UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR - Revista ...
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PRESENÇA<br />
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DE</strong> <strong>RONDÔNIA</strong> - <strong>UNIR</strong>
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
<strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>UNIVERSIDA<strong>DE</strong></strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>FE<strong>DE</strong>RAL</strong> <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> <strong>RONDÔNIA</strong><br />
<strong>RONDÔNIA</strong><br />
C E N T R O D O I M A G I N Á R I O S O C I A L<br />
LABORATÓRIO <strong>DE</strong> GEOGRAFIA HUMANA E PLANEJAMENTO AMBIENTAL<br />
PRESENÇA PRESENÇA - ISSN ISSN 1413<br />
1413<br />
ISSN 1413-6902 6902<br />
Ano V n° 11 – Mar. – 1998 – Publicação Trimestral<br />
<strong>Revista</strong> de Educação, Cultura e Meio Ambiente<br />
APROVADO PELO CONSEPE/UFRO RESOLUÇÃO N° 0122/1994<br />
Editor:<br />
JOSUÉ COSTA<br />
CONSELHO EDITORIAL:<br />
Sílvio Sanches Gamboa Nídia Nacib Pontuschka<br />
UNICAMP USP<br />
Miguel Nenevé Mário Alberto Cozzuol<br />
UFRO UFRO<br />
Clodomir Santos de Morais Arneide Badeira Cemin<br />
UFRO UFRO<br />
As matérias encaminhadas deverão ter entre três e quinze laudas (tamanho A4), espaço 1.0, fonte arial 12, em<br />
disquete 3 ½ pol., formatados em “Word for Windows”. Os trabalhos deverão conter a data de elaboração e o<br />
endereço completo do autor.<br />
PRESENÇA, <strong>Revista</strong> de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto<br />
Velho, Fundação Universidade Federal de Rondônia. V.1, 1993.<br />
Trimestral<br />
1. Educação - Periódico<br />
2. Meio ambiente - Periódico<br />
CDU 37(05)<br />
Foto: Lavagem de Louça - Beradão, Rondônia - Josué da Costa<br />
Leiaute e Diagramação: Sheila Castro dos Santos<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
SUMÁRIO SUMÁRIO SUMÁRIO SUMÁRIO<br />
EDITORIAL.......................................................................................................04<br />
REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO ESCOLAR.............................................05<br />
LUÍS ALBERTO LOURENÇO <strong>DE</strong> MATOS<br />
MITO E LUGAR - PARTE V.............................................................................13<br />
JOSUÉ COSTA*<br />
COLONIZAÇÃO, TRABALHO E NATUREZA...............................................21<br />
JANUÁRIO AMARAL*<br />
OS NARRADORES DA PRAÇA DA REPÚBLICA E DA CIDA<strong>DE</strong> DAS<br />
LEIS.....................................................................................................................24<br />
VAL<strong>DE</strong>MIR MIOTELLO<br />
DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO.............................................28<br />
CARLOS CORRÊA TEIXEIRA<br />
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS DA<br />
VIOLÊNCIA.......................................................................................................44<br />
ANTÔNIO GUIMARÃES BRITO*<br />
REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA <strong>DE</strong> CONCEITO: O CASO DA<br />
COLONIZAÇÃO DO MA<strong>DE</strong>IRA DURANTE O SÉCULO XIX.....................50<br />
DANTE RIBEIRO DA FONSECA<br />
O PROCESSO <strong>DE</strong> GLOBALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NA<br />
EDUCAÇÃO........................................................................................................65<br />
JOSÉ MARIA LEITE BOTELHO*<br />
O COMÉRCIO E AS ROTAS FLUVIAIS NA SOCIEDA<strong>DE</strong> GUAPOREANA.<br />
COLONIAL.........................................................................................................78<br />
MARCO ANTÔNIO DOMINGUES TEIXEIRA<br />
FUNÇÕES DA LINGUAGEM: UMA REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS <strong>DE</strong><br />
ROMAN JAKOBSON.........................................................................................93<br />
CELSO FERRAREZI JUNIOR<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
EDITORIAL<br />
A <strong>Revista</strong> Presença em seu 13º número reafirma o compromisso<br />
com a liberdade criativa e sua conseqüente exposição à crítica<br />
científica e o incentivo à divulgação do conhecimento pensado e<br />
produzido no seio acadêmico, advindo, especialmente, da atividade<br />
de pesquisa.<br />
A Universidade brasileira passa por sérios problemas. Os seus<br />
professores são desvalorizados, instalações insuficientes,<br />
laboratórios sucateados, bolsas reduzidas e poucas perspectivas<br />
de fomento. Na UFRO, uma universidade nova, que busca suas<br />
características próprias, não apresenta um cenário diferente.<br />
É preciso caminhar. Buscar novos caminhos é preciso.<br />
Este número conta com dez artigos que expressam<br />
absoluta coerência com os objetivos propostos pelo periódico<br />
desde sua concepção, uma vez que abordam temas instigantes ao<br />
pensamento social brasileiro: das relações homem - ambiente -<br />
História aos elementos teóricos que contribuem para perceber<br />
o ser humano em suas habilidades para expressar-se desde<br />
as relações educativas aos preceitos jurídicos, permitindo<br />
reentrâncias no ambiente desafiador da interdisciplinaridade.<br />
A Comissão Editorial.<br />
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INTRODUÇÃO<br />
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
REFLEXÕES REFLEXÕES REFLEXÕES REFLEXÕES SOBRE SOBRE SOBRE SOBRE O O O O FRACASSO FRACASSO FRACASSO FRACASSO<br />
ESCOLAR ESCOLAR ESCOLAR ESCOLAR<br />
Luís Luís Alberto Alberto Lourenço Lourenço de de de Matos Matos* Matos<br />
Resumo : O fracasso escolar tem sido objeto de muitos<br />
estudos há muito tempo e, apesar dos avanços na busca da<br />
compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser<br />
trilhado até que se possa efetivamente reverter a situação<br />
que assola as escolas públicas. Para uma melhor<br />
compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de<br />
aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica<br />
acerca dos mesmos. O fracasso escolar tem sido definido<br />
"como uma resposta insuficiente do aluno a uma<br />
exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud<br />
Almeida e colaboradores, 1995).<br />
Palavras – Chave : Aprendizagem, Compreensão, Escolas,<br />
Estudos e Fracasso.<br />
Abstract : School failure has been the object of many<br />
studies long ago and, despite advances in search of<br />
understanding, there is still a long way to be followed until<br />
they can effectively reverse the situation that raged in the<br />
public schools. For a better understanding of school failure<br />
and of the difficulties of learning becomes historical review<br />
about them. School failure "has been defined as an<br />
insufficient response to a student or school demand<br />
requirement" (Weiss, apud Almeida and collaborators, 1995).<br />
Keyword : Learning, Understanding, Schools, Studies and<br />
failure.<br />
O fracasso escolar tem sido objeto de muitos estudos há muito tempo e, apesar dos<br />
avanços na busca da compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser trilhado até<br />
que se possa efetivamente reverter a situação que assola as escolas públicas.<br />
Para uma melhor compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica acerca dos mesmos.<br />
O fracasso escolar tem sido definido "como uma resposta insuficiente do aluno a<br />
uma exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud Almeida e colaboradores,<br />
1995). A própria definição já traz em si a concepção de que o único protagonista desse<br />
fracasso é o aluno.<br />
A análise da repetência e da exclusão escolar verificados no Brasil demonstra a<br />
necessidade de aprofundar os estudos e, principalmente, trazer à tona os aspectos<br />
ideológicos subjacentes às concepções sobre o fracasso escolar e às dificuldades de<br />
aprendizagem, além de atentarmos para as condições institucionais e pedagógicas<br />
inerentes à prática educativa.<br />
A partir do período republicano assiste-se a uma intensificação do ideário liberal e as<br />
suas idéias irão se fizer presente na Educação, principalmente através do movimento da<br />
Escola Nova. A ótica da análise do fracasso escolar está centrada nos aspectos extra-<br />
escolares, principalmente no aluno e na família. Segundo Almeida e colaboradores (1995,<br />
p.119), "o discurso do Estado liberal individualiza as desigualdades e diferenças<br />
estabelecendo, assim, uma inversão: o que seria desigualdade social passa, então, a ser<br />
desigualdade pessoal". A contrapartida científica do ideário político liberal é representada<br />
pela psicologia das diferenças individuais (Psicologia Diferencial e Psicometria), que terá<br />
como preocupação a mensuração dessas diferenças, uma vez que se postula que os<br />
alunos diferem entre si quanto à capacidade para aprender, cabendo à psicologia e ao<br />
sistema educacional separar o joio do trigo, o ruim do bom, o incapaz do capaz. Segundo<br />
Patto (1996, p.63), a "pedagogia nova e a psicologia científica nasceram imbuídas do<br />
espírito liberal e propuseram-se, desde o início, a identificar e promover os mais<br />
capazes, independentemente de origem étnica e social", o que era praticamente impossível<br />
dada a seletividade social que operava na escola.<br />
Portanto, de acordo com essa concepção, o fracasso escolar é explicado pela<br />
"meritocracia", ou seja, o sucesso depende única e exclusivamente do aluno, sendo o<br />
mesmo "livre" para buscar o sucesso ou o fracasso.<br />
Nesta mesma linha a "teoria do dom" tenta justificar as causas do fracasso escolar nas<br />
características individuais do aluno (Souza, 1994). Cada um de nós nasceríamos com os<br />
nossos dons e habilidades e, o fracasso decorrente da incapacidade da criança em<br />
apresentar as c a r a c t e r í s t i c a s n e c e s s á r i a s ao bom rendimento escolar. De<br />
acordo com Souza (1994, p. 126):<br />
As influências dessa teoria para a prática escolar possibilitaram uma reorganização do<br />
pedagógico a t r a v é s d a d i v i s ã o d a s crianças em grupos homogêneos, a<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
seleção entre os que aprendem com facilidade e o s q u e ap r esen t a m<br />
d i f i cu l d a d es, c o m o s en ca mi n h am en t o s d o s menos aptos para o<br />
atendimento psicológico e pedagógico.<br />
Convivendo com as idéias liberais e posteriormente incorporadas, as<br />
teorias racistas propugnavam a inferioridade racial do não-branco,<br />
principalmente do negro e do mestiço, cabendo ao cientificismo dar um caráter de<br />
credibilidade a estas teorias.<br />
Nos anos 70 assiste-se a uma mudança na explicação do fracasso escolar, da<br />
ótica biológica para a cultural, influenciado pelas idéias produzidas nos<br />
Estados Unidos nos anos 60. A Teoria da Carência ou Privação Cultural<br />
procurava explicar as desigualdades educacionais pelas diferenças de ambiente cultural<br />
entre as crianças dos diversos segmentos sócio-econômicos.<br />
Esta teoria acabou sendo dividida em duas: a teoria do déficit ou deficiência<br />
e a teoria da diferença, sendo que a segunda acabou subjugada pela primeira. A<br />
primeira formulação (déficit ou deficiência) desta teoria postula que a pobreza do<br />
ambiente em que vivem as classes baixas gera deficiências no desenvolvimento<br />
psicológico da cria n ça (motoras, perceptivas, afetivas, emocionais, linguagem,<br />
cognitivas etc.), sendo estas causas de suas dificuldades de aprendizagem e de<br />
adaptação à escola. A pobreza de estímulos a que estariam sujeitos em seu ambiente<br />
desprivilegiado dificultaria o seu ingresso no sistema educacional e também a sua<br />
manutenção. A segunda formulação (diferença) propõe que em virtude de uma<br />
predominância de valores e padrões de classes sociais privilegiadas, em detrimento dos<br />
valores e padrões de classes sociais privadas psicossocialmente, acabaria resultando<br />
numa cultura diferente, que acabaria sendo marginalizada pelas instituições como<br />
um todo e principalmente pela escola. Nesta perspectiva a escola seria inadequada e<br />
despreparada para receber essa criança que vem de e com uma cultura diferente. Quando<br />
se faz uma análise mais profunda destas duas formulações, percebe-se, na verdade, que<br />
não há diferenças significativas entre ambas, uma vez que ao se falar de culturas<br />
diferentes acaba-se falando das condições ambientais propiciadoras das deficiências<br />
psíquicas das crianças.<br />
As diferenças anteriormente consideradas pelas teorias racistas (físicas ou<br />
genéticas) deram lugar às diferenças cultural e psicológica ou às deficiências cultural e<br />
psicológica, eximindo uma vez mais a escola da responsabilidade pelo fracasso escolar ao<br />
culpabilizar o meio sócio-cultural da família e da criança.<br />
Segundo Almeida e colaboradores (1995, p. 117), justificar o fracasso escolar pela<br />
deficiência, "é mais uma mística ideológica que mascara e omite, no interior da escola,<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
as relações sócio-histórico-culturais da vida concreta dos indivíduos e de seu grupo<br />
familiar".<br />
Pela influência da teoria da carência ou privação cultural, o Estado liberal criou os<br />
programas de educação compensatória, onde a escola passou a ocupar o lugar da<br />
redentora, que levaria aos pobres a cura de suas deficiências psicológicas e culturais<br />
responsáveis pelo lugar que ocupam na estrutura social (Patto, 1996). Segundo Souza<br />
(1994), o objetivo dos Programas de Educação Compensatória era adequar as<br />
crianças advindas de famílias pobres às demandas da escola, buscando suprir os<br />
elementos culturais ausentes nas mesmas, desenvolvendo hábitos de pensamento,<br />
habilidades, estilos de linguagem necessários ao sucesso na escola pública.<br />
E importante destacar que o discurso pedagógico subjacente à adequação<br />
da escola às crianças pobres, concentrou-se unicamente nos aspectos pedagógicos, sem<br />
fazer referência ao sistema educacional e aos aspectos ideológicos que estariam<br />
envolvidos.<br />
Nos anos 70 também se fez presente no meio educacional à teoria do sistema<br />
de ensino de Pierre Bourdieu e J.C. Passeron, que levaram às discussões sobre o<br />
papel da escola numa sociedade de classes, sendo esta percebida como instituição<br />
social na qual se pratica a dominação cultural, isto é, a escola veicularia<br />
conteúdos impositivos de uma classe social dominante para a manutenção de<br />
seus privilégios. No entanto, devido as distorções conceituais dessa concepção<br />
crítico-reprodutivista do papel da escola na sociedade de classes a mesma acabou<br />
ficando mais no nível teórico do que propriamente no domínio da pesquisa do fracasso<br />
escolar.<br />
Mais recentemente, através da Psicologia Institucional, a psicanálise adentra<br />
a escola, passando a ser vista como uma instituição social dentro de uma sociedade<br />
capitalista e que exerce um papel. E inegável os avanços que propiciou, sendo o<br />
objetivo do psicólogo no campo institucional "um objetivo de psicohigiene: conseguir<br />
a melhor organização e as condições que tendem a promover saúde e bem-estar dos<br />
integrantes da instituição" (Eleger, 1984, p.43). No entanto, é necessário salientar<br />
que apesar da ampliação da leitura individual para a institucional, o modelo adotado<br />
(psicanalítico) é individual, a partir do momento que a preocupação irá centrar-se<br />
nas ansiedades e defesas que estão dificultando a realização e o enriquecimento da<br />
tarefa, isto é, as ansiedades e defesas que estão dificultando o sucesso escolar.<br />
Sara Paín (1986) no livro "Diagnóstico e tratamento dos problemas de<br />
a pren di za g e m" a borda as pe rturbaç ões da a pre nd i za ge m, i sto é, a<br />
8
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
patologia da aprendizagem que pode ser entendida de duas formas: num sentido<br />
mais amplo ou num sentido mais restrito. Em sua primeira forma, a perturbação de<br />
aprendizagem seria resultante de uma disfunção intelectual, envolvendo,<br />
provavelmente, uma alteração do sistema nervoso central.<br />
A segunda forma se caracterizaria por um pequeno desvio na capacidade normal de<br />
aprender e, segundo a autora, seria algo "aceitável” e que "responde às expectativas<br />
relativas a um sujeito que aprende" (Paia. 1985. p.27). Nesta concepção o problema de<br />
aprendizagem pode ser considerado como um sintoma, isto é, o não-aprender pode ser visto<br />
como uma situação temporária, ou seja, uma resposta que o indivíduo encontra internamente<br />
e, talvez a única, para atender às demandas externas, visando-se em última instância uma<br />
integração ao meio. Esta perturbação da aprendizagem - o não-aprender - pode estar<br />
cumprindo uma função positiva, conforme demonstram Paín (1985) e Fernández (1990),<br />
sendo uma decorrência da tentativa de reequilibração do indivíduo. Desta maneira, o não-<br />
aprender e o aprender devem ser vistos como funções integradoras. De acordo com este<br />
modelo clínico - psicanálise - a compreensão da perturbação da aprendizagem deve<br />
englobar o seu significado latente e a sua função na dinâmica psíquica do indivíduo.<br />
Para Paín (1985), há quatro fatores fundamentais que necessitam ser considerados<br />
no diagnóstico de um problema de aprendizagem: fatores orgânicos, específicos,<br />
psicógenos e ambientais.<br />
Os trabalhos da psicopedagoga argentina - Alicia Fernández (1990, p.39)-<br />
demonstram que,<br />
Não existe nem uma única causa, nem situações determinantes do problema de<br />
aprendizagem. Não o encontraremos nem no orgânico, nem nos quadros<br />
psiquiátricos, nem nas etapas da evolução psicossexual, nem na estrutura da<br />
inteligência. O que tentamos encontrar é a relação particular do sujeito com o<br />
conhecimento e o significado do aprender.<br />
Para ela, o fracasso escolar pode ser compreendido sob duas ordens de causas:<br />
externas à estrutura familiar e individual do que fracassa em aprender e internas à estrutura<br />
familiar e individual. No primeiro caso a autora denomina "problema de aprendizagem<br />
reativo" e, no segundo, "problema de aprendizagem-sintoma ou inibição" (Fernández, 1990).<br />
Segundo esta, o problema de aprendizagem reativo "afeta o aprender do sujeito em<br />
suas manifestações, sem chegar a atrapar a inteligência: geralmente surge a partir do<br />
choque entre o aprendente e a instituição educativa que funciona expulsivamente"<br />
(Fernández, 1990, p.82). Desse modo, o fracasso escolar é conseqüência de uma ação<br />
educativa inadequada por parte da instituição educativa e a intervenção do<br />
psicopedagogo deveria ser voltada para os aspectos ideológicos, métodos de ensino,<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
linguagem e vínculo professor-aluno através do estabelecimento de ações preventivas nas<br />
escolas.<br />
O problema de aprendizagem-sintoma ou inibição afeta "a dinâmica de articulação entre os<br />
níveis de inteligência, o desejo, o organismo e o corpo, redundando em um aprisionamento<br />
da inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente" (Fernández,<br />
1990, p.82). Portanto, será necessária uma intervenção psicopedagógica especializada<br />
voltada para a criança e sua família, buscando-se descobrir a função do sintoma.<br />
De acordo com a autora, o problema de aprendizagem pode-se manifestar de três<br />
formas: sintoma, inibição cognitiva e dificuldade de aprendizagem reativa.<br />
Um aspecto importante desta concepção é a relação professor-aluno<br />
no processo de aprendizagem, pois, para que haja aprendizagem é necessária a<br />
existência do ensinante e do aprendente, assim como o estabelecimento de um<br />
vínculo entre ambos.<br />
Paín e Fernández apresentam em comum a crítica ao funcionamento da escola,<br />
cujo funcionamento estaria contribuindo para o surgimento de uma "fábrica de<br />
neuroses". Diante desse contexto o aluno produz um sintoma que é visto e tratado<br />
como uma queixa escolar, sendo necessário, portanto, buscar-se uma explicação<br />
para a queixa apresentada e, geralmente, esta explicação será buscada na criança e<br />
na dinâmica familiar. Percebe-se uma ambiguidade no discurso, ao observarmos<br />
que há uma crítica à escola, porém, ainda se fala em adaptação e desadaptação.<br />
Bleger, Paín e Fernández realizam a leitura dos problemas de<br />
aprendizagem a partir da psicanálise, principalmente através do inconsciente, onde a<br />
escola é vista apenas como pano de fundo, não sendo levados em<br />
consideração aspectos fundamentais do seu funcionamento, podendo-se falar<br />
num certo reducionismo da proposta destes autores.<br />
Ezpeleta e Rockwell (1986), preocupadas com a busca de um maior<br />
conhecimento da escola passaram a dar ênfase à "positividade" da escola, passando a vê-<br />
la em si mesma, aquilo que existe na escola. Partem da idéia de construção social<br />
da escola, onde a escola é vista sempre na sua versão local e particular, ou<br />
segundo, as autoras, "a necessidade de olhar com particular interesse o movimento<br />
social a partir de situações e dos sujeitos que realizam anonimamente a história" (p. 11).<br />
Utilizando a metodologia de "analisar a existência cotidiana atual da escola<br />
como história acumulada e buscar, no presente, os elementos estatais e civis com os<br />
quais a escola se construiu" (p. 13), partem da história não-documentada. O<br />
referencial teórico adotado para compreender a vida cotidiana foi o trabalho de<br />
10
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Agnes Heller, onde a escola é reconstruída a partir do constitutivo histórico de sua<br />
realidade cotidiana, a partir dos sujeitos individuais que vivenciam diariamente a<br />
instituição escolar.<br />
Após a revisão de algumas concepções sobre o fracasso escolar, observa-se que<br />
apesar dos avanços registrados, há muito para se fazer.<br />
Segundo Patto (1996), ainda hoje, três afirmações podem ser<br />
freqüentemente encontradas.<br />
1. "As dificuldades de aprendizagem escolar da criança pobre decorrem de suas<br />
condições de vida" (p. 121). Esta afirmação remete-nos aos anos 70, quando da circulação<br />
no meio educacional brasileiro da teoria da carência cultural na sua versão da teoria da<br />
deficiência. Postula-se que a pobreza material produz uma pobreza psíquica, física e<br />
cultural, sendo estas pobrezas as responsáveis pela incapacidade de aprendizagem da<br />
criança. Esse tipo de concepção traz cm seu bojo uma forte carga de preconceito em relação à<br />
criança pobre.<br />
2. "A escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor<br />
tende a agir em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal" (p. 123). Uma vez mais a teoria<br />
da carência cultural se faz presente agora na sua versão da diferença. Parte-se do ponto de<br />
vista que a escola é concebida para um aluno de classe média e que a mesma, incluindo-se<br />
o professor não está preparada para receber e ensinar um aluno que não atenda esse perfil,<br />
ou seja, haveria um grande distanciamento entre a escola e a sua clientela concreta.<br />
Assiste-se aqui um processo de culpabilização do professor por desconhecer os padrões<br />
culturais da criança pobre. A solução a ser implantada para a resolução desse distanciamento<br />
é a criação de escolas especiais para as crianças de classes populares e, que certamente<br />
serão menos exigentes, uma vez que esta clientela é vista como menos capaz. Este tipo de<br />
solução só vem a criar uma maior divisão de classes e acentuar o caráter preconceituoso para<br />
com as crianças das classes populares.<br />
3. "Os professores não entendem ou discriminam seus alunos de classe baixa por terem<br />
pouca sensibilidade e grande falta de conhecimento a respeito dos padrões culturais dos alunos<br />
pobres em função de sua condição de classe média" (p. 125). Esta afirmação faz pressupor a<br />
existência sistematizada e científica de que há uni grande conhecimento a respeito das<br />
crianças das classes populares, o que, na prática, mostra-se improcedente. E necessário<br />
lembrar também que o forte preconceito existente certamente dificulta um maior<br />
conhecimento da realidade dessas crianças, o que torna mais difícil resolver tal<br />
desconhecimento.<br />
Do exposto acima se torna fundamental e urgente que essas concepções<br />
11
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
preconceituosas a respeito do fracasso escolar sejam revistas, deslocando-se a visão para o<br />
contexto onde as dificuldades de aprendizagem são efetivamente produzidas (fatores intra-<br />
escolares), para a inadequação da escola em função de sua má qualidade, reflexão sobre os<br />
processos e práticas educativas que se desenvolvem na instituição escolar, as relações<br />
cotidianas que se estabelecem entre as pessoas nas escolas, principalmente as relações<br />
professor-aluno as relações hierárquicas de poder, a burocratização do trabalho pedagógico<br />
e, que, geralmente, se apresenta estanque dos outros contextos, o desconhecimento dos<br />
padrões culturais das crianças das classes populares e a política educacional vigente. Não<br />
se pretende, no entanto, negar os fatores externos à escola na produção do fracasso<br />
escolar, mas questionar idéias que se cristalizaram na explicação do mesmo. Como diz<br />
Quijano, apud Patto (1996), “as idéias são prisões duradouras, mas não precisamos<br />
permanecer nelas para sempre”.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ALMEIDA et al. Concepções e práticas de psicólogos escolares acerca das dificuldades de<br />
aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 11, n.2, maio - ago, p.117-134,<br />
1995.<br />
BLEGER, J. Psicohigiene e psicologia institucional. Trad. Emília de Oliveira Diehl. Porto<br />
Alegre, Artes Médicas, 1984.<br />
EZPELETA, J. & ROCKWELL, E. Pesquisa participante. Trad. Francisco Salatiel de Alencar<br />
Barbosa. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1986.<br />
FERNÁN<strong>DE</strong>Z, A. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança<br />
e sua família. Trad. Iara Rodrigues, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.<br />
PAIN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Trad. Ana Maria Neto<br />
Machado. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.<br />
PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São<br />
Paulo, T. A. Queiroz, 1996.<br />
SOUZA, M. P. R. et al. A questão do rendimento escolar: mitos e preconceitos. In:<br />
CONCEIÇÃO, J. A. N. Saúde escolar: a criança, a vida e a escola. Sarvier, 1994.<br />
*Luís Alberto Lourenço de Matos<br />
*Professor do Depto de Psicologia / <strong>UNIR</strong>, mestrando em Psicologia Escolar e do<br />
Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo/USP.<br />
12
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
A Ma t a<br />
MITO MITO MITO MITO E E E E LUGAR LUGAR LUGAR LUGAR ---- PARTE PARTE PARTE PARTE V VV<br />
V<br />
Josué Josué Costa Costa *<br />
*<br />
Resumo: As manifestações do universo da mata que são representadas<br />
através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os<br />
macacos prego e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo<br />
da riqueza deste processo de codificação, demonstraremos<br />
algumas das representações simbólicas colhidas em campo. Uma<br />
das mais interessantes é a do curupira, caboclinho da mata, indivíduo<br />
pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um<br />
porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite<br />
desperdícios e agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos<br />
segredos da mata.<br />
Palavras – Chave: Animais, Universo, Mata, Selvagem, Simbólicas, Riqueza.<br />
Abstract : There are also manifestations of the universe of woods that are<br />
represented by curupira, mother of rubber tappers, tincuã invisible bird, the<br />
monkeys and potbellied, tactic and ambé vines and others. As an example of<br />
the wealth of this encoding process, we'll demonstrate some symbolic<br />
representations of harvested in field. One of the most interesting is the<br />
curupira, caboclinho da mata, little guy with hair, feet facing backwards and<br />
mounted on a wild pig. This character is the protector of the fighters, you can't<br />
afford to waste and damage to animals, teaches man to some of the secrets of<br />
the forest.<br />
Keyword: Animals, Universe, Forest, wilderness, symbolic Wealth.<br />
Há, ainda, as manifestações do universo da mata que são representadas<br />
através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os macacos prego<br />
e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo da riqueza deste processo de<br />
codificação, demonstraremos algumas das representações simbólicas colhidas<br />
em campo. Uma das mais interessantes é a do curupira, caboclinho da mata,<br />
indivíduo pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um<br />
porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite desperdícios e<br />
agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos segredos da mata.<br />
Relata um ex-seringueiro que certo dia foi caçar para ter o alimento da semana,<br />
para ele e a esposa. Então, saindo para caçar avistou no alto de uma árvore dois<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
macacos grandes. Somente um era o suficiente para a alimentação da família. Atirou e<br />
acertou o primeiro, preparou a arma e derrubou o segundo macaco, colocou os dois<br />
animais no jamaxim, cesto tecido com cipó, e quando quis voltar, não encontrou mais o<br />
caminho. Andou por algumas horas e vendo que realmente estava perdido, retornou ao<br />
local onde havia abatido os animais e colocou um no tronco da árvore em que se<br />
encontravam. Voltou a caminhar e só saiu da mata dois dias depois porque sua esposa<br />
pediu para um amigo procurá-lo e o encontrou muito próximo das estradas de seringa<br />
onde sempre trabalhava. Indagado como havia se perdido em um local em que nasceu e<br />
sempre viveu, o ex-seringueiro respondeu que o curupira o havia deixado "doido", e que<br />
a partir de então nunca mais teve sorte para a caça, a pesca e a seringa. O curupira o<br />
havia castigado e ele era vítima da panema.<br />
A transgressão de um código simples que é não matar além do que se precisa,<br />
evitando o desperdício para não acabarem as espécies, provocou um conflito interno<br />
no indivíduo anulando todos os referenciais que o mesmo tinha sobre a mata, que é o<br />
seu espaço conhecido. Esse é um dos aspectos da atuação do curupira. Entretanto, há o<br />
depoimento de um agricultor que quando chegou ao Cuniã, procurou fazer urna roça<br />
de mandioca. Para isso, preparou as manivas (caule da mandioca pelo qual é feito o<br />
plantio), fez as covas, e começou a enterrar as manivas em uma posição. Quando<br />
terminou, as manivas encontravam-se todas em outra posição. Ele voltava e colocava<br />
novamente as manivas na posição que queria, e o resultado era o mesmo. O agricultor<br />
atribuiu esse fato às "marmotas do curupira". Perguntado sobre o que ele fez, disse<br />
que deixou como o curupira queria, e o resultado da produção foi melhor. Passou<br />
então a fazer o plantio da maniva de outra maneira. À maneira do curupira.<br />
O relato de um agricultor, que ao sair para caçar matou um macaco. Mudou o<br />
cartucho da espingarda e apontou-a para outro. Ficou apontando e pensando se atirava ou<br />
não, sabia que não precisava de mais. Resolveu não atirar. Quando baixou a espingarda,<br />
estava de frente com a onça. Atirou no rumo, mas não acertou o animal. O informante afirma<br />
que estava convicto de que atirasse no segundo macaco, não escaparia da onça e que ela<br />
era o curupira disfarçado. O curupira não só castiga, mas ensina o homem a trabalhar, traz<br />
consigo as regras de uso dos recursos da mata obedecendo as características locais. As<br />
manifestações míticas são os meios pelos quais esta população se comunica. O<br />
conhecimento adquirido nas atividades cotidianas cria uma lógica que resolve os seus<br />
problemas imediatos, tendo como resultado ações que as maneiras exteriores àquele meio<br />
têm dificuldades de compreender.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
É o exemplo registrado no depoimento de um agricultor de Araçá que dizia que seu<br />
terreno tinha muitas formigas que cortavam toda a plantação. Ele resolveu o problema<br />
fazendo um “acordo” com as formigas. Nesse acordo, ele se comprometia em fazer um<br />
plantio só para as formigas e elas não cortariam sua plantação. Nas diversas caminhadas<br />
feitas na Mata enumerei as diversas denominações de madeira que fomos encontrando. A<br />
denominação dada pelos moradores incluía o uso que fazia de cada madeira:<br />
Madeira Utilidade Madeira Utilidade<br />
01 cedro Nobre, const. casa, móveis 16 muiratinga Mad. branca, leve, caixarias<br />
p/ frutas<br />
02 muiracatiara Nobre, const. casa, móveis 17 itaúba amarela Nobre, canoas, barcos,<br />
esteios, dormentes<br />
03 bandarra Laminado, tábuas, caibros,<br />
peças<br />
04 cupiúba Nobre, tábuas, móveis<br />
madeirame em geral<br />
18 itaúba preta Nobre, canoas, barcos,<br />
esteios, dormentes<br />
05 cuiarana Tábuas, peças 19 ipê Mourões, esteios, tabuados,<br />
tacos<br />
06 cedrorana Tábuas, peças<br />
07 Angelim Nobre de 2ª, móveis,<br />
madeirame<br />
08 Angelim-fava Nobre de 2ª, móveis,<br />
madeirame<br />
09 faveiro Madeira de 2ª, peças,<br />
estacas, vigas, caibros<br />
20 roxinho Madeirame em geral<br />
21 pau d’arco Mourões, esteios<br />
22 coração de negro Estacas<br />
10 feveiro-ferro Madeira de 2ª 23 cucupira preta Tacos p/ piso, longarina de<br />
caminhão<br />
11 copaíba Óleo, móveis, madeirame<br />
em geral<br />
12 copaibarana Madeirame<br />
25 louro Móveis madeirame<br />
13 jitó Madeirame 26 jacareúba Madeirame<br />
14 sacaca Madeirame 27 louro pimenta Móveis, madeirame<br />
15 murapiranga Madeirame 28 louro amarelo Móveis, madeirame<br />
29 louro caju Móveis, madeirame 42 acariúba Esteios, postes de luz,<br />
estacas p/ pontes<br />
30 caju-açu Madeirame 43 biorana Estacas p/ cerca<br />
31 castanharana Madeirame<br />
32 jacaré Madeirame 44 cedro-mara Móveis, madeirame<br />
33 preciosa Chá, esteios, mourões,<br />
estacas<br />
45 pequi Longarina, estacas p/<br />
pontes, frutos<br />
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34 mututi Madeirame 46 pequirana madeirame<br />
35 virola Laminados, madeirame 47 pequiá Estacas p/ ponte, longarina,<br />
frutos<br />
36 samaúma Laminado, madeirame 48 pajurá Estacas<br />
37 garapeira Estacas p/ pontes 49 angelim-copaíba Óleo, móveis, madeirame<br />
38 churu Madeirame 50 ingarana Madeirame de 2ª<br />
39 jequitibá-rosa Móveis madeirame 51 ponã Tabuados, madeirame<br />
40 pau-rosa Óleo 52 mulateiro Forro, tábuas, madeirame<br />
41 quariquara Esteios, postes de luz,<br />
estacas p/ pontes<br />
53 peroba Móveis e madeirame<br />
54 sucuba madeirame<br />
Os elementos míticos contêm uma ordem de classificação das espécies e os códigos<br />
sociais estabelecidos. Essa classificação contém a lógica que as criou e com isso,<br />
determinados elementos podem pertencer ao reino animal vegetal simultaneamente, como<br />
