lhe deu filhos. No caso, ser mãe de<br />
meninos , mais do que de meni<strong>na</strong>s, pois esta era a lógica da sociedade<br />
muçulma<strong>na</strong>. A mãe de um filho passava a ser desig<strong>na</strong>da como Umm<br />
Fulân, ―mãe de fulano.‖<br />
A ligação estreita entre mãe e filho pode ser observada em<br />
diversos textos medievais, quando em suas <strong>na</strong>rrativas evocam as relações<br />
entre um homem adulto e sua mãe. Os laços afetivos entre eles<br />
adquiriam uma importância muito maior que o amor devotado à esposa.<br />
A mulher vivia encerrada em sua casa, longe dos olhares de<br />
estranhos e severamente vigiada pelo marido, o que fazia com que<br />
durante sua vida, ela, praticamente só visse homens, além do seu marido,<br />
aqueles pertencentes a uma dessas categorias: ascendentes, descendentes<br />
e irmãos. Mas, apesar disto não lhe era negado o prazer de freqüentar o<br />
hammãm, equivalente as termas roma<strong>na</strong>s, onde ela poderia passar um dia<br />
inteiro cuidando de seu corpo e relaxando.<br />
Além disso, a vida religiosa não lhe era vedada, pois tal como os<br />
homens, as mulheres tinham a obrigação de fazer a peregri<strong>na</strong>ção e<br />
freqüentar as duas mesquitas santas, localizadas em Meca e Madi<strong>na</strong>.<br />
262
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Tinham direito de participar <strong>na</strong> oração pública de sexta-feira, ficando<br />
atrás dos homens.<br />
Ao fi<strong>na</strong>lizarmos este modesto trabalho, gostaríamos de tecer<br />
algumas rápidas considerações sobre o tema. Primeiramente,<br />
enfatizamos mais uma vez a limitação impostas pela documentação, o<br />
que nos leva a ter uma visão bastante precária do cotidiano das mulheres<br />
no mundo muçulmano, pois, se para aquelas pertencentes aos estratos<br />
mais ricos da sociedade a documentação é mais abundante, embora<br />
padeça de defeitos inerentes ao próprio meio em que foi produzida; para<br />
as mulheres ―trabalhadoras‖, como as que habitavam a zo<strong>na</strong> rural, por<br />
exemplo, ela é praticamente inexistente.<br />
Um outro aspecto da questão é a reflexão sobre a inserção da<br />
mulher numa sociedade tribal e de que maneira ela era tratada. Que<br />
direitos lhe eram reconhecidos? Qual o grau de autonomia que<br />
desfrutavam para gerir o seu próprio destino? Que acesso tinham aos<br />
bens produzidos?<br />
Na sociedade árabe pré-islâmica podemos afirmar que a resposta<br />
a estas questões deixa antever uma situação de extremo preconceito,<br />
discrimi<strong>na</strong>ção e até mesmo de violência contra a mulher. Então, a<br />
formulação de uma outra pergunta se impõe, até que ponto o<br />
estabelecimento do Islamismo modificou esta situação?<br />
Podemos afirmar, sem medo de errar, que a doutri<strong>na</strong> islâmica<br />
significou uma proteção para as mulheres, proteção esta que pode ser<br />
lida em diversas passagens do Alcorão: ―E àqueles que acusarem (de<br />
adultério) as mulheres castas e depois não apresentarem quatro testemunhas, infligilhes<br />
oitenta açoites e nunca mais aceiteis seus testemunhos e estes são os difamadores‖<br />
327.<br />
Contudo, seria ingênuo de nossa parte não concordar com<br />
aqueles que apontam a forma discrimi<strong>na</strong>tória com que são tratadas as<br />
mulheres <strong>na</strong>s sociedades islâmicas. Mas, acreditamos que a explicação<br />
327 Citação extraída da Sura, 24,4, o qual se encontra exposto <strong>na</strong><br />
obra:BINGEMER, Maria Clara Luccheti (org.). Violência e Religião:<br />
Cristianismo, Islamismo e Judaísmo – Três religiões em confronto e diálogo.<br />
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001, p.198.<br />
263
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
deste fato deve ser mais procurada no contexto cultural do Oriente<br />
Próximo do que <strong>na</strong>s palavras do Alcorão.<br />
Deste modo, devemos compreender que o Alcorão foi<br />
produzido num determi<strong>na</strong>do contexto social e, apesar de seu conteúdo<br />
representar uma mensagem bastante inovadora em muitos aspectos, não<br />
poderia, contudo, romper totalmente tradições há muito estabelecidas.<br />
As passagens do texto corânico que parecem desfavoráveis as mulheres<br />
explicam-se, quando atentamos para o contexto histórico onde se<br />
originou o Islamismo.<br />
Não podemos esquecer que a pregação de Maomé inscreve-se<br />
numa tradição abrahaânica, tradição esta oriunda do judaísmo, que foi<br />
acolhida pelo cristianismo e da qual o islamismo não ficou isento. Nas<br />
duas primeiras religiões citadas, a misoginia é patente, uma vez que os<br />
teólogos de ambas acreditam ter sido a mulher a responsável pela Queda<br />
do homem. Embora, a <strong>na</strong>rrativa do texto corânico não reproduza este<br />
episódio, isto é, não há nenhuma responsabilização da mulher pela<br />
expulsão do homem do paraíso, a influência desta idéia foi muito forte<br />
penetrando a cultura muçulma<strong>na</strong>.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente, gostaríamos de salientar que a extensão do mundo<br />
muçulmano – que, <strong>na</strong> idade média abarcou terras que iam da Ásia<br />
Central à Espanha – faz com que a compreensão do papel da mulher <strong>na</strong><br />
sociedade islâmica seja difícil de ser obtido. Somente a realização de<br />
múltiplas pesquisas pontuais, isto é, direcio<strong>na</strong>das para regiões específicas,<br />
enfocando períodos temporais diversos poderão proporcio<strong>na</strong>r elementos<br />
para a montagem de um quadro em que questões referentes às diversas<br />
fases da vida femini<strong>na</strong> vividas numa sociedade islâmica possam ser<br />
apreciadas, livres de a<strong>na</strong>cronismos e preconceito.<br />
264
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS<br />
BALTA, Paul.Islã.Tradução William Lagos.Porto Alegre : RS: L<br />
&PM,2010<br />
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti(org). Violência e Religião. Rio de<br />
Janeiro : PUC-Rio; São Paulo : Loyola , 2001<br />
BLANQUIS, Thierry. A família no Islã. BURGUIERE , André. In:<br />
História da Família. Lisboa: Terramar, 1996<br />
BOUHDIBA, Abdelwahab. A sexualidade no Islã. Tradução de Alexandre<br />
de Oliveira Torres Carrasco. São Paulo: Globo, 2006<br />
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Tradução Marcos<br />
Santarrita. S.Paulo: Cia das Letras, 2006<br />
KAREN, Armstrong. Maomé uma biografia do Profeta. Tradução Andréia<br />
Guerrini. S. Paulo: Cia das Letras, 2002<br />
SONN, Tâmara. Uma breve história do Islã. Rio de Janeiro : José Olympio,<br />
2001<br />
265
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
REFLETINDO SOBRE AS POSSIBILIDADES DA<br />
ARQUEOLOGIA DE GÊNERO<br />
Profª Drª Maria Regi<strong>na</strong> Candido 328<br />
Consideramos a passagem do século XX ao XXI como o século<br />
das mulheres pelo fato de identificarmos diferentes ações femini<strong>na</strong>s<br />
silenciosas, mas intensas, que transformaram radicalmente as condições<br />
sociais da vida das mulheres em diferentes partes do mundo. O<br />
movimento social feminista, tanto do século XIX quanto do século XX,<br />
teceu reivindicações e questio<strong>na</strong>mentos sobre o padrão social que<br />
privava as mulheres de seus direitos (FREITAS, 2006: 54). O debate em<br />
torno da opressão sobre a mulher, ao longo da história, foi tema<br />
i<strong>na</strong>ugurado nos anos 40 pela historiadora norte america<strong>na</strong> Mary Beard <strong>na</strong><br />
obra Woman as Force in History , <strong>na</strong> qual a autora a<strong>na</strong>lisa a questão da<br />
margi<strong>na</strong>lização da mulher junto as pesquisas históricas.<br />
Segundo Rachel Soihet,a pesquisadora Mary Beard atribuiu as<br />
escassas referências à mulher <strong>na</strong> historiografia ao fato da grande maioria<br />
dos pesquisadores, serem homens que ignoravam sistematicamente as<br />
ações das mulheres (SOIHET,1998: 99), ou seja, a atitude implicava <strong>na</strong><br />
negação da presença das mulheres como sujeito ativo <strong>na</strong> história,<br />
desti<strong>na</strong>das a eter<strong>na</strong> subordi<strong>na</strong>ção a figura masculi<strong>na</strong>.<br />
Na década de 90, o tema retor<strong>na</strong> ao debate junto às norteamerica<strong>na</strong>s<br />
que se questio<strong>na</strong>vam sobre qual direção a ser tomada para a<br />
realização efetiva da história das mulheres. A inquietação ocorreu devido<br />
à observação da produção historiográfica sobre o tema ter adquirido<br />
acentuada amplitude, a ponto de se tor<strong>na</strong>r irreconhecível diante da<br />
diversidade das idéias (HILL,1995:09). Judith M. Bennett em Gender and<br />
History afirmava que o problema da falta de rumo <strong>na</strong> historia da mulher<br />
328 Maria Regi<strong>na</strong> Candido é Professora Associada de História Antiga, <strong>na</strong><br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua <strong>na</strong> Coorde<strong>na</strong>ção do Núcleo de<br />
Estudos da <strong>Antiguidade</strong>/NEA. Professora dos Programas de Pós-Graduação<br />
PPGH/UERJ e PPGHC/UFRJ. Integra a coorde<strong>na</strong>ção do Curso de<br />
Especialização de História Antiga e Medieval / CEHAM. Diretora do conselho<br />
editorial dos periódicos NEARCO e Philia – NEA/UERJ.<br />
266
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
se devia ao progressivo afastamento da perspectiva feminista<br />
considerada como um movimento desgastado (HILL, 1995: 10).<br />
A vertente de construção da história das mulheres a partir da<br />
perspectiva feminista resultou <strong>na</strong> abordagem inspirada pela atitude de<br />
opressão sobre a mulher, tanto no passado quanto no presente, sendo o<br />
termo opressão substituído pela expressão ―subordi<strong>na</strong>ção da mulher‖ ao<br />
poder masculino. Não podemos esquecer que a acentuada expansão <strong>na</strong><br />
história das mulheres, desde os anos 60, se deve aos movimentos<br />
feministas liderados por mulheres que estavam fora da academia. O<br />
termo feminismo deve ser usado com acentuada atenção quando<br />
aplicado ao passado, pois o seu significado mantém-se polissêmico e não<br />
adquiriu o status de conceito imutável. A história da mulher têm-se<br />
modificado ao longo do tempo assim como o conceito de feminismo<br />
(HILL, 1995: 11).<br />
Por outro lado, não temos como mencio<strong>na</strong>r a história da mulher<br />
sem antes tecer considerações sobre gênero. O termo têm sido, desde a<br />
década de 70, usado para teorizar a questão da diferença biológica entre<br />
homem e mulher. Foi inicialmente utilizado pelas feministas que<br />
insistiam no caráter social das distinções baseadas no sexo (SOIHET,<br />
1997: 279). O conceito de gênero tem sido empregado de diversas<br />
formas junto à bibliografia feminista, assumindo um caráter descritivo,<br />
que definia o termo gênero como associado aos estudos de temas<br />
relativos às mulheres, sem, entretanto buscar a motivação dos<br />
fenômenos.<br />
O segundo tipo de concepção se preocupa com a interpretação<br />
de ordem causal, ramificadas em três principais abordagens: a teoria do<br />
patriarcado, buscando as origens da domi<strong>na</strong>ção masculi<strong>na</strong>; o enfoque<br />
marxista que enfatiza a prioridade da determi<strong>na</strong>ção econômica <strong>na</strong><br />
construção dos papéis sociais que determi<strong>na</strong>m o gênero e as posições de<br />
base psica<strong>na</strong>lítica. Joan Scott define a precisão conceitual do termo ao<br />
citar que ‖o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as<br />
diferenças percebidas entre os sexos, porém, o gênero é a primeira forma de representar<br />
as relações de poder." (SCOTT, 1988: 141).<br />
Na obra A Gender and Politics of History a cientista política Joan<br />
Scott reafirma que gênero significa o saber com o significado de<br />
compreensão produzida pelas sociedades sobre as relações huma<strong>na</strong>s<br />
267
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
definidas entre homens e mulheres. Para a Scott o significado e o uso do<br />
conceito de gênero inserem-se como resultado de uma disputa política e<br />
os meios pelas quais as relações de poder de domi<strong>na</strong>ção e subordi<strong>na</strong>ção<br />
são construídas (SCOTT, 1988: 146).<br />
O conhecimento é um modo de orde<strong>na</strong>r o mundo e, como tal,<br />
não antecede a organização social, mas, tor<strong>na</strong>-se inseparável. Tal fato<br />
resultou <strong>na</strong> definição de gênero como a organização social definido pela<br />
diferença sexual. Para Rachel Soihet o termo indica a rejeição ao<br />
determinismo biológico implícito no uso do termo como sexo. Gênero<br />
se afirma como aspecto relacio<strong>na</strong>l entre as mulheres e os homens, ou<br />
seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir<br />
através de um estudo que os considere separados (SOIHET, 1998: 10).<br />
A pesquisa sobre gênero tem procedido em diferentes contextos<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is trazendo como inovadora a proposta da arqueologia de<br />
gênero. Através do diálogo interdiscipli<strong>na</strong>r a arqueologia de gênero teve como<br />
resultado a proposta de recuperar o papel sócio-cultural da mulher no<br />
passado através dos vestígios e indícios deixados pela cultura material<br />
(MARTI, 2003: 27).<br />
No continente americano caracterizou-se por duas vertentes, a<br />
saber: uma norte-america<strong>na</strong> e a outra anglo-america<strong>na</strong>. As duas<br />
vertentes, por vezes se contradizem, por outras, parecem paralelas e/ou<br />
se tor<strong>na</strong>m complementares. As propostas apresentam similaridades com<br />
a abordagem espanhola do Centro de Estudos sobre a Mulher de<br />
Alicante.<br />
A proposta norte-america<strong>na</strong> representada por Margaret W.<br />
Conkey e Joan M. Gero com Engendering Archaeology.women and Prehistory<br />
(Oxford,1991) buscou estabelecer criticas ao ponto de vista<br />
androcêntrico <strong>na</strong> reconstrução do passado das sociedades huma<strong>na</strong>s. As<br />
pesquisadoras objetivaram dar visibilidade a presença femini<strong>na</strong> nos<br />
registros arqueológicos ao reconceituar os papéis de gênero <strong>na</strong> divisão<br />
social de trabalho.<br />
A abordagem de Sarah Milledge Nelson mantém estreito dialogo<br />
com arqueólogos anglo-saxônicos tem por proposta delinear teorias<br />
para arqueologia de gênero. Tem como proposta que o estudo de gênero não<br />
permaneça focado somente <strong>na</strong> história da mulher, ou seja, no gênero<br />
feminino. A pesquisadora reafirma que a abordagem sobre gênero deve<br />
268
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
trazer para debate a interação social, as formas de negociação que nos apontem<br />
para a variedade de caminhos que nos permitam construir a abordagem<br />
da arqueologia de gênero.<br />
Pesquisadores e arqueólogos da pré-história que seguem a<br />
abordagem de M.Conkey são motivados pela rejeição do<br />
comportamento humano e com o comportamento do homem. Eles<br />
apreendem os estudos de gênero visando dar ênfase aos vestígios<br />
arqueológicos que forneçam visibilidade as atividades da mulher <strong>na</strong> préhistória.<br />
O primeiro passo dessa vertente de estudo começa com o<br />
reconhecimento do trabalho feminino em atividades consideradas<br />
exclusivamente de domínio masculino.<br />
Segundo Conkey, cabe aos pesquisadores ―procurar pelas mulheres‖<br />
revisando os dados arqueológicos e se perguntando em que lugar social a<br />
mulher poderia ser vista, em qual atividades produtivas e qual o seu papel<br />
social <strong>na</strong> organização de tarefas que envolvia a sociedade ao qual fazia<br />
parte. A procura pelas mulheres <strong>na</strong> pré-história também se estende ao<br />
interesse <strong>na</strong> representação iconográfica e <strong>na</strong>s imagens de figuras<br />
femini<strong>na</strong>s produzidas <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong> (CONKEY, 1997: 415).<br />
A retomada da re-a<strong>na</strong>lise dos dados arqueológicos se deve ao<br />
fato que a documentação textual deter uma visão de gênero generalizante<br />
<strong>na</strong> qual os papeis sociais se definem como masculino e feminino. A<br />
atividade é determi<strong>na</strong>da pela identificação das funções sociais <strong>na</strong>s<br />
sociedades pré-históricas. Algumas pesquisas usam o material<br />
arqueológico para ratificar o comportamento padrão do feminino ligado<br />
a procriação, agricultura e cuidados com a família. Enquanto que o<br />
masculino está relacio<strong>na</strong>do a caça, a defesa e manutenção do grupo<br />
familiar <strong>na</strong> qual a voz da mulher é silenciada.<br />
Cabe enfatizar que a inspiração feminista tem resultado em<br />
publicações sobre a Arqueologia de Gênero com possibilidade de se tor<strong>na</strong>r<br />
discipli<strong>na</strong> acadêmica (CONKEY, 1997: 412) abordando a mulher <strong>na</strong> préhistória,<br />
a mulher <strong>na</strong> história, a mulher <strong>na</strong> antiguidade e no mundo<br />
contemporâneo. Segundo Conkey, a arqueologia francesa mantém a<br />
perplexidade diante da emergência da arqueologia de gênero e considera ser<br />
um, modelo histórico e cultural, especifico da vertente anglo-america<strong>na</strong>.<br />
O termo arqueologia de gênero não tem similaridade <strong>na</strong> língua francesa,<br />
sugerindo que a genealogia da antropologia de gênero é marcadamente<br />
269
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
anglo-saxão, ligado a vertente do novo imperialismo arqueológico<br />
(CONKEY, 1997: 414).<br />
Podemos afirmar que a história das mulheres <strong>na</strong> historiografia<br />
francesa emerge com os An<strong>na</strong>les, após criticas feministas por terem<br />
deixado passar a oportunidade de incorporá-la de maneira efetiva. O<br />
percurso percorrido foi desde os discursos das primeiras a<strong>na</strong>rquistas<br />
francesas, como os de Marie Huot (1892), Nelly Roussel (1907) e<br />
Madeleine Pelletier (1911). As pesquisadoras perceberam que, enquanto<br />
procriadoras de filhos do sexo masculino, as mulheres eram submetidas<br />
a um poder que lhes oprimia em função de suas características biológicas<br />
definidas como sexo frágil. Os argumentos sustentados pelas escritoras<br />
foram retomados pela conferencista Nelly Roussel, em artigo no jor<strong>na</strong>l<br />
Voix des Femmes de maio de 1920 e ainda guardam a sua atualidade<br />
(FREITAS, 2006: 54).<br />
O contorno ao fato foi à organização de George Duby e<br />
Michele Perrot da coleção sobre a história das mulheres da antiguidade<br />
ao século XX. Nessa coleção os autores questio<strong>na</strong>m sobre a<br />
possibilidade das mulheres constituírem uma historia. O questio<strong>na</strong>mento<br />
se deve a longa duração de silêncio e a imagem voltada para a<br />
reprodução mater<strong>na</strong> e atividades domésticas que não detenha espaço <strong>na</strong><br />
quantificação e <strong>na</strong> construção da <strong>na</strong>rrativa. No século XIX, o trabalho<br />
das mulheres agrícolas ou camponesas havia sido constantemente<br />
subestimado, dado que ape<strong>na</strong>s era contabilizado a profissão do homem<br />
como chefe de família (PERROT, 1991: 07). O projeto de busca <strong>na</strong><br />
construção do lugar de fala da mulher nos leva a perspectiva da cultura <strong>na</strong><br />
qual as atividades femini<strong>na</strong>s devem ser localizadas <strong>na</strong> seqüência da<br />
produção e organização da comunidade ao qual fazem parte.<br />
A pesquisadora C. Roberts a<strong>na</strong>lisa as implicações da categoria de<br />
gênero junto as pesquisas arqueológicas <strong>na</strong> obra A critical approach to<br />
gender as a category of a<strong>na</strong>lysis in archaeology (1993). Roberts nos chama<br />
atenção para duas tendências que demarcam a abordagem sobre gênero<br />
junto a historiografia de língua anglo-america<strong>na</strong> ao denomi<strong>na</strong> de ―the<br />
archaeology of gender‖ e a outra de ―gendered archaeology‖ (ROBERTS, 1997:<br />
423). Para nos latinos estes dois tópicos estão intrinsecamente ligados<br />
pelo fato de não termos uma tradução precisa e especifica para os títulos<br />
utilizados, sendo necessária a definição de cada tendência para efetiva<br />
270
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
diferenciação. A autora ratifica que o conceito de gênero necessita ser<br />
teorizado para não permanecer como mais uma variável a<strong>na</strong>lítica.<br />
Para Sarah W. Nelson a tipologia gênero interage com outras<br />
categorias como status social e etnicidade, ou seja, existem muitos caminhos<br />
para abordagem do tema, porém já encontrando as mulheres fato que se<br />
constituiu em primeiro passo. Cabe interrogar sobre as negociações pela<br />
qual o gênero, em particular tempo e lugar, estabeleceu ao lado dos<br />
estereótipos construídos a partir de nossa própria cultura (NELSON,<br />
2007: vii). A autora considera que essa perspectiva não significa trazer a<br />
visibilidade a mulher <strong>na</strong> arqueologia como afirma Conkey e Ruth Falcó<br />
Marti (MARTI, 2003: 19) . A ação da mulher tem sido visível <strong>na</strong><br />
arqueologia, o que falta é dar-lhe um lugar de fala através de uma<br />
abordagem mais específica sobre os diferentes gêneros.<br />
A proposta da autora visa recuperar as teorias feministas <strong>na</strong><br />
qual o poder e a propriedade também passam pelas mulheres. Toda<br />
sociedade é constituída de uma rede social huma<strong>na</strong> formada por pessoas<br />
que interagem de forma interdependente, pois existem diferentes papeis<br />
sociais, mas não de forma isolada, a ação de um grupo de pessoas afeta<br />
direta ou indiretamente as demais pessoas <strong>na</strong> sociedade ao qual integra e<br />
interage.<br />
Seguindo a proposta de abordagem interacionista, a<br />
pesquisadora Elizabeth M. Brumfiel reafirma que a arqueologia de gênero<br />
teve um aumento <strong>na</strong> variabilidade dos dados relevantes como vestígios<br />
ósseos, sepulturas e representação imagética, dados que permitem a<br />
inclusão da mulher interagindo com os homens e outras categorias de<br />
gêneros <strong>na</strong>s estruturas de a<strong>na</strong>lises (BRUMFIEL, 2003: 01). Para a autora<br />
a arqueologia de gênero pode servir como promoção da igualdade<br />
social, tendo em vista que os pesquisadores de ciências sociais trazem,<br />
através de suas escolhas e abordagens, implicações políticas, sociais e<br />
econômicas.<br />
A autora defende que o significado e resultado da perspectiva<br />
de gênero variam porque dependem da interseção com outras identidades<br />
sociais como raça, classe, identidade e etnicidade. A partir desse principio<br />
a arqueologia de gênero tem buscado caminhos alter<strong>na</strong>tivos para a<strong>na</strong>lisar o<br />
conceito de gênero em diálogo com outras categorias sociais e demais<br />
saberes. Gênero pode ter diferentes perfomance/atividades, dependendo do<br />
271
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
contexto e da divisão social de papeis de atuação da mulher em<br />
determi<strong>na</strong>da sociedade cuja atuação se modifica ao longo do tempo.<br />
As variações apreendidas em determi<strong>na</strong>da sociedade também<br />
permitem explorar os meios pelos quais o gênero é materializado e<br />
representado pela iconografia, epigrafia e imagens parietais através da<br />
comparação. Como por exemplo, citamos as mulheres representadas, de<br />
formas diferentes, nos vasos gregos cuja função social do recipiente<br />
determi<strong>na</strong> o tipo de vaso associado à pintura iconográfica. As deferentes<br />
apresentações do gênero e status social de mulheres gregas integram o<br />
elemento da ideologia que compõem o imaginário social grego. O modelo<br />
constante e identificado nos permite a<strong>na</strong>lisar se a perfomance tem sido<br />
alvos de críticas, de negociação, de recuos diante do grupo social que<br />
encomendou os vasos e integra a sociedade no período abordado.<br />
Reconhecendo através da comparação as variações <strong>na</strong> representação<br />
imagética de gênero que deixam transparecer as tentativas de se<br />
estabelecer uma convenção em um dado momento. A arqueologia de gênero<br />
aponta para os elementos no qual o gênero foi alvo de contestação e<br />
como o desacordo foi ou não negociado e/ou silenciado pela<br />
historiografia.<br />
Em arqueologia, os artefatos relacio<strong>na</strong>dos aos rituais fúnebres<br />
tor<strong>na</strong>m-se o suporte de informação, particularmente, primordial para os<br />
estudos da arqueologia de gênero. Segundo Elizabeth M. Brumfiel o material<br />
tem sido usado para exami<strong>na</strong>r o ciclo de vida em diferentes culturas por<br />
demonstrar o caminho ao qual o gênero varia em relação à interseção da<br />
idade, do status social e outras variáveis sociais emergindo através da<br />
abordagem multidimensio<strong>na</strong>l da mulher (BRUMFIEL, 2007: 10).<br />
A representação imagética de gênero compõe outro suporte de<br />
análise que nos permite um amplo campo de atuação assim como as<br />
esculturas, afrescos e cerâmica. A representação huma<strong>na</strong> pode ou não<br />
nos apontar a identificação do gênero através das estruturas a<strong>na</strong>tômicas,<br />
status social definidos pelos estilos dos vestuários e atividade exercida.<br />
Entretanto, a generalização definida pelo viés teórico do social dificultou<br />
a abordagem da diferenciação fato que levou a historiografia a qualificar<br />
através da homogeneidade, ratificando a tradicio<strong>na</strong>l visão binária de<br />
oposição homem e mulher. Quando a representação imagética em<br />
dialogo com a documentação textual se esforça no estabelecimento de<br />
272
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
normas, significa que ambos estão sendo usada como instrumento a<br />
favor de uma ideologia que cabe ao pesquisador identificar.<br />
A imagem nos artefatos de cerâmica constitui uma excelente<br />
oportunidade para exami<strong>na</strong>r o embate e a negociação <strong>na</strong> arqueologia de<br />
gênero. As diferentes formas de expressão de arte nos apontam para os<br />
diferentes autores da representação imagética que estão estreitamente<br />
ligados as encomendas de estilos que nos apontam para os diferentes<br />
consumidores e seus objetivos. A arqueologia de gêneros tem dispensado<br />
atenção aos diferentes modos pelos quais o gênero se materializa no<br />
contexto social de produção expressa pelo artesão, identificando o<br />
espaço de produção, o meio social de circulação da mensagem e o<br />
possível consumidor fi<strong>na</strong>l. A partir dessa perspectiva, espera-se<br />
apreender as relações de tensão, confronto, recuos e negociação<br />
existente no sistema de gênero <strong>na</strong> sociedade a<strong>na</strong>lisada.<br />
As técnicas e estilos dos artefatos arqueológicos nos permitem<br />
exami<strong>na</strong>r o papel do gênero a partir da dimensão das inovações<br />
tecnológicas ou formas de resistências as tais mudanças relacio<strong>na</strong>da à<br />
atividade femini<strong>na</strong>. Para E.M.Brumfiel a decoração do artefato pode<br />
refletir os embates e negociação da condição da mulher junto a função<br />
social tradicio<strong>na</strong>l cuja questão tronou-se central ao poder masculino<br />
(BRUMFIEL, 2007: 12). A mesma observação pode ser estendida aos<br />
instrumentos de trabalhos que definem ou não papel social masculino e<br />
feminino que nem sempre coincide com o contexto social a<strong>na</strong>lisado, fato<br />
que nos leva a apontar a omissão da historiografia.<br />
O estudo de caso tor<strong>na</strong>-se muitas vezes, qualificados para a<br />
pesquisa do feminino e da arqueologia de gênero por nos permitir<br />
estabelecer a unidade formal mínima de análise de um determi<strong>na</strong>do papel<br />
social feminino. O pesquisador passa a atuar como arqueólogo e<br />
etnógrafo <strong>na</strong> reconstituição da temática ao fornecer visibilidade a<br />
perfomance/atividade da mulher em sociedades antigas silenciadas pela<br />
historiografia. A abordagem do estudo de caso nos permite evitar as<br />
a<strong>na</strong>lises generalizantes muito comuns <strong>na</strong> historiografia tradicio<strong>na</strong>l da<br />
história das mulheres devido a sua matriz ser a História Social..<br />
A abordagem da arqueologia de gênero tem a sua disposição um<br />
