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A Su m é r i A e o S teStemunhoS<br />

extrAbíblicoS d e GêneSiS 1-11<br />

ro d r i G o P. Si l v A, th.d.<br />

Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp-EC<br />

re S u m o : Durante séculos, a historicidade<br />

dos capítulos 1-11 de Gênesis<br />

permaneceu sem questionamentos.<br />

No entanto, a partir do século 19, novas<br />

correntes teológicas passaram a<br />

oferecer outra interpretação para esse<br />

texto, compreendendo-o como mera<br />

fábula criada pelos judeus ou plagiada<br />

de mitos mesopotâmicos. Tal leitura,<br />

porém, coloca em dúvida todas as<br />

demais doutrinas bíblicas. Portanto, o<br />

presente artigo compara narrativas de<br />

civilizações primitivas, especialmente<br />

de Eridu (o mais antigo centro urbano<br />

da história), com Gênesis 1-11, apresentando<br />

semelhanças que evidenciam<br />

a fidedignidade do texto sagrado.<br />

O autor sustenta que o conteúdo<br />

de Gênesis não é um plágio daqueles<br />

antigos escritos, sendo que eles é que<br />

trazem deturpações da história real.<br />

Ab S t r A c t: For centuries, the historicity<br />

of chapters 1 - 11 of Genesis remained<br />

unchallenged. However, from<br />

the 19 th century on, new theological<br />

trends started to offer another interpretation<br />

for this text, considering it a<br />

mere tale created by the Jews or plagiarism<br />

of Mesopotamic myths. Such<br />

reading, however, casts doubt on all<br />

other biblical doctrines. Therefore,<br />

this article compares narratives of primitive<br />

civilizations, especially that of<br />

Eridu (the most ancient urban center<br />

in History), with Genesis 1 – 11, presenting<br />

similarities that give evidence<br />

to the trustworthiness of the sacred<br />

text. The author holds that the content<br />

of Genesis is not plagiarism of those<br />

ancient writings, arguing that such<br />

extra biblical writings are twisted versions<br />

of the true biblical account, and<br />

not the opposite.<br />

in t r o d u ç ã o<br />

A realidade histórica dos capítulos<br />

1-11 de Gênesis é de fundamental<br />

importância para a Teologia Cristã.<br />

Sem ela todas as doutrinas presentes<br />

na Bíblia caem por terra. Se a história<br />

do Éden não aconteceu de fato, então<br />

a humanidade não caiu em pecado e<br />

não teria do que ser redimida. Logo,<br />

todo o sistema sacrifical dos hebreus<br />

e a morte expiatória de Cristo na cruz<br />

do Calvário perderiam completamente<br />

seu significado.<br />

Em virtude disso, desde os tempos<br />

bíblicos até por volta do século<br />

18, era notório o entendimento historicista<br />

dessa porção das Escrituras. 1<br />

Muitos autores do Antigo e do Novo<br />

Testamento referem-se aos elementos<br />

de Gênesis 1-11 como relato factual. 2<br />

Nenhum deles propõe a mais remota<br />

possibilidade de que se trate de uma<br />

lenda ou alegoria. O próprio Jesus<br />

Cristo citou pelo menos 25 vezes por-


20 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

ções de Gênesis 1-11 retratando-as<br />

como material histórico. 3<br />

Mesmo com a inauguração da escola<br />

alegorista de Orígenes, a maioria<br />

dos expoentes da teologia cristã ainda<br />

era unânime em aceitar os capítulos<br />

iniciais do Gênesis como história<br />

real. 4 Dentre eles figuram-se nomes<br />

como Agostinho, Lutero e Calvino.<br />

Contudo, com o advento do iluminismo<br />

alemão e a conseguinte<br />

inauguração das correntes teológicas<br />

de Tübingen e Göttingen no<br />

século 19, um novo entendimento<br />

mitológico do Gênesis começou a<br />

tomar conta dos meios acadêmicos,<br />

sobretudo, europeus. Lideradas respectivamente<br />

por Ferdinand C. Baur<br />

(1792-1860) e Julius Wellhausen<br />

(1844-1918), essas novas interpretações<br />

julgaram por um tempo que o<br />

Gênesis não passava de uma fábula<br />

criada por judeus. Depois ampliaram<br />

sua teoria, supondo que todo o Pentateuco<br />

era um conjunto editado de<br />

contos oriundos de outras mitologias<br />

encontradiças na Mesopotâmia. 5<br />

Neste artigo pretendemos sugerir<br />

outra interpretação a partir das evidências<br />

textuais e arqueológicas recuperadas<br />

no Antigo Oriente Médio. Nosso<br />

foco será sobre as culturas que remontam<br />

aos primórdios da civilização humana.<br />

Por isso, daremos uma ênfase<br />

especial à descoberta de Eridu, o mais<br />

antigo centro urbano da história humana,<br />

e às tradições literárias relacionadas<br />

a ele. Tais fontes coincidem com<br />

as primeiras tradições literárias compostas<br />

a partir da invenção da escrita.<br />

A hipótese que queremos testar à<br />

luz da cultura material é a seguinte:<br />

supondo que seja verdadeira a versão<br />

do Gênesis acerca da criação de Adão<br />

e Eva e sua respectiva residência num<br />

jardim chamado Éden (com a conseguinte<br />

perda do paraíso e a destruição<br />

do mundo por meio de um dilúvio),<br />

é de se esperar que os primeiros descendentes<br />

daqueles que sobreviveram<br />

à catástrofe ainda retivessem em sua<br />

memória ou em sua tradição elementos<br />

dessa história primordial. Sua<br />

transmissão teria sido feita por ancestrais<br />

que conheceram o mundo précatastrófico<br />

ou pré-diluviano.<br />

Tal tradição, a princípio oral, deveria<br />

inevitavelmente aparecer nos<br />

primeiros escritos da humanidade<br />

caso estivessem cronologicamente<br />

próximos àqueles eventos cuja grandeza<br />

e extensão seriam muito importantes<br />

para serem olvidados. A expulsão<br />

de um paraíso idílico, a destruição<br />

da raça por meio de um dilúvio universal,<br />

a confusão idiomática trazida<br />

pela construção de uma torre eram<br />

acontecimentos traumáticos demais<br />

para serem ignorados, pelo menos nas<br />

primeiras gerações.<br />

Portanto, se estamos realmente<br />

falando de acontecimentos históricos,<br />

aqueles episódios mencionados<br />

no Gênesis devem obrigatoriamente<br />

compor o primeiro legado cultural<br />

da civilização humana. E após a invenção<br />

da escrita, eles seriam, sem<br />

dúvida, a principal temática sobre a<br />

qual escreveriam.<br />

Seguindo alguns teóricos da etnologia,<br />

podemos questionar o conceito<br />

darwinista de “culturas pré-históricas”<br />

como representando algo atrasado,<br />

primitivo, típico de trogloditas habi-


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 21<br />

tando cavernas. 6 Consideraremos a<br />

“pré-história” não como uma fase primitivista<br />

da história geral, mas apenas<br />

como aquele período que antecede ao<br />

surgimento da escrita. Partiremos do<br />

princípio de que a linguagem escrita<br />

iniciou-se como um sistema de signos<br />

que serviria de apoio às funções intelectuais,<br />

especialmente as de memória.<br />

Daí a ideia de que as primeiras epopeias<br />

– usadas como recurso mnemônico<br />

- conteriam traços do que aconteceu<br />

no prólogo da história humana.<br />

hi P ó t e S e d e t r A b A l h o<br />

Tudo isso, até aqui, é ainda um esquema<br />

hipotético que pode ser testado<br />

numa comparação entre o que diz<br />

o Gênesis e os primeiros testemunhos<br />

escritos produzidos pela humanidade<br />

por volta do terceiro e segundo milênios<br />

a.C. 7 Não se deve, porém, esperar<br />

um decalque exato de um pelo outro.<br />

As semelhanças, se houver, devem<br />

ser quanto aos elementos centrais. Já<br />

o arcabouço argumentativo certamente<br />

sofrerá descontinuidades próprias<br />

de cada segmento cultural.<br />

Embora as publicações atuais,<br />

com exceção de Joseph Campbell 8 ,<br />

tendam a ser um tanto céticas em relação<br />

aos resultados da “mitologia<br />

comparada”, ainda é válido trabalhar<br />

com a possibilidade de que alguns<br />

mitos sejam oriundos de fatos e personagens<br />

históricos que foram posteriormente<br />

mitificados. 9<br />

A maioria dos especialistas em<br />

literatura grega, por exemplo, sugere<br />

que o personagem Kadmos, que<br />

segundo a lenda, semeou a terra com<br />

dentes de dragão e colheu dela uma<br />

safra de soldados armados, seria na<br />

verdade uma pessoa real, posteriormente<br />

mitificada, que havia originalmente<br />

emigrado da Fenícia e fundado<br />

a cidade de Tebas. Foi ele quem levou<br />

aos gregos os conhecimentos rudimentares<br />

do alfabeto transformando<br />

para sempre sua sociedade. 10 Logo,<br />

não é inverossímil sugerir que mitos<br />

e personagens da literatura mesopotâmicos<br />

também contenham traços<br />

de historicidade, oriundos do período<br />

anterior à invenção da escrita.<br />

É igualmente possível supor que<br />

um mesmo acontecimento esteja no<br />

nascedouro cultural de múltiplas tradições<br />

étnicas. Nosso pressuposto é que<br />

a semelhança entre alguns mitos da<br />

antiguidade pode ser explicada não necessariamente<br />

pela dependência literária<br />

ou pela coincidência, mas pelo fato<br />

deles terem se originado de um mesmo<br />

acontecimento histórico que agora<br />

passou a ser contado de maneira alegórica,<br />

distorcida, mas ainda possuidora<br />

de alguma verdade moral ou filosófica<br />

que deveria ser transmitida. 11<br />

Conforme já dizia Evêmero, escritor<br />

grego do século 4 a.C., os mitos<br />

não passavam de “relatos fantásticos<br />

nascidos de fatos históricos”. Segundo<br />

ele, os deuses gregos tiveram sua<br />

origem em seres humanos notáveis,<br />

divinizados pelo medo ou pela admiração<br />

dos povos. 12<br />

Reconhecemos, no entanto, a<br />

impropriedade dessa hipótese para<br />

explicar inequivocamente todas as<br />

semelhanças culturais e religiosas<br />

existentes nas sociedades humanas.<br />

Contudo, a suposição de que mitologias<br />

diferentes possam ter uma fonte


22 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

histórica comum não é um conceito<br />

totalmente ultrapassado.<br />

Fatos e documentos levantados<br />

pelas Ciências Sociais (especialmente<br />

a antropologia cultural e a etnografia)<br />

têm demonstrado que fortes acontecimentos<br />

(como supostamente é o caso<br />

dos eventos descritos no Gênesis),<br />

uma vez testemunhados por diferentes<br />

povos, tendem a se transformar<br />

em mitos e adquirirem uma determinada<br />

carga simbólica para cada cultura<br />

à medida que passam de geração<br />

em geração. 13 Isso não equivale dizer,<br />

conforme a proposta histórico-culturalista,<br />

que toda cultura só é obtida<br />

por difusão e migração. 14 Não obstante,<br />

é notória a existência de algumas<br />

tradições culturais comuns a vários<br />

povos que podem ser traçadas com<br />

relativa segurança até a um elemento<br />

central que seria a fonte comum para<br />

vários segmentos sociais independentes.<br />

Noutras palavras, se a história de<br />

Adão a Babel ocorreu, as primeiras<br />

civilizações deverão fazer menção a<br />

ela. A Bíblia não será a única a apresentar<br />

tais acontecimentos.<br />

Resta, contudo, definir que elementos<br />

tornariam o relato do Gênesis<br />

distinto em relação aos demais<br />

mitos mesopotâmicos ao ponto de<br />

podermos considerá-lo um relato de<br />

natureza única e não um plágio da<br />

literatura que o antecedeu. Isso será<br />

feito no final do artigo aonde argumentaremos<br />

textualmente porque o<br />

Gênesis – apesar de ser mais recente<br />

que a maioria dos mitos apresentados<br />

– não constitui uma adaptação<br />

de contos anteriores ou uma versão<br />

comum entre as demais.<br />

me t o d o l o G i A d A PeSquiSA<br />

Um dos grandes problemas quando<br />

estudamos as origens da raça e da<br />

civilização humana é a distância entre<br />

o pesquisador e o sujeito/objeto a<br />

ser estudado. Como dizia Trigger, “a<br />

arqueologia é a única disciplina que<br />

busca estudar o comportamento e o<br />

pensamento humano sem ter contato<br />

direto com qualquer um deles”. 15<br />

Ademais existe o fato de que parte<br />

da observação será sobre restos<br />

materiais incompletos, deixados por<br />

grupos étnicos que não mais existem.<br />

Aí entra o desafio de fazer “pedras e<br />

cerâmicas falarem”, sem cair em exagerados<br />

subjetivismos.<br />

O desconhecimento científico de<br />

uma porção da história primeva que<br />

não pode ser “repetida” gera, obviamente,<br />

limitação de resultados. Nesse<br />

ponto é preciso ressaltar que, embora a<br />

Arqueologia e a História compartilhem<br />

o mesmo objetivo no que diz respeito a<br />

conhecer o passado, elas são distintas<br />

quanto ao seu objeto de estudo.<br />

Ao passo que a documentação textual<br />

é a fonte por excelência da historiografia,<br />

a cultura material existente<br />

num sítio (isto é, os restos materiais<br />

deixados por povos antigos) será o objeto-central<br />

de estudo do arqueólogo.<br />

Não poucas vezes, é claro, ambas<br />

as fontes (documental e material) não<br />

serão condizentes. Um navio naufragado<br />

pode ter em seu diário de bordo<br />

a explicação de que se tratava de uma<br />

fragata da marinha mercante. Mas o<br />

que os arqueólogos encontram em<br />

seu porão são contrabandos e corpos<br />

de escravos que o comandante queria<br />

a todo custo ocultar das autoridades.