por exemplo, o “cipó titica” (figura 2) e o “cipó ambé”, utilizados para a confecção de<br />
inúmeros artefatos manipulados cotidianamente. Porém, esses cipós têm sua origem no<br />
reino animal, sendo que o primeiro nasce com a morte de uma formiga preta chamada<br />
“tucandeira” e o segundo, da aranha “caranguejeira”.<br />
Para os moradores, o cipó é do reino animal e os animais que os originam são vegetais<br />
em potencial.<br />
Outro exemplo da simultaneidade dos universos, é quando a vegetação de capim<br />
canarana invade as águas para isolar o acesso dos homens às áreas onde corre a<br />
reprodução de várias espécies de peixes. O capim torna-se um manto espesso e impede a<br />
passagem de canoas e voadeiras.<br />
Esse isolamento é obedecido pelos moradores como maneira de assegurar a<br />
alimentação futura. É então o universo da mata agindo diretamente sobre as águas.<br />
As árvores como as águas possuem protetores, a seringueira possui uma mãe que se<br />
apresenta como uma velhinha de cabelos brancos e rosto enrugado (cheio de barrocas), é<br />
ela quem permite que o seringueiro tire leite ou não:<br />
P: e a mãe da seringueira?<br />
F: a mãe da seringueira é uma velhinha cheia de barroca. P: o que é barroca?<br />
F: a cara engilhada, o rosto engilhado tem dia que ela sai batendo as canecas na<br />
frente e o cara nesse dia não tira leite não, eu cansei de cortar e ouvir o caboco<br />
batendo assim, tau, tau, tau... era ela.<br />
P: mas por que ela não quer que tire leite?<br />
F: ela não quer, ela é a dona da seringueira e depois de ela não ir com a cara do<br />
freguês, é besteira. Vai um tira oito litro, ou nove, ou dez, ou quinze e se eu ir e<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
cortar a mesma estrada que o cara cortou, se eu tirar cinco litro, ou seis, tou<br />
tirando muito. Ela não foi com a minha cara não, é que o bicho é feio mesmo.<br />
Não dá, não tem uni pé de árvore que dé leite, só sôva já tirei muita sova, mas<br />
nunca cheguei a tirar lema lata de leite na soveira pode ser na grossura que seja.<br />
(trecho de uma conversa com um morador, ex-seringueiro, 1992).<br />
As referências à mãe das seringueiras são sempre remetidas ao tempo dos<br />
antigos, tempo dos primeiros seringueiros, tempo em que se usava uma<br />
machadinha para realizar o corte no caule da seringueira. Esses cortes geralmente<br />
atingiam o caule e deixavam as árvores estéreis. A mãe da seringueira ensina o<br />
homem a realizar o corte correto. É o tempo de amansamento, de aprendizagem e de<br />
aproximação com a seringueira, ou com a mãe da seringueira. É o tempo para o<br />
homem estabelecer contatos, de realizar o ritual de aproximação. A zanga da mãe da<br />
seringueira irá afastá-lo e negar-lhe os conhecimentos e o caminho da fartura, dos<br />
segredos do látex. Esse contato e essa aprendizagem estão registrados nas<br />
narrações míticas.<br />
Seja por "ajuda do curupira", seja por acordos feitos, esse modo de vida demonstra<br />
que tem uni ritmo de atividade que conhece os ciclos da natureza. Há uma procura de<br />
equilíbrio entre as espécies e o Homem. Há um equilíbrio necessário entre o tirar e o<br />
repor. O curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água surgem quando há ameaças de se<br />
instaurar o desequilíbrio. E encontra no mito a linguagem adequada para "lembrar" aos<br />
homens o perigo eminente e relatar suas experiências e os resultados obtidos.<br />
Dessa maneira, esses elementos agem conjuntamente com o universo das águas, a<br />
separação aqui demonstrada é apenas didática. Na medida em que a população atribui<br />
valores, renova e reinterpreta as representações simbólicas, estão agregando e<br />
codificando os seus conhecimentos acumulados historicamente e transmitindo-os às<br />
novas gerações, que irão fazer os mesmos processos de reinterpretação.<br />
Tais representações míticas são relevantes para a compreensão da cultura do<br />
homem ribeirinho e da sua organização espacial. A criação do conjunto das representações<br />
míticas está vinculada ao conhecimento espacial que a comunidade possui.<br />
Esse espaço está carregado de significado e marcado pelas r e p resen t aç õ e s . As s i m,<br />
o e s p a ç o p a s s a a i nc o r p o rar a s p e r c e pç õ e s q u e o s moradores vão<br />
adquirindo, vindo a ter um sentido de proximidade. E é a formação do lugar.<br />
Essa categoria espacial é o ponto de referência da existência da<br />
comunidade embutindo em si os seus códigos de localização, classificação,<br />
formulações de regras sociais etc. Em muitos casos, o fato de infringir tais códigos<br />
provoca nos indivíduos uma descodificação que pode ser temporária ou não. A<br />
organização dada ao lugar incorpora essas codificações e o mito as transmite.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
As reflexões contidas neste trabalho estão voltadas a uma abordagem<br />
interdisciplinar, pois a Geografia isoladamente não daria conta dos aspectos<br />
cognitivos, (formas de classificação, e as representações simbólicas da terra), dos<br />
aspectos sociais e políticos que o tema exige. Desta maneira, nos utilizamos para<br />
compreensão dos estudos, das diversas contribuições dadas pela Antropologia na<br />
análise das representações simbólicas e cognitivas, as contribuições da<br />
Sociologia, na compreensão dos micros grupos sociais e das relações desses<br />
grupos com a sociedade dominante. Entendemos que para a compreensão desse<br />
estudo todas as ciências sociais são necessárias, não há como fragmentar a<br />
realidade analisada. Para que a Geografia possa compreender como o espaço foi<br />
construído, é imprescindível uma visão de conjunto, nos utilizamos dos<br />
instrumentos de trabalho das outras ciências.<br />
O conflito vivenciado pelos moradores expôs suas estratégias de<br />
sobrevivência. Foram buscar das mais diferentes formas, os argumentos<br />
necessários à sua permanência em Cuniã. Construiu-se um discurso de<br />
preservação do meio ambiente. Discurso criado em seu cotidiano. A cultura<br />
indígena é resgatada e ajuda a provar sua temporalidade. Assemelham seu modo de<br />
vida ao dos índios. Procuram demonstrar que todas suas ações desenvolvidas<br />
em defesa do meio ambiente são mais efetivas do que os planejamentos<br />
governamentais.<br />
O tempo de vivência desses moradores com o meio ambiente vai<br />
transformar o espaço, incorporando às suas experiências os experimentos, suas<br />
emoções ficam gravadas na terra, nas árvores, nas águas. Esse espaço deixa de ser<br />
uma mera localização, passa a constituir-se de elementos sagrados. É onde se<br />
encontram com seus antepassados e suas marcas.<br />
O espaço vai sendo construído e transforma-se em algo que oferece o<br />
aconchego, a segurança, a fartura, a bondade. É o lar, é o seu lugar. Repleto de<br />
significados e quando dizem: "aqui é o meu lugar", falam com a intensidade que inclui<br />
todos esses fatores. Com isso, transformam a natureza, humanizando-a.<br />
O pensamento apaziguador é criado, o ritual de convivência é executado e os<br />
acordos com o boto, o curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água são<br />
estabelecidos. Sair desse lugar é abandonar todas essas construções. O SEMA, o<br />
IBAMA, jamais compreenderia que os moradores travaram uma luta, não apenas pela<br />
posse da terra, mas pela manutenção e preservação de seus códigos.<br />
Não estamos falando de uma comunidade harmônica, perfeita e que trava relações<br />
18
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
exemplares com o seu meio ambiente. Como toda comunidade humana, há desavenças em<br />
seu meio. A disputa pela hegemonia política é acirrada como em qualquer outro lugar. O<br />
que se ressalta é que apesar de suas diferenças, esse grupo apresenta o seu modo de vida<br />
e seu projeto de defesa do meio ambiente. Não que esse modo de vida e proposta ambiental<br />
sirva como regra geral, é o modo de vida dessa comunidade, para o seu meio ambiente.<br />
Aprendemos com o exemplo da riqueza cultural que apresentam, da defesa de seus<br />
valores e da organização de seu espaço a partir do imaginário e das histórias de vida, que<br />
em conjunto, vão alicerçar a luta de resistência local.<br />
As narrativas míticas exigem uma lógica interna e uma racionalidade que acrescenta,<br />
adiciona ao conhecimento científico, não o exclui.<br />
Através da derrubada da capela da padroeira eles denunciaram que houve surtos<br />
de doenças que não existiam no local. A lógica desses moradores não é a de que apenas<br />
a reza afasta a doença, mas a profanação de um lugar santo rompeu sua ligação com as<br />
divindades. Com a presença de elementos estranhos ao lugar, quebrou-se o<br />
equilíbrio que eles mantinham. A sacralização do lugar foi profanada. O lugar corre<br />
perigo e seus corpos reagem, adoecem. O tratamento de suas doenças não é feito<br />
somente pelos curadores. Se forem acometidos pela malária ou hepatite, eles procuram o<br />
curador e o hospital na cidade. Eles rezam e tomam o remédio do médico. Um<br />
tratamento não elimina o outro, pelo contrário, se complementam. Na visão desses<br />
moradores, não há incoerência em sua ação, seu pensamento não dicotomiza e nem elimina<br />
o que é diferente.<br />
O mítico denuncia a violência e o padecimento do grupo. Nesse caso, ocorre a<br />
desacralização do lugar onde a padroeira o representava simbolicamente.<br />
Nas modificações das histórias, são utilizados elementos semelhantes. Se forem<br />
estranhos, as histórias perdem a coerência, os indivíduos não se identificam<br />
com as mesmas. E imprescindível nas histórias ou narrativas a permanência do<br />
senso comum. Esse senso comum é o conhecimento tácito, é o saber que "se fizer de tal<br />
forma" dá certo. Os elementos estranhos incorporados às histórias as fazem perder a<br />
coerência, as pessoas não se identificam com a narrativa. É como se o boto<br />
deixasse de lado sua roupa branca, seu chapéu de folha de embaúba e chegasse com<br />
uma roupa de seda multicolorida e convidasse a donzela para ir assistir a ultima novidade<br />
hollywoodiana no cinema ou a um teatro. Nenhum ribeirinho se reconheceria nessa<br />
história. A presença de elementos estranhos nas narrativas provoca a ruptura. As<br />
histórias de encantamentos aqui relatadas possuem todos os elementos que as tornam<br />
vividas e acreditadas pela população. O que vem reforçar esta condição é o fato de<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
que a população irá contar e recontar esse episódio. Alguns irão contá-los com<br />
julgamento de valores, onde está presente na coragem e no heroísmo de uma mãe, a<br />
falta de fé de outra, o reconhecimento da culpa daquele por ter caçado além dos<br />
limites estabelecidos e o conseqüente castigo: a perda dos pontos de referência, o<br />
ficar doido, e o panema.<br />
O sistema de classificação usado por esta cultura não tem o mesmo referencial de<br />
categorias do pensamento científico: a formiga e/ou a aranha vão dar origem a um cipó que<br />
tem um uso fundamental em seu dia-a-dia; o boto pode metamorfosear-se e resolver<br />
problemas de relacionamento familiar ou aliviar os sofrimentos de um paciente, "se todos os<br />
bichinhos têm mãe, por que a água também não teria?"<br />
Ao manter-se a situação do despejo ou não dos moradores eles ficam aguardando o<br />
resultado final para fazerem suas plantações, a reforma de suas casas, ao cuidarem do<br />
quintal, o queimar da capoeira. Esperam que suas vidas possam seguir o seu curso normal,<br />
como as águas do rio.<br />
_______________________<br />
"Mito e Lugar" é o trabalho que apresentamos para a obtenção do título de Mestre em<br />
Ciências pela Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. José William<br />
Vesentini, defendido em 1994. As primeiras partes foram publicadas da <strong>Revista</strong> Presença<br />
nos números 09, 10, 11 e 12<br />
Professor Ms. do Depto. , De Geografia/UFRO, Pesquisador Associado do Laboratório de<br />
Geografia Humana e Planejamento Ambiental, Doutorando em Geografia Humana pela<br />
Universidade de São Paulo.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
COLONIZAÇÃO, COLONIZAÇÃO, TRABALHO<br />
TRABALHO TRABALHO E NATUREZA<br />
Januário Januário Januário Januário Amaral Amaral Amaral Amaral * * * *<br />
Resumo: A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos<br />
governamentais de induzir os colonos a destruírem a floresta sob o pretexto<br />
de transformar Rondônia em um novo cenário de modernização agrícola no<br />
estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal alicerce de uma<br />
sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como<br />
degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor<br />
exemplo dessa trajetória é a mata.<br />
Palavras – Chave: Ambiente, Colonos, Sociedade rural, Natureza e mata.<br />
Abstract: The imposition, in previous decades, Governments to induce the<br />
settlers destroy the forest under the pretext to transform Rondônia in a new<br />
agricultural modernization scenario in the style of the Center-South of Brazil,<br />
also should be the main foundation for a prosperous rural society. Today,<br />
above all, this nature is seen as degraded by inappropriate practices to<br />
Amazonian environment. And the best example of this trajectory is the kills.<br />
Keyword : Environment, Settlers, rural Society, Nature and kills.<br />
A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos governamentais de induzir os<br />
colonos a destruírem a floresta sob o pretexto de transformar Rondônia em um novo cenário<br />
de modernização agrícola no estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal<br />
alicerce de uma sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como<br />
degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor exemplo dessa<br />
trajetória é a mata. De um total de 24.305.926 ha, no Estado de Rondônia, segundo Mapa<br />
de Ação Antrópica - PLANAFORO foram desmatados 4.824.790 ha de floresta, ou seja,<br />
20,4% do território estadual até 1986.<br />
Apontamos três motivos principais para explicar a situação de degradação<br />
em que se encontram as áreas agricultáveis, que antes eram repletas de enormes<br />
castanheiras, seringueiras, e muitas outras espécies extremamente variadas.<br />
Primeiramente, um de procedência econômica (uma relativa "valorização" da terra)<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
e, outro, de caráter tecnológico (tecnologia inadequada à disposição dos colonos). E por<br />
último, o de caráter simbólico, mediante o qual o colono se tornaria proprietário de um lote<br />
de terra com a derrubada da floresta (Amaral, 1994).<br />
A modernização da agricultura de Rondônia constitui fator determinante para que se<br />
tenha a melhoria das condições de vida, de trabalho e renda do homem do campo. Pensa-se<br />
numa modernização que parta de uma redistribuição de terras e manutenção das pequenas<br />
propriedades, e que tenha impacto sobre a produção e também sobre a distribuição de renda.<br />
Produto<br />
TAB.01 - PRODUÇÃO AGRÍCOLA <strong>DE</strong> <strong>RONDÔNIA</strong> 1991/1995<br />
Área Produção (t) Área Produção (t)<br />
1991 1995<br />
arroz (casca) 86.651 104.300 148.545 262.436<br />
milho 127.649 218.431 198.785 370.179<br />
feijão 139.254 77.436 123.682 81.007<br />
mandioca 30.097 496.784 41.755 708.605<br />
banana (1.000 19.204 18.085 30.963 25.889<br />
cachos) 43.343 22.781 34.591 15.871<br />
cacau 135.709 149.309 137.739 171.233<br />
café (coco) 2.400 5.000 - -<br />
soja 15.500 24.800 19.091 27.059<br />
algodão<br />
FONTE: GCE/IBGE/SEAGRI/EMATER<br />
Logo, a retomada de seu dinamismo e o efetivo início de um processo de<br />
modernização do setor agrícola constitui o fator essencial para o<br />
desenvolvimento sustentado da agricultura. E essa modernização passa pela<br />
recuperação das áreas que hoje não são mais utilizadas, como por exemplo, as<br />
capoeiras.<br />
No PA Vista Alegre, um colono disse: "já ouvi falar numa tal de assistência<br />
técnica, mas nunca fui apresentado para ela. eu acho que isso é invenção de<br />
americano ou de político. não deve ser coisa tento boa, e se não é boa, ainda vai<br />
chegar aqui, não é verdade." Diante desse quadro como é possível recuperar áreas<br />
degradadas, se o suporte técnico do Estado é incompetente para tal atividade? Existe<br />
projeto de assentamento que tem terras produtivas, contudo não tem estradas<br />
vicinais, ou vice-versa, e outros, nem estradas nem terras produtivas.<br />
Segundo Amaral e Costa Silva 11991 a assistência técnica é<br />
p ro bl e ma n os projet os de assen ta me n tos, t oand o crucial o seu<br />
desenvolvimentos. O uso desse serviço poderia implicar em três elementos fundamentais<br />
para os assentados: o uso r a c i o n a l do solo, buscando uma relação compatível<br />
com o suporte da terra; a produtividade do solo e a qualidade da produção.<br />
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Combinando esses elementos, entende-se que haverá melhora nas condições<br />
gerais dos projetos de assentamento. Os colonos trabalham a terra da maneira mais<br />
simples possível; usam apenas enxadas e facões, e, associado a estes<br />
instrumentos, u t i l i z a m a t é c n i c a d a s q u e i m a d a s .<br />
Segundo c o me n t av a um informante da região de Vilhena, “'uma realidade<br />
dos projetos novos do INCRA é que o assentamento de famílias é feito em<br />
terras não produtivas. No projeto Nova Conquista, por exemplo, mais de 60% de<br />
suas terras são arenosas e só produzem abacax i; essa questão deve ter alguma<br />
importância e deveria ser revista pelo INCRA, antes de assentar os colonos. Afinal<br />
nem só de abacaxi vive o homem”.<br />
Consideramos fundamental o saber que os colonos já possuem; um saber<br />
transmitido de geração em geração de pai para filho. Contudo esse saber precisaria<br />
ser auxiliado pela ciência e pela técnica. Todos poderiam se envolver, por exemplo,<br />
n o " d e s e nv o l v i m e n t o s u s t e n t a d o ” p a r a a r e g i ã o , c o m o e x p l o r a r<br />
racionalmente o lote de terra, discutindo alternativas para o desmatamento, as<br />
queimadas, a erosão. Assim como poderiam aumentar a renda, levando-se em<br />
consideração o princípio da sustentabilidade.<br />
Bibliografia<br />
AMARAL, J. de O., Terra virgem terra prostituta: O processo de colonização em Rondônia. São<br />
Paulo, FFLCH/USP. 1994<br />
AMARAL, J. J. O & COSTA SILVA, R. G. Relatório de Campo. <strong>UNIR</strong>, 1997<br />
*Januário Amaral. Professor do Departamento de Geografia UFRO, Pesquisador-<br />
Associado do LABOGEOH-PA, doutorando em Geografia Humana pela Universidade<br />
de São Paulo-USP.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
OS OS OS OS NARRADORES NARRADORES NARRADORES NARRADORES DA DA DA DA PRAÇA PRAÇA PRAÇA PRAÇA DA DA DA DA<br />
REPÚBLICA REPÚBLICA REPÚBLICA REPÚBLICA E E E E DA DA DA DA CIDA<strong>DE</strong> CIDA<strong>DE</strong> CIDA<strong>DE</strong> CIDA<strong>DE</strong> DAS DAS DAS DAS LEIS LEIS LEIS LEIS<br />
Valdemir Valdemir Valdemir Miotello*<br />
Miotello*<br />
Resumo: Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que<br />
ela é primitiva, no sentido de que vem junto com a história humana há<br />
séculos, tendo sido o gênero que não só acompanhou o homem, como foi a<br />
marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero humano, ao<br />
descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os<br />
pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura,<br />
memorizou fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú<br />
de tradições, lendas, crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas,<br />
conhecimentos, que fixaram o desenvolvimento humano.<br />
Palavras – Chave: Agricultura, Conhecimentos, Narrativas, Tradições e<br />
Desenvolvimento.<br />
Abstract: Efforts to analyze oral narratives should take into account that it is<br />
primitive, in the sense that comes along with human history for centuries,<br />
having been the genre that not only accompanied the man, as was the mark<br />
of the first wave civilizatória, when the human race, to discover the principles<br />
of agriculture, if sedentarizou, formed small gatherings organized human<br />
standards, laws, culture, memorized facts, saved the history of the group, and<br />
was a treasure chest of traditions, legends, beliefs, facts, prayers, songs,<br />
names, places, dates, knowledge, that fixed the human development.<br />
Keyword: Agriculture, Knowledge, Narratives, Traditions and Development.<br />
Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que ela é primitiva, no<br />
sentido de que vem junto com a história humana há séculos, tendo sido o gênero que não só<br />
acompanhou o homem, como foi a marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero<br />
humano, ao descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os<br />
pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura, memorizou<br />
fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú de tradições, lendas,<br />
crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas, conhecimentos, que fixaram o<br />
desenvolvimento humano.<br />
Quando a escrita foi inventada e divulgada, ela serviu para recuperar e cristalizar as<br />
narrativas que, manuseadas pela aristocracia justificava seu poder e seu modo de vida,<br />
percorriam as bocas populares e legitimavam o dito e o feito dos dominantes. O caráter<br />
ideológico do mito, das lendas, dos causos, das histórias, das narrativas é fantástico, já<br />
que ele tanto garante a divulgação e a permanência entre as classes populares, que os<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
repetem e perpetuam, das idéias que fundamentam o poder dos dominadores, justificando-o,<br />
quanto mantém e arrastam pelos tempos a fora os conteúdos libertadores dos excluídos.<br />
Platão, em A República, discute as condições de transmissão do mito e atribui ao<br />
Estado a legitima aplicação de um dispositivo de vigilância, uma vez que a cidade está<br />
infestada de “fabricantes de narrativas", a começar pelas mães e amas, seguidas pelos<br />
velhos e velhas, tagarelas inesgotáveis, que se debruçam sobre os recém-nascidos, e<br />
reunindo crianças de pouca idade ao seu redor e "derramando em seus ouvidos discursos<br />
sedutores", apresentando ficções faladas, e que "transformam-se em caráter e em<br />
natureza, através do corpo, da voz e do pensamento (Platão, A República, Ill, 377-395).<br />
Ainda segundo ele, cabe aos filósofos modelar os tipos de narrativas que interessam ao<br />
Estado, em conformidade com as leis, para formarem "cidadãos de ouro". Os narradores<br />
ambulantes e os mitólogos vadios não poderiam freqüentar as praças d'A República.<br />
O envelhecido Platão, no entanto, em Leis destrói sua praça inútil e o espaço social<br />
da vigilância do Estado, e convoca o povo para dirigir o rumor, organizar seu curso e fazê-lo<br />
circular por milhares de canais,<br />
"conservando todos os belos discursos que enunciamos e sempre enunciaremos, mas insistindo no<br />
essencial: afirmaremos que, aos olhos dos deuses, a vida mais agradável é também a melhor, e assim<br />
todos juntos diremos a verdade pura, e melhor do que qualquer outra forma de exprimi-la, persuadiremos<br />
aqueles a quem queremos persuadir" (Platão, Leis,Il).<br />
Era a convocação para que o bom rumor irrigasse em profundidade todos os membros<br />
do corpo social e os convencesse com a verdade. E ele reservou aos velhos o papel de<br />
administrar a memória comum e a eles está reservado o lugar social de contador de histórias,<br />
e direcionadas diretamente às crianças. São eles, afinal, que alcançam o tempo mais longe e<br />
estão alheios à vida política, podendo, dessa forma, educar os "incompletos" com narrativas<br />
sedutoras (paramúthia) e com palavras de encantamento (epoidaí), transformando tudo em<br />
divertimento (paidiá), voltadas para a melhor educação (paideía) (Platão. Leis-11. 659).<br />
Marcel Detienne, em seu livro A Invenção da Mitologia, usa do testemunho de Platão<br />
para afirmar que na Grécia há recusa de recorrer à escrita entre os homens que têm mais<br />
poder na cidade. Péricles teria sido o primeiro, num tempo de grandes oradores, a ler um<br />
discurso em público. A escrita, na cidade, era mais para ser vista nos decretos pregados nos<br />
muros que para ser lida. Aos poucos seu uso vai ocupando vários campos de atividade e<br />
se transformando em "memória escrita" que convive com a "memória social", cuja<br />
transmissão continua a se fazer de forma oral e auditiva.<br />
Ao se colocar o problema da manutenção da tradição e da modificação que se<br />
processa na história transmitida oralmente. Detienne reconhece um "equilíbrio dinâmico entre<br />
mudanças e sobrevivência, onde a triagem entre as informações novas e antigas, se<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
efetivamente realizada pela memória de cada um, se faz em função e sob o controle da vida<br />
social" (Detienne, 1992:76). Ele relembra o etnólogo Marcel Maus repetindo a seus alunos:<br />
"novo procurem o texto original, porque ele não existe" e afirma que "é no ensaio que ela<br />
(literatura oral) se fabrica, tomando forma a partir do que chamamos as variantes da narrativa<br />
ou as diferentes versões de uma mesma história" (ld.:77), e é no ensaio que a variante<br />
aparece, pois a repetição proporciona a possibilidade da variação, e só é percebida mais<br />
profundamente a partir do fixismo da narrativa ou na escrita ou na gravação.<br />
Ao afirmar que a narrativa tem que sair da boca e ir diretamente ao ouvido, caso<br />
contrário ela estará condenada ao silêncio e ao desaparecimento imediato, Detienne afirma:<br />
"Para poder penetrar e tomar seu lugar na tradição aural, uma narrativa, uma história ou<br />
qualquer obra falada deve ser entendida, isto é, deve ser aceita pela comunidade ou pelo<br />
auditório a que se destina" (Id.:82)<br />
Angel Rama, crítico uruguaio, ao escrever A Cidade das Letras, apresenta esta<br />
diferença pondo de um lado a "cidade real" que abarca a sociedade como um todo, e de outro<br />
lado a "cidade letrada" que contempla seu elenco intelectual, sua classe dirigente.<br />
“Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo das significações e inclusive as<br />
autonomiza em um sistema, a cidade real trabalha mais comodamente no campo dos significantes e<br />
inclusive os afasta dos encadeamentos lógico-gramaticais"<br />
(Rama, 1985:52). Ainda apresenta a cidade física que "o visitante percorre até perder-se" e a<br />
cidade simbólica "que a ordena e a interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins, capazes<br />
de ler como significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os demais, e,<br />
graças a essa leitura, reconstruir a ordem" (Id: 53).<br />
Essas diferentes leituras de uma mesma realidade dada devolviam diferentes<br />
exercícios de poder aos usuários, e não só realizam leituras diferentes, mas necessitavam<br />
delas para manter do mesmo jeito as outras leituras. Era o exercício de velar os olhos e<br />
vendar, ocultar uma forma de ver o real de outro lugar social. Rama também defende que "a<br />
escritura dos letrados é uma sepultura onde é imobilizada, fixada e detida para sempre a<br />
produção oral" (Id: 90), ao mesmo tempo em que ela tem poder para estabelecer a<br />
submissão da multidão.<br />
Lévi-Strauss, já no final de seu Mithologiques IV- L'home nu introduz em sua obra o<br />
conceito de "mitismo" e sugere uma distinção entre os níveis estruturados e estáveis do<br />
mito e os níveis de probabilidade que poderão manifestar uma extrema variabilidade<br />
em função da personalidade dos sucessivos narradores: "As obras individuais são todas<br />
mitos em potencial, mas é sua adoção coletiva que atualiza, se for o caso, seu mitismo"<br />
(Lévi-Strauss, 1971:560). A escuta partilhada é o lugar da fundamentação das<br />
palavras transmitidas e das narrativas conhecidas, que passam pela prova da<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
escuta, não importando como distribuam os ditos da tradição.<br />
Quanto à objetivação da obra, na literatura oral ela não é independente do recitante,<br />
pois que ela se apresenta como um potencial de normas e tradições que o narrador deve<br />
atualizar. O dado não é sua obra, mas apenas um corpus literário, um mote criativo, um baú<br />
de tradições recolhidas pelo tempo sobre o qual ele vai trabalhar na sua fala. O narrador não<br />
só é o transportador do passado para o presente deste baú de tradições, mas também o leitor<br />
das realidades novas e atuais que ele pode inserir neste baú, além de selecionar e<br />
organizar todos estes elementos que serão usados nesta sua presente ação e por causa<br />
destes ouvintes.<br />
Paul Zumthor, em A Letra e A Voz, ao se referir aos "intérpretes" medievais os<br />
coloca como letrados, mesmo que nem sempre lessem os textos, recitando-os de forma<br />
decorada:<br />
"tinha antes aprendido de cor o numero dos capítulos que compunham a obra, as grandes linhas da<br />
ação, os nomes dos lugares e dos personagens; depois, recitando-os, acrescentava,<br />
condensava, suprimia, sem tocar no essencial da história e empregando a 'linguagem dos livros"<br />
(Zumthor, 1987:62).<br />
Independente de sua origem, situação econômica ou sexo, os intérpretes medievais "não<br />
foram, naquele mundo, marginais", mesmo que se vestissem com roupas chamativas ou<br />
excêntricas e se tratassem a si próprios de loucos. Sua presença se dá em todo o espaço<br />
social, da mendicância à corte, da existência errante à propriedade de um feudo, da<br />
recitação de jograis em festas às viagens diplomáticas (Id.:63-67). "Pela garganta de todos<br />
esses homens (...) pronunciava-se tema palavra necessária à manutenção do laço<br />
social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos" (Id.:67).<br />
Finalmente, o poder real pode estar na palavra, esta "palavra fundadora" de que fala<br />
Zumthor, mas que é continuamente recriada pela voz que vai ocupando seu lugar<br />
social na corte, no quarto das damas, na praça da cidade, na borda dos poços, no pátio das<br />
igrejas, nas casas de família.<br />
Bibliografia:<br />
<strong>DE</strong>TTIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro, José Olympio. Brasília,<br />
UnB, 1992.<br />
LEVI-STRAUSS, Claude. Mithologiques IV: L'homme nu- Paris, Plon. 1971<br />
MIOTELLO, Valdemir. Um mito amazônico em narrativas de roda - repetição e mudança nos<br />
processos enunciativos. Dissertação de mestrado, Campinas, UNICAMMP. 1996.<br />
PLATAO. Obras completas. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1963.<br />
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo. Brasiliense. 1985.<br />
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz - a "literatura" medieval. SP, Companhia das Letras. 1993.<br />
*Valdemir Miotello. Professor do Departamento de Filosofia, Antropologia e Sociologia da<br />
UFRO.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
DIFERENCIAÇÃO DIFERENCIAÇÃO DIFERENCIAÇÃO DIFERENCIAÇÃO CULTURAL CULTURAL CULTURAL CULTURAL E E E E CONFLITO: CONFLITO: CONFLITO: CONFLITO:<br />
A colonização em Rondônia<br />
Carlos Carlos Corrêa Corrêa Teixeira* Teixeira*<br />
Teixeira*<br />
Resumo: Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto<br />
mais uma vez que a região que corresponde a Amazônia brasileira tem<br />
experimentado nestas duas últimas décadas aquilo que pode ser<br />
considerado sua transformação mais radical, ou seja, a substituição de urna<br />
base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que prevalecem<br />
novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer<br />
que ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem vivia em<br />
maior harmonia com a natureza- uma espécie de "economia<br />
excedente" - para outra em que domina a lógica da acumulação<br />
capitalista.<br />
Palavras – Chave: Comunicações, Base Econômica, Radical e Lógica.<br />
Abstract: Resuming the arguments of other communications, bounce again<br />
that region that corresponds to the Brazilian Amazon has experienced these<br />
last two decades what can be considered his most radical transformation, i.e.<br />
replacing urna fundamentally economic base extraction by another prevail new<br />
agricultural and industrial enterprises. One could even say that occurs there<br />
passing an order where the man lived in greater harmony with nature – a sort<br />
of "surplus"-economy to another in which dominates the logic of capitalist<br />
accumulation.<br />
Keyword: Communications, economic base, Radical and logic.<br />
Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto mais uma vez que a<br />
região que corresponde a Amazônia brasileira tem experimentado nestas duas últimas<br />
décadas aquilo que pode ser considerado sua transformação mais radical, ou seja, a<br />
substituição de urna base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que<br />
prevalecem novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer que<br />
ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem vivia em maior harmonia com a<br />
natureza- uma espécie de "economia excedente" - para outra em que domina a lógica<br />
da acumulação capitalista. Num certo sentido essa transformação implica em que o rio e a<br />
floresta vêem enfraquecida a força de sua representação, enquanto a terra como um bem<br />
28
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
produtivo passa a ocupar na mente dos homens um lugar de realizações<br />
incomparáveis. Os efeitos dessa transformação valem dizer, se estendem a todos os campos<br />
da vida social, incluindo a economia, a demografia, a política, a cultura etc.<br />
Contato e conflito<br />
Ao analisar a colonização em Rondônia no início dos anos setenta um autor<br />
observa cone otimismo que estaria ocorrendo ali certa troca de experiências criadas<br />
através do contato entre populações de origens diversas que ocupavam o mesmo espaço no<br />
interior da floresta - os naturais da Amazônia e os colonos vindos do Sul do país. "Junto<br />
aos imigrantes do Sul (o seringueiro) aprende a fazer urna derrubada, tocar uma<br />
lavoura, cozinhar uma carne... (enquanto) o colono do Sul também aprende junto ao<br />
amazonense: vê como aproveitar as árvores e as plantas da floresta, ou como tirar o<br />
leite das seringueiras." Tais considerações, vale salientar, constam da pesquisa que<br />
esse autor faz na região da BR-364 entre 1972 e 1975. Desgraçadamente não demorou<br />
muito para que essa situação se modificasse para pior pois em 1985 quando me dirigi pela<br />
primeira vez a essa mesma área o que vi foi um, quadro desolador de devastação ao lado<br />
de uma situação de conflito generalizado. Em 1989 e início de 1990 estive durante três<br />
meses nessa mesma área - a região de Ariquemes - e constatei que essa situação ainda<br />
prevalece agora agravada pela retomada da exploração dos garimpos.<br />
Ariquemes<br />
A escolha que fiz da região de Ariquemes para a realização de minha pesquisa se deu por<br />
ser ali um lugar privilegiado em que duas situações, a do seringueiro e a do colono,<br />
mostravam-se de forma bastante exemplar. Na verdade eu pude encontrar núcleos de<br />
populações antigas em outras áreas da BR-364, mas Ariquemes era a única que possuía<br />