potencial item de análise que requer ainda ser exami<strong>na</strong>da para dar conta<br />
da relação entre o feminino e o masculino <strong>na</strong>s sociedades fora do tempo<br />
273
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
e do espaço como as sociedades antigas. Cabe ao pesquisador começar<br />
se questio<strong>na</strong>ndo como ocorreu o entrelaçamento que definiu o lugar social<br />
da mulher e como e porque omitiu as suas diferentes identidades sociais,<br />
sua atuação <strong>na</strong> sociedade ao qual está inserida. Cabe identificar os meios<br />
pelas quais são definidas as suas atividades/perfomance econômicas e<br />
políticas em meio à historiografia definida pela relação de gênero de viés<br />
patriarcal. Ao procurar pelas exceções, nos aproximamos das abordagens<br />
dialógicas que nos apontam para os embates, os recuos e as negociações.<br />
Delimitar a região e a temporalidade nos permite estabelecer a<br />
abordagem comparativa que faz emergir as similitudes e diferenças das<br />
identidades, dos papeis sociais assim como a atuação interativa do feminino<br />
entre si e com o masculino. A aplicação da teoria feminista como<br />
estrutura que norteia a pesquisa sobre gênero tende a se definir como<br />
arqueologia histórica visando a construção histórica do percurso da<br />
arqueologia de gênero que nos apontem para diferentes abordagem<br />
sobre o feminismo.<br />
O primeiro momento do paradigma feminista critica o<br />
estereotipo sexista a partir da diferença biológica determi<strong>na</strong>da pelo<br />
predomínio universal do homem no desenvolvimento das atividades<br />
publicas. O princípio androcêntrico, centrado nos homens, desloca<br />
alguns atributos que são próprios dos seres humanos para uma conta de<br />
atributos positivos identificados ape<strong>na</strong>s ao sexo masculino, como se<br />
autocontrole, racio<strong>na</strong>lidade, coragem, liderança, autonomia,<br />
independência, força de vontade, determi<strong>na</strong>ção e assumir riscos fossem<br />
qualidades exclusivas dos homens (FREITAS, 2006: 57). Nessa<br />
perspectiva definem-se para a mulher as atividades no espaço doméstico<br />
e da maternidade características da sociedade patriarcal. O segundo<br />
período da teoria feminista, <strong>na</strong> década de 70, questionou e buscou<br />
explicar o viés patriarcal como uma instituição social e ideologia<br />
construída culturalmente e que visava manter a desigualdade entre o<br />
masculino e o feminino.<br />
A teoria feminista pós-colonial, identificada como a terceira<br />
vertente <strong>na</strong> qual o feminismo, define o gênero e a sexualidade como<br />
temas diversos, complexos e fluidos. Sua performance não pode ser<br />
descrita monoliticamente pela diferenciação do sexo visando definir os<br />
papeis sociais das mulheres <strong>na</strong>s sociedades. Categorias de análise como<br />
274
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
diversidade <strong>na</strong> identidade de gênero, variação nos papeis sociais, as perfomances, as<br />
relações sociais identificadas, as praticas sociais e poder dinâmico do feminino<br />
são relatados como essenciais para a arqueologia de gênero.(SPENCER-<br />
WOOD, 2007: 46).<br />
A conceituação feminista de gênero critica o androcentrismo<br />
que engessa a sociedade <strong>na</strong>s categorias de masculino e feminino,<br />
<strong>na</strong>turalizando, desvalorizando e subordi<strong>na</strong>ndo as mulheres a dinâmica da<br />
sociedade patriarcal. A distinção está em repensar a documentação com<br />
um olhar para o poder dinâmico do gênero desconstruindo a abordagem<br />
tradicio<strong>na</strong>l e patriarcal.<br />
A conceituação de gênero busca rea<strong>na</strong>lisar as abordagens sobre<br />
mulher e a construção estereotipa assimétrica dos papeis sociais do feminino ao<br />
longo do tempo e em diferentes sociedades. Ratificar os papeis de<br />
atuação da mulher e o poder dinâmicos da perfomance da arqueologia de<br />
gênero viabiliza o olhar critico que tem exposto o androcêntrismo<br />
envolvido <strong>na</strong> legitimação da desigualdade de gênero <strong>na</strong> sociedade<br />
ocidental como padrão universal (SPENCER-WOOD, 2007:30). A<br />
abordagem critica permite reconstruir a atuação do feminino destacando<br />
o lugar de fala da mulher, procurando a perfomance femini<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />
documentação e a sua atuação no espaço publica e/ou privado.<br />
A teoria feminista pós-moder<strong>na</strong> critica a relação binária de<br />
oposição homem x mulher. Busca-se inserir junto à pesquisa a<br />
diversidade e fluidez <strong>na</strong> arqueologia de gênero, definindo espaços para a<br />
construção de identidades e papeis sociais, a interseção da mulher em<br />
atividades ditas masculi<strong>na</strong>s, a dinâmica do poder de atuação que definem o<br />
lugar social da mulher em meios as atividades pelas transitam a relação de<br />
poder como categoria não exclusiva do homem.<br />
275
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
FREITAS, Maria Ester. Especial <strong>Mulheres</strong>: o século das mulheres.Revista<br />
da Fundação Getulio Vargas. VOL.5 • Nº2 • MAIO/JUN. 2006 (E-mail:<br />
mfreitas@fgvsp.br).<br />
HILL, Bridge. Para onde vai a história da mulher? Varia História. Belo<br />
Horizonte: UFMG,1995.<br />
MARTI, Ruth Falco.La arqueologia Del gênero:Espacios de mujeres,<br />
mujeres com espacio. Cuadernos de Trabajos de Investigacion. Alicante:<br />
Bancaja,2003.<br />
NELSON, Sarah W. Women in Antiguity :theoretical approaches to gender and<br />
archaeology. USA: Altamira Press, 2007.<br />
SCOTT, Joan. Genre: une catégorie utile d'a<strong>na</strong>lyse historique. Les Cahiers<br />
du Grif, 37/8, 1988, pgs.125 a 153.<br />
SCOTT, Joan. A Gender and Politics of History.New York: Columbia<br />
University Press,1988<br />
SOIHET, Rachel. História das <strong>Mulheres</strong>. In: Domínios da Historia: ensaios<br />
de Teoria e Metodologia.Rio de Janeiro:Elsivier,1997.<br />
______. Gênero e Ciências Huma<strong>na</strong>s. São Paulo: Editora Rosa dos<br />
Ventos,1998.<br />
276
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
RADEGUNDA POR BAUDONÍVIA,<br />
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES<br />
Prof.ª Ms. Miriam Lourdes Impellizieri Siva 329<br />
Em ocasião anterior 330, tivemos a oportunidade de fazer alguns<br />
comentários acerca de santa Radegunda de Poitiers, a partir dos escritos<br />
de dois autores do século VI, que lhe foram contemporâneos: Gregório<br />
de Tours e Venâncio Fortu<strong>na</strong>to. Nas obras de ambos, ela é retratada ora<br />
como a santa rainha, ora como confessora, em papéis freqüentemente<br />
associados à santidade masculi<strong>na</strong>, de então.<br />
Primeira santa do Ocidente a ter seu culto reconhecido ainda em<br />
vida, Radegunda, também, será home<strong>na</strong>geada em uma outra hagiografia,<br />
escrita um pouco depois daquela de Fortu<strong>na</strong>to, por Baudonívia, monja<br />
do Mosteiro de Santa Cruz de Poitiers, que ela havia fundado.<br />
Em um mundo, até então, domi<strong>na</strong>do pelos homens, o da escrita,<br />
Baudonívia, escreve sobre a vida da fundadora do seu mosteiro,<br />
motivada pelo pedido que lhe fora feito pelas irmãs, ao qual não se<br />
conseguira furtar, conforme revela no prólogo da obra<br />
Às santas senhoras, ador<strong>na</strong>das com a graça de seus<br />
méritos, à abadessa Dedimia e a toda a<br />
Comunidade da gloriosa senhora Radegunda,<br />
Baudonívia, a mais humilde de todas. Encarregaime<br />
de levar a cabo uma obra não menos<br />
impossível do que a que seria tocar o céu com o<br />
dedo, isto é, pretender dizer algo sobre a vida da<br />
santa senhora Radegunda, que vós conheceis<br />
perfeitamente. (Prólogo) 331<br />
329 Professora do departamento de História, da Universidade do Estado do Rio<br />
de Janeiro.<br />
330 Referimo-nos ao nosso artigo, ―Santidade Femini<strong>na</strong> <strong>na</strong> Gália Merovíngia:<br />
Radegunda de Poitiers‖, publicado em: Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo.<br />
Rio de Janeiro: NEA/PPGH/UERJ, 2011, v.1, p. 175-189.<br />
331 Prólogo. In: PEJENAUTE RUBIO, Francisco (int. e trad.). ―La Vida de<br />
Santa Radegunda, escrita por Baudonivia‖. Archivium: Revista de la Falcultad de<br />
277
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Declarando-se peque<strong>na</strong> para assumir tarefa tão importante,<br />
dizendo-se de escassa formação intelectual, de pouco valor, mais devota<br />
do que instruída, Baudonívia aceita a incumbência por obediência à<br />
abadessa 332, e pede às outras monjas que a auxiliem com as suas orações.<br />
Ao contrário do que poderíamos pensar, estamos, aqui, diante de um<br />
lugar comum dos hagiógrafos ocidentais, desde que, Sulpício Severo, no<br />
século IV, declarou-se sem talento e pouco versado <strong>na</strong>s letras para<br />
escrever sobre a Vida de Martinho de Tours. A verdade é que, para<br />
Cláudio Leo<strong>na</strong>rdi, Baudonívia foi justamente escolhida pela comunidade<br />
por causa de sua cultura e capacidade literária, por saber melhor do que<br />
as outras expressar os ―valores espirituais que Radegunda representava e<br />
ao mesmo tempo os históricos de sua vida e testemunho‖<br />
(LEONARDI, 1991, 68)<br />
Assim, se Baudonívia, verdadeiramente, era pouco instruída ou<br />
não importa muito pouco, diante do fato de termos uma mulher<br />
escrevendo sobre outra mulher, a pedido de outras mulheres, o que se<br />
constitui em uma novidade, até então. A maior parte das hagiografias,<br />
mesmo a de mulheres santas era escrita por homens.<br />
Apesar disto, de acordo com A<strong>na</strong> Belén Sánchez Prieto, a escrita<br />
não foi, como é comum se pensar, entre os séculos VI-X um privilégio<br />
da elite masculi<strong>na</strong> e clerical, existindo um número significativo de<br />
mulheres que escreviam e liam. Os mosteiros femininos também serviam<br />
de escolas para as jovens da aristocracia local, possuindo scriptorium e<br />
biblioteca (PRIETO: 2010, 86). E não podemos esquecer que a adoção<br />
da Regra de São Cesário de Arles, por Radegunda, tor<strong>na</strong>va obrigatória a<br />
leitura diária para as monjas, duas horas por dia de forma individual (cap.<br />
Filologia. Oviedo. Tomo 56, 2006, pp. 313-360. A partir de agora, as citações<br />
retiradas da obra de Baudonívia serão feitas no corpo do trabalho.<br />
3 A Mosteiro de Santa Cruz de Poiteirs seguia, por escolha de Radegunda, a<br />
Regra de São Cesário de Arles para as Virgens, que ele havia escrito para sua<br />
irmã, Cesária, uma virgem consagrada. No capítulo 18, assim ficava<br />
determi<strong>na</strong>do: ―Elas obedecerão todas à mãe, depois de Deus‖.<br />
278
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
19) e, em comum, no refeitório ou quando se realizava algum tipo de<br />
trabalho manual (cap. 18).<br />
Da mesma maneira, Roberta Krueger recorda-nos da intensa<br />
atividade escrita do mosteiro fundado por Radegunda, tanto <strong>na</strong> época<br />
em que estava viva, quando posteriormente (KRUEGER, 2000, 14).<br />
Mas, voltando a nossa Baudonívia, esta nos informa que sua<br />
intenção não é repetir o que Venâncio Fortu<strong>na</strong>to, a quem chama de<br />
bispo 333, escrevera em relação à vida da ―bem-aventurada‖, mas ape<strong>na</strong>s<br />
aquilo que o outro havia deixado de mencio<strong>na</strong>r por causa de sua famosa<br />
prolixidade, coisa que o próprio Fortu<strong>na</strong>to havia reconhecido no fi<strong>na</strong>l de<br />
sua obra.<br />
Na verdade, porém, tudo o que sabemos de Baudonívia encerra-se<br />
<strong>na</strong>s suas próprias palavras, no Prólogo. Estava no mosteiro desde a<br />
infância, não provinha de família da alta aristocracia franca, tor<strong>na</strong>ra-se<br />
monja, sabia ler e escrever, demonstrava conhecer bem a Bíblia, as obras<br />
de Venâncio Fortu<strong>na</strong>to e de Gregório de Tours e, principalmente,<br />
conhecia profundamente os acontecimentos da vida de Radegunda.<br />
Além disto, tudo o que se possa afirmar são especulações, que<br />
têm levado os especialistas a tecerem as mais variadas hipóteses a seu<br />
respeito, assim como às motivações da redação de uma segunda Vida de<br />
Radegunda (ocorrida entre 609-614), em data ainda tão próxima da<br />
primeira (c. 590).<br />
Relativamente à Vida 1, como chamaremos a partir de agora a<br />
hagiografia escrita por Fortu<strong>na</strong>to, os autores se dividem quanto à data de<br />
composição, para antes ou depois da famosa rebelião que, entre<br />
589/590, manchou a reputação do Mosteiro de Santa Cruz, opondo as<br />
monjas Clotilde (filha do rei Cariberto) e sua prima Basine (filha do rei<br />
Chilperico), ambas netas de Clotário I, e, portanto, princesas reais, à<br />
abadessa Leubovera.<br />
333 Esta afirmação de Baudonívia é um dos poucos documentos comprovatórios<br />
de que Venâncio Fortu<strong>na</strong>to foi realmente alçado a bispo de Poitiers, após a<br />
morte de Radegunda. Durante muito tempo, tal fato era considerado duvidoso.<br />
279
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Gregório de Tours nos <strong>na</strong>rra com detalhes o grave episódio, <strong>na</strong><br />
sua Historia Francorum, livro IX, caps. 39 ao 43 e livro X, caps. 15 a 17<br />
que, mais do que uma insubordi<strong>na</strong>ção de religiosas frente a uma possível<br />
atitude hostil de sua abadessa, seria demonstrativo das tensões existentes<br />
entre a alta aristocracia franca contra a realeza merovíngia, que atingirão<br />
seu ápice a partir da segunda metade do século VII.<br />
Enquanto para Franca Consolino<br />
[...] apesar de que, entre os dois livros (Vida 1 e<br />
Vida 2) transcorra menos de uma geração, separa<br />
Fortu<strong>na</strong>to de Baudonívia um grave episódio de<br />
insubordi<strong>na</strong>ção, de que foram protagonistas,<br />
pouco tempo depois da morte de Radegunda, duas<br />
princesas merovíngias, monjas em Santa Cruz<br />
(CONSOLINO: 1988, 143).<br />
Francisco Peje<strong>na</strong>ute Rubio, seguindo a opinião de J. Mc<br />
Namara, J. Halborg, Gordon Whatley (editores em inglês das duas<br />
Vidas), acredita que os dois textos são posteriores à revolta:<br />
É muito possível, inclusive, que a razão<br />
fundamental de que se escrevessem ambas<br />
biografias, fosse precisamente devolver ao<br />
mosteiro a boa fama e o bom nome que havia tido,<br />
enquanto nele viveu a santa fundadora.<br />
(PEJENAUTE RUBIO: 2006, 316)<br />
Além desta questão, uma outra cerca nosso texto, Baudonivia<br />
redige usando fontes de segunda mão? Ou conheceu Radegunda em<br />
vida, escrevendo com conhecimento de causa?<br />
Aqui, se colocam três teses que dividem os especialistas.<br />
A primeira é que Baudonívia teria sido contemporânea de<br />
Radegunda no século, e entrado no mosteiro quando de sua fundação,<br />
tendo sido uma das primeiras monjas de Santa Cruz, tese defendida por<br />
L. Coudanne, em 1953, sem muita aceitação, já que pesaria contra ela o<br />
fato de que, ao escrever, Baudonívia já seria muito velha, teria, no<br />
mínimo, cerca de 90 anos.<br />
280
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A segunda tese é contrária à primeira: Baudonívia não conheceu<br />
pessoalmente a santa e escreveu a partir das informações que lhe foram<br />
confiadas pelas religiosas que haviam convivido com ela, além de usar o<br />
texto de Venâncio Fortu<strong>na</strong>to, posição de Dom Laporte, seguida por<br />
Franca Consolino.<br />
Por fim, a terceira afirma que não só Baudonívia havia<br />
conhecido Radegunda, como feito parte do reduzido grupo de<br />
companheiras de claustro a quem esta fazia confidências, tese aceita por<br />
Francisco Peje<strong>na</strong>ute Rubio e que, explicaria o porquê de ter sido<br />
escolhida pela abadessa Dedímia e a comunidade mo<strong>na</strong>cal para redigir<br />
uma nova biografia da santa.<br />
A leitura da Vida II (como comumente se chama o texto de<br />
Baudonívia), nos seus pormenores, nos si<strong>na</strong>liza em direção à terceira<br />
opção. As referências que a escritora faz são muito precisas. Em algumas<br />
passagens, Baudonívia se coloca como estando presente aos<br />
acontecimentos que <strong>na</strong>rra (uso do pronome nós), faz citações diretas.<br />
Demonstra familiaridade ao tratar de Radegunda, deixando perceber o<br />
grande afeto que lhe dedicava e que fica patente <strong>na</strong> emoção com que<br />
<strong>na</strong>rra sua morte e exéquias. Conhece, com detalhes precisos, inclusive<br />
dando os nomes dos beneficiados, os milagres realizados pela santa,<br />
assim como descreve as experiências espirituais que Radegunda, só para<br />
as mais íntimas, confidenciara.<br />
Mas, apesar de todos estes dados a favor, não podemos deixar<br />
de nos perguntar: e se estivermos diante de uma boa, excelente mesmo,<br />
compilação de segunda mão? De um texto fundamentado em uma<br />
tradição oral em vias de se perder, devido à idade avançada das suas<br />
testemunhas, e que precisava ser rapidamente passada à forma escrita?<br />
De uma excelente organizadora de nomes, datas e fatos, que lhe teriam<br />
sido repassados pelas companheiras que os haviam conhecido e<br />
guardado <strong>na</strong> memória? De uma escritora perspicaz e boa psicóloga?<br />
Estes questio<strong>na</strong>mentos poderiam levar-nos a aderir àquela<br />
segunda tese, já que não estariam destituídos de sentido. Contudo,<br />
posicio<strong>na</strong>mo-nos no sentido de acreditar, pelo que foi dito mais acima,<br />
que Baudonívia conviveu com Radegunda, colocando-se, portanto, ao<br />
lado de Venâncio Fortu<strong>na</strong>to e de Gregório de Tours, respectivamente,<br />
281
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
como testemunha quanto à grande parte dos assuntos do mosteiro e do<br />
século que descreve tão bem.<br />
E, aqui, aparece uma outra problemática relativa à nossa autora e<br />
sua obra que tem movimentado os especialistas. Quais as relações entre a<br />
Vida 1 e a Vida 2? Em que se parecem e no que se diferenciam?<br />
Se, à primeira vista, poderíamos pensar em uma questão que<br />
visaria legitimar a obra de Baudonívia, já que por se tratar de uma<br />
mulher escritora haveria a necessidade de respaldar seu texto,<br />
comparando-o com o de autores masculinos; por outro, não podemos<br />
esquecer ser esta uma prática costumeira entre especialistas, ao se<br />
depararem com textos diversos relativos a uma mesma perso<strong>na</strong>gem<br />
histórica 334.<br />
Assim, a hagiografia de Venâncio Fortu<strong>na</strong>to acentua as<br />
características ascéticas e penitenciais de Radegunda, fazendo dela um<br />
modelo da mulher forte, viril, que por sua te<strong>na</strong>cidade, força de vontade,<br />
supera os supostos limites físicos da fragilidade do sexo feminino,<br />
apresentando-se como igual ao homem <strong>na</strong> busca da realização espiritual<br />
através da anulação do corpo (modelo dos santos ascéticos do deserto),<br />
mas, que, no caso da santa é levado ao extremo. (SILVA: 2011, 183-185;<br />
CHARRONE: 2007, 37-38).<br />
Portanto, sob a pe<strong>na</strong> de Fortu<strong>na</strong>to, ela é a santa que se isola do<br />
mundo, abando<strong>na</strong> o casamento que lhe desagradara desde o início,<br />
mantendo-se à margem da vida que deixara para trás, imersa em seus<br />
jejuns e mortificações, no cuidado e <strong>na</strong> caridade para com todos os que a<br />
procuravam, <strong>na</strong> humildade do seu proceder junto às companheiras, <strong>na</strong><br />
realização de milagres com que era aquinhoada pela misericórdia divi<strong>na</strong>,<br />
em reconhecimento pelas suas virtudes 335.<br />
334 Como exemplo desta prática, podemos citar a famosa Questão Francisca<strong>na</strong>,<br />
que objetiva apresentar, no estudo comparativo das fontes sobre São Francisco<br />
de Assis, uma imagem unificada do santo.<br />
335 Se, no latim clássico virtus desig<strong>na</strong> o conjunto de qualidades que fazem de um<br />
homem um vir, o herói <strong>na</strong>s línguas neolati<strong>na</strong>s, no latim cristão, o termo passará<br />
a desig<strong>na</strong>r ―virtude‖, o poder através do qual as pessoas tocadas pela graça<br />
divi<strong>na</strong> conseguem fazer milagres e, por extensão, o próprio milagre realizado.<br />
282
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Fortu<strong>na</strong>to omite acontecimentos importantes da vida de<br />
Radegunda, de forma a construir seu modelo, tais como: a construção do<br />
mosteiro e o ingresso da santa no mesmo; as preocupações da santa para<br />
com os acontecimentos políticos da época, com as querelas envolvendo<br />
os soberanos francos, alguns dos quais seus enteados; seu afã por<br />
relíquias e o que fazia para conseguí-las; sua morte e seu funeral. Todos<br />
ligados à necessidade de se manter algum tipo de contato com o mundo<br />
exterior, em detrimento de um exclusivismo absoluto da vida mo<strong>na</strong>cal.<br />
Já quanto a Baudonívia, ela vai além do proposto no seu Prólogo,<br />
que seria de completar as lacu<strong>na</strong>s do texto de Fortu<strong>na</strong>to, escrevendo<br />
sobre os pontos que aquele deixara de mencio<strong>na</strong>r. Ela nos oferece uma<br />
visão bastante diversa de Radegunda, a quem não se cansa de chamar de<br />
rainha, já que ela continua a ser rainha, mesmo dentro dos muros<br />
monásticos, ao se interessar pelos assuntos políticos de sua época e neles<br />
procurar interferir.<br />
Ela está, assim, mais incli<strong>na</strong>da a mostrar que, mesmo do<br />
mosteiro, ela lançava, ―por piedade e caridade‖ (cap. II), diga-se de<br />
passagem, o olhar para o mundo externo, onde não mais vivia, mas com<br />
o qual parecia extremamente preocupada, já que para Leo<strong>na</strong>rdi (1991,<br />
70), o modelo religioso de Poitiers, <strong>na</strong> época de Radegunda, seria o de<br />
―um mo<strong>na</strong>cato dirigido ao mundo‖. Quer relatar as obras que aquela<br />
realizou e dar a conhecer ―uns poucos de seus muitos milagres‖<br />
(Prólogo).<br />
Sua postura diante de Radegunda, portanto, difere enormemente<br />
tanto nos objetivos, como <strong>na</strong> apresentação dos temas, da <strong>na</strong>rrativa de<br />
Venâncio Fortu<strong>na</strong>to, mesmo quando podemos perceber a influência<br />
deste <strong>na</strong> sua composição. Nossa autora ape<strong>na</strong>s mencio<strong>na</strong>, sem se deter<br />
nos detalhes, a vida de penitências e mortificações da santa., quase<br />
sempre em momentos de tensão em que precisava obter algum favor.<br />
A Vida de Radegunda é <strong>na</strong>rrada em 28 capítulos, intitulada:<br />
―Começam suas virtudes‖ (Incipiunt eiusdem virtutes) 336. Em seu texto,<br />
percebemos de forma clara e linear a presença das quatro partes de uma<br />
hagiografia já bem desenvolvidas: vita, conversio, conversartio, miracula. Dito<br />
em outras palavras: a vida no século, o processo de adoção da vida<br />
336 V. nota anterior.<br />
283
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
religiosa ou conversão, a vida religiosa propriamente dita e os milagres<br />
realizados.<br />
Os quatro primeiros capítulos <strong>na</strong>rram a vida de Radegunda no<br />
século, ou melhor, dizendo, seu comportamento quando no século, onde<br />
―foi mais celestial que terre<strong>na</strong>‖ , ―não se deixando prender por nenhuma<br />
cadeia deste mundo, entregue ao serviço dos servos de Deus‖ (cap. 1).<br />
Seu casamento com Clotário é descrito como breve, e o filho de<br />
Clóvis é qualificado como ―príncipe terreno e rei supraexcelso‖, em<br />
oposição ao Rei celestial, com quem Radegunda sonhava<br />
verdadeiramente em unir-se. Aliás, em nenhum momento Clotário é<br />
descrito de forma negativa. Pelo contrário, Baudonívia demonstra<br />
respeito, dedicação e lealdade profunda à realeza, qualquer que seja o<br />
soberano mencio<strong>na</strong>do, o que para alguns autores reforçaria a tese de sua<br />
origem não-nobre.<br />
Destaca-se, nesta parte da <strong>na</strong>rrativa, o capítulo 2, sobre um<br />
templo venerado pelos Francos e que Radegunda manda seus criados<br />
destruir pelo fogo, pois julgava ―injusto que fosse desdenhado o Deus<br />
do céu enquanto eram venerados os instrumentos do diabo‖. Os<br />
Francos reagem, tentando defender o templo, enquanto<br />
[...] a santa rainha, que levava a Cristo em seu<br />
coração, perseverando imóvel, não moveu o cavalo<br />
que cavalgava até que o templo ficou reduzido a<br />
cinzas e até que, ante seus rogos, os povos<br />
firmassem a paz entre si. Feito isto, admirando<br />
todos a fortaleza e a firmeza de caráter da rainha,<br />
bendizeram ao Senhor.<br />
Neste episódio, bastante interessante, Radegunda age de forma<br />
semelhante a São Martinho de Tours, que, dois séculos antes, com<br />
te<strong>na</strong>cidade e vigor, por onde passava, destruía símbolos, ídolos e templos<br />
pagãos, <strong>na</strong> defesa da religião cristã, auxiliando a comprovar que<br />
Baudonívia conhecia a Vida de Martinho de Tours, escrita por Venâncio<br />
Fortu<strong>na</strong>to, inspirada, por sua vez, no texto de Sulpício Severo. Uma<br />
outra leitura, nos levaria a perceber, aí, uma certa tensão, opondo os<br />
Francos (aparentemente cristianizados desde Clóvis), grupo étnico ao<br />
284
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
qual o rei Clotário, sua corte e sig<strong>na</strong>tários pertenciam, à turíngia e<br />
católica Radegunda.<br />
Aqui, também, Baudonívia utiliza, pela primeira vez, uma<br />
expressão, tomada de empréstimo a Fortu<strong>na</strong>to, quando ele <strong>na</strong>rra as<br />
orações notur<strong>na</strong>s da santa, dizendo que esta tinha a ―mente voltada para<br />
o paraíso‖, ao abando<strong>na</strong>r o leito onde dormia com seu esposo para<br />
alojar-se <strong>na</strong> fria laje (Vida 1, cap. 5), e que ela transforma em ―mente<br />
voltada para Cristo‖ (caps. 5, 8, 9, 13, 16 e 19). Estaríamos já, diante de<br />
um argumento fundamental da mística religiosa femini<strong>na</strong> medieval e dos<br />
séculos da modernidade, que fazia do Cristo o esposo almejado de corpo<br />
e alma.<br />
A se destacar, também, é o fato da autora chamar Radegunda de<br />
―santa rainha‖, e de ―bem-aventurada rainha‖, não se esquecendo do<br />
título mundano que carregava, <strong>na</strong> ocasião, como já mencio<strong>na</strong>mos mais<br />
atrás.<br />
A ordem dos acontecimentos depois da separação de Radegunda<br />
e Clotário, que em Baudonívia aparece como obra do poder divino é<br />
diferente da <strong>na</strong>rrada por Fortu<strong>na</strong>to.<br />
A doação do rei da villa de Saix, aqui, é feita cerca de um ano<br />
depois do que ela chama de ―mudança de vida‖. Neste lugar, Radegunda<br />
tem uma visão que lhe mostrava a graça a que estava desti<strong>na</strong>da a<br />
desfrutar (cap. 3) e é, também, onde recebe a notícia de que o rei a queria<br />
de volta, pois sofria muito com sua ausência, estava arrependido de ter<br />
deixado sair do seu lado ―uma rainha de tão grande condição‖.<br />
Radegunda fica ―aterrorizada por um terror insuperável‖ diante da<br />
notícia, e a ―bem-aventurada‖ começa a martirizar seu corpo mais<br />
amplamente, ―faz entrega de seu corpo para ser atormentada a um<br />
cilício, o mais áspero; (...) impôs-se o tormento do jejum, permanecendo<br />
em vigília pelas noites‖ (cap. 4).<br />
Na seqüência, o termo que Baudonívia usa para qualificar o<br />
casamento, para o qual Radegunda voltava às costas, chama a atenção,<br />
até pelo contraste, com o terror que ela sentiu quando soube do desejo<br />
do marido de tê-la novamente, assim como os verbos e expressões que<br />
ela escolhe para descrever as conseqüências: ―desdenhou o trono pátrio,<br />
passou por cima da doçura de um esposo, rechaçou um amor<br />
285
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mundano, elegeu ser desterrada com o fim de não se apartar de Cristo‖<br />
(grifos nossos).<br />
Diante de tudo isto, um resig<strong>na</strong>do e ―excelso rei Clotário‖ a<br />
ajuda a construir um mosteiro, em Poitiers (cap. 5), onde a ―santa rainha,<br />
desprezando os falsos prazeres do mundo e cheia de gozo, ingressa‖. É<br />
eleita abadessa, mas renuncia ao cargo, abando<strong>na</strong> seus bens, passando a<br />
viver da prática da humildade, caridade, castidade, para entregar-se ao<br />
―celestial esposo‖.<br />
Já vivendo no mosteiro, Radegunda novamente sofre com a<br />
investida do esposo terreno, ―o excelso rei‖, que quer recuperá-la,<br />
juntamente com seu filho Sigiberto. Paradoxalmente, ao mesmo tempo<br />
em que considera as investidas de Clotário como obras do demônio, a<br />