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 23<br />

Assim a arqueologia permite contar<br />

uma história que nem sempre estará<br />

nos relatos oficiais.<br />

Em virtude disso, alguns entendem<br />

que a cultura material deveria ser<br />

considerada superior à fonte textual,<br />

porque os documentos escritos podem<br />

ser contaminados por linguagem<br />

política, propagandística ou de pseudolegalidade<br />

que resultará numa impressão<br />

distorcida dos fatos. O antigo<br />

historiador Heródoto 16 , por exemplo,<br />

afirmava que as muralhas de Babilônia<br />

tinham perto de 100 metros de<br />

altura, 25 metros de largura e 95 km<br />

de comprimento, o que, a arqueologia<br />

demonstrou ser um terrível exagero.<br />

E é óbvio que seria.<br />

Para outros, no entanto, a cultura<br />

material é demasiadamente fragmentária<br />

para se retirar dali uma história<br />

conclusiva. É necessário que se encontre<br />

um texto antigo, preferencialmente<br />

contemporâneo aos eventos,<br />

e que explique o que aquilo significava.<br />

Escavar, por exemplo, um desconhecido<br />

assentamento debaixo da<br />

areia do deserto, só nos permite dizer<br />

que ali havia uma cidade, porém,<br />

sem uma inscrição, um mapa antigo<br />

ou um texto contemporâneo seria<br />

quase impossível dizer que cidade<br />

seria aquela ou que pessoas moraram<br />

dentro de seus muros.<br />

As evidências arqueológicas,<br />

portanto, não são tão detalhadas e<br />

objetivas como gostaríamos que fossem,<br />

mas não conduzem ao agnosticismo.<br />

Apesar de nem sempre serem<br />

conclusivas, elas podem oferecer<br />

pistas preciosas, principalmente se<br />

vierem acompanhadas de fontes tex-<br />

tuais contemporâneas. Uma lançará<br />

luz sobre a outra.<br />

Felizmente no caso da Mesopotâmia<br />

temos tanto a documentação<br />

material como a textual. Ambas poderão<br />

ser comparadas procurando<br />

captar o sentido do mito para cada<br />

grupo, isto é, elo de ligação entre<br />

suas ideias e monumentos e a antiga<br />

história à qual acenavam: a história<br />

dos primórdios da humanidade.<br />

As principais fontes da literatura<br />

mesopotâmica são os documentos<br />

sumerianos e acadianos descobertos<br />

nas escavações de muitos sítios localizados<br />

ao longo do Crescente Fértil<br />

que estende desde os montes Zagros<br />

no Irã, até aos desertos da Arábia cobrindo<br />

grande parte do atual Iraque. 17<br />

São milhares de tabletes de argila,<br />

selos cilíndricos, estelas, monumentos<br />

arquitetônicos e artefatos gerais<br />

contendo escrita cuneiforme. Muitos<br />

deles são textos econômicos, administrativos,<br />

legais ou escolares. Outros<br />

são arquivos religiosos, cartas,<br />

hinos, épicos, provérbios, crônicas,<br />

coleções de encantamentos, cálculos<br />

matemáticos, prescrições médicas e<br />

até referências astronômicas.<br />

Em meio ao vasto acervo encontram-se<br />

referências a divindades, mitologias,<br />

sagas, heróis e, para interesse<br />

particular desta pesquisa, cosmogonias<br />

evidenciando sua versão para a<br />

origem do mundo e da humanidade.<br />

Nossa seleção de textos dentro<br />

do corpus literário segue o esquema<br />

de Falkenstein 18 que distingue entre<br />

dois maiores períodos de criatividade,<br />

descritos por Hallo 19 como “neossumeriano”<br />

(2115-1815 a.C.) e o


24 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

“pós-sumeriano” (1500–1100 a.C.).<br />

Contemplaremos também uma longa<br />

tradição literária anterior, que remete<br />

ao período do “Antigo Sumeriano”<br />

(2900-2400 a.C.), embora pouquíssimas<br />

cópias existam que sejam datáveis<br />

dessa época.<br />

Apresentaremos, portanto, uma<br />

síntese conjunta (mas não exaustiva)<br />

das várias tradições, priorizando as<br />

continuidades com a história do Gênesis<br />

e as versões mais antigas, destituídas<br />

ao máximo daquelas adições<br />

posteriores feitas nas culturas neoassíria<br />

e neobabilônica.<br />

Nossa proposta metodológica ainda<br />

segue no exercício de cruzar os<br />

dados oriundos dessas fontes materiais<br />

e escritas e correlacioná-los com<br />

a história do Gênesis. Analisaremos<br />

em conjunto as evidências materiais<br />

encontradas em solo e os mais antigos<br />

textos da humanidade para com<br />

elas responder à pergunta: O que os<br />

habitantes das primeiras civilizações<br />

diziam quanto ao começo da raça humana?<br />

Afinal, eles estavam bem mais<br />

perto das origens do que nós. Viveram<br />

no terceiro milênio antes de Cristo<br />

e estão quase 5 mil anos no passado.<br />

Vale à pena ouvir suas versões,<br />

examinando as evidências que eles<br />

deixaram e comparando-as posteriormente<br />

com versão bíblica.<br />

É claro que não temos uma pedra<br />

original do jardim do Éden, ou uma<br />

amostra orgânica do corpo de Adão<br />

para provar sua existência – como,<br />

aliás, também não temos nada de<br />

concreto que indique que a história se<br />

desenrolou exatamente como sugere<br />

a teoria evolucionista. 20 O que te-<br />

mos, na verdade, é uma reconstrução<br />

hipotética que, em última instância,<br />

demanda fé de ambos os grupos (dos<br />

que aceitam e dos que negam a veracidade<br />

histórica da Bíblia).<br />

A fé, portanto, não é um assentimento<br />

exclusivo dos religiosos. Acadêmicos<br />

que acreditam em algo que<br />

não viram com os próprios olhos estão<br />

de certa forma exercitando sua fé<br />

naquela hipótese de trabalho que consideram<br />

mais adequada para explicar<br />

as fontes textuais e a formação do registro<br />

arqueológico.<br />

A re d e S c o b e r t A d A me S o P o t â m i A<br />

Quais foram os primeiros assentamentos<br />

humanos que poderíamos<br />

corretamente classificar de “cidade”<br />

ou “civilização”? Durante muito<br />

tempo os gregos foram vistos como<br />

os fundadores da civilização, pois os<br />

historiadores europeus (desconhecendo<br />

a riqueza cultural das Américas e<br />

do Oriente Médio), entendiam a polis<br />

grega como o elemento decisivo de<br />

transição entre barbarismo e a vida racional<br />

civilizada (se bem que os próprios<br />

gregos admitiam com relutância<br />

uma grande admiração pela sociedade<br />

egípcia). Mas hoje esse é um conceito<br />

ultrapassado. Povos anteriores aos<br />

gregos podem legitimamente ser considerados<br />

grandes civilizações.<br />

Muitos pensaram na China, no Egito,<br />

em Jericó para explicar os começos<br />

da organização social que chamamos<br />

de “cidade”. Mas, a maioria dos acadêmicos<br />

de hoje – ainda que falem de<br />

“reinvenções” da cidade – continuam<br />

apontando para a Mesopotâmia como<br />

sendo o berço da civilização humana. 21


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 25<br />

Foi lá que tudo começou, ou “recomeçou”<br />

se entendermos que os que ali<br />

fundaram as primeiras cidades chegaram<br />

à região como imigrantes vindos<br />

de outra localidade.<br />

A Mesopotâmia contém uma geografia<br />

arqueológica de interesse mundial.<br />

Seu nome deriva de duas palavras<br />

gregas meso que quer “meio” e<br />

potamos que quer dizer “rio”. Logo,<br />

Mesopotâmia seria “terra entre rios”,<br />

exatamente por causa dos dois rios,<br />

Tigre e Eufrates, que compõem o cenário<br />

da região.<br />

A área em redor também é chamada<br />

de Crescente Fértil exatamente por<br />

ter uma terra arável, em meio a um<br />

deserto, disposta no formato de uma<br />

lua crescente delimitada entre os vales<br />

dos dois rios que desembocam no<br />

Golfo Pérsico.<br />

Havia ainda duas regiões geográficas<br />

bem distintas: a parte norte, na<br />

Alta Mesopotâmia, era mais montanhosa,<br />

desértica e menos fértil. Já o<br />

centro e o sul do vale, onde se encontravam<br />

a Média e a Baixa Mesopotâmia,<br />

eram constituídos de planícies<br />

muito férteis em função do curso dos<br />

rios que nascem nas montanhas da<br />

atual Armênia e deságuam separadamente<br />

no Golfo Pérsico. Ainda em<br />

termos geográficos é importante dizer<br />

que o nome Suméria aplica-se à Baixa<br />

e Média Mesopotâmia, enquanto a<br />

Acádia aplica-se à parte Alta que seria<br />

o sul da moderna cidade de Bagdá.<br />

As escavações na Mesopotâmia<br />

começaram numa época, em que a Arqueologia<br />

era marcada pelo colecionismo<br />

e pelo antiquarismo, ou seja, os<br />

artefatos eram achados e levados para<br />

museus sem muita preocupação com<br />

o local aonde foram encontrados. A<br />

descoberta da pedra Roseta pelos soldados<br />

de Napoleão e os monumentos<br />

que os franceses e ingleses levaram do<br />

Egito para a Europa no final do século<br />

18 caracterizam bem esse tempo.<br />

Foi nesta mesma circunstância de<br />

efervescência exploratória que Claudius<br />

James Rich, um representante da<br />

companhia das índias orientais, se interessou<br />

pelas antiguidades locais da<br />

região do Crescente Fértil.<br />

A princípio, o ambiente não era arqueologicamente<br />

promissor. As cidades<br />

que ali existiram estavam completamente<br />

soterradas pela areia do deserto<br />

e a paisagem não tinha aquelas monumentais<br />

ruínas como as encontradas<br />

no Egito. Por isso, o local permaneceu<br />

abandonado por milênios e muitos duvidaram<br />

da possibilidade de se encontrar<br />

naquele deserto algum indício dos<br />

áureos tempos em que ali se estabeleceram<br />

as primeiras civilizações.<br />

Desafiando o ceticismo de seus colegas,<br />

Rich explorou várias ruínas e fez<br />

algo hoje inaceitável, mas totalmente<br />

comum na ocasião: recolheu para sua<br />

própria coleção uma enorme quantidade<br />

de objetos com inscrições antigas,<br />

como tijolos, tabletes de argila, cilindros<br />

com desenhos em baixo relevo,<br />

estátuas e cerâmicas. Quando ele morreu<br />

vitimado por cólera em 1821, sua<br />

coleção foi adquirida pelo Museu Britânico,<br />

onde permanece até hoje.<br />

Na época em que milhares de cacos<br />

de argila contendo antigas inscrições<br />

cuneiformes começaram a chegar<br />

em Londres, por volta de 1818,<br />

ninguém tinha ainda condições de ler


26 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

ou decifrar o que eles continham. Não<br />

obstante, esta leva de artefatos acabou<br />

se transformando num grande incentivo<br />

para a arqueologia na região,<br />

pois despertou o interesse de outros<br />

exploradores que queriam conhecer<br />

melhor as terras que foram palco de<br />

importantes eventos mencionados na<br />

Bíblia e ligados com as origens da civilização<br />

humana.<br />

Foram muitas as escavações locais,<br />

usando os próprios nativos como operários,<br />

tradutores e guias. Acostumados<br />

ao rigor do deserto e possuidores<br />

de uma valiosa tradição oral, aqueles<br />

beduínos foram de grande ajuda para<br />

os pesquisadores europeus. Em pouco<br />

tempo, ruínas de antigos palácios começaram<br />

a aparecer em meio à terra<br />

e aos cacos de argila contendo mais e<br />

mais inscrições.<br />

O local da antiga Babilônia acabou<br />

sendo um dos primeiros a serem<br />

reconhecidos por causa da tradição<br />

dos beduínos que por séculos chamavam<br />

aquele lugar de Ill Babil ou Tell<br />

Babil, isso é montanha de escombros<br />

da Babilônia. Depois vieram outros<br />

exploradores como Paul Émile Botta,<br />

Henry Austen Layard e Hormuzd<br />

Rassam (o único nativo da região).<br />

As explorações foram brindadas com<br />

a descoberta de antigos centros como<br />

Nínive, Uruk (que na Bíblia aparece<br />

com o nome de Ereque), Kish, Ur e<br />

outros. A mais antiga de todas as cidades<br />

também foi encontrada. Seu<br />

nome era Eridu.<br />

A decifração dos textos cuneiformes,<br />

que permitiu montar parcialmente<br />

o quebra cabeças dos sítios à medida<br />

que iam sendo escavados, deveu-se a<br />

Henry Rawlinson, que os interpretou<br />

graças à comparação com outras inscrições<br />

encontradas em Persépolis.<br />

A o r i G e m d o S A S S e n t A m e n t o S<br />

Os textos decifrados e o registro<br />

arqueológico escavado revelavam importantes<br />

detalhes, mas também suscitavam<br />

intrigantes perguntas: quem<br />

seriam afinal aqueles povos? Quando<br />

e por que migraram para a região?<br />

Qual era sua cosmovisão? Que versão<br />

cosmogônica eles apresentavam para<br />

sua origem e para o surgimento da humanidade<br />

(i.e. seus ancestrais)?<br />

Segundo os textos descobertos,<br />

os sumérios afirmavam ser descendentes<br />

daqueles que vieram da região<br />

sagrada de Dilmun e sobreviveram ao<br />

“grande dilúvio”. A localidade dessa<br />

região ainda é ponto controverso entre<br />

os arqueólogos e assiriologistas.<br />

Alguns pensam que seria a parte sul<br />

do Irã, outros apontam o vale do Indo,<br />

a vila de Shat al-Arab (entre a moderna<br />

Qurnah e Basra) ou ainda a ilha de<br />

Bahrain no Golfo Pérsico. 22<br />

Esta última identificação parece<br />

hoje ter mais adeptos que as anteriores.<br />

Não obstante, nossa atenção se volta<br />

não para a tentativa de localização atual<br />

desse sítio (que possivelmente foi desconfigurada<br />

pelo mencionado dilúvio),<br />

mas para o epíteto que se associa ao seu<br />

nome. Dilmun (às vezes transliterado<br />

como Telmun) é descrito como “o lugar<br />

aonde nasce o sol”. 23 isso sugere que<br />

os Sumerianos descenderam de algum<br />

grupo vindo do Oriente, que sobreviveu<br />

a uma gigantesca inundação. 24<br />

É notória a coincidência entre essa<br />

geografia e a menção bíblica de que,


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 27<br />

antes que do grande dilúvio, Deus<br />

plantara “um jardim no Éden, na direção<br />