em seu território um contingente dessa população bem caracterizado, que<br />
sobreviveu à ocupação dos projetos de colonização. Trata-se dos habitantes da Vila<br />
Velha - Antigo Ariquemes - que está situada à margem direita do Rio Jamari.<br />
Comentava-se, aliás, que com o surgimento de novas cidades ao longo da BR-364<br />
não existia mais populações antigas habitando os velhos núcleos originários do<br />
extrativismo. Tais populações teriam desaparecido por completo? Se isso fosse verdade<br />
onde e como estariam vivendo? Eu estava seguro de que encontraria por ali ao menos<br />
alguns seringueiros que pudessem me contar o que havia acontecido. Pois em Vila<br />
Velha, quando lá estive em 1985, encontrei trezentas famílias que de um modo ou de<br />
outro estavam ligadas ao extrativismo da borracha. Este lugar estava, pois ali, bem ao lado<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
do novo Ariquemes, este todo habitado por migrante vindo do Sul e Sudeste.<br />
Vila velha<br />
Nas duas viagens recentes que fiz à região - ago out. 89 e jan/fev/90 - pude ver<br />
que o antigo povoado se expandiu, embora a antiga vila ainda se conservasse, com<br />
suas casas feitas de madeira e cobertas com zinco ou palha. A SUCAM - órgão federal de<br />
combate à malária - calcula que em torno da antiga vila existam 533 casas com 2.398<br />
moradores - 50 0 /o a mais que em 1985. Mas se a área da vila for ampliada incluindo-se<br />
nela todo o bairro Marechal Rondon tem-se mais... 277 casas com 1.246 moradores,<br />
perfazendo assim um total de 3.644 moradores.<br />
Pouca coisa mudou na vila desde a época em que estive lá pela primeira vez. O<br />
lugar dispõe agora de uma extensão da rede elétrica de Ariquemes, embora ainda não<br />
tenham sido iniciados os serviços de iluminação pública e apenas alguns moradores<br />
tenham feito ligações para o interior de suas residências. O abastecimento de<br />
água ainda é feito de modo artesanal - os moradores retiram-na diretamente do rio,<br />
transportando-a até suas casas em latas de cinco galões ou em panelas que acomodam em<br />
suas cabeças.<br />
Durante o tempo em que permaneci em Ariquemes deslocava-me com frequência à<br />
tardinha para organizar minhas anotações e dormir. Procedia desse modo porque queria<br />
aproximar-me mais de seus moradores e tanto quanto possível registrar novos<br />
acontecimentos; mas nada acontecia de novo. As pessoas e a rotina do lugar eram<br />
as mesmas. Todos os dias mulheres e crianças eram atendidos no posto de saúde.<br />
Outras mulheres carregavam trouxas de roupa à cabeça, após terem sido lavadas no rio,<br />
lá mesmo onde tomavam banho. Crianças brincavam em pequenos grupos com carrinhos de<br />
madeira e bonecas de aspecto encardido, enquanto velhos conversavam ou realizavam<br />
dentro de suas casas pequenos serviços. Um ou outro morador chegava de uma<br />
pescaria trazendo alguns peixes - pacu, jatuarana - enquanto outro vendia palmas de<br />
banana numa espécie de quitanda improvisada num canto da casa. Cães vadios circulavam<br />
pelo descampado que limita o quadrilátero em torno do qual se erguem as casas. Lá adiante<br />
eu via passar Eleutério, o único índio sobrevivente que alguém me dizia ser descendente<br />
dos Ariquemes. A vila parecia mesmo ter parado no tempo tal a lentidão que eu sentia<br />
naquelas tardes úmidas e quentes.<br />
Mas eu pude observar que há por parte dos moradores um forte sentimento que os<br />
prende ao lugar. Aliás, eu havia posto isso em dúvida logo que cheguei, pois nesses<br />
quatro anos em que me ausentara pareceu-me que a vila havia sido transformada em<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
mais um bairro do novo Ariquemes. Não era assim. Pois aqueles moradores com quem<br />
conversei só fizeram reafirmar esse sentimento de identificação com o lugar, sempre<br />
lembrando que tiveram que lutar para defendê-lo contra as investidas da prefeitura que<br />
insistia em destruí-lo usando até meios violentos, por isso o lugar parecia ser mesmo uma<br />
espécie de refúgio daquela população que ali se juntava numa tentativa quase<br />
desesperada de preservar seu passado. "ali me disse um velho morador - estão fundadas<br />
nossas raízes. O nosso amor (está) dedicado todo naquele bairro; porque foram nossas<br />
coincidências primeiras, de nossos primeiros passos quando chegamos do nordeste".<br />
Vila Velha alinha-se assim a saga do seringueiro; simboliza a tradição; juntamente ali onde o<br />
tempo está, por assim dizer, distendido no seio da nova ordem que dilacera os sentimentos<br />
e espolia a memória.<br />
Aspectos metodológicos<br />
Convém notar desde logo que não estou interessado em, analisar aqui o quadro mais<br />
amplo em que se dá o processo de colonização em Rondônia, nele incluída sua dimensão<br />
econômica. De modo que as ocorrências observadas nesse nível possuem neste trabalho<br />
apenas o valor relativo, pois se destinam a elucidar fenômenos de outra ordem. Assim,<br />
quando recorro, por exemplo, à tentativa de quantificar a produção de borracha do<br />
colono da região do MassanganaAriquemes, torna-se menos relevante o índice que<br />
caracteriza tal produção do que a significação que essa, prática adquire para alguém,<br />
como o colono do Sul, oriundo de urna cultura estranha à essa experiência. O mesmo<br />
pode-se admitir com relação ao seringueiro - que embora mantenha sua atividade<br />
tradicional - dedica-se hoje à produção de leite ou requeijão, além de naturalmente ter que<br />
lidar com a criação de bois e vacas.<br />
De sorte que meu interesse aqui se volta para o esforço de tentar compreender<br />
a dinâmica do contato entre diferentes segmentos da sociedade nacional subordinada a um<br />
enfoque de natureza mais ideológica. O contato entre essas populações estabelecidas<br />
em "áreas de fronteira" compreenderá naturalmente as relações sociais que se dão<br />
entre os diferentes grupos, mas a análise que devo realizar recairá especialmente na<br />
dimensão ideológica dessas relações, ou seja, nas representações e na simbologia que<br />
as acompanham (Cardoso de Oliveira, 1976:14).<br />
A noção de fronteira que pretendo aqui recuperar ajuda-me a compreender, por<br />
outro lado, a natureza do movimento populacional no âmbito da sociedade brasileira e, por<br />
consequência, a própria dinâmica do contato a que me referi. Para tanto a fronteira será<br />
concebida como um lugar essencialmente simbólico para onde se dirigem os homens a<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
fim de realizar seus projetos. Portanto, mais do que um mero espaço geográfico. a fronteira<br />
seria por excelência o lugar privilegiado das novas construções sociais quando não se<br />
converte em palco de conflagrações e tragédias. Como assinala Pierre Bourdier a fronteira<br />
não é apenas produto de um ato jurídico de delimitação, mas ela "produz a diferença cultural<br />
do mesmo modo que é produto desta" (1989:115). Ele diz ainda que fenômenos como a<br />
"desertificação" - e conviria lembrar tantos outros semelhantes - estariam assim<br />
submetidas à contribuição de fatores sociais, ao invés de constituirem meras "paisagens",<br />
tão a gosto dos naturalistas (ibidem, pág. 115). Menos ainda, como ocorre em nosso País,<br />
existiram os chamados vazios demográficos, recorrentes no discurso oficial que a pretexto<br />
de realizar projetos destinados a acomodar populações ou a garantir nossa soberania, ao<br />
contrário têm resultado no extermínio ou abandono de populações que de fato os ocupam.<br />
O estudo de contato envolvendo diferentes culturas parece exigir assim emprego de<br />
procedimentos bastante complexos, sobretudo se pretende considerar o sistema cultural<br />
como um todo. "A focalização da cultura como objeto substantivo da investigação - diz<br />
Cardoso de Oliveira - resulta na impossibilidade de estudar o "sistema intercultural" como<br />
urna unidade com um grau relativo de autonomia, pois seria sempre difícil identificar no<br />
exercício da pesquisa um sistema cultural "sincrético" porquanto originário da integração das<br />
duas (ou mais) culturas em conjunção" (1978:84).<br />
A meu ver este problema se agrava quando não ocorre de não estar lidando diretamente<br />
com as chamadas culturas primitivas em contato com os segmentos da sociedade nacional.<br />
Se nesse caso, como assinala o autor, corre-se o risco de fracionar a sociedade nacional<br />
envolvente e a estudar as diferentes comunidades não-indígenas como se estivesse<br />
estudando culturas singulares, mais difíceis se torna estabelecer uma metodologia que dê<br />
conta de explicitar o contato entre segmentos pertencentes à mesma nacionalidade. Afinal,<br />
no caso que temos em vista caberia indagar: o quê de fato constituiria o assim chamado<br />
segmento "migrante" vis a vis os seringueiros? Estaríamos diante de evidências étnicas que<br />
pudessem melhor caracterizá-los? Ora. os assim chamados "colonos do Sul", em sua maioria<br />
descendente de alemães e italianos, como é sabido, provêm de diferentes áreas<br />
geográficas e, culturalmente. são herdeiros de tradições que vieram da Europa no século<br />
XIX, enquanto outros - também numerosos - a exemplo dos mineiros e capixabas, encontram-<br />
se mais arraigados ao universo da assim chamada cultura brasileira. Portanto já nesse ponto<br />
caberia esclarecer de quê colonos está se falando. Mas isso não se torna a meu ver<br />
relevante. Vale dizer que temos que proceder a uma elaboração detalhada de culturas<br />
particulares, o que mais me interessa aqui é observar o impacto que a colonização tem<br />
produzido no âmbito das culturas locais, nelas incluída a do seringueiro. Nesse caso a<br />
32
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
hipótese que tenho em vista apoia-se no pressuposto de que os seringueiros constituem<br />
um segmento relativamente autônomo que através de gerações sucessivas vêm<br />
desenvolvendo no interior da floresta uma experiência mais ou menos comum.<br />
Assim constatamos a mesma dificuldade - já apontada por Cardoso Oliveira - de<br />
tratar essas diferentes culturas como conjuntos globais ou "sistemas sincréticos". Mesmo<br />
assim considero que a contribuição desse autor muito me ajuda a compreender essa<br />
situação particular de diferenciação cultural. "Do mesmo modo - diz ele que, por exemplo,<br />
a sociedade nacional é um sistema social suscetível de ser analisada através de sua<br />
estrutura de classe, a situação de contato (...) pode ser analisada mediante o que denominei<br />
fricção interétnica - o que seria o equivalente lógico do que os sociólogos chamam de luta de<br />
classes." (1978:85). O pressuposto é que via de regra, as relações presentes nessas<br />
situações são acompanhadas de conflitos decorrentes da exploração econômica e do<br />
domínio político que um grupo exerce sobre o outro, ainda que tal processo não se coadune<br />
com o parâmetro das relações de classe. Assim, embora não se trate em nosso caso de<br />
verificar o envolvimento de sociedades indígenas frente a segmentos da sociedade nacional<br />
- situação para a qual aquele autor dirige sua reflexão - sabe-se que a presença maciça de<br />
populações migrantes nas chamadas áreas de fronteira tem criado tantas e tão graves<br />
situações de conflito envolvendo grupos nacionais locais, que em muitos aspectos se<br />
assemelham àquelas em que comunidades indígenas são atingidas. De sorte que,<br />
mesmo reconhecendo-se serem os seringueiros um segmento nacional, o fato de terem<br />
sido encontrados no interior da floresta onde justamente foram instalados os projetos de<br />
colonização, trouxe-lhes tão sérias dificuldades quanto as tiveram as populações<br />
indígenas - ainda mais se consideramos que a antiga estrutura fundiária regional não lhes<br />
reserva quaisquer garantias, expondo-os assim aos interesses da empresa colonizadora.<br />
Como veremos em outro lugar, há por parte dos migrantes um reconhecimento de que o<br />
seringueiro constitui um obstáculo aos seus objetivos, fato este que transparece tanto<br />
ao nível econômico em que, por exemplo, pretende-se privá-lo da posse da terra, como ao<br />
nível ideológico em que certos estereótipos o comparam negativamente ao índio ou o<br />
têm como um ser inferior.<br />
"Esse povo que vem do Sul é querido aqui no Jaru. Agora quem vive aqui, que é filho<br />
natural daqui eles desprezam. Faz de conta que não existe. O que vêm de Minas, do<br />
Paraná, do Espírito Santo, é querido; têm tudo. E se tiver dinheiro então, aí é que eles<br />
(autoridades) gostam mesmo. Agora os daqui, como não têm dinheiro eles desprezam; faz<br />
de conta que é bicho do mato, onça, veado, macaco. O que eles fazem é isso.<br />
"(E36,18).<br />
Aliás, como tem sido afirmada, a estigmatizarão sempre surge nessas ocasiões como<br />
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um instrumento eficaz no sentido de remover as minorias dos caminhos da competição.<br />
Desta maneira a ocupação que os seringueiros têm feito de um determinado<br />
território há mais de um século acabou assim expondo-os de maneira ostensiva aos olhos<br />
do colono, nas circunstâncias em que se deu o processo de ocupação. Isso talvez já se<br />
constitua numa razão para justificar a necessidade de se estudar o contato que envolve<br />
essas populações nacionais. Esta me parece ser, aliás, uma tarefa teórica que se impõe<br />
para se entender a própria dinâmica da sociedade nacional. Em termos práticos<br />
naturalmente para efeito de análise, eu incluiria num "sistema", de um lado os<br />
seringueiros e do outro os colonos, apesar das diferenciações que possam existir no<br />
interior dessas categorias sociais. Torna-se assim secundário, por exemplo, se as<br />
técnicas produzidas no cultivo do solo foram introduzidas por colonos paranaenses ou<br />
gaúchos, pois o que desejo investigar é em que medida a agricultura como um modo de vida<br />
tem afetado aqueles padrões locais em que se mesclam elementos da tradição sertaneja<br />
nordestina com os que foram adquiridos no convívio com a natureza mais primitiva da<br />
Amazônia.<br />
Em busca dos seringueiros<br />
Depois de esperar alguns dias em Ariquemes consegui enfim transporte e fui até à<br />
linha C-40 do Projeto Marechal Dutra. Para isso utilizei-me na viagem - 40 km de Ariquemes<br />
- de um pequeno veículo adaptado de uma pick-up acionada por um motor da marca<br />
Tobatta, de um cilindro de 11 lota de força. Por andar vagarosamente - cerca de 12 km por<br />
hora - e ser utilizado na roça o pessoal quase como um ser vivo, chamando-o de "jerico" ou<br />
"Jerico-agrico". O seringueiro em cuja casa permaneci alguns dias afirmou que "aquela<br />
invenção" já teria vindo prontinha de Santa Catarina! E apesar de demonstrar certo desdém<br />
por essa inovação ele não deixa de reconhecer sua grande utilidade. Diz assim que quando<br />
o te m par ado e m c asa ta l peça fa z fu ncionar u m ger ador capa z d e<br />
fornecer lu z ou captar água do poço. Observou então que o comprou com o dinheiro<br />
de 10 alqueires de terra que vendeu do seu lote de 42 alqueires. Eu notei assim que tal<br />
"Jerico" se inclui na nova estratégia de sobrevivência que o seringueiro traçara para si<br />
próprio em decorrência da colonização.<br />
Devo designar o seringueiro de quem estou falando. Ele se chama Valdemar<br />
Andrade de Almeida. Tem 42 anos e nasceu ali mesmo na região do antigo seringal São<br />
Sebastião, onde mora até hoje numa casinha de madeira com sua mulher e três filhos.<br />
A gleba de terra na qual possui hoje um lote de 100 ha fazia parte dos antigos<br />
seringais Guarani e São Sebastião e, com a instalação do projeto implantado pelo<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
INCRA, sua antiga casa ficou incluída nos limites de outro lote. Esses fatos como verão mais<br />
adiante, só lhe trouxe prejuízos e aborrecimentos, além, de expressar bem as dificuldades<br />
que os seringueiros enfrentam. Hoje Valdemar procura conciliar o trabalho da seringa com o<br />
da agricultura e com sua colaboração, procurei fazer um levantamento das atividades<br />
que desenvolve nessas duas áreas.<br />
Projeto Marechal Dutra - C-40 Gleba no. 34 - Lote nº 33 Valdemar Andrade de<br />
Agricultura<br />
Almeida Produção de Janeiro a Outubro de 1989<br />
PRODUTO PLANTIO PRODUÇÃO<br />
Feijão - 80 Kg<br />
Arroz 15 Litros 15 sacos de 60 Kg<br />
Milho 16 Litros 16 sacos de 60 Kg<br />
Mandioca 5.000 Covas 160 sacos de 60 Kg<br />
Amendoim 6 Litros 6 sacos de 60 Kg<br />
Café 1.000 pés -<br />
Cana-de-açúcar 100 Covas -<br />
Cacau 50 pés -<br />
Banana 1.000 Covas 600 Cortes<br />
Nota: Vendeu-se uma parte maior da produção de farinha e de banana.<br />
Antes de relacionar a produção de borracha podemos de fato notar que suas<br />
atividades se estendem a outros gêneros, incluindo a criação de aves e animais, bem<br />
como uma produção doméstica de frutas. Indiquemos estas primeiramente e em<br />
seguida os animais e as aves.<br />
FRUTAS QUANT. <strong>DE</strong> PÉS<br />
Laranja 30<br />
Tangerina 25<br />
Goiaba 10<br />
Beribá 10<br />
Abacate 08<br />
Jaca 08<br />
Cupuaçu 05<br />
Limão 05<br />
Azeitona 03<br />
Pupunha 02<br />
Coco 06<br />
Ingá 03<br />
TOTAL 115<br />
Vale notar que algumas dessas frutas, como o cupuaçu, a pupunha e a Ingá são nativas da<br />
região, mas que o seringueiro planta em seu novo sítio por apreciá-las em seu consumo já<br />
tradicional.<br />
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ANIMAIS QTD. <strong>DE</strong> CABEÇAS<br />
Gado<br />
Touros 01<br />
Vacas 03<br />
Novilhos 03<br />
TOTAL 07<br />
Obs.: As vacas produzem em média oito (08) litros de leite por dia. Parte desse leite - como me informou - é empregada<br />
para fazer requeijão, cuja técnica diz ter aprendido com seus vizinhos mineiros.<br />
OUTROS ANIMAIS E AVES QUANTIDA<strong>DE</strong><br />
Porcos 07<br />
Galináceos 13<br />
Cães (caçadores) 06<br />
Obs.: Possuía na verdade 100 galinhas, mas a maior parte havia sido atingida por doença.<br />
Vejam-se os nomes dos cães caçadores: Jaime, Campeiro, Campino, Tupã, Bicó<br />
e Pretinha. Eles aparecem sempre com destaque nas ocasiões em que contam<br />
casos de caçadas perigosas ou aventuras praticadas no interior da mata. Além disso,<br />
esses animais reforçam os aspectos de intimidade que se faz notar em torno do ambiente<br />
da casa do seringueiro, tal é o envolvimento que se tem com eles.<br />
Borracha - (Lugares onde excede a atividade lucrativa<br />
LOCAL Nº <strong>DE</strong> ÁRVORES<br />
Lote nº 33 (Próprio) 30<br />
Lote do Sr. Vitório Amaral 80<br />
Lote do Paulo “Alemão” 90<br />
Total de Árvores 200<br />
Deve-se notar que Valdemar corta seringa três ou quatro dias por semana e produz<br />
em média 70 Kg de borracha por mês no período de abril a novembro/ Acrescente-se ainda<br />
que o quilo da borracha em outubro de 1989 estava cotado em Ncr$ 4,50. Seu preço em<br />
maio de 1990 era Cr$ 55,00.<br />
Numa ocasião tive a oportunidade de obser v ar o desenvol v imento do seu trabalho. Assim,<br />
mostrando-me uma árvore de seringa, ele explicou-me que para extrair o látex precisa fazer<br />
quatro incisões ("traços") na ár v ore, utilizando-se de uma faca apropriada - tipo sabong<br />
- consumindo nesta tarefa de um a dois minutos. Explicou-me ainda que haja<br />
alguns anos atrás ele fazia apenas uma incisão em cada árvore e hoje procede dessa<br />
forma porque o látex tomou-se mais fraco devido ao esgotamento das árvores. Por isso<br />
ele afirma que com, quatro traços - que na árvore forma um desenho parecido com<br />
uma espinha de peixe, nome dado a este tipo de corte - a seringueira acaba sendo<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
maltratada. Como ele mesmo diz "a seringa hoje vive esbagaçada (pois) não tem<br />
regulamento", lembrando assim as exigências feitas nos seringais antigos. De modo que<br />
a única forma que encontra para contornar esse problema é explorar durante algum tempo<br />
só um lado da árvore, deixando o outro, como ele diz. "descansando", até que se recupere<br />
cinco ou seis anos. Essa situação, aliás, é comum nessa área, como pude ver mais à<br />
frente na Colocação Coelho, onde o Sr. João Lolô precisa utilizar-se de uma escada para<br />
cortar a parte mais alta das árvores, devido à mesma causa relacionada com seu<br />
esgotamento.<br />
É fácil notar que a atividade que Valdemar exerce como seringueiro foi substancialmente<br />
reduzida. Pois as 200 árvores que ele hoje consegue explorar no seu próprio lote e em lotes<br />
vizinhos corresponde a pouco mais de uma estrada de seringa. De modo que se ele fosse<br />
se ocupar apenas em cortar seringa precisaria dispor de pelo menos 450 árvores, que<br />
corresponderiam a três estradas que exploraria alternadamente durante a semana. Se<br />
fôssemos assim proceder ao cálculo dessa produção certamente concluiríamos que a<br />
borracha hoje constitui para ele uma atividade apenas acessória - embora sua colocação no<br />
mercado seja mais fácil propiciando-lhe assim dispor de algum dinheiro. Seu preço,<br />
pelo menos quando lá estive - possuía maior garantia do que os produtos agrícolas. Esse<br />
fato, aliás, vinha estimulando a que colonos se dedicassem cada vez mais a cortar seringa.<br />
Cabe observar, porém, que malgrado essa atividade tenha deteriorado nesses<br />
últimos anos, Valdemar continua a identificar-se como seringueiro. Assim durante a semana<br />
ele sai de casa quase todos os dias muito cedo, com sua roupa característica de<br />
seringueiro, toda respingada de látex coagulado, formando manchas escuras, poronga à<br />
cabeça, a faca de um lado e a espingarda do outro, em direção às estradas onde vai repetir<br />
sua faina costumeira.<br />
Os colonos vizinhos<br />
Numa das ocasiões em que estive conversando com Valdemar,<br />
acompanhava-nos dois jovens irmãos mineiros, seus vizinhos, sempre muito afáveis<br />
e, ao mesmo tempo, interessados nos assuntos que desenvolvíamos. Assim, num certo<br />
momento da conversa em que Valdemar discorria sobre o desmatamento que<br />
atinge aquela área, um deles pôs-se a interpretar o que o seringueiro dizia com<br />
tristeza: "Eu acharia bom se tivesse um lugar aqui que eu só mexesse coro seringa. Um<br />
lugar assim que não fosse desmatado, onde tivesse muito peixe, muita caça e muita<br />
seringa pra eu+cortar". E o colono logo observou dirigindo-se a mim: "Eu acho qu'eles<br />
num acha bom por causa desses cara mais chegado que vêm de fora; que vai<br />
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derrubando tudo, a seringueira, a castanheira, (e) aí vai ficando ruim pra eles e pra<br />
nóis também". Demonstrava assim solidário para com o vizinho seringueiro ao mesmo<br />
tempo em que revelava dedicar-se ele mesmo ao trabalho de cortar seringa. Por isso<br />
ousei lhe indagar se não desejaria tornar-se seringueiro de uma vez. "Pode até virar,<br />
né?", ponderou. E logo observou: "(Se) já tão cortando seringa, já são seringueiro.<br />
Agora, só cortar seringa num tem jeito, porque já tão ficando pouca seringa".<br />
Pode-se ver assim que há por parte do colono um claro reconhecimento do novo<br />
trabalho que executa além de manifestar inequívoca simpatia pelo seringueiro.<br />
Evidentemente este fato é um sinal de que melhoram a cada dia as relações entre<br />
eles; talvez por viver ali um destino comum tão próximo da pobreza e do sofrimento<br />
que os igualam. Naquelas circunstâncias, aliás, o colono parece até enfrentar um<br />
sofrimento maior devido a sua desadaptação ao meio ambiente que o torna presa fácil de<br />
doenças. Mas as coisas nem sempre foram assim. Valdemar não esquece a história de<br />
uma colocação de seringa que possuía na beira do rio, com sua casinha bem construída, o<br />
pomar em volta, os animais no terreiro, e que a perdeu quando o INCRA chegou ali<br />
fazendo demarcações. "Eu tinha uma casinha lá de oito metros de comprimento por cinco<br />
de largura, coberta de palha, mas uma cobertura bem feitinha assoalha bem feita, toda<br />
cercada de paxiúba e açaí... Então quando "Seo" Zé (irmão Gentil) comprou o lote, aí nós<br />
fomos bater a lateral e ficou prá eles". Ele lamenta também ter perdido o pomar e outras<br />
benfeitorias que lhe exigiram tanto trabalho e sacrifício. Ouvindo-o, tem-se a impressão de<br />
que foi ele arrancado do lugar em que vivia há tantos anos. Para ele a causa de tudo prende-<br />
se ao fato de que "naquele tempo num tinha projeto de linha aqui; de cada qual ter o seu<br />
lote. " E continua sua narrativa, lembrando o esforço que ele e seu irmão (João), também<br />
seringueiro, fizeram em vão para permanecerem próximos em lotes vizinhos.<br />
Na verdade a colonização não só produziu situações absurdas como essa,<br />
desorganizando o espaço em que vivia o homem local, mas chegou mesmo a subverter o<br />
significado que dava a sua relação com as coisas que o rodeavam: a terra, os rios, as<br />
plantas, os animais etc. Tratava-se de uma significação que desenvolveu com seus pais e<br />
que foi sendo elaborada passo a passo, ao longo dos anos, desde o tempo em que foram<br />
deslocados do Nordeste para a Amazônia para produzir a borracha. Havia os patrões e o<br />
barracão, é verdade, mas isso não impedia que fossem construindo nos espaços<br />
intersticiais das relações, uma experiência de liberdade e de uso pelo da natureza_ Assim.,<br />
somente através dessa compreensão, será possível o entendimento da reflexão que o<br />
seringueiro desenvolve:<br />
"Nóis nunca pensava em ser dono de terra. Aonde a gente cortava seringa, agente falava assim: por onde<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
tinha aquelas estradas de seringa tudo era da gente” (V. A.).<br />
Essa é enfim a memória sofrida - e ainda muito recente - que se desenrola em torno do<br />
que vem ocorrendo ali. Em alguns momentos o seu lado mais doloroso é substituído<br />
cedendo lugar à amizade e à cooperação; em outros o inconformismo torna-se indisfarçável:<br />
"... a gente tem aquela confiança de mexer com a seringa... acha que tá liberado ainda pra gente; (mas) aí os<br />
cabra vão e carrega a borracha da gente. Já aconteceu de eu ir juntar minha borrachinha e chegar lá<br />
nem as lata num tava.”' (V. A.)<br />
Pouco depois de ouvir denúncia tão contundente - quando então os dois rapazes já<br />
haviam se retirado - chega alguém procurando Valdemar. Era uma filha do seu vizinho Gentil,<br />
pais dos jovens, que lhe trazia um pedaço de carne de paca. Só então soube que eles<br />
costumam trocar alimentos desse gênero, sobretudo naquelas condições de desmatamento<br />
em que cada dia se torna mais difícil obtê-los em caçadas. Assim, eu pus-me a especular<br />
que urna coisa é a história mais larga que continua a lhes preparar armadilhas perigosas, e<br />
outra é esse dia-a-dia que em certas ocasiões lhes impõe o exercício de reciprocidade.<br />
Embora se saiba que unia fração dos colonos explore borracha em seus sítios, torna-se<br />
difícil avaliara situação em que se desenvolve essa atividade entre eles. Mesmo assim,<br />
através de contatos com compradores de borracha de Ariquemes, pude considerar<br />
que essa produção é pequena, não devendo ultrapassar a faixa de 10% do que os<br />
seringueiros produzem. Baseado nas informações que colhi vejamos a produção global<br />
de uma área do município de Ariquemes.<br />
MUNICÍPIO <strong>DE</strong> ARIQUEMES - 1989 PRODUÇÃO (PARCIAL) <strong>DE</strong> BORRACHA<br />
ÁREA No. <strong>DE</strong> SERINGUEIROS PROD. MENS.-<br />
Machadinho 300 24.000<br />
Campo Novo 80 6.400<br />
Massangana e Candeias 100 8.000<br />
Fonte: dados de campo. Ariquemes, out./1.989<br />
Observações: 1) A produtividade varia naturalmente de uma para outra área,<br />
salientando-se que cada seringueiro produz em média 80 kg de borracha por mês, de abril a<br />
novembro; 2) Meus informantes observam ainda que cada colono deve produzir de 10 a 20<br />
kg de borracha por mês, embora não saibam dizer quantos se dedicam a essa atividade<br />
no período correspondente ao fábrico; 3) Embora precários, julgamos que esses dados<br />
nos dão uma idéia desse novo campo de trabalho para o qual se contam pessoas que até<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
bem pouco tempo ignoravam e não o incluíam em suas estratégias de sobrevivência; ao<br />
mesmo tempo em que aponta para a transformação operada pelo colono em seu contato<br />
com o novo meio.<br />
Aliás, é interessante observar como vem se dando entre colonos -<br />
especialmente entre os mais jovens - o aprendizado da seringa. Disse-me assim este<br />
rapaz de 20 anos:<br />
"Nóis pensava que eles cortava seringa na mata era com facão ou faca de cozinha; mas depois que<br />
nóis cheguemo o filho do Valdemar chamou nóis pra cortar uma seringueira ali. Aí nóis foi aprender<br />
com ele." (On.).<br />
Deve-se ressaltar que esse aprendizado não se restringe apenas ao corte da<br />
seringa. Pois na verdade se realiza juntamente com outras atividades que fazem parte<br />
da prática tradicional do seringueiro, como por exemplo; caça e pesca:<br />
"Aprender a pescar sóis aprendeu foi com eles também. Nóis ia no rio e num pegava peixe; agora se<br />
nóis foi; nóis já pega! Aprendemo a caçar e fachiar. "(On.).<br />
O seringueiro como se vê, vai pouco a pouco introduzindo o recém chegado naquele<br />
novo meio, ensinando-lhe o manuseio de instrumentos e o domínio de técnicas com os<br />
quais deve retirar da natureza os recursos que necessita. Mas não é só. O seringueiro<br />
ensina-lhe também a linguagem local, ou, em outros termos, insere-o na cultura em que ele<br />
mesmo foi criado. Assim no instante em que o colono se referia ao modo de caçar à noite<br />
com fachiadeira, ele logo se apressou em explicar:<br />
"Fachiar é caçar de noite sem cachorro; só com a lanterna e a espingarda. A palavra fachiar<br />
nóis conhecia do jeito como poronga... A poronga que a gente fala é uma lamparina, dentro de uma<br />
latinha, com um espelho fazendo sombra pra clarear só na frente... Então a gente andava assim com<br />
aquilo na cabeça e a espingarda na mão... Hora que a gente visse qualquer bicho, a gente já via os olhos<br />
dele brilhar no reflexo da luz. Aí a gente ia devagarinho até chegar na posição de dar o tiro!" (VA.)<br />
Conclusão<br />
Avaliando-se o resultado geral desse trabalho é possível verificar que a<br />
atividade em Rondônia persiste, apesar de todas as dificuldades decorrentes da<br />
colonização que se instalou ali nesses últimos vinte anos.<br />
Aliás, segundo dados da SUDHEVEA, a produção de borracha em Rondônia<br />
cresceu nesses últimos anos, passando de 5.042 t em 1978 para 10.612 t em 1985;<br />
sendo que tal produção corresponde ao período em que triplicou o número de<br />
migrantes, indicando desse modo sua resistência face aos investimentos<br />
agrícolas mais consentâneos com os objetivos da colonização (1980=49.205<br />
migrantes/ 1986=165.899 migrantes. Fonte: SEPLAN - Governo do Estado de<br />
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Rondônia).<br />
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Essa permanência, contudo, vem se dando aos atropelos, devido<br />
principalmente aos transtornos da desorganização espacial e o grau de violência que<br />
acompanham a instalação dos projetos de colonização.<br />
Ressalva-se ainda que algumas dificuldades tem se interposto a essa<br />
continuidade, pois, como pude observar, a manutenção da atividade extrativista se<br />
sustenta, grosso modo, no esforço de seringueiros mais velhos - 35 a 45 anos.<br />
Percebe-se desse modo que a geração mais jovem que constitui os descendentes<br />
desses atuais seringueiros reluta em seguir o aprendizado de seus pais,<br />
inclinando-se a procurar novas ocupações nas cidades que hoje são ali atingidas mais<br />
facilmente.<br />
A situação que relatei envolvendo o Projeto Marechal Dutra em Ariquemes<br />
mostra, por outro lado, as possibilidades e os limites do extrativismo em Rondônia. Pois,<br />
como vimos, os seringueiros tratam de estabelecer estratégias habilidosas de<br />
sobrevivência, buscando o convívio com os que vêem de fora. Assim, em<br />
circunstâncias em que se vêem praticamente encurralados, decide-se a não opor<br />
qualquer resistência, utilizando-se de mecanismos que favoreça a aproximação com os<br />
colonos.<br />
Paralelamente, ao lado de motivações que se encaminham nessa direção, pode-se ver<br />
ali entre seringueiros e colonos oriundos de diversas procedências a manifestação de uma<br />
clara diferenciação cultural; E isto torna possível discernir com segurança a<br />
particularidade dos campos simbólicos em que se movem os agentes sociais.<br />
Destarte, as representações que elabore, acercado mundo em que vivem guardam,<br />
entre si, discrepâncias essenciais. Assim, se tomarmos como referência, por exemplo,<br />
a linguagem observou que a que mais se identifica com a do colono penetra com maior<br />
densidade no espaço da comunicação, algumas vezes competindo com a linguagem local,<br />
outras sufocando-a ou até mesmo suprimindo-a. Um exemplo curioso dessa disputa pode<br />
ser dado através da utilização do termo Quiçaça, introduzido pelos colonos e que hoje<br />
os seringueiros empregam-no corretamente substituindo a costumeira expressão Capoeira,<br />
embora a palavra "quiçaça" não pareça ter para eles o mesmo sentido que os colonos<br />
lhe atribuem. Pois enquanto parecem empregá-la mais como um signo relacionado com as<br />
condições físicas do lugar, os seringueiros manipulam-na como um símbolo ligado à<br />
violência que se abate sobre os homens e sobre a natureza. Como diz Bourdier: “As lutas<br />
a respeito da identidade étnica ou regional (...) são um caso particular da luta das<br />
classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e crer, de dar a conhecer e de fazer<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
conhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por meio, de fazer<br />
e desfazer os grupos" (1989:113). De qualquer modo, a palavra Quiçaça pode ser utilizada<br />
como categoria linguística de transição, capaz de tornar compreensível o processo de<br />
transformação que ali se desenrola.<br />
Outro exemplo, ainda referindo à linguagem, refere-se à denominação Luís<br />
Caxeiro, que a mim mesmo causou embaraço. Eu havia chegado numa segunda viagem à<br />
casa do seringueiro Valdemar (de quem muito tenho falado neste trabalho) e, não o<br />
encontrando nem a sua mulher, acabei sendo recebido por seu filho menor de oito anos, que<br />
muito loquaz logo começou a me ressaltar sobre a morte de um tal Luís Caxeiro. Assim,<br />
enquanto eu me barbeava assustado num canto da casa, ele ia explicando ter sido tal<br />
"indivíduo" morto a golpes de facão, tendo o matador lhe cortado a cabeça e lançando-a<br />
ao mato! Eu não podia imaginar cena mais violenta. Indaguei-lhe então se sabia dos<br />
motivos que levaram o "assassino" a agir daquela forma, desejando desse modo inteirar-<br />
me melhor dos acontecimentos. De sorte que depois de alguma insistência - pois ele não<br />
entendia o que eu lhe perguntava - obtive do menino uma resposta titubeante. "É - disse-me o<br />
menino - eu acho que ele queria comer e foi comido". Acreditei assim que a tragédia fora<br />
mesmo consumada. Um pouco mais tarde, quando então seus pais já haviam chegado da<br />
roça, eu lhe perguntei sobre o que realmente acontecera com o tal Luís Caxeiro, deixando-<br />