autora não se cansa de elogiar a pessoa do soberano.<br />
Radegunda, então, recorre ao bispo de Paris, Germano, que<br />
consegue convencer Clotário a abando<strong>na</strong>r definitivamente seu intento.<br />
Na <strong>na</strong>rrativa, destaques para a amargura do rei, assim como para seu<br />
arrependimento, ao se considerar ―indigno porque não havia merecido<br />
ter por mais tempo a rainha‖, e da situação, para ele extremamente<br />
humilhante, de ser novamente rechaçado pela ―santa rainha‖, a quem<br />
pede perdão.<br />
Sua vida no mosteiro é apresentada a partir do capítulo 8, com<br />
ênfase para o tema nupcial, das bodas com o rei celeste, e para as suas<br />
qualidades de bondade, humildade, caridade, pobreza, compaixão, <strong>na</strong><br />
aceitação das limitações alheias, enquanto para si, usava de severidade<br />
permanente.<br />
A atitude que, para Baudonívia, sintetiza a experiência monástica<br />
de Radegunda é a do louvor a Deus em todos os momentos e situações:<br />
[...] o louvor a Deus a tal ponto não se afastava de<br />
seu coração e de seus lábios que, ao ver passar<br />
uma vez a porteira do mosteiro, chamada<br />
Eodegunda, quando a quis chamar, em vez de seu<br />
nome, exclamou: ―Aleluia! E isto o fez mil vezes<br />
(cap. 8).<br />
Mesmo tenho abdicado do cargo de abadessa, <strong>na</strong> prática, percebese<br />
a enorme autoridade que detinha e que fazia com que fosse obedecida<br />
286
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
pelas outras, além da ascendência moral e espiritual sobre as<br />
companheiras. Uma ausência importante, <strong>na</strong> obra de Baudonívia, é a da<br />
abadessa Inês, a filha espiritual de Radegunda, a quem ela muito amava e<br />
para quem havia passado o comando do mosteiro, após sua abdicação<br />
do cargo de abadessa.<br />
Sua ligação com o século é recordada especialmente no capítulo<br />
10, quando, durante um ano, abastece o mosteiro com o vinho de sua<br />
própria dispensa, o que nos leva a supor que tivesse continuado a<br />
receber algum tipo de rendimento ou mantido alguma propriedade do<br />
seu tempo de rainha, apesar de já estar <strong>na</strong> vida religiosa, ou que, pela<br />
ocasião, já fosse viúva.<br />
Neste mesmo capítulo, Baudonívia descreve pormenorizadamente<br />
a relação da ―bem-aventurada‖ com os assuntos do Reino, da paz e da<br />
guerra entre os reis merovíngios, a quem busca pacificar, escrevendolhes<br />
pedindo paz, e também aos altos dig<strong>na</strong>tários, ao mesmo tempo em<br />
que orava entre lágrimas e vigílias, no mosteiro, acompanhada pela<br />
comunidade. Aqui, também, os reis são denomi<strong>na</strong>dos de excelsos,<br />
enquanto o reino é chamado de ―pátria‖, de ―França‖. Se, anteriormente,<br />
percebemos uma oposição entre os francos e a turíngia Radegunda,<br />
aqui, esta se encontra totalmente superada, e a santa perfeitamente<br />
integrada ao mundo franco, mesmo vivendo entre os muros do seu<br />
mosteiro.<br />
Os capítulos 11 (da dama chamada Mammeza a quem restitui a<br />
vista), 12 (de sua serva chamada Vinoberga que ousou sentar-se <strong>na</strong> sua<br />
cátedra), 15 (de como um ilustre varão, chamado Leão, recuperou a vista<br />
por meio do cilício da senhora Radegunda), 17 (acerca de seus<br />
emissários, enviados a dar graças ao senhor imperador e de como<br />
passaram um perigo no mar, curas realizadas à distância pela sua<br />
invocação ou acendendo círios em seu nome), 18 (de como com o si<strong>na</strong>l<br />
da cruz pôs em fuga do mosteiro a milhares de demônios); 19 (sobre<br />
uma ave notur<strong>na</strong> que cantou no mosteiro e de como uma criada,<br />
obedecendo a uma ordem sua, a fez fugir); 20 (de como, um ano antes<br />
de seu trânsito, contemplou, em uma visão, o lugar que lhe estava sendo<br />
preparado por Deus), remetem a sua ação taumatúrgica e miraculosa<br />
287
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
(curas, domínio sobre a <strong>na</strong>tureza, poder sobre demônios, visões) 337, que<br />
reforçam e confirmam sua santidade diante de todos.<br />
Os capítulos 13 e 14 são relativos aos seus esforços <strong>na</strong> obtenção<br />
de relíquias importantes para seu mosteiro (relíquias de santo André, de<br />
são Mames e de outros santos), com destaque para o longo e<br />
pormenorizado capítulo 16, sobre como conseguiu a maior de todas as<br />
relíquias junto ao imperador bizantino: um pedaço do lenho da cruz de<br />
Cristo, que fez com que fosse chamada, também, por Baudonívia, como<br />
a nova Hele<strong>na</strong> 338: ―o que fez ela (a imperatriz Hele<strong>na</strong>) em sua pátria<br />
oriental, o fez <strong>na</strong> Gália, a bem-aventurada Radegunda‖.<br />
Na continuação do capítulo, é <strong>na</strong>rrada a luta de Radegunda<br />
contra o bispo Meroveu e os grandes da cidade, que queriam impedir a<br />
entrada da famosa relíquia em Poitiers, obrigando a santa a recorrer ao<br />
―devoto‖ rei Sigiberto que, acaba por orde<strong>na</strong>r ao bispo de Tours,<br />
Eufronio, que entronizasse, com a devida honra, ―a gloriosa cruz do<br />
Senhor e as relíquias dos santos no mosteiro da senhora Radegunda, o<br />
que assim se fez‖.<br />
Baudonívia explora bem a atitude firme de Radegunda nos<br />
embates que trava contra bispos e agentes do poder laico, sempre que<br />
estes se colocam como entraves as suas ações. Suas armas são sempre a<br />
oração contínua, os jejuns, as vigílias (sozinha ou acompanhada pela<br />
comunidade mo<strong>na</strong>cal), aliada ao recurso à autoridade régia que sempre<br />
age a seu favor.<br />
Da mesma forma, apresenta a preocupação da santa com o<br />
futuro da sua fundação, depois da sua morte. Ela é a ―provedora ótima‖,<br />
a ―boa gover<strong>na</strong>dora‖ que, para não deixar suas ovelhas abando<strong>na</strong>das,<br />
deixou-lhes ―para honra do lugar e salvação do seu povo, este dom<br />
337 Estas são funções que se espera do santo: seu domínio sobre si próprio,<br />
sobre os elementos <strong>na</strong>turais, o poder sobre os elementos, a expulsão dos<br />
demônios, o restabelecimento da concórdia e da paz sociais perturbadas pelo<br />
pecado, as curas que beneficiam a todos os que recorrem a sua intercessão.<br />
338 Vide Gregório de Tours: ―Da cruz e das suas maravilhas. Comparada a<br />
Hele<strong>na</strong>, pelas relíquias e méritos, a rainha Radegunda obteve uma porção da<br />
verdadeira cruz e a colocou devotamente com outras relíquias no mosteiro que<br />
havia fundado em Poitiers‖ (À Glória dos Mártires, V).<br />
288
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
celestial‖. Assim, o mosteiro, devido à presença do santo lenho, se<br />
tor<strong>na</strong>ria um centro de peregri<strong>na</strong>ção para curas, o que contribuiria para a<br />
sua manutenção posterior:<br />
[...] ali, com a cooperação do poder de Deus e a<br />
ajuda da força do céu, os olhos dos cegos<br />
recobram a luz. Os ouvidos surdos se abrem, a<br />
língua dos mudos retor<strong>na</strong> a sua função, os coxos<br />
andam, os demônios são postos em fuga. O que<br />
mais? Todo aquele que, afligido por qualquer tipo<br />
de enfermidade, chegar com fé, volta curado pela<br />
virtude da santa cruz (cap. 16).<br />
Há, igualmente, a preocupação em encomendar o mosteiro aos<br />
reis merovíngios 339, principalmente a Sigiberto e sua esposa, a<br />
―sereníssima senhora Brunehilda‖, até como forma de dotá-los de<br />
autonomia frente aos poderes laicos e aos bispos locais, não obstante a<br />
afirmação de que ela amava com caro afeto tanto os excelentíssimos<br />
soberanos merovíngios, como as ―sacrossantas‖ igrejas e seus bispos, e<br />
de garantir a sua sobrevivência material.<br />
Nos capítulos fi<strong>na</strong>is (do 21 ao 28) Baudonívia <strong>na</strong>rra, entre<br />
lágrimas e com profunda dor, seu trânsito (21 e 22), suas exéquias,<br />
realizadas, <strong>na</strong> ausência do bispo local, pelo bispo de Tours, Gregório (23<br />
e 24), os milagres e fatos sobre<strong>na</strong>turais ocorridos nestas ocasiões, e as<br />
curas que beneficiavam aqueles que visitavam seu túmulo (24 a 28).<br />
Igualmente reforça o uso dos já citados títulos de rainha,<br />
senhora, e remete à realização dos milagres para o presente, o momento<br />
em que escrevia, reforçando, assim, a característica de Radegunda como<br />
339 Para Emmanuelle Santinelli não podemos esquecer que o Mosteiro de<br />
Poitiers era fundação régia (de Radegunda e seu esposo Clotário), sendo, pois,<br />
um centro espiritual estreitamente ligado à di<strong>na</strong>stia merovíngia, constituindo-se<br />
em ponto de apoio político da realeza <strong>na</strong> Aquitânia (SANTINELLI,<br />
Emmanuelle. La politique territoriale des reines mérovingiennes. Documents,<br />
études et ressources scientifiques pour la recherche sur la cour de France, de sés origines au 19 e<br />
siècle. Disponível em: http://cour-de-france.fr. Acesso em: 10/07/2011.<br />
289
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
a rainha santa, a santa nobre fundadora e mantenedora de mosteiros,<br />
apesar de sua feição confessio<strong>na</strong>l como defensora da religião contra o<br />
paganismo, e seu ascetismo acentuado.<br />
Baudonívia escreve a partir de duas variantes opostas que nela se<br />
complementam: a mística e a política. Os momentos mais importantes<br />
da vida de Radegunda são mostrados a partir do confronto entre bem e<br />
mal. Enquanto a santa e os que estão ao seu lado são movidos pela<br />
inspiração divi<strong>na</strong>, seus desafetos e opositores agem sempre influenciados<br />
pelo ―inimigo do gênero humano‖.<br />
A Radegunda de Baudonívia mantém, de forma permanente,<br />
uma consciência política, sem abando<strong>na</strong>r seu profundo lado espiritual do<br />
amor e da união com Deus, que aparece como componente importante<br />
de sua santidade e que move suas ações e seu comportamento, seja <strong>na</strong><br />
evangelização dos pagãos, seja no socorro ao sofrimento humano, seja<br />
<strong>na</strong> relação com os poderosos do mundo, a quem não se cansa de pedir<br />
pela paz.<br />
Para fi<strong>na</strong>lizar, as palavras de Baudonívia, quando do passamento<br />
da santa e do desespero que toma conta do mosteiro (cap. 22) e que<br />
sintetizam a função do santo <strong>na</strong> sociedade cristã, aquilo que o povo<br />
cristão espera dele, não obstante o modelo em que este possa estar<br />
inserido e do gênero a que pertença: ―Para dizer a verdade, perdemos no<br />
presente século uma senhora, uma mãe, mas enviamos, daqui, para<br />
sempre, para o reino de Cristo, uma intercessora‖!<br />
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS<br />
BAUDONIVIA. Vida de Santa Radegunda. In: PEJENAUTE RUBIO,<br />
Francisco. La Vida de Santa Radegunda, escrita por Baudonivia.<br />
Archivum: Revista de la Facultad de Filologia. Oviedo, 56, p. 313-360, 2006.<br />
CÉSAIRE D‘ARLES. Règle des Vierges. In ---. Oeuvres Mo<strong>na</strong>stiques.<br />
Tome I. Oeuvres pour les Moniales. Paris: Éditions du CERF, 1988. pp.<br />
170-273.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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291
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
A DIFERENÇA ENTRE A MULHER DOMÉSTICA E A<br />
SELVAGEM: MENADISMO NAS BACAS DE EURÍPIDES<br />
Prof.ª Dr.ª Pauli<strong>na</strong> Nólibos 340<br />
Observemos que os mitos, como em As Bacantes,<br />
estabelecem uma diferença fundamental entre as<br />
Mê<strong>na</strong>des que consentem e as que são acometidas<br />
da mania à título de punição, por causa da recusa<br />
inicial (Trabulsi: 2004, 177).<br />
Na Grécia dos documentos literários, normalmente nos<br />
deparamos com figuras femini<strong>na</strong>s de grande força dramática, como<br />
Hele<strong>na</strong>, Penélope, Antígo<strong>na</strong> ou Medeia, mas todas têm em comum o<br />
fato de que são filhas ou esposas de homens eminentes, e as suas<br />
histórias são extensão das aventuras destes homens: Menelau, Odisseu,<br />
Édipo ou Jasão estão diretamente vinculados aos destinos destas<br />
mulheres, que podem ser consideradas domésticas, no sentido de<br />
viverem dentro do gineceu, e tomarem parte dos acontecimentos<br />
públicos ape<strong>na</strong>s em situações de exceção. Conhecemos as mulheres<br />
livres muito menos, pois estas não constituíram <strong>na</strong>rrativas privadas, e as<br />
me<strong>na</strong>des, as companheiras do deus Dioniso, aparecem usualmente em<br />
grupo, constituindo tíasos, e não individualmente, o que impossibilita<br />
conhecermos suas histórias pessoais, nem sequer seus nomes, e elas não<br />
compartilham do mesmo espaço <strong>na</strong> literatura que as mulheres comuns,<br />
vinculadas à casa, cujas desgraças a épica e a tragédia não se cansaram de<br />
<strong>na</strong>rrar.<br />
Vamos conhecer a existência mítica de mulheres livres através<br />
de raros textos, e usualmente em contraposição com aquelas que<br />
permaneceram fiéis às expectativas de papel social do seu sexo. As<br />
amazo<strong>na</strong>s, que certamente são mais bem estudadas, para se constituir,<br />
romperam com o contato masculino, e se comportam de forma<br />
beligerante, sendo conhecidas como guerreiras. Já as mulheres de<br />
340 Professora do Departamento de História da Universidade Lutera<strong>na</strong> do Brasil,<br />
no Rio Grande do Sul.<br />
292
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Dioniso têm características específicas que as vinculam ao mistério, ao<br />
poder, à loucura e ao milagre. Certamente em parte devido ao efeito<br />
inebriante do famoso líquido, o vinho, os rituais dionisíacos se cobriram<br />
de uma aura de fascínio sensual, que envolve igualmente o erotismo e a<br />
experiência mística.<br />
Mas a idéia de Trabulsi (2004), compartilhada com outros<br />
helenistas, é a de que irão existir dois tipos de ‗loucas‘ de Dioniso, o que<br />
permite um desenvolvimento singular: o da ambigüidade e mesmo<br />
duplicação da representação do papel feminino no dionisismo, claramente<br />
presente no coro de Bacas, tragédia de Eurípides 341. Nela se apresenta de<br />
forma nítida uma alteração no jogo do coro, pois dois tipos de conjuntos<br />
se relacio<strong>na</strong>m: o das ―verdadeiras bacas‖, ou me<strong>na</strong>des, as companheiras<br />
que seguem o jovem deus, filho de Zeus com a princesa teba<strong>na</strong> Sêmele<br />
desde a Ásia, e que são as que respondem no coro, e o das ―teba<strong>na</strong>s<br />
enlouquecidas‖, o outro conjunto, nitidamente distinto do das mulheres<br />
do deus, e que foram tomadas de furor por vingança de Dioniso, neste<br />
caso, contra a família e a cidade de Tebas. Estas não pertencem ao<br />
conjunto orgiástico. As me<strong>na</strong>des se diferenciam enquanto aquelas que<br />
realmente domi<strong>na</strong>m os mistérios e executam os milagres dos quais a peça<br />
se refere.<br />
Se considerarmos a data provável da morte de Euripides entre 406<br />
e 405, este faleceu no fi<strong>na</strong>l sangrento da Guerra do Peloponeso, que<br />
termi<strong>na</strong>ria um ano mais tarde, em 404. Portanto Eurípides poderia tê-la<br />
escrito em concomitância com o maior momento de crise por que<br />
Ate<strong>na</strong>s passou no século V, e esse clima de desagregação da polis se<br />
encontrar refletido <strong>na</strong> catástrofe fi<strong>na</strong>l do drama, de caráter<br />
eminentemente político, do qual decorre a dissolução da família real e o<br />
fim daquele tipo de governo representado por Penteu.<br />
Além de nos criar um problema formal, visto dividir a unidade<br />
―sociológica‖ do coro, no caso d‘―as mulheres‖, certamente abre uma<br />
discussão quanto às variações, críticas e potenciais soluções que se pôde<br />
formular sobre o problema da liberdade femini<strong>na</strong> no último quartel do<br />
341 Bacas não tem datação definida, é presumidamente do fi<strong>na</strong>l de sua carreira,<br />
tendo sido exibida após sua morte no festival anual de Ate<strong>na</strong>s.<br />
293
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
século V a partir de um drama em que, basicamente, se discute sobre o<br />
poder 342. Aqui não se discute se a mulher doméstica tinha ou não<br />
atributos de inteligência, e inclusive no testemunho tardio de Ovídio, <strong>na</strong>s<br />
Metamorfoses, que será motivo de discussão adiante por comparação, as<br />
mineides, perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s da <strong>na</strong>rrativa, decidem contar histórias, o<br />
que corrobora sua erudição, enquanto se dizem acompanhadas por<br />
Ate<strong>na</strong>, que presidia os trabalhos de tecelagem e a inteligência.<br />
Nestes mitos relacio<strong>na</strong>dos ao poder de Dioniso, de certa forma<br />
anômalo pois não almeja ao domínio das cidades, é haver uma separação<br />
definida entre as ―livres <strong>na</strong> montanha‖ e as ―presas dentro de casa‖, as<br />
com ou sem kýrios, o representante legal do sexo masculino responsável.<br />
Poderíamos dizer que Dioniso é o kýrios das me<strong>na</strong>des, mas elas o<br />
acompanham livremente, o que já modifica o estatuto <strong>na</strong> base. Ele foi<br />
escolhido, e por ele deixaram para trás o paradigma de comportamento<br />
feminino inteiro, que implica desde ser virgem, ser reclusa ao interior do<br />
oikos, passar de propriedade do representante legal/pai diretamente para<br />
o marido, ser fértil e gerar filhos legítimos para a linhagem do homem,<br />
até ser silenciosa, submissa e leal. Além disso, Dioniso é refratário à<br />
sujeição dos corpos femininos à lei, portanto, mesmo sendo um poder<br />
de origem masculi<strong>na</strong> (Dioniso), confronta a hegemonia do próprio poder<br />
masculino, problema que se refere à liberdade do corpo no universo<br />
feminino. O ponto alto disso é vê-las <strong>na</strong>s representações da iconografia<br />
arcaica e clássica enroladas em serpentes, roupas sem amarras, muitas<br />
vezes semi-nuas e saltitantes.<br />
Certo que, para isso, existem questões relacio<strong>na</strong>das ao me<strong>na</strong>dismo<br />
que precisariam ser esclarecidas: sua gênese, possibilidade de existência<br />
histórica, seus significados, a função ritual que exerce no equilíbrio da<br />
polis, a questão de gênero colocada, visto ape<strong>na</strong>s mulheres serem<br />
admitidas no culto, e articulada à relação do dionisismo com o poder.<br />
Para este último ponto, contamos com o livro de Trabulsi, citado <strong>na</strong><br />
epígrafe, e que é específico nestes assuntos da vinculação histórica e<br />
mítica do dionisismo ao poder em suas variantes.<br />
342 Poderíamos certamente ampliar o escopo da pesquisa e tomar também para<br />
esta análise a comédia ―Lisístrata‖ de Aristófanes. De uma maneira<br />
completamente diferente esta comédia aponta para a mesma discussão.<br />
294
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
As outras questões, que tratam da investigação de perso<strong>na</strong>gens<br />
femininos e dos papéis sociais representados por cada um dos grupos<br />
das mulheres, exigem uma busca às fontes antigas, que podem nos<br />
oferecer uma maior quantidade de exemplos, quando não alguma<br />
reflexão metodológica quanto à sua abordagem ao longo da escrita<br />
mitográfica. Trabalho árduo e gigantesco, visto as pesquisas em história<br />
das mulheres <strong>na</strong> Antigüidade estarem em suas primeiras gerações de<br />
especialistas, e as figurações das mulheres ‗livres‘ serem ainda um tanto<br />
remotas, mas que esperamos aqui possam ser brevemente descorti<strong>na</strong>das,<br />
à espera de novas futuras investigações.<br />
Perguntamo-nos sobre qual tipo de poder recai sobre estas<br />
mulheres, e como elas reagem, no quadro das políticas altamente<br />
misógi<strong>na</strong>s da Grécia, às novas alter<strong>na</strong>tivas que o culto deste deus aporta.<br />
Pois Dioniso ambicio<strong>na</strong> o reconhecimento por parte das cidades por<br />
onde passa de seu estatuto de filho de Zeus, e a aderência à prática de<br />
seus cultos e, por causa desta negligência é capaz de fazer matar. Mas ao<br />
poder da cidade de Tebas ele não aspira, e nem ao de nenhuma outra.<br />
Dioniso é o deus margi<strong>na</strong>l por excelência, selvagem e avesso às práticas<br />
normativas, e, mesmo se cultuado em Delfos, habita o santuário no<br />
inverno, quando o clima tor<strong>na</strong> dificílimo o acesso à montanha, e o<br />
espaço sagrado fica vazio.<br />
A importância da distinção de gênero, neste caso especialmente<br />
acentuada, aponta que, enquanto tradicio<strong>na</strong>lmente era dedicado aos<br />
homens as posições de protagonismo social, nesta tragédia os pólos<br />
acabam por se inverter, fazendo das companheiras de Dioniso as únicas<br />
leais desde sempre, de Agave, a rainha mãe de Penteu, a gestora principal<br />
da ação trágica, e das teba<strong>na</strong>s, as responsáveis pela desagregação visível<br />
da ordem, problema que ocupa a centralidade da peça. A forte presença<br />
femini<strong>na</strong> é ainda mais reforçada pelo travestismo de Penteu, o rei, <strong>na</strong><br />
ce<strong>na</strong> imediata que antecede sua morte. Ou seja, até mesmo o maior dos<br />
homens da cidade, o rei, acaba como mulher, numa inversão visível e<br />
risível, próprio dos alívios cômicos de Eurípides, aqueles que, em geral,<br />
preparam a catástrofe que se segue.<br />
Em Bacas, o jovem rei é vestido como mulher pelas próprias mãos<br />
de Dioniso, e Penteu não percebe que está sendo aprisio<strong>na</strong>do numa<br />
armadilha, pois jamais será uma mulher, e as bacas o reconhecerão como<br />
295
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
seu inimigo. Com a sua perseguição, caça e assassi<strong>na</strong>to <strong>na</strong> montanha, foi<br />
executado um regicídio e, ao mesmo tempo, um sacrilégio, pois sangue<br />
familiar foi derramado, já que matando Penteu, Agave, uma mãe, matou<br />
seu filho. É ela quem traz a cabeça de Penteu para a cidade, e pensando<br />
ter caçado um leão, reconhece em si um tanto daquele poder viril do<br />
corajoso caçador. Ela chama e anuncia (VV.1168-1175) ―Bacas da Ásia<br />
(...) trazemos da montanha ao palácio cacho recém-cortado, venturosa<br />
caçada (...) agarrei sem rede este filhote de leão agreste como se pode<br />
ver‖.<br />
No me<strong>na</strong>dismo, mais precisamente no documento do período<br />
clássico constituído pelo drama trágico Bacas, de Eurípides, estas bacas,<br />
seguidoras de Dioniso, não são mais mulheres comuns, o que significa a<br />
pressuposição de que existem mulheres em outra condição daquelas<br />
mulheres que ficam em casa, protegidas, numa posição servil, tecendo e<br />
atendendo as necessidades domésticas. E inclusive para as iniciadas,<br />
estas, as domésticas, são consideradas inferiores porque, ou enquanto,<br />
ignoram os rituais dionisíacos.<br />
Observemos que os mitos, como em As Bacantes,<br />
estabelecem uma diferença fundamental entre as<br />
Mê<strong>na</strong>des que consentem e as que são acometidas<br />
da mania à título de punição, por causa da recusa<br />
inicial (Trabulsi: 2004, 177).<br />
O que temos então é um exemplo acabado da <strong>na</strong>rrativa de um dos<br />
casos em que o deus reage sobre a recusa do seu culto, aqui mais<br />
gravemente por se tratar da própria família. O que não podemos deixar<br />
de lembrar é que existe um ressentimento e uma proto-vingança<br />
enunciados <strong>na</strong> chegada do deus no prólogo, pois ele sabe que não é<br />
reconhecido como filho de Zeus nem pelas próprias irmãs da mãe.<br />
Aquela é sua terra de origem, e Dioniso descreve o túmulo de sua mãe<br />
quando o vê (vv.6-9): ―vejo monumento à minha mãe fulmi<strong>na</strong>da lá perto<br />
das casas e ruí<strong>na</strong>s do palácio a fumarem chama ainda viva do fogo de<br />
Zeus, imortal agressão de Hera à minha mãe‖, o que acentua um conflito<br />
de poder - entre o seu poder e o do rei atual, que é filho de uma irmã de<br />
Sêmele com um dos homens que brotaram dos dentes do dragão<br />
296
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
semeado por Cadmo, portanto de mesma geração e de uma linhagem<br />
claramente inferior.<br />
Penteu e o jovem Dioniso apresentam esta equivalência<br />
geracio<strong>na</strong>l básica, são primos, e os episódios seguintes irão definir qual<br />
braço da família segurará o cetro, não que Dioniso o queira. Seu tipo de<br />
poder, sendo extático e inebriante, não persegue o lugar instituído do rei<br />
(v. 48 -) ―após bem me pôr aqui voltarei o pé para uma outra terra a<br />
mostrar-me‖. Pesa sobre sua mãe uma má fama, e ele anuncia no v.41<br />
―devo pronunciar a defesa da mãe Sêmele‖ e isso se soma à negativa de<br />
seu culto.<br />
Penteu, conforme Dioniso (v.45-6)―combate o deus em mim e<br />
repele-me das libações, nem de mim se lembra <strong>na</strong>s preces‖. Sua<br />
alter<strong>na</strong>tiva, se houver reação negativa, é explícita (v.50-2) ―E se a cidade<br />
teba<strong>na</strong> irada tentar com armas expulsar da montanha as Bacas, atacarei<br />
chefiando as loucas‖. O Dioniso de Eurípides vem acompanhado do seu<br />
próprio Tíaso, mulheres que o seguem desde a Ásia, sendo, portanto,<br />
bárbaras entre os gregos.<br />
Dioniso parece encantar as mulheres de Tebas (vv.32 - 36),<br />
manipulando-as segundo a sua vontade, mas sem lhes dar qualquer<br />
ensi<strong>na</strong>mento: ―por isso, de suas casas eu as aguilhoei com a loucura e habitam as<br />
montanhas aturdidas. Obriguei-as a ter paramentos de meus trabalhos, e toda fêmea<br />
semente, quantas cadméias mulheres havia, enlouqueci de seus lares”. As<br />
expressões ―aguilhoei com a loucura‖, ―habitam as montanhas<br />
aturdidas‖, ou mesmo ―obriguei-as a ter paramentos...‖ e, por fim,<br />
―enlouqueci de seus lares‖ exemplificam a violência dionisíaca exercida<br />
sobre elas.<br />
As outras, as mulheres do cortejo de Dioniso, as que Trabulsi se<br />
refere como ―as que consentem‖, passaram por um processo que, grosso<br />
modo, poderíamos denomi<strong>na</strong>r ―iniciático‖, e que certamente é um<br />
processo de afastamento radical, não só no comportamento, que se<br />
apresenta <strong>na</strong> tragédia de um sarcasmo bem-humorado e cruel, como<br />
também <strong>na</strong> ética, que justifica tais maneiras de agir. Dão valor intenso à<br />
vida, <strong>na</strong> sua prática aproximando vida e morte, pois são descritas como<br />
as que são capazes de matar e devorar ainda quente a carne de animais.<br />
Há nelas a força da ambigüidade com que ambas se abatem sobre o ser<br />
feminino, como criaturas que sangram periodicamente e que são capazes<br />
297
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
de conceber e parir. Existe uma força de vida no grupo das bacantes que<br />
só é empa<strong>na</strong>da, de alguma forma, pela violência do revide, o que<br />
definitivamente as separa do grupo maior das gines.<br />
Seus corpos dobram, mas não por convulsões dolorosas da visão<br />
profética, como as da apolínea Kassandra, e sim pela dança, pelo<br />
movimento rítmico pulsante. A dança exprime o corpo feliz. Estão livres<br />
de homens, “kyrios”, embora não dessexuadas; vivem soltas <strong>na</strong> zo<strong>na</strong><br />
selvagem, quase inuma<strong>na</strong>, da montanha. Conhecem e ―domi<strong>na</strong>m‖ a<br />
loucura, “mania”. Fazem a pedra produzir mel, leite, vinho, água,<br />
segundo o mensageiro da tragédia. Certamente delinear estas<br />
perso<strong>na</strong>gens com tais poderes já nos permite demarcar seu registro<br />
único, seja histórico ou literário, no imaginário clássico ático.<br />
E, mesmo muito antes da tragédia de Eurípides, estes motivos<br />
dionisíacos já eram pintados em vasos, atestando a presença marcante<br />
destas mulheres dançantes e desgrenhadas, de peplos soltos, o corpo<br />
envolto em serpentes, tanto nos vasos de figuras negras, de estilo mais<br />
antigo, quanto, e em grande número, nos vasos de figuras vermelhas.<br />
Muitas ce<strong>na</strong>s diferentes aparecem, embora de mesma matriz referencial,<br />
como me<strong>na</strong>des, sátiros, ce<strong>na</strong>s sexuais explíticas entre sátiros e me<strong>na</strong>des, o<br />
cortejo dionisíaco, Dioniso representado tanto em forma huma<strong>na</strong>, como<br />
em estátua votiva, ou como máscara teatral.<br />
Nosso estudo, portanto, se remete à análise desta ambivalência,<br />
ou mesmo duplicação de papéis das figuras femini<strong>na</strong>s, nitidamente<br />
construída <strong>na</strong> tragédia Bacas. Até a produção deste texto, nosso<br />
conhecimento, que infelizmente é muito lacu<strong>na</strong>r, se limitava a tragédias<br />
com coros que eram uma u<strong>na</strong>nimidade: as náiades do Prometeu, os<br />