do Oriente”, i.e, do nascimento<br />

do sol (Gn 2:8). Mas as semelhanças<br />

não se resumem a isso.<br />

No tablete intitulado “Enki e<br />

Ninhursag” 25 , Dilmun é descrito como<br />

um lugar puro, sem doença, sofrimento<br />

ou morte. Um lugar de paz, bênção<br />

e fertilidade. É a “boca dos rios”<br />

(como em Gn 2:10: “e saía um rio do<br />

Éden para regar o jardim e dali se dividia,<br />

repartindo-se em quatro partes).<br />

Aliás, a ênfase nas “águas” é essencial,<br />

segundo Roberto Oro, 26 para entender<br />

o significado hebraico do termo Éden<br />

(‘ēden). Sua forma verbal ‘dn significa<br />

“dar um abundante suprimento de<br />

água”, “prosperar, fazer crescer”. Essa<br />

etimologia sustenta-se em Gênesis<br />

13:10: “Levantou Ló os olhos ... viu a<br />

campina do Jordão que era bem regada,<br />

... como o jardim do Senhor”. De<br />

igual modo, embora alguns pensem<br />

que Dilmun venha de uma desconhecida<br />

etimologia pré-sumeriana 27 , é possível<br />

que seu significado seja: Dil (ou<br />

Til) = vida ou manter a vida + UM =<br />

crescer a semente + N = sufixo locativo.<br />

Literalmente: “o lugar onde cresce<br />

e mantém a semente da vida”. 28<br />

Os sumerianos tinham também o<br />

vocábulo edin para se referir a uma<br />

planície, pradaria ou, nalguns casos,<br />

até a um deserto. 29 Já o equivalente<br />

acadiano posterior seria edinu, que<br />

por semântica passou a significar<br />

“um local abundantemente regado”. 30<br />

A relação entre esses signficados e o<br />

sentido hebraico de “Éden”, apresentado<br />

acima por Oro, dificilmente seria<br />

mera coincidência.<br />

Foi em Dilmun que Enki, seduzido<br />

pela deusa Uttu 31 , trouxe para ela um<br />

fruto especial como condição para que<br />

dormissem juntos. Enki conseguiu o<br />

que queria, mas como resultado, a terra<br />

passou a brotar ervas daninhas que<br />

ele comeu, perdendo assim a imortalidade.<br />

Amaldiçoado por sua esposa<br />

Ninhursag, Enki começa a deteriorar,<br />

mas, por um ato posterior de misericórdia<br />

ele é restaurado à vida. A semelhança<br />

com o Gênesis está na sedução<br />

envolvendo um fruto, na descrição da<br />

terra produzindo ervas daninhas, na<br />

maldição que vem do erro de comer<br />

algo proibido e na perda da vida eterna.<br />

Mas note-se que aqui não se tratam<br />

de seres humanos e sim de deuses<br />

(como dissemos, também existem desigualdades<br />

entre os relatos). 32<br />

Foi depois desse episódio que veio<br />

a criação da humanidade, segundo<br />

uma das versões, “formados do pó da<br />

terra” por obra de Ninhursag. 33 Então<br />

veio a destruição de quase todos por<br />

meio de um dilúvio e o repovoamento<br />

do mundo por aqueles que sobreviveram<br />

à catástrofe, ficando errantes<br />

pelo deserto, até chegarem à região<br />

do Crescente Fértil.<br />

Do ponto de vista arqueológico,<br />

as primeiras evidências mostraram<br />

que realmente houve na Mesopotâmia<br />

uma sedentarização das comunidades<br />

humanas que migraram para lá vindos<br />

de outra região durante a passagem do<br />

Paleolítico para o Neolítico, o que teria<br />

ocorrido,segundo alguns autores,<br />

por volta de 10000 a.C. A cronologia<br />

desse êxodo é questionada por alguns<br />

especialistas e ainda está passível de<br />

discussão, embora não seja nosso ob-


28 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

jetivo fazê-lo aqui. 34 Quanto, porém, à<br />

precedência dessas organizações civilizadas<br />

a qualquer outra do mundo, é<br />

quase unânime a opinião de que essas<br />

são as mais antigas unidades metropolitanas<br />

que podemos rastrear com<br />

ferramentas da arqueologia histórica.<br />

Segundo Childe (e isso é praticamente<br />

um consenso entre os arqueólogos),<br />

houve três ocorrências que levaram<br />

à invenção da cidade ou, como<br />

ele prefere chamar, à “revolução urbana<br />

na Mesopotâmia” . 35 Primeiro,<br />

bruscas mudanças no clima mundial<br />

impossibilitando que os humanos sobrevivessem<br />

a menos que trabalhassem<br />

em grupos para encontrar abrigo<br />

e obter comida. Segundo, que tal<br />

cooperação permitisse aos grupos se<br />

especializarem em tarefas variadas,<br />

podendo trocar seus produtos com outros<br />

membros de outros grupos, a fim<br />

de suprirem as necessidades gerais de<br />

todos. Terceiro, a invenção da roda,<br />

da agricultura e do artesanato em cerâmica<br />

que fez com que a luta pela sobrevivência<br />

se tornasse menor. 36<br />

Então apareceram as cidades na<br />

Mesopotâmia, sendo Eridu a primeira<br />

delas. Todas a princípio assentadas<br />

entre a latitude de Eridu (30º norte) e<br />

Uruk/Ereque (32º norte). Depois foram<br />

espalhadas para Canaã (Jericó), o norte<br />

da África (Egito) e o vale do Indo.<br />

O surgimento desses núcleos urbanos<br />

foi acompanhado do desenvolvimento<br />

de um complexo sistema<br />

hidráulico que favorecia a utilização<br />

dos pântanos, evitava inundações e<br />

garantia o suprimento de água para os<br />

períodos de seca. Havia portos, escolas,<br />

intenso comércio e um extraordi-<br />

nário progresso. Admite-se, frente ao<br />

sucesso das atividades produtivas locais,<br />

que por volta de 3000 a.C. (data<br />

que pode ser corrigida) algumas cidades<br />

mesopotâmicas cresceram tanto<br />

ao ponto de reunir, segundo algumas<br />

estimativas, mais de 30 mil habitantes,<br />

a exemplo de Uruk e Ur. 37<br />

Quem hoje visita aquele local dificilmente<br />

tem ideia da grandeza que<br />

foram esses centros urbanos do passado.<br />

Em Ur, Eridu e Lagash chegava-se<br />

de barco! Mas os restos arqueológicos<br />

desses centros jazem agora no meio<br />

do nada, em pleno deserto iraquiano.<br />

Ocorre que o meio ambiente nunca<br />

mais permaneceu o mesmo. Ficou em<br />

constante alteração depois da grande<br />

mudança climática que culminou no<br />

fenômeno da glaciação. Na Mesopotâmia<br />

as margens do Golfo retrocederam<br />

cerca de 200 km para longe de onde<br />

estariam os portos no terceiro milênio<br />

a.C. A descrição geográfica encontrada<br />

em alguns tabletes cuneiformes sustenta<br />

essa afirmação. Ademais diversas<br />

atividades humanas tais como canais<br />

de irrigação, agricultura, pastagem de<br />

animais e construção de novas cidades<br />

também contribuíram para a mudança<br />

do curso dos rios e a drenagem de boa<br />

parte de seu leito fluvial. 38<br />

Seja como for, no terceiro milênio<br />

a.C. o ambiente ainda era bastante<br />

convidativo. Assim, com a fundação<br />

desses centros urbanos desenvolveuse<br />

naturalmente a política, o comércio<br />

e a religião – todos usando como<br />

ferramenta a recém inventada arte de<br />

escrever. Por isso, os tabletes são ricos<br />

em informações administrativas,<br />

comerciais e teológicas, embora a ri-


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 29<br />

gor os cidadãos mesopotâmicos não<br />

faziam distinção entre uma coisa e<br />

outra. Tudo era parte do mesmo pacote<br />

cultural. Não havia separação entre<br />

religião e Estado; comércio e liturgia;<br />

artesanato e adoração. O Patesi<br />

(nome dado ao líder local) desempenhava<br />

ao mesmo tempo as funções de<br />

rei e sacerdote.<br />

o A S S e n t A m e n t o d e er i d u<br />

Apesar do esforço conjunto existente<br />

entre as comunidades e a livre<br />

troca comercial, elementos étnicos começaram<br />

a surgir, distinguindo os cidadãos<br />

de um e de outro assentamento.<br />

Diferentes modos de vestir, falar, agir<br />

e, principalmente, governar revelavam<br />

agora o modus vivendi das cidades. Os<br />

monarcas, então, aproveitando esse<br />

primeiro gérmen de nacionalismo,<br />

construíram templos de elaborada arquitetura<br />

para servirem como centro<br />

político, econômico e religioso. Na<br />

literatura começam a ampliar as diferentes<br />

versões do passado.<br />

Eridu, o mais antigo dos assentamentos<br />

(e por isso escolhido como<br />

nosso estudo de caso), é uma boa síntese<br />

das crenças que havia na região.<br />

É o topônimo de um lugar conhecido<br />

pelos árabes como Abu Shaherein.<br />

Suas escavações foram iniciadas em<br />

1946, tendo como diretor um arqueólogo<br />

iraquiano chamado Fuad Safar.<br />

Como não era muito experiente, Safar<br />

contou com a ajuda técnica do britânico<br />

Seton Lloyd, que atuava como<br />

conselheiro de campo.<br />

Em pouco tempo, o sítio revelou<br />

ser a representação da mais recuada<br />

época de habitação humana na região.<br />

Era também o lugar de origem não<br />

apenas da civilização sumeriana, mas,<br />

por implicação, de todo centro urbano<br />

que posteriormente se originou dali.<br />

Já nas primeiras etapas da prospecção<br />

de superfície, começaram a aparecer<br />

fragmentos de cerâmica, vasos, estátuas<br />

e uma boa quantidade de inscrições<br />

cuneiformes, desde os primeiros<br />

estágios de formação da escrita.<br />

A equipe começou os trabalhos de<br />

escavação pelo topo da colina de areia<br />

(Tell) aonde havia traços de um antigo<br />

edifício composto de maciças paredes<br />

e vários degraus de uma enorme<br />

escada. Era de fato o resquício do que<br />

fora outrora um edifício monumental<br />

agora escondido por milênios de deposição<br />

arenosa. Tratava-se de um<br />

Zigurate, ou seja, uma torre-templo<br />

muito alta construída para adorar as<br />

divindades locais e, conforme revelariam<br />

os escritos cuneiformes, permitir<br />

que alguns escapassem com vida caso<br />

voltassem a sofrer outra inundação<br />

enviada pelos deuses. Como veremos<br />

mais à frente, a lembrança de um dilúvio<br />

e o receio que o mesmo voltasse<br />

a ocorrer pareciam muito fortes na<br />

mente daqueles cidadãos!<br />

É aqui que destaca-se a importância<br />

desse Zigurate local e das demais<br />

ruínas de 31 torres sagradas descobertas<br />

em outras partes da região. O<br />

zigurate de Eridu fazia parte de um<br />

complexo de 16 ou 19 ocupações. 39<br />

A que está no topo, sendo, portanto,<br />

a mais recente, é datada em torno do<br />

ano 2100 a.C.. Essa datação foi possível<br />

graças a tijolos comemorativos<br />

que faziam parte da estrutura original<br />

e traziam inscrições dedicadas aos


30 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

reis Ur Nammu e Amar-Sin, governantes<br />

da terceira dinastia de Ur, por<br />

volta ao século 21 a.C..<br />

Os arqueólogos ainda encontraram<br />

sob uma das esquinas do Zigurate as<br />

paredes de outros prédios mais antigos,<br />

todos feitos de adobe. E no nível<br />

mais baixo um elemento especial: sob<br />

a duna de uma areia limpa, havia um<br />

altar que seria a mais antiga edificação<br />

de todo o complexo arquitetônico. Era<br />

um altar modesto cuja área não ia além<br />

de 3 metros quadrados. Continha um<br />

pedestal de frente para a entrada e um<br />

nicho numa parede. Aquele foi, provavelmente,<br />

a primeira edificação feita<br />

pelos habitantes de Eridu como pedra<br />

fundamental da cidade.<br />

Note-se a semelhança desse ato com<br />

as referências bíblicas à construção de<br />

altares sacrificais a Deus, uma prática<br />

vinda desde os tempos adâmicos e se<br />

tornara o primeiro ato de Noé ao sair<br />

da arca juntamente com sua família<br />

(Gn 8:20 e 21). 40 Aliás, segundo o estudo<br />

de Moshe Weinfeld 41 , a prática de<br />

erguer altares, mencionada na Bíblia,<br />

está intimamente atrelada à fundação<br />

de um novo assentamento urbano. De<br />

fato, o altar de Jacó erguido em Betel<br />

parece intrinsecamente lidado à fundação<br />

da nova cidade e concorre para<br />

confirmação dessa tese.<br />

De acordo com o léxico sumeriano<br />

produzido por John Halloran 42 , o mesmo<br />

pictograma usado para expressar<br />

“curral de ovelhas” (tùr, turs) funcionava<br />

frequentemente como metáfora<br />

para representar um templo ou santuário.<br />

Assim, o achado de Eridu, juntamente<br />

com a narrativa bíblica, corroboram<br />

com a explicação do fenômeno<br />

cúltico. Os altares foram os primeiros<br />

santuários e o sacrifício de cordeiros<br />

ou ovelhas, a mais antiga forma ritualística<br />

de que se tem notícia.<br />

Eridu começa com um altar aparentemente<br />

perpetuando a atitude de<br />

Noé ao sair da arca. Mas há um elemento<br />

estranho no ambiente: entre<br />

os achados do VIII nível estratigráfico,<br />

foi encontrada uma considerável<br />

quantidade de rolos cerâmicos<br />

assemelhando-se a serpentes, o que<br />

indicou, para a surpresa de todos, que<br />

houve nalgum estágio da cidade a<br />

substituição sacrifical do cordeiro por<br />

outro animal ou a mistura sincretista<br />

do antigo culto com alguma forma de<br />

adoração à serpente. 43<br />

Novamente é notório que todos<br />

os demais edifícios cúlticos que se<br />

seguiram até à construção de sua torre<br />

templo, ocupam sempre o mesmo<br />

lugar, o novo edifício era erguido sobre<br />

as bases do anterior, aproveitando<br />

seus alicerces e até parte de suas<br />

paredes. Foram séculos de edificações<br />

sobre a mesma elevação, até ao<br />

ostracismo completo da cidade por<br />

volta do ano 600 a.C.<br />

Quanto aos Zigurates (o de Eridu<br />

e os demais), não há como evitar<br />

a comparação com o episódio da torre<br />

de Babel registrado em Gênesis 11. À<br />

semelhança do programa de governo<br />

de Ninrode, tanto Eridu quando as<br />

cidades circunvizinhas centralizaram<br />

sua sociedade na construção de torres<br />

monumentais. Embora essas torres<br />

às vezes pareçam ter objetivos distintos<br />

44 , de um modo geral, as razões<br />

bíblicas para a edificação da torre de<br />