os surpresos com a revelação que lhes fazia. Tão logo, porém, pronunciei esse<br />
nome, percebi o alívio e a descontração que lhes acompanhava o sorriso. Pois só então<br />
vim, a saber, que Luís Caxeiro é o termo que se emprega hoje ali para aquilo que antes<br />
conhecia como Porco-espinho!<br />
Em outra ocasião vimos como os colonos utilizam termos locais como "fachiar", com<br />
o qual descreviam as caçadas que realizam durante a noite, mostrando assim a<br />
emergência de uma linguagem nativa que ao mesmo tempo assinala um intercâmbio de<br />
relações. Mas a linguagem para o seringueiro parece denunciar o limite de suas<br />
resistências. “Veja-se, por exemplo, o que nos diz Valdemar acerca de uma planta<br />
nativa conhecida tradicionalmente como açaí, cujas amêndoas produzem um delicioso<br />
vinho e que o colono a abate para extrair-lhe o caule para ser usado em outro tipo de<br />
alimentação.”... quando eles chegaram aqui tinha um negócio de chamar palmito! Palmito!<br />
Mas nóis num sabia o que era palmito!... O palmito que eles fala é o açaí que nóis falava...<br />
E uma comida boa para eles o palmito... eles derrubam, tiram a cabeça e comem no lugar<br />
da carne; é uma mistura."<br />
De sorte o que há ali entre os colonos e seringueiros não é uma simples adequação<br />
de palavras, ou como diria Wittgeinstein. "jogos de linguagem" (1984: 15), mas as<br />
42
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
palavras como as coisas indicariam claramente o sentido da continuidade ou da<br />
mudança.<br />
Bibliografia<br />
AFONSO, Frederico Monteiro Álvares. As Terras do Cacau em Rondônia. Gráfica do<br />
Senado Federal. Brasília, 1976.<br />
BARTH, Frederik. Ethic Groups and Boundaries - The Social Organization of Culture<br />
Difference. Litlle, Brown and Company, Boston, 1969.<br />
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. O Descontentamento do Mundo. Perspectiva, S. Paulo-19'9_<br />
BRANDAO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia. Brasiliense. São Paulo. 1986.<br />
BATESON, Gregory. Mente e Natureza. Francisco Al v es. Rio. 1986.<br />
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Paulo, 1976.<br />
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UNB. Rio. 1978.<br />
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Zahar. Rio. 1978<br />
MENEZES, Claudia. A Mudança: análise da Ideologia de um grupo de Migrante. Imago-INL,<br />
Rio, 1976.<br />
PEIRANO. Mariza G. S. "O Encontro Etnográfico e o Diálogo Teórico” in: Anuário/85. Tempo<br />
Brasileiro, Rio, 1985.<br />
SOARES, Luiz Eduardo. Campesinato: Ideologia e Política. Zahar, Rio, 1981.<br />
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. "O Aviamento e o Barracão na Sociedade do Seringal. (dissertação<br />
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THOMAS Keith. O Homem e o Mundo Natural. Companhia das Letras São Paulo I988.<br />
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesinato. Difel, São Paulo.1976.<br />
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São Paulo, 1984.<br />
WOORTMANN, Klaas. "Trabalho Assalariado, Família e Reciprocidade”. Mimeo. S/d.<br />
*Carlos Corrêa Teixeira. Profº. de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São<br />
Paulo.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
UMA UMA UMA UMA ABORDAGEM ABORDAGEM ABORDAGEM ABORDAGEM JURÍDICA JURÍDICA JURÍDICA JURÍDICA DOS DOS DOS DOS<br />
PRINCÍPIOS PRINCÍPIOS PRINCÍPIOS PRINCÍPIOS SOCIAIS SOCIAIS SOCIAIS SOCIAIS DA DA DA DA VIOLÊNCIA<br />
VIOLÊNCIA<br />
VIOLÊNCIA<br />
VIOLÊNCIA<br />
Antônio Antônio Antônio Antônio Guimarães Guimarães Guimarães Guimarães Brito Brito Brito Brito * * * *<br />
Resumo: O homem é um ser de relação, condição básica de<br />
sobrevivência para uma espécie frágil, sob o ponto de vista natural. Em<br />
um mundo de transformações e constantes ameaças, o ser humano<br />
garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo.<br />
Assim não podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade,<br />
pois é inevitável a inteiração profunda de um e outro. A violência é um<br />
problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada, ou<br />
seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser<br />
humano.<br />
Palavras – Chave: Sobrevivência, Transformações, Primitivo, Violência<br />
e Humano.<br />
Abstract: The man is a relationship, basic survival condition for a fragile<br />
species, as far as natural. In a world of transformations and constant<br />
threats, the human being ensured their survival in the strength of its<br />
primitive social group. So we cannot discuss the man without<br />
considering the society, it is inevitable to inteiração deep one and<br />
another. Violence is a social problem and in this respect is that must be<br />
addressed, i.e. the violence must be studied from the social condition of<br />
the human being.<br />
Keyword: Survival, Transformations, Primitive, Violence and human.<br />
O homem é um ser de relação, condição básica de sobrevivência para uma espécie<br />
frágil, sob o ponto de vista natural. Em um mundo de transformações e constantes ameaças,<br />
o ser humano garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo. Assim não<br />
podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade, pois é inevitável a inteiração<br />
profunda de um e outro.<br />
A violência é um problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada,<br />
ou seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser humano.<br />
Na sociedade há um jogo de forças (pressões, tensões e rupturas) e, nessa realidade<br />
da mobilização social é que vamos encontrar as raízes da violência. O princípio social da<br />
violência, como fator na sociedade, se faz na percepção do homem como agente social<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
de manifestação social. O princípio social da violência interage no movimento das<br />
forças sociais, permitindo estendermos a violência, sem sombra de dúvidas, como fato<br />
social.<br />
A conduta violenta é resultado de determinada pressão exterior sobre o agente. A<br />
motivação é essencial para o desencadeamento da violência. A violência é uma<br />
questão de relação entre o indivíduo com o mundo. O indivíduo contrariado em sua<br />
relação com o mundo, e sentindo-se pressionado por circunstância indesejada,<br />
desencadeia determinada descarga abrupta, mediante, sempre motivação exterior. Há, na<br />
violência, um desejo de resolução, mesmo de libertação.<br />
Quando a violência como fato social desencadeia a ruptura da coesão social, a<br />
sociedade se sente ameaçada<br />
A violência social nasce das diferenças sociais. As diferenças, quando agudas,<br />
ameaçam a coesão do grupo, motivando na própria sociedade o desencadeamento da<br />
violência como resposta a essa ruptura indesejada. A violência social é a descarga<br />
desse descontentamento, quando a sociedade sente-se ameaçada em sua coesão pela<br />
presença das desigualdades. Então, se a violência é fato social, sua origem está na<br />
desigualdade social.<br />
Uma sociedade se autodestrói quando perde a coesão social de seu grupo. Essa<br />
coesão é medida por valores, inteirações e mobilidades. O homem está seguro em uma<br />
sociedade coesa, recordando que, sem a sociedade, o homem está ameaçado em sua<br />
condição transformadora.<br />
Quando as forças sociais em movimento não encontram um relacionamento capaz<br />
de interagir os discursos entre si, a mobilidade social se dissolve em direção ao caos. Isso<br />
acontece quando as diferenças entre os agentes sociais assumem a forma de barreira<br />
intransponível, quebrando a corrente de relacionamento social.<br />
A desigualdade pode assumir várias faces, como a racial, a econômica, religiosa,<br />
entre outras. Algumas diferenças, incorporadas nas relações sociais, dependendo do grupo,<br />
são digeridas, fazendo com que se auto-regule, dentro do contexto social. Por exemplo: Há<br />
determinados grupos cujas desigualdades religiosas não ameaçam a sua coesão social,<br />
pois convivem harmoniosamente entre si, tolerando-se mutuamente. Outros, porém,<br />
são incompatíveis, como palestinos e judeus, hindus e muçulmanos.<br />
Quanto menor a desigualdade, maior a coesão social e mais pacífica as relações<br />
entre os seus agentes; sendo o inverso verdadeiro; a maior densidade de desigualdade,<br />
mais violenta a sociedade.<br />
A formação da sociedade brasileira, levando em consideração seu processo<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
formativo, está sustentada em duas colunas muito bem plantadas na construção histórica: o<br />
latifúndio e a mão-de-obra escrava.<br />
Os 400 anos de escravismo e os primórdios das capitanias hereditárias e sesmarias<br />
criaram um retrato mais ou menos definido, refletindo nas estruturas de formação social.<br />
O trabalho escravo, a apropriação sobre o esforço alheio, o servilismo e o favoritismo<br />
estão estreitamente vinculados aos traços colonialistas de uma sociedade sustentada<br />
quatro séculos sobre o escravismo. A história, mesmo aberta às transformações, é<br />
redundante em suas manifestações sociológicas.<br />
A multiracialização da sociedade brasileira adaptou-se desveladamente no<br />
comportamento do brasileiro, encontrando suas próprias condições de sobrevivência social.<br />
As desigualdades raciais não ameaçam a coesão social brasileira, graças a uma relação<br />
aceita no entrosamento mesmo, sexual, entre seus agentes. A mulata brasileira,<br />
exportada como símbolo sexual da sociedade brasileira, é um alto significado<br />
sociológico do resultado dessa adaptação multiracial.<br />
Se a violência é fato social e a origem da violência social está nas desigualdades<br />
agudas entre seus agentes, a violência na sociedade brasileira tem como responsável as<br />
desigualdades econômicas, ranço histórico de conotação escravocrata.<br />
Nos extremos mundos da desigualdade econômica brasileira se encontra a origem da<br />
violência social generalizada. Insustentável é a sociedade que vive pressionada por<br />
extremos sociais. A desigualdade econômica, quando chega a medidas terminais, ameaça a<br />
própria coesão social. O Brasil está dividido em Estados antagônicos e esta relação oposta<br />
em sua lógica de reprodução vai transformando o meio social em acirrado campo de<br />
confronto entre as entidades dispersas da sociedade.<br />
A diferenciação econômica é inevitável em uma sociedade de classe, sustentada em um<br />
modelo capitalista de produção, porém, a desigualdade econômica, quando se projeta em<br />
uma distância larga de penetração, põe em risco a perpetuidade dos laços sociais. A miséria<br />
de milhões é insuportável violência social. O organismo social não resiste a pressões tão<br />
intensas.<br />
Todas as camadas sociais se tornam vulneráveis quando a sociedade se encontra<br />
em estado convulsivo e a violência social está como um sinalizador desse estado<br />
doentio.<br />
O primeiro sinal perceptível da dissolvição da coesão social é a desproteção<br />
da família, levando as famílias às ruas e estas àquelas.<br />
A família, guardiã das identidades e reprodutora dos valores, é invadida pelo calor<br />
desassossegado das ruas, desagregando a peça essencial de formação social. A violência<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
se estende das ruas aos lares porque a realidade de ambas se aproxima, tornando-se uma,<br />
continuidade da outra.<br />
De que forma o Direito, organizador formal da sociedade e regulador dos diálogos<br />
sociais, deverá se manifestar diante da disseminação da violência na sociedade? Como<br />
punir a violência e quais as políticas preventivas a serem adotadas em nosso sistema<br />
jurídico?<br />
Em tempos de violência pensamos em justiça. Nesse diálogo entre violência<br />
social e a prestação jurisdicional do Estado, é preciso evocar o juízo de justiça, para que<br />
não se perca esforços e nem se alimente mais violência na sociedade.<br />
Meramente punir, castigar e reprimir tornou-se insuficiente em uma prática de<br />
justiça. O Direito pós-moderno está muito mais preocupado em uma teoria de riscos do que<br />
de culpa, em uma maior prática preventiva do que punitiva. É nessa perspectiva de Direito<br />
Societário que discutimos a violência.<br />
Justiça é incompatível com miséria. Enquanto houver desigualdades extremas,<br />
qualquer pretensão de justiça é o livre exercício da injustiça. Considerando as<br />
insuportáveis condições de sobrevivência, de uma multidão de miseráveis, o braço da justiça<br />
se transforma num gesto único de maldade de uns sobre outros. A sociedade vive em<br />
mundos distantes e as regras de sobrevivência não obedecem aos mesmos padrões.<br />
Nesse panorama de desigualdades existenciais, como aplicar a justiça em condições<br />
injustas?<br />
Justiça é condição de vida decente para todos. O Direito, corno principal articulador<br />
das relações sociais, deve participar decisivamente nesse processo de pacificação social.<br />
O Direito está para a violência como a medicina para a doença e, nesse sentido, é<br />
redobrada a função pacificadora do Direito. A violência social é campo de operação do<br />
Direito, pois a precípua missão da ciência jurídica é tornar a convivência social possível, em<br />
suas relações.<br />
Injusto punir o delinqüente e silenciar quanto as raízes da delinqüência. O bom<br />
Direito ensina que em tempos de violência as regras jurídicas devem intervir nos<br />
processos geradores da violência. Precisamos do cumprimento de regras jurídicas<br />
mitigadoras das tensões sociais.<br />
É essencial aos operadores do Direito a visão social da violência, pois somente nesta<br />
perspectiva é que encontraremos uma prática justa do Direito, criando condições favoráveis<br />
ao combate da violência.<br />
Políticas geradoras de emprego, combate ao analfabetismo, melhora das condições<br />
de saúde, são preocupações ativas do Direito. O Direito, em uma acepção de justiça<br />
47
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
social, deve intervir nas diversas políticas sociais, tendo como finalidade resguardar a paz na<br />
sociedade.<br />
A ciência jurídica, em sua prática de justiça, precisa ir além da tarefa punitiva,<br />
reformulando as próprias direções políticas em um sentido de bem comum. Conceitos<br />
jurídicos, se antes definidos, não asseguram as condições esperadas de pacificação social.<br />
As mudanças na sociedade exigem princípios publicistas, na órbita de um Direito<br />
societário. A sociedade para sobreviver precisa ser tratada como um todo,<br />
revogando noções utilitaristas e individualistas.<br />
A violência atinge todas as camadas sociais, considerando que as<br />
possibilidades econômicas já não conseguem apartar uns dos outros. Poderíamos<br />
acrescentar que a violência, como um fato social, trata-se de um mecanismo de<br />
autodestruição da sociedade, quando as condições de sobrevivência tornaram-se escassas<br />
para uma quantidade significativa de seus agentes sociais.<br />
A mais nefasta injustiça para o bom Direito é a justiça para alguns. Justiça é para<br />
todos. Quanto mais injustas as relações sociais, maiores a violência entre seus agregados,<br />
pois como já afirmamos, a violência encontra suas origens nas desigualdades extremas de<br />
seus agentes. Naturalmente, as diferenças sociais existem em si, decorrentes de uma<br />
tradição histórica desigual. Essas diferenciações não são necessariamente injustas<br />
quando respeitadas as condições de decência. Tornam-se, porém, injustas quando<br />
assumem desigualdades extremas, rompendo qualquer possibilidade de diálogo social.<br />
Bem esclarece Pegoraro (1995: 107):<br />
"Cabe ao princípio de justiça social administrar as desigualdades históricas. Mas, in lime, a justiça Pião<br />
admite que as desigualdades sejam injustas. Injustiça social consiste: a) Em negar a alguém a oportunidade<br />
progredir em sua vida; b) Em criar estruturas de exclusão; c) Em evitar a criação de estruturas de promoção<br />
das pessoas. Numa palavra, é suma injustiça reprimir os talentos das pessoas"<br />
Quando discutimos justiça, em prática do Direito, fazemos considerações<br />
éticas. A relação social, como necessidade humana, está posta à maneira de um contrato,<br />
entre direitos e deveres sociais.<br />
Os deveres existem dentro da sociedade com a finalidade de garantir direitos, pois o<br />
objetivo da relação social em si é satisfazer o destino humano. A ordem social justa é<br />
aquela que distribui eqüitativamente a relação de direitos e deveres. Somente nesse sentido<br />
o Contrato Social se cumpre e a prática de justiça acontece. A violência social, nesse aspecto<br />
contratualista, é a conseqüência do descumprimento do Contrato Social, na política injusta<br />
de exclusão de direitos.<br />
Leite Tavares opus Kant define (1996: 75):<br />
48
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
A verdadeira relação jurídica consiste na relação entre homens com direitos e deveres. Quando alguns<br />
homens só possuem deveres, tornam-se sem personalidade, como servos e escravos. Disso deflui que a<br />
relação jurídica constitui uma reciprocidade entre o dever como cumprimento da lei e o direito como<br />
faculdade de obrigar ao cumprimento.<br />
A violência enfraquece os laços sociais, ameaçando a sobrevivência da sociedade.<br />
Considerando o fato incontestável de que o homem vive em sociedade, sempre<br />
viveu e só nela pode viver em sociedade e que a própria existência da sociedade é um<br />
fato primitivo e humano, a dissolvição da relação social agride o homem em suas<br />
estruturas mais profundas, daí a gravidade da violência, em sua ameaça de destruição.<br />
Importante a lição de Duguit (1996:25):<br />
"O homem vive em sociedade e só pode assim viver A sociedade mantém-se apenas pela solidariedade<br />
que une seus indivíduos. Assim puna regra de conduta impõe-se ao homem social, pelas próprias<br />
contingências contextuais, e esta regra pode formular-se do seguinte modo: não praticar irada que<br />
possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas, formas."<br />
A sociedade somente estará salva da violência quando suas<br />
desigualdades diminuírem, a prática da justiça se cumprir e a relação de direitos e deveres<br />
forem distribuídas eqüitativamente. Enquanto prevalecer a miséria, políticas de exclusão,<br />
práticas injustas na defesa de interesses, todos os indivíduos da sociedade estarão<br />
incessantemente ameaçados e a tensão social atingirá forças incontroláveis. Para sermos<br />
salvos é necessário que todos atinjam condições mínimas de decência. Aí está o desafio<br />
jurídico do novo milênio: humanizar o próprio homem.<br />
Bibliografia:<br />
A<strong>DE</strong>ODATO, João Maurício. Filosofia do Direito, SP. Ed. Saraiva, 1996<br />
ARISTOTELES. Obra Jurídica, SP. Ed. Ícone, 1997<br />
CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo, 4ª edição, RJ, Ed. Luam,<br />
1997 DILTHEY, Wilhem. Sistema da Ética, SP, Ed. Ícone, 1994<br />
DUGUIT, León. Fundamentos do Direito, SP, Ed. Ícone, 1996<br />
HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, SP, Ed. Ícone, 1997<br />
LEITE, Flamarion Tavares. O Conceito de Direito em Kant, SP, Ed. Ícone, 1996<br />
NETO. A. L. Machado. Sociologia Jurídica, SP. Ed. Saraiva 6ª edição, 1987<br />
PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. RJ, Ed. Vozes, 1995<br />
*Antõnio Guimarães Brito. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação<br />
Cientifica PIBIC/ CNPq/<strong>UNIR</strong>, aluno do Curso de Direito.<br />
49
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
REGIÃO REGIÃO REGIÃO REGIÃO E E E E HISTÓRIA, HISTÓRIA, HISTÓRIA, HISTÓRIA, UM UM UM UM PROBLEMA PROBLEMA PROBLEMA PROBLEMA <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DE</strong><br />
CONCEITO:O<br />
CONCEITO:<br />
CONCEITO:<br />
CONCEITO: O O O caso caso caso caso da da da da colonização colonização colonização colonização do do do do<br />
madeira madeira madeira madeira durante durante durante durante o o o o século século século século XIX. XIX. XIX. XIX.<br />
Dante Dante Ribeiro da Fonseca *<br />
Resumo : As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia<br />
têm revelado fenômenos até a pouco desconhecida, pouco<br />
conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam hoje como<br />
importantes no sentido de colocar em discussão determinados<br />
pressupostos da história regional. Entre eles o próprio conceito de<br />
região, que tem sido tratado de forma intuitiva, adotando-se<br />
esquematicamente a divisão político-administrativa tal como se<br />
apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados<br />
conceitos da geografia. Tais esquemas têm se revelado, face às<br />
pesquisas recentes, teórica e metodologicamente problemáticos<br />
induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão<br />
conta da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito.<br />
Palavras – Chave : Fenômenos, desconhecida, Metodologicamente e<br />
Histórica.<br />
Abstract : The recent research on the history of Rondônia have<br />
revealed unknown phenomena even little, little known or even despised<br />
that arise today as important to put under discussion certain<br />
assumptions of regional history. Among them the very concept of a<br />
region that has been handled intuitively, schematically the politicaladministrative<br />
division as it stands today, or even appropriating certain<br />
concepts of geography. Such schemes have proven to be the face of<br />
the recent research, theoretical and methodologically problematical<br />
inducing some conclusions of questionable, because not all realize<br />
historical mobility concept object itself.<br />
Keyword : Unknown Phenomena, methodologically and Historic.<br />
As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia têm revelado fenômenos<br />
até a pouco desconhecida, pouco conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam<br />
hoje como importantes no sentido de colocar em discussão determinados pressupostos da<br />
história regional. Entre eles o próprio conceito de região, que tem sido tratado de forma<br />
50
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
intuitiva, adotando-se esquematicamente a divisão político-administrativa tal como se<br />
apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados conceitos da geografia. Tais<br />
esquemas têm se revelado, face às pesquisas recentes, teórica e metodologicamente<br />
problemáticos induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão conta<br />
da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito. Dessa forma, uma das tarefas que se<br />
apresentam aos historiadores é colocar em discussão o tema, contribuindo para enriquecer<br />
a própria visão de história regional. Ë possível mesmo que venha a colocar em dúvida<br />
apreensões comumente aceitas a longo tempo e levantar novas questões sobre um<br />
passado que se revela tão rico naquilo que poderíamos chamar, provisoriamente, de<br />
intercâmbios populacionais, culturais e econômicos, de tal forma que a própria idéia<br />
de intercâmbio poderá se diluir em uma forma mais abrangente de eventos interelacionados.<br />
Se assim o for, pode-se supor que futuramente consideremos parte de uma única<br />
história àqueles fenômenos que hoje consideramos como participantes de histórias<br />
distintas.<br />
Uma incipiente proposição nos leva a crer que o conceito de região em história deve<br />
necessariamente, que tomar como base fenômenos próprios ao trabalho do historiador<br />
para que se possa aceitá-lo como dotado de conteúdo lógico. Deve-se, porém<br />
esclarecer que esta proposição não descarta a possibilidade de sua variação de<br />
acordo com ou período ou fenômeno que se queira pesquisar e ainda a utilização e/ou<br />
transformação crítica dos conceitos similares já elaborados por outras ciências. A título de<br />
ilustração da proposição anterior colocamos em tela uma série de pressupostos<br />
encontrados na historiografia brasileira e da América Hispânica, relativos ao primeiro ciclo<br />
da borracha, para demonstrar que a falta de clareza no conceito de região orientou esses<br />
trabalhos inclusive no sentido de selecionar inadequadamente seu material empírico<br />
tornando possível hoje questioná-las. Primeiramente a idéia de fragmentação do<br />
espaço amazônico', parte do princípio de que a Amazônia, na época do ciclo da borracha<br />
constituía-se em uma série de espaços vinculados aos grandes centros de comércio<br />
internacional, porém isolados entre si. Além de uma idéia obscura de região que a hipótese<br />
comporta, um aspecto deve, mesmo que de passagem, ser destacado aqui, um substrato de<br />
atemporalidade que trazem essas análises. Particularmente no ciclo da borracha não se leva<br />
em conta os seus períodos iniciais o que conduz à utilização do sistema de aviamento e<br />
barracão como instrumento de análise das relações sociais de produção na região desde o<br />
princípio do século XIX até a segunda metade do século XX. Da mesma forma trata-se a<br />
questão do desabastecimento regional, intimamente ligada à forma de apropriação do<br />
excedente dos trabalhadores regionais.<br />
51
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Por outro lado, a impressão que se tem é que a região somente é percebida como área<br />
de fronteira quando se estudam as questões comerciais e de limites. Novamente aqui o<br />
conceito dever ser dotado de maior sofisticação e complexidade para que a análise<br />
possa adquirir significados reais. Sem dúvida se limites e fronteiras interferem de certa forma<br />
nos fenômenos regionais, tornando-os distintos em determinados aspectos, particularmente<br />
naqueles relativos às estruturas jurídicas e políticas, porém são dotados de historicidade<br />
justamente porque são móveis. As fronteiras internas do país mudaram de lugar várias vezes<br />
restando portanto questionar se os fenômenos ocorridos em algumas áreas que são hoje<br />
objetos da história regional possuíram uma dimensão supranacional. Particularmente na<br />
Amazônia, onde até o início do presente século as fronteiras eram incertas, determinados<br />
eventos necessariamente terão que ser apreendidos pelo historiador a partir dessa<br />
dinamicidade, que resultava não somente da incerteza quanto às lindes, mas também quanto<br />
à pluralidade do próprio cotidiano do viver fronteiriço.<br />
Por outro lado a população indígena que habitava a Amazônia, que a rigor possuía<br />
seu próprio território interpenetrado e diferente daqueles supostos pelo colonizador, ficou<br />
sujeita a um tratamento ambíguo, tratada como população colonial para fins de constatação<br />
do uti-possidetis. O nome do rio Madeira ilustra bem essa idéia difusa de território Caiari<br />
pertence ao tronco lingüístico Pano, Caribe ou Arawak; Cuyari é originário do quechúa;<br />
Caricari de origem Pacahuara; Irury em referência aos índios Irury que habitavam suas<br />
margens. A questão que se coloca quanto ao problema indígena é: como tratar a história de<br />
uma população que possuía idéias singulares de território em relação ao europeu, a partir de<br />
conceitos diversos de sua cultura?'<br />
O presente trabalho pretende esboçar essas questões à luz de pesquisas empíricas<br />
que nos conduziram a esses questionamentos, tomando como base para essa finalidade a<br />
região do rio Madeira no século XIX. O leitor deverá encará-lo muito mais como um<br />
instrumento de instigação ao debate e ao aprofundamento da pesquisa que propriamente um<br />
resultado acabado, se é que qualquer pesquisa acadêmica possa ser assim considerada.<br />
Sobre o Guaporé, também uma região cuja história é rica em sugestões quando se trata<br />
desse tema, é indicada particularmente a leitura dos estudos de Luíza Volpato. Marcos<br />
Teixeira e Denise Meireles que dão interessantes informações sobre a interpenetração dos<br />
espaços sociais na fronteira guaporeana durante os séculos XVIII e XIX iii.<br />
Primeiramente, quanto às fronteiras, a questão central é dar conta da interpenetração<br />
de fenômenos que embora ocorridos em espaços nacionais diferentes exerçam sua<br />
influência sobre uma área comum. A resposta a essa questão apontaria para uma<br />
reformulação da delimitação regional com vistas à pesquisa histórica. Apesar do<br />
52
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
secular processo de conquista européia na região e dos vários tratados entre os<br />
antigos senhores coloniais restava ainda, no século XIX, uma tremenda<br />
indefinição de fronteiras entre os países recém independentes da América do Sul,<br />
que resultava, entre outras coisas, da presunção da posse que, contudo, não<br />
estava baseada no conhecimento do território iv. Tal situação resultou no<br />
dinamismo dessas fronteiras, como bem o demonstrou a questão do Acre e o<br />
processo de ocupação do Madeira, onde as lindes entre Brasil e Bolívia foram<br />
modificadas por duas vezes, em 1867 e em 1903.<br />
Até 1867 a fronteira, ao entrar rio Madeira, seguia ao seu ponto médio,<br />
aproximadamente onde hoje é a cidade de Humaitá (Amazonas) de onde<br />
continuava através de linha geodésica às nascentes do Javarí, a margem esquerda<br />
pertencia à Bolívia e a direita ao Brasil. O Tratado de Ayacucho, firmado entre os dois<br />
países naquele ano fez recuar este limite até a nascente do Madeira donde, da mesma<br />
maneira, seguiria para a nascente do Javarí. Independentemente desses tratados<br />
havia a dificuldade em estabelecerem-se os marcos, pois até 1901 não era conhecida<br />
a nascente daquele rio. Essa indefinição permitiu certa liberdade que se traduzia na<br />
transferência e no estabelecimento de grupamentos significativos em ambos os<br />
lados da desconhecida fronteira. Esse processo ocorreu em duas regiões da<br />
Amazônia Ocidental, na região do Acre que foi objeto da ocupação brasileira v a partir<br />
dos anos de 1860 e na região do alto Madeira objeto da colonização boliviana vi , na<br />
mesma época vii . Em ambos os casos a migração partiu de dois pontos<br />
simultaneamente, da foz do rio Amazonas e das faldas dos Andes, nas províncias<br />
adjacentes na fronteira com o Brasil, constituindo no Acre uma população<br />
predominantemente brasileira em território boliviano e no alto Madeira uma população<br />
predominantemente boliviana em território brasileiro.<br />
Embora o impulso colonizador definitivo seja do século XIX desde o século XVIII<br />
havia essa bipolaridade no que se refere à ocupação colonial do Madeira viii . No Brasil,<br />
por volta dos anos de 1860 as áreas iniciais de produção de borracha encontravam-se<br />
esgotadas pela exploração predatória. Intensificou-se então a migração em busca<br />
dos seringais nativos do Madeira, porém, essa ocupação não passou, com<br />
sucesso, até o último quartel do século, do ponto médio daquele rio ix . A colonização<br />
mais volumosa provinda da foz do Amazonas dirigiu-se ao Purus e seus afluentes<br />
(região acreana). O impulso colonizador no alto Madeira provinha do Território de<br />
Colônias x , composto atualmente pelos departamentos bolivianos do Beni e Pando, de<br />
onde uma onda migratória ocupou aquela parte do rio e abriu seringais, estendendo<br />
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influência por todo aquele curso de água. A importância do empreendimento<br />
boliviano no Madeira se estendeu até o início do presente século, quando além dos<br />
seringais dominava no comércio a moeda e na comunicação o idioma boliviano<br />
representado pelo espanhol e línguas dos nativos benianos para ali transplantados como<br />
mão de obra xii . Enquanto que naquele rio bolivianos já exploravam a seringa, a quina<br />
explorada na Província de Santa Cruz era através dele escoada a produção vinda da<br />
província de Caupolicán através de Reyes e Santa Cruz de Yacuma em batelões<br />
impulsionados por indígenas bolivianos até Santo Antônio do Madeira, xiii . Eram também os<br />
seringais desse rio abastecidos de gêneros e mão de obra provinda do interior da Bolívia xiv .<br />
Ressalte-se também que seringais pertencentes a bolivianos estendiam-se até as enseadas<br />
próximas da foz do Madeira, como era o caso das propriedades Vitória, São Carlos e<br />
Itapirema xv . Nessa época, a maior e mais próspera povoação boliviana do Madeira era<br />
Jumas, um aldeamento localizado entre Crato e Humaitá que possuía aproximadamente<br />
180 homens e 90 mulheres que falavam dialeto que não era nem o português nem o<br />
espanhol, provavelmente algum dialeto dos indígenas mojenhos xvi<br />
Com a queda do preço da quina a seringa tornou-se um substituto imediato para o<br />
setor extrativista crucenho, sendo encontrada em vários rios, inclusive no próprio Beni, na<br />
região do delta do Madeira que passou a pertencer ao Brasil pelo tratado de 1867 xvii . O<br />
sistema de aviamento, ou habilito como é chamado na Bolívia, foi o arranjo que permitiu o<br />
acesso ao capital inicial com que os seringalistas pioneiros naquele rio iniciaram o corte da<br />
hévea. A partir dessa descoberta alguns seringalistas bolivianos retornaram ao Beni e ali<br />
continuaram sua atividade extrativista xviii . Apesar desse processo, é interessante<br />
observar que ainda no final do século XIX seringalistas bolivianos continuavam a se<br />
estabelecer no Madeira xix , mas possivelmente seja esse o período do declínio da<br />
hegemonia boliviana naquele rio. A expulsão dos extratores bolivianos do Madeira, a<br />
que se referem vários historiadores daquele país, poderia ser o resultado de uma ação<br />
política do governo brasileiro, da descoberta da hévea no Beni xx e em alguns casos, do<br />
endividamento junto às casas aviadoras xxi de Belém e Manaus. Ao final do século<br />
influência boliviana declinou no Madeira, as povoações mais movimentadas daquele<br />
rio eram aquelas fundadas pelos portugueses ou brasileiros: Borba, do século XVIII,<br />
Manicoré e Humaitá xxii , ambas fundadas nos anos 60 do século XIX. Humaitá era o grande<br />
entreposto daquele rio com significativa produção de borracha e abastecedor de lenha para<br />
os vapores xxiii . Esse retorno dos seringalistas ao território boliviano durou alguns anos<br />
deixando como marca do pioneirismo, em território brasileiro, o nome de várias localidades<br />
do rio Madeira xxiv .<br />
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No final do século XIX já se tem notícias de povoamento brasileiro rio acima, além das<br />
cachoeiras dos Madeira. Jose Coimbra, que passou pelo Mamoré e Madeira nos anos 90<br />
daquele século se refere ao povoado de Vila Murtinho situado no rio Mamoré quase em<br />
sua junção com o Beni, em frente ao povoado boliviano de Villa Bella, que contava com a<br />
população de 800 habitantes, muito significativa para a época. A então nascente povoação<br />
abastecia-se na Bolívia e, segundo o mesmo autor, apesar de existirem estradas de goma<br />
naquela localidade por essa época os habitantes dedicavam-se mais à caça e à pesca.<br />
Mesmo em Vila Murtinho existia uma propriedade de boliviano chamada Gran Cruz,<br />
pertencente a D. Perez de Velasco, que viria a se o primeiro vice-presidente da Bolívia<br />
durante o conflito no Acre. Em 1881 a firma Suárez fundou a povoação de Cachuela<br />
Esperanza xxv , matriz de seus negócios no Beni. A partir desse ano Suárez<br />