cidadãos de Agamêmnon, as mulheres de Corinto de Medeia, os<br />
marinheiros de Filoctetes, mesmo divergindo em suas opiniões sobre a<br />
situação, tinham uma posição de conjunto coeso como uma única<br />
figuração social. Em Bacas não.<br />
As mé<strong>na</strong>des serão, desde o início, quando Dioniso conversa com<br />
elas sobre o que vai se delineando e as prepara para os próximos<br />
acontecimentos, diferentes das ―outras‖, das mulheres domésticas.<br />
Percebemos que, enquanto algumas o ouviram e responderam<br />
livremente ao seu chamado e tor<strong>na</strong>ram-se, portanto, propriamente o<br />
coro no sentido dialogal, existem as que estão sendo arrancadas com<br />
298
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
furor de dentro de suas casas, nomeadamente a zo<strong>na</strong> de ocupação<br />
femini<strong>na</strong> por excelência, e do tear, sua tarefa doméstica de maior alcance.<br />
Este fenômeno de resistência a Dioniso, amplamente tratado por<br />
Trabulsi, já aparece num artigo de 1940, de Dodds, sobre o<br />
Me<strong>na</strong>dismo 343. Diz ele que ―resistir a Dioniso é reprimir o que há de<br />
mais elementar <strong>na</strong> nossa própria <strong>na</strong>tureza, e o castigo é o repentino e<br />
completo colapso das represas inter<strong>na</strong>s, quando o elementar rompe a<br />
compulsão fazendo desaparecer a civilização‖ (DODDS: 2002, 274). As<br />
bacas são capazes de falar da amizade e da beleza <strong>na</strong> caça e retaliação do<br />
inimigo comum e da sabedoria como o vínculo básico entre Dioniso e a<br />
amizade com elas (vv. 877-881) ―Que é a sapiência? Que privilégio dos<br />
Deuses entre mortais é mais belo? É descer supremo o braço acima dos<br />
cimos de inimigos? O que é belo é amigo sempre‖.<br />
―Os mitos de resistência mais importantes são (a) o de Licurgo;<br />
(b) os das Proitidas e das Miníades; (c) o de Penteu, que pode ser visto<br />
como o das Cadmea<strong>na</strong>s‖ (TRABULSI: 2004, 175). Ésquilo, em uma<br />
tragédia perdida, Edônios 344, <strong>na</strong>rra o episódio de Licurgo, rei dos edônios.<br />
Também Apolodoro, posteriormente, dedica-se a <strong>na</strong>rrar este confronto e<br />
o das filhas de Proitos 345. O episódio das Miníades é encontrado em<br />
Plutarco 346, Antonino Liberalis 347, Ovídio 348 e em Eliano 349.<br />
Na história de Licurgo notamos um anti-feminismo violento<br />
(TRABULSI: 2004, 176), pois ele persegue as amas de Dioniso, e<br />
343 Apêndice I do livro Os Gregos e o Irracio<strong>na</strong>l, 2002, foi publicado origi<strong>na</strong>lmente<br />
<strong>na</strong> Harvard Theological Review, v.33.<br />
344 Ésquilo, F. 69-81 ed. H.J. Mette, segundo DETIENNE, M. 1988, nota 49,<br />
p.124.<br />
345 Apolodoro, Biblioteca, III, 5,1, segundo DETIENNE, M. 1988, nota 50,<br />
p.125.<br />
346 Plutarco, Questões Gregas, 38, 299 E-300 A, segundo TRABULSI, 2004, nota 6<br />
do cap. XIV, p. 258.<br />
347 Antonino Liberalis, Metamorfoses, X, segundo TRABULSI, 2004, nota 6 do<br />
cap. XIV, p. 258.<br />
348 Ovídio, Metamorfoses, IV, 31.<br />
349 Eliano, Histórias Variadas III, 42, segundo DETIENNE, M. 1988, nota 54,<br />
p.125.<br />
299
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
notamos também seu ódio contra a vinha, e foi tomando seu filho Drias<br />
por uma vinha que ele o mata a golpes de machado. Assim Detienne<br />
recria a situação em Dioniso a Céu Aberto:<br />
Pois é <strong>na</strong> Trácia, terra suposta de suas origens nãogregas,<br />
que Dioniso encontra seu primeiro<br />
adversário. Licurgo, o rei dos edônios, ataca as<br />
amas de Dioniso, o Delirante (mainómenos),<br />
dispersa as portadoras de tirso, persegue o jovem<br />
deus assustado. As bacantes são acorrentadas, o<br />
bando de sátiros aprisio<strong>na</strong>do, mas, desta vez,<br />
Dioniso arrasta Licurgo até os limites de sua<br />
loucura, e tor<strong>na</strong> a dirigir contra o possuído seu<br />
desejo de violência e de homicídio. As cadeias das<br />
Mé<strong>na</strong>des portadoras de tirso caem por si mesmas;<br />
as altas muralhas do palácio real começam a<br />
oscilar, o telhado é tomado por um delírio<br />
báquico, põe-se a balançar, a dançar. Por sua vez,<br />
Licurgo entra em delírio. Levanta o machado de<br />
dois gumes, quer derrubar a vinha, golpear o<br />
arbusto maldito trazido pelo Estrangeiro.<br />
Turvando sua visão, Dioniso o leva até seu filho,<br />
até a criança-vinha aterrorizada que tenta escaparlhe.<br />
Mas Licurgo, rei-delirante, corta os sarmentos<br />
e o pé da vinha. Depois que as extremidades foram<br />
cuidadosamente cortadas, Dioniso o faz voltar à<br />
razão. Assassino de seu próprio filho, Licurgo<br />
tor<strong>na</strong> estéril toda a terra à sua volta (1988: 28,29).<br />
Como tivesse executado um ato sacrílego, e estivesse manchado<br />
com o sangue familiar, Licurgo recebe uma última punição, desta vez<br />
partindo de Apolo. Segundo a descrição de Detienne:<br />
Seguindo o conselho do oráculo de Delfos, os<br />
edônios o levam, amarrado, para o interior das<br />
florestas geladas, no monte Pangeu, onde se ergue<br />
um santuário oracular de Dioniso, que profetiza<br />
pela voz de uma mulher, cercado por seus<br />
sacerdotes, à maneira de Apolo <strong>na</strong>s alturas de<br />
300
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Delfos. Exposto em meio à paisagem <strong>na</strong> qual<br />
Dioniso parece exercer um solitário poder, o rei<br />
culpado é estraçalhado por cavalos selvagens<br />
(1988: 29,30).<br />
Embora o dilaceramento do corpo faça parte do ritual dionisíaco,<br />
o sparagmos aqui não se dá por mãos femini<strong>na</strong>s, mas pela força de<br />
cavalos, morte política, embora com alto teor dramático, atravessada por<br />
pathos, como a de Hipólito, conde<strong>na</strong>do por seu pai, Teseu. A cidade<br />
condenou Licurgo, e seu sangue terá restituído a fecundidade à terra, terá<br />
purificado a região. Nesta <strong>na</strong>rrativa, como em Bacas, a linhagem é<br />
destruída e o poder dionisíaco aniquila o poder da casa real em questão.<br />
Nem Licurgo e seus descendentes, nem os descendentes de Penteu<br />
rei<strong>na</strong>rão mais depois dos eventos sangrentos dos quais foram os<br />
protagonistas.<br />
Outra <strong>na</strong>rrativa é a das Proitidas, as filhas do rei de Argos (ou<br />
Tirinto), Proitos. Segundo Trabulsi (2004: 176):<br />
Elas são, como as Miníades, em número de três,<br />
Lisipe, Ifinoe e Ifia<strong>na</strong>ssa. Observemos, de<br />
passagem, que este número é quase uma constante<br />
nesses mitos, já que as filhas de Cadmo, em As<br />
bacantes, também são em número de três, entre as<br />
quais Agave, a mãe de Penteu. As fontes insistem<br />
no fato de que elas são moças púberes (ver o caso<br />
de Penteu <strong>na</strong> peça de Eurípides, que é um homem<br />
muito jovem). Assim como as Miníades, elas não<br />
aceitam os ritos de Dioniso. Acometidas de mania,<br />
elas vagam por toda parte e, como Proitos, num<br />
primeiro momento, recusa-se a ceder uma parte do<br />
seu reino ao irmão de Melampo, adivinho que<br />
conhece o remédio para o mal, o mal se generaliza<br />
e atinge todas as mulheres. Elas largam as casas em<br />
direção aos grandes espaços abertos, matam seus<br />
filhos, Proitos então cede, e Melampo cura as<br />
mulheres levando o mal até o seu cúmulo de<br />
exasperação; ele organiza corridas de perseguição<br />
301
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
com gritos rituais e danças de possessão.<br />
Fi<strong>na</strong>lmente elas deixam a montanha.<br />
Temos ainda um terceiro documento <strong>na</strong>rrativo, cronologicamente<br />
colocado antes do episódio do Dioniso tebano, que nos fala da recusa de<br />
seus ritos por parte das filhas do rei de Orcômeno, Mínias, <strong>na</strong> região da<br />
Beócia. Detienne o <strong>na</strong>rra em Dioniso a Céu Aberto:<br />
Mas é em terra beócia, em Tebas e em Orcômeno,<br />
que a parúsia dionisíaca revela seus rigores<br />
extremos. As três Miníades, filhas do rei de<br />
Orcômeno, Leucipe, Aristipe e Alcitoe, segundo<br />
Eliano; Leucipe, Arsipe e Alcatoe, segundo<br />
Antonino Liberalis, se destacam pelas repreensões<br />
dirigidas às outras mulheres que abando<strong>na</strong>m a<br />
cidade e vão fazer o papel de bacantes <strong>na</strong><br />
montanha. Dioniso lhes oferece uma oportunidade<br />
de reconhecer sua <strong>na</strong>tureza divi<strong>na</strong>. Sob a máscara<br />
de uma jovem, ele exorta as Miníades a não<br />
faltarem às suas cerimônias e a não negligenciarem<br />
os mistérios do deus. Elas não lhe dão atenção.<br />
Dioniso pode dar livre curso a seu ressentimento.<br />
E perturba-as com suas metamorfoses: touro, leão,<br />
leopardo, enquanto do tear – o objeto técnico que<br />
parece justificar a vocação doméstica das Miníades<br />
– começa a escorrer leite e néctar pelos montantes.<br />
Apavoradas diante de tais prodígios, as três irmãs<br />
se precipitam para o culto de Dioniso, dedicandose<br />
loucamente às cerimônias do novo deus. ―Sem<br />
perda de tempo, colocam, as três, sortes em um<br />
vaso, que balançam; a sorte cai em Leucipo, que<br />
promete oferecer uma vítima a Dioniso e, com a<br />
ajuda de suas irmãs, dilacera a carne de seu próprio<br />
filho.<br />
O castigo dionisíaco recai sobre mulheres ou homens – basta que<br />
recusem praticar seu culto: Licurgo e Penteu, reis, são mortos, e o<br />
primeiro, depois de matar seu filho; as filhas de Mínias, as de Proitos e as<br />
302
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
de Cadmo, princesas, são levadas a deixar a casa e a matar os filhos. O<br />
sexo masculino é o primeiro alvo, pois aos homens pertence o poder<br />
político, que possibilita reconhecimento e validação ou não do culto<br />
dionisíaco <strong>na</strong>s cidades respectivas; quanto às mulheres recalcitrantes,<br />
estas são iniciadas sem iniciação, domi<strong>na</strong>das por uma força maniática,<br />
que faz com que percam as qualidades de pudor e obediência, são<br />
levadas a experimentar o estado báquico, mas sem anuência, sem a<br />
consciência do que estão fazendo. Elas são levadas à montanha, mas não<br />
podem permanecer entre as bacas, elas termi<strong>na</strong>m as <strong>na</strong>rrativas impuras,<br />
não como verdadeiras me<strong>na</strong>des.<br />
O romano Ovídio descreve a transformação das filhas de Mínias<br />
em morcegos, ressaltando a ligação das três jovens com a casa, em<br />
a<strong>na</strong>logia com o morcego, num castigo peculiar. O trabalho doméstico é<br />
contrastante com a aplicação ao ritual de Dioniso:<br />
(...) Somente as Mineides, em sua casa,<br />
perturbando a festa com sua intempestiva<br />
aplicação a Minerva, fiam a lã ou tecem os fios, ou<br />
se debruçam sobre o pano e estimulam o trabalho<br />
das servas (Ovídio: 1983, 69).<br />
Em Eurípides, quando as bacas, no Párodo, convidam os<br />
habitantes de Tebas com gritos para irem à montanha, todos estão sendo<br />
chamados. Nos versos 114-119 temos: ―santifica-te, dançará a terra toda,<br />
quando Brômio trouxer os tíasos à montanha, à montanha, onde há uma<br />
multidão de mulheres longe das rocas e dos teares por aguilhão de<br />
Dioniso‖. O discurso de Tirésias e todo o diálogo entre este e Cadmo, o<br />
velho rei da cidade, avô de Dioniso e de Penteu, demonstra que todos<br />
devem acorrer. Quando Cadmo pergunta (v. 195) ―- Só nós <strong>na</strong> cidade<br />
por Báquio dançaremos?‖ Tirésias responde (v. 196) ―- Só nós pensamos<br />
bem, os outros mal‖. Mas que ritos seriam estes, praticados fora e sem o<br />
consentimento da cidade? Segundo Dodds:<br />
O caráter das festas pode ter variado bastante de<br />
uma localidade para outra, mas é difícil duvidar de<br />
que elas normalmente incluíam orgia femini<strong>na</strong> de<br />
tipo extático ou quase extático, conforme descritas<br />
303
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
por Diodoro, envolvendo frequentemente – senão<br />
sempre – danças da montanha (oreibasia) notur<strong>na</strong>.<br />
Este estranho rito, descrito <strong>na</strong>s Bacantes, é<br />
praticado por sociedades femini<strong>na</strong>s (2002, 272).<br />
As mulheres desta tragédia, uma vez <strong>na</strong> montanha, são oficiantes<br />
de estranhos prodígios, que incluem um aumento significativo de força<br />
física, que lhes permite dilacerar animais vivos com as próprias mãos,<br />
uma potência transmutadora, cujo poder faz jorrar líquidos das pedras, e,<br />
por fim, uma fúria assassi<strong>na</strong>, que lhes estimula a perseguir e destruir<br />
Penteu. A mãe deste, Agave, sofre de tal confusão sensorial que<br />
confunde o filho com um leão, potente a<strong>na</strong>logia do poder real, e o mata,<br />
carregando sua cabeça até a cidade. Ape<strong>na</strong>s então, toda coberta de<br />
sangue humano, filial, é que se descorti<strong>na</strong> a verdade e ela consegue,<br />
depois de esforços por parte do pai, Cadmo, enxergar literalmente o<br />
ocorrido.<br />
Encontramo-nos novamente frente ao sacrilégio, e neste drama,<br />
assim como <strong>na</strong>s outras histórias, o fi<strong>na</strong>l é funesto para os desafiantes:<br />
enquanto Dioniso e suas mulheres partem adiante, a família cadméia está<br />
desfeita, devendo cada parte dirigir-se a lugares diferentes, e a ordem de<br />
Dioniso é implacável. Nem o antigo rei e sua esposa, Harmonia, podem<br />
ficar em solo tebano. Mas como este foi leal ao apelo religioso báquico,<br />
parte com um futuro promissor pela frente, o que não é o caso das<br />
filhas, tias do deus. A estas ele reserva o exílio, impuras, e sem<br />
alter<strong>na</strong>tivas de redenção.<br />
Fica nítido que em nenhum momento estes dois grupos femininos<br />
chegaram a se misturar, embora estivessem todas <strong>na</strong> mesma região da<br />
montanha. Termi<strong>na</strong>do o ritual-sacrilégio-sangrento, os dois grupos<br />
voltaram novamente a configurar unidades distintas, o que, para a<br />
história da cultura, assume proporções significativas, configurando a<br />
distinção que, <strong>na</strong>s últimas décadas, pretendeu-se estressar sobre a<br />
condição femini<strong>na</strong> submissa e a necessidade de simetria entre as<br />
liberdades políticas de homens e mulheres. O estudo da tragédia aponta<br />
a idade do problema: 2400 anos atrás esta questão já esteve colocada<br />
numa produção artística amplamente apreciada, e, com requintes de<br />
elaboração, já foi ence<strong>na</strong>da frente a milhares de olhos por várias<br />
304
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
gerações. Desde então, a discussão mudou de nomes, e as figuras<br />
femini<strong>na</strong>s também, mas o sintoma é o mesmo, qual seja, desagregação<br />
pelo abandono destas forças, destas potências que são arcaicas e<br />
imemoriais, no entanto contemporâneas a qualquer experiência subjetiva,<br />
visíveis no Me<strong>na</strong>dismo.<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL:<br />
EURÍPIDES. As Bacas. São Paulo: Hucitec, 1995.<br />
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:<br />
BENSON, Carol. ―Mae<strong>na</strong>ds‖, pp.381 a 392, in REEDER, Ellen, Pandora<br />
– Women in Classical Greece. Princeton: Princeton University Press, 1995.<br />
CALASSO, Roberto. As Núpcias de Cadmo e Harmonia. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1991.<br />
CARPENTER, Thomas. Dionysian Imagery in Archaic Greek Art. Its<br />
Developement in Black-Figure Vase Painting. Oxford: Clarendon Press, 1986.<br />
DETIENNE, Marcel. Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />
Ed., 1988.<br />
DODDS, Erwin R. Os Gregos e o Irracio<strong>na</strong>l. São Paulo: Escuta, 2002.<br />
KERENYI, Cornelia Isle e WATSON, Wilfred G.E. Dionysos in Archaic<br />
Greece: an Understanding through Images<br />
ROHDE, Erwin. PSIQUE – La idea del alma y la inmortalidad entre los<br />
griegos. Mexico:Fondo de Cultura Económica, 1983.<br />
TRABULSI, José Antonio Dabdab. Dionisismo, Poder e Sociedade. Belo<br />
Horizonte:UFMG, 2004.<br />
305
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
IDENTIDADES, RELAÇÕES DE GÊNERO E<br />
CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS: AS REPRESENTAÇÕES<br />
DAS MULHERES CELTAS NOS TEXTOS GREGOS E<br />
LATINOS<br />
Pedro Vieira da Silva Peixoto 350<br />
Havia [entre os celtas] uma harmonia entre os<br />
papeis dos homens e das mulheres não centrada <strong>na</strong><br />
superioridade de um sobre o outro, mas <strong>na</strong> igualdade<br />
com a qual cada um deles poderia sentir-se confortável<br />
(MARKALE, 1986: 17).<br />
A epígrafe utilizada neste capítulo é intencio<strong>na</strong>l: ela foi extraída<br />
de um dos livros mais vendidos entre aqueles que se dedicam a discutir a<br />
temática das mulheres <strong>na</strong>s sociedades célticas, ao longo das últimas<br />
décadas, sobretudo por um público não-acadêmico. Pode-se dizer que,<br />
em parte, afirmações dessa <strong>na</strong>tureza tor<strong>na</strong>ram-se cada vez mais<br />
frequentes ao longo do século XX até os dias atuais, especialmente<br />
devido à celtomania 351 e, ainda, ao fortalecimento dos movimentos<br />
350 Possui graduação em História pela UFRJ, e atualmente é mestrando do PPH<br />
da UFF, sob a orientação da Prof.ªDrª. Adriene Baron Tacla. É membro do<br />
LHIA (UFRJ), NEREIDA (UFF) e colaborador do NEA (UERJ). O presente<br />
capítulo foi escrito a partir de comunicações, ofici<strong>na</strong>s e debates realizados em<br />
eventos acadêmicos e, igualmente, da pesquisa de conclusão de curso orientada<br />
pelo Prof.Dr. Fábio de Souza Lessa.<br />
351 A celtomania tem suas origens em movimentos intelectuais do século XVIII e<br />
XIX (cf. CUNLIFFE, 2003: 111-122; COLLIS, 1997: 197; 2008: 42-44;<br />
GUYONVARC‘H & LE ROUX, 1999: 161). Foi nesse período que boa parte<br />
dos mitos modernos em relação aos celtas foram sendo criados como, por<br />
exemplo, a ideia, completamente a<strong>na</strong>crônica, de que teriam sido os celtas, e mais<br />
especificamente, os druidas, os responsáveis pela criação dos monumentos<br />
megalíticos europeus (COLLIS, 2006: 73; CUNLIFFE, 2003: 117). A<br />
celtomania pode ser classificada como um movimento de busca, [re]descoberta,<br />
[re]invenção e [re]construção de um suposto ―passado celta‖. Tal fenômeno<br />
vem ganhando proporções cada vez maiores nos dias atuais. Ao longo de todo o<br />
século XX e primeira década do século XXI, podemos claramente identificar<br />
306
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
feministas que, muitas vezes, enxergavam <strong>na</strong>s mulheres celtas um<br />
símbolo de resistência, força e combate contra uma suposta opressão e<br />
tirania masculi<strong>na</strong>, em contraposição as suas ―vizinhas‖ mediterrâneas, as<br />
mulheres gregas, as quais, <strong>na</strong> maioria dos casos, tradicio<strong>na</strong>lmente tendem<br />
a ser percebidas como meras figuras passivas e sem importância.<br />
Gostaria, portanto, primeiramente, de fazer um alerta: ainda hoje<br />
a postura historiográfica que é amplamente divulgada e que prevalece –<br />
inclusive, no Brasil (cf.AMIM, 2006a: 165-172; 2006b: 13) – é aquela<br />
que busca argumentar que os celtas teriam vivido em uma espécie<br />
particular de sistema ginecocrático/matriarcal; isto é, uma sociedade <strong>na</strong><br />
qual as mulheres não somente possuem igualdade em relação aos<br />
homens, mas também exercem controle e domi<strong>na</strong>ção (EHRENBERG,<br />
1989: 63). Para aqueles não familiarizados com a produção<br />
historiográfica relacio<strong>na</strong>da às dinâmicas de gêneros entre os celtas, basta<br />
direcio<strong>na</strong>r o olhar, por exemplo, para produções como as de Markale<br />
(1986), Condren (2002) e Berresford Ellis (1995) e identificar um visível<br />
reflexo dessa postura mencio<strong>na</strong>da.<br />
Como busquei já demonstrar em outras ocasiões (PEIXOTO,<br />
2010), acredito que argumentações de tal <strong>na</strong>tureza, como aquelas que<br />
giram em torno de um suposto sistema matriarcal celta, além de terem um<br />
grau considerável de a<strong>na</strong>cronismo e fantasia, são advindas, sobretudo, de<br />
um tratamento não crítico e descuidado em relação à documentação disponível para o<br />
estudo de tais sociedades. Isto porque boa parte das imagens<br />
representadas no senso comum de ideias, ainda nos dias atuais, a respeito<br />
das mulheres celtas, vem, majoritariamente, da documentação escrita <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong>, como veremos a seguir.<br />
Em linhas gerais, a mulher celta que pega em armas, participa de<br />
disputas, que se faz ser obedecida, que intervém em interesses<br />
masculinos, e que, por fim, iguala-se aos homens em diversos aspectos,<br />
um aumento significativo de eventos, seitas e grupos pseudo-religiosos,<br />
encontros, festivais de música, publicações impressas ou digitais, associações e<br />
sociedades, todos reclamando por uma suposta herança celta comum. A meu<br />
ver, a celtomania pode ser qualificada, em linhas gerais, de acordo com três<br />
fatores básicos: (1) o fa<strong>na</strong>tismo, (2) a ausência de qualquer preocupação<br />
histórica e/ou metodológica e, sobretudo, (3) o a<strong>na</strong>cronismo.<br />
307
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
inclusive no que diz respeito à força física e coragem, não é, como<br />
muitos pensam, fruto de uma invenção romântica moder<strong>na</strong> – ao<br />
contrário, esse esteriótipo de representação tem suas origens <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong>, em<br />
autores como, por exemplo, Diodoro da Sicília, Estrabão, Tácito,<br />
Plutarco, Amiano Marcelino, dentre outros. Em vez de buscar, nesses<br />
relatos, comprovações empíricas a respeito de como as relações de<br />
gênero se davam entre os celtas, gostaria de propor um esforço<br />
contrário: desenvolver uma análise crítica e problematizada a respeito<br />
dos discursos – entendidos aqui como práxis, ações sociais – criados no<br />
Mediterrâneo sobre tais mulheres.<br />
Logo, apresento algumas das questões cujo debate gostaria de<br />
poder estimular: como as mulheres celtas são representadas pelos<br />
autores antigos e, ainda, quais as relações entre tais discursos e as<br />
dinâmicas existentes entre o Mediterrâneo antigo e as comunidades<br />
celtas?<br />
As mulheres celtas nos textos gregos e latinos<br />
Devido ao fato de as sociedades da Europa da Idade do Ferro,<br />
comumente desig<strong>na</strong>das como celtas, não nos terem deixado registros<br />
escritos significativos – salvo algumas poucas inscrições em ocasiões<br />
particulares –, os relatos gregos e latinos apresentam-se a nós como<br />
importante corpus documental para o estudo daquelas populações. Esses<br />
textos, entretanto, como veremos a seguir, apresentam-nos, igualmente,<br />
algumas dificuldades e desafios singulares, em especial, devido ao fato de<br />
trazerem sempre um olhar de fora; isto é, de indivíduos inseridos em<br />
dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais distintas daquelas das<br />
populações que são por eles relatadas (GREEN, 2004: 09; WELLS,<br />
2002: 109).<br />
Assim sendo, ao invés de meramente desconsiderar tais relatos,<br />
ou considerá-los i<strong>na</strong>dequados para os estudos célticos – privilegiando,<br />
então, unicamente, outro tipo de documentação de <strong>na</strong>tureza distinta,<br />
como a cultura material –, parece-me que os textos gregos e latinos<br />
possam e devam ser explorados pelo historiador em sua análise: bastalhe<br />
que se posicione frente a tais documentos encarando-os como<br />
produções culturais (WELLS, 2002: 105) construídas a partir de um<br />
Mediterrâneo que se pensa ―civilizado‖ em relação a sociedades outras,<br />
308
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
diversas, consideradas como vivendo em estado de barbárie, como é o<br />
que ocorre nos discursos que dizem respeito aos celtas.<br />
É nesse sentido que gostaria de propor um estudo comparado<br />
dos relatos gregos e latinos, uma vez que tal comparação tor<strong>na</strong>-se uma<br />
possibilidade interessante que permite ampliarmos e enriquecermos<br />
nosso foco de análise. Não se trata, portanto, de descobrir uma ―essência<br />
celta‖ nos relatos trabalhados, nem tampouco de articular de forma<br />
apressada o semelhante e o diferente, até mesmo porque comungo com<br />
a opinião de que a noção do que é ser ―celta‖, ou o que caracterizaria os<br />
celtas como tais, não vem de uma unidade e não é igualmente forjada –<br />
ela varia ao longo dos tempos (cf.CUNLIFFE, 2003: 139-145). Trata-se,<br />
então, de buscar identificar e perceber múltiplas formas de como se<br />
pensar a construção das ―mulheres celtas‖ como objeto/fenômeno<br />
discursivo. Ao confrontar os escritos, desejo discernir comparáveis,<br />
buscando, assim, perceber como as obras selecio<strong>na</strong>das em meu corpus<br />
documental constroem os regimes de historicidade do ―feminino celta‖. Em<br />
outras palavras, como se construiu ao longo dos anos aquilo que<br />
entendemos por ―mulher celta‖ (LESSA; FILHO, 2008: 12-3).<br />
Para não alongar muito este texto, organizei o seguinte quadro<br />
de referências que resume e apresenta alguns dos principais comentários<br />
antigos, que possuímos nos dias atuais, a respeito das mulheres celtas.<br />
Autor<br />
Amiano<br />
Marcelino<br />
Obra<br />
Rerum<br />
gestarum libri<br />
Comentários feitos pelos autores em<br />
suas obras com referências.<br />
(XV, 12. 1) – O autor mencio<strong>na</strong> que as<br />
mulheres celtas são tão ou mais fortes<br />
que os homens e diz que se, por<br />
exemplo, um gaulês, em batalha, chama<br />
a ajuda de sua esposa, nem mesmo uma<br />
tropa inteira de estrangeiros pode<br />
enfrentá-los, pois tais mulheres<br />
golpeiam sem cessar, misturando chutes<br />
com outros golpes e acertam os<br />
inimigos com a força de uma catapulta.<br />
309
Diodoro da<br />
Sicília<br />
Estrabão<br />
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Bibliotheca<br />
historica<br />
Gheographiká<br />
(gr.)/<br />
Geographia (lat)<br />
(V, 33) ―As mulheres gaulesas não são<br />
somente iguais aos homens em<br />
tamanho, mas elas também a eles se<br />
igualam em força física.‖<br />
(V, 39) [referindo-se aos Lígures] ―Para<br />
ajudá-los nos momentos mais difíceis,<br />
eles possuem suas mulheres as quais,<br />
por sua vez, estão tão acostumadas aos<br />
labores <strong>na</strong>s mesmas bases que os<br />
homens.‖<br />
(IV, 4.3) [em relação aos habitantes da<br />
Gália]“Considerando os costumes<br />
relativos a homens e mulheres - me<br />
refiro ao fato de que suas tarefas são<br />
exercidas ao contrário, de maneira<br />
oposta ao que ocorre entre nós – este é<br />
um dos costumes que eles<br />
compartilham com demais outros povos<br />
bárbaros.‖<br />
(IV, 4.6) Citando Possidônio, descreve<br />
que próximo à saída do rio Loire no<br />
oceano, existe uma ilha habitada<br />
somente por mulheres. Estas são<br />
tomadas por um deus [nomeado pelo<br />
autor como Dionísio] e realizam<br />
performances sagradas. Nenhum<br />
homem, por sua vez, colocava os pés<br />
em tal ilha, contudo, as mulheres, elas<br />
mesmas, <strong>na</strong>vegavam em certas ocasiões<br />
para o continente, onde tinham relações<br />
sexuais com os homens e retor<strong>na</strong>vam a<br />
seguir a sua ilha.<br />
310
Plutarco<br />
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Gy<strong>na</strong>ikôn Aretái<br />
(gr.)/<br />
De Mulierum<br />
Virtutibus (lat.)<br />
(III,6) – Relato sobre a presença de<br />
mulheres celtas junto aos mercenários<br />
celtas utilizados pelos cartagineses como<br />
reforço contra as tropas roma<strong>na</strong>s.<br />
Plutarco diz que <strong>na</strong>quela ocasião eram<br />
as mulheres celtas que teriam poder de<br />
decisão e julgamento, inclusive em<br />
questões militares, em tudo que dissesse<br />
respeito aos guerreiros celtas.<br />
(XX) – Relato sobre Camma: mulher<br />
que tem seu marido morto (Si<strong>na</strong>tus) por<br />
um pretendente (Sinorix) e, após ter<br />
sido forçada pela sua família a se casar<br />
novamente, ela decide aceitar as<br />
investidas de Sinorix somente para que<br />
durante o rito de união ela possa matálo,<br />
fazendo-lhe ingerir uma libação<br />
envene<strong>na</strong>da após ela mesma ter bebido<br />
da mesma taça. Os dois morrem, porém<br />
Camma regozija-se ao ver Sinorix<br />
morrer primeiro e por seu plano ter<br />
funcio<strong>na</strong>do.<br />
(XXI) – Relato sobre Stratonice que,<br />
não tendo conseguido engravidar,<br />
utiliza-se da astúcia para criar um plano:<br />
ela tenta convencer o marido de ter um<br />
filho, em segredo, com outra mulher e a<br />