Babel identificam-se com o contexto


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 31<br />

mesopotâmico sugerido pelo registro<br />

arqueológico. Em ambos os casos, a<br />

construção de uma torre oferece união<br />

política e cultural à comunidade, a fim<br />

de que seus moradores não dispersem<br />

para outros assentamentos ou criem<br />

novos centros urbanos. Isso provocaria<br />

uma degeneração da metrópole. 45 Tal<br />

programa centralizaria o poder num só<br />

lugar e aumentaria o controle por parte<br />

do patesi local. É difícil afirmar, conforme<br />

as recentes tentativas de David<br />

Rohl 46 , que o Zigurate de Eridu fosse<br />

a mesma torre de Babel mencionada<br />

na Bíblia. Não obstante, a semelhança<br />

contextual entre o relato escriturístico<br />

e esses monumentos é o suficiente para<br />

estabelecer a evidência historiográfica<br />

de Gênesis 11.<br />

Isso sem contar que tradições posteriores<br />

testemunham de um tempo<br />

em que os habitantes da suméria falavam<br />

uma só língua que depois foi<br />

confundida espalhando os povos. A<br />

edificação de uma torre ofensiva aos<br />

deuses aparece nalguns fragmentos<br />

como motivação para isso.<br />

Num texto sumério intitulado<br />

“Enmerkar e o Senhor de Aratta”, há,<br />

segundo a tradução inglesa de Kramer,<br />

a clara menção de uma época em<br />

que havia “harmonia de línguagem<br />

em toda Suméria” e os cidadãos “adoravam<br />

a Enlil numa só língua”. 47 Mais<br />

abaixo o texto faz menção a Enki, o<br />

deus patrono de Eridu, o que pode<br />

remeter a tradição para os tempos do<br />

terceiro milênio a.C.<br />

George Smith 48 , um dos primeiros<br />

assiriólogos da Inglaterra, também<br />

publicou o fragmento de um tablete<br />

que admitiu tê-lo intrigado. Ele con-<br />

seguiu recuperar apenas um pedaço<br />

pequeno do texto que teria originalmente<br />

de quatro a seis colunas. Na<br />

coluna 1, linha 8 começava a menção<br />

de um povo (os babilônios?) que pecaram<br />

por construir uma torre. Alguma<br />

divindade, descontente, espalhouos<br />

pela face da terra e tornou confusa<br />

sua linguagem e seu conselho.<br />

Quanto ao nome “Eridu” (eridu10),<br />

temos aqui uma palavra cuja<br />

etimologia ainda é objeto de discussão<br />

entre os especialistas. 49 As sugestões<br />

variam entre “a boa cidade”, “a bela<br />

cidade” e “lugar poderoso”. Outra possibilidade<br />

menos aventada é conectar<br />

o nome com a palavra urudu (cobre).<br />

Seja como for, como lembra Leick 50 ,<br />

a palavra pode estar conectada a um<br />

substrato linguístico pré-sumeriano. E,<br />

de fato, os sumérios escreviam Eridu<br />

usando o duplo signo NUN.KI.<br />

Jacobsen sugere que o signo NUN<br />

seria uma designação antiga – parcialmente<br />

um nome, parcialmente um<br />

epíteto – para o deus Enki (o patrono<br />

de Eridu) e que o KI designaria um lugar<br />

conectado com esse deus ou com<br />

a “divindade” de um modo genérico.<br />

Logo, NUN.KI seria “o lugar (ou a cidade)<br />

de Enki” ou “cidade divina”. 51<br />

Não se pode olvidar, porém, como<br />

lembram Leick 52 e Unger 53 , que o signo<br />

NUN remete a uma espécie de árvore,<br />

junco ou um sinônimo tardio da<br />

palavra “princípe”.<br />

Nesse sentido, vale mencionar a<br />

referência sumeriana a uma árvore especial<br />

chamada KHALUB. Sua mais<br />

completa descrição aparece no mito<br />

de “Gilgamesh, Enkidu e o Mundo<br />

dos Mortos”. Lá fala de uma árvore


32 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

solitária plantada às margens do rio<br />

Eufrates que ligava o Céu e a Terra.<br />

Mas ela foi originalmente infectada<br />

por uma “serpente que não pode ser<br />

seduzida” e pelo terrível pássaro Anzud,<br />

uma criatura demoníaca retratada<br />

na literatura e na iconografia como<br />

uma mistura de leão e águia com dois<br />

chifres na cabeça. 54<br />

Vários cilindros e painéis sumerianos<br />

mostram seres alados protegendo<br />

a árvore sagrada para que os<br />

seres humanos não chegassem até ela.<br />

Um exemplo clássico é o relativamente<br />

bem preservado mural do palácio<br />

de Zimri-Lim, rei de Mari (perto do<br />

Eufrates) datado de cerca 1778-1758<br />

a.C. (época de Hamurabi). Ali é possivel<br />

ver claramente as criaturas aladas<br />

protegendo a árvore sagrada.<br />

Mais uma vez, percebe-se a continuidade<br />

com as referências bíblicas à<br />

árvore da vida e aos querubins alados<br />

que a vigiam depois da queda humana,<br />

impedindo seu acesso aos descendentes<br />

de Adão e Eva (Cf. Gn 2:9; 3:24).<br />

o m i t o d e er i d u<br />

A lista das composições literárias da<br />

Mesopotâmia é tremendamente complexa.<br />

Somente num dos carregamentos<br />

da época de Rawlinson, o Museu<br />

Britânico recebeu de uma vez mais de<br />

25 mil tabletes, provindos da antiga biblioteca<br />

de Assurbanipal. Separar esse<br />

acervo e classificá-lo cronologicamente<br />

e em composições literárias é até hoje<br />

um a árdua tarefa. Uma lista extensa,<br />

porém ainda incompleta foi editada por<br />

Samuel Kramer 55 e outra por Pritchard<br />

no ANET 56 . Ambas ainda servem de referência<br />

para muitos pesquisadores.<br />

Segue-se a isso o desafio de recuperar<br />

grande parte dos tabletes que<br />

estão em péssimo estado de conservação,<br />

principalmente aqueles do Antigo<br />

Sumeriano. Existem muitas palavras<br />

que são obscuras e a sintaxe de várias<br />

sentenças ainda é um mistério. Muitos<br />

textos permanecem introduzidos<br />

e não analisados, principalmente alguns<br />

que jazem, infelizmente, presos<br />

em coleções particulares sem acesso<br />

para os especialistas.<br />

Mesmo com tais impedimentos,<br />

muitos progressos foram feitos na<br />

compreensão do corpus literário mesopotâmico,<br />

especialmente aquele que<br />

gravita em torno de Eridu, o mais antigo<br />

e proemimente dos assentamentos.<br />

De um modo geral, os textos cosmogônicos<br />

mencionam os seguintes<br />

elementos encontradiços também na<br />

versão bíblica das origens:<br />

1 – A criação e desobediência do<br />

gênero humano, feito a partir do barro,<br />

que perde o paraíso.<br />

2 – A maldição que segue à desobediência<br />

trazendo sofrimento aos<br />

habitantes da Terra.<br />

3 – O início da família humana marcado<br />

pela tragédia de um fratricídio.<br />

4 – A humanidade que se torna má<br />

e, por isso, é destruída por um dilúvio.<br />

5 – O perecimento de quase todos,<br />

menos alguns que são preservados<br />

pelos deuses.<br />

6 – A construção de uma torre<br />

sagrada e a confusão de idiomas<br />

que espalha os homens pelos quatro<br />

cantos da Terra.<br />

Até mesmo Levi-Strauss que considerava<br />

o relato da criação um mito<br />

foi forçado a admitir que “grande


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 33<br />

surpresa e perplexidade surgem do<br />

fato de que esses temas básicos para<br />

os mitos da criação são mundialmente<br />

os mesmos em diferentes áreas do<br />

globo”, não só na Mesopotâmia, mas<br />

também fora do Oriente Médio. 57<br />

Há várias versões para o mito de<br />

Eridu, preservadas e editadas inclusive<br />

nos tempos neobabilônicos. Na versão<br />

babilônica, por exemplo, será Markuque<br />

o fundador da primeira cidade e<br />

não Enki, conforme o relato sumeriano.<br />

Seja como for, de um modo geral,<br />

os tabletes mais antigos informam que<br />

Eridu foi a primeira cidade a ser criada,<br />

uma das cinco fundadas antes do dilúvio<br />

(embora, uma versão assíria afirme<br />

que Nippur a precedeu no tempo 58 ).<br />

Enki, que é uma divindade ligada<br />

às águas (mais tarde reconhecido como<br />

Ea), ergueu para si uma casa (templo) e<br />

a decorou com todo tipo de pedras preciosas,<br />

ouro e lapislazuli. Ele encheu<br />

o lugar com música, para comemorar<br />

sua criação. Eridu era bela, cercada<br />

de águas por fora e por baixo, mas as<br />

águas não a submergiam.<br />

No final de sua criação, Enki convida<br />

os deuses para abençoar o que<br />

ele havia criado. Uma festa, pois, é<br />

preparada com todo protocolo necessário.<br />

No ápice do encontro, Anu, o<br />

deus-pai de Enki, diz alegremente perante<br />

todos: “Meu filho Enki construiu<br />

seu templo ... e ele cresceu do solo e<br />

encheu a terra como uma montanha”<br />

(compare com a visão de Nabucodonosor<br />

acerca de uma pedra celestial<br />

que cresce e enche toda a Terra, em<br />

Daniel 2:35).<br />

As mesmas águas que circundavam<br />

a cidade eram o reino de Enki chamado<br />

em sumério de Abzu (Ab = águas, Zu<br />

= distantes). Os textos, então, falam de<br />

poderosas criaturas “pré-diluvianas”<br />

chamadas Anunnakis que alguns interpretam<br />

como sendo seres “divinos”.<br />

Outros entendem que seriam apenas<br />

criaturas poderosas. O nome Anunaki<br />

vem de alguma das seguintes etimologia:<br />

“da-nuna”, “da-nuna-ke4-ne”, ou<br />

“da-nun-na”, e significaria algo como<br />

“aqueles de sangue real” ou “os poderosos<br />

da dinastia”. 59<br />

Dentre os Anunnakis havia, segundo<br />

o mito do Atrahasis, um grupo inferior<br />

chamado Igigi. 60 Embora tivessem<br />

antes servido a Enlil e aos demais<br />

Anunnakis superiores, eles iniciaram<br />

uma rebelião reclamando o direito de<br />

serem divinos (comp. com Gn 3:4 e 5).<br />

Numa assembleia celestial, ocorrida<br />

em função da guerra, os Igigi (em número<br />

de 300) são punidos e separados<br />

dos demais Annunakis bons (em número<br />

de 600). Do total, evidentemente<br />

simbólico, temos a proporção de um<br />

terço rebelde contra dois terços fiéis<br />

(comp. com a imagem de Apocalipse<br />

12:3 e 4, 7-12). 61 Segundo esses textos,<br />

a humanidade teria sido criada para repovoar<br />

o céu, suprindo a lacuna que<br />

os deixaram, daí o seu ódio pelo gênero<br />

humano. 62 Outras versões, como o<br />

texto sumeriano de Enki e Ninhursag,<br />

acrescentam que a humanidade também<br />

foi criada para trabalhar e servir<br />

aos deuses, no lugar dos Igigi que desertaram<br />

de sua função.<br />

O primeiro ser humano criado recebe,<br />

de acordo com a escola sumeriana<br />

de Eridu, o nome de Adapa. Em 1906<br />

Archibald Sayce argumentou que o<br />

nome Adapa deveria ser transliterado


34 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

como Adamu. 63 Apesar do grande respeito<br />

pela erudição de Sayce, alguns se<br />

mostraram um tanto reticentes quanto<br />

a essa equiparação, embora, até hoje,<br />

não se tenham apresentaram arrazoados<br />

convincentes para descrê-la a não<br />

ser o fato de que o nome sumeriano<br />

é mais frequentemente grafado como<br />

Adapa e que o hebraico ̉adam aparentemente<br />

é uma boa palavra semítica<br />

mais conectada com o árabe ̉anām e o<br />

babilônio amēlu. 64<br />

Porém, uma evidência encontrada<br />

posteriormente reforçou a tese de<br />

Sayce. Descobriu-se que o signo pa<br />

tinha nalgumas vezes o valor de mu.<br />

O princípio que governava a transcrição<br />

de nomes e palavras era a seleção<br />

de caracteres cujo som pudesse ser<br />

harmonizado com seu significado original.<br />

Nesse caso, a última sílaba de<br />

um nome grafado como Ada-um era<br />

representada por um ideograma que<br />

não apenas tinha a representação fonética<br />

de um, mas também significava<br />

“homem”. Adapa era para ser lido<br />

Adawa ou Adamu e isso é idêntico a<br />

Adão tanto em fonética quanto em<br />

etymologia e significado. 65<br />

Adapa também é formado do pó<br />

da terra, exatamente como diz em<br />

Gênesis 2:7, embora em seu caso<br />

haja a estranha mistura de carne e<br />

sangue proveniente de um deus imolado.<br />

Segundo o que encontramos<br />

no poema do Athrahasis, depois que<br />

houve a batalha celestial envolvendo<br />

os Annakins e os Igigi, Geshtu-e (um<br />

dos rebeldes) foi escolhido para ser<br />

morto. O motivo era para que a partir<br />

de seu sangue (misturado com carne<br />

e barro) Ninmah pudesse, com o au-<br />

xílio de Enki, prosseguir na criação<br />

do ser humano.<br />

Num outro tablete também é dito<br />

que Adapa, foi o responsável por trazer<br />

os seres humanos para habitarem<br />

em Eridu. Mas antes de chegar ali, eles<br />

andaram errantes pelo deserto (literalmente,<br />

pelas “terras secas”), dividindo<br />

o território com animais selvagens. À<br />

semelhança do Adão bíblico, esses seres<br />

humanos andavam originalmente<br />

nus! Eles viviam naturalmente assim<br />

desde que foram colocados para trabalhar<br />

na planície de edin tendo os animais<br />

por companhia (o texto é dúbio<br />

quanto à convivência pacífica ou não<br />

do homens com esses animais).<br />

Um vaso de alabastro datado do<br />

terceiro milênio a.C. foi encontrado<br />

em Uruk, cidade vizinha de Eridu.<br />

Nele há uma fila de homens nus oferecendo<br />

à deusa Ianna cestas cheias<br />

de colheitas. Alguns especialistas têm<br />

interpretado que esses homens seriam<br />

sacerdotes, trabalhadores do campo<br />

ou adoradores numa cerimônia litúrgica<br />

que remetia sua memória a esse<br />

tempo em que os homens ainda não<br />

precisavam de roupas para se vestir<br />

(compare com Gn 2:25).<br />

Os sumérios também tinham uma<br />

versão parecida com alguns elementos<br />

que aparecem em Gênesis 3. Num dos<br />

tabletes é dito que Ninhursag a consorte<br />

de Enki, incumbiu seu amado, de cuidar<br />

dos animais e do jardim. Mas ele se<br />

tornou curioso e seu assistente, Adapa,<br />

selecionou sete plantas proibidas e lhas<br />

ofereceu. Enki ficou então doente e sentiu<br />

dores em sua costela. O sinal gráfico<br />

para “costela” em sumério é “Ti” que<br />

quer dizer tanto “costela” como “vida”.