Hermanos vai se constituirá na mais poderosa empresa de capital regional a operar no<br />
ramo do extrativismo do látex, dominando, ao longo do tempo, 16 milhões de acre de<br />
seringais xxvi , estendendo suas filiais até as praças de Belém, Manaus e Londres, controlando<br />
o circuito da importação dos aviamentos para sua área de influência e, mais espantoso,<br />
conseguindo burlar o monopólio das companhias européias e norte-americanas,<br />
exportando diretamente para aqueles países xxvii .<br />
Por volta de 1896, não existia o povoado brasileiro de Guajará Mirim, no rio Mamoré,<br />
cercanias da cachoeira de mesmo nome, embora já houvesse seringais pertencentes<br />
aos brasileiros naquele local. Contudo, na margem oposta existia a povoação boliviana de<br />
Guayaramerím habitada pelos seringalistas bolivianos D. Manuel e Memesio Jordán e<br />
Leonor de Castro xxviii . Na povoação propriamente dita a população estimada, em 1903, era<br />
de 20 habitantes ocupados nas atividades de transporte de mercadorias entre<br />
Trinidad, Villa Bella e Riberalta xxix .<br />
A ocupação do Madeira exigiu desde o princípio a implacável perseguição do<br />
indígena. Para se obter o ouro negro era necessário antes submeter o ouro vermelho. Assim<br />
o processo de apresamento que já vinha sendo praticado a séculos continuou abastecendo<br />
os seringais em toda a Amazônia. Nativos do Madeira e de outras regiões amazônicas como<br />
o Território de Colônias foram a grande fonte de mão de obra para esses seringais, em uma<br />
região onde os Estado Nacionais não possuíam nenhum controle xxx . Uma das explicações<br />
da opção dos seringalistas bolivianos do Madeira em recrutar mão de obra de<br />
indígenas mojenhos é de ordem cultural. Essas populações estavam, desde o período pré-<br />
colombiano, habituadas a produzir excedentes xxxi e a pagar tributo sobre a terra<br />
comunitária, tinham, portanto uma história muito diferente dos grupos sobreviventes<br />
de indígenas da Amazônia Brasileira, cujos povos que possuíam estruturas sociais mais<br />
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complexas foram destruídos ainda no século XVII xxxii . É, portanto principalmente o indígena<br />
"domesticado", e seus descendentes, que compõem a larga base da pirâmide social na<br />
Amazônia do século XIX, é ele que compõe a maioria esmagadora da população para a qual<br />
o governo imperial e republicano reclama de seus vizinhos o uti possidetis.<br />
O apresamento e o recrutamento dos indígenas por parte do colonizador não respeitava as<br />
fronteiras móveis e mal definidas, manipulando o indígena e impondo-lhe novos sentidos de<br />
identidade à luz do interesse do dominador xxxiii . Do Madeira avançavam os seringalistas,<br />
brasileiros ou não para além dos limites nacionais. Esse era um fenômeno comum a<br />
toda a Amazônia em todo o século XIX. Em 1866 Tavares Bastos denuncia a ação de<br />
brasileiros na captura dos indígenas miranhas que viviam nos rios Japurá e Içá, no<br />
território de Nova Granada. Dentro de nosso território o aparelho estatal, contribuía ainda<br />
como nos tempos coloniais para a exploração do indígena, através da Diretoria dos Índios,<br />
compostas por corruptos agentes do Estado. Com sua nomeação para Diretor dos<br />
Índios, o funcionário solicitava ao negociante o adiantamento de mercadorias<br />
necessárias ao início das atividades do extrativismo da borracha, salsa e castanha.<br />
Colocando o indígena sob sua responsabilidade para trabalhar remunerava-os com<br />
mercadorias em troca dos produtos extraídos da floresta xxxiv . Na virada do século XIX<br />
para o século XX, informava o Barão de Marajó que no Madeira já se encontravam alguns<br />
confortos e segurança, os índios ou haviam recuado para pontos distantes dos<br />
núcleos de colonização ou estavam amansados inseridos ao mundo do colono xx xv .<br />
Além do indígena brasileiro o ciclo da bor r acha consumiu no Madeira, grande<br />
quantidade de indígenas bolivianos. Conforme a análise de Heráclito Bonilha a<br />
exploração da mão de obra indígena resultou da ação de motores distantes da<br />
região gomífera onde havia o agravante do pequeno controle dos Estados xxxvi<br />
nacionais. A intensificação do processo de exploração da mão de obra indígena<br />
boliviana, como no Brasil, ocorreu nesse momento pari passu com a ocupação de seus<br />
territórios. Contudo, a história do processo de ocupação das terras e exploração do<br />
trabalho indígena na Bolívia no século XIX contém, em relação ao Brasil, algumas<br />
peculiaridades. Durante o período colonial todos os indígenas do sexo masculino com<br />
idade entre 18 e 50 anos eram obrigados a pagar um tributo, esses tributos chegavam<br />
a participar em 25% da renda da coroa. Durante o processo de independência da<br />
Bolívia, Simon Bolívar promulgou entre 1824 e 1825 decretos que aboliam o<br />
recolhimento de tributos sobre os indígenas. A assembléia nacional da Bolívia ratificou<br />
esses decretos, mas, imediatamente após percebeu que a aceitação dessa nova<br />
norma colocaria em dificuldades a fazenda nacional restabelecendo de pronto o tributo<br />
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que passou a representar 60% do recolhimento fiscal na Bolívia. Apesar de representar um<br />
pesado fardo a carga tributária contribuiu para a conservação da terra em posse do<br />
indígena contra a ameaça dos brancos e cholos. A decadente atividade mineradora não<br />
satisfazia às necessidades de ingressos fiscais e assim, também contrariando os<br />
decretos de Bolívar que colocavam em dúvida o direito do indígena sobre sua terra<br />
ancestral, a assembléia nacional ratificou como legítimo o governo comunal dos<br />
indígenas e seus títulos de propriedade da terra. Tratava-se portanto de garantir a atividade<br />
agropastoril importante fonte de ingressos fiscais para a manutenção do governo<br />
boliviano naquele momento xxxvii . Em 1831, durante o governo de Andrés de Santa<br />
Cruz foram restabelecidos os direitos às terras comunais dos indígenas bolivianos,<br />
contudo esses direitos não valiam para as terras de Mojos, Yucararés e Chiquitos, abertas<br />
à colonização de todo aquele que desejasse estabelecer fazendas ou explorar a<br />
indústria extrativista. No entendimento do governo aquelas terras não possuíam<br />
proprietários e, portanto pertenciam ao governo o direito de dispor delas,<br />
desconhecia assim o direito às terras pelos grupos indígenas do noroeste<br />
boliviano xxxvii .<br />
Em 1851 foi abolida a obrigação de todo indígena estar submisso a um patrão xxxix , essa<br />
instituição remanescente dos direitos dos adelantados, primevos colonizadores brancos<br />
na América Espanhola, chamada na época colonial de encomienda subordinava o<br />
trabalho indígena ao colonizador em troca de sua "educação" e "proteção". A partir dos<br />
anos 60 do século XIX, com o aumento da produção mineral na região andina e o<br />
conseqüente crescimento dos mercados urbanos decresceu a importância dos tributos<br />
indígenas como fonte de ingressos governamentais. Com a ascensão ao poder do<br />
gal. Mariano Melgarejo em 1864 a elite mineradora andina tomou o poder no país<br />
estabelecendo o domínio das políticas livre cambistas. O decreto de 1866<br />
novamente colocou em risco a propriedade comunal das terras intensificando-se<br />
então a ocupação da propriedade indígena por grupos de imigrantes brancos<br />
(karayanas) que se dirigiram ao Beni para desenvolver a agricultura comercial xl .<br />
Estima-se que já em 1858 somente no Alto Madeira havia uma população de cinco<br />
mil pessoas, essa população, como se viu anteriormente, cresceu muito após os anos<br />
60. Certamente o contribuiu para o crescimento dessa população o elemento indígena<br />
boliviano. Além dos indígenas de Moxos, a mão-de-obra de indígenas bolivianos era<br />
também recrutada nas províncias de Santa Cruz, Yungas. Keller, que participou de<br />
uma expedição no Madeira em 1882 calculava que entre 1862 a 1872 foram<br />
recrutados em média 1.000 indígenas por ano e migrados do departamento do Beni<br />
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para o Madeira xli . Seringalistas como D. “Pastor Oyola x l i i xl ii i<br />
e D. Angel Chaves<br />
quando necessitavam de mais trabalhadores dirigiam-se ao Beni para recrutá-los,<br />
já os empresários de maior porte contratavam a empreitada de recrutadores que<br />
entregavam o indígena no local de trabalho estabelecido no contrato xliv .<br />
E s s e m o v i m e n t o p o p u l a c i o n a l t ã o i n t e n s o t o r n o u - s e m o t i v o d e<br />
preocupações. Denúncias contra o abuso do transporte indiscriminado de<br />
indígenas para os seringais do Madeira foram levadas ao público pela imprensa,<br />
causando certa comoção. O governo de La Paz, ciente do problema, preocupou-se,<br />
não com as crueldades cometidas, mas com o despovoamento da região, emitindo,<br />
em 1882, uma ordem de governo enviada ao prefeito do Beni mandando impedir<br />
o tráfico sob o risco de ser despovoada aquela região, já então a menos povoada da<br />
Bolívia.<br />
Esse processo de recrutamento despertou mesmo o interesse brasileiro, tratava-se de<br />
uma forma de abastecimento de mão de obra barata para os trabalhos necessários ao<br />
fomento da produção gomífera do oeste amazônico. Na Bolívia havia um mercado<br />
fornecedor braços indígenas cujo potencial era avaliado, por volta de 1866 em<br />
750.000 pessoas. Somente nos departamentos bolivianos de Santa Cruz,<br />
Cochabamba e Beni, aos quais interessava de perto o comércio como o Madeira, havia<br />
uma população estimada em 622.000 pessoas, excluído desse número os grupos do<br />
Beni compostos por aproximadamente 30.000 indígenas amansados e domesticados<br />
para o trabalho, sem contar os grupos errantes xlv Essas províncias possuíam o dobro<br />
da população das províncias do Amazonas e Pará, que desenvolviam uma forte atividade<br />
agrícola e pecuária sem paralelo no Amazonas xIvi . Tendo já iniciado o processo de<br />
recrutamento desses indígenas para trabalhar na região do Madeira como seringueiros, ou<br />
remeiros que nos intervalos das viagens trabalhavam nas obras públicas de Manaus, a<br />
possibilidade de sua utilização para a construção do canal ou estrada que contornaria o<br />
trecho encachoeirado do Madeira foi logo posta em questão. Os administradores<br />
públicos do Beni tinham autoridade para recrutar esses indígenas e enviá-los ao Madeira, a<br />
remuneração era irrisória, um pequeno salário ou o pagamento em tecidos, roupas e armas.<br />
Apesar de a Bolívia exportar a maior parte de sua produção pelo oceano Pacífico, a<br />
via do Madeira era de fundamental importância para o comércio do noroeste boliviano, pois<br />
o Atlântico estava mais próximo. Adicione-se que o acesso fluvial pelos grandes rios do<br />
Beni é mais fácil para esse rio do que para outros, aumentando ainda sua preferência pelas<br />
condições de navegabilidade xlvii . O porto mais próximo onde se encontrava linha regular de<br />
vapor era o de Serpa (Itacoatiara), na foz do Madeira. Além da quina produzida em<br />
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Caupolícan, descia pelo Madeira a produção extrativa e agropecuária do Beni. Os<br />
batelões de transporte retornavam do Madeira com produtos industrializados, vergalhões,<br />
ferramentas, armas e munições, bebidas, atavios. Serpa era a ponta de lança desse<br />
comércio, os produtos ali desembarcados eram enviados para Borba e Crato de onde<br />
partiam rumo à Bolívia. O comércio do Madeira cresceu com as exportações e importações<br />
necessárias ao fomento da indústria extrativa e da agropecuária do noroeste boliviano de tal<br />
maneira que já em 1862 o porto de Borba respondia por 30,70% do valor das exportações<br />
da província do Alto Amazonas. O movimento de importação e exportação, até essa<br />
época apresentava até um pequeno desequilíbrio favorável, entre 1864 e 1865 o porto de<br />
Serpa importou 44,20% e exportou 55,80% do montante em dinheiro de suas operações,<br />
revelador da importância desse porto no abastecimento dos produtos necessários à industria<br />
extrativa.<br />
Ainda em 1866 a navegação a remo era o recurso para o escoamento da produção e<br />
do abastecimento de produtos industrializados para os nos do oeste da Amazônia, inclusive<br />
do Beni. De Borba ou Crato era necessário remar contra a correnteza do rio em<br />
embarcações com tripulação variando de 13 a 20 remeiros e carregamento de 3000 até<br />
5000 quilos de mercadorias, até Santo Antônio do Madeira. Nesse ponto iniciava a parte<br />
mais difícil da viagem, nas cachoeiras, por algumas centenas de quilômetros era necessário,<br />
a cada acidente, descarregar a embarcação e atravessar por terra as mercadorias e a<br />
embarcação até superar o obstáculo natural, daí a canoa era novamente colocada no<br />
rio e carregada, reiniciando o trabalho de remar xlviii . A passagem por esse trecho<br />
acidentado poderia durar 18 dias xlix ou seis meses, dependendo de condições diversas, por<br />
exemplo, a morte por doenças epidêmicas ou ataques de indígenas e a fuga dos<br />
remadores'.<br />
A questão do abastecimento nos seringais da Amazônia merece um estudo mais<br />
aprofundado que permita esclarecer algumas questões. Não se trata aqui de uma minúcia<br />
de um preciosismo de historiador factualmente detalhista pois essa questão está<br />
intimamente ligada ao processo de exploração da mão de obra nos seringais. Há<br />
evidências de que o fenômeno do desabastecimento durante o ciclo da borracha foi a<br />
culminância do crescimento, ao longo de décadas, do aumento da demanda de matéria<br />
prima, fenômeno típico das regiões monocultoras e de extrativismo intensivo.<br />
A dialética do fenômeno pode ser simplificada da seguinte forma: um motor externo à<br />
região, o aumento da demanda de matéria prima, faz cone que o seringalista exija que o<br />
seringueiro dedique cada vez mais seu tempo na extração; o seringueiro gradualmente vai<br />
abandonando a lavoura de subsistência e passa a adquirir cada vez mais produtos no<br />
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barracão do seringalista; a produção aumenta e o seringalista, face a crescente<br />
dependência do seringueiro em abastecer-se no barracão majora os preços provocando o<br />
endividamento pois, face à majoração a produção do seringueiro nunca é suficiente para<br />
liquidar as dívidas, a resultante final é que o produtor direto fica preso ao seringalista<br />
pela dívida, prisão evidentemente garantida não pela honra ao compromisso mas por<br />
mecanismos de coerção física.<br />
Dois pressupostos necessários ao esquema da borracha estão satisfeitos, aumentou-<br />
se a produção e garantiu-se a continuidade do processo de extração. Urna terceira<br />
conseqüência, não menos importante é que se garantiu também pelo mesmo processo o<br />
aumento do excedente apropriado pelo seringalista. Contudo a dinâmica desse<br />
processo ainda não foi devidamente estudada, permitindo-se então alguns<br />
questionamentos: Como ele se desenvolveu? Quando atingiu sua maturidade? Foi igual ao<br />
longo do tempo em toda a Amazônia? Foi o mesmo nas várias áreas extrativistas da<br />
região? Provocou de fato o desabastecimento regional? No caso do Madeira, essa<br />
última questão poderá ser respondida de várias maneiras, dependendo a resposta do<br />
conceito de região adotado.<br />
Uma abordagem inicial do tema torna possível a hipótese que a Amazônia apesar<br />
de ter sido uma região de economia extrativista, predominante até o século XX, os<br />
estabelecimentos rurais produziram durante determinado período alguns gêneros<br />
necessários ao próprio consumo. Estabelecimentos dedicados à colheita do cacau no<br />
Madeira, na primeira metade do século XIX, possuíam lavouras de milho, arroz e mandioca li<br />
além de produtos basicamente destinados à comercialização. Indígenas amansados<br />
plantavam lavouras para subsistência e comercialização. Ainda no último quartel do século<br />
XIX os estabelecimentos do Madeira, embora dedicados à produção da goma elástica,<br />
continuavam produzindo alimentos como: milho, arroz, mandioca, bananas, ou seja, parte do<br />
tempo de trabalho do seringueiro era dedicada à agricultura lii . Não eram exceções esses<br />
seringais, o Gal. Severiano da Fonseca, em sua viagem de 1878, refere-se a inúmeros<br />
seringais ou colocações pertencentes ao um mesmo seringalista do Alto Madeira que<br />
produziam gêneros alimentícios, cereais, tubérculos e mesmo cana de açúcar liii , o<br />
mesmo acontecia nas povoações do Madeira, inclusive Juma.<br />
Contudo, em 1866 Tavares Bastos afirmava que as áreas extrativistas pouco<br />
produziam para a alimentação, vindo tudo do exterior pelo porto do Pará ou eram vendidas<br />
nessas regiões interiores produtos da lavoura Paraense como a farinha. A literatura<br />
consultada revela que as estratégias de abastecimento das regiões produtoras da<br />
borracha vinculavam-se a diversos fatores econômicos e geográficos e ainda, que o<br />
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abastecimento, ao contrário do conhecimento comum, não provinha todo do exterior, mas<br />
havia um mercado interno de produção de alimentos. Primeiramente, é possível que<br />
nas regiões do alto dos rios o abastecimento externo, de produtos do Pará e do<br />
exterior, fosse mais precário entre 1866 e 1880, por causa das distâncias e particularmente<br />
no Alto Madeira em função do seu trecho acidentado. O fenômeno do desabastecimento<br />
observado por Tavares Bastos seria então localizado nas áreas de produção mais próximas<br />
de Manaus.<br />
Como se viu anteriormente as áreas iniciais de extrativismo da borracha, mais<br />
próximas de Belém, estavam já esgotadas em meados do século XIX pelo extrativismo<br />
predatório o que fez com que os estabelecimentos rurais direcionassem sua<br />
atividade para a produção de alimentos. O depoimento de um proprietário de fazenda no<br />
Pará não se refere ao látex, mas à produção de farinha de mandioca e cana de<br />
açúcar liv . Essa produção interna de alimentos provavelmente destinava-se às novas<br />
regiões extrativistas. O problema, contudo reside em conhecer a dimensão dessa produção e<br />
seu peso no abastecimento intra-regional.<br />
Nas regiões mais afastadas, no alto dos rios, procurava-se a região produtora<br />
de alimentos mais próxima, não necessariamente dentro do país. Assim é que, o<br />
abastecimento do trecho encachoeirado, e talvez de boa parte do alto e Médio Madeira, por<br />
volta de 1868, era feito com gêneros produzidos nos Departamentos bolivianos de Pando e<br />
Beni, produtos da agricultura e pecuária: queijos, couros, aguardente, gado daquela região lv ,<br />
pobre em hévea mas rica em planícies, eram comprados ou até mesmo trocados por<br />
indígenas escravizados pelos brasileiros que atravessavam a fronteira para esse fim lvi .<br />
Por volta de 1895 a situação havia mudado, o Barão de Marajó naquela época<br />
informava que no Madeira a alimentação provinha quase toda, exceto peixe fresco e<br />
salgado (pirarucu) e tartarugas, de Manaus e do Pará carne seca, bacalhau, bolacha, pão<br />
torrado, conservas, feijões, farinha e bebidas diversas lvii . O consumo de alimentos e<br />
bebidas importados é tratado na literatura como parte de um processo de ostentação e<br />
desperdício da elite econômica do extrativismo, contudo no auge do ciclo da borracha não<br />
somente essa elite consumia gêneros importados, também a população em geral. O<br />
comércio com a Europa e Estados Unidos era mais próximo do que com o sul do Brasil, os<br />
navios vinham buscar a borracha e traziam com eles produtos, estabelecendo assim uma<br />
prática de intercâmbio desigual que, de certo modo, reproduz a lógica do desabastecimento<br />
e do barracão lviii .<br />
Com base nas questões inicialmente colocadas, poderíamos sugerir que no<br />
século XIX certas regiões, especialmente aquelas situadas mais próximas a fronteira<br />
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da Amazônia, não estavam fragmentadas como supõe a literatura, mas integravam-se em<br />
um grande mercado produtor e consumidor de gênero, matérias primas, capitais e<br />
força de trabalho, dessa forma podemos apreendê-las como um todo. Parece ser esse<br />
o caso das regiões do Madeira e do Beni. Se a problemática fronteiriça é necessária<br />
ao entendimento dessa hipótese torna-se, tomada isoladamente, insuficiente para o<br />
entendimento do processo, pois a complementaridade de uma multiplicidade de<br />
interesses intra-regionais resistiu e sobreviveu à definição demarcatória. É essa mesma<br />
complementaridade que nos permite questionar a visão do desabastecimento regional ao<br />
focalizar a região do Madeira/Beni e o estudo desse processo sincrético, pois<br />
resultante da ação de povos que tanto sob o aspecto cultural quanto aos processos de<br />
desenvolvimento político comportam suas singularidades, determinou o processo<br />
histórico em uma única região durante uni período secular.<br />
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7. FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo: história de uma estrada de ferro na<br />
Amazônia. 4". ed. São Paulo. Ed. Melhoramentos, 1987.<br />
8. FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil (1875-1878).2 volumes. Rio<br />
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9. GAMARRA, María dei Pilar. La participación estatal en la industria de la goma eslástica. In:<br />
DATA: <strong>Revista</strong> dei Instituto de Estudios Andinos y Arnazonicos. no. 4, La Paz, 1993.<br />
10. HUGO, Vitor. Desbravadores. 2". ed., 2 vols., Rio de Janeiro, Cia. Brasileira de Artes<br />
Gráficas, 1991.<br />
11. KELLER, Franz. The Amazon and Madeira river. Londres, Chapman & Hall, 1874.<br />
12. KLEIN, Herbert. Historia de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994.<br />
13. LEONARDI, Victor. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil.<br />
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14. LIEBEL, Ernest H. The survey of the Madeira and Mamoré R. R. in Brazil. Engineering News.<br />
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15. LOBATO FILHO (Gal.). Avançai para o Jamari: a comissão Rondon nas selvas do Alto Madeira.<br />
Rio de Janeiro, s/ed., 1957.<br />
16. LOPEZ, Said Zeitum. Amazonia boliviana: introducían ai estudio de ia tematica norteamazonica<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
(1'. parte). 1'. ed., La Paz, Producciones Gráficas Visión, 1991.<br />
17. MAIA, Álvaro. Gente dos seringais. Rio de Janeiro, s/ed., 1956.<br />
18. MARAJÓ, José Coelho da Gama Abreu, Barão de. As regiões amazônicas: estudos<br />
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12).<br />
19. MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira rio Guaporé século XVIII. Petrópolis, Vozes<br />
1978.<br />
20. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria à minoria(1750-1850).<br />
Petrópolis, Ed. Vozes, 1988.<br />
21. OTERO, Delia del Pilar. El Acre: un nuevo caso de fragmentación del espacio amazónico. In:<br />
DATA - <strong>Revista</strong> del Instituto de Estudios Andinos e Amazónicos. La Paz, 1993, no. 4.<br />
22. PINTO, Emanuel Pontes. Rondônia, Evolução Histórica: a Criação do Território<br />
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23. PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro.<br />
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24. PRADO, Eduardo Barros. Eu vi o Amazonas. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa<br />
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25. REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira. 2 vol., Belém,<br />
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26. SMITH, Anthony. Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura<br />
no maior rio do mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d.<br />
27. TEIXEIRA, Marco A D. Dos campos d'ouro a cidade das ruínas apogeu decadência do<br />
colonialismo português no vale do Guaporé: séculos XVIII e XIX. Dissertação de Mestrado, UFPE,<br />
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28. TOCANTINS, Leandro. Formação histórica do Acre. 3 vols., Rio de Janeiro, Ed. Conquista,<br />
1961<br />
29. TOCANTINS, Leandro. Formação histórica do Acre. Rio de Janeiro, Ed.<br />
Conquista, 3 vols., 1961.<br />
30. TOMLINSON, H. M. The sea and the jungle. Vermont. The Marlboro Press, 1989.<br />
31. UREY, Antônio Carvalho. Síntesis Monográfica del Beni. vol. 1, Trinidad, Talleres de la<br />
Universidad Gral. Jose Ballivian, 1975.<br />
32. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Mato Grosso: ouro e miséria no antemural da colônia (1751-<br />
1819). Dissertação de Mestrado, FFLCH, São Paulo, 1980.<br />
NOTAS<br />
xxxvii<br />
Herbert Klein, História de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20.<br />
XXXViii<br />
Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28.<br />
xxxix<br />
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274.<br />
xl<br />
Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53.<br />
xli<br />
Franz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55.<br />
xlii<br />
Nevile Craig, obra citada, p. 222.<br />
xliii<br />
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305.<br />
xliv<br />
Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 73, nota 30.<br />
xlv<br />
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5.<br />
xlvi<br />
Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de<br />
população das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo<br />
nos mesmos departamentos, e é industria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano<br />
Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7.<br />
xlvii<br />
Lobato Filho, obra citada, p. 27.<br />
xlviii<br />
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3, 274-5, 270-1, 316-7<br />
63
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
xlix<br />
Juan B. Coimbra, obra citada, p. 137.<br />
l<br />
João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99.<br />
li<br />
Leonardi, p. 70.<br />
lii<br />
Nevile Craig, obra citada, p. 230.<br />
liii<br />
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299.<br />
liv<br />
Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370.<br />
lv<br />
Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88.<br />
Ivi<br />
João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235.<br />
lvii<br />
Marajó (Barão de), obra citada, p. 132.<br />
lviii<br />
Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no<br />
maior rio do mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357.<br />
*Dante ribeiro da Fonseca. Prof. Ms. do Departamento de História da UFRO<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
O O O O PROCESSO PROCESSO PROCESSO PROCESSO <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DE</strong> GLOBALIZAÇÃO GLOBALIZAÇÃO<br />
GLOBALIZAÇÃO<br />
GLOBALIZAÇÃO E E E E SUAS SUAS SUAS SUAS<br />
IMPLICAÇÕES IMPLICAÇÕES IMPLICAÇÕES IMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃO<br />
NAEDUCAÇÃO<br />
NAEDUCAÇÃO<br />
NAEDUCAÇÃO<br />
José José Maria Maria Leite Leite Botelho*<br />
Botelho*<br />
Resumo : Este trabalho busca lançar bases para novas<br />
discussões a respeito do neoliberalismo e suas implicações no<br />
setor educacional ao mesmo tempo em que, procura discutir o atual<br />
processo educacional dentro das políticas públicas.O trabalho está<br />
divido em três partes: a primeira, "O Processo de Gl ob ali za ção d a<br />
E cono mia" de s envolve e m to rno da s q ue st ões<br />
hi stó ri c as e sociais desse processo; a segunda “a globalização e<br />
suas implicações no processo educativo” se desenvolve a partir de<br />
questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última<br />
parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira"<br />
desenvolvida em torno das questões históricas e atuais da educação<br />
brasileira.<br />
Palavras – Chave : Educacional, Implicações, Neoliberalismo e<br />
educação Brasileira.<br />
Abstract : This work seeks to lay foundations for new discussions<br />
about neoliberalism and their implications for educational sector while,<br />
current demand discuss the educational process within the public policy<br />
work is divided into three parts: the first, "the process of economic<br />
globalisation" develops around the historical and social issues of this<br />
process; the second "globalization and its implications in the educational<br />
process" develops from educational issues related to the theme. The<br />
third and last part, "the process of Globalisation in Brazilian education"<br />
developed around the historical and current issues of Brazilian<br />
education.<br />
Keyword : Educational Implications, Neoliberalism and Brazilian<br />
education.<br />
O contexto mundial vem sofrendo nas últimas décadas, profundas e rápidas<br />
mudanças no campo econômico, cujas conseqüências se fazem sentir em todos os<br />
setores da vida social. A década de 1980 assistiu estupefata às transformações<br />
econômicas, ideológicas, estratégicas, culturais e sociais que redesenharam<br />
geopoliticamente o panorama do mundo atual.<br />
65
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
O fim do regime socialista fez o mundo curvar-se diante da supremacia capitalista<br />
frente às novas formas estratégicas, idealizadas para a perpetuação do grande capital<br />
na tentativa de preencher "todos" os espaços das áreas anteriormente ocupadas<br />
pelo regime socialista e, como forma de estender os seus domínios nesses territórios.<br />
A reorganização econômica iniciada nos limites transitórios entre o<br />
liberalismo e o neoliberalismo, transformou-se em processo globalizador da economia<br />
mundial, transnacional, nacional, local, transportando-se em "velocidade<br />
eletrônica" para todos os setores da vida nacional, transnacional, local e finalmente,<br />
global. As exigências básicas como flexibilidade, participação, trabalho de<br />
equipe, produtividade e competência fazem parte dos novos requisitos para a<br />
manutenção das organizações produtivas e para a formação do cidadão, cuja competência e<br />
responsabilidades na produção desses novos padrões são destinadas à Educação.<br />
Este trabalho busca lançar bases para novas discussões a respeito do<br />
neoliberalismo e suas implicações no setor educacional ao mesmo tempo em que,<br />
procura discutir o atual processo educacional dentro das políticas públicas.<br />
O trabalho está divido em três partes: a primeira, "O Processo de G l ob al i zação da<br />
Ec ono mi a " d esenv olv e e m t or no das q ues tões h istór icas e sociais desse<br />
processo; a segunda “a globalização e suas implicações no processo educativo” se<br />
desenvolve a partir de questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última<br />
parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira" desenvolvida em torno das<br />
questões históricas e atuais da educação brasileira.<br />
O fim da "guerra fria" não significou apenas o desaparecimento do bloco socialista liderado<br />
pela ex-URSS, significou, sobretudo, o surgimento de uma nova ordem econômica<br />
mundial, liderada pela supremacia dos EUA como potência "consolidada" no<br />
panorama mundial nos campos econômico, militar e cultural. O fim do socialismo como<br />
sistema político e econômico, desencadeia o fim da bipolarização obrigando o mundo a<br />
passar para uma forma tripolarizada: o pólo europeu, o pólo asiático e o pólo<br />
americano. Essa tripolaridade econômica pode, grosso modo, ser comparada a uma<br />
hipotética balança provida de três pratos. Se em cada prato da balança fosse colocado<br />
cada um desses pólos, ver-se- ia a supremacia americana, solidificada pelos poderes<br />
políticos, econômicos e do conhecimento.<br />
Faundez (1978) relata que com o objetivo de impor a globalização, os EUA e seus<br />
aliados criaram organismos econômicos tais como o FMI e o Banco Mundial ou utilizaram-<br />
se de outros já existentes, entre eles a UNESCO e a UNICEF com o sentido de<br />
reorientar seus objetivos iniciais ou manipulá-los segundo os interesses dessa<br />
66
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
globalização. O processo de globalização da economia põe em choque as economias<br />
dos países pobres, sua bagagem cultural e a "soberania" nacional corroendo pelas bases<br />
a legitimidade e a eficácia dos Estados Nacionais. É um processo de reorganização<br />
política, econômica e cultural liderado pelos EUA e seus aliados, como supremacia de um<br />
capitalismo que parece ter alcançado em definitivo as dimensões de um mercado mundial. A<br />
Racionalização da economia mundial desencadeia conseqüências gravíssimas em todos<br />
os setores sociais, inclusive, no setor educacional e cultural dos países periféricos. Estes<br />
no afã de igualar-se aos países promotores do "desenvolvimento" buscam a custa<br />
de certos "atropelos" educacionais e culturais, impor a seus povos a cultura e a educação<br />
que interessa aos países centrais.<br />
Verificam-se nas últimas décadas, mudanças expressivas no contexto de todos os<br />
países periféricos, e principalmente, no contexto latino americano, no modo de vestir, na<br />
alimentação, e na cultura, e que se traduzem em verdadeiro processo de aculturação em<br />
pleno alvorecer do século XXI. As mudanças pretendidas pelo processo de<br />
globalização são, em sua maioria, mudanças simples e apenas ligeiramente<br />
perceptíveis, mas, que trazem em seu bojo, verdadeiras fórmulas capazes de operar<br />
rápidas e radicais transformações em todo o sistema econômico e sócio-cultural a nível<br />
mundial, como forma de fincar de vez os tentáculos do capitalismo e dominar, cultural,<br />
científica e tecnológica os países periféricos.<br />
No Plano Educacional, o processo de globalização da economia avança de forma<br />
certeira e voraz sobre os sistemas de ensino público dos países "alinhados". Oferecer<br />
aos governos subsídios, que de per si, se encarregam do enfraquecimento do ensino público<br />
e do fortalecimento do ensino oferecido pelo setor privado, é apenas, uma das metas<br />
implementadas pelo poder globalizador.<br />
Para o capitalismo, não é suficiente uma mudança que aconteça apenas no campo<br />
econômico, é necessário uma mudança completa, radical, o que só poderá acontecer se<br />
for atacada a pedra angular do foco de resistência: só poderá acontecer se o sistema<br />
educacional for modificado para atender as necessidades do modelo emergente, e isso,<br />
vem sendo promovido pelos milhões de dólares gastos em marketing, propagandas e<br />
publicidades que "gratuitamente" invadem diariamente os lares, via televisão. As grandes<br />
redes de televisão despejam diuturnamente dezenas de dezenas de comerciais com os mais<br />
variados produtos destinados ao consumo, principalmente, do público infantil, clientela<br />
vulnerável a todos os tipos de transformações.<br />
As recomendações do Banco Mundial para os governos de que é mais rentável e<br />
econômico o treinamento em serviço do que o que é gasto com a formação inicial,<br />
67
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
fornecem subsídios para implementar novas discussões sobre o atual papel da<br />