considerá-lo como se fosse dela. O<br />
marido, no fi<strong>na</strong>l, acaba por consentir e<br />
Stratonice cria a criança como se fosse<br />
<strong>na</strong>scida dela própria.<br />
(XXII) – Relato sobre Chiomara, esposa<br />
de Ortiagon, um dos mais poderosos<br />
homens da Galácia. Chiomara teria sido<br />
feita prisioneira por um centurião<br />
311
Públio<br />
Cornélio<br />
Tácito<br />
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Historiae<br />
An<strong>na</strong>les<br />
romano, após os romanos, sob a<br />
liderança de G<strong>na</strong>eus Manlius Vulso,<br />
terem derrotado os gálatas em 189 a.C..<br />
Depois de ter se aproveitado de<br />
Chiomara, o centurião negocia a<br />
devolução da mulher aos gálatas,<br />
visando assim a obter riquezas em troca.<br />
A troca de fato se dá, porém Chiomara,<br />
no exato momento em que o centurião<br />
se despede dando as costas, faz um si<strong>na</strong>l<br />
com a cabeça e é obedecida: um<br />
guerreiro imediatamente corta a cabeça<br />
do romano, a qual Chiomara<br />
pessoalmente leva até seu marido.<br />
Sendo questio<strong>na</strong>da por Ortiagon em<br />
relação a suas atitudes, ela dá a última<br />
palavra, provando, assim, sua própria<br />
honra e valor ao seu marido, dizendo<br />
que a morte do romano seria justificada<br />
uma vez que o correto seria que<br />
somente um único homem<br />
permanecesse vivo após ter tido<br />
intimidades com ela.<br />
(III, 45) Narra a história da Rainha<br />
Cartimandua, mulher que tomou o<br />
poder, a liderança e o governo da tribo<br />
dos Brigantes e que traiçoeiramente<br />
capturou Caratacus, chefe dos<br />
Catuvellauni, então líder que organizava<br />
uma frente de oposição a Roma.<br />
(XIV, 35) Relato sobre Boudicca, rainha<br />
dos icenos. Boudicca, após a morte de<br />
Prasutagus, seu marido, e os abusos e<br />
humilhações públicas aos quais os<br />
romanos a submeteram junto com suas<br />
filhas e as pessoas de sua tribo, toma a<br />
312
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
De vita et<br />
moribus Iulii<br />
Agricolae<br />
liderança e o comando militar e inicia<br />
uma das maiores rebeliões dos bretões<br />
contra a ocupação roma<strong>na</strong>.<br />
(I, 16) Narra a rebelião dos bretões sob<br />
a liderança de Boudicca, destacando que<br />
para os bretões serem liderados por uma<br />
mulher seria algo comum, uma vez que<br />
eles ―não fazem distinção de sexo no<br />
que diz respeito à sucessão no<br />
poder/liderança.‖<br />
Pode-se, portanto, notar que a documentação textual antiga<br />
constroi algumas das seguintes características no que diz respeito às<br />
dinâmicas entre gêneros <strong>na</strong>s sociedades celtas:<br />
- essas mulheres poderiam gozar de um altíssimo poder de<br />
liderança, assumindo para si funções vitais políticas, militares e de<br />
mando (a exemplo das mulheres celtas, em geral, descritas por<br />
Plutarco e das mulheres bretãs in imperiis, em comando,<br />
mencio<strong>na</strong>das por Tácito);<br />
- elas, igualmente, seriam bastante imprevisíveis, indomáveis,<br />
violentas, perigosas, assassi<strong>na</strong>s e vingativas, causando, quase<br />
sempre, mal aos homens (conforme os relatos de Chiomara,<br />
Camma, Cartimandua e Boudica);<br />
- as mulheres nesse tipo de sociedades desempenhariam as<br />
funções de gênero que deveriam, <strong>na</strong> concepção dos autores, estar<br />
restritas somente aos melhores indivíduos do sexo masculino,<br />
como era no mundo Mediterrâneo – por exemplo, o poder de<br />
liderança e comando militar – havendo, dessa forma, uma clara<br />
inversão dos papeis de gêneros (de acordo com o que é<br />
comentado por Amiano, Estrabão, Plutarco e Tácito).<br />
Essas características, contudo, fazem parte de discursos<br />
particulares. Eis que uma leitura não crítica dos autores greco-romanos<br />
pode, portanto, conduzir erroneamente à ideia de um matriarcado celta.<br />
Deve-se ter em mente, primeiramente, que tais relatos constituem-se em<br />
discursos e, ainda, que tais representações construídas em relação às<br />
313
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mulheres celtas mais do que um fiel retrato sobre as relações de gêneros<br />
nestas sociedades, constituem-se como representações – com<br />
implicações políticas, sociais e culturais, diga-se de passagem – de uma<br />
(dupla) alteridade – do ―outro‖ mulher e do outro não-civilizado.<br />
Nesse sentindo, defendo que as diversas semelhanças presentes<br />
<strong>na</strong> documentação que dizem respeito a essas mulheres, se dão, em sua<br />
maioria, pela existência do que poderíamos chamar de um conhecimento<br />
―geral‖, ―público‖ ou de ―senso comum‖ da audiência Mediterrânea em<br />
relação aos celtas (NASH, 1976: 114), que é difundido, tanto através da<br />
escrita, como pela tradição e educação desses indivíduos. Não nos falta,<br />
inclusive, um conjunto de anedotas que são transmitidas das mais<br />
variadas formas possíveis, representando os celtas como os outros<br />
(CUNLIFFE, 2003: 12) e, consequentemente, como detentores de diversas<br />
marcas e traços de alteridade.<br />
Dessa forma, poderia também fazer uso de algumas colocações<br />
de Edward Said repensando-as em relação ao nosso contexto de análise:<br />
―Todo aquele que escreve sobre o Oriente (...)<br />
presume algum antecedente oriental, algum<br />
conhecimento prévio do Oriente, ao qual ele<br />
se refere e no qual ele se baseia‖ (SAID, 1996:<br />
32).<br />
Partindo de alguns pressupostos colocados por Said (1996) em<br />
seu estudo em relação ao Oriente, dentre eles o da necessidade de se<br />
buscar entender o orientalismo enquanto um discurso (SAID, 1996: 15) e<br />
um sistema de conhecimento sobre o Oriente (SAID, 1996: 18), que por sua<br />
vez está baseado <strong>na</strong> exterioridade de quem o cria e representa (SAID, 1996:<br />
32) e que justamente por isso acaba por dizer mais a respeito daquele que o<br />
elabora do que daquele que é relatado (SAID, 1996: 33), acredito ser possível<br />
fazer uma ponte entre a argumentação desenvolvida pelo autor em<br />
relação ao Oriente, com o que ocorre nos relatos greco-latinos a respeito<br />
das mulheres celtas. Ou seja, de certa maneira, os celtas que a nós são<br />
apresentados pelos autores antigos podem ser pensados a partir do<br />
mesmo problema que Said discute em seu estudo.<br />
Isto é, os celtas, antes de tudo, existem nos textos gregos e<br />
latinos, mais enquanto discursos possíveis do que, propriamente ditas,<br />
314
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
―realidades concretas‖. Esses discursos, por sua vez, também necessitam, a<br />
meu ver, ser entendidos <strong>na</strong> medida em que estejam inseridos dentro das<br />
dinâmicas de produção de identidades e alteridades da <strong>Antiguidade</strong>:<br />
enquanto bárbaros, os celtas só podem ser pensados como os Outros,<br />
diferentes do Nós-Mediterrâneo e, portanto, devem ser caracterizados de<br />
um modo que facilite sua compreensão e identificação, destacando seus<br />
atributos de barbárie. Assim, acredito que os relatos antigos que tratam<br />
das mulheres <strong>na</strong>s sociedades celtas ou das sociedades da Idade do Ferro<br />
como um todo, devam ser entendidos, antes de tudo, como construções<br />
culturais (WELLS, 2002: 105). Em outras palavras: um dos propósitos<br />
das digressões ―etnográficas‖ nos textos antigos é a de manter os hábitos<br />
dessas populações ―não-civilizadas‖ como um espelho, onde os indivíduos<br />
pertencentes à sociedade que elaborava tais discursos pudessem olhar e<br />
perceber aquilo que eles próprios tinham em comum entre si (HALL,<br />
2001: 222; HARTOG, 1999).<br />
Creio que os relatos antigos possam ser encarados como um<br />
importante meio através do qual os autores mediterrâneos buscavam,<br />
com exemplos e <strong>na</strong>rrativas de supostos acontecimentos relacio<strong>na</strong>dos às<br />
mulheres celtas, construir noções próprias de identidade, tanto como<br />
indivíduos, quanto como, especialmente, indivíduos pertencentes a uma<br />
sociedade, a uma tradição, a um determi<strong>na</strong>do grupo social. Em outras<br />
palavras, tais textos acabam sintetizando valores e ideologias que pouco<br />
se parecem com a desse ―outro‖ que é relatado, mas, sim, com os valores<br />
e ideologias daqueles que escrevem.<br />
Sue Blundell (1998: 100) argumenta que as mulheres <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong> Clássica eram vistas como criaturas selvagens e desenfreadas<br />
e, por isso, necessitavam estar sob o controle masculino 352. Embora tal<br />
afirmação tenha sido pensada pela autora para o modelo clássico<br />
proposto de reclusão femini<strong>na</strong> no interior do espaço doméstico, tal<br />
aspecto acaba por fornecer indiretamente as bases para que melhor<br />
352 Ressalta-se, ainda, que dentro deste modelo os homens eram idealmente<br />
vistos como ativos, autocontrolados e civilizados. Esta definição, por sua vez,<br />
seria sustentada pela imagem do outro, delineado a partir daquilo que tais<br />
homens não eram e, consequentemente, as mulheres apareciam primeiramente<br />
como o outro por excelência. (BLUNDELL, 1998: 100)<br />
315
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
possamos identificar e compreender o suporte ideológico no qual os<br />
diferentes discursos apresentados pelos autores antigos sobre as<br />
mulheres celtas se fundamentam. Parece-me que, <strong>na</strong> concepção desses<br />
autores, o que mais caracterizaria tais mulheres bárbaras em<br />
contraposição às mulheres gregas ou roma<strong>na</strong>s é o fato de que as ―celtas‖<br />
seriam deixadas em um estado social de ―selvageria‖ mais próximo do<br />
<strong>na</strong>tural, entendido aqui como não-civilizado, não estando, portanto,<br />
limitadas à interioridade do espaço doméstico.<br />
Igualmente válido parece ser o argumento levantado por Edith<br />
Hall (1989) em seu estudo sobre como os gregos foram capazes de<br />
inventar os bárbaros, ou seja, de construírem uma noção particular de<br />
barbárie. A autora demonstra que, dentro da concepção clássica, o quão<br />
mais bárbara uma determi<strong>na</strong>da comunidade fosse, consequentemente, <strong>na</strong><br />
visão dos autores antigos, maior seria o poder das mulheres em tais<br />
sociedades (HALL, 1998: 95). Embora tanto Blundell (1998) quanto Hall<br />
(1989) centrem suas análises essencialmente no caso grego, o mesmo<br />
princípio poderia, de certa maneira, ser aplicado aos romanos.<br />
Segundo Iain Ferris (2003: 54), em seu estudo a respeito das<br />
representações dos bárbaros <strong>na</strong> colu<strong>na</strong> de Trajano, a imagem da mulher<br />
bárbara é, de fato, a mais comum <strong>na</strong> arte imperial roma<strong>na</strong>, no tocante à<br />
representação de figuras femini<strong>na</strong>s não-divi<strong>na</strong>s 353. René Rodgers (2003:<br />
76) também defende que um aspecto importante da ideologia roma<strong>na</strong> é a<br />
concepção das mulheres como outro por excelência - sejam elas bárbaras<br />
ou não. A construção de tal alteridade, contudo, far-se-ia mais visível em<br />
textos relacio<strong>na</strong>dos a sociedades bárbaras que, por sua vez, tratam de<br />
mulheres exercendo importantes funções de poder (RODGERS, 2003:<br />
79). Conclui-se daí que,<br />
[...] mulheres em posições de poder podiam<br />
somente ser percebidas através das lentes da<br />
‗alteridade‘, sendo vistas como o contrário aos<br />
ideais romanos de feminilidade. Isto, por sua vez,<br />
353 O autor a<strong>na</strong>lisa, ainda, algumas ce<strong>na</strong>s da colu<strong>na</strong> de Trajano em que mulheres<br />
da Dácia (território, atualmente, correspondente à Romênia) aparecem<br />
torturando prisioneiros romanos, articulando tais representações com o discurso<br />
de barbárie construído pelo poder imperial romano (FERRIS, 2003: 55-60).<br />
316
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Autor<br />
Amiano<br />
Marcelino<br />
Diodoro da<br />
Sicília<br />
influenciava a representação roma<strong>na</strong> de tais<br />
mulheres (RODGERS, 2003: 80).<br />
Obra<br />
Rerum<br />
gestarum<br />
libri<br />
Bibliotheca<br />
historica<br />
317<br />
Comentários feitos pelos<br />
autores em suas obras com<br />
referências.<br />
(XV, 12. 1) – O autor mencio<strong>na</strong><br />
que as mulheres celtas são tão ou<br />
mais fortes que os homens e diz<br />
que se, por exemplo, um gaulês,<br />
em batalha, chama a ajuda de sua<br />
esposa, nem mesmo uma tropa<br />
inteira de estrangeiros pode<br />
enfrentá-los, pois tais mulheres<br />
golpeiam sem cessar, misturando<br />
chutes com outros golpes e<br />
acertam os inimigos com a força<br />
de uma catapulta.<br />
(V, 33) ―As mulheres gaulesas<br />
não são somente iguais aos<br />
homens em tamanho, mas elas<br />
também a eles se igualam em<br />
força física.‖<br />
(V, 39) [referindo-se aos Lígures]<br />
―Para ajudá-los nos momentos<br />
mais difíceis, eles possuem suas<br />
mulheres as quais, por sua vez,<br />
estão tão acostumadas aos<br />
labores <strong>na</strong>s mesmas bases que os<br />
homens.‖<br />
(IV, 4.3) [em relação aos<br />
habitantes da<br />
Gália]“Considerando os<br />
costumes relativos a homens e<br />
mulheres - me refiro ao fato de
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Estrabão Gheographiká<br />
(gr.)/<br />
Geographia (lat)<br />
Plutarco<br />
Gy<strong>na</strong>ikôn<br />
Aretái (gr.)/<br />
De Mulierum<br />
318<br />
que suas tarefas são exercidas ao<br />
contrário, de maneira oposta ao<br />
que ocorre entre nós – este é um<br />
dos costumes que eles<br />
compartilham com demais<br />
outros povos bárbaros.‖<br />
(IV, 4.6) Citando Possidônio,<br />
descreve que próximo à saída do<br />
rio Loire no oceano, existe uma<br />
ilha habitada somente por<br />
mulheres. Estas são tomadas por<br />
um deus [nomeado pelo autor<br />
como Dionísio] e realizam<br />
performances sagradas. Nenhum<br />
homem, por sua vez, colocava os<br />
pés em tal ilha, contudo, as<br />
mulheres, elas mesmas,<br />
<strong>na</strong>vegavam em certas ocasiões<br />
para o continente, onde tinham<br />
relações sexuais com os homens<br />
e retor<strong>na</strong>vam a seguir a sua ilha.<br />
(III,6) – Relato sobre a presença<br />
de mulheres celtas junto aos<br />
mercenários celtas utilizados<br />
pelos cartagineses como reforço<br />
contra as tropas roma<strong>na</strong>s.<br />
Plutarco diz que <strong>na</strong>quela ocasião<br />
eram as mulheres celtas que<br />
teriam poder de decisão e<br />
julgamento, inclusive em<br />
questões militares, em tudo que<br />
dissesse respeito aos guerreiros<br />
celtas.<br />
(XX) – Relato sobre Camma:<br />
mulher que tem seu marido
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Virtutibus (lat.) morto (Si<strong>na</strong>tus) por um<br />
pretendente (Sinorix) e, após ter<br />
sido forçada pela sua família a se<br />
casar novamente, ela decide<br />
aceitar as investidas de Sinorix<br />
somente para que durante o rito<br />
de união ela possa matá-lo,<br />
fazendo-lhe ingerir uma libação<br />
envene<strong>na</strong>da após ela mesma ter<br />
bebido da mesma taça. Os dois<br />
morrem, porém Camma<br />
regozija-se ao ver Sinorix morrer<br />
primeiro e por seu plano ter<br />
funcio<strong>na</strong>do.<br />
(XXI) – Relato sobre Stratonice<br />
que, não tendo conseguido<br />
engravidar, utiliza-se da astúcia<br />
para criar um plano: ela tenta<br />
convencer o marido de ter um<br />
filho, em segredo, com outra<br />
mulher e a considerá-lo como se<br />
fosse dela. O marido, no fi<strong>na</strong>l,<br />
acaba por consentir e Stratonice<br />
cria a criança como se fosse<br />
<strong>na</strong>scida dela própria.<br />
(XXII) – Relato sobre Chiomara,<br />
esposa de Ortiagon, um dos mais<br />
poderosos homens da Galácia.<br />
Chiomara teria sido feita<br />
prisioneira por um centurião<br />
romano, após os romanos, sob a<br />
liderança de G<strong>na</strong>eus Manlius<br />
Vulso, terem derrotado os<br />
gálatas em 189 a.C.. Depois de<br />
ter se aproveitado de Chiomara,<br />
o centurião negocia a devolução<br />
319
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Públio Cornélio<br />
Tácito<br />
Historiae<br />
An<strong>na</strong>les<br />
320<br />
da mulher aos gálatas, visando<br />
assim a obter riquezas em troca.<br />
A troca de fato se dá, porém<br />
Chiomara, no exato momento<br />
em que o centurião se despede<br />
dando as costas, faz um si<strong>na</strong>l<br />
com a cabeça e é obedecida: um<br />
guerreiro imediatamente corta a<br />
cabeça do romano, a qual<br />
Chiomara pessoalmente leva até<br />
seu marido. Sendo questio<strong>na</strong>da<br />
por Ortiagon em relação a suas<br />
atitudes, ela dá a última palavra,<br />
provando, assim, sua própria<br />
honra e valor ao seu marido,<br />
dizendo que a morte do romano<br />
seria justificada uma vez que o<br />
correto seria que somente um<br />
único homem permanecesse vivo<br />
após ter tido intimidades com<br />
ela.<br />
(III, 45) Narra a história da<br />
Rainha Cartimandua, mulher que<br />
tomou o poder, a liderança e o<br />
governo da tribo dos Brigantes e<br />
que traiçoeiramente capturou<br />
Caratacus, chefe dos Catuvellauni,<br />
então líder que organizava uma<br />
frente de oposição a Roma.<br />
(XIV, 35) Relato sobre Boudicca,<br />
rainha dos icenos. Boudicca,<br />
após a morte de Prasutagus, seu<br />
marido, e os abusos e<br />
humilhações públicas aos quais<br />
os romanos a submeteram junto<br />
com suas filhas e as pessoas de
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
De vita et<br />
moribus Iulii<br />
Agricolae<br />
321<br />
sua tribo, toma a liderança e o<br />
comando militar e inicia uma das<br />
maiores rebeliões dos bretões<br />
contra a ocupação roma<strong>na</strong>.<br />
(I, 16) Narra a rebelião dos<br />
bretões sob a liderança de<br />
Boudicca, destacando que para<br />
os bretões serem liderados por<br />
uma mulher seria algo comum,<br />
uma vez que eles ―não fazem<br />
distinção de sexo no que diz<br />
respeito à sucessão no<br />
poder/liderança.‖<br />
Pode-se, portanto, notar que a documentação textual antiga<br />
constroi algumas das seguintes características no que diz respeito às<br />
dinâmicas entre gêneros <strong>na</strong>s sociedades celtas:<br />
- essas mulheres poderiam gozar de um altíssimo poder de<br />
liderança, assumindo para si funções vitais políticas, militares e de<br />
mando (a exemplo das mulheres celtas, em geral, descritas por<br />
Plutarco e das mulheres bretãs in imperiis, em comando,<br />
mencio<strong>na</strong>das por Tácito);<br />
- elas, igualmente, seriam bastante imprevisíveis, indomáveis,<br />
violentas, perigosas, assassi<strong>na</strong>s e vingativas, causando, quase<br />
sempre, mal aos homens (conforme os relatos de Chiomara,<br />
Camma, Cartimandua e Boudica);<br />
- as mulheres nesse tipo de sociedades desempenhariam as<br />
funções de gênero que deveriam, <strong>na</strong> concepção dos autores, estar<br />
restritas somente aos melhores indivíduos do sexo masculino,<br />
como era no mundo Mediterrâneo – por exemplo, o poder de<br />
liderança e comando militar – havendo, dessa forma, uma clara<br />
inversão dos papeis de gêneros (de acordo com o que é<br />
comentado por Amiano, Estrabão, Plutarco e Tácito).
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Essas características, contudo, fazem parte de discursos<br />
particulares. Eis que uma leitura não crítica dos autores greco-romanos<br />
pode, portanto, conduzir erroneamente à ideia de um matriarcado celta.<br />
Deve-se ter em mente, primeiramente, que tais relatos constituem-se em<br />
discursos e, ainda, que tais representações construídas em relação às<br />
mulheres celtas mais do que um fiel retrato sobre as relações de gêneros<br />
nestas sociedades, constituem-se como representações – com<br />
implicações políticas, sociais e culturais, diga-se de passagem – de uma<br />
(dupla) alteridade – do ―outro‖ mulher e do outro não-civilizado.<br />
Nesse sentindo, defendo que as diversas semelhanças presentes<br />
<strong>na</strong> documentação que dizem respeito a essas mulheres, se dão, em sua<br />
maioria, pela existência do que poderíamos chamar de um conhecimento<br />
―geral‖, ―público‖ ou de ―senso comum‖ da audiência Mediterrânea em<br />
relação aos celtas (NASH, 1976: 114), que é difundido, tanto através da<br />
escrita, como pela tradição e educação desses indivíduos. Não nos falta,<br />
inclusive, um conjunto de anedotas que são transmitidas das mais<br />
variadas formas possíveis, representando os celtas como os outros<br />
(CUNLIFFE, 2003: 12) e, consequentemente, como detentores de diversas<br />
marcas e traços de alteridade.<br />
Dessa forma, poderia também fazer uso de algumas colocações<br />
de Edward Said repensando-as em relação ao nosso contexto de análise:<br />
Todo aquele que escreve sobre o Oriente (...)<br />
presume algum antecedente oriental, algum<br />
conhecimento prévio do Oriente, ao qual ele se<br />
refere e no qual ele se baseia (SAID, 1996: 32).<br />
Partindo de alguns pressupostos colocados por Said (1996) em<br />
seu estudo em relação ao Oriente, dentre eles o da necessidade de se<br />
buscar entender o orientalismo enquanto um discurso (SAID, 1996: 15) e<br />
um sistema de conhecimento sobre o Oriente (SAID, 1996: 18), que por sua<br />
vez está baseado <strong>na</strong> exterioridade de quem o cria e representa (SAID, 1996:<br />
32) e que justamente por isso acaba por dizer mais a respeito daquele que o<br />
elabora do que daquele que é relatado (SAID, 1996: 33), acredito ser possível<br />
fazer uma ponte entre a argumentação desenvolvida pelo autor em<br />
relação ao Oriente, com o que ocorre nos relatos greco-latinos a respeito<br />
322
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
das mulheres celtas. Ou seja, de certa maneira, os celtas que a nós são<br />
apresentados pelos autores antigos podem ser pensados a partir do<br />
mesmo problema que Said discute em seu estudo.<br />
Isto é, os celtas, antes de tudo, existem nos textos gregos e<br />
latinos, mais enquanto discursos possíveis do que, propriamente ditas,<br />
―realidades concretas‖. Esses discursos, por sua vez, também necessitam, a<br />
meu ver, ser entendidos <strong>na</strong> medida em que estejam inseridos dentro das<br />
dinâmicas de produção de identidades e alteridades da <strong>Antiguidade</strong>:<br />
enquanto bárbaros, os celtas só podem ser pensados como os Outros,<br />
diferentes do Nós-Mediterrâneo e, portanto, devem ser caracterizados de<br />
um modo que facilite sua compreensão e identificação, destacando seus<br />
atributos de barbárie. Assim, acredito que os relatos antigos que tratam<br />
das mulheres <strong>na</strong>s sociedades celtas ou das sociedades da Idade do Ferro<br />
como um todo, devam ser entendidos, antes de tudo, como construções<br />
culturais (WELLS, 2002: 105). Em outras palavras: um dos propósitos<br />
das digressões ―etnográficas‖ nos textos antigos é a de manter os hábitos<br />
dessas populações ―não-civilizadas‖ como um espelho, onde os indivíduos<br />
pertencentes à sociedade que elaborava tais discursos pudessem olhar e<br />
perceber aquilo que eles próprios tinham em comum entre si (HALL,<br />
2001: 222; HARTOG, 1999).<br />
Creio que os relatos antigos possam ser encarados como um<br />
importante meio através do qual os autores mediterrâneos buscavam,<br />
com exemplos e <strong>na</strong>rrativas de supostos acontecimentos relacio<strong>na</strong>dos às<br />
mulheres celtas, construir noções próprias de identidade, tanto como<br />
indivíduos, quanto como, especialmente, indivíduos pertencentes a uma<br />
sociedade, a uma tradição, a um determi<strong>na</strong>do grupo social. Em outras<br />
palavras, tais textos acabam sintetizando valores e ideologias que pouco<br />
se parecem com a desse ―outro‖ que é relatado, mas, sim, com os valores<br />
e ideologias daqueles que escrevem.<br />
Sue Blundell (1998: 100) argumenta que as mulheres <strong>na</strong><br />
<strong>Antiguidade</strong> Clássica eram vistas como criaturas selvagens e desenfreadas<br />
e, por isso, necessitavam estar sob o controle masculino 354. Embora tal<br />
354 Ressalta-se, ainda, que dentro deste modelo os homens eram idealmente<br />
vistos como ativos, autocontrolados e civilizados. Esta definição, por sua vez,<br />
seria sustentada pela imagem do outro, delineado a partir daquilo que tais<br />
323
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
afirmação tenha sido pensada pela autora para o modelo clássico<br />
proposto de reclusão femini<strong>na</strong> no interior do espaço doméstico, tal<br />
aspecto acaba por fornecer indiretamente as bases para que melhor<br />
possamos identificar e compreender o suporte ideológico no qual os<br />
diferentes discursos apresentados pelos autores antigos sobre as<br />
mulheres celtas se fundamentam. Parece-me que, <strong>na</strong> concepção desses<br />
autores, o que mais caracterizaria tais mulheres bárbaras em<br />
contraposição às mulheres gregas ou roma<strong>na</strong>s é o fato de que as ―celtas‖<br />
seriam deixadas em um estado social de ―selvageria‖ mais próximo do<br />
<strong>na</strong>tural, entendido aqui como não-civilizado, não estando, portanto,<br />
limitadas à interioridade do espaço doméstico.<br />
Igualmente válido parece ser o argumento levantado por Edith<br />
Hall (1989) em seu estudo sobre como os gregos foram capazes de<br />
inventar os bárbaros, ou seja, de construírem uma noção particular de<br />
barbárie. A autora demonstra que, dentro da concepção clássica, o quão<br />
mais bárbara uma determi<strong>na</strong>da comunidade fosse, consequentemente, <strong>na</strong><br />
visão dos autores antigos, maior seria o poder das mulheres em tais<br />
sociedades (HALL, 1998: 95). Embora tanto Blundell (1998) quanto Hall<br />
(1989) centrem suas análises essencialmente no caso grego, o mesmo<br />
princípio poderia, de certa maneira, ser aplicado aos romanos.<br />
Segundo Iain Ferris (2003: 54), em seu estudo a respeito das<br />
representações dos bárbaros <strong>na</strong> colu<strong>na</strong> de Trajano, a imagem da mulher<br />
bárbara é, de fato, a mais comum <strong>na</strong> arte imperial roma<strong>na</strong>, no tocante à<br />
representação de figuras femini<strong>na</strong>s não-divi<strong>na</strong>s 355. René Rodgers (2003:<br />
76) também defende que um aspecto importante da ideologia roma<strong>na</strong> é a<br />
concepção das mulheres como outro por excelência - sejam elas bárbaras<br />
ou não. A construção de tal alteridade, contudo, far-se-ia mais visível em<br />
textos relacio<strong>na</strong>dos a sociedades bárbaras que, por sua vez, tratam de<br />
homens não eram e, consequentemente, as mulheres apareciam primeiramente<br />
como o outro por excelência. (BLUNDELL, 1998: 100)<br />
355 O autor a<strong>na</strong>lisa, ainda, algumas ce<strong>na</strong>s da colu<strong>na</strong> de Trajano em que mulheres<br />
da Dácia (território, atualmente, correspondente à Romênia) aparecem<br />
torturando prisioneiros romanos, articulando tais representações com o discurso<br />
de barbárie construído pelo poder imperial romano (FERRIS, 2003: 55-60).<br />
324
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mulheres exercendo importantes funções de poder (RODGERS, 2003:<br />
79). Conclui-se daí que:<br />
[...]mulheres em posições de poder podiam somente ser<br />
percebidas através das lentes da „alteridade‟, sendo<br />
vistas como o contrário aos ideais romanos de<br />
feminilidade. Isto, por sua vez, influenciava a<br />
representação roma<strong>na</strong> de tais mulheres<br />
(RODGERS, 2003: 80).<br />
Todos esses aspectos serviriam de justificativa e explicação para<br />
que as mulheres celtas fossem relatadas assumindo funções particulares e<br />
atuando em espaços sociais que são concebidos, por excelência, como<br />
restritos ao universo masculino. Isso seria uma marca/ indício de um<br />
estágio de não civilidade e atraso por parte daquelas respectivas sociedades.<br />
Em outras palavras, as mulheres não estariam submetidas às devidas<br />
regras sociais e aos mesmos espaços de gênero que as mulheres civilizadas,<br />
o que, por sua vez, acabaria por resultar em ações e condutas<br />
inimagináveis para uma mulher, <strong>na</strong> concepção dos autores helenos e<br />
latinos.<br />
Suzanne Saïd (1985), em seu estudo sobre a utilização de figuras<br />
femini<strong>na</strong>s e a selvageria nos relatos gregos de Heródoto a Diodoro da<br />
Sicília e Estrabão, demonstrou como as diversas <strong>na</strong>rrativas gregas que<br />
tratam das práticas alimentares de outras populações, no caso, bárbaros,<br />
sempre situados à margem do universo, acabam por construir um<br />