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 35<br />

Os outros deuses convenceram<br />

Ninhursag a resolver a questão. Ela,<br />

então, criou Ninti (Nin= Senhora; Ti<br />

costela) para curar Enki e dar-lhe vida.<br />

Na versão bíblica, Eva (que significa<br />

“vida”), é criada da costela de Adão.<br />

Noutra versão ainda mais elaborada,<br />

Adapa, criado sem imortalidade,<br />

é obrigado a comparecer perante<br />

os deuses por causa de seu erro (ele<br />

quebrou o vento sul com a vela de seu<br />

barco). Um ser divino que nalguns<br />

momentos aparece como guardião do<br />

submundo, noutros como guardião do<br />

portal dos deuses, oferece-se como<br />

intercessor para levá-lo às divindades.<br />

É esse mesmo guardião, que a mando<br />

de Anu, coloca diante de Adapa um<br />

alimento proibido que só os deuses<br />

poderiam consumir para ter vida eterna.<br />

Se Adapa cedesse em experimentar<br />

o banquete, certamente morreria,<br />

mas, diferente do Adão bíblico, ele se<br />

recusou comer o alimento dos deuses,<br />

razão pela qual é elogiado. Como recompensa<br />

por sua esperteza e sabedoria,<br />

Enki dá a Adapa um conhecimento<br />

proibido aos homens e restrito aos<br />

deuses. O guardião que ajuda homem<br />

a obter esse conhecimento secreto é<br />

Ningishzida, um ser associado nos<br />

mitos sumerianos tanto à serpente<br />

quando ao dragão alado. Seu nome<br />

significa “senhor da árvore cobiçável”,<br />

expressão que novamente nos<br />

remete a Gênesis 3:6.<br />

Num texto babilônico posterior, o<br />

mesmo episódio acontece tendo como<br />

protagonista Enkidu, um amigo de<br />

Gilgamesh (lendário herói sumeriano)<br />

que seduzido por uma cortesã da<br />

deusa Ishtar passa a ter um “conhe-<br />

cimento pleno” (similar ao “conhecimento<br />

do bem e do mal”). Após esse<br />

ocorrido, Ishtar lhe declara: “Você<br />

agora é um conhecedor, Enkidu. Você<br />

será igual aos deuses”.<br />

Sobre “a árvore da vida” é importante<br />

dizer que essa expressão não<br />

ocorre em nenhum texto sumeriano<br />

descoberto até hoje. Contudo, ela<br />

pode ser deduzida das representações<br />

iconográficas de rituais religiosos<br />

em que uma árvore sagrada aparece<br />

como elemento de destaque. É o caso<br />

da tradição posterior acerca da árvore<br />

sagrada de kiskanu, que foi plantada<br />

no túmulo de Adapa, em Eridu, para<br />

homenageá-lo e servir de referencial<br />

para rituais religiosos. 66<br />

Uma mescla entre os mitos de<br />

Adapa e o dilúvio, fez com que o<br />

primogênito da humanidade fosse<br />

cultuado como um herói, recebendo<br />

o título de Abgallu, isto é, ab=água,<br />

gal=grande, lu=homem.<br />

Os tabletes trazem ainda uma lista<br />

de reis sumerianos que governaram<br />

Eridu por assombrosa quantidade de<br />

tempo (“milhares de anos”, conforme<br />

o entendimento dos tradutores). Sua<br />

dinastia, no entanto, é bruscamente<br />

interrompida pela frase “então veio o<br />

dilúvio”. Assim fala-se de monarcas<br />

pré e pós diluvianos (compare com<br />

Gênesis 5 e 10).<br />

A inundação foi tão intensa que<br />

apenas alguns se salvaram liderados<br />

por Utnapishtim ou Ziuzudra. Ele foi<br />

orientado pelo deus Enki a construir<br />

um barco e assim sobreviver às águas<br />

abismais que cairiam sobre a terra.<br />

À semelhança da história bíblica de<br />

Noé, ele também leva animais e pes-


36 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

soas consigo no barco. Até que depois<br />

do periodo de chuvas, o barco encalha<br />

no topo de uma cordilheira montanhosa.<br />

Para garantir se as águas haviam<br />

mesmo abaixado Utnapishtim<br />

solta uma pomba, mas ela retorna.<br />

Depois de alguns dias ele solta um<br />

corvo e esse não voltou. Era o sinal<br />

de que havia terra seca e eles poderiam<br />

sair em segurança. Uma vez são<br />

e salvo, o herói oferece um sacrifício<br />

aos deuses Anu e Enlil que respiram<br />

a fumaça e ficam satisfeitos.<br />

co n c l u S ã o<br />

A disposição comum de muitos<br />

comentaristas já não é atribuir à Bíblia<br />

a “invenção” de seus relatos e<br />

sim de havê-los plagiado ou copiado<br />

desses mitos mesopotâmicos. Mas<br />

não precisamos, necessariamente optar<br />

por essa conclusão apenas por ser<br />

o caminho mais fácil de se interpretar<br />

as coincidências. Excelentes trabalhos<br />

foram publicados questionando<br />

a ideia comum de que o Gênesis seja<br />

o resultado “adaptado” de um emprétimo<br />

litetário feito pelos judeus na<br />

vasta literatura mesopotâmica. 67<br />

Notemos, ainda, esta importante<br />

observação de Wenham: “O pano de<br />

fundo do Gênesis no Antigo Oriente<br />

está focado em questões diferentes<br />

daquelas que ocupam os leitores modernos.<br />

Ele afirma a unidade de Deus<br />

em face ao politeísmo; sua justiça,<br />

em lugar de seus caprichos; seu poder<br />

como o oposto de sua impotência; sua<br />

preocupação pela humanidade, ao invés<br />

de sua exploração dela. Ao passo<br />

que a Mesopotâmia prende-se à sabedoria<br />

do homem primevo, o relato do<br />

Gênesis apresenta seu pecado e desobediência.<br />

Como cristãos tendemos a<br />

assumir esses pontos em nossa teologia,<br />

mas, via de regra, falhamos em<br />

reconhecê-los na estrita originalidade<br />

da mensagem de Gênesis 1-11… Em<br />

todos esses casos não há nenhuma<br />

evidência do mais simples empréstimo<br />

literário feito pelo escritor hebreu.<br />

É claro que seria mais fácil supor que<br />

ele tivesse plagiado vários motivos<br />

mitológicos, transformado-os e integrado-os<br />

a uma história nova e original<br />

de sua própria autoria. Só que, enquanto<br />

Adapa respeitou o mundo do<br />

deus Ea e não comeu o fruto proibido,<br />

Adão e Eva rejeitaram a ordem do Senhor<br />

e seguiram a serpente.” 68<br />

De fato, embora tenhamos destacados<br />

neste artigo várias semelhanças entre<br />

o relato bíblico e as versões mitológicas<br />

sumerianas, essas continuidades estão<br />

claramente restritas àqueles elementos<br />

do mito que podem evidenciar traços comuns<br />

de historicidade dos fatos. Os paralelos<br />

verificados constituem não uma<br />

emulação ou endosso da cultura pagã,<br />

mas uma subversão dela. As posições<br />

teológicas do Gênesis e da literatura sumeriana<br />

são tão oponentes entre si, que<br />

ainda que o autor bíblico tenha tido algum<br />

contato com qualquer desses mitos,<br />

certamente escreveu com o fim de refutá-los<br />

e não de inspirar-se neles. Existe<br />

uma grande controvérsia entre as fontes<br />

no que diz respeito às afirmações sobre<br />

Deus, a origem do universo e o propósito<br />

da criação humana.<br />

K. A. Kitchen observa que “a suposição<br />

comum de que esse relato<br />

[bíblico] é simplesmente uma versão<br />

simplificada de lendas babilônicas é


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 37<br />

um sofisma em suas bases metodológicas.<br />

No Antigo Oriente Próximo, a<br />

regra é que relatos e tradições podem<br />

surgir (por acréscimo ou embelezamento)<br />

na elaboração de lendas, mas<br />

não o contrário. No Antigo Oriente,<br />

as lendas não eram simplificadas para<br />

se tornar pseudo-histórias como tem<br />

sido sugerido para o Gênesis” 69<br />

Quanto às alegadas semelhanças<br />

estruturais entre o relato bíblico da<br />

criação e os tabletes do Enuma Elish,<br />

ou o paralelo literário entre a história<br />

de Noé e o épico de Athrahasis, essas<br />

podem ser explicados não na dependência<br />

literária por parte do autor bíblico,<br />

mas no fato de que aquelas tradições<br />

(no que diz respeito à maneira<br />

de pensar e escrever) faziam parte do<br />

contexto cultural de todo o Oriente<br />

Médio desde o Crescente Fértil até o<br />

Egito. 70 Um jovem brasileiro do final<br />

do século 19 e início do século 20, que<br />

estivesse apaixonado por uma donzela,<br />

não precisaria necessariamente<br />

“conhecer” Castro Alves, Casimiro<br />

de Abreu ou Fagundes Varela para de<br />

declarar de modo completamente romantico,<br />

com uma fraseologia similar<br />

à dos autores mencionados. Bastavalhe<br />

ecoar o inconsciente coletivo de<br />

sua geração. Ele havia visto a abolição<br />

dos escravos, a proclamação da<br />

República, a divulgação de ideais<br />

nacionalistas. Isso seria mais que suficiente<br />

para explicar as semelhanças<br />

sem recorrer à tese mais simples de<br />

uma dependência literária de autores<br />

prévios. Afinal, todos estavam sob a<br />

influência cultural do romantismo.<br />

Num primeiro momento, podemos<br />

dizer que o que mais chamou a<br />

atenção em nossa pesquisa comparative<br />

foram os desvínculos teológicos<br />

entre o Gênesis e os mitos sumerianos.<br />

Além daquelas já mencionadas<br />

por Wenham, podemos ainda anotar<br />

as seguintes descontinuidades:<br />

1 – Os mitos simplesmente não<br />

concebem a unicidade do conceito de<br />

Deus. Seu ponto de partida é a necessária<br />

existência de múltiplos deuses.<br />

Cada um criando um elemento cosmico<br />

diferente: Anu cria os as estrelas<br />

e constelações, Enki e Ninmah criam<br />

o homem, Marduk cria a terra com o<br />

sangue de Tiamat e Mummu é aquele<br />

que dá forma às coisa criadas. A<br />

singularidade bíblica se evidência no<br />

texto de abertura: “No princípio criou<br />

Deus os céus e a Terra” (Gn 1:1). Um<br />

único é protagonista causador todos<br />

os elementos criados.<br />

2 – A opção por um único Deus,<br />

que antecede em existência ao universo<br />

e causa sua existência por meio<br />

de um ato criador é outro elemento<br />

estranho, antagônico à cultura mesopotâmica.<br />

Para os sumérios (e também<br />

para os assírios, egípcios e gregos)<br />

os deuses não criam o universo;<br />

são filhos dele. No Enuma Elish, por<br />

exemplo, forças cósmicas primordiais<br />

(Tiamat – a água abismal e Apsu – a<br />

água refrescante) se unem e geram um<br />

grupo de seres místicos que, por sua<br />

vez, fazem nascer em relações incestuosas<br />

os primeiros deuses Antu, Anu<br />

(patronos do céu) e Ki (deusa mãe da<br />

terra). Eles são irmão e novamente se<br />