educação em todos os níveis de ensino. É necessário, pois, abrir novos espaços de<br />
luta no campo do conhecimento e da educação, de modo a impedir a capitulação do<br />
setor educativo frente às novas propostas oriundas dos organismos encarregados de<br />
"socorrer" a educação e os serviços sociais oferecidos pelos governos dos países<br />
periféricos.<br />
O Processo de Globalização na Economia<br />
O sistema capitalista vem marcando com os seus ciclos a história de toda a<br />
sociedade mundial. Baseado no sistema da livre iniciativa, na lei da procura e da oferta, o<br />
modo capitalista de produção cria obrigatoriamente, a falsa ilusão de que em seu bojo o<br />
crescimento econômico é permitido a todos fomentando uma luta, que a cada dia supera-<br />
se a si mesmo. Dessa forma, verificam-se através dos tempos, constantes modificações na<br />
vida econômica e social.<br />
Da primeira Revolução Industrial e posteriormente em todas as outras que a<br />
sucederam o sistema capitalista vem criando novas formas de superação e perpetuação<br />
por meio de estratégias variadas e eficazes. Da universalização do comércio<br />
internacional, da instalação de multinacionais, em países em "desenvolvimento",<br />
de filiais de grandes empresas industriais e de serviços, até o atual processo de<br />
globalização, a economia mundial foi gradativamente sendo modificada, culminando no<br />
processo de racionalização da economia atual.<br />
As empresas multinacionais além de dominar os mercados nacionais e internacionais<br />
bloqueiam o crescimento econômico e científico dos países onde se instalam. Tanto<br />
através das multinacionais quanto das "zonas de livre comércio" implantadas<br />
em pontos geoestrategicamente corretos, o capital impõe formas, cria estratégias de<br />
dominação e sujeição dos povos dos países periféricos.<br />
Nos países desenvolvidos o acirramento da luta pela supremacia dos<br />
mercados vem promovendo a criação de associações para comandar o comércio<br />
internacional. O nascimento do Mercado Comum Europeu, do BENELUX, do NAFTA,<br />
da atual União Européia, do Bloco Asiático, do MERCOSUL, são apenas recentes<br />
formas de preparação para a expansão do capitalismo em escala mundial como forma<br />
de superação do liberalismo e do aparecimento do neoliberalismo.<br />
O neoliberalismo, termo usado para designar uma nova maneira de<br />
organização do capital mundial, em oposição à política intervencionista e de bem-<br />
estar social empreendida pelo Estado Liberal, traduz-se numa primeira forma de limitar o<br />
68
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
poder do Estado sobre a economia.<br />
A onda neoliberal iniciada e levada a termo pelos países ricos com Margareth<br />
Thatcher, na Inglaterra, Ronald Reagan, nos EUA, Brian Mulrony no Canadá e se<br />
expandido posteriormente para os chamados países em "desenvolvimento" tais<br />
como o México, a Argentina, o Chile e o Brasil, opera como uma faca de dupla serventia.<br />
Nos países ricos, detentores do poder, o que se tem presenciado são políticas protecionistas<br />
e o nacionalismo exacerbado pelos seus interesses, num "bem educado" fechamento do<br />
mercado à entrada de produtos dos países periféricos. Contrariamente, os países pobres<br />
ou "em desenvolvimento", abrem sob pressão econômica, as suas portas para a entrada de<br />
capitais e tecnologias estrangeiras, tendo-se a falsa ilusão de estar participando<br />
massivamente do comércio internacional. O aprofundamento da onda neoliberal carrega<br />
consigo prejuízos econômicos que se refletem diretamente no setor social exemplificados<br />
pela recessão, pelo desemprego, pela fome, pela miséria, e pela falta de investimentos<br />
em infra-estrutura, na falta e na deterioração dos serviços essenciais prestados à<br />
população, nos preços, no crescimento da economia informal, e na diminuição nos<br />
padrões da qualidade de vida.<br />
Segundo Fiori (1996), o projeto de globalização pode ser definido como:<br />
"a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal<br />
maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de<br />
distancia e vice-versa ou um processo dialético onde a transformação local é tanto uma parte da<br />
globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço”.<br />
Para Fiori (1996i), os anos 90 emergiram como a era liderada pelo complexo<br />
eletrônico, envolvendo profundas mudanças no modo de produção, nas formas de gestão, de<br />
concorrência e de relacionamento entre o capital e o trabalho. Entretanto, o<br />
relacionamento entre o capital e o trabalho, vem sobrecarregado de uma forte onda de<br />
desestruturação da economia, seja ela, mundial, nacional, local, social, familiar, cujas<br />
conseqüências intensificam o processo de aumento da pobreza mundial.<br />
Misse (1996) caracteriza o processo de globalização como o:<br />
"aprofundamento radical da internalização de empresas (...) baseada nos serviços lógicos, pelo<br />
aumento da competitividade, pela aceleração da produção em grande escala e pelo enfraquecimento<br />
das barreiras protecionistas nacionais"<br />
dos países pobres e pelo fortalecimento das mesmas barreiras nos países centrais. O<br />
enfraquecimento das barreiras nacionais para a entrada de bens estrangeiros favorece a<br />
desestruturação econômica e industrial dos países periféricos ao mesmo tempo em que<br />
69
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
estabelece a explicitação dos objetivos do projeto neoliberal.<br />
O acirramento pela competitividade no mercado trará impactos negativos<br />
sobre o sistema de empregos, na estrutura ocupacional, nas redes de sociabilidade, e,<br />
sobretudo, contribuirá para diminuir ainda mais a injusta distribuição de renda e a<br />
estrutura política dos Estados atingidos.<br />
O crescimento do setor da economia informal indica o destino dos cidadãos afetados<br />
pelo desemprego, vítimas da globalização, e indica, sobretudo, uma nova reacomodação<br />
dos novos fatores sociais frente à expansão competitiva e excludente do mercado. Cria-se,<br />
por outro lado, instituições para fomentar o incremento da instalação das chamadas<br />
micro-empresas, como forma de desestimular o sistema de empregos e, criar a<br />
pretensa ilusão de que todo o cidadão é capaz de sobreviver como pequeno<br />
proprietário num mundo econômico onde a cada dia, se agigantam as grandes empresas<br />
em detrimento dos micros. No setor de fomento a instalação das micro-empresas o<br />
SEBRAE vem contribuindo de forma decisiva e se firmando no mercado terciário<br />
como prestador de serviços especializados.<br />
O Brasil experimenta os efeitos negativos da globalização. A onda de privatizações e<br />
o crescimento do desemprego iniciada no governo Collor e levada a cabo pelo governo<br />
de Fernando Henrique Cardoso têm sentido como bons exemplos para se discutir<br />
os problemas sociais causados pelo processo globalizador.<br />
O Brasil, país de muitas facetas e onde se misturam o moderno,<br />
industrializado, rico, de classe média, com trabalhadores de carteira assinada, o<br />
agrário moderno; mescla-se com o pobre de classe social indo de "média a baixa", sem<br />
carteira assinada, o agrário paupérrimo, o trabalhador de economia informal, entre<br />
outros, o miserável, há muito excluído da possibilidade de ascender em escala social.<br />
Em todas essas faces, explicita-se um Brasil que não conseguiu, no amanhecer do século<br />
XXI, resolver seus problemas sociais mais contundentes, de dar à população melhor<br />
qualidade de vida, melhorar a distribuição de renda, erradicar a pobreza, a fome, o<br />
analfabetismo, empreender uma reforma agrária justa, em fim, se estruturar dentro<br />
do modelo anterior, que condições terá de enfrentar esses e os novos problemas<br />
surgidos nesse período reorganizador do mercado?<br />
No processo de inserção da globalização da economia do mercado<br />
brasileiro no processo global verifica-se, o crescente intervencionismo<br />
estrangeiro a que o país vem sendo submetido. A onda de privatizações que vem<br />
ocorrendo -até com as estatais tidas corno as mais rentáveis- não encontra<br />
precedentes na história. Alardear aos quatro cantos do país que as empresas<br />
70
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
estatais são perdulárias e inadimplentes pode ser apenas um meio de burlar a<br />
confiança da população do país, ao mesmo tempo em que tais propagandas põe a<br />
descoberto a que se presta o neoliberalismo econômico. Enquanto são vendidas as<br />
estatais, por serem "prejudiciais" ao bom andamento do setor econômico, essas empresas,<br />
ao passarem para a iniciativa privada recebem bônus fiscais que lhes permitem operar<br />
no mercado. Por outro lado, são mandados para a reserva de trabalho milhares de<br />
operários, ao mesmo tempo em que se deteriora o padrão de vida nacional.<br />
A situação atual coloca o Brasil como um país do futuro? De qual futuro? O processo de<br />
"modernização" pelo qual o país vem passando, tem sido processado à custa da<br />
importação de tecnologia e de equipamentos que além de impedir o crescimento da<br />
produção nacional, compete com qualidade superior e preço baixo dentro do próprio<br />
mercado brasileiro contribuindo, para a desqualificação e para o rebaixamento dos<br />
produtos nacionais ao mesmo tempo em que, obriga dezenas de empresas a deixar o<br />
mercado fomentando dessa forma. O crescimento do desemprego. A configuração e o<br />
comportamento neoliberal do setor terciário apontam para o crescimento e para a<br />
diversificação de uma economia competitiva formal, que manda milhares de trabalhadores<br />
para a economia informal como única saída para fugir ao desemprego, à fome e à<br />
miséria, não pode ser considerado como fator modernizador para a economia<br />
nacional.<br />
Deluiz (1994), ao analisar a questão da modernização, enfatizando o<br />
crescimento dos serviços de automação no setor terciário brasileiro, aponta a busca<br />
de maior produtividade como fator que levou bancos a aprofundar a especialização<br />
do trabalho dos caixas, levando funcionários da retaguarda a uma atividade mais<br />
autônoma, tais como a dedicação à parte comercial dos bancos. Com essa situação,<br />
o setor bancário introduz os fatores básicos exigidos no processo de especialização<br />
dentro da atual economia globalizada: flexibilidade, abstração, versatilidade, liderança,<br />
comunicação, habilidade de discernimento, equilíbrio físico-emocional e capacidade de<br />
decisão. Essas mudanças, essenciais no início no processo neoliberal, tomam-se<br />
drásticas após a implantação desses serviços, não apenas no setor bancário, mas,<br />
em todos os setores da vida econômica, pois causam desemprego e desemprego<br />
causa fome, desnutrição, favorece a delinqüência, a prostituição e a desestruturação<br />
familiar.<br />
Influência da Globalização na Educação<br />
A era da modernidade - entendida como a era das grandes transformações<br />
71
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
tecnológicas- produzidas nos grandes centros hegemônicos se remete à periferia como<br />
um conjunto de bondosas criações científicas, acompanhadas de determinações<br />
ideológicas sobre a modernização, capazes de remodelar toda a sociedade política e<br />
cultural dos países periféricos. Assim, são modernos apenas os padrões econômicos,<br />
sociais e culturais surgidos e desenvolvidos nos centros do poder. A transferência<br />
dessa modernidade para a periferia em forma de transferência de tecnologia e<br />
ideologia vem com um único objetivo: sustentar a hegemonia dos centros do poder,<br />
garantindo através da ideologia a perpetuação desses centros, de forma que a<br />
modernidade possa ser algo apenas almejado pelos países periféricos.<br />
A história tem mostrando que só os países desenvolvidos transitam pelo mundo<br />
moderno do poder, subjugando sob os domínios econômicos e políticos os países<br />
periféricos, tendo estes, jamais adentrado como parte integrante do cobiçado<br />
círculo dos países dominadores.<br />
O sistema taylorista que separou em nome do aumento e do controle de produção, o<br />
trabalhador operário do trabalhador intelectual, separou também a concepção do<br />
todo. Numa forma de juntar novamente as partes no todo, o processo de<br />
globalização propõe uma nova forma de concepção desse todo, porém, carregada de<br />
uma enorme seletividade profissional, fato que de per si, é suficiente para despachar para<br />
o mercado de reserva milhões de trabalhadores. Dessa forma, o mercado mundial<br />
globalizado ensaia uma nova fórmula taylorista, observadas nas segmentações cada<br />
vez mais nítidas das classes sociais dentro do atual modelo.<br />
O avanço de tecnologias sofisticadas exige do trabalhador maior aprimoramento na busca<br />
da perfeita harmonia com o processo produtivo. Concomitantemente, a inserção de novas<br />
tecnologias no mercado de trabalho, manda para a reserva um exército de trabalhadores<br />
cuja mão-de-obra tornou-se desnecessária frente aos processos de modernização e<br />
automação implantados nos setores de produção, numa clara visão de que:<br />
"a qualificação para o trabalho diante das inovações tecnológicas adquire um caráter<br />
dinâmico, no sentido de que a competência especializada para dado conjunto tecnológico pode<br />
to r nar-se obsoleto e inadequado para outro aparato tecnológico. A própria lógica qualifica e<br />
desqualifica o trabalho"(Kawamura, 1990:14)<br />
Assim, a modernização implica num tipo de reorganização administrativa de<br />
mecanismos que garantem o controle social e político, correspondentes aos pressupostos da<br />
modernização. Nesse contexto, a educação é pensada numa determinada visão de<br />
sociedade, para e a partir dessa visão estabelecer os valores, as normas, os conteúdos, as<br />
pautas de conduta, as técnicas e os métodos de ensino, com os quais irá direcionar a<br />
sociedade para atender as perspectivas dessa sociedade que a idealiza. Dessa forma, a<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
educação parece estar a serviço, apenas da formação de mão-de-obra para atender as<br />
demandas do grande capital. De outra forma, o capitalismo globalizado impõe à educação a<br />
produção de um profissional altamente qualificado, dinâmico e com capacidade de decisão<br />
para ocupar os lugares criados pela nova ideologia do capital.<br />
O enfraquecimento dos Estados Nacionais de forma rápida e eficaz pelo<br />
neoliberalismo, busca no componente educação a sua principal via de acesso. O<br />
financiamento da educação pelos organismos internacionais traz consigo um conjunto de<br />
regras e estratégias que põe a descoberto o foco de resistência centrado no setor<br />
educacional. A utilização dos meios de comunicação de massa não são apenas postos ao<br />
comando do capital, servem antes, para a promoção do controle das massas dentro de um<br />
objetivo que visa atingir o dia-a-dia da escola, a fim de utilizá-la como centro divulgador das<br />
idéias neoliberais.<br />
Aceitar que os subsídios oferecidos à educação determinem as regras para a<br />
educação, é, concordar com o jogo dos países centrais, fato que vem ocorrendo nas<br />
últimas décadas onde os governos dos países periféricos, sobretudo, os da América<br />
Latiria têm contribuído para a vitória de algumas batalhas nesse jogo de cartas marcadas<br />
pelas idéias capitalistas.<br />
A parceria entre o Brasil os Estados Unidos na formulação da Lei n. 5.692/71 é um<br />
exemplo claro da visão educacional pretendida para a educação brasileira. Ao implantar<br />
oficialmente a reforma do ensino de 1° e 2 0 graus o governo brasileiro assinou a<br />
deterioração da qualidade do ensino. Pretender naquele momento que, no ensino de 2°<br />
grau, a educação profissional não fosse trabalhada em maior intensidade que à educação<br />
geral era, sem dúvida, a maior expressão de hipocrisia. Quem no momento dessa reforma,<br />
se não a pequena parcela da população abastada estaria interessada em educação geral?<br />
Por outro lado, não podemos negar que numa época de profundas mudanças, aquela não<br />
tenha sido organizada com a "melhor" das intenções. Entretanto, se por um lado o crescimento<br />
econômico necessitava de urgente mão-de-obra "especializada", o setor educacional<br />
necessitava manter um padrão mínimo de qualidade nesse ensino, fato que, com raras<br />
exceções foi possível verificar. No momento em que todos os recursos foram direcionados<br />
para a educação técnico-profissional, o sistema educacional brasileiro permitiu a queda<br />
brusca na qualidade da educação. A falta de investimentos determinou a deficiência na<br />
qualidade da educação oferecida pelo sistema público, passando a existir, dessa forma,<br />
uma relação inversa: enquanto cresce a cada ano o número de crianças em idade<br />
escolar decrescem gradualmente os investimentos no setor educacional. Dados da década<br />
de 80 mostram que a redução dos gastos com a educação caiu de 24,4% para 18,1% em<br />
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toda a América Latina, enquanto cresciam as cifras com o pagamento dos juros da dívida<br />
externa, em detrimento da alocação de recursos para os setores sociais contribuindo ainda<br />
mais para a queda na qualidade do ensino público.<br />
Tratar da qualidade da educação requer compromissos por parte de toda a sociedade e<br />
não apenas, por parte dos educadores. Proporcionar ao ser humano condições de<br />
preparação para a vida cotidiana requer além da valorização das condições implícitas no<br />
indivíduo, condições materiais externas que possam permitir o patrocínio do crescimento<br />
das habilidades, indispensáveis a uma boa formação.<br />
Os constantes ataques dirigidos pelo sistema capitalista à educação pública<br />
buscam confundir o papel social da educação com o fito de substituir seus fins sociais em<br />
objetivos empresariais. Entre os mais freqüentes ataques, estão os que dizem ser a<br />
educação mal administrada e por isso perdulária: que os principais responsáveis pelo<br />
fracasso da educação são os professores e que a educação não se ajusta ao mercado,<br />
visam unicamente inserir na população o descrédito na educação pública, promovendo em<br />
contra partida a ideologia de que o sistema privado de ensino é sempre superior a aquele.<br />
Gastar mal, pode não ser a causa determinante e nem regra geral para o problema da crise<br />
educacional, que, aliás, seria crise educacional ou seria crise ideológica do capital? O<br />
cerne do problema enfrentado atualmente pela educação pode estar diretamente<br />
vinculado aos baixos salários pago aos professores da rede oficial de ensino (em todos<br />
os níveis de governo), à falta de investimentos no setor podem ser visto como estratégias do<br />
capital para o enfraquecimento no setor educacional público. O baixo salário pago aos<br />
professores transforma-os em verdadeiros maratonistas escolares, fato que impede, em<br />
nome da própria sobrevivência na maioria dos casos, um verdadeiro comprometimento com<br />
a educação. Culpar os professores e educadores pelo distanciamento cada vez mais<br />
acentuado entre o ensino e sua qualidade, é apenas uma forma capitalista de tentar tomar<br />
as rédeas do poder no setor educacional, não com o objetivo de melhorá-la, mas, no<br />
sentido de torná-la privada, empresarial, lucrativa para o mercado e totalmente vinculada<br />
aos ditames dos governos neoliberais. Dessa forma, a adequação da educação ao<br />
mercado viria de certa forma, muito mais rápida. A automação globalizada transformaria<br />
mais rapidamente homens em máquinas, enquanto se deterioraria a capacidade de se<br />
pensar socialmente o futuro da humanidade.<br />
Influência da Globalização na Educação Brasileira<br />
A introdução desenvolvimentista da educação no Brasil remonta as teorias da<br />
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modernização, surgidas sob a influência da Escola Nova e que se fez representar por<br />
nomes como os de Fernando Azevedo e Anísio Teixeira (partidários do<br />
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova-1932) cuja compreensão, era de que a<br />
escola deveria se constituir no centro modernizador da Educação através do conhecimento<br />
científico. O pensamento escolanovista vai se enfraquecendo nos vinte anos posteriores,<br />
cedendo lugar ao pensamento de que a ducação deveria ser transformada em educação<br />
profissional.<br />
Na década de 1960, se articulam no Brasil novas condições de adequação do<br />
sistema de ensino à modernização econômica que paulatinamente é implantada<br />
no país. Essas condições favorecem o surgimento de cursos técnico-profissionais de<br />
nível médio (secundário) que fortalecem a ocupação economicista da educação<br />
ao mesmo tempo em que, em 1964 se iniciam os fortes mecanismos repressivos dos<br />
"aparelhos ideológicos de Estado" (Althusser, 1970), para assegurar os interesses<br />
capitalistas representados pela ordem constituída dos governos militares sob a tutela<br />
dos governos dos países centrais.<br />
No Brasil, é preparado um aparato de Estado para atuar como elemento<br />
regulador e ao mesmo tempo impulsionador do processo de desenvolvimento<br />
empreendido (pelo governo JK) como forma de implementação da modernização da<br />
"sociedade política" a fim de possibilitar a internalização do capital.<br />
Com o novo regime implantado, a educação brasileira passa a ser apenas, um<br />
componente destinado a produção de mão-de-obra, fundamental para o<br />
suprimento das necessidades criadas pelo capital, cuja finalidade seria a<br />
"integração do país" ao capitalismo internacional.<br />
A política adotada pelo governo pós-68 avança flagrantemente sobre o sistema<br />
educacional do país. A Lei n° 5.692/71 reformula todo o sistema de ensino, deitando<br />
clara a tônica que iria reger os novos rumos da educação no Brasil: formar recursos<br />
humanos técnicos e científicos, de nível médio e especialista de nível superior,<br />
para atuar na expansão educacional capitalista brasileira. A Lei n° 5.692/71 decreta<br />
compulsoriamente a supremacia do ensino técnico nas escolas oficiais, proliferando<br />
em todo o país as escolas técnicas federais.<br />
Embora, nesse período o país tenha conseguido uma industrialização plausível, esta<br />
não foi suficientemente forte para elevar o país à categoria de moderno e<br />
desenvolvido, como pretendiam os governantes. Ao contrário, acelerou-se a<br />
dependência externa. No âmbito educacional, a política de desenvolvimento<br />
implementada pelos sucessivos governos, dão conta de que a qualidade ria<br />
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educação vem despencando vertiginosamente, ao mesmo tempo em que aumenta o número<br />
de analfabetos no país. Se a atual política desenvolvimentista persistir a educação corre o<br />
risco de se transformar em mera forma de atender as demandas do capital no sentido de<br />
que "reduzir a qualidade do ensino ao paradigma tecnológico é retroceder no tempo, atrelar a escola ao<br />
setor produtivo e renunciar sua missão fundamental que é a formação integral do homem"(Costa/Silva.<br />
apud Saviani. 1996).<br />
Enquanto o projeto neoliberal condena toda e qualquer participação do Estado na<br />
economia, as multinacionais se implantam nos países periféricos, obtêm isenção fiscal e<br />
outros subsídios estatais. E importante atentar para a dupla subserviência a que servem<br />
nossos governantes. Enquanto permitem ataque ao poder econômico nacional,<br />
transformam as multinacionais em vitrine para as suas compras. Para essas empresas,<br />
vencer as concorrências se torna presa fácil: abrem caminhos para o diálogo entre o<br />
governo e matriz da empresa sediada longe dos limites geográficos do país, ao<br />
mesmo tempo em que impedem o crescimento das empresas nacionais.<br />
Outros freqüentes ataques disparados pelo projeto neoliberal, contra o governo e,<br />
conseqüentemente contra o sistema educativo (brasileiro) são enfocados pelos<br />
meios de comunicação de massa (TV, Jornais, rádio) responsabilizando o sistema<br />
governamental pela corrupção ineficiência administrativa, desperdício, mau uso do erário<br />
público, entre outras. Desnudam o sistema anterior, agora suplantada pela mais nova forma<br />
de reorganização econômica-política mundial. Esses ataques buscam enaltecer a iniciativa<br />
privada em detrimento do setor público.<br />
A produção das famosas "apostilas," usadas em quase todos os cursos, elaboradas<br />
em sua grande maioria sem qualquer procedimento didático-metodológico, se<br />
transformam em guias práticos a direcionar as atividades dos docentes e dos discentes,<br />
numa forma clara, de tomada da posição dianteira pelo setor privado sobre o sistema público<br />
de educação. Além de nada proporcionarem de inovação em matéria de ensino, as apostilas<br />
arranjam um jeitinho de tornar seu uso obrigatório em detrimento dos livros didático<br />
considerados em maior profundidade de conteúdos, e da própria criatividade do professor,<br />
passando este a mero cumpridor de tarefas escolares.<br />
A Lei n°' 9.131 /95, que criou o exame nacional de cursos, sistematizada pela Portaria<br />
249/96, são formas claras e definidas da imposição neoliberal, no sentido de adequar todo<br />
sistema educacional brasileiro às regras do capital. A preferência inicial pela verificação do<br />
ensino superior (cursos técnico-liberais) apontam para a aproximação gradual e rápida sobre<br />
os cursos de formação de professores. Daí, chagar até as dimensões do ensino médio<br />
demandará apenas ligeiros ajustes no projeto e no objetivo central.<br />
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Os novos estudos que foram e estão sendo gestados desde o início da década de 90,<br />
apontam para novos ajustes da educação frente às necessidades do capital. Adequar os<br />
currículos escolares para o oferecimento de habilidades cognitivas mínimas,<br />
escamoteando habilidades básicas próprias do crescimento integral do indivíduo, será a<br />
tônica que regerá a educação dentro do sistema neoliberal.<br />
Bibliografia<br />
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Tradução de Joaquim<br />
José de Moura Ramos, Lisboa: Editora Presença, LDA, 1970.<br />
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Universitária: la perspectiva mexicana. In: MORSINI, Marília Costa (org) Universidade no<br />
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nº 3, jun. 1996.<br />
OLIVEIRA, Betty A. O Estado Autoritário Brasileiro e o Ensino Superior. São Paulo: Cortez,<br />
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*Jose Maria Leite Botelho. Professor do <strong>DE</strong>GEO/UFRO, Mestre em Educação pela<br />
UFRJ.<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
O O O O COMÉRCIO COMÉRCIO COMÉRCIO COMÉRCIO E E E E AS AS AS AS ROTAS ROTAS ROTAS ROTAS FLUVIAIS FLUVIAIS FLUVIAIS FLUVIAIS NA NA NA NA<br />
SOCIEDA<strong>DE</strong>GUAPOREANA SOCIEDA<strong>DE</strong>GUAPOREANA SOCIEDA<strong>DE</strong>GUAPOREANA SOCIEDA<strong>DE</strong>GUAPOREANA COLONIAL COLONIAL COLONIAL COLONIAL<br />
Marco Marco Antonio Domingues Domingues Teixeira.<br />
Resumo: O comércio constituiu-se como principal fonte de<br />
abastecimento para o vale do Guaporé no período colonial.<br />
Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a região<br />
de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão<br />
e hortaliças. No entanto os demais produtos vinham de fora, através de<br />
rotas estabelecidas entre São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa<br />
de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do Pará-Vila Bela,<br />
através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé.<br />
Entre os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou<br />
pelos rios, através das rotas monçoeiras estavam: escravos, tecidos,<br />
utensílios domésticos, armas e munições, gêneros alimentícios como<br />
sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para<br />
construção, objetos para culto e celebrações religiosas, objetos<br />
para mineração e muitos outros.<br />
Palavras – Chave: Produção agrícola, Sertanistas, Gêneros<br />
Alimentícios e Mineração.<br />
Abstract: Trade is the main source of supply for the Valley of the<br />
Guaporé in the colonial period. Internally the subsistence agricultural<br />
production supplied the region of immediate necessities such as maize,<br />
cassava, beans and vegetables. However the rest came from outside,<br />
through routes established between São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-<br />
Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela and finally Belém do Pará-Vila Bela<br />
River through the roadmap of Amazonas-Madeira-Mamoré and<br />
Guaporé. Among the products brought by land, through the routes<br />
sertanistas, or by rivers, through the routes monçoeiras were: slaves,<br />
fabrics, household items, weapons and ammunition, groceries as salt,<br />
sugar, wine, cheeses and meats, paper, construction materials, objects<br />
for worship and religious celebrations, objects for mining and many<br />
others.<br />
Keyword: Agricultural production, Sertanistas, groceries and mining.<br />
O comércio constituiu-se como principal fonte de abastecimento para o vale do<br />
Guaporé no período colonial. Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a<br />
região de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão e hortaliças.<br />
No entanto os demais produtos vinham de fora, através de rotas estabelecidas entre São<br />
Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do<br />
Pará-Vila Bela, através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé. Entre<br />
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os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou pelos rios, através das rotas<br />
monçoeiras estavam: escravos, tecidos, utensílios domésticos, armas e munições, gêneros<br />
alimentícios como sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para construção,<br />
objetos para culto e celebrações religiosas, objetos para mineração e muitos outros. A<br />
característica maior desse comércio foi sempre a interdependência com a produção de ouro.<br />
As rotas comerciais foram tanto mais ativas quanto maior foi a produção de ouro, e decaíram<br />
na medida em que o ouro se tornou escasso. No entanto outro fator determinante para o<br />
abastecimento local através do comércio monçoeiro e sertanista foi a questão da<br />
política fronteiriça, que requisitava a franquia de um roteiro fluvial suficientemente<br />
estruturado para garantir o abastecimento bélico, de gêneros alimentícios, medicinais<br />
e recursos humanos para os trabalhos e defesa local. Assim ao se estruturarem os roteiros<br />
comerciais do vale do Guaporé com o restante da colônia teve-se em mente a importância<br />
da manutenção da produção aurífera como elemento indispensável para garantir o<br />
abastecimento local que garantiria por sua vez a guarda eficiente das fronteiras.<br />
Nos primeiros anos após a descoberta das minas do Mato Grosso o comércio se<br />
realizava sempre pelas rotas que ligavam a região guaporeana a Cuiabá e esta a São<br />
Paulo e Rio de Janeiro. A primeira constatação que se faz neste caso é a precariedade do<br />
abastecimento. A falta de gêneros, mesmo os de primeira necessidade era uma<br />
possibilidade muito real. Aos curtos períodos de euforia correspondentes à chegada de uma<br />
monção ou de uma tropa sertanista sucediam-se longos períodos de crise e<br />
desabastecimento, com catástrofes como a fome e o conseqüente aumento das epidemias.<br />
A inconstância do abastecimento era motivada por fatores diversos como ataques indígenas,<br />
naufrágios, excesso de chuvas, secas, epidemias, crise na produção aurífera ou mesmo<br />
práticas de especulação. Assim o cronista Barbosa de Sá registra que devido a um ataque<br />
dos índios Paiaguás: "naó chegou neste ano fazenda alguma de povoado que a que escapou<br />
do gentio em outras Canoas que vieraó atras chegou podre pello que houve falta de tudo; e<br />
chegouse a dar por um frasco de sal meya libra * de ouro e por falta delle senaó<br />
admenistrava o Baptismo. “O Barão de Melgaço refere-se a 1732 como outro período de<br />
desabastecimento que foi provocado pela” visível decadência (das minas de Cuiabá) segundo<br />
uma extensa petição dirigida ao provedor pelo capitão-mor Luís Vilares e outros. A dita<br />
petição foi feita em conseqüência dos estragos que havia feito o gentio e pela notória falta de<br />
ouro nas faisqueiras, carência de gêneros de consumo e de víveres. Dizem que chegara a se<br />
vender o prato de sal por 10 oitavas, camisas de linho por 12 e a libra de pólvora também por<br />
12 oitavas e nos anos anteriores o milho foi vendido a razão de 12 oitavas e o feijão 24 a<br />
30. lx O desabastecimento de gêneros como o sal implicavam na falta de outros ainda<br />
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mais importantes como a carne. uma vez que o único modo para sua conservação e<br />
distribuição para os destacamentos militares fronteiriços era através de seu salgamento. A<br />
falta constante de todo tipo de gêneros também é constatada pelo governo e Rolim de Moura<br />
escreveu que faltavam "as coisas mais precisas para o comum contento, além das doenças a<br />
que se vive sujeito... Por falta de vinho estamos quase a ficar sem missa nem sacramento Ixi .<br />
Justificando-se a partir do elevado custo de todo tipo de gêneros, o governador Rolim<br />
de Moura passou a pleitear a abertura da rota tal Guaporé-Mamoré-Madeira e Amazonas,<br />
que ligaria Vila Bela da Santíssima Trindade a Belém do Pará, em carta dirigida a Diogo<br />
Mendonça Corte Real em 28 de maio de 1752 o governador afirma:<br />
“Não haver outro meio para o aumento desta terra mais do que buscar modo, por que se elimina a<br />
grande carestia dela. O ú n i c o q u e m e o c o r r e é franquear Sua Majestade o comércio com o<br />
Pará, pois só por esta via podem vir às fazendas por preços que façam conta aos seus moradores...<br />
A experiência o mostrou já, por que na ocasião em que aqui chegaram as primeiras canoas do Pará<br />
se venderam os gêneros todos por preços inferiores, que os de Cuiabá...” lxii<br />
A seguir apresentamos uma relação de objetos e gêneros e seus preços praticados<br />
em Cuiabá e no vale do Guaporé (Vila Bela). Esta relação elaborada pelo próprio Rolim de<br />
Moura foi um dos instrumentos por ele utilizados para solicitar a D. José I a abertura da rota<br />
do Madeira, que até então tinha sua navegação interditada por motivos de estratégia<br />
política, militar e econômica.<br />
TABELA N°01 lxiii<br />
2- CUSTOS <strong>DE</strong> GÊNEROS, OBJETOS E MERCADORIAS EM CUIABÁ E VILA BELA<br />
Objeto Custo em Cuiabá Custo em Vila Bela<br />
Alavanca 2 Oitavas 6 Oitavas<br />
Libra de Aço ½ Pataca de ouro 12 Vinténs* 1 e meia oitava<br />
Libra de Pólvora 1 ½ oitava 2 ½ a 3 oitavas<br />
1 alqueire de sal 9 a 10 oitavas 24 oitavas<br />
Baetas* 2<br />
1 Cruzado * 3 de ouro ¾ 1 oitava e ¼<br />
Ao pretenderem a ligação comercial com o Pará através da rota fluvial do Guaporé-<br />
Madeira e Amazonas, as autoridades coloniais e metropolitanas tinham em mente não só<br />
aliviar o auto custo de manutenção do abastecimento praticado até então através<br />