mecanismo baseado <strong>na</strong> distinção e identidade, situando, assim, esses<br />
grupos como selvagens ou civilizados graças aos seus costumes alimentares<br />
(SAÏD, 1985: 139-150). Defendo, portanto, que, de fato, o mesmo<br />
acontece em relação às mulheres celtas. Isto é, o mesmo mecanismo, ou<br />
lógica argumentativa, é construído igualmente no que diz respeito às<br />
relações de gênero, tal como aos costumes e ritos de comensalismo.<br />
Por outro lado, vê-se, também, que as mulheres celtas figuram<br />
nos relatos antigos como portadoras de virtudes importantes <strong>na</strong><br />
concepção daqueles autores. Elaborei, então, visando a facilitar a<br />
compreensão de minha argumentação, uma tabela que resume e retoma<br />
alguns dos principais aspectos apresentados pela documentação<br />
estudada:<br />
325
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Tabela comparativa entre os atributos das mulheres celtas construídos pelos<br />
<strong>Mulheres</strong> com<br />
atributos/ funções<br />
não femini<strong>na</strong>s<br />
Diodoro Sim – são dotadas de<br />
atributos físicos<br />
comparáveis aos dos<br />
homens e estão<br />
acostumadas a<br />
exercer tarefas<br />
masculi<strong>na</strong>s.<br />
Estrabão Sim - <strong>na</strong> medida em<br />
que há uma inversão<br />
dos espaços de<br />
gênero.<br />
autores:<br />
<strong>Mulheres</strong> que possuem<br />
igual ou maior autoridade<br />
que os homens<br />
Não há referência.<br />
Sim – já que as funções<br />
encontram-se invertidas,<br />
consequentemente as<br />
mulheres assumiriam<br />
cargos e funções de poder.<br />
326<br />
Virtudes ou<br />
atributos<br />
femininos<br />
encontrados<br />
nestas mulheres<br />
Nenhum. 356<br />
Zelo, carinho e<br />
excelência <strong>na</strong><br />
criação dos<br />
filhos.<br />
356 A coragem/ espírito destemido (DIODORO, BH, V, 32) e o fato de as<br />
mulheres ajudarem os seus maridos por estarem acostumadas a trabalhar em<br />
níveis iguais aos deles (DIODORO, BH, V, 39), ao contrário de virtudes,<br />
parecem ser mais as marcas de uma alteridade presente nestas mulheres e,<br />
portanto, não se constituindo como atributos desejáveis em uma ―mulher<br />
idealizada‖.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Plutarco Sim – mulheres<br />
decidem questões<br />
públicas, disputas,<br />
negociações e<br />
intervêm em<br />
assuntos militares.<br />
Tácito Sim – mulheres<br />
lideram e comandam<br />
homens, rei<strong>na</strong>ndo<br />
em alguns casos por<br />
si só.<br />
Sim – mulheres são a<br />
palavra fi<strong>na</strong>l em debates;<br />
Deiotarus segue e obedece<br />
às indicações de Stratonice;<br />
os homens de Chiomara lhe<br />
obedecem imediatamente e<br />
ela dá a última palavra <strong>na</strong><br />
discussão com seu marido.<br />
Sim – Cartimandua tenta<br />
domi<strong>na</strong>r o marido e<br />
sobrevalece com o auxílio<br />
de Roma; no caso de<br />
Boudicca o autor relata ser<br />
um costume comum<br />
homens serem liderados por<br />
mulheres <strong>na</strong> guerra.<br />
327<br />
Sabedoria, senso<br />
de justiça,<br />
cuidado para com<br />
o marido acima<br />
de qualquer coisa,<br />
fidelidade<br />
extrema em todas<br />
as circunstâncias.<br />
Senso de justiça e<br />
cuidado para com<br />
a família, no caso<br />
de Boudicca.<br />
Sendo assim, não me parece estranho que as principais virtudes<br />
destacadas pelos autores clássicos em relação às mulheres celtas estejam<br />
perfeitamente em diálogo com a mensagem que eles buscavam transmitir<br />
e com suas próprias concepções de gênero. Nem tampouco é estranho<br />
que esses autores, inseridos em um contexto sócio-político-econômicocultural<br />
distinto (GREEN, 2004: 09; WELLS, 2002: 109), relatem essas<br />
comunidades a partir de um universo e daquilo que conheciam e com os<br />
quais estavam familiarizados.<br />
Assim sendo, defendo a hipótese de que os relatos antigos das<br />
mulheres celtas dizem, <strong>na</strong> verdade, mais respeito às sociedades que as<br />
escreveram do que propriamente às sociedades que são por elas relatadas
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
(cf. ARNOLD, 1995: 153; SAÏD, 1985: 150). Contudo, acredito,<br />
também, que tais representações não eram completamente inventadas –<br />
elas se baseavam em uma realidade transmitida e transformada por<br />
indivíduos que não entendiam a dinâmica inter<strong>na</strong> das sociedades as quais<br />
retratavam (EHRENBERG, 1989: 152; WEELS, 2002: 109) e que<br />
manipulavam, ainda, tais construções devido a motivações das mais<br />
variadas 357. O que surge, portanto, é uma caricatura, e como todas as<br />
caricaturas, o estereótipo deve ser sempre generalizado, seletivo e<br />
exagerado, embora ainda tenha certa base <strong>na</strong> realidade (CUNLIFFE,<br />
2003: 11). Tentei, portanto, enfatizar que aos olhos do Mediterrâneo, os<br />
celtas são bárbaros por excelência e tal fato fica igualmente visível,<br />
inclusive, a partir do que os autores antigos descrevem sobre as<br />
interações entre gêneros nessas sociedades.<br />
Assim, espero ter sido capaz de chamar a atenção, indiretamente<br />
a partir de um estudo de caso específico – a representação das mulheres<br />
celtas nos textos gregos e latinos –, para a necessidade de entender-se a<br />
categoria ―gênero‖ como um constructo sociocultural, que possui<br />
variabilidades de acordo com o tempo, espaço e grupos sociais. Minha<br />
intenção de contribuição, ainda que peque<strong>na</strong> sob diversos aspectos, com<br />
este volume, resume-se, de certa forma, em uma tentativa de<br />
357 A partir de uma análise mais ampla, que busca, dentro de uma metodologia<br />
comparativa, fazerem dialogar documentos de diferentes <strong>na</strong>turezas (relatos<br />
clássicos, cultura material, documentação medieval irlandesa) em alguns casos,<br />
pode-se, mais efetivamente, observar haver um contraste nítido <strong>na</strong>s dinâmicas<br />
de papeis de gênero desempenhados por uma mulher gaulesa, por exemplo, em<br />
relação a uma esposa ateniense do Período Clássico ou, ainda, uma matro<strong>na</strong><br />
roma<strong>na</strong> e que, tais diferenças tão gritantes provavelmente causaram certo<br />
impacto entre os autores mediterrâneos não familiarizados com algumas<br />
instituições e práticas sociais. Consequentemente, parece ser possível<br />
argumentar que a maior diferença existente entre o mundo greco-romano e os<br />
celtas, nesse sentido, seja a variedade de papeis possíveis de serem<br />
desempenhados pelas mulheres bem como o modo como algumas mulheres<br />
específicas foram capazes de se inserir em espaços privilegiados e desempenhar<br />
funções, comumente, masculi<strong>na</strong>s, sem que isso, <strong>na</strong>turalmente, resulte em uma<br />
ginecocracia. (RANKIN, 2002: 147, 251, 253).<br />
328
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
demonstração de que as noções de gênero são culturalmente construídas<br />
através de discursos (orais, textuais ou imagéticos), variando segundo as<br />
sociedades ou, ainda, até mesmo no âmbito de uma mesma sociedade, de<br />
acordo com diferentes momentos de sua história. Acredito, assim, que<br />
uma definição concisa e condizente pode ser encontrada em G. Frainer<br />
Knoll (2006: 2): ―o gênero, assim como toda identidade, é social, cultural e<br />
discursivamente produzido‖.<br />
Portadoras de virtudes importantes ou não, as mulheres celtas<br />
que são representadas nos diversos textos gregos e latinos da<br />
<strong>Antiguidade</strong> são, por conseguinte, <strong>na</strong> visão daqueles que as relatam, <strong>na</strong>da<br />
mais do que um mero reflexo da condição de não-civilidade das sociedades<br />
às quais elas pertencem. São, assim, a alteridade da alteridade; o outro mulher<br />
dentre os outros bárbaros e, consequentemente, detentoras de marcas dessa<br />
ex-centricidade.<br />
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329
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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331
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
MULHER E CASAMENTO EM ROMA:<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE A MATRONA PUDENTILA<br />
Profª Doutoranda Semíramis Corsi Silva 358<br />
Introdução<br />
O objetivo deste texto é apresentar aspectos das matro<strong>na</strong>s e<br />
do casamento romano através do estudo sobre Pudentila, rica viúva de<br />
Sicinio Amico em seu primeiro casamento e casada pela segunda vez<br />
com escritor Apuleio. Nosso documento de pesquisa trata-se da obra Pro<br />
Se de Magia Liber, mais conhecida como Apologia, discurso de autodefesa<br />
diante da acusação de práticas mágicas, escrito por Apuleio.<br />
É importante ressaltarmos que os textos da literatura roma<strong>na</strong><br />
são domi<strong>na</strong>dos pelo universo masculino e Apologia não foge desta<br />
característica, trazendo-nos fortes impressões sobre uma mulher roma<strong>na</strong>,<br />
Pudentila, e referências para compreendermos aspectos sobre os<br />
casamentos, as matro<strong>na</strong>s e as relações de gênero entre os romanos do<br />
período em que foi escrita. Ainda como nos lembra Vincent Hunink<br />
(1998: 275), <strong>na</strong> literatura lati<strong>na</strong> poucas mulheres sobressaem-se como<br />
indivíduos ou, como expressa Moses Finley (1991, 149), as mulheres<br />
roma<strong>na</strong>s em destaque estão ligadas à poesia e as lendas, como Lésbia de<br />
Catulo e a lendária Casta Lucrecia, ou ao extravagante e cruel, como<br />
Messali<strong>na</strong> e Agripi<strong>na</strong>. Tudo isso tor<strong>na</strong> Apologia e sua caracterização de<br />
Pudentila, uma matro<strong>na</strong> real, extremamente interessante como<br />
documento para o tema.<br />
Ao nos propormos a<strong>na</strong>lisar Pudentila em uma perspectiva dos<br />
estudos de gênero estamos preocupados em perceber a mulher em suas<br />
relações com o homem, procurando destacar as diferenças a partir do<br />
reconhecimento da realidade histórico-social. De acordo com Lia<br />
Zanotta Machado (1998: 107-108), a metodologia dos estudos de gênero<br />
358 Aproveitamos este espaço para agradecer o apoio constante de nossa<br />
orientadora de Doutorado, Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho<br />
(UNESP/Franca). Algumas informações deste texto são fruto de nossas<br />
pesquisas de Mestrado, também orientado por esta professora, a estas<br />
informações foram acrescidas leituras, reflexões e considerações posteriores em<br />
torno do objeto de estudo do texto, a matro<strong>na</strong> Pudentila.<br />
332
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
supera impasses dos estudos da ―História das <strong>Mulheres</strong>‖, rompendo a<br />
noção biológica do sexo, entendendo que a construção social de gênero<br />
perpassa diferentes áreas sociais. Diante da dificuldade em conhecer o<br />
universo das mulheres antigas ―por elas mesmas‖, Pedro Paulo Fu<strong>na</strong>ri<br />
(1995: 180) sugere uma mudança <strong>na</strong> tradicio<strong>na</strong>l metodologia de trabalho,<br />
relacio<strong>na</strong>ndo as ações femini<strong>na</strong>s com as dos homens e seu contexto<br />
histórico, buscando a compreensão ―do „masculino‟ e do „feminino‟ enquanto<br />
construções sociais que variam em termos de classe social, gênero e etnicidade, em<br />
diferentes períodos históricos e diferentes sociedades‖. Assim, os estudos de<br />
gênero evitam uma abordagem centrada em estudos sobre mulheres,<br />
para uma abordagem de gênero como construção relacio<strong>na</strong>l.<br />
Antes de tratar da situação de Pudentila propriamente, cabe<br />
comentarmos sobre o autor de nosso documento, Apuleio. Tratar sobre<br />
Apuleio é fundamental, pois o discurso nos remeterá à sua visão sobre<br />
Pudentila. Apuleio era da região da África Proconsular e numa de suas<br />
viagens como sofista, passou pela cidade de Oea (atual Trípoli, <strong>na</strong> Líbia)<br />
para pronunciar conferências e reencontrou Ponciano, um antigo amigo<br />
dos tempos em que estudou em Ate<strong>na</strong>s. Ponciano apresentou Apuleio a<br />
sua mãe, a viúva Emília Pudentila, com quem ele se casou pouco tempo<br />
depois com o consentimento do amigo (Apologia, LXXII, LXXIII).<br />
Apuleio também nos informa que a viúva negava-se a contrair novo<br />
matrimônio e que tinha estabelecido um contrato de futuro casamento,<br />
sponsalia, com o irmão de seu falecido marido Sicinio Amico, portanto<br />
seu cunhado, Sicinio Claro. 359 Mas, segundo as indicações de Apuleio,<br />
essa promessa foi rompida antes de sua chegada <strong>na</strong> cidade de Oea<br />
(APULEIO, Apologia, LXVIII, 5-6; LXIX).<br />
Após o casamento, a família do marido falecido de Pudentila,<br />
formada por membros da elite local de Oea (GUEY, 1954), acusou<br />
Apuleio de estar interessado <strong>na</strong> riqueza da viúva e, por isso, ter praticado<br />
magia amorosa para casar-se com a ela. Na autodefesa de Apuleio desta<br />
acusação, Apologia, há várias referências em relação ao seu casamento<br />
359 As sponsalias (esponsais) eram os contratos que precediam os casamentos<br />
entre os romanos (MUNGUÍA, 1980: 170). Já os casos de promessa de<br />
casamento entre o irmão de um homem e sua viúva eram comuns <strong>na</strong> antiga<br />
Roma, segundo Bradley (1991: 93).<br />
333
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
com Pudentila, além de aspectos biográficos da matro<strong>na</strong> e<br />
representações do autor sobre sua mulher. Faremos, a seguir, um estudo<br />
historiográfico sobre alguns aspectos da condição femini<strong>na</strong> no Império<br />
Romano e sobre os casamentos romanos. Feito isso, a<strong>na</strong>lisaremos como<br />
características sobre as matro<strong>na</strong>s e o casamento romano foram<br />
mostradas <strong>na</strong> Apologia em relação a Pudentila.<br />
Mulher e casamento no Império Romano<br />
É preciso distinguir no mundo romano dois tipos de<br />
mulheres: as matro<strong>na</strong>s, mulheres oriundas das famílias abastadas,<br />
preparadas para receberem um dia um marido, e as libertas, escravas,<br />
concubi<strong>na</strong>s, prostitutas, dançari<strong>na</strong>s, mulheres que pertenciam a estatutos<br />
sociais diferentes e eram regidas por outras regras morais, tais mulheres<br />
eram consideradas margi<strong>na</strong>is e recebiam direitos diferentes das matro<strong>na</strong>s.<br />
Às matro<strong>na</strong>s roma<strong>na</strong>s, matresfamilias, cabia a responsabilidade<br />
do casamento e a vida doméstica 360, por isso eram respeitadas e<br />
honradas. A maioria das fontes lati<strong>na</strong>s, quando dão alguma informação<br />
sobre mulheres, se remete a essas roma<strong>na</strong>s honradas. As matro<strong>na</strong>s eram<br />
protegidas por leis e decretos. Deviam ser recatadas e cuidar do<br />
orde<strong>na</strong>mento da casa e da educação dos filhos até os sete anos. Portanto,<br />
deveriam ser mães e se casarem. A desig<strong>na</strong>ção jurídica de uma mãe de<br />
família, assim como a de um pai de família, paterfamilias, dependia do<br />
casamento, não sendo aplicada necessariamente ape<strong>na</strong>s ao <strong>na</strong>scer dos<br />
filhos. Dessa forma, com o ato do casamento uma mulher era<br />
considerada uma matresfamilias e o homem um paterfamilias.<br />
Sabemos que a função primeira do casamento romano era a<br />
descendência. Em latim o casamento chama-se justum matrimonium ou<br />
justae nuptiae. Da palavra mater podemos perceber o surgimento da<br />
palavra matrimonium, o que caracteriza a mulher roma<strong>na</strong> com sua<br />
condição de ser ou ter a capacidade para ser mãe. Assim, as roma<strong>na</strong>s<br />
eram as responsáveis pela reprodução do grupo e tinham seu destino<br />
fixado pela maternidade (ROUSELLE, 1990: 352). O matrimônio era<br />
das instituições mais sólidas da vida roma<strong>na</strong>. Casamento, para os<br />
360 É neste sentido que Finley (1991: 161) interpreta Vesta, uma deusa femini<strong>na</strong>,<br />
como protetora do lar.<br />
334
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
romanos, era entendido como uma comunhão monogâmica entre um<br />
homem e uma mulher, sendo que não havia matrimônio em Roma se<br />
não houvesse um consentimento entre ambas as partes. Os casamentos<br />
eram negociados pelos pais dos noivos, ou pelo futuro marido e por<br />
quem possuía o direito de pátrio poder (patria potestas) sob a mulher<br />
(DURANT, 1971: 55).<br />
Na Roma Antiga houve duas formas de casamento: cum manu<br />
e sine manu (com a mão e sem a mão). A manus identificava-se com o<br />
poder (patria potestas) que era exercido pelo pai ou ascendente homem de<br />
maior idade (paterfamilias) sobre a mulher. Em geral, as mulheres estavam<br />
sob o poder do pai ou, no caso da morte deste, de um parente ag<strong>na</strong>do<br />
mais próximo. O casamento cum manu caracterizava-se como a<br />
transmissão da patria potestas da mulher de sua família para a família de<br />
seu marido.<br />
No período republicano, o afluxo de riquezas provenientes das<br />
províncias e a permissão do casamento entre aristocratas, ainda mais<br />
enriquecidos, com membros das camadas populares, através da Lei<br />
Canuléia de 445 a.C., levou à criação de uma nova forma de casamento,<br />
o casamento sine manus. Assim, introduziram-se novos costumes,<br />
produzindo uma alteração nos padrões tradicio<strong>na</strong>is do casamento. Em<br />
casos de casamentos sine manu esse poder sobre a mulher não era<br />
transmitido para a família do marido e ela permanecia <strong>na</strong> dependência de<br />
sua própria família (CARROZZO, 1991: 65). Conforme Norbert<br />
Rouland (1997, p. 271), neste segundo tipo de casamento a mulher e seu<br />
dote eram ape<strong>na</strong>s ―emprestados‖ para o marido. Durante o Império o<br />
casamento cum manu tendeu a desaparecer, prevalecendo a forma de<br />
casamento sine manu.<br />
O casamento sine manu seria uma forma de favorecer a<br />
permanência do patrimônio das famílias ricas, uma vez que a mulher<br />
casada sob a forma cum manu transmitia inteiramente seus bens para a<br />
família do marido. De acordo com Jèrome Carcopino (1990: 99), já no<br />
século II d.C. o poder ilimitado do marido sobre a mulher, colocada sob<br />
sua autoridade <strong>na</strong> forma de casamento in manu, como se fosse uma de<br />
suas filhas (loco filiae), havia gradativamente se transformado.<br />
De acordo com Bradley (1991: 85), o casamento nunca<br />
deveria ser confundido com a felicidade do casal e o sentimento era algo<br />
335
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mais que incidental para o arranjo do casamento. Assim, ―o amor como<br />
sentimento não passava de uma superestrutura que os costumes não levavam em<br />
conta‖ (GRIMAL, 1991: 06). Por serem os casamentos da elite roma<strong>na</strong><br />
consolidados por alianças políticas, assim também eram os casos de<br />
divórcios. As alianças e as regras sobre o retorno do dote poderiam<br />
configurar-se tanto como um empecilho para o divórcio acontecer como<br />
uma forma de novas alianças serem estabelecidas, não sendo uma<br />
decisão individual do casal, mas de suas famílias (CROOK, 1967: 105).<br />
Dessa forma, os divórcios e os novos casamentos aconteciam de acordo<br />
com a necessidade de gerar filhos, que possivelmente não tivessem sido<br />
gerados em casamentos anteriores, e a necessidade do estabelecimento<br />
de novas alianças entre famílias.<br />
O segundo casamento acontecia <strong>na</strong> aristocracia roma<strong>na</strong><br />
porque o matrimônio estava intimamente ligado à vida dos homens<br />
públicos, que vinculavam as uniões matrimoniais a suas carreiras<br />
(BRADLEY, 1991: 79). Os historiadores modernos de Roma têm<br />
verificado que quanto mais se descobre sobre pessoas de notoriedade<br />
pública, mais casamentos são também encontrados, demonstrando que<br />
divórcios e novos casamentos eram muito comuns para homens<br />
públicos. As leis baixadas pelo Imperador Augusto (27 a.C.-14 d.C.)<br />
exigiam dos cidadãos, homens e mulheres, que se casassem novamente<br />
em caso de viuvez ou de divórcio, principalmente se o primeiro<br />
casamento não tivesse gerado descendentes.<br />
Sabemos que o segundo casamento feminino também foi<br />
comum no período Imperial. Carcopino (1990: 124) ressalta a existência<br />
de muitos divórcios no período dos Antoninos, no qual viveram Apuleio<br />
e Pudentila, e diz que o filósofo Sêneca, no I século, comentava<br />
admirado que nenhuma mulher podia se envergonhar por romper o<br />
casamento, elas divorciavam-se para casar e casavam-se para divorciar.<br />
A Pudentila da Apologia<br />
Segundo Hunink (1998: 275) há muitos estudos sobre<br />
Pudentila, talvez até mais do que os existentes sobre seu marido Apuleio.<br />
Discordamos dessa segunda afirmação de Hunink, pelo menos em<br />
relação a todo o material que conseguimos exami<strong>na</strong>r ou do qual<br />
apuramos a existência durante nossas pesquisas. Discordamos porque,<br />
336
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
primeiramente, só temos informações sobre Pudentila <strong>na</strong> Apologia, e em<br />
segundo lugar porque, por ser Apuleio um escritor que transitou por<br />
diferentes modalidades de textos, há diversos estudos sobre ele e sobre<br />
suas obras.<br />
A Apologia está repleta de dados biográficos de Pudentila que<br />
nos levam a algumas reflexões sobre a mulher roma<strong>na</strong>. Seu nome,<br />
Aemilia Pudentilla, ou Emília Pudentila, faz primeiramente menção ao<br />
nome da gens Emília e depois à família Pudente. De acordo com Finley<br />
(1991: 151), as mulheres roma<strong>na</strong>s não recebiam nome individual, ape<strong>na</strong>s<br />
o nome da gens e da família a que pertenciam com termi<strong>na</strong>ção femini<strong>na</strong>,<br />
acrescidos de termos como ―mais velha‖, ―mais nova‖, ―primeira‖, ―segunda‖.<br />
Neste sentido, podemos perceber como as mulheres roma<strong>na</strong>s eram<br />
classificadas como espécie de propriedade de sua família e, conforme<br />
Finley (1991: 151-152), ―é como se os romanos quisessem sugerir, não muito<br />
sutilmente, que as mulheres não eram ou não deveriam ser indivíduos genuínos, mas<br />
ape<strong>na</strong>s frações de uma família.‖<br />
Na Apologia (LXVIII, 2) temos a informação de que Pudentila<br />
permaneceu viúva por catorze anos até se casar com Apuleio. Apuleio<br />
não sugere em nenhuma passagem da Apologia se ela estava sob a potestas<br />
de alguém antes de se casarem. Consideramos as hipóteses de Pudentila<br />
estar sob a potestas de seu filho Ponciano, já que, como citamos <strong>na</strong><br />
Introdução, este consentiu com o amigo Apuleio sobre o casamento da<br />
mãe, ou ser uma mulher emancipada, o que era possível no período.<br />
Caso o casamento de Pudentila com seu primeiro marido<br />
tenha sido <strong>na</strong> forma cum manu, com a morte deste, ela passaria para a<br />
potestas de seu sogro, e com a morte do sogro para a de seu próprio filho<br />
ou parente ag<strong>na</strong>do mais próximo. Na hipótese do casamento ter<br />
ocorrido <strong>na</strong> forma sine manu, os mais frequentes no período, a viúva<br />
continuaria sob a potestas da sua própria família e, provavelmente, sob a<br />
tutela do filho Ponciano. No caso de Pudentila estar sob a tutela de seu<br />
filho, com a morte deste, deveria voltar para a potestas de alguém de sua<br />
própria família, podendo também ficar sem tutor por certo momento.<br />
Porém, Pudentila casou com Apuleio antes da morte do filho 361.<br />
361 Segundo informações da Apologia, Ponciano havia morrido pouco tempo<br />
antes do processo contra Apuleio, mas estava vivo quando Apuleio se casou<br />
337
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Sobre a possível situação jurídica de nossa matro<strong>na</strong>, segundo<br />
Arcadio Del Castillo (1988: 191), após as leis do Imperador Augusto (27<br />
a.C-14 d.C.) regulamentando o casamento, ficou estabelecido que para as<br />
mulheres viúvas casadas no regime cum manu, o marido poderia deixar<br />
em seu testamento que a esposa tinha direito a escolher seu novo tutor,<br />
havendo ainda um mecanismo criado para que a mulher pudesse trocar<br />
de tutor mediante pagamento. Neste sentido, as mulheres viúvas<br />
dispunham de uma verdadeira liberdade testamentária. Talvez fosse este<br />
o caso de Pudentila, já que Apuleio não cita ninguém opi<strong>na</strong>ndo no<br />
estabelecimento do testamento da viúva. Em uma passagem da Apologia<br />
Pudentila é mostrada como capaz de deserdar seu filho mais jovem,<br />
Pudente, por este estar sempre contra ela, ou seja, Apuleio a descreve<br />
como capaz de dispor de seu próprio testamento.<br />
[...] Depois da morte de seu filho Ponciano,<br />
Pudentila caiu doente e redigiu seu testamento,<br />
tive que convencê-la, com muita resistência de sua<br />
parte, para dissuadi-la de que deserdasse Pudente,<br />
movida por tantos ultrajes escandalosos e tantas<br />
injúrias. Pedi-lhe com insistências e súplicas que<br />
suprimisse a cláusula testamentária que continha<br />
tão grave decisão [...] (APULEIO, Apologia, XCIX,<br />
3-5). 362<br />
Neste sentido, mesmo se Pudentila tivesse se casado com seu<br />
primeiro marido, Sicinio, <strong>na</strong> forma cum manu, estando viúva, não havia<br />
grandes obstáculos para dispor de seus bens da forma como quisesse.<br />
Acreditamos ainda que talvez Pudentila pudesse ser uma mulher<br />
emancipada, já que através de leis estabelecidas pelo Imperador Cláudio<br />
(41-54 d.C.), se ela tivesse casado <strong>na</strong> forma sine manu e seu pai morresse,<br />
ela escapava do controle dos seus irmãos, tios e primos. Caso a mulher<br />
com sua mãe. A morte de Ponciano aconteceu no período entre os dois anos<br />
decorridos do casamento e a abertura do processo.<br />
362 Esta citação, assim como as demais citações da Apologia, foi traduzida por<br />
nós.<br />
338
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
viúva, casada em regime cum manu, estivesse sob a potestas dos ag<strong>na</strong>dos<br />
adquiridos com o casamento, ela escapava do controle dos irmãos, tios e<br />
primos de seu marido, podendo contrair um novo casamento à vontade,<br />
não necessitando nem da autorização de seu filho, perante o qual estaria<br />
<strong>na</strong> posição jurídica de irmã. Conforme Yan Thomas (1990, p. 184) se a<br />
mulher não tivesse filhos, também não precisaria da autorização dos<br />
irmãos de seu marido ou de seus outros parentes em linhagem<br />
masculi<strong>na</strong>.<br />
Assim, Pudentila podia ser uma mulher emancipada sendo<br />
casada sob qualquer uma das formas de casamento romano, não estando<br />
sob nenhuma tutela antes de se casar com Apuleio, permanecendo assim<br />
se seu casamento com o escritor também foi sine manu. Talvez Pudentila<br />
fosse emancipada antes de casar-se com Apuleio pelo fato da Apologia<br />
não trazer nenhuma referência a interferências de outrem no<br />
estabelecimento de um novo matrimônio. Caso ela estivesse sobre a<br />
tutela de alguém era de seu filho mais velho, que, porém, se mostrou,<br />
segundo Apuleio, a favor do matrimônio. Sobre o casamento de<br />
Pudentila com Apuleio, é bem provável que tenha sido <strong>na</strong> forma sine<br />
manu, a mais frequente do momento.<br />
Sabemos que Apuleio estava mencio<strong>na</strong>do no testamento de<br />
Pudentila:<br />
Verão que é o filho que é intitulado herdeiro e que<br />
a mim será deixado somente um legado<br />
insignificante para cumprir as aparências e para<br />
evitar que em caso de percalços, eu, como marido,<br />
não o deixe sem amparo (APULEIO, Apologia, C,<br />
2).<br />
Mesmo Apuleio defendendo que o fato dele estar mencio<strong>na</strong>do<br />
no testamento é ape<strong>na</strong>s para amparar o próprio filho de Pudentila, sua<br />
menção no testamento não deve nos causar estranhamento e pode até<br />
ser algo considerado normal para a época, já que, segundo Carcopino<br />
(1990: 107), as mulheres do século II d.C. tinham direito de dispor de<br />
suas heranças, podendo deixar parte para o marido, apesar de marido e<br />
mulher não serem herdeiros <strong>na</strong>turais um do outro (GRIMAL, 1991: 76).<br />
Acreditamos que mais interessante do que compreender<br />
dados biográficos e a situação jurídica de nossa matro<strong>na</strong>, talvez seja<br />
339
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
perceber como Apuleio se refere a ela em meio à sua defesa. Nas<br />
passagens abaixo, e em outras da Apologia, Apuleio mostra Pudentila<br />
como uma mulher zelosa, que age sempre pensando no bem dos filhos e<br />