relacionam incestuosamente formando<br />

novos deuses como Enki (Ea), Ninhursag,<br />

Enlil e outros. Depois disso,<br />

num interminável intercurso sexual


38 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

surgem mais e mais divindades que,<br />

ao contrário de Yahweh (sem começo<br />

e sem fim), não apenas nascem, mas<br />

podem morrer, mesmo se dizendo<br />

imortais. Aparentemente é a comida<br />

celeste recusada por Adapa que lhes<br />

garante a vida eterna.<br />

3 – A criação nos mitos mesopotâmicos<br />

ocorre por gestação, projeção<br />

seminal ou batalha, provocando separação<br />

entre partes. Até a morte de<br />

um deus pode ser necessária para o<br />

surgimento de uma nova vida. Esse<br />

foi, como vimos no caso de Geshtu-e,<br />

eleito depois da batalha dos anunakis<br />

para ser imolado e, com o seu sangue,<br />

Enki e Ninmah poderem criar os<br />

primeiros seres humanos. No versão<br />

do Gênesis, Deus concede a Adão o<br />

seu próprio fôlego de vida e não o<br />

sangue de uma criatura sacrificada. A<br />

ideia parece ser afirmar que definitivamente,<br />

não temos nenhum DNA de<br />

rebeldes celestiais!<br />

4 – Ainda sobre a criação por separação<br />

entre partes, no épico “Gilgamesh,<br />

Enkidu e o mundo dos mortos”<br />

é preciso que a terra se desprenda<br />

definitivamente do céu para que seja<br />

iniciada a criação. Diz o texto: “Nos<br />

dias primevos, nos mais primevos<br />

dos dias, nos antigos dias quando<br />

tudo que é vital foi gerado… quando<br />

o céu foi removido da Terra, quando<br />

o nome do homem foi fixado, quando<br />

[o deus] An ficou encarregado do céu<br />

e Enlil ficou encarregado da Terra. 71<br />

Na versão bíblica, ainda que haja referência<br />

à separação entre as águas,<br />

entre a luz e as trevas etc, Deus não<br />

precisou batalhar com ninguém para<br />

trazer o mundo e o universo à existên-<br />

cia. Tudo foi criado por sua Palavra,<br />

uma categoria de criação jamais encontrada<br />

em qualquer ponto da literatura<br />

analisada nesta pesquisa.<br />

5 – O Gênesis desmitifica também<br />

a ideia personalizada do céu, dos astros,<br />

da terra e das águas abismais como sendo<br />

forças cósmicas anteriores a alguns<br />

deuses e reprodutores de seres celestiais.<br />

O sol, a lua, as estrelas são descritos<br />

apenas como “luzeiros” inanimados<br />

para governar (i.e. direcionar diante do<br />

observador astronômico) o dia, a noite,<br />

as estações etc. Eles não têm qualquer<br />

influência na criação ou no destino do<br />

ser humano (Gn 1:14-16).<br />

6 – Na literatura sumeriana a natureza<br />

tem vida em si mesma e poderes<br />

mágicos semelhantes aos deuses. No<br />

texto de encantamentos intitulado “O<br />

verme e a dor de dente” é dito que a<br />

terra criou os rios, os rios criaram os<br />

canais, os canais criaram os pântanos e<br />

os pântanos criaram os vermes. Por isso<br />

os mesopotâmicos favoreciam tanto a<br />

prática de encantamentos inspirados no<br />

animismo. A Bíblia jamais admite qualquer<br />

ideia que se associe a isso. Deus é<br />

apresentado como o criador de tudo o<br />

que existe, os pássaros, as árvores, os<br />

rios, etc. Tudo se submete ao seu poder<br />

e nada tem vida em si mesmo.<br />

7 – Alguns indícios da própria<br />

narrativa bíblica dão a entender que,<br />

num primeiro estágio de seu amadurecimento<br />

teológico, os hebreus tinham<br />

uma tendência mais henoteísta<br />

que monoteísta. Noutras palavras, eles<br />

adoravam apenas um Deus (Yahweh),<br />

mas não descriam da existência real de<br />

outros deuses. No seu conceito havia<br />

várias divindades no universo, mas es-


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 39<br />

colheram apenas uma como digna de<br />

adoração. Esse conceito monolátrico<br />

era comum mesmo entre cidades politeístas<br />

que, a exemplo de Eridu e Enki,<br />

escolhiam um deus patrono para ser<br />

adorado dentro de seus limites.<br />

Foi talvez com a ideia de corrigir<br />

uma ideia errônea, popularizada até<br />

mesmo entre o povo hebreu, que o<br />

autor inspirado optou por revelar o tetragrama<br />

sagrado (YHWH) apenas na<br />

segunda parte de seu relato, que nas<br />

edições modernas equivaleria a Gênesis<br />

2:4. No começo ele se limita a<br />

chamar o Criador pelo título genérico<br />

de Elohim. Uma postura, convenhamos,<br />

bem diferente do Enuma Elish,<br />

que já nos primeiros dois parágrafos<br />

elenca pelo nome nove diferentes<br />

divindades (Apsu, Tiamat, Lahmu,<br />

Lahamu, Ansar, Kisar, Anu, Nudimmud<br />

e Mummu). A ideia parece ser<br />

a de mostrar que “Deus” é uma palavra<br />

que não precisa de complemento.<br />

Como não há “vários” deuses, desfazse<br />

a necessidade de explicar “de que<br />

Deus está se tratando”. Deus seria, na<br />

verdade, um sinônimo excluviso de<br />

Yahweh, os demais assim classificados<br />

são seres inexistentes.<br />

8 – Quanto ao propósito divino<br />

para a raça humana, no Gênesis, tudo<br />

no que se refere ao planeta terra parece<br />

ser criado em prol do homem que<br />

seria, por isso formado no ultimo dia.<br />

Na versão bíblica, o criador se assemelha<br />

a um pai que com muito carinho<br />

monta um quarto e um enxoval<br />

para o filho que está para nascer. Só<br />

que, nesse caso, o filho nasce adulto<br />

e entende o que acabou de receber de<br />

presente. Não é difícil imaginar nas<br />

entrelinhas do relato a pergunta de<br />

Deus para Adão e Eva: “Gostaram<br />

da surpresa que preparei para a chegada<br />

de vocês?” Já nos mitos o jardim<br />

de Edinu ou Edin é criado para<br />

o deleite dos deuses. A ideia de criar<br />

a humanidade surge acidentalmente,<br />

sem nenhum desejo prévio pela existência<br />

humana, mas apenas por causa<br />

de uma situação inesperada: a batalha<br />

celestial fez com que os deuses superiores<br />

ficassem sem seus empregados<br />

(os Igigi). Então foi necessário criar<br />

o ser humano, para servir aos deuses<br />

e cuidar do jardim que nunca foi seu,<br />

mas deles. Até a comida produzida na<br />

terra (que na versão bíblica seria para<br />

alimentar Adão, Eva e aos animais),<br />

na versão pagã serve para garantir o<br />

banquete dos deuses.<br />

9 – Ainda nessa sequência do propósito<br />

da raça humana, sua descartabilidade<br />

é vista no mito sumeriano a<br />

partir da razão pela qual os deuses decidem<br />

destruí-la por meio de um dilúvio.<br />

Na versão bíblica a humanidade<br />

se torna altamente má e violenta e por<br />

isso precisa ser exterminada (Gn 6:5 e<br />

6). Na versão sumeriana, os deuses se<br />

enfadam do homem por causa do barulho<br />

que esse fazia durante o trabalho,<br />

perturbando o sono dos imortais.<br />

E quanto às semelhanças, o que<br />

podemos concluir delas? Exatamente<br />

a confirmação da hipótese de trabalho<br />

levantada no início do artigo. É razoável<br />

deduzir pela evidência textual e<br />

arqueológica apresentadas que os restos<br />

que hoje conhecemos de Eridu não<br />

sejam daquela cidade que precedeu à<br />

inundação diluviana, mas de um outro<br />

assentamento com o mesmo nome


40 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

dela. Embora alguns insistam que a<br />

cidade teria sido assentada em cerca<br />

de 5000 a.C., a arqueóloga Jacquetta<br />

Hawkes diz que a arte de se fazer<br />

tijolos queimados (como aqueles que<br />

compõem a arquitetura do sítio) não<br />

poderia ter sido inventada antes de<br />

3000 a.C 72 o que dá uma diferença de<br />

2 mil anos para a datação mais recuada.<br />

Logo, o mais provável é que essa<br />

cidade seja um assentamento posterior<br />

à inundação. O que os novos habitantes<br />

fizeram foi perpetuar em seus<br />

escritos e tradições as memórias (agora<br />

um tanto distorcidas) de um relato<br />

advindo desde os seus ancestrais.<br />

Semelhante aos imigrantes modernos,<br />

que ao chegaram num novo<br />

lugar fundam assentamentos homônimos<br />

àqueles de sua terra natal (“Nova<br />

Trento”, “Nova Hamburgo”, “Nova<br />

Friburgo” etc), é muito provável que<br />

os moradores da suméria ainda preservassem<br />

nomes e comportamentos<br />

que lembravam o local de onde seus<br />

ancestrais haviam saído. Isso também<br />

explicaria hipoteticamente porque os<br />

re f e r ê n c i A S<br />

1 Cf. Terry Mortenson, Thane H. Ury,<br />

ed., Coming to Grips with Genesis – Biblical<br />

Authority and the Age of the Earth<br />

(Green Forest, AR: Master Books, 2008).<br />

Essa antologia de artigos apresenta uma<br />

boa resenha dos autores patrísticos, medievais<br />

e modernos e sua posição sobre<br />

Gênesis 1-11 com fontes primárias. Nossa<br />

discordância segue apenas quanto ao<br />

conceito de inerrância defendido por alguns<br />

dos articulistas.<br />

2 Jó 12:7-10; 38:8-11; Salmo 19:1;<br />

24:2; 102:25; 104:9; Isaías 48:13; 51:13;<br />

dois rios que margeiam a região coincidentemente<br />

recebem nomes de dois<br />

dos quatro rios que havia no Éden, a<br />

saber, “o Tigre e Eufrates”. Afinal, na<br />

própria linguagem sumeriana existem<br />

certas palavras que, acredita-se,<br />

são preservações de um substrato linguístico<br />

anterior “pré-sumeriano”. O<br />

nome desses rios (idiglat e buranun,<br />

em cuneiforme), de várias localidades<br />

(como Edin e Eridu) e de alguns ofícios<br />

(como tibira para metalúrgico ou<br />

naggar para carpinteiro) evidenciam<br />

essa afirmação.<br />

Não cabe à arqueologia “provar”<br />

a Bíblia no sentido de sustentar sua<br />

autoridade, sua procedência divina<br />

ou suas doutrinas que demandam fé.<br />

Contudo, é possível através do método<br />

histórico-arqueológico compreender<br />

o contexto bíblico e confirmar a<br />

veracidade ou pelo menos a “plausibilidade<br />

histórica” de alguns eventos<br />

nela descritos. Sendo assim, o axioma<br />

lógico se torna exato, pois se a história<br />

é real, a teologia que se sustenta<br />

nessa historicidade também o será.<br />

Jeremias 5:22; Amós 9:6; Zacarias 12:1;<br />

Romanos 1:18-25; 5:12-14, 19; 8:19-23;<br />

Colossenses 1:15-20; Hebreus 1:10;4:1-<br />

10; 2 Pedro 3:5; etc.<br />

3 Mateus 19:4; 24:37-39; Marcos<br />

10:2ss.; 13:19; Lucas 11:50-51; etc.<br />