de Cuiabá, mas, sobretudo facilitar o escoamento do ouro por um roteiro mais seguro,<br />
reduzindo as possibilidades de seu contrabando pelas rotas terrestres para São<br />
Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, Mesmo enquanto esteve legalmente proibida, a<br />
prática clandestina desse roteiro era de conhecimento e anuência das autoridades<br />
coloniais. O próprio governador Rolim de Moura não obstruía monções de alguns que<br />
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pediam para vir buscar gêneros na capital paraense:<br />
“Esta consideração foi causa de que eu não negasse a licença a alguns que a<br />
pediram para ir buscar fazendas àquele porto, e que ainda me atrevesse escrever ao<br />
Governador daquela Capitania para que me permita a alguns, ou destes ou dos que lá<br />
estão já tornarem com as suas carregações lxiv .”<br />
Além do que procurava manter contatos com o governador do Pará, O Capitão-<br />
General Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal. Em<br />
seus contatos com o governador do Pará Rolim de Moura apresenta as vantagens<br />
tanto para Mato Grosso quanto para Belém da abertura da rota fluvial do Madeira,<br />
ressaltando ainda a maior rapidez das comunicações com a Metrópole através dessa<br />
via.<br />
A abertura da rota das monções do norte foi fruto da permanente insistência<br />
das autoridades coloniais do Pará e, sobretudo de Mato Grosso. Assim, pela Provisão de<br />
14 de novembro de 1752, conhecida em Mato Grosso somente em 1754 ficava<br />
permitida e franqueada a navegação pelos vales do Guaporé, Madeira e Amazonas,<br />
estabelecendo-se ligação comercial entre Vila Bela e Belém do Pará, proibindo-se a<br />
comunicação entre as duas capitanias por qualquer outro caminho fluvial que não fosse<br />
a rota do Madeira (conforme evidencia o Barão de Melgaço, essa interdição perdurou<br />
até 27/04/1791 quando se abriu a navegação pelo Xingu e Tocantins) lxv . A rota do<br />
Madeira até então interditada por temor de uma expansão castelhana por territórios<br />
coloniais portugueses era agora franqueada entre outros motivos para que se<br />
inviabilizassem tentativas de contrabando de ouro de Mato Grosso com a colônia<br />
castelhana, bem como suas ações expansionistas e o comércio clandestino<br />
realizados entre os colonos de Mato Grosso e as Missões da margem esquerda do<br />
Guaporé. A abertura da rota fluvial do Madeira deveria ser consolidada com a fundação de<br />
arraiais ao longo de alguns pontos estratégicos que garantiriam apoio aos comboieiros<br />
bem como a fiscalização de suas cargas. As medidas de prevenção ao contrabando e<br />
proteção das fronteiras e rotas fluviais seriam completadas com a criação de<br />
destacamentos militares e fortificações. Baseando-se nestas premissas surgiram os<br />
arraiais de Santo Antônio das Cachoeiras do Rio Madeira, a partir de uma missão<br />
jesuítica; o povoado de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande, fundado pelo<br />
Juiz de Fora Teotônio Gusmão, na cachoeira que hoje leva o seu nome e o arraial do<br />
Balsemão, localizado na cachoeira do Girau lxvi .<br />
O estabelecimento da rota do Madeira levantou protestos por parte da Alfândega do<br />
Rio de Janeiro que alegava que sofreria graves prejuízos sobre os direitos de entrada dos<br />
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produtos, mercadorias e escravos para São Paulo e daí para o Mato Grosso. Entretanto a<br />
Capitania do Mato Grosso obteve a permissão régia e passou a ser um atraente mercado<br />
consumidor para os comerciantes de Belém do Pará. Após ser franqueada a navegação pelo<br />
Madeira o governo estabeleceu permanentemente sua presença, incluindo em todos os<br />
comboios embarcações da Coroa.<br />
A empreitada das monções eram penosas e marcadas sempre por grandes riscos.<br />
Além das enormes distâncias a serem vencidas os comboios enfrentavam ainda obstáculos<br />
naturais como as 20 cachoeiras do Madeira e Mamoré ataques de nações indígenas hostis<br />
como os Mura e os Mundurucu, que lutavam contra a invasão de suas terras pelos<br />
navegadores, a escassez de alimentos e a fome. Em terra os perigos não eram<br />
menores: cobras, pragas de insetos, animais peçonhentos, formigas, onças e plantas<br />
de espinhos venenosos. Nos banhos de asseio corria-se o risco de ataques de piranhas,<br />
jaús, jacarés, piraíbas, candirus, sucuris e arraias com ferrões venenosos. Na água além do<br />
perigo das cachoeiras havia os gigantescos troncos de árvores (que deram nome ao no<br />
Madeira), cujo choque com as embarcações provocava danos, naufrágios e mortes. Por fim<br />
salientamos ainda o perigo das doenças tropicais típicas da região como a malária, o<br />
tifo, a febre-amarela e a lestimaniose. Além de todos esses perigos reais o desconhecido<br />
povoava de fantasias e seres fantásticos o imaginário dos viajantes reforçando superstições,<br />
mitos e crendices, contribuindo para aumentar o grau de tensão das viagens. Em seu diário<br />
de navegação pelo rio Madeira, Francisco de Mello Palheta retrata a viagem da bandeira por<br />
ele comandada em 1722. Dela retiramos alguns trechos que são particularmente<br />
esclarecedores sobre o alto grau de dificuldades pelos quais passavam os comboieiros:<br />
"... à cachoeira dos Iguarites, aonde chegamos vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento<br />
uma figura do inferno (...), pois nenhuma (cachoeira) se iguala, nem tem paridade a esta do rio<br />
Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros tão altos que nos pareceu impossível a passagem (...)<br />
foi necessário fazer caminho por terra (...) mais de meia légua.<br />
Daqui continuamos nossa derrota passando por cachoeiras, umas atrás das outras... a que chamam<br />
Mamiu, que gastamos três dias para passar (...) e com tal perseguição de pragas de piuns *-(...) esta<br />
cachoeira(...) é tão terrível, monstruosa e horrível, que mesmo aos naturais de cachoeira mete<br />
horror e faz desanimar.<br />
Depois das frutas do mato acabadas, comíamos que ate carne de lagartos, camaleões e capivaras...<br />
Neste lugar deu parte o principal Joseph Aranha ao cabo haver visto uma mui grande aboiada * 2 , que<br />
afirmam teria parco menos de 40 passos* 3 de comprimento e de grossura julgaram ter<br />
quinze a dezessete pés* 4 , grandes monstruosidades tem esse rio... ” lxvii<br />
Esse conjunto de fatores de tensão tanto real quanto imaginários mantinha<br />
as tripulações sobressaltadas e inquietas (Levava-se um ano e meio a dois anos e<br />
meio para se realizar uma viagem de ida e volta entre Vila Bela e Belém do Pará). O<br />
trecho encachoeirado requeria o trabalho de 100 a 120 homens para sirgar as<br />
embarcações ou mesmo arrastá-las por terra, o que provocava estragos nos<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
cascos e retardamento na viagem interrompida para consertos e reparos. Na maior<br />
parte das vezes as embarcações deveriam ser esvaziadas e sua carga levada pelos<br />
participantes, por picadas e trilhas nas margens dos rios. Das vinte cachoeiras,<br />
somente umas poucas eram atravessadas a remo. As embarcações utilizadas eram<br />
chamadas igarités e tinham capacidade para o transporte 1000 (de mil) a 2000 (duas<br />
mil) arrobas de cargas, além de possuírem velame. Para se defender dos perigos,<br />
eram dotadas peças de artilharia na popa e na proa. Rolim de Moura ainda adaptou-lhes<br />
bacamartes, foices e chuços de ferro, para protegê-las das abordagens de indígenas,<br />
quilombolas, castelhanos ou salteadores.<br />
lxviii A despeito de todas essas<br />
dificuldades observadas, o comércio que se estabeleceu entre Vila Bela e Belém do<br />
Pará foi enormemente rentável. No período áureo das lavras mato-grossenses, entre<br />
1760 e 1780, registraram-se a chegada de duas monções por ano em Vila Bela. Esse<br />
comércio foi intensificado com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão que<br />
integrou o vale do Guaporé e as minas de Mato Grosso ao mercantilismo colonial. O<br />
comércio organizou-se com base no sistema crédito/dívida e forneceu à região<br />
escravos, tecidos, louças, gêneros alimentícios, munições, materiais de garimpo<br />
e agropecuários. lxix Na composição dos preços entrava a possibilidade de<br />
insolvência dos devedores, as dificuldades de transporte, os riscos de perda parcial<br />
ou total da carga, a deterioração dos produtos perecíveis, a imobilização do capital e a<br />
instabilidade de extração do ouro nas minas de Mato Grosso. As lavras, a edificação<br />
da vila e as lavouras garantiam um mercado promissor, sempre ansioso por mais<br />
braços cativos. Dessa maneira, formou-se, através da Companhia de Comércio do<br />
Grão Pará e Maranhão, uma rota fluvial constante, que abastecia o vale do Guaporé<br />
de negros e gêneros comercializados em Belém do Pará. Abaixo relacionamos alguns<br />
itens constantes nos carregamentos das Companhias com destino à Praça de Mato<br />
Grosso e seus respectivos valores obtidos de uma Memória dos Preços que no<br />
Mato Grosso São Vendidos os Gêneros Secos e Molhados (1772) lxx .<br />
TABELA N°02<br />
3 - PRODUTOS E PREÇOS PRATICADOS PELA COMPANHIA <strong>DE</strong> COMÉRCIO DO<br />
GRÃO-PARÁ E MARANHÃO EM MATO GROSSO<br />
PRODUTOS CUSTO EM MATO CUSTO EM LISBOA (L) OU<br />
GROSSO<br />
NO PARA (P)<br />
Escravo negro "bom 200 oitavas ou 300.000 réis 80.000 réis (P)<br />
Escravo negro "inferior" 160 a 180 oitavas 60.000 réis (P<br />
Escravas negras 2 arráteis de ouro ou 384.000<br />
Réis<br />
70.000 réis (P)<br />
Sal 15 a 30.000 réis / alqueire 81 réis (L)<br />
Quilo flamengo 3.000 réis / unidade --<br />
Vinho tinto 3.000 réis / frasco --<br />
Vinagre 3.000 réis / frasco 6.000 réis i pipa (L)<br />
Azeite 3.000 réis / frasco 2.000 réis / barril (L)<br />
Aguardente 3.000 réis / frasco 44.443 / pipa (L)<br />
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Farinha de trigo 3.000 réis p/ cada 3 arrobas --<br />
Paio 900 réis cada --<br />
Chá 6.000 réis / arrátel 300 réis (L)<br />
Café 750 réis / arrátel --<br />
Manteiga 750 réis / arrátel --<br />
Baeta encarnada, azul 15 tostões*' / côvado*= --<br />
Pano encarnado, azul ou<br />
Pardo<br />
4.500 réis / côvado --<br />
Chapéus finos 10.500 réis/unidade --<br />
Chapéus grosseiros 4.500 réis' unidade --<br />
Meias de seda 7.500 réis / par --<br />
Meias linha 1.500 / unidade --<br />
Panos<br />
Lençóis<br />
de linho para 1.500 réis / vara*' --<br />
Panos<br />
camisas<br />
de linho para 2.260 réis / vara --<br />
Panos de bertanha 9.000 réis / vara 3.000 réis (P)<br />
Panos de cambraia lisa 7.500 réis / vara --<br />
Abotoaduras de metal 9.000 réis / par --<br />
Veludo encarnado, azul e<br />
preto<br />
7.500 réis / côvado --<br />
Tafetá 1.500 réis côvado --<br />
Seda lisa 4.500 réis / côvado --<br />
Facas Flamengas 400 réis / unidade 84 réis (L)<br />
Tesouras 750 réis / unidade --<br />
Espelhos pequenos 400 réis / unidade --<br />
Pentes de marfim 400 réis / unidade --<br />
Pentes de tartaruga 1.500 réis / unidade --<br />
Machados 3.000 réis / unidade --<br />
Foices 1.500 réis / unidade --<br />
Anzóis 3.000 réis / dez. --<br />
Fechaduras 2.250 réis' unidade --<br />
Pratos 750 réis / unidade 10 réis (L)<br />
Louça (da Índia?) 45.000 réis / aparelho de chá --<br />
Pratos (de louça da<br />
Índia?)<br />
2.250 réis / unidade --<br />
Copos de vidro 750 réis / unidade --<br />
Frascos de vidro 1.200 réis / unidade --<br />
Ferro em barra (da<br />
Suécia?)<br />
400 réis / arrátel --<br />
Aço 750 réis / arrátel --<br />
Cobre ou caldeirão 1.500 réis / arrátel --<br />
Pólvora 4.500 réis / arrátel --<br />
Estanho 1.500 réis / arrátel --<br />
Cera Branca 1.500 réis / unid. de vela, '/z<br />
Arrátel<br />
--<br />
Alfazema 400 réis / arrátel --<br />
Sabão 750 réis arrátel --<br />
O lucro obtido pelos mercadores que compravam mercadorias no Pará para<br />
revendê-las em Mato Grosso sofria limitações como as que foram ordenadas pelo<br />
Marquês de Pombal aos governadores do Pará e Mato Grosso a fim de que se<br />
controlassem o lucro entre 10 e 12% sobre o preço das mercadorias no Pará,<br />
considerando-se ainda o custo de costeamento de suas canoas.<br />
Fretes e despesas diversas.............................................18%<br />
Riscos e avarias...............................................................10%<br />
Lucro permitido.................................................................12%<br />
Preço permitido para venda..............................................40%<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Criada pelo Alvará Régio de junho 1775, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e<br />
Maranhão deveria atender às necessidades de desenvolvimento geral da parte norte<br />
da colônia através da atividade comercial e sua integridade territorial. A Companhia<br />
detinha a exclusividade do comércio com as capitanias e monopolizava o abastecimento de<br />
escravos no norte, através dos portos de Belém e São Luís conforme o artigo 30 do<br />
Alvará citado acima. O lucro de suas atividades seria verdadeiramente elevado,<br />
como podemos observar pelo "Memorial dos Preços de Mato Grosso" que<br />
infelizmente não menciona os preços de custo do local de origem. No entanto, é<br />
necessário observar que ao organizar sua estratégia de penetração continental pelas<br />
capitanias do Pará, São José do Rio Negro e Mato Grosso a Companhia promovia mais<br />
do que o mero abastecimento, a canalização de toda a produção de drogas do sertão e<br />
principalmente do ouro retirado das minas do Mato Grosso, pois por ordem da<br />
Secretaria de Estado em Lisboa toda a produção das lavras seria escoada pela rota<br />
do Madeira lxxii . Dessa forma fortalecia-se a presença do Estado Colonial na<br />
região fronteiriça, estimulava-se o povoamento e a exploração do ouro através do<br />
abastecimento mais barato e mais regular efetuado pela Companhia e<br />
proporcionar-se-ia maiores lucros à Praça de Belém e à Alfândega Real. Estes itens<br />
são evidenciados na correspondência entre Mendonça Furtado e Corte Real:<br />
"O comércio pelo rio Madeira, com o qual aumentaram as minas, o comércio e o rendimento desta<br />
Alfândega. Seguraremos a navegação do Madeira e do Guaporé e ficaremos fa r tes naqueles limites nos<br />
quais não tínhamos força alguma com que repelir violência dos vizinhos lxxiii .”<br />
A consolidação da rota do Madeira provocou uma intensa ligação entre Vila Bela e<br />
Belém, levando a um declínio acentuado o comércio realizado pelas monções do sul<br />
através do Rio de janeiro e São Paulo.<br />
O abastecimento, embora mais barato e regular do que o anteriormente feito pelas<br />
rotas de São Paulo e Rio de Janeiro, sempre foi considerado insuficiente, quer pela<br />
população, quer pelas autoridades de Mato Grosso. Esse fato se agravava sobremaneira<br />
no tocante ao abastecimento de mão-de-obra escrava. Nas correspondências de D.<br />
Antônio Rolim de Moura, encontramos uma longa exposição de motivos pelos quais<br />
padeciam os habitantes do vale do Guaporé do desabastecimento e da carestia:<br />
"Não tem nenhum outro obstáculo que por hora para fazer eleger com preferência os das outras<br />
Praças. Mais do que a maior facilidade que tem de alcançarem fianças ou fazendas, e o maior<br />
número de pretos que acham para seus transportes: cuja carestia e mais que toda grande<br />
esterilidade que encontram nessa cidade os faz: desanimar para p r osseguirem um comércio que não<br />
podem sustentar sem estes socorros. Por isso exorto vossa mercê que participando aos<br />
Deputados da Mesa este objeto. Lhe hajam de representar que nas maiores remessas de escravos<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
consistia a maior parte do aumento e felicidade não só destas minas mas tão bem deste<br />
estado.” lxxiv<br />
A demanda comercial era sustentada, principalmente, pelos mineiros e pelos<br />
governos. Ambos os segmentos não conseguiam assegurar seus pagamentos,<br />
premidos por dívidas provenientes de gastos públicos imprescindíveis (no caso do<br />
governo) ou, no caso dos mineiros, esmagados pelo alto custo dos escravos, sua baixa<br />
produtividade e rápida invalidez e instabilidade das lavras, dessa forma, as dívidas<br />
cresciam e rolavam como mostram os balanços das Companhias do Grão-Pará e<br />
Maranhão. Esse endividamento aumentava a dependência do comércio monçoeiro e<br />
limitava as oportunidades de acúmulos internos, o que, em última análise, impedia o<br />
crescimento da capitania e a diversificação das atividades produtivas.<br />
Com a extinção da Companhia do Grão-Pará e Maranhão em 1778, o fornecimento<br />
de artigos e escravos sofreu uma brusca e repentina redução, obrigando os<br />
comerciantes a rearticularem seus roteiros e elevando ainda mais os já elevadíssimos<br />
preços praticados. Nas primeiras décadas do século XIX, a rota comercial do Madeira já se<br />
encontrava em profunda decadência terminando por extinguir-se em meados desse mesmo<br />
século. O abastecimento cada vez mais precário e esporádico passava a ser feito<br />
novamente através das rotas do Rio de Janeiro e São Paulo e por intermédio de Cuiabá.<br />
O contrabando, no entanto, impulsionou parcialmente a economia regional, tornando-<br />
se uma estratégia possível numa região fronteiriça onde as severas leis coloniais<br />
inviabilizavam o intercâmbio regular e legalizando entre as duas colônias, conforme<br />
evidencia Luísa Volpato lxvv . Foi justamente através dessa prática e a conseqüente obtenção<br />
da prata que se conseguiu garantir alguma condição de barganha entre a capitania e os<br />
grandes centros de poder colonial, o que não foi suficiente para criar condições de<br />
superação da crise provocada pela decadência da mineração. Esse quadro sombrio<br />
agravou-se sobremaneira ao longo das primeiras décadas do século XIX. A região passou<br />
então por um intenso processo de despovoamento, que se ampliou na medida em que os<br />
focos da tensão fronteiriça deslocaram-se progressivamente para o vale do Paraguai. Aos<br />
poucos, mas ininterruptamente a decadência foi se instalando, até que com a transferência<br />
da capital para Cuiabá o vale do Guaporé passou a ser uma região notoriamente esquecida,<br />
povoada somente pelos negros, descendentes de escravos que ali permaneceram.<br />
A questão da decadência da navegação pela rota do Madeira liga-se primordialmente<br />
ao fato da decadência das próprias minas do Mato Grosso, principalmente as do vale do<br />
Guaporé, o que provocou um crescente endividamento da Capitania, junto à<br />
Companhia de Comércio do Grão-Pará. Em 1769 a Capitania devia 55:885$715 réis;<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
em 1770 essa dívida subiu para 280.000$000 réis, em sua maior parte oriunda do<br />
comércio monçoeiro. lxxvi A desativação da Companhia é também a causa fundamental da<br />
decadência da rota cio Madeira, como ressalta Dom Francisco de Souza Coutinho. lxxvii A rota<br />
do Madeira atendeu primordialmente aos interesses da política do Marquês de Pombal,<br />
constituindo-se com as idéias de solidificação do fisco do ouro e do aparelhamento<br />
estratégico-militar para a defesa de fronteiras num dos elementos que garantiu à empresa<br />
mercantilista portuguesa a plena exploração das riquezas produzidas nas capitanias da<br />
Amazônia. A decadência da produção aurífera que gerou urna ampla crise econômica e<br />
financeira na região e a mudança das políticas diplomáticas e fronteiriças sob o reinado<br />
de D. Maria I e D. João VI tiveram, portanto efeitos decisivos sobre o quadro de crise geral<br />
que se instaurava rio vale do Guaporé e em todo o Mato Grosso o que combinado com a<br />
desativação da Companhia terminou por inviabilizar a manutenção da rota comercial<br />
Amazonas-Madeira-Guaporé.<br />
Bibliografia<br />
ABREU, J. Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia/USP,<br />
1988. (Há outra edição: Brasília. Editora da UNB, 1979.<br />
BAN<strong>DE</strong>IRA, Maria de Lurdes. Território negro em espaço branco. São Paulo, Brasiliense, 1988<br />
BARBOSA <strong>DE</strong> SÁ, Joseph. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso de seos princípios thé os<br />
presentes tempos. Cuiabá. UFMT, 1976.<br />
BRAUM, João Vasco Manoel de. Descrição Chorographica do Estado do Gram-Pará. RIHGB, 1873.<br />
CARREIRA, Antonio. As Companhias Pombalinas do Grão-Pará e Maranhão /<br />
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COUTINHO, Francisco de Souza. Informações sobre o modo porque se efetua a navegação do Pará para<br />
Mato Grosso e o que se pode estabelecer para maior vantagem do comércio e do Estado. In RIHGB.<br />
Tomo II. Rio de Janeiro, 1840.<br />
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do diabo: a história de uma estrada de ferro na Amazônia. São<br />
Paulo, Ed. Melhoramentos, 1987.<br />
FONSECA, João Severiano da Viagem ao redor do Brasil (1875-1878). 2 volumes. Rio de Janeiro,<br />
Biblioteca do Exército Editora, 1986.<br />
FREYRE, Gilberto. Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque,<br />
Governador do Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá, FCMT, 1978.<br />
LAPA, José Roberto do Amaral. Economia Colonial. São Paulo. Perspectiva, 1973.<br />
LEVERGER, Augusto (Barão de Melgaço). Apontamentos cronológicos da<br />
Provínci a de Mato Grosso. RIHGB 205 208-385, outubro/dezembro 1949.<br />
LEVERGER, Augusto (Barão de Melgaço). Breve Memória Relativa à<br />
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NUNES DIAS, Manuel. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. São<br />
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PINTO, Emanuel Pontes. Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro. Expressão e Cultura,<br />
1993.<br />
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VOLPATO, Luíza Rios Piei. Mato Grosso. Ouro e Miséria no Antemural da<br />
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87
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
i Delia del Pilar Otero. E1 Acre: un nuevo caso de fragmentación dei espacio amazónico. In: DATA. <strong>Revista</strong><br />
dei Instituto de Estudios Andinos e Amazónicos. La Paz, 1993, no. 4.<br />
ii Vide Emanuel Pontes Pinto. Rondônia, Evolução Histórica: a Criação do Território Federal do<br />
Guaporé. Fator de Integração Nacional. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p. 79; Said Zeitum<br />
Lopez. Amazonia boliviana: introducción al estudio de la tematica norteamazonica. La Paz.<br />
Producciones Gráficas Visión, 1991, p. 26; Vítor Hugo, Desbravadores. Rio de Janeiro. Cia. Brasileira de Artes<br />
Gráficas, 1991, p. 21.<br />
iii Luiza Rios Ricci Volpato. Mato Grosso: ouro e miséria no antemural da colônia 17511819. Dissertação<br />
de Mestrado. FFLCH. São Paulo, 1980.<br />
Marco Antonio Domingues Teixeira, Dos campos d'ouro a cidade das ruínas apogeu e decadência do<br />
colonialismo português no vale do Guaporé: séculos XVIII e XIX. Dissertação de Mestrado, UFPe.<br />
Recife, 1997.<br />
Denise Maldi Meireles. Guardiães da fronteira rio Guaporé século XVIII. Petrópolis. Vozes 1978. iv Vide<br />
Arthur Cézar Ferreira Reis, Limites e demarcações na Amazônia brasileira. 2 vol., Belém, SEJUP, 1993 e<br />
Leandro Tocantins, Formação histórica do Acre. 3 vols., Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1961.<br />
v Interessante comentário sobre o "imperialismo Brasileiro" e a questão de fronteiras em Victor Leonardi,<br />
Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, Brasília, Ed. Paralelo/UNB, 1996,<br />
p. 272.<br />
Vi Vide Said Zeitum Lopez, obra citada e Jose Aguirre Acha, De los Andes ai Amazonas: recuerdos de Ia<br />
campanha dei Acre. La Paz, Imprenta Superei, 1980.<br />
vii Álvaro Maia, Gente dos seringais. Rio de Janeiro, s/ed., 1956, p.104.<br />
viii Estas incursiones Jesuitas que provenían tanto de ias misiones de los Moxos Audiencia de<br />
Charcas como dei Marañón y Gran Pará Brasil..." Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29.<br />
vix Álvaro Maia, obra citada, p.120.<br />
x Juan B. Coimbra. Siringa: Memorias de un colonizador dei Beni. La Paz, Libreria Editorial Juventud,<br />
1989. p. 100.<br />
xi Emanuel Pontes Pinto, obra citada, obra citada, p. 88 e Antonio Carvalho Urey, Sintesis Monografica dei<br />
Beni. Trinidad, Talleres dela Universidad Gral. Jose Ballivian, 1975<br />
xii Neville B. Craig, Estrada de ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição. Rio de<br />
Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1947, p. 349.<br />
xiii Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 55.<br />
xiv Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29.<br />
xv Álvaro Maia, obra citada, p. 118.<br />
XVI Nevile Craig, obra citada, p. 127.<br />
xvii Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 58.<br />
xviii Juan B. Coimbra, obra citada, p.88.<br />
xix Álvaro Maia, obra citada, p.131.<br />
xx Juan B. Coimbra, obra citada, p.71.<br />
XXI Álvaro Maia, obra citada, p.131.<br />
xxii Lobato Filho Avançai para o Jamari: a comissão Rondon nas selvas do Alto Madeira. Rio de Janeiro,<br />
s/ed., 1957, p. 28.<br />
88
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
XXIII Eduardo Barros Prado, Eu vi o Amazonas. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952,<br />
p. 195.<br />
xxiv Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo,<br />
Ed. Melhoramentos, p. 77.<br />
XXV Antonio Carvalho Urey, p. 64; Juan B. Coimbra, p. 171; Jose Aguirre Acha, p. 187-9, obras citadas.<br />
xxvi Richard Colher, The river that God forgot: the dramatic story of the rise and fail of the despotic Amazon<br />
rubber barons. New York, E. P. Dutton & Co., 1968, p. 57.<br />
xxvii , María dei Pilar María dei Pilar Gamarra, obra citada, La participación estatal en la industria de la<br />
goma eslástica. In: DATA, <strong>Revista</strong> dei Instituto de Estudios Andinos y Amazónicos. 4, La Paz, 1993, p. 41.<br />
xxviii Juan B. Coimbra, obra citada, p.p. 94-5.<br />
xxix Jose Aguirre Acha, obra citada, p. 180.<br />
xxx Heráclito Bonilla, Estructura y eslabonamientos de la explotación cauchera en Colombia, Perú,<br />
Bolivia y Brasil. In: DATA: <strong>Revista</strong> dei Instituto de Estudios Andinos Amazónicos. La Paz, 1993, p. 9.<br />
XXXI ".,,existió una intensa comunicación e intercambio de productos entre la savana<br />
mojeña ubicada en la cuenca amazónica y los pueblos andinos vía región boscosa circunscrita entre los<br />
rio Beni e Madre de Dios por los caminos y terraplenes levantados que surcan el espacio norte pampeano, lo<br />
que tenían ai parecer su epicentro en el Lago Roruaguado; caminos que en el sector norte tienen la dirección<br />
inequívoca dei río Beni en ruta hacia un destino que no podia tener fin sinó en el Cuzco incaico." Said Zeitum<br />
Lopez, obra citada, p. 137.<br />
xxxii Vide PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro. Vozes,<br />
1995.<br />
XXXIII Carlos de Araújo Carlos de Araújo Moreira Neto, obra citada, Índios da Amazônia: de maioria à minoria<br />
(1750-1850). Petrópolis, Ed. Vozes, 1988, p. 81.<br />
xxxiv Aureliano Tavares Bastos, O vale do Amazonas. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1937, pp. 358-66.<br />
xxxv Marajó (Barão de), obra citada, p. 137.<br />
xxxvi Heráclito Bonilla, obra citada, p. 9.<br />
XXXVII Herbert Klein, ,Historia de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20.<br />
xxxviii Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28.<br />
xxxix Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274.<br />
xl Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53.<br />
xli Franz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55.<br />
xlii Nevile Craig, obra citada. p. 222.<br />
xliii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305.<br />
xliv Maria dei Pilar Gamarra, obra citada, p.73, nota 30.<br />
xlv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5.<br />
xlvi Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de população<br />
das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo nos mesmos departamentos,<br />
e é indústria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7.<br />
xlvii Lobato Filho, obra citada, p. 27.<br />
xlviii Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3,274-5, 270-1, 316-7<br />
xlix Juan B. Coimbra, obra citada, p.137.<br />
l João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99.<br />
li Leonardi, p. 70.<br />
89
lii Nevile Craig, obra citada, p. 230.<br />
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
liii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299<br />
liv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370.<br />
lv Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88.<br />
lvi João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235.<br />
lvii Marajó (Barão de), obra citada, p. 132.<br />
lviii Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no maior rio do<br />
mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357.<br />
lixlix * 1 libra ou 1 arrátel equivaleria a 459 gramas.<br />
lix Joseph Barbosa de Sá, Relaçáo das povoaçóens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé os<br />
presentes tempos. Cuiabá, UFMT, 1976, p. 18.<br />
Ix Augusto Leverger (Barão de Melgaço), Apontamento cronológicos da Província de Mato<br />
Grosso. RIHGB 205 208-385, outubro/dezembro 1949. p.<br />
252.<br />
lxi Antônio Rolim de Moura (Dom), Correspondências. Apud Maria de Lurdes Bandeira, Território negro<br />
em espaço branco. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 100.<br />
lxii Rolim de Moura, Op. cit. p. 79.<br />
lxiii Idem.<br />
lxiv Ibidem, p. 81.<br />
lxv Melgaço, Barão de. Op. cit. p. 291.<br />
lxvi A Povoação do salto Grande foi iniciada em 21/02/179 pelo juiz Teotônio da Silva Gusmão num lugar<br />
descrito por José Gonçalves da Fonsêca como marcado pela presença “... de uma muralha<br />
desmantelada, por cujas ruínas precipitando-se a água do rio com furiosa violência resulta um<br />
espantoso estrondo, que a haver nas margens povoação seria provável padecerem seus habitantes<br />
a surdez.". Melgaço, Barão de. op. cit. In Manoel Rodrigues Ferreira, A ferrovia do diabo, São Paulo,<br />
Ed. Melhoramentos, 1987, p. 36. Atacada pelos Muras a povoação foi abandonada em 1761. Em 1769 Luís<br />
Pinto Sousa Coutinho remeteu um novo projeto de ocupação da região à Secretaria de Estado em Lisboa.<br />
O Povoado do Balsemão foi iniciado por ordem do Capitão-General Luís Pinto de Sousa Coutinho que<br />
navegou pelo Madeira com destino a Vila Bela em 1768. O próprio governador traçou a planta do<br />
povoado, definindo suas ruas, disposição dos prédios residenciais e oficiais e ainda estabeleceu no<br />
local 151 pessoas para ali residirem. Vide João Severiano da Fonseca, Viagem ao redor do Brasil (1875-<br />
1878), Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1986, pp. 67 e seguintes.<br />
Quanto a santo Antônio do Madeira é importante explicar que não se localizava às margens da 1" cachoeira<br />
(Santo Antônio), mas há 4 dias de viagem rio abaixo. Vide Manoel Rodrigues Ferreira, op. cit., p. 34.<br />
lxvii Diário da bandeira de Francisco de Mello Palheta ao rio Madeira em 1722. In Capistrano de Abreu,<br />
Caminhos antigos e povoamento de Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, p. 119 e seguintes.<br />
* 1 Piuns = mosquito: que atacam em nuvens nas proximidades dos rios, principalmente nos<br />
períodos de baixas das águas entre maio e setembro. Causam febre e profundo transtorno, tomando certas<br />
regiões absolutamente inevitáveis.<br />
* 2 Aboiada = serpente aquática do gênero Anacondas. Também chamada Sucuri ou Sucuriju ou ainda<br />
Boiúna. É a maior serpente das Américas, atingindo mais de 10 metros. Povoa o imaginário dos<br />
caboclos e índios da Amazônia, que lhe atribuem poderes sobrenaturais.<br />
* 3 Passos = medida antiga, equivale a 0,82 m.<br />
90
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
* 4 Pés = medida inglesa que equivale a 0,3060 m.<br />
lxviii Cf. João Severiano da Fonseca Op. cit. p. 67 e seguintes, também João Vasco Manoel Braum, Roteiro<br />
corographico da viagem que se costuma fazer da Cidade de Belém do Pará a Villa Bella de Matto Grosso.<br />
RIHGB. vol. 23, 1960, p.p. 439 e seguintes, ainda: Melgaço (Barão de), Breve Memória Relativa à Chorografia<br />
da Província de Mato Grosso. RIHGB. t. XXVIII, 1965, p.p. 124 e seguintes.<br />
lxix Sobre monções, ver: Maria de Lurdes Bandeira, op. cit., p.p. 107 e seguintes; José Roberto do Amaral<br />
Lapa. Economia Colonial. São Paulo, Perspectiva, 1973, p.p. 23 e seguintes; Emanuel Pontes Pinto,<br />
Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p.p. 40 e seguintes; Manuel<br />
Nunes Dias, Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. São Paulo, Col. da <strong>Revista</strong> de História,<br />
1971, p.p. 330 e seguintes; Antônio Carreira, As Companhias Pombalinas do Grão-Pará e<br />
Maranhão / Pernambuco e Paraíba. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p.p. 35 e seguintes.<br />
lxx Fonte: Memória dos preços que no Estado do Mato Grosso são vendidos os gêneros molhados e<br />
secos. A. H. U. C.P. n°33 -1772. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p.p.419-420.<br />
*'Tostão = moeda de prata equivalente a 100 réis.<br />
* 2 Côvado = medida de comprimento igual a 66 cm.<br />
* 3 Vara = medida antiga igual a 110 cm.<br />
lxxi CF. Melgaço, Barão de. op. cit. p. 274 e José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 97.<br />
lxxii Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real datada de<br />
26/02/1753. In Correspondência dos Governadores com a Metrópole. Códice Manuscrito n°695<br />
(1752-1757), p. 39-40. A.P.P. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p. 417.<br />
lxxiii Idem, p. 418.<br />
lxxiv Carta aos Administradores da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, 08/01/1760.<br />
In Antônio Rolim de Moura (Dom), op. cit., p. 81.<br />
lxxv A obtenção da prata feita por agentes da Capitania concorria para um relativo e precário equilíbrio nas<br />
trocas entre a Capitania e o litoral. No entanto, o caráter ilegal dessa prática não permitia a<br />
regularidade do comércio com a colônia castelhana, além de constituir riscos para os que atuavam<br />
no processo (perda de carga, confisco de bens, prisões, processos). A parte mais vantajosa dos lucros<br />
não permanecia na região, uma vez que a prata contrabandeada era repassada a praças marítimas<br />
como parte do pagamento dos artigos importados por esses agentes para o comércio das minas. Outro<br />
fator que limitava o afluxo de prata via contrabando, eram as constantes tensões fronteiriças que<br />
faziam refluir a penetração do metal e reduziam as possibilidades do contrabando. Deve-se<br />
esclarecer que o contrabando era de conhecimento das autoridades tanto do lado português quanto do lado<br />
castelhano. O comércio clandestino, como escreveu Melgaço (Barão de), op. cit., p. 275, se<br />
realizava sob a velada diligência e os fingidos protestos das autoridades. Mesmo na Metrópole<br />
a situação era estimulada e em suas Instruções Luís de Albuquerque trazia ordens para "animar e<br />
desenvolver o dito comércio... com tal disfarce que não pareça que Vossa Senhoria o promove e<br />
menos que tem ordem para assim o fazer Instruções que Levou Luís de Albuquerque. Apud Gilberto<br />
Freyre, Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador<br />
do Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá, FCMT, 1978.<br />
A maior parte dos lucros era drenada pela Metrópole. É também verdadeiro o fato oposto. Os<br />
castelhanos empenhavam-se em drenar o ouro das minas do Mato Grosso para os cofres de<br />
Madri, permitindo veladamente e incentivando disfarçadamente a vinda de gêneros (gado,<br />
alimentos, etc.) para os colonos da margem portuguesa. Assim sangravam do Guaporé Português<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
recursos em ouro, escravos e manufaturados, enquanto drenava-se para Vila Bela prata, carne<br />
bovina, montarias (cavalos, mulas). Assim o padre Belchior Roiz propunha ao boticário Domingos<br />
Joseph do Forte Príncipe da Beira a troca de 25 (sic) de prata lavrada por ouro, a 4 oitavas o marco<br />
(APEMT, cx. 1780a), enquanto o Alferes Manoel Joseph da Rocha trouxe dos domínios espanhóis trinta<br />
cavalos e vendeu um moleque (sic) pago em prata (APEMT, cx. 1780a).<br />
O interesse pela prata, explica Volpato, deve-se ao fato de ela ser usada como principal elemento de<br />
troca no mercado internacional. Luíza Rios Rici Volpato, Mato Grosso; Ouro e Miséria no Antemural da<br />
Colônia (1751-1819). Dissertação de Mestrado. São Paulo. F.F.L.C.H.-USP, 1980, p.p. 48,97 e seguintes..<br />
lxxvi José Roberto do Amaral, op. cit., p. 99.<br />
lxxvii Francisco de Souza Coutinho, Informações sobre o modo porque se efetua a navegação do<br />
Pará para Mato Grosso e o que se pode estabelecer para maior vantagem do comércio e do Estado. In<br />
RIHGB. Tomo II. Rio de Janeiro, 1840, p. 298.<br />
92
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
FUNÇÕES DA LINGUAGEM. UMA<br />
REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS <strong>DE</strong><br />
ROMAN JAKOBSON 1<br />
Dr. Celso Ferrarezi Júnior.<br />
Resumo: Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais<br />
sobre o processo de comunicação lingüística e contribuíram na<br />
formulação de unia teoria da comunicação, sem dúvida<br />
alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi<br />
Roman Jakobson. As idéias contidas no clássico "Lingüística e<br />
Comunicação' tomaram-se uma baliza quase obrigatória para<br />
todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse<br />
assunto. Não porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na<br />
verdade, a maioria dos alunos secundaristas desconhece a<br />
existência do próprio Jakobson.<br />
Palavras – Chave: Comunicação, Existência, Formulação, Lingüística e<br />
Secundaristas.<br />
Abstract : Theorists who have influenced the General ideas about the<br />
linguistic communication process and helped in formulating unia<br />
communication theory, without a doubt, what influenced Brazilian<br />
Academy was Roman Jakobson. The ideas embodied in the classic<br />
"Linguistics and Communication ' took a goal almost obligatory for all<br />
Brazilian students that will address this issue. Not because the work of<br />
Jakobson is so known. In fact, most high school students unaware of<br />
own Jakobson.<br />
Keyword : Communication, Existence, formulation, Linguistics and<br />
Secondary.<br />
Introdução<br />
Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais sobre o processo de<br />
comunicação lingüística e contribuíram na formulação de unia teoria da comunicação, sem<br />
dúvida alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi Roman Jakobson. As<br />
idéias contidas no clássico "Lingüística e Comunicação' tomaram-se uma baliza quase<br />
obrigatória para todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse assunto. Não<br />
porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na verdade, a maioria dos alunos<br />
93
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
secundaristas desconhece a existência do próprio Jakobson. O maior responsável pela<br />
disseminação das idéias do lingüista do Círculo de Praga é um pequeno livro da Profª<br />
Samira Chalhub, denominado "Funções da Linguagem" 3 , que já se tomou um clássico<br />
nas universidades e escolas de segundo grau. Trata-se de uma reprodução fiel das idéias<br />
de Jakobson sobre a teoria da comunicação e sobre as funções da linguagem. A<br />
influência dessa obra pode ser medida pelo fato de que praticamente todos os<br />
livros didáticos de Língua Portuguesa utilizados nas escolas brasileiras em nível de<br />
segundo grau reproduzem fielmente as mesmas idéias sobre as funções da linguagem.<br />
O fato é que o avanço dos estudos lingüísticos depois de publicada a obra de<br />
Jakobson não permite mais que se aceite passivamente a proposição de teoria da<br />
comunicação feita há várias décadas. A teoria de funções da linguagem proposta por<br />
Jakobson com base em sua teoria da comunicação não se sustenta hoje diante das novas<br />
concepções de comunicação desenvolvidas. Da mesma forma, como a idéia de função de<br />
linguagem depende de uma teoria da comunicação, não podemos mais aceitar sem<br />
ressalvas as proposições defendidas no livro de Chalhub. Este artigo destina-se a mostrar<br />
como os avanços na pesquisa lingüística obrigam a uma modificação na concepção de<br />
funções da linguagem. Ou, em outras palavras, obrigam a uma revisão das idéias de<br />
Roman Jakobson e seus seguidores.<br />
1. A teoria da comunicação<br />
base em Jakobson, é a seguinte:<br />
A proposta de teoria da comunicação defendida por Chalhub, com<br />
"O funcionamento da mensagem ocorre tendo em vista a finalidade de<br />
transmitir - uma vez que participam do processo comunicacional: um<br />
emissor que envia a mensagem a um receptor, usando um código para<br />
efetuá-la; esta, por sua vez, refere-se a um contexto. A passagem da emissão<br />
para a recepção faz-se através de um suporte físico que é o canal.<br />
Aí estão, portanto, os fatores que sustentam o modelo de comunicação:<br />
emissor, receptor, canal, código, referente, mensagem." (Chalhub, 1990, p. 5)'<br />
Esta proposta precisa ser revista item a item, em função das muitas impropriedades<br />
já vastamente apresentadas pela Lingüística contemporânea. Primeiramente, é<br />
necessário notar que a proposta de Jakobson parece enfocar apenas a comunicação<br />
lingüística, isto é, aquela feita entre seres humanos através do uso da língua. Nesse<br />
sentido, deveriam definir-se apenas as funções da língua e, não, as funções da<br />
linguagem. Mas, como Chalhub mesma observa,<br />
94
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
"Nem só de mensagens verbais vive o ser humano. A linguagem participa de aspectos mais<br />
amplos que apenas o verbo.<br />
O corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o<br />
verbal, o visual, o sonoro, a poesia - forma especialmente inédita de linguagem - surpreende, a música<br />
irradia sons, a escultura tateia o cinema movimenta, etc." (Chalhub, 1990, p. 6) 5<br />
Infelizmente, no seu livro, Chalhub só abrange o lingüístico ao abordar o código 6 ,<br />
embora tenha reconhecido, na passagem acima, que a linguagem -mesmo se consideramos<br />
apenas a humana - é muito mais ampla do que apenas a utilização de uma língua. Assim é<br />
que uma teoria que se poderia prestar à explicação da linguagem como um fenômeno<br />
amplo, acaba se tomando uma teoria fragmentária que explica apenas parcialmente o<br />
fenômeno linguagem.<br />
Sabe-se, há muito, que a comunicação não é privilégio dos seres humanos, mas uma<br />
peculiaridade de todos os seres vivos. Plantas, animais inferiores, mesmo os<br />
unicelulares possuem processos muito especializados de comunicação. Obviamente,<br />
só pudemos comprovar a consciência comunicativa no ser humano, e esse seria o principal<br />
diferencial entre nós e os demais seres vivos, no que se refere à linguagem:<br />
comunicamos sabendo que estamos comunicando e tendo consciência do processo.<br />
Sabemos que os animais e a plantas comunicam-se intencionalmente. Uma galinha tem<br />
a intenção explícita de proteger seus pintainhos quando faz soar seu "alarme" e é<br />
prontamente atendida pelos filhotes; uma orquídea tem a intenção explícita de atrair certos<br />
tipos de insetos ao produzir odores chamativos que são, claramente, fatores<br />
promotores de comunicação entre a planta e o inseto, comunicação sem a qual a planta<br />
não se poliniza. O que não pudemos constatar, ainda, é que a planta e a galinha, assim<br />
como os demais seres vivos "inferiores" têm consciência do que estão fazendo. A<br />
intenção, portanto, não é necessariamente coincidente com a consciência do processo.<br />
E, isto em vista poderia dizer que a linguagem da galinha e da orquídea é<br />
desprovida de função? Obviamente que não! Tanto a galinha quanto a orquídea<br />
imprimem uma função à sua linguagem, mesmo que não saibam como fazer para<br />
imprimir novas funções à mesma mensagem, como o homem faz. Assim, urna teoria<br />
das funções da linguagem que despreze a comunicação não lingüística será sempre uma<br />
teoria defasada.<br />
Poderíamos dizer então, que a comunicação é um fator componente da infra-<br />
estrutura dos seres vivos. Mais elaboradamente, poderíamos dizer que<br />
comunicação é a transmissão de uma mensagem ou conteúdo entre, no mínimo, dois<br />
seres vivos. Dessa forma, deveremos perceber que em qualquer espécie de<br />
comunicação caracteriza-se uma função. Temos, então, no seu sentido mais amplo,<br />
95
as funções da linguagem.<br />
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Neste artigo, porém, como analiso as proposições de Jakobson repetidas<br />
por Chalhub, serei obrigado circunstancialmente a enfocar mais<br />
detalhadamente a comunicação lingüística. Procurarei, porém, sempre que possível,<br />
dar maior abrangência à teoria. Vejamos, portanto, as impropriedades às quais me<br />
referi anteriormente.<br />
2.1. Emissor e receptor<br />
A proposta de Jakobson pressupunha a existência de uma parte ativa e de<br />
uma parte passiva no ato de comunicação: um elemento que emitia, (mais ou menos<br />
nos moldes de uma emissora de rádio, por exemplo) e um elemento que recebia a<br />
mensagem e a decodificava (mais ou menos nos moldes de um rádio receptor). Sabe-<br />
se, hoje, que no processo de comunicação não há parte passiva. Ambos os<br />
interlocutores em uma comunicação estão atuando o tempo todo. Enquanto um se esforça<br />
para produzir urna mensagem coerente com o contexto discursivo, o outro analisa,<br />
verifica todos os elementos contextuais, "adianta" os passos comunicativos do seu<br />
interlocutor, emite mensagens concomitantemente, verbais e não verbais (através de<br />
gestos e feições, por exemplo, dando provas de seu entendimento ou não, prazer ou<br />
desprazer, enfim, de sua interação com o outro). O processo de comunicação não<br />
pode ser entendido, portanto, como uma via de mão única do tipo emissor/ receptor,<br />
mas deve ser compreendido como uma interação do tipo interlocutor/ interlocutor, em<br />
que os interlocutores assumem ora o turno de interlocutor-codificador (ou emissor) da<br />
mensagem lingüística, ora o turno de interlocutor-decodificador (ou receptor). E digo isto<br />
da mensagem lingüística, porque as mensagens concomitantes não verbais 7 são<br />
permanentemente produzidas por ambos os interlocutores.<br />
Fica claro, portanto, que em um ato de comunicação lingüística três fenômenos<br />
relacionados aos interlocutores ocorrem:<br />
A. a ativa participação de ambos os interlocutores;<br />
B. a intenção permanente dos interlocutores em concretizar o ato comunicativo;<br />
C. a coexistência de mensagens formalmente codificadas com mensagens<br />
transmitidas de maneira informal.<br />
Logo, a idéia de Jakobson de que era possível um enfoque da mensagem no receptor<br />
(que caracterizaria a função conativa), ou um enfoque no emissor (que caracterizaria a<br />
96
REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
função emotiva), ou um enfoque no código (que caracterizaria a função metalingüística),<br />
ou ainda um enfoque na mensagem (que caracterizaria a função poética) não tem<br />
sustentação factual. Vejamos:<br />
A. sempre que uma mensagem é produzida, é claro o fato que haverá enfoque no<br />
interlocutor-decodificador por parte do interlocutor-codificador. Quando um ser vivo produz<br />
uma mensagem qualquer, é claro que essa mensagem é produzida tendo-se a intenção de<br />
adequá-la ao entendimento do interlocutor, adequação sem a qual a comunicação não se<br />
concretizará. Falaríamos de urna permanente função conativa da mensagem, portanto?<br />
Parece óbvio que não;<br />
B. da mesma forma, sempre que dois seres vivos se interlocucionam, em<br />
ambos haverá permanente enfoque no código e na mensagem. Sem esse enfoque no<br />
código, que permite a sua inteligibilidade', e sem o enfoque no conteúdo expresso, sobre o<br />
qual haverá primordial atenção da parte de ambos os interlocutores (procurando entender a<br />
mensagem em função do código escolhido - "por que ele disse isso dessa forma?" ; do<br />
contexto discursivo - "por que ele disso isso justamente agora?"; dos próprios interlocutores -<br />
"por que foi ele quem disse isso e não outro?", etc.), não se concretizará a comunicação.<br />
Ora, falaríamos então de uma permanente função metalingüística e de uma<br />
permanente função poética? Também parece improvável;<br />
C. finalmente, percebemos que a transmissão da mensagem lingüística não<br />
depende somente do que é dito ou escrito. O contexto discursivo e a concomitância de<br />
mensagens codificadas informalmente (desde a aparência dos interlocutores até a<br />
complexidade gestual que executam) atuam no entendimento final do que se expressou de<br />
forma realmente decisiva. Deve-se verificar que toda essa verdadeira parafernália<br />
comunicativa atua no sentido de cumprir o objetivo do ato de comunicação, que é definido<br />
pelo interlocutor que assume o turno de codificador, objetivo esse que contará, para sua<br />
consecução, com a cooperação, ou não, do outro interlocutor. Isso em vista, ou seja, o fato<br />
de que não se pode isolar no ato comunicativo um fator de outro, ou seja, sabendo-se que<br />
não se pode atribuir um enfoque em um ou outro fator, como se pode sustentar a idéia de<br />
Jakobson de que é o enfoque nos fatores que define a função da linguagem?<br />
Creio que realmente se trate de uma concepção teórica insustentável.<br />
Continuemos nossa incursão pelo livro de Chalhub.<br />
2.2. Canal<br />
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REVISTA <strong>DE</strong> EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998.<br />
Como vimos Chalhub 9 define o canal como sendo "o suporte fisico 10 de transmissão<br />
da mensagem. Segundo ela "Se a mensagem centrar-se no contato, no suporte físico, no<br />
canal, a função será fática." (Chalhub, 1990, p.28)<br />
Assim, em uma conversa, as expressões do tipo "À? Não é? Sim? Então... Entende?",<br />
etc., seriam definidas como em uso fático, porque seriam formas de confirmação do canal de<br />
comunicação.<br />
Como sabemos o suporte físico para a propagação do som é o ar. Quando conversamos<br />
frente a frente com alguém, usamos o ar como suporte físico para a propagação de nossa<br />
fala. Então, o que Chalhub propõe, com base em Jakobson, é que quando usamos as<br />
expressões "À? Não é? Sim? Então... Entende?" em uma conversa, estamos enfocando o<br />
ar? Estamos verificando se o ar está dando conta de transmitir nossa fala? É isso mesmo o<br />
que Jakobson sugere, mas, parece, trata-se de uma postura teórica equivocada.<br />
É óbvio que, quando usamos tais expressões, não estamos tentando testar o suporte<br />
físico de nossa interlocução, ou canal - para usar a terminologia tradicional. Estamos,<br />
sim, confirmando se nosso interlocutor está entendendo aquilo que estamos tentando<br />
comunicar-lhe; ainda, podemos estar querendo verificar se a atitude cooperativa por parte de<br />
nosso interlocutor permanece.<br />
Poderíamos dizer que, em uma conversa telefônica, quando dizemos "Alô! Você<br />
está me ouvindo?", estamos testando o suporte físico da conversação. Estaríamos<br />
verificando se o aparelho telefônico está funcionando, se a linha não "caiu", etc. Mas, como<br />
justificar o fato de que, mesmo tendo certeza de que tudo está funcionando em nossa<br />
conversa telefônica, continuamos a usar essas expressões? Parece claro que não é porque<br />
queiramos testar se o telefone está funcionando a cada trinta segundos, mas, sim, porque<br />
queremos ter certeza de que nosso interlocutor está realmente entendendo o que estamos<br />
falando, principalmente porque, em uma conversa telefônica, grande parte dos recursos<br />
informais que atuariam na conversação, justamente pelo fato de que os interlocutores não se<br />
estão visualizando, fica prejudicada.<br />
Assim, verificamos que não ocorre normalmente em uma interlocução o<br />
pretendido "teste de canal" sugerido por Jakobson. Não poderíamos, portanto, falar em<br />
uma função fática? Claro que sim, mas em outros moldes teóricos. Decididamente não é a<br />
intenção de verificar a eficácia do canal o que define tal função.<br />
2.3. Código<br />
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Como disse anteriormente, podemos crer que Jakobson estava preocupado apenas com<br />
a descrição dos fatos lingüísticos ao elaborar sua teoria da comunicação. Entretanto, como<br />
também vimos a linguagem não subsiste unicamente do código formalmente estruturado que<br />
chamamos língua. A própria interpretação de uma enunciação lingüística dependerá de um<br />
sem-número de fatores discursivos que não podem, simplesmente, ser desconhecidos em<br />
uma teoria dessa natureza.<br />
Assim é que quando uma moça veste-se insinuantemente, maquia-se em tonalidades<br />
sensuais e gesticula de forma flertiva em um primeiro encontro com um rapaz pretendente,<br />
ela "codifica", mesmo que informalmente, um conjunto significativo de informações que<br />
serão extremamente úteis na interpretação, por parte do seu interlocutor, de cada<br />
enunciação por ela produzida.<br />
O código lingüístico, portanto, tem um funcionamento muito mais complexo do que<br />
simplesmente o conjunto de regras que determinam o correto funcionamento<br />
gramatical do sistema. A determinação do significado de cada enunciado passa,<br />
obrigatoriamente, por uma grande quantidade de matrizes interpretativas de ordem cultural<br />
que não são definitivamente previstas no sistema lingüístico.<br />
Este fato obriga a que, muitas vezes, o falante tenha que utilizar a língua para explicitar<br />
a mensagem codificada. Ao fazer isso, ou seja, ao repetir a mensagem de outra forma,<br />
com outras palavras, outra entonação ou ritmo de fala, outros gestos, etc., o falante não leva<br />
seu interlocutor a uma mera reflexão sobre o código, mas o leva a uma nova interpretação<br />
da enunciação anterior, agora com base na segunda enunciação. Não podemos dizer,<br />
então, que estamos falando de metalinguagem. Estamos, sim, falando de recodificação.<br />
Entendemos a recodificação como a reestruturação de uma primeira enunciação, de forma a<br />
clarificar para o interlocutor o conteúdo dessa mesma enunciação. A tradução nada mais é<br />
do que recodificação. As diversas e diferenciadas vezes que um professor explica um<br />
mesmo assunto em classe, para que todos os alunos possam compreendê-lo, também é<br />
recodificação.<br />
A metalinguagem é um processo diferente e não é um mero enfoque ou uma simples<br />
reflexão sobre o código, como sugerem Jakobson e Chalhub 11. A metalinguagem, como o<br />
nome sugere, é a utilização da linguagem para explicitar o funcionamento da própria<br />
linguagem. Isso não implica que preciso utilizar um mesmo código. Quando escrevo uma<br />
gramática do português, por exemplo, faço metalinguagem, porque uso a linguagem para<br />
explicitar o funcionamento da própria linguagem, e o faço com o mesmo código. Mas,<br />
quando uso o português para escrever urna gramática latina, por exemplo, faço<br />
metalinguagem usando códigos diferentes. Da mesma forma, posso explicar<br />
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lingüisticamente o funcionamento da linguagem das abelhas, e isso não deixa de ser<br />
metalinguagem. O que parece interessante é o fato de que não é provável a existência de<br />
metalinguagem sem que o uso da linguagem seja referencial. Isso porque, se tomamos a<br />
linguagem como objeto de reflexão, a linguagem utilizada na reflexão sobre esse objeto<br />
estará sendo usada referencialmente, porque descritora de um referente. Assim, o uso<br />
metalingüístico é meramente uma das modalidades do uso referencial. Quando usamos a<br />
linguagem referencialmente sobre um referente qualquer, dizemos haver somente<br />
linguagem referencial; quando esse referente é a própria linguagem, dizemos que o uso é<br />
metalingüístico.<br />
2.4. Referente<br />
O referente, segundo Frege 12 , de quem Jakobson - e os demais lingüistas - emprestam o<br />
termo, é o objeto factual presente no mundo material ou nos mundos sugeridos, o "ser",<br />
enfim, representado pela linguagem. O referente independe da linguagem, e a linguagem<br />
independe do referente, mesmo porque a linguagem é instrumento eficaz para criar<br />
referentes. Por exemplo, certos tipos determinados de composição com palavras, em<br />
estruturas específicas, criam um referente chamado "poesia", que só possui existência se<br />
produzido lingüisticamente.<br />
A linguagem, entretanto, é um instrumento adequado para a representação de<br />
referentes. Aliás, pode-se crer que a linguagem é um instrumento especificamente criado<br />
com essa finalidade, embora, posteriormente, possa ter assumido outras funções. Essa<br />
vinculação natural da linguagem a representar referentes faz com que ela se tome<br />
eminentemente referencial. Dizemos, porém, que certas construções representam referentes<br />
de forma diferenciada. Assim é que, quando digo pé 13 refiro-me a algo, que pode ser um<br />
pé humano. Crê-se que o significado "pé humano" seja o significado original da<br />
palavra pé, e por isso chamamos o uso dessa palavra com esse significado de denotativo,<br />
ou não-figurado. Originalmente em sua teoria, Jakobson chamou esse uso da linguagem<br />
de uso referencial. Mas, veja-se que quando uso a mesma palavra pé em pé de mesa, pé de<br />
laranja, pé-d'água, etc., continuo usando a palavra para fazer referência a algo. Ou seja, a<br />
linguagem figurada não é destituída de referencialidade, como a terminologia jakobsiana<br />
insinua. Todos os termos acima citados (pé de mesa, pé de laranja, pé-d'água) têm<br />
referentes os quais representam. Trata-se, portanto, de um uso referencial da linguagem. O<br />
fato que se observa, apenas, é que há usos que não são o "original", o denotativo. Esses<br />
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usos podem ser chamados de conotativos, ou seja, usos em que o referente atribuído ao<br />
signo não é aquele que se acredita ser o original. Esse fato parece significativo: há usos da<br />
linguagem que promovem uma alteração na composição original dos signos. E isso não tem<br />
nada a ver com falta de referencialidade. Poderíamos dizer, com mais propriedade,<br />
simplesmente que a linguagem está em uso denotativo ou em uso conotativo, sendo que<br />
ambos pertencem a um uso que é referencial, obviamente. E, é claro, sempre lembrando<br />
que referencialidade não implica materialidade do referente. Palavras como amor e<br />
esperança têm referentes, embora não sejamos capazes de identificá-los materialmente.<br />
Assim, não podemos dizer que é o enfoque sobre o referente que faz da enunciação<br />
um exemplo de linguagem referencial, mesmo porque dificilmente haverá linguagem que<br />
não se refira a referente algum, ou em cujo bojo não se insira a preocupação do<br />
falante com a referencialidade da enunciação. Na verdade, não consigo elaborar um só<br />
exemplo desse tipo de uso sem referentes. Como vimos há pouco, a metalinguagem é<br />
definida como tal por que o referente da enunciação é, de certa forma, especial. Mas,<br />
também podemos concluir que tal diferenciação é inócua quanto à estrutura da<br />
linguagem e de uma teoria da comunicação. Em outras palavras: dificilmente poderíamos<br />
caracterizar uma função da linguagem como referencial por qualquer tipo de característica<br />
que se relacione ao referente. Tanto isso é verdade, que Chalhub teve que recorrer à<br />
diferenciação "didática" entre conotação e denotação para tentar explicitar o que seria o<br />
uso referencial da linguagem 14 e chegar à conclusão de que aquilo que Jakobson<br />
chamou de linguagem referencial é exatamente o que, com mais propriedade. podemos<br />
chamar de uso denotativo da linguagem. Entretanto, como o uso conotativo também é<br />
referencial, desisti de manter o termo "referencial" neste artigo, preferindo mesmo os<br />
termos "uso denotativo" e "uso conotativo".<br />
2.5. Mensagem<br />
Finalmente, chegamos ao "enfoque na mensagem". Realmente é difícil crer em uma<br />
enunciação que não tenha enfoque na mensagem! Ora, parece claro que em toda<br />
enunciação os interlocutores estão preocupados com, enfocando a, atentando para a<br />
mensagem. A mensagem (ou conteúdo da enunciação, no sentido que Jakobson atribui ao<br />
termo) é por si só, o cerne do processo de comunicação. O que Jakobson parece querer<br />
enfocar é que a linguagem é construída, certas vezes, de maneira a chamar a atenção<br />
para si, não no sentido metalingüístico, mas no sentido de despertar beleza através de<br />
seus meios peculiares.<br />
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Nesse caso, o uso que se faz da linguagem é mais do que um mero uso que pretende<br />
a comunicação do conteúdo referencial, mas também um uso que seja capaz de despertar a<br />
sensação de beleza no interlocutor. Quando se constrói uma poesia, uma prosa poética ou<br />
até uma simples frase de efeito, mais do que chamar a atenção para o conteúdo, o enunciador<br />
pretende despertar o senso de beleza no seu interlocutor. E o que é beleza? Uma resposta<br />
singela, porém correta, diria que "beleza" é aquilo que a cultura estabeleceu como sendo<br />
"beleza". A Antropologia tem provado largamente que a beleza não se estabelece<br />
universalmente de uma mesma forma; da mesma maneira como muda a linguagem de<br />
cultura para cultura, a beleza muda de cultura para cultura, e de época para época, em uma<br />
mesma cultura. Para os fins desse artigo, poderíamos simplesmente dizer que certos usos<br />
da linguagem (lingüística, musical, corporal, pictórica, etc.) são capazes de despertar<br />
eficazmente a sensação de beleza nos integrantes de uma cultura. Alguns usos, até,<br />
conseguem transcender sua cultura original e despertar beleza em várias culturas<br />
distintas.<br />
Não se trata, portanto, de um enfoque na mensagem o que faz do uso da linguagem um<br />
uso poético, mas a intenção deliberada do enunciador de despertar, no interlocutor, a<br />
sensação de beleza através do uso que faz da linguagem.<br />
2. Funções da Linguagem<br />
Como vimos até aqui, uma concepção equivocada de teoria da comunicação levou<br />
Jakobson e seus seguidores a uma concepção equivocada de funções da linguagem. Diante<br />
do que vimos até aqui, podemos afirmar que:<br />
A. não existe mensagem nas funções da linguagem. A mensagem está na<br />
linguagem, que é linguagem sempre, independentemente do uso que dela se faça;<br />
B. não são enfoques específicos nos fatores integrantes da comunicação que<br />
caracterizam as funções. Diferentemente, a função é determinada pelo uso que os<br />
interlocutores fazem da linguagem;<br />
C. ora, se a função é determinada pelo uso que os falantes fazem da linguagem (e<br />
veja-se claramente: determinada pelo uso, somente; a função não é o uso em si), o que<br />
determina o uso?<br />
Podemos verificar que o uso é determinado, como bem define Chalhub, dessa forma:<br />
“O funcionamento da linguagem ocorre tendo em vista a finalidade de transmitir. Op. cit. p. 6<br />
Jakobson enfoca o perfil da mensagem conforme a meta ou orientação dessa mesma mensagem.<br />
Idem p. 7<br />
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As atribuições de sentido... que se possam deduzir e observar na mensagem estão localizadas<br />
primeiramente na própria direção intencional do fator da comunicação. Ibidem p. 7<br />
A p r o p a g a n d a , p o r e x e m pl o, m a rc a - s e fundamentalmente pela persuasão - isto é,<br />
pela intenção de seduzir o receptor. Ibidem p. 7”<br />
Veja-se que tanto Chalhub quanto Jakobson percebem que é a intenção dos<br />
interlocutores no uso da linguagem que define sua construção, logo, suas<br />
características. Talvez por isso mesmo fossem tentados a cometer o equívoco de<br />
acreditar que essa construção definiria a função da linguagem. E justamente o<br />
contrário: a função em que se escolhe usar a linguagem é que define a estrutura<br />
que será montada, a compleição que se dará à enunciação. Isso merece explicação.<br />
Vamos a ela.<br />
Lembremos que a linguagem é um instrumento. A partir dessa idéia simples,<br />
tomemos outro instrumento qualquer como ilustração. Uma chave de fenda serve. Uma<br />
chave de fenda é um instrumento, assim como a linguagem também o é. Trata-se de um<br />
instrumento muito anais simples do que a linguagem é claro, mas se presta<br />
perfeitamente à ilustração que pretendo. Digamos que uma chave de fenda foi<br />
concebida para rosquear parafusos que utilizam o sistema de fenda. Esse seria seu<br />
uso original. Entretanto, posso utilizar essa mesma chave de fenda como um abridor<br />
de latas. Usar o instrumento na função de abridor de latas, embora ele continue sendo<br />
uma chave de fenda. Posso, também, usar a chave de fenda como perfurador de<br />
parede ou de papel, como um formão, para retirar um prego, para matar alguém.<br />
Claro que, independentemente da função que eu atribua à chave de fenda, ela<br />
continuará sendo sempre uma chave de fenda e, obviamente, continuará com as<br />
mesmas características de sempre, porque a maleabilidade de urna chave de<br />
fenda não permite as adaptações que a maleabilidade da linguagem permite.<br />
Com a linguagem ocorre "mutatis mutandis" a mesma coisa. Podemos<br />
fazer usos distintos da linguagem, de acordo com nossos objetivos:<br />
simplesmente fazer referência a algo, fazer referência à própria linguagem, despertar<br />
a sensação de beleza, convencer alguém, ou quaisquer que sejam eles. Esses<br />
objetivos determinarão que tipo de estrutura enunciativa vamos construir para<br />
permitir a consecução da comunicação. Assim, é o objetivo do enunciador que<br />
determina que recursos sejam usados e de que forma serão usados, e não o<br />
contrário, como concebeu Jakobson.<br />
O que é a função da linguagem, então? A função da linguagem é uma relação<br />
estabelecida entre o uso que se faz e a estrutura que se constrói. O que determina a<br />
estrutura é o objetivo: o que determina a função é o uso que se faz. Pode-se dizer,<br />
então, que a função da linguagem é unia característica que a linguagem assume<br />
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quando em uso, característica essa definida pelos objetivos do enunciador e que<br />
resulta em adaptações na construção da enunciação.<br />
Como se definem então as seis funções apresentadas por Jakobson e repetidas por<br />
Chalhub? Creio que uma forma coerente é a que apresento no quadro abaixo:<br />
Objetivo Função<br />
Representar um referente qualquer utilizando a Denotativa<br />
configuração "original" dos signos de um código<br />
qualquer.<br />
Representar um referente qualquer utilizando Conotativa<br />
variações da configuração "original" dos signos<br />
de um código qualquer.<br />
Despertar no interlocutor a sensação de beleza Poética<br />
através do uso da linguagem.<br />
Convencer o interlocutor, persuadi-lo de algo. Conativa<br />
Explicitar o funcionamento da própria linguagem. Metalinguística<br />
Confirmar o entendimento da mensagem pelo Fática<br />
interlocutor ou, ainda, confirmar a manutenção de<br />
uma postura cooperativa na interlocução por parte<br />
do interlocutor.<br />
Expressar sentimentos, emoções. Emotiva<br />
Observa-se que os objetivos de um enunciador podem ser híbridos. Por exemplo,<br />
alguém pode querer convencer alguém de algo através da expressão poética de seus<br />
sentimentos. Parece claro que a estrutura desejada deverá apresentar uma<br />
configuração que se permita a tal uso complexo. Um uso que se definiria pela aplicação da<br />
linguagem, ao mesmo tempo, em função emotiva, conativa e poética, além de se construir<br />
essa enunciação ou conotativa ou denotativamente - porque nem toda poesia é conotativa.<br />
3. Conclusão<br />
A idéia de função da linguagem depende da teoria da comunicação que se concebe.<br />
A crítica que faço nesse artigo é mais à teoria da comunicação de Jakobson do que à<br />
conseqüente construção de uma descrição das funções da linguagem. O problema maior é<br />
que as funções da linguagem recebem uma atenção acadêmica muito maior do que a<br />
própria teoria da comunicação que as fundamenta. Podemos, então, depois do que<br />
apresentei, concluir que:<br />
A. o que determina a função da linguagem é o uso que efetivamente os<br />
interlocutores fazem da linguagem;<br />
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esse uso é determinado pelos objetivos dos interlocutores. Tais objetivos influenciam a<br />
estruturação.que os falantes darão à enunciação;<br />
B . a função da linguagem, portanto, não existe na linguagem, por causa de<br />
enfoques em certos fatores da comunicação ou, ainda, corno peculiaridade imanente da<br />
enunciação: diferentemente, a função da linguagem é resultante da relação entre o objetivo<br />
do falante e as peculiaridades que ele mesmo imprime na enunciação em função do uso que<br />
pretende fazer desse instrumento;<br />
C. embora Jakobson defina somente seis funções possíveis de linguagem, parece<br />
claro que os objetivos dos falantes podem ser muitos mais, sendo que, conseqüentemente,<br />
haverá muitas funções mais.<br />
NOTAS<br />
1 Este texto faz parte do acervo numerado e registrado do autor. A reprodução total ou parcial do conteúdo deste<br />
texto para qualquer fim é expressamente proibida sem prévia autorização ao autor. Críticas e comentários são bemvindos:<br />
Av. 12 de julho, Casa 08, Quadra 67, Caetano, Guajará-Mirim, RO, 78957-000.<br />
2 Roman JAKOB SON. (1969) Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.<br />
3 Samira CHALHUB (1990) Funções da Linguagem. São Paulo: Ática, (Série Princípios).<br />
4 0p. Cit.<br />
5 Idem.<br />
6 Cf. Ibidem, capítulo 7.<br />
7 Cf. Martha STEINBERG (1988). Os Elementos Não- Verbais da Conversação. São Paulo: Atual.<br />
8 Note-se que falo da inteligibilidade do código, não do conteúdo , Entender o código não garante a concretização<br />
da transmissão inequívoca da mensagem.<br />
9 Op. Cit.<br />
10 Cf. Idem pp. 5; 28-31.<br />
11 Cf. CHALHUB, Op.cit., p. 48 e ss.<br />
12 Cf. Gottlob FREGE (1978) Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix. (Trata-se da versão<br />
brasileira. A obra original data do final do século passado.)<br />
13 Para manter o mesmo exemplo dado por CHALHUB, op. Cit. P. 9.<br />
14 Cf. CHALHUB, op.cit.p. 9 e ss.<br />
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