que necessitava da opinião do filho mais velho, o que mostra que ela<br />
poderia estar sob sua tutela antes do casamento com nosso escritor ou,<br />
se fosse emancipada, tinha, como boa matro<strong>na</strong>, o cuidado de ouvir os<br />
conselhos de seu filho mais velho.<br />
Além disso, escreveu pessoalmente a Roma para<br />
seu filho Ponciano, colocou-o à parte do assunto e<br />
lhe expôs, ponto por ponto, todos os motivos de<br />
sua decisão. Explicou-lhe, pois, todo o detalhe<br />
antes mencio<strong>na</strong>do a propósito de sua saúde.<br />
Acrescentava que já não havia razão alguma para<br />
que permanecesse mais tempo em seu estado atual,<br />
posto que, mediante sua prolongada viuvez, com<br />
desprezo de sua própria saúde, havia conseguido<br />
para seus filhos a herança de seu avô e até a havia<br />
aumentado graças a uma administração hábil. Que,<br />
por vontade dos deuses, Ponciano já estava em<br />
idade de casar e seu irmão já podia tomar a toga<br />
viril, que, depois disso, deviam permitir a ela<br />
colocar fim a sua solidão e doenças [...]<br />
(APULEIO, Apologia, LXX, 5-6).<br />
Ao mesmo tempo, Ponciano havia persuadido a<br />
sua mãe para que me preferisse em relação aos<br />
demais pretendentes e colocava uma paixão<br />
incrível em realizar o mais rápido possível o<br />
casamento. A duras pe<strong>na</strong>s conseguimos dele um<br />
curto espaço de tempo, até o momento em que ele<br />
se casou e que seu irmão tomou a toga viril, assim,<br />
combi<strong>na</strong>mos de nos casar logo em seguida<br />
(APULEIO, Apologia, LXXIII, 8-9).<br />
Como bem nos indica Hunink (1988: 282), esta caracterização<br />
de Pudentila como uma prudente proprietária de terras deve ser<br />
interpretada por nós dentro das intenções de Apuleio em mostrá-la<br />
340
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
como mulher decidida e capaz, não estando sob a força de seus poderes<br />
mágicos, conforme seus acusadores alegam. Acrescentamos que a<br />
caracterização de Pudentila como boa mãe e boa gestora do lar a tor<strong>na</strong><br />
uma matro<strong>na</strong> ideal, o que ajudaria, supostamente, <strong>na</strong> confiança creditada<br />
a ela <strong>na</strong> escolha de Apuleio como marido. Na segunda passagem citada<br />
acima, ainda podemos perceber que a menção de Ponciano como<br />
persuadindo a mãe nos leva a refletir sobre a possível emancipação de<br />
Pudentila antes de seu casamento com Apuleio.<br />
Na primeira passagem da Apologia citada acima (LXX, 5-6)<br />
podemos perceber que Apuleio cita sua esposa como desejosa e capaz de<br />
decidir sobre um novo casamento. Tal caracterização talvez não passe de<br />
mais um dos recursos de Apuleio <strong>na</strong> defesa de seu casamento sem<br />
práticas mágicas, já que Aline Rousselle (1990: 357) nos indica que as<br />
roma<strong>na</strong>s não escolhiam seus primeiros casamentos nem os segundos, no<br />
caso das viúvas.<br />
Segundo a historiografia, a imagem da esposa ideal era aquela<br />
que confiava no marido e o encarregava de administrar os seus bens. Ao<br />
marido cabia salvaguardar a fortu<strong>na</strong> pessoal da esposa, protegê-la e<br />
estimá-la (GRIMAL, 1991: 266). Tais atributos da esposa e do marido<br />
ideal podem ser lidos em passagens da Apologia, <strong>na</strong>s quais Apuleio<br />
mostra que ele aconselhava Pudentila sobre a melhor forma de<br />
administrar seus bens e também a ajudava pessoalmente a administrar<br />
suas propriedades. Nesta mesma passagem ainda podemos perceber<br />
como Pudentila era uma mulher de riqueza considerável.<br />
Aconselhei minha esposa, cujos bens, segundo<br />
dizem meus adversários, eu havia gastado<br />
completamente, aconselhei, repito, e logrei<br />
convencê-la, ao fim, para que atendesse as<br />
reclamações de seus filhos sobre o dinheiro do que<br />
antes haviam falado e para que o devolvesse<br />
rapidamente, em forma de terras tachadas por<br />
baixo, segundo a avaliação de seus próprios filhos.<br />
Aconselhei-a que lhes desse, ademais, de seu<br />
próprio patrimônio, alguns campos férteis, uma<br />
casa grande, provida de toda abundância, e uma<br />
grande quantidade de trigo, cevada, azeite de oliva<br />
341
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
e demais produtos agrícolas, não menos de<br />
quatrocentos escravos e numerosos rebanhos de<br />
preço não desprezado (APULEIO Apologia, XCIII,<br />
3-4).<br />
Uma forte representação de mulher honesta e boa mãe nos é<br />
transmitida <strong>na</strong> Apologia. Como exemplo, temos o trecho da obra citado<br />
abaixo, referindo-se a Pudentila com a imagem típica da perfeita matro<strong>na</strong><br />
de sua época, segundo os olhares masculinos da elite. Conforme<br />
Rousselle (1990: 386), a mulher considerada sábia para os romanos era<br />
justamente aquela que gerenciava bem o orde<strong>na</strong>mento da casa e a<br />
educação dos filhos 363.<br />
[...] esta mulher prudente, esta mãe<br />
extraordi<strong>na</strong>riamente responsável [...] (Apologia,<br />
LXVIII, 5).<br />
Rousselle (1990: 383) também nos indica que as mulheres da<br />
camada favorecida eram educadas para contenção sexual. Novamente,<br />
Apuleio reforça sua imagem de Pudentila como uma matro<strong>na</strong> ideal, de<br />
forma que chega a parecer exagerada, mostrando-a em perfeita<br />
continência sexualmente após a viuvez.<br />
Esta mulher de castidade provada havia suportado<br />
os largos anos de sua viuvez imaculada, sem dar<br />
lugar a falatórios, privada do uso habitual do<br />
matrimônio, debilitada pela prolongada<br />
abstinência, tomada por graves transtornos, se via<br />
próxima da morte por causa das crises que a<br />
deixavam completamente prostrada [...] (Apologia,<br />
LXIX, 2).<br />
Assim, ao descrever Pudentila, mesmo em meio à situação<br />
dramática da acusação, Apuleio não deixa de transmitir os valores dos<br />
363 Cumpre destacarmos que as mulheres roma<strong>na</strong>s das famílias abastadas<br />
gerenciavam a casa, mas ―não tinham obrigação de cuidar da casa, como as atenienses,<br />
tarefa deixada aos escravos‖ (GONÇALVES, SILVA, CARVALHO, 1997: 14).<br />
342
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
homens romanos para as mulheres das camadas aristocráticas e<br />
representa sua mulher, acima de tudo, como uma mãe zelosa, uma<br />
matro<strong>na</strong> virtuosa, contida e extremamente preocupada com seus filhos.<br />
Considerações fi<strong>na</strong>is<br />
Como percebemos, vários aspectos sobre a situação femini<strong>na</strong><br />
no período do II século e características do casamento da aristocracia<br />
roma<strong>na</strong>, estiveram presentes <strong>na</strong>s descrições da Apologia. Devemos<br />
salientar que nesta obra não temos o ponto de vista de Pudentila;<br />
estamos diante, portanto, da visão masculi<strong>na</strong> de Apuleio. Sendo assim,<br />
dentro da perspectiva da História de Gênero buscamos a<strong>na</strong>lisar a<br />
representação femini<strong>na</strong> de Pudentila sob a ótica masculi<strong>na</strong> de Apuleio,<br />
contendo, obviamente, os valores masculinos romanos para a mulher e<br />
sua idealização como matro<strong>na</strong> e esposa. É neste sentido que vimos<br />
características descritas como próprias de Pudentila reconhecidas à luz<br />
da historiografia sobre mulheres e casamento em Roma, tais como os<br />
tipos de seus dois casamentos, sua situação jurídica, a disposição sobre<br />
sua própria herança, seu cuidado com os filhos, etc.<br />
Consideramos ainda que a Apologia trata-se de um discurso de<br />
defesa diante de uma acusação em que o casamento de Apuleio com<br />
Pudentila foi colocado em questão. Como uma defesa, portanto, a obra é<br />
repleta de recursos retóricos. Para compreender melhor a situação de<br />
Pudentila, que fizemos mais em termos de conjecturas do que de<br />
afirmações, foi preciso a<strong>na</strong>lisar esse discurso a partir de sua situação<br />
concreta de produção, já que as citações que referem a Pudentila e a<br />
construção das situações entorno do casamento e da representação dessa<br />
matro<strong>na</strong> obedeceu aos interesses da defesa. Assim, Apuleio mostrou<br />
várias facetas de Pudentila, conforme o objetivo que pretendeu, mas não<br />
fugiu à regra ao apresentá-la dentro das características da matro<strong>na</strong> ideal<br />
para a sociedade patriarcal de sua época. Neste sentido, acreditamos que<br />
Apuleio moldou um diálogo com os homens da camada social que fazia<br />
parte (a elite roma<strong>na</strong>) e que provavelmente foram o público leitor sua<br />
Apologia.<br />
343
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
APULÉE. Apologie. Texto estabelecido e traduzido por Paul Valette.<br />
Paris: Les Belles Lettres, 1960.<br />
APULEYO. Apologia. Tradução, introdução e notas de Santiago Segura<br />
Munguía. Madrid: Editorial Gredos, 1980.<br />
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Martins Fontes, 1991.<br />
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344
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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Apologia. Tradução, introdução e notas de Santiago Segura Munguía.<br />
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análise do discurso Apologia de Apuleio. Dissertação de Mestrado<br />
defendida <strong>na</strong> Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca em 2006.<br />
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<strong>Antiguidade</strong>, vol. 01. Tradução de Alberto Couto (et al.) Porto:<br />
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Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 19-223.<br />
345
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
SEXUALIDADE E COMPULSÃO PROFÉTICA NOS<br />
ORÁCULOS SIBILINOS <br />
346<br />
Prof. Dr. Vicente Dobroruka 364<br />
Este artigo trata de uma figura femini<strong>na</strong> notável - por várias<br />
razões -, mas que possivelmente não foi descrita por mulheres. Ao<br />
menos não o foi nos documentos de que dispomos; além do mais, é uma<br />
figura mitológica - como justificar sua presença num artigo que trata de<br />
mulheres no mundo antigo? E mais ainda, não me servindo de uma<br />
abordagem ―de gênero‖, como seria de esperar?<br />
Há várias razões para a escolha da Sibila como tema de minha<br />
contribuição a esta obra. A primeira, e mais óbvia, é sua presença quase<br />
cotidia<strong>na</strong> em minha vida (acadêmica, bem entendido) - lido com os<br />
Oráculos sibilinos (daqui para a frente ―OrSib‖) há muito tempo estão entre<br />
os textos oraculares mais fasci<strong>na</strong>ntes do mundo antigo, em que pese seu<br />
grego de meteco e sua métrica precária, que lembraria um Homero rude.<br />
Em segundo lugar, dentro da importância que atribuí à Sibila (ou<br />
―Sibilas‖, já que trata-se, como é comum no mundo pagão antigo, de<br />
Para as citações bíblicas utilizei a Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 1985),<br />
cotejada com os trechos em grego do software BibleWorks 7.0. Para os textos<br />
clássicos utilizei as edições da Loeb Classical Library. As demais fontes<br />
encontram-se listadas conforme aparecerem ao longo do capítulo. Os<br />
pseudepígrafos em geral foram citados a partir da edição de James H.<br />
Charlesworth (ed.). The Old Testament Pseudepigrapha. New York: Doubleday,<br />
1983-1985. Vol.1 (OTP 1). As citações dos Oráculos sibilinos seguiram a tradução<br />
de John J. Collins <strong>na</strong> obra de Charlesworth supracitada, mas cotejei as traduções<br />
com o texto grego estabelecido por Alfons Kurfess. Sibyllinische Weissagungen.<br />
Berlin: Heimeran, 1951. As interpretações dos trechos oraculares e as traduções<br />
dos mesmos baseiam-se em larga medida em trabalhos anteriores de minha<br />
autoria, notadamente de minha tese de doutoramento; optei por mudar ape<strong>na</strong>s<br />
alguns poucos tópicos, para que não tivesse de parafrasear a mim próprio.<br />
364 Professor de História Antiga da Universidade de Brasília, Doutor em<br />
Teologia, Professor Visitante em Clare Hall – Cambridge, e membro do Ancient<br />
Indian and Iran Trust – Cambridge.
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
uma divindade com variações e nuances regio<strong>na</strong>is 365 - sua presença<br />
colorida e viva no teto da Capela Sisti<strong>na</strong> basta para recordar a<br />
permanência de sua memória no Ocidente, embora no Oriente a Sibila<br />
também tenha tido uma longevidade textual comparável à sua lendária<br />
longevidade física), outro fator salta aos olhos do observador: entre os<br />
textos que podem ser agrupados com os demais apocalipses da<br />
Antigüidade (ainda que os OrSib tenham muitas características em<br />
comum com os apocalipses, desde temas até perso<strong>na</strong>gens), os OrSib são<br />
os que mais falam de sexo, casamento, compulsão profética como<br />
castigo - em suma, que tratam do fenômeno visionário em termos da<br />
sensibilidade femini<strong>na</strong>, aos olhos de um observador moderno.<br />
Faço a ressalva pelo fato de que não sabemos como essas<br />
características eram interpretadas <strong>na</strong> Antigüidade e no Medievo; para<br />
isso, teríamos de ter muito mais informações acerca das condições de<br />
leitura e consumo de livros no mundo antigo. E não dispomos, mas o<br />
simples fato dos OrSib terem sobrevivido tanto tempo (ainda que em<br />
organização precária de manuscritos 366), dão testemunho de uma coleção<br />
de textos estranha, pois:<br />
1- Servem-se da pseudepigrafia em nome de uma mulher;<br />
2- Falam abertamente de sexo e matrimônio;<br />
3- A ―pseudepigrafada‖ é uma figura pagã (<strong>na</strong>da de novo nisso - vide<br />
Hystaspes e Apolo, entre outros -, mas sua longevidade é<br />
surpreendente, como disse);<br />
Em suma, o uso do gênero feminino pode ter sido um pretexto,<br />
entre os autores antigos, para falar de coisas que não caberiam (por<br />
mentalidade ou impossibilidade biológica) <strong>na</strong> boca de outros heróis<br />
apocalípticos. Se não for exagerado, permito-me dizer que a Sibila<br />
365 Embora após Heráclides Pôntico - o primeiro a nomear uma ―sibila‖ como<br />
tal - já se possa afirmar que no séc.V a.C. o termo desig<strong>na</strong>sse uma figura<br />
profética ape<strong>na</strong>s. David S. Potter. Prophecy and History in the Crisis of the Roman<br />
Empire: a Historical Commentary on the Thirteenth Sibylline Oracle. Oxford: Clarendon<br />
Press, 1990. P.106.<br />
366 Nota com mss.<br />
347
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
constitui-se, com seu grego macarrônico, interpolações judaicas e/ou<br />
cristãs e a confusão <strong>na</strong>s coleções de manuscritos, <strong>na</strong> figura mais notável<br />
<strong>na</strong> apocalíptica, juntamente com o visionário pseudônimo de 4Ezra.<br />
Falar da Sibila pode ajudar pouco a entender a mulher no cotidiano do<br />
mundo antigo, mas com certeza nos facilita o entendimento do que lhe<br />
era permitido dizer <strong>na</strong> qualidade de figura mítica.<br />
A mulher surge noutros apocalipses, não ape<strong>na</strong>s como elemento<br />
secundário mas por vezes essencial à trama: os apocalipses, ao contrário<br />
dos OrSib, constituem-se como <strong>na</strong>rrativas em prosa (ou com pouca<br />
interpolação de versos), mas por vezes as mulheres são as figuras<br />
centrais. Assim, no Livro etiópico de Enoch (1En), temos uma relação<br />
estreita das mesmas com os anjos que conspiraram contra Deus a fim de<br />
manterem relações com elas, as ―filhas dos homens‖ (1En 6-11) 367.<br />
Noutro pseudepígrafo notável, o Testamento de Ruben (Test12Rub),<br />
retomamos o tema enóquico com as mulheres como culpadas: elas é que<br />
teriam seduzido os anjos (Test12Rub 5 e em Tertuliano também 368).<br />
Há de se fazer uma ressalva - a de não confundir a Sibila dos<br />
OrSib com a figura mítica ―origi<strong>na</strong>l‖, por assim dizer. Os OrSib estão<br />
entre os mais compósitos dos textos religiosos sincréticos da<br />
Antigüidade e a Sibila, num certo sentido, não faz mais do que<br />
emprestar-lhes seu nome e fama (a exemplo de outros como Zoroastro,<br />
Hystaspes ou Apolo). Algumas palavras quanto à origem do perso<strong>na</strong>gem<br />
são convenientes, no entanto.<br />
Como observa Burkert, o fenômeno da profecia extática é<br />
observado bem antes no Antigo Oriente próximo do que <strong>na</strong> Grécia 369;<br />
nesse sentido, convém observar que de um lado as sibilas <strong>na</strong>da trazem de<br />
367 No Livro dos Jubileus (Jb) temos um quadro semelhante - o autor de Jb<br />
conhece a tradição dos ―Vigilantes‖, os anjos que pecaram contra a criação de<br />
Deus; mas considera que inicialmente os ―Vigilantes‖ haviam descido para<br />
ensi<strong>na</strong>r aos homens o que é certo, e não por luxúria (Jb 4:17-19). Para a tradição<br />
enóquica e as questões referentes às mulheres, recomendo James C.<br />
VanderKam. Enoch. A Man for all Generations. Columbia: University of South<br />
Caroli<strong>na</strong> Press, 1995. Pp.112 ss.<br />
368 De cultu femi<strong>na</strong>rum 1.3.<br />
369 Walter Burkert. Greek Religion. Cambridge, MA: Harvard University Press,<br />
1985. Pp.116-118.<br />
348
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
novo (ao a<strong>na</strong>lisarmos seu número e procedência vê-se claramente que as<br />
orientais são mais numerosas), e que podem mesmo estar associadas,<br />
como os profetas pré-exílicos, ao baru ca<strong>na</strong>neu 370. Como outros cultos<br />
ou práticas extáticas, as sibilas alinham-se com o dionisismo em sua<br />
origem não-grega.<br />
As sibilas de que temos localização geográfica confirmada são a<br />
persa e hebraica (que por vezes se confundem 371), a líbia (lembrando que<br />
o termo compreendia, <strong>na</strong> Antigüidade, boa parte da África conhecida e<br />
pode estar relacio<strong>na</strong>da à visita de Alexandre ao oráculo no oásis de<br />
Siwah, no qual foi-lhe revelado ser ―filho de Zeus‖), a eritréia (da Ásia<br />
Menor - também chamada de ―helesponti<strong>na</strong>‖, ―frigia‖ ou ―troia<strong>na</strong>‖, pela<br />
proximidade dessas localizações), a de Delfos (que não deve ser<br />
confundida com a pítia de Apolo), a de Cumae, a de Samos, a Ciméria e<br />
a Tiburti<strong>na</strong>.<br />
Nas Metamorfoses, 14, Ovídio explica as origens da Sibila e de seu<br />
dom profético em termos de uma troca de gentilezas com Apolo malinterpretada<br />
pelo último. A Sibila teria oferecido sua virgindade ao deus<br />
em troca da duração de sua vida no mesmo número de anos equivalente<br />
aos grãos de areia que apanhara com uma mão; Apolo concedeu o favor,<br />
mas a Sibila não cumpriu sua parte no acordo. O deus <strong>na</strong>da fez, pois ela<br />
esquecera-se de pedir também o dom da juventude eter<strong>na</strong>; tornou-se<br />
cada vez mais velha, até que por fim restara ape<strong>na</strong>s sua voz. Tor<strong>na</strong>ra-se<br />
tão encarquilhada que passou, eventualmente, a caber num vasinho<br />
(ampulla).<br />
Portanto, desde as origens mitológicas da Sibila a vemos<br />
envolvida com favores sexuais incompreendidos, incompletos ou<br />
negados. Embora os OrSib sejam, <strong>na</strong> forma em que os conhecemos,<br />
370 O baru era, como o <strong>na</strong>bi (―profeta‖), um visionário extático que profetizava a<br />
serviço do rei local. A Bíblia hebraica preservou a memória de um baru, Balaão<br />
(Nm 22:4-5; 22; Dt 23:3-6).<br />
371 Pausânias, uma de nossas principais fontes para as sibilas anteriores aos<br />
OrSib, nos legou uma Descrição da Grécia <strong>na</strong> qual, no livro 10.12 refere-se á uma<br />
―Sibila palestinense‖, que nomeia ―Sabbe‖; a Sibila persa por vezes é confundida<br />
com a da babilônia, sendo esta última a de existência mais duvidosa. Cf. Aurelio<br />
Peretti. La sibila babilonese nella propaganda Ellenistica. Firenze: La Nuova Italia,<br />
1943.<br />
349
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
uma compilação com muitas camadas redacio<strong>na</strong>is, o uso da mesma<br />
figura, a Sibila, não pode ser acidental. A pseudepigrafia <strong>na</strong> Antigüidade<br />
nunca era aleatória: cada assunto a ser tratado tinha seu ―patrono‖ - i.e.<br />
não seria plausível um texto sapiencial atribuído a Adão, ou um de teor<br />
legalístico a Baruch.<br />
Embora não se possa definir os Oráculos sibilinos como apocalipses,<br />
em função de sua enorme complexidade temática e argumentativa, muito<br />
de seu conteúdo é comparável ao dos apocalipses tradicio<strong>na</strong>is e a sibila é<br />
especialmente loquaz quanto aos processos de preparação para visões, o<br />
que justifica um exame bem detalhado de certas passagens. Em termos<br />
de preparação visionária, as passagens mais importantes são OrSib 2:1;<br />
2:340; 3:1-7; 5:51 372; 11:315-324; 13:1-5 e o fragmento 8.<br />
Todas as passagens dos Oráculos sibilinos que nos interessam estão<br />
em primeira pessoa e em geral envolvem ordens dadas. Todas têm em<br />
comum o mesmo pretenso visionário, a Sibila - único perso<strong>na</strong>gem de<br />
origem pagã <strong>na</strong> literatura exami<strong>na</strong>da, ainda que a transposição dessa<br />
figura profética tenha sido feita por mãos cristãs ou judaicas. Feitas todas<br />
essas ressalvas, a primeira passagem a ser exami<strong>na</strong>da é OrSib 2:1-5 (os<br />
dois primeiros livros dos OrSib sendo notoriamente difíceis de datar, e<br />
podem ter sido escritos entre 30 a.C. e 250 d.C.):<br />
Quando de fato Deus parou minha canção mais<br />
perfeitamente sábia<br />
enquanto eu orava [pedindo] muitas coisas, Ele<br />
colocou em meu peito novamente<br />
a maravilhosa enunciação de palavras incríveis.<br />
Vou dizer o que se segue com toda a minha pessoa<br />
em êxtase<br />
Pois eu não sei o que dizer, mas Deus me anuncia<br />
cada coisa.<br />
A passagem reforça o caráter impositivo da inspiração da Sibila,<br />
bem como a <strong>na</strong>tureza prazerosa dessa experiência, renovada graças ao<br />
372 Possivelmente uma glosa; cf. James R. Davila. The Prove<strong>na</strong>nce of the<br />
Pseudepigrapha. Jewish, Christian or Other? Leiden / Boston: Brill, 2005. P.186.<br />
350
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
favor divino, quando o dom já havia sido perdido (a oração garante esse<br />
retorno). Isso contrasta com outras passagens sibili<strong>na</strong>s, como 2:340:<br />
Ai, pobre de mim. O que será de mim <strong>na</strong>quele dia<br />
em troca do que eu pequei, estúpida [que sou],<br />
ocupando-me de tudo mas não me importando<br />
com casamento nem com os motivos?<br />
Mas também no meu lar, que era o de um homem<br />
rico, eu me fechei para os necessitados; e cometi<br />
atos ilegais com pleno conhecimento [...]<br />
Aqui a referência não é à prazer mas antes à culpa e vergonha por<br />
parte da Sibila: não se trata do luto indutor de um ―estado alterado de<br />
consciência‖, ou ―ASC‖ - ―altered state of consciousness‖ - como em 4Ezra<br />
5:20, mas sim do remorso por uma vida mal vivida. A Sibila indicada,<br />
pecadora e promíscua, pode implicar uma camada redacio<strong>na</strong>l mais antiga,<br />
de origem pagã e que retoma o tema dos favores prometidos a Apolo<br />
num olhar judaico ou cristão.<br />
OsSib 3:1-7 (deve ser de origem egípcia - fala de um reino egípcio<br />
que sucede à Macedônia - e provavelmente foi composto entre 163 e 145<br />
a.C.) mostra um quadro de profundo cansaço:<br />
Bendito, celestial, que trovoas <strong>na</strong>s alturas, que tem<br />
os querubins como trono,<br />
eu te imploro um pouco de descanso<br />
para mim que tenho profetizado a verdade<br />
infalível, pois meu coração está cansado por<br />
dentro.<br />
Mas porque meu coração treme novamente? E<br />
porque um chicote, que me compele de dentro,<br />
chicoteia meu espírito com um oráculo para todos?<br />
Mas eu irei falar tudo de novo,<br />
tanto quanto Deus me orde<strong>na</strong>r falar aos homens.<br />
351
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Aqui temos um quadro diverso da passagem anterior; o ―coração‖ é<br />
a sede do pensamento <strong>na</strong> apocalíptica judaica 373 e sua menção sugere,<br />
nesse contexto, uma redação judaica para o trecho. Ainda em OrSib 5:52<br />
ss.:<br />
Três vezes desgraçada, estou cansada de encher<br />
meu coração com o anúncio de desastres<br />
E [do] canto inspirado dos oráculos, eu, que sou<br />
amiga íntima de Ísis [...]<br />
O cansaço da Sibila é seguido pela compulsão para profetizar e<br />
pela perturbação de espírito (um lugar-comum <strong>na</strong>s passagens dos OrSib<br />
descrevendo ASCs). Assim, temos em OrSib 11:315-324 (o livro 11 deve<br />
ter sido escrito no começo da era cristã no Egito, uma vez que a história<br />
huma<strong>na</strong> inicia-se e termi<strong>na</strong> lá):<br />
[...] alguém irá me chamar<br />
de mensageira com espírito aluci<strong>na</strong>do. Mas quando<br />
ele se aproximar dos livros, que não desanime<br />
deles. Ele saberá o que houve<br />
e o que vai haver<br />
a partir das nossas palavras. Então ninguém mais<br />
chamará a vidente divi<strong>na</strong>mente possuída de<br />
vatici<strong>na</strong>dora barata.<br />
Mas, príncipe 374 , pare agora meu adorável discurso,<br />
jogue fora o frenesi e a voz verdadeiramente<br />
inspirada<br />
e a terrível loucura, mas garanta uma pausa<br />
agradável.<br />
A passagem repete certo número de temas já conhecidos, o<br />
cansaço e a <strong>na</strong>tureza agradável da experiência visionária. Nela o<br />
proferimento profético é também atribuído à um agente externo, e<br />
portanto podemos falar de possessão nesse caso.<br />
373 David S. Russell. The Method and Message of Jewish Apocalyptic. Philadelphia: The<br />
Westminster Press, 1964. Pp.142 ss.<br />
374 Epíteto de Deus.<br />
352
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
OrSib 13:1 (deve ser datado em torno de 265 d.C. pela referência<br />
à Ode<strong>na</strong>th de Palmira) mostra a sibila relutante:<br />
O Deus imperecível me pede, novamente<br />
para cantar uma palavra grande e incrível. Ele que<br />
deu o poder a reis,<br />
e deles o tomou de volta, e lhes delimitou<br />
um tempo para ambas as coisas, para a vida e para<br />
a morte 375 .<br />
O divino Deus também me pressio<strong>na</strong> muito, por<br />
mais que eu relute, a proclamar essas coisas aos<br />
reis, acerca do domínio real.<br />
Por fim, o fragmento 8 é muito curto mas repleto de indicações<br />
sobre o ponto de vista do visionário relativamente ao processo de<br />
indução extática 376:<br />
Então a eritréia [a Sibila], para Deus: ‗Por quê, diz<br />
ela, ó mestre,<br />
me infliges a compulsão da profecia e<br />
não me poupas, erguida sobre a Terra,<br />
até o dia de Vossa abençoadíssima vinda?<br />
Em comum, todas as passagens sibili<strong>na</strong>s atribuem o dom da<br />
profecia a um poder externo à Sibila (Deus) e encaram esse dom como<br />
compulsão ou obrigação (compare com os sentimentos expressos por<br />
Jeremias quanto aos próprios dons proféticos, p.ex. Jr 4:19 ss.)..<br />
E, retor<strong>na</strong>ndo ao tema das origens da Sibila, Heráclito nos diz que<br />
―A Sibila, com voz enlouquecida, proferindo coisas das quais não se deve rir, sem<br />
adornos e sem perfumes, alcança mil anos com sua voz com a ajuda de [um] deus‖ -<br />
ou seja, já em seus primeiros relatos os temas do adorno e<br />
375 Lugar-comum <strong>na</strong> literatura sapiencial: cf. Ecl 3:2 ss.<br />
376 Um fragmento do qual sabemos muito pouco, localizado no Discurso aos<br />
santos de Constantino. Pela franqueza do trecho, é de se lamentar não termos<br />
mais passagens semelhantes. Talvez elas se relacionem ao contexto de 3:1-5 e<br />
296.<br />
353
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
embelezamento (atributos tipicamente femininos) estão presentes <strong>na</strong><br />
caracterização da Sibila 377.<br />
Feia (por imprudência ou desleixo), sem atrativos femininos,<br />
negligente quanto ao auxílio a terceiros (atributo tipicamente materno),<br />
depravada (ou insinua tê-lo sido) e negligente para com marido e família:<br />
eis aí um conjunto <strong>na</strong>da típico para uma mulher da Antigüidade, quer <strong>na</strong>s<br />
descrições mais antigas, quer nos OrSib. Que esse elenco de queixumes e<br />
confissões tenha sido posto <strong>na</strong> boca de perso<strong>na</strong>gem femini<strong>na</strong> por<br />
homens é algo surpreendente; que tal proeza em termos autorais (ou<br />
melhor, pseudepigráficos) tenha se mantido entre gregos, romanos,<br />
judeus e cristãos é ainda mais notável e é algo que, até o momento carece<br />
de investigação mais detalhada.<br />
As questões mais prementes do ponto de vista deste capítulo<br />