4 A tônica divergente dos alegoristas<br />

era sua simbolização dos dias da semana<br />

da criação e não a historicidade do relato.<br />

Agostinho, por exemplo, ainda que simbolizasse<br />

esses dias, cria que Adão havia<br />

sido criado há menos de 6 mil anos.<br />

Agostinho City of God [NPNF1] vol. 2:<br />

12:10; 18:40.<br />

5 Julius Wellhausen, Prolegomena to


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 41<br />

the History of Ancient Israel (Gloucester,<br />

MA: Peter Smith, 1973), p. 298; Gerhard<br />

von Rad, Old Testament Theology (New<br />

York: Harper & Row, 1962), vol. 1, p.<br />

158 e 159.<br />

6 Adam Kuper, A Reinvenção da Sociedade<br />

Primitiva – transformações de<br />

um mito (Recife: Ed. Universitária da<br />

UFPE, 2008), esp. 17-41.<br />

7 Alguns desses documentos só foram<br />

recuperados em cópias tardias como, por<br />

exemplo, os exemplares achados na biblioteca<br />

de Assurbanipal que datam do<br />

século 7 a.C. Contudo, é praticamente<br />

unânime a opinião de que esse tipo de<br />

literatura remonta a uma tradição que advém<br />

do 3º. 2º. milênios a.C. Cf. W. G.<br />

Lambert, Babylonian Wistom Literature<br />

(Oxford: Oxford University Press, 1996),<br />

p. 1-20; J. M. Durant, “Os Escritos Mesopotâmicos”,<br />

em A. Barucq et. al, Escritos<br />

do Oriente Antigo e Fontes Bíblicas (São<br />

Paulo: Paulinas, 1992), p. 127-186.<br />

8 Joseph Campbell, The Hero with<br />

a Thousand Faces (Novato, CA: New<br />

World Library, 2008), p. 23.<br />

9 Para uma apresentação das correntes<br />

modernas acerca da teorias do mito<br />

cf.: Eleazer M. Meletinsky, The Poetics<br />

of Myth (Nova Iorque, NY: Routledge,<br />

2000), parte 1, p. 13-125.<br />

10 P. A. Brunt, Studies in Greek History<br />

and Thought (Oxford: Oxford University<br />

Press, 2004), p. 75ss.; Walter<br />

Burkert, The Orientalizing Revolution:<br />

Near Eastern Influence on Greek Culture<br />

in the Early Bronze Age (Cambridge:<br />

Harvard University Press 1992), p. 2; G.<br />

Schepens, “The Phoenicians in Ephorus’<br />

Universal History”, em Studia Phoenincia<br />

V, Phoenicia and the East Mediterranean<br />

in the First Milenium B.C. (Louvain:<br />

Orientalia Lovaniensia Analecta,<br />

1987), p. 317.<br />

11 Covington Littleton, The New Comparative<br />

Mythology: An Anthropological<br />

Assessment of the Theories of Georges<br />

Dumezil (Berkeley: University of California<br />

Press, 1973), p. 32ss.<br />

12 De sua obra “História Sagrada”<br />

(Hiera Anagrafê) só temos fragmentos<br />

citados principalmente por Diodorus<br />

Siculus. Cf. G. Booth (trad.), Historical<br />

Library of Diodorus the Sicilian in Fifteen<br />

Books to which are add the fragments<br />

of Diodorus (Londres: 1814), vol. 2, p.<br />

504 e 505. Disponível na íntegra no site<br />

http://books.google.com.br.<br />

13 Os mitos, contudo, só foram vistos<br />

como fontes para História a partir da<br />

construção de uma nova relação entre a<br />

memória e a história, como ressaltou Le<br />

Goff. Nesse sentido, foi de grande importância<br />

o diálogo da História com as<br />

Ciências Sociais. A contribuição de Max<br />

Weber, com o conceito de neutralidade<br />

axiológica, trouxe à baila discussões que<br />

possibilitaram aos historiadores considerar<br />

a seleção consciente ou inconsciente,<br />

as distorções e omissões, como fenômenos<br />

característicos da estrutura social<br />

da memória na construção dos grupos<br />

sociais. J. Le Goff, Memória e História<br />

(Campinas, SP: Editora UNICAMP,<br />

1996); André Ortiz-Osés, Cuestiones<br />

Fronterizas – uma filosofía simbólica<br />

(Rubi, Barcelona: Anthropos Editorial,<br />

1999), p. 9-11 e 19-24.<br />

14 Bruce G. Trigger, A History of Archaeological<br />

Thought (Cambridge: Cambridge<br />

University Press, 2006), p. 217ss.<br />

15 Bruce G. Trigger, “Archaeology<br />

and Epistemology: Dialoguing across the<br />

Darwinian chasm”, em American Journal<br />

of Archaeology (1991), 102:1-34.<br />

16 Herodoto, The History of the Persian<br />

Wars I:178.<br />

17 Entre os vários sítios aonde os arqueólogos<br />

encontraram fontes textuais antigas<br />

destacam-se Uruk, Kish e Ur. De modo especial,<br />

temos um grande número de textos recuperados<br />

do sítio de Nuffar (a antiga Nippur, a<br />

160 km de Bagdá) e Telloh (65km ao norte de


42 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

Ur) que os árabes apelidaram de Tell el-Loh<br />

(a montanha de tabletes). Cf. André Parrot,<br />

Tello, vingt campagnes de fouilles (1877-<br />

1933) (Paris: A. Michel, 1948).<br />

18 A. Falkestein, “Zur Chronologie der<br />

sumerischen Literatur”, em Compte rendu de<br />

la second Rencontre Assyriologique Internationale<br />

2 (1951), p. 12-27.<br />

19 Cf. William W. Hallo, “On Antiquity<br />

of Sumerian Literature”, em Journal of American<br />

Oriental Society 83, n. 2, abril-junho de<br />

1963, p. 167-176.<br />

20 Veja, por exemplo, o questionamento<br />

de David Bidney, “The Concept of Myth and<br />

the Problem of Psychocultural Evolution”,<br />

em American Anthopologist, New Series, vol.<br />

52, n. 1, janeiro-março de 1950, p. 16-26.<br />

21 Gwendolyn Leick, Mesopotâmia, a<br />

invenção da cidade, (Rio de Janeiro: Imago,<br />

2003), p. 14 e 15; Paul Bairoch, Cities and<br />

Economic Development- from the dawn of<br />

History to present (Chicago: Chicago University<br />

Press, 1988), p. 25 e 26; John Reader, Cities<br />

(Nova Iorque: Grove Press, 2004), p. 10.<br />

22 Jack Finegan, Archaeological History<br />

of the Ancient Middle East (Nova Iorque:<br />

Dorset Press, 1979); Michael Rice “‘Dilmun<br />

discovered’ - the archaeology of Bahrain to<br />

the early second millenium BC”, em Asian<br />

Affairs, vol. 17, n. 3, outubro de 1986, p. 252-<br />

263; D. T. Potts, ed., Dilmun: New Studies<br />

in Archaeology and Early History of Bahrain<br />

(Berlim: D. Reimer, 1983); Eric H. Cline,<br />

From Eden to Exile – Unraveling Mysteries<br />

of the Bible (Washington D.C.: National Geographic,<br />

2007), p. 5 e 14; Harriet E. W. Crawford,<br />

Dilmun and its Gulf neighbours (Cambridge:<br />

Cambridge University Press1998), p.<br />

5; Theresa Howard-Carter, “Dilmun: At Sea<br />

or Not at Sea? A Review Article”, em Journal<br />

of Cuneiform Studies, vol. 39, n. 1, spring<br />

de 1987, p. 54-117; idem, “The Tangible Evidence<br />

for the Earliest Dilmun”, em Journal<br />

of Cuneiform Studies, vol. 33, n. 3/4, julhooutubro<br />

de 1981, p. 210-223.<br />

23 Michael Rice, Archaeology of the<br />

Arabian Gulf (Londres: Taylor and Francis<br />

e-Library, 2002), p. 133; Samuel Noah Kramer,<br />

The Sumerians, Their History, Culture<br />

and Character (Chicago: The University of<br />

Chicago Press, 1972), p. 281.<br />

24 A rigor Dilmun se refere mais a uma<br />

região que a uma cidade específica. No entanto,<br />

alguns textos a descrevem como um<br />

centro urbano. Nesse caso, sugerimos a<br />

possibilidade de falar de pelo menos duas<br />

localidades chamadas de Dilmun. Uma idílica,<br />

pré-diluviana, e outra posterior com o<br />

mesmo nome, que manteve comércio com os<br />

assírios. As mais antigas menções a Dilmun<br />

vêm de tabletes datados do início do terceito<br />

milênio escavados nos alicerces do Templo<br />

da deusa Ianna em Uruk. Mas há outras menções<br />

posteriores a uma certa Dilmun (bem<br />

menos idílica do que a primeira) que fazia<br />

comércio com a Babilônia e posteriormente<br />

com a Assíria. Uma dessas menções está num<br />

tablete encontrado em Nippur e datado de c.<br />

de 1370 a.C. (período da dinastia kassita de<br />

Babilônia). Outras menções estão em inscrições<br />

assírias e neoassírias aonde o rei da<br />

Assíria é proclamado como “Governante de<br />

Dilmun e Meluhha”. Os tabletes falam, inclusive,<br />

de tributos que o rei da Assíria recebia<br />

de Dilmun.<br />

25 Cf. uma tradução do texto em James<br />

B. Pritchard, ed., Ancient Near Eastern Texts<br />

– Relating to the Old Testament [doravante:<br />

ANET] (Princenton: Princenton University<br />

Press, 1955), p. 37-41.<br />

26 Roberto Ouro, “The Garden of Eden<br />

Account: The Chiastic Structure of Genesis<br />

2-3”, em Andrews University Seminary Studies<br />

40, Autum 2002, p. 226.<br />

27 Michael Rice, p. 145.<br />

28 Alfred Hamori, “The origin of the Sumerians<br />

and the great flood”, pesquisa realizada<br />

no site http://users.cwnet.com/millenia/<br />

Summer-origins.htm. Acessado em 2 de abril<br />

de 2010.<br />

29 S. R. Driver, The Book of Genesis<br />

(London: Methuen & Co, Ltd., 1938), p. 38;<br />

R. Laird Harris, Gleason Archer, and Bruce<br />

Waltke, ed., Theological Wordbook of<br />

the Old Testament, vol. 2 (Chicago: Moody<br />

Press, 1980), p. 646.<br />

30 Richard James Fischer, Historical Genesis<br />

– From Adam to Abraham (Lanham, MD:<br />

University Press of America, 2008), p. 44.<br />

31 Que na verdade era também sua bisneta.<br />

32 Por isso, alguns especialistas desistiram<br />

de fazer qualquer comparação entre Dil-


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 43<br />

mun e o Éden, mas as semelhanças, a nosso<br />

ver, ainda são muito notáveis para serem olvidadas.<br />

Cf. Kenton L. Sparks, Ancient Texts<br />

for the Study of the Hebrew Bible – A Guide<br />

to the Background Literature (Peabody, MA:<br />

Hendrickson Publishers, 2006), p. 307, 308.<br />

33 Na versão sumeriana, ela mistura carne<br />

com sangue de um Deus sacrificado. ANET,<br />

p. 99ss.<br />

34 Cf. H. Wright, “Problems of Absolute<br />

Chronology in Proto-Historic Mesopotamia”,<br />

em Paléorient 6 (1980), p. 93-98; J. Mellaart,<br />

“Egyptian and Near Easter Chronology: a Dilemma?”<br />

em Antiquity 53 (1979), p. 6-18;<br />

Michael G. hasel, “Recent Developments<br />

in Near Eastern Chronology and Radiocarbon<br />

Dating”, em Origins 56 (2004), p. 6-31,<br />

Rodrigo P. Silva, Escavando a Verdade – a<br />

arqueologia e as incríveis histórias da Bíblia<br />

(Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira,<br />

2008), p. 33-44.<br />

35 Vere Gordon Childe, What Happened<br />

in History? (Nova Iorque: Penguin Books,<br />

1954), p. 49ss.<br />

36 Com algumas modificações essa ideia<br />