dizem respeito, portanto, ao fato da Sibila não esconder sentimentos e<br />
intimidades de seu leitor; se o faz, é mediante o recurso à pseudonímia<br />
mas este, como disse no início do texto, era comum à apocalíptica<br />
judaica. O que parece estar em jogo é a <strong>na</strong>tureza do que se pode colocar<br />
como palavras atribuídas à Sibila. Não faria sentido um visionário<br />
queixar-se do casamento, ou da falta do mesmo (embora nos textos<br />
proféticos as queixas em sentido estrito os exemplos sejam comuns; Jr<br />
20:7 é ótimo exemplo.).<br />
Mas aqui, em que pese a variedade de camadas redacio<strong>na</strong>is (e são<br />
inúmeras, não existindo consenso quanto à sua datação, proveniência ou<br />
localização geográfica 378), de substratos pagãos a textos puramente<br />
cristãos, a Sibila exibe comportamento semelhante - independência<br />
quanto ao mundo doméstico, questio<strong>na</strong>mento da maternidade (ainda que<br />
apresentado sob a forma de arrependimento - como no fr.8 dos OrSib),<br />
até mesmo a possibilidade de ter permanecido, contra a vontade própria<br />
(mas de acordo com os desígnios inspiracio<strong>na</strong>is de Deus).<br />
Nesse sentido, um estudo ―de gênero‖ da Sibila não faz sentido - ela<br />
se insere <strong>na</strong> tradição extática comum a homens e mulheres (embora suas<br />
queixas quanto ao casamento e lar sejam peculiares); por outro lado, a<br />
377 Heráclito, fr.12.<br />
378 Recomendo ao leitor não-familiarizado uma leitura da ―Introdução‖ aos OrSib<br />
por John J. Collins <strong>na</strong> edição de Charlesworth dos OTP, vol.1. Pp.317-326.<br />
354
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
Sibila pode perfeitamente ter sido um perso<strong>na</strong>gem feminino que tomou<br />
forma literária pelas mãos de homens.<br />
A pseudepigrafia, mais uma vez, nos coloca diante do obstáculo<br />
definitivo ao tratarmos de um texto e seu autor - afi<strong>na</strong>l, de quem estamos<br />
falando? Do autor ou autores ―reais‖ ou do perso<strong>na</strong>gem retratado? Aqui<br />
também a Sibila comporta-se, por assim dizer, de modo muito<br />
semelhante ao dos demais visionários da tradição apocalíptica do<br />
judaísmo do Segundo Templo; o fato dela ser uma mulher introduz<br />
algumas curiosidades no texto, que não são suficientes para que se possa<br />
tratá-la como, digamos, o visionário de 4Ezra - mas tampouco são<br />
irrelevantes para que se deva desconsiderar que, afi<strong>na</strong>l de contas, o texto<br />
dos OrSib, tal como o temos, compõe-se de oráculos sombrios<br />
anunciados em primeira pessoa - e essa pessoa, no texto, é uma mulher.<br />
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MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
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357
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
LA MUJER CIUDADANA EN LA ATENAS DE PLATÓN<br />
Prof. Dr. Víctor Hugo Méndez Aguirre 379<br />
Introducción<br />
¿Cómo reconstruir la situación de las mujeres en las diferentes<br />
culturas de la antigüedad? Existen diversas fuentes que pueden ser<br />
utilizadas para tal propósito, entre las que se encuentran las fuentes escritas.<br />
Algu<strong>na</strong>s mujeres escribieron desde épocas muy tempra<strong>na</strong>s. ¿Qué<br />
sería de la lírica arcaica sin la obra de Safo? Otras mujeres destacaron por su<br />
poder. Entre las farao<strong>na</strong>s egipcias sobresalen nombres como Hatshepsut,<br />
entre las griegas Artemisia, gober<strong>na</strong>nte de Halicar<strong>na</strong>so, protagoniza parte<br />
no desdeñable de las Historias de Heródoto, quien no oculta su admiración<br />
por la sagacidad política y las proezas marciales de esta singular mujer.<br />
Paralelamente a la monumentalidad de figuras femeni<strong>na</strong>s<br />
excepcio<strong>na</strong>les pertenecientes a casas reales, otras mujeres, no menos<br />
excepcio<strong>na</strong>les, vivieron en las primeras sociedades democráticas de<br />
Occidente, me refiero a las hele<strong>na</strong>s. Por u<strong>na</strong> extraña paradoja, algu<strong>na</strong>s<br />
mujeres de la antigüedad accedieron al poder en sociedades no<br />
democráticas del norte de África y Asia Menor; pero en las primeras<br />
democracias, donde imperaba progresivamente la igualdad y la libertad,<br />
particularmente a partir de las reformas de Solón y de Clístenes y del<br />
empoderamiento de los grupos ciudadanos censitarios inferiores, ningu<strong>na</strong><br />
mujer se adjudicó realmente el poder.<br />
De entre las mujeres de la antigüedad, las que vivieron en sociedades<br />
democráticas representan un campo de estudio privilegiado por u<strong>na</strong> gran<br />
variedad de razones. Las fuentes son abundantes, lo cual en sí mismo<br />
constituye un aliciente para la investigación. Los estudiosos de la<br />
democracia en general se enfrentan al reto de la exclusión de las mujeres en<br />
la democracia ateniense. Los estudios de género no pueden ignorar el<br />
capítulo heleno de la ―querella de las mujeres‖, en sentido similar, los<br />
379 Professor de Filosofia Antiga, da Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de<br />
México.<br />
358
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
historiadores de las ideas reconocen las elaboraciones clásicas de la gran<br />
cade<strong>na</strong> del ser y el lugar de las mujeres en ésta. La mujer ciudada<strong>na</strong> en la<br />
Ate<strong>na</strong>s democrática es el tema que motiva la presente pesquisa. El<br />
propósito del presente trabajo es reconstruir la situación de algu<strong>na</strong>s mujeres<br />
de la antigua Grecia a partir de los testimonios indirectos ofrecidos en los<br />
diálogos de Platón. Busco en estos textos tanto a las mujeres que los<br />
protagonizan como los discursos pronunciados acerca de ellas en general.<br />
1. Ciudadanos y ciudada<strong>na</strong>s en la democracia clásica<br />
Existe un debate ya varias veces cente<strong>na</strong>rio sobre la continuidad o<br />
discontinuidad entre las democracias clásicas y las contemporáneas. Sea<br />
como fuere, el ciudadano de la democracia origi<strong>na</strong>ria gravita en torno de las<br />
asambleas y los tribu<strong>na</strong>les. ¿Por qué? Las principales razones son históricas.<br />
Solón suele ser considerado el padre de la democracia ateniense, cuando<br />
menos Aristóteles lo plantea así, y añade:<br />
Parece que las medidas del régimen de Solón más<br />
favorables al pueblo fueron estas tres: la primera y<br />
más importante, el que no se hicieran prestamos bajo<br />
la garantía de las perso<strong>na</strong>s. Luego, que le fuera<br />
posible a quien lo quisiera buscar reparación de los<br />
agravios. Y la tercera –con la que aseguran que<br />
adquirió más fuerza la gente común–, el derecho de<br />
apelación al tribu<strong>na</strong>l. Y es que el pueblo, al tener<br />
control sobre el voto, llega a tener control sobre el<br />
poder político (ARISTÓTELES. La constitución de<br />
los atenienses, 9).<br />
El Estagirita afirma que ―[…] el ciudadano (polites) en sentido absoluto<br />
por ningún otro rasgo puede definirse mejor que por su participación en la judicatura y en<br />
el poder‖ (ARISTÓTELES. Política, III i 1275 a 22-24). El tándem entre lo<br />
jurídico y lo político en la democracia de Ate<strong>na</strong>s se reforzó con uno de los<br />
procedimientos para la elección de algunos funcio<strong>na</strong>rios y de jueces en<br />
particular: el sorteo. El sorteo de algunos cargos públicos para su<br />
desempeño de manera temporal garantizaba que la inmensa mayoría de los<br />
ciudadanos participaran en la administración de los asuntos públicos –<br />
incluso el apráxico Sócrates se vio obligado a servir a su polis sin haberlo<br />
359
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
buscado deliberadamente; pero también garantizaba la alter<strong>na</strong>ncia de los<br />
ciudadanos en algu<strong>na</strong>s posiciones de influencia y poder.<br />
Para ser ciudadano en la Ate<strong>na</strong>s de Pericles se requiere que ambos<br />
progenitores lo sean. La constitución de los atenienses de Aristóteles consig<strong>na</strong><br />
explícitamente que: ―[…] participan en la administración de la ciudad los que son<br />
hijos de padre y madre ciudadanos‖ (ARISTÓTELES. La constitución de los<br />
atenienses, 42). En Ate<strong>na</strong>s clásica pues, existen ciudadanos y ciudada<strong>na</strong>s.<br />
Politis y aste son los femeninos de polites y astos. Sin embargo, que los<br />
términos griegos para ―ciudadano‖ tengan sus respectivos femeninos no<br />
implica necesariamente que la ciudadanía haya sido exactamente igual entre<br />
hombres que entre mujeres.<br />
[...] Aste estaría en relación con el derecho de familia;<br />
se contemplaría a la mujer en tanto que esposa, hija<br />
o madre de atenienses, mientras que politis<br />
necesariamente debería remitirse de algu<strong>na</strong> manera a<br />
la ciudad [...] podría, siguiendo el razo<strong>na</strong>miento de<br />
Mossé, significar que [Jantipa, que es denomi<strong>na</strong>da<br />
politis pero no aste] no ocuparía el rango de esposa<br />
con toda su significación dentro del oikos y de la<br />
familia (CALERO, 2002: 15-16).<br />
El lugar de las mujeres es el espacio privado, el hogar u oikos. Las<br />
funciones principales de las ciudada<strong>na</strong>s, hijas, esposas y madres de los<br />
ciudadanos, gravitan en torno de la procreación de hijos legítimos y la<br />
administración del hogar. Menón, en el diálogo epónimo, afirma:<br />
[...] es fácil decir que ésta es la virtud del varón: ser<br />
capaz de manejar los asuntos de la ciudad y al<br />
realizarlos hacer bien a los amigos y mal a los<br />
enemigos, y cuidarse de no sufrir esto él mismo. Si<br />
quieres la virtud de la mujer, no es difícil referir que<br />
ésta debe llevar bien su casa, conservar lo que está en<br />
el interior y ser obediente al marido (PLATÓN.<br />
Menón, 71 e).<br />
Fuentes como ésta permiten afirmar ―[…] que la fi<strong>na</strong>lidad del<br />
matrimonio griego era la de tener hijos para mantener el li<strong>na</strong>je y en consecuencia asegurar<br />
360
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
la pervivencia de la polis‖ (FONT, 2011: 218).<br />
―Manejar los asuntos de la ciudad y al realizarlos hacer bien a los amigos y<br />
mal a los enemigos, y cuidarse de no sufrir esto él mismo‖, como afirma<br />
explícitamente Menón, y alter<strong>na</strong>r en el poder corresponde a los varones.<br />
Las ciudada<strong>na</strong>s no se alter<strong>na</strong>n en el poder con los ciudadanos. El<br />
patriarcado ateniense establece que la mujer debe ―ser obediente al marido‖.<br />
Esta doble ciudadanía, política y jurídica para los hombres y familiar y<br />
hogareña para las mujeres, exhibe u<strong>na</strong> asimetría fundamental entre<br />
ciudadano y ciudada<strong>na</strong>. Por lo tanto, a pesar de que la lengua griega posea<br />
el femenino de ciudadano, ciudada<strong>na</strong> en tanto que politis y aste, la ciudadanía<br />
femeni<strong>na</strong> en la Ate<strong>na</strong>s clásica estaba más bien restringida. Y esta geografía<br />
política de género que asig<strong>na</strong> lugares y actividades diferentes a los<br />
ciudadanos y a las ciudada<strong>na</strong>s es asumida por los perso<strong>na</strong>jes que<br />
protagonizan los diálogos de Platón.<br />
2. Mujeres y hombres en los diálogos de Platón<br />
Los diálogos platónicos ofrecen diversos retratos de la Ate<strong>na</strong>s<br />
clásica. Ellos pueden ser empleados como u<strong>na</strong> fuente para reconstruir la<br />
vida cotidia<strong>na</strong> y las ideas corrientes entre los contemporáneos de Sócrates.<br />
La mayoría de los diálogos retratan la vida cotidia<strong>na</strong> de un ciudadano<br />
ateniense muy particular: Sócrates.<br />
Sócrates desarrolla u<strong>na</strong> intensa vida filosófica y social. De joven<br />
discute con filósofos mayores (Parménides). Asiste a congresos de sofistas en<br />
la casa del rico Calias (Protágoras). Celebra los triunfos de sus amigos en<br />
banquetes organizados con tal fin (Banquete). Pasea a las afueras de la ciudad<br />
con un amigo para discutir si un joven debe favorecer a quien lo ama o a<br />
quien no lo ama (Fedro). Va a fiestas religiosas al Pireo y pasa toda la noche<br />
en discusiones sobre política con sus amigos. Combate en las batallas<br />
libradas por su polis, y cuando retor<strong>na</strong>, regresa a sus actividades<br />
tradicio<strong>na</strong>les. Se ve obligado a presentarse ante los tribu<strong>na</strong>les donde es<br />
conde<strong>na</strong>do por impiedad y pervertir a los jóvenes (Apología). Es recluido en<br />
prisión (Critón). Fi<strong>na</strong>lmente es ejecutado (Fedón).<br />
Se ha dicho que la polis ateniense es un territorio masculino (JUST,<br />
1991: 39) en el que las mujeres tenían restringido el acceso a algu<strong>na</strong>s<br />
actividades relevantes (MOSSÉ, 1991: 155) como la política y la judicatura.<br />
Y Sócrates posee membrecía en este exclusivo ―club‖. En lo que respecta a<br />
361
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
las mujeres, los textos platónicos son evidencias fundamentales para<br />
determi<strong>na</strong>r cómo vivían las antiguas griegas y qué se pensaba al respecto.<br />
Es curioso notar que ningún diálogo platónico se desarrolla en la<br />
casa de Sócrates. Él nunca discute sobre filosofía con u<strong>na</strong> mujer de su<br />
familia aunque esté más que dispuesto a hacerlo con cualquier desconocido<br />
que le presenten. Prácticamente no hay mujeres en los diálogos. Sólo tres<br />
mujeres pronuncian algu<strong>na</strong>s palabras en ellos: Jantipa, Aspasia y Diótima.<br />
La primera de esta tercia femenil es ciudada<strong>na</strong> ateniense de pleno derecho,<br />
las otras proceden de poleis diferentes, la segunda de Mileto y la última de<br />
Mantinea. A pesar de la importancia filosófica y dramática de Diótima en la<br />
obra platónica no se cuenta con información de que residiera durante un<br />
tiempo significativo en Ate<strong>na</strong>s, a diferencia de las otras dos.<br />
La vida de Jantipa puede ser considerada u<strong>na</strong> existencia típica de<br />
u<strong>na</strong> ciudada<strong>na</strong> ateniense común y corriente, tenemos testimonios de ella<br />
merced a la conspicua actuación de su marido, Sócrates. Aspasia, a pesar de<br />
ser origi<strong>na</strong>ria de Mileto, se afincó en Ate<strong>na</strong>s, perteneció, junto con otros<br />
extranjeros entre los que destaca Protágoras de Abdera, al círculo<br />
intelectual ilustrado ateniense, enseñó retórica en Ate<strong>na</strong>s, fue mujer de<br />
Pericles, quien la amó tier<strong>na</strong> y apasio<strong>na</strong>damente, tanto como a la<br />
democracia, y procreó con él. Por tales razones este trabajo se abocará<br />
exclusivamente a Jantipa y a Aspasia, no a Diótima.<br />
3. Jantipa, ciudada<strong>na</strong> ateniense<br />
Jantipa es u<strong>na</strong> ciudada<strong>na</strong> ateniense, u<strong>na</strong> politis (CALERO, 2003: 15-<br />
16). La mujer de Sócrates no podía ser ignorada por los socráticos -aquí no<br />
entraré al debate sobre si era esposa o concubi<strong>na</strong> de Sócrates. Las fuentes<br />
que mencio<strong>na</strong>n a la esposa del padre de la ética, según el exhaustivo estudio<br />
de Inés Calero, incluyen nombres de la talla de Aristipo, Ateneo, Cicerón,<br />
Cirilo, Diógenes Laercio, Eliano, Epicteto, Estobeo, Filopon, Galeno,<br />
Jenofonte, Jerónimo, Libanio, Luciano, Marco Aurelio, Olimpiodoro,<br />
Platón, Plutarco, Temistio, Sinesio, Suda, Teodoreto, Tertuliano, Tzetzes y<br />
Valerio Máximo.<br />
Las únicas palabras pronunciadas por Jantipa en todos los diálogos<br />
platónicos aparecen en el Fedón. El perso<strong>na</strong>je epónimo le relata a<br />
Equécrates que cuando él y los demás amigos de Sócrates llegaron a<br />
visitarlo el día que bebió la cicuta:<br />
362
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
[...] nos encontramos a Sócrates que acababa de ser<br />
desencade<strong>na</strong>do, y a Jantipa -ya la conoces- con su<br />
hijo en brazos y sentada a su lado. Al vernos, Jantipa<br />
rompió a gritar y a decir cosas tales como las que<br />
acostumbran las mujeres. ‗!Ay, Sócrates!, ésta es la<br />
última vez que te dirigirán la palabra los amigos y tú<br />
se la dirigirás a ellos(PLATÓN. Fedón, 60 a-b).<br />
La esposa del principal protagonista de los diálogos platónicos no<br />
dice <strong>na</strong>da más, su lugar es el hogar, aje<strong>na</strong> a las actividades en las que sí<br />
participa su esposo.<br />
4. La exclusión de las mujeres de la judicatura<br />
El que quizá sea el primer diálogo platónico, la Apología, <strong>na</strong>rra el<br />
proceso en el que Sócrates fue conde<strong>na</strong>do a beber la cicuta. A lo largo de<br />
éste Sócrates interroga a Meleto para demostrar la falta de base de las<br />
acusaciones que pesan sobre él, esto es, corromper a los jóvenes<br />
enseñándoles a no creer en los dioses patrios sino en otros demonios.<br />
Jantipa nunca es llamada para que abogue en favor de su marido. Quizá<br />
Sócrates mismo no hubiera aceptado tal testimonio. Pero lo importante es<br />
que, aunque Sócrates hubiera podido llevar a algunos de sus parientes para<br />
que los jueces se compadecieran de él y de su familia, la ausencia de<br />
Jantipa no es más que un ejemplo de la exclusión de las mujeres en la vida<br />
judicial ateniense.<br />
La presencia de las mujeres en las prisiones donde estaban recluidos<br />
sus parientes no era infrecuente. Sin embargo, las mujeres consideradas<br />
decentes sólo en circunstancias muy particulares podían comparecer ante<br />
los tribu<strong>na</strong>les. El testimonio de las mujeres era admitido bajo circunstancias<br />
especiales. Demóstenes nos hace pensar que era aceptada la declaración de<br />
u<strong>na</strong> madre que juraba por la vida de sus hijos. Su discurso Contra Afobo, en<br />
defensa de Fano ofrece un par de ejemplos protagonizados por su propia<br />
progenitora (DEMÓSTENES. XXIX, 26 y 33).<br />
Los discursos privados de Demóstenes, por ejemplo, citan a 509<br />
hombres contra veintisiete mujeres. Diez de éstas son de algu<strong>na</strong> clase de<br />
presuntas prostitutas y cuatro esclavas. Obviamente el orador omite los<br />
nombres de su madre y herma<strong>na</strong> en los cinco discursos en los que las<br />
mencio<strong>na</strong> (GOULD, 1980: 45). Bremmer observa que esta curiosa manera<br />
363
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
de mostrar respeto exasperó a historiadores tan tempranos como Plutarco,<br />
quien sabía que la nodriza de Alcibíades se llamó Cleobule, pero fue<br />
incapaz de enterarse de los nombres de las madres de Demóstenes, Nicias,<br />
Lamachus, Trasíbulo o Terames (BREMMER, 1981, p. 426). David<br />
Schaps hace hincapié en que entre los atenienses parece haber existido u<strong>na</strong><br />
especie de regla de urbanidad de acuerdo con la cual, al menos en algu<strong>na</strong>s<br />
esferas judiciales, existía u<strong>na</strong> interdicción de mencio<strong>na</strong>r incluso el nombre<br />
de mujeres consideradas decentes (SCHAPS, 1977: 323-330); pudiéndose<br />
pronunciar tan sólo el de las de dudosa reputación, el de aquellas<br />
pertenecientes a la familia del oponente a quien precisamente se intenta<br />
dañar, o al de las ya difuntas (VIAL, 1985: 48).<br />
Jurídicamente, la mujer en Ate<strong>na</strong>s nunca dejaba de ser u<strong>na</strong> ―perpetua<br />
menor de edad‖ (MAS y JIMÉNEZ, 1994: 85). Estaba impedida de ocupar la<br />
dignidad de jueza; pero su ―minoría de edad‖ no la tor<strong>na</strong>ba inimputable. Y<br />
Aspasia de Mileto, protagonista de uno de los diálogos de Platón, sufrió,<br />
como Protágoras y Sócrates, un proceso por impiedad. ¿Acaso fue<br />
procesada por desafiar el orden patriarcal al no renunciar a la alta política?<br />
5. La exclusión de las mujeres de la política<br />
Aspasia, a pesar de ser origi<strong>na</strong>ria de Mileto, quizá sea la mujer más relevante<br />
en la vida intelectual y política de la Ate<strong>na</strong>s de Pericles, y de Pericles mismo,<br />
de quien fuera o bien esposa o bien ―refi<strong>na</strong>da amante‖ (DE ROMILLY,<br />
2010: 39).<br />
El Sócrates platónico afirma haber aprendido retórica de ella<br />
(PLATÓN, Menéxeno, 249 d). Y agrega que el epitafio pronunciado por<br />
Pericles en honor de los caídos en la guerra del Peloponeso fue redactado<br />
por esta mujer. Si bien es evidente el tono irónico de este diálogo, algunos<br />
autores toman muy en serio la información aportada por Platón‖<br />
(SOLANA, 1994, p. XLI). Plutarco, entre ellos, consig<strong>na</strong> que:<br />
[…] algunos son de opinión que Pericles se inclinó a<br />
Aspasia por ser mujer sabia y de gran disposición<br />
para el gobierno, pues el mismo Sócrates, con<br />
sujetos bien conocidos, frecuentó su casa, y varios de<br />
los que la trataron llevaban sus mujeres a que la<br />
oyeren, sin embargo de que su modo de ga<strong>na</strong>rse la<br />
vida no era brillante ni decente, porque vivía de<br />
364
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
mantener esclavas para mal tráfico (PLUTARCO,<br />
Pericles, XXIV).<br />
Este autor añade que Pericles inclinó a los atenienses en favor de<br />
los milesios contra los samios debido a la influencia de Aspasia. Plutarco<br />
afirma que las mujeres que querían actuar en política solían hacerlo a través<br />
de sus relaciones con hombres influyentes, y relacio<strong>na</strong> la forma de proceder<br />
de Aspasia con la de Targelia:<br />
[...] siendo de buen parecer y reuniendo la gracia<br />
con la sagacidad, se puso al lado de hombres<br />
muy principales entre los Helenos, y a todos los<br />
que la obsequiaron los atrajo al partido del rey,<br />
y por medio de ellos, como eran poderosos y de<br />
autoridad, sembró las primeras semillas de<br />
medismo en las ciudades (PLUTARCO,<br />
Pericles, XXIV).<br />
Algu<strong>na</strong>s ideas de Plutarco sobre la actuación de las mujeres en la<br />
política siguen siendo suscritas por helenistas contemporáneos. Sola<strong>na</strong><br />
afirma<br />
[...] que Aspasia fue maestra de oratoria, y en<br />
particular de Pericles, lo confirman muchas fuentes.<br />
Ahora bien, es indudable que la actividad política del<br />
estratego ateniense, años antes de unirse con<br />
Aspasia, le exigiría u<strong>na</strong> capacidad retórica adecuada,<br />
lo cual no es incompatible ni con que, a partir del<br />
440 y tras su unión con la milesia perfeccio<strong>na</strong>ra en<br />
sentido técnico dicha capacidad ni con el hecho de<br />
que fuera ella quien escribiera los discursos de<br />
aparato de su esposo (SOLANA, 1994: XXIX).<br />
Sucintamente, en la Ate<strong>na</strong>s democrática ―[…] la mujer está en el grupo<br />
de los que siempre son mandados porque carece de voz política […]‖ (MAS y<br />
JIMÉNEZ, 1994: 84). Aspasia de Mileto logró incidir en la alta política<br />
ateniense sólo indirectamente, a través de Pericles; pero esta milesia, mujer<br />
y extranjera en Ate<strong>na</strong>s, a pesar de su gran influencia intelectual y afectiva<br />
365
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
sobre el gober<strong>na</strong>nte democrático por antonomasia, estaba excluida del<br />
ejercicio directo de la política al igual que el total de las mujeres residentes<br />
en la Ate<strong>na</strong>s del siglo V. a. C.<br />
A manera de conclusión: ser ciudada<strong>na</strong> en los diálogos de Platón<br />
Existían diferentes grupos de mujeres en la Ate<strong>na</strong>s clásica. Los<br />
diálogos de Platón ofrecen imágenes de algu<strong>na</strong>s de ellas. Quizá la<br />
información proporcio<strong>na</strong>da por el autor de los diálogos sobre las mujeres<br />
en la antigüedad no sea exhaustiva ni pretenda serlo. Sin embargo, creo que<br />
su retrato margi<strong>na</strong>l de u<strong>na</strong> ciudada<strong>na</strong> ateniense sí puede ser considerado<br />
valioso en tanto que complementa otras fuentes.<br />
Jantipa y Aspasia son mujeres históricas que vivieron en la Ate<strong>na</strong>s de<br />
Pericles y que ilustran cómo vivían diferentes mujeres en la antigüedad.<br />
Jantipa, hija, esposa y madre de ciudadanos, es u<strong>na</strong> ciudada<strong>na</strong><br />
ateniense, u<strong>na</strong> más entre muchas mujeres anónimas dedicadas a la<br />
procreación y al cuidado del hogar, labores imprescindibles para la<br />
existencia de las poleis.<br />
Aspasia de Mileto conjugó su vida conyugal y maternidad con el<br />
ejercicio de la retórica y, a través de ésta, con actividad política del más alto<br />
nivel. Que esta incursión en u<strong>na</strong> actividad reservada a los ciudadanos<br />
atenienses fue considerada transgresora en u<strong>na</strong> sociedad patriarcal puede<br />
deducirse del proceso de impiedad incoado en contra de esta figura tan<br />
destacada. Sea como fuere, estimo que puede concluirse legítimamente que<br />
la sociedad patriarcal imperante en la Ate<strong>na</strong>s clásica necesitaba ciudada<strong>na</strong>s<br />
para la transmisión generacio<strong>na</strong>l de la ciudadanía. Pero que para ser<br />
reconocido como ciudadano fuera necesario descender de padre y madre<br />
ciudadanos, no implicaba necesariamente la igualdad jurídica y política entre<br />
ciudadanos y ciudada<strong>na</strong>s.<br />
Sucintamente, la ciudadanía de las mujeres en la Ate<strong>na</strong>s de Pericles<br />
tal y como puede ser reconstruida, entre otras fuentes posibles, a partir de<br />
los diálogos de Platón, es u<strong>na</strong> ciudadanía restringida que gravita en torno de<br />
la procreación de ciudadanos legítimos, el cuidado de la casa y la obediencia<br />
al marido.<br />
366
MULHERES NA ANTIGUIDADE - NEA/UERJ<br />
DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL<br />
ARISTÓTELES. Constitución de los atenienses. Madrid: Abada, 2005.<br />
______. Política. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de México,<br />
1963.<br />
DEMÓSTENES. Discursos completos. Madrid: Aguilar, 1969.<br />
PLATÓN. Banquete, Ion. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de<br />
México, 1944.<br />
______. Eutifrón, Apología y Critón. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l<br />
Autónoma de México, 1988.<br />
______. Fedón. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de México,<br />
1980.<br />
______. Menéxeno. In: PLATÓN. Diálogos II. Madrid: Gredos, 1992.<br />
______. Menón. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de México,<br />
1975.<br />
PLUTARCO. Vidas paralelas. México: Universidad Nacio<strong>na</strong>l Autónoma de<br />
México, 1923.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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Orto, 2003.<br />
DE ROMILLY, Jacqueline. Los grandes sofistas en la Ate<strong>na</strong>s de Pericles. Madrid:<br />
Gredos, 2010.<br />
FONT MAREÑA, Inma, ―Filósofas pitagóricas, mujeres pensadoras pero<br />
no feministas‖, In: SIERRA GONZÁLEZ, Ángela. Actas del V Congreso<br />
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Lagu<strong>na</strong>: Universidad de La Lagu<strong>na</strong>, 2011, p. 215-224.<br />
GOULD, John, "Law, Custom and Myth: Aspects of the Social Position of<br />
Women in Classical Athens", In: The Jour<strong>na</strong>l of Hellenic Studies. London, v. C,<br />
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MOSSÉ, Claude. La mujer en la Grecia clásica. Madrid: Nerea, 1991.<br />
SOLANA DUESO, José. La perso<strong>na</strong>lidad intelectual de Aspasia de Mileto.<br />
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SCHAPS, David. The Women least Mentioned: Etiquette and Women's<br />
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VIAL, C. La femme athénienne vue par les orateurs. In: AA. VV. La femme<br />
dans le monde méditerranéen. I Antiquité. Lyon: Maison de l'Orient, 1985, p. 47-<br />
60.<br />
368
A<strong>na</strong>lisar o Mar Mediterrâneo não significa ape<strong>na</strong>s estudar os seus<br />
aspectos geográficos ou a catalogação de monumentos, santuários e<br />
artefactos arqueológicos escavados, mas, a partir da cultura<br />
material, cotejar a produção de sentido para os indivíduos que por lá<br />
transitaram.<br />
Dentre esses indivíduos se situavam mulheres que desempenharam<br />
papéis e funções sociais específicas <strong>na</strong>s sociedades mediterrâneas da<br />
<strong>Antiguidade</strong> como sacerdotisas, deusas, rainhas, guerreiras,<br />
feiticeiras ou profetisas. O diálogo com os demais saberes nos<br />
permite desvendar as <strong>Mulheres</strong> <strong>na</strong> <strong>Antiguidade</strong>.