é compartilhada por autores como Yohanan<br />

Ahaoroni, Amihai Mazar, Thomas Levy, James<br />

Sauer e outros.<br />

37 Sobre as estimativas populacionais e<br />

os critérios para se chegar a certos números<br />

cf.: Tartius Chandler, Four Thousand Years<br />

of Urban Growth: An Historical Census<br />

(Lewiston: St. Gavid’s 1987); George<br />

Modelski, “Cities of the Ancient World:<br />

An Inventory (3,500 to 1,200)”, Monografia<br />

do Departamento de Ciências Políticas<br />

da Universidade de Washington, disponível<br />

em http://faculty.washington.edu/modelski/<br />

WCITI2.html. Alguns autores mais comedidos<br />

sugerem uma população em torno de<br />

12,5 mil habitantes, enquanto outros falam<br />

de até 80 mil habitantes. Cf. Paul Bairoch,<br />

Cities and Economic Development (Chicago:<br />

University of Chicago Press, 1988); A. Fekri<br />

Hassan, Demographic Archaeology (Nova<br />

Iorque: Academic Press 1981); Mark Van de<br />

Mieroop, The Ancient Mesopotamian City<br />

(Oxford: Oxford University Press, 2004), p.<br />

97 e 108, nota 14.<br />

38 P. Sanlaville, “Considérations sur<br />

l’évolution de la Basse Mésopotamie au cours<br />

des derniers millénaires”, Paléorient, 15/2,<br />

1989, p. 5-27; Susan Pollock, Ancient Mesopotamia<br />

(Cambrigde: Cambrigde University<br />

Press, 2004), p. 34 e 35; Douglas J. Kennett,<br />

James P. Kennett, “Early State Formation in<br />

Southern Mesopotamia: Sea Levels, Shorelines,<br />

and Climate Change”, em The Journal of<br />

Island and Coastal Archaeology, vol. 1, n. 1,<br />

julho de 2006, p. 67-99.<br />

39 John Oates, “Ur and Eridu, the Prehistory”,<br />

em Iraq, n.s., 22, 1960, p. 33; Michael<br />

Wood, Legacy: The Search for Ancient Cultures<br />

(New York: Sterling, 1994), p. 21-24.<br />

Alguns sugerem um máximo de 18 níveis de<br />

ocupação. Cf. Leick, p. 27.<br />

40 A rigor, a primeira menção bíblica à<br />

construção de um altar vêm-nos da experiência<br />

de Noé. Contudo, é possível deduzir, por<br />

inferência, a presença de altares nas ofertas<br />

sacrificais apresentadas por Caim e Abel (Gn<br />

4:1-7) e na referência às peles de animais que<br />

vestiram Adão e sua mulher. Segundo alguns,<br />

essas seriam as peles de algum animal oferecido<br />

em sacrifício, o primeiro holocausto do<br />

planeta (Cf. Gn 3:21).<br />

41 Moshe Weinfeld, The Promise of the<br />

Land - The Inheritance of the Land of Canaan<br />

by the Israelites (Berkeley: University of<br />

California Press, 1993), p. 37 e 38.<br />

42 Sumerian Lexicon, p. 45 - 3.0 versão<br />

digital. Disponível em www.sumerian.org/<br />

sumerlex.htm; também em PDF em http://<br />

www.scribd.com/doc/502645/Sumerian-Lexicon.<br />

43 P. Charvát, Mesopotamia Before History<br />

(Praga: Oriental Institute, 2002), p. 55<br />

44 De acordo com os assiriologistas, a<br />

interpretação de alguns tabletes e dos nomes<br />

dados a diferentes torres podem sugerir múltiplas<br />

funções para as mesmas. Por exemplo:<br />

duas torres são dedicadas à divindade padroeira<br />

da cidade; três envolvem um louvor<br />

mais generalizado, duas torres têm ligação<br />

com a montanha sagrada aonde habitam os<br />

deuses (sua função era levar os homens aos<br />

deuses representados pelo Patesi). Em seis<br />

casos, as torres funcionariam como morada<br />

dos deuses (trazer a divindade aos homens).<br />

Quatro torres parecem claramente ter a função<br />

de uma escadaria ligando a Terra ao céu<br />

e também existe a ideia de fuga diante de um


44 / Pa r o u s i a - 1º s e m e s t r e d e 2010<br />

possível dilúvio. Também não é inverossímil<br />

supor que as torres pudessem ter todas essas<br />

funções ao mesmo tempo ou pelo menos uma<br />

parte delas.<br />

45 Veja a opinião de Leick, p. 147-150.<br />

46 Seu livro não tem gozado de muita<br />

aceitação no muito acadêmico, mas existem<br />

entusiasmados seguidores de sua teoria. Cf.<br />

David Rohl, Legend: The Genesis of Civilisation<br />

(Londres: Century, 1998).<br />

47 S. N. Kramer, “The ‘Babel of Tongues’:<br />

A Sumerian Version”, em Journal of<br />

the American Oriental Society 88, 1968, p.<br />

109, 111.<br />

48 George Smith, The Chaldean Account<br />

of Genesis (New York: Scribner, Armstrong<br />

& Co., 1876), p. 160 e 161 (fac-símile publicada<br />

em Londres: Adamant Media Corporation,<br />

2005).<br />

49 Os mais especializados autores que discutem<br />

o nome e as etimologia de Eridu são:<br />

Thorkild Jacobsen, “Some Sumerian city-names”,<br />

em Journal of Cuneiform Studies 21,<br />

1967, p. 100-103 e Margaret Whitney Green<br />

que escreveu uma tese doutoral na Universidade<br />

de Chicado cuja tema é justamente uma<br />

análise de Eridu à luz da arqueologia, da história<br />

e da mitologia mesopotâmica. Cf. Eridu<br />

in Sumerian Literature (Chicago: University<br />

of Chicago, 1975), p. 149-150.<br />

50 Leick, p. 24.<br />

51 Jacobsen, p. 102; Steible, Altsumerische<br />

Inschriften, p. 110 e 111; APUD Monika<br />

Ottermann, Tese doutoral, As Brigas Divinas<br />

de Inana. Reconstrução Feminista da<br />

Repressão e Resistência em torno de uma<br />

Deusa. Pesquisa feit no site http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.<br />

php?codArquivo=1016. Acessado em 10 de<br />

maio de 2010.<br />

52 Leick, p. 24.<br />

53 Eckkard Unger, Reallexicon der Assyriologie<br />

und Vorderasiatischen Archäologie<br />

2, 1938, p. 467.<br />

54 Cf. A tese doutoral de Alhena Gadotti,<br />

‘Gilgamesh, Enkidu and the Netherworld’<br />

and the Sumerian Gilgamesh Cycle. (Baltmore:<br />

Johns Hopkins, 2005), p. 305; Naomi F.<br />

Miller, Alhena Gadotti, “The KHALUB-tree<br />

in Mesopotamia: Myth or Reality?”, em Andrew<br />

S. Fairbairn e Ehud Weiss, ed., From<br />

Foragers to Farmer - Papers in honour of<br />

Gordon C. Hillman (Oxford: Oxbow Books<br />

2009), p. 239-243; Nili Wazana, “Anzu and<br />

Ziz: Great Mythical Birds in Ancient Near<br />

Eastern, Biblical, and Rabinical Traditions”,<br />

em The Journal of Near Eastern Society, vol.<br />

31, março de 2009, p. 111-135.<br />

55 S. N. Kramer, The Sumerians (Chicago:<br />

University of Chicago Press, 1963), capítulo<br />

5.<br />

56 Veja nota 25.<br />

57 Claude Levi-Strauss, “The Structural<br />

Study of Myth”, em Structural Anthropology<br />

(Nova Iorque: Basic Books, 1963), p. 208.<br />

58 Veja o texto em “The Journey Of The<br />

Water-God To Nippur” traduzido por Samuel<br />

Noah Kramer.<br />

59 Gwendolyn Leick, A Dictionary of Ancient<br />

Near Eastern Mythology (New York:<br />

Routledge, 1998), p. 7; Jeremy Black e Anthony<br />

Green, Gods, Demons and Symbols of<br />

Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictionary<br />

(Waco, TX: University of Texas Press<br />

1992), p. 34.<br />

60 Igigi é a forma plural, o singular seria<br />

Igigu.<br />

61 Esse detalhe dos números aparece apenas<br />

numa versão babilônica tardia do Enuma<br />

Elish, nas linhas 39-69, mas a batalha celestial<br />

(incluindo a expulsão de alguns do céu)<br />

já é testemunhada em fragmentos sumerianos<br />

mais antigos. Cf. ANET, 57-59. Sobre os<br />

números 600 e 300 e comentários sobre os<br />

respectivos textos que os contêm cf.: Wayne<br />

Horovitz, Mesopotamian Cosmic Geography<br />

(Wiona Lake, IN: Eisenbrauns, 1998), p. 124;<br />

F. Rochberg “Mesopotamian Cosmology”,<br />

em Noriss S. Hetherington, ed., Cosmology,<br />

Historical Literary, Philosophical, Religious,<br />

and Scientific Perspectives (Nova Iorque:<br />

Garland Publishing 1993), p. 43; A. R. George,<br />

Babilonian Topographical Texts [Orientalia<br />

Lovaniensia Analecta] (Louvain: Peeters<br />

Press 1992), p. 367-369.<br />

62 Gwendolyn Leick, A Dictionary of Ancient<br />

Near Eastern Mythology (Nova Iorque:<br />

Routledge, 1998), p. 85<br />

63 A. H. Sayce, The Archaeology of<br />

Cuneiform Inscriptions (Londres: Society for<br />

Promotion of Christianity, 1908), p. 91. Obra<br />

em arquivo PDF, digitalizado pela Microsoft


a su m é r i a e o s t e s t e m u n h o s e x t r a b í b l i c o s d e Gê n e s i s 1-11 / 45<br />

Corporation da Universidade de Toronto.<br />

64 Stephen Langdon, Tammuz and Ishtar:<br />

A Monography upon Babylonian Religion<br />

and Theology, (reprodução digitalizada Bibliolife<br />

LCC) 1914, p. 32 e 33, obra de domínio<br />

público disponível em http://extratorrent.<br />

com. 65 A. T. Clay, The Origins of Biblical Traditions<br />

Hebrew Legends in Babylonia and Israel<br />

(Nova Iorque: The Book Tree, 1999 facsímile<br />

da edição original de 1923), p. 109.<br />

66 Fischer, p. 42; E. O. James, The Tree of<br />

Life (Leiden: E. J. Brill, 1966), p. 13 e 41.<br />

67 Veja por exemplo: G. Hasel, “The Significance<br />

of the Cosmology in Genesis I in<br />

Relation to Ancient Near Eastern Parallels”,<br />

em Andrews University Seminary Studies 10,<br />

1972, p. 1-20; idem, “The Polemic Nature<br />

of the Genesis Cosmology”, em Evangelical<br />

quarterly 46, 1974, p. 81-102. Veja também a<br />

coletânea de artigos publicada por Richard S<br />

Hess e David Toshio Tsumura, ed., I Studied<br />

Inscriptions before the Flood: Ancient near<br />

Eastern, Literary, and Linguistic Approaches<br />

to Genesis 1-11, (Winona Lake, IN: Eisenbrauns,<br />

1994). De modo especial veja o artigo<br />

de Hess ‘One hundred fifty years of comparative<br />

studies on Genesis 1-11: an overview’.<br />

68 Gordon J. Wenham. Word Biblical<br />

Commentary.Genesis 1-15 (Waco, TX: Word<br />

Incorporated, 1987), p. 1 e 53.<br />

69 K. A. Kitchen, Ancient Orient and Old<br />

Testament (Downers Grove, IL: Inter Varsity<br />

Press, 1966), p. 89.<br />

70 Uma crítica à excessiva equiparação<br />

literária entre o Gênesis e a literatua sumeriana<br />

pode ser encontrada em Walter C. Kaiser,<br />

“The literary form of Genesis 1-11”, em J. P.<br />

Payne, JP, ed., New Perspectives on the Old<br />

Testament (Waco, TX: Word Books, 1970).<br />

7 Texto baseado na tradução inglesa de S.<br />

N. Kramer, From the Poetry of Sumer: Creation,<br />

Glorification, Adoration (Berkeley, CA:<br />

University of California Press, 1979), p. 23.<br />

72 Jacquetta Hawkes, The Atlas of Early<br />

Man (New York: St. Martin’s, 1976), p. 50, 76.

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