Génese e mentores do antijesuitismo na Europa Moderna - LusoSofia
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong><br />
Moder<strong>na</strong><br />
José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
CLEPUL<br />
2012<br />
www.lusosofia.net<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong><br />
Moder<strong>na</strong><br />
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José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong><br />
Moder<strong>na</strong><br />
CLEPUL<br />
Lisboa<br />
2012<br />
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Extraí<strong>do</strong> da tese de <strong>do</strong>utoramento <strong>do</strong> autor sobre O mito<br />
<strong>do</strong>s jesuítas em Portugal<br />
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FICHA TÉCNICA<br />
Lisboa, 2012<br />
Título: <strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong><br />
Autor: José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Colecção: Ensaios LUSOFONIAS<br />
Design da Capa: António Rodrigues Tomé<br />
Composição & Pagi<strong>na</strong>ção: Luís da Cunha Pinheiro<br />
Centro de Literaturas e Culturas Lusófo<strong>na</strong>s e Europeias, Faculdade de Letras<br />
da Universidade de Lisboa<br />
Lisboa, fevereiro de 2012<br />
ISBN – 978-989-97458-9-6<br />
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Índice<br />
PROBLEMÁTICA: O FENÓMENO DO ANTIJESUITISMO . . 9<br />
A GÉNESE DA COMPANHIA DE JESUS E DO ANTIJESUI-<br />
TISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13<br />
O mimetismo <strong>do</strong> discurso antijesuítico . . . . . . . . . . . . . . 13<br />
Interpretações proféticas filo e antijesuíticas . . . . . . . . . . . 15<br />
O anti-iniguismo precede o <strong>antijesuitismo</strong> . . . . . . . . . . . . 23<br />
O <strong>na</strong>scimento de uma Ordem de contracorrente . . . . . . . . . 30<br />
Críticas à <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> Instituto da Companhia de Jesus . . . . . 39<br />
Percursores <strong>do</strong> mito jesuíta a nível inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l . . . . . . . . . 45<br />
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“Réfléchir sur les rapports complexes entre lecteur et histoire,<br />
entre fiction et réalité, constitue une forme de thérapie contre<br />
tout en<strong>do</strong>rmissement de la raison, qui engendre des monstres”<br />
Umberto Eco 1<br />
1 Umberto Eco, Six prome<strong>na</strong>des dans les bois du romain et d’ailleurs, Paris, 1994,<br />
p. 150.<br />
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PROBLEMÁTICA: O<br />
FENÓMENO DO<br />
ANTIJESUITISMO<br />
O <strong>antijesuitismo</strong>, a nível inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, constitui um fenómeno e um<br />
movimento religioso, cultural e sociopolítico, tão antigo quanto a própria<br />
Companhia de Jesus. Ele <strong>na</strong>sce logo <strong>na</strong> oposição e no processo<br />
de crítica ao grupo funda<strong>do</strong>r da Ordem <strong>do</strong>s Jesuítas lidera<strong>do</strong> pelo espanhol<br />
de origem basca, Inácio de Loyola. Jean Lacouture, constatan<strong>do</strong><br />
isto mesmo, sublinha que a atitude histórica que denomi<strong>na</strong> por “la jésuitophobie<br />
est née avec la Compagnie. Il en existe même une forme<br />
utérine” 2 .<br />
A história <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> encontra as suas primeiras germi<strong>na</strong>ções<br />
no momento embrionário, nos primeiros passos que conduziram à<br />
criação de uma das mais influentes instituições católicas que marcaram<br />
2 Jean Lacouture, Jésuites, vol. 2, Paris, 1992, p. 80. Lembra concretamente<br />
Jean Lacouture que já antes de Inácio de Loyola se ter tor<strong>na</strong><strong>do</strong> mestre da sua Ordem<br />
já Rabelais satirizava no Pantagruel “Fray Inigo”. Ver também René Rémond,<br />
L’anticlericalisme en France: de 1815 à nos jours, Bruxelles, 1985, p. 81 e ss.<br />
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10 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
a presença da Igreja Católica no mun<strong>do</strong> a partir da modernidade. A<br />
crítica aos Jesuítas conhece os seus inícios logo <strong>na</strong>s censuras, <strong>na</strong>s suspeitas<br />
e nos requisitórios inquisitoriais que puseram em causa o mo<strong>do</strong><br />
de vida <strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>s seus companheiros e o seu mo<strong>do</strong> de actuar<br />
em termos pastorais.<br />
Na realidade, o fenómeno <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> sen<strong>do</strong> tão antigo e primordial<br />
como a Ordem de Santo Inácio, também é um fenómeno que<br />
acompanha a expansão <strong>do</strong>s Jesuítas por toda a <strong>Europa</strong> e, mais ainda,<br />
por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> onde os Padres da Companhia chegaram cumprin<strong>do</strong><br />
o seu programa constitucio<strong>na</strong>l de carácter orbícula que tinha por fim<br />
levar o reino de Cristo a to<strong>do</strong> o universo. Stefan Gatzhamer, neste<br />
senti<strong>do</strong>, afirma, no seu estu<strong>do</strong> sobre as campanhas portuguesas contra<br />
os Jesuítas <strong>na</strong> <strong>Europa</strong>, que o “<strong>antijesuitismo</strong> não conhece fronteiras” 3 .<br />
Sen<strong>do</strong> este um axioma que a nossa investigação tem confirma<strong>do</strong> largamente,<br />
podemos, pois, classificar o <strong>antijesuitismo</strong> como um fenómeno<br />
originário, universal e quase permanente. Originário porque remonta à<br />
génese da Societas Iesu começada a constituir-se <strong>na</strong> década de 30 <strong>do</strong><br />
século XVI e aprovada pelo Papa Paulo III em 1540; universal porque<br />
assistimos à sua manifestação em to<strong>do</strong>s os cenários onde os Jesuítas<br />
desenvolvem uma acção mais ou menos consistente com visibilidade e<br />
impacto social; e quase permanente porque o <strong>antijesuitismo</strong> acompanha<br />
de forma significativamente fiel a afirmação desta ordem religiosa nos<br />
diferentes espaços <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, suscitan<strong>do</strong> <strong>do</strong> la<strong>do</strong> contrário o filojesuitismo<br />
mais devoto que contrabalança aquela reacção hostil. Realmente,<br />
como compara, de forma prosaica mas bem sugestiva, o crítico português<br />
Pires Lopes: “falar <strong>do</strong>s Jesuítas é como discutir futebol: conforme<br />
a cor <strong>do</strong> clube, para aí vai a simpatia. Basta abrir a boca e fica-se logo<br />
no meio-campo preferi<strong>do</strong>” 4 .<br />
De facto, a história da visão <strong>do</strong> Jesuíta como o Outro que se julga –<br />
3 Stefan Gatzhamer, “O <strong>antijesuitismo</strong> europeu: relações político-diplomáticas e<br />
culturais entre a Baviera e Portugal (1750-1780)”, in Lusitania Sacra, vol. V, 1993,<br />
p. 159.<br />
4 F. Pires Lopes, “Bibliografia-História”, in Brotéria, vol. 150, 2000, p. 113.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 11<br />
santo ou prevarica<strong>do</strong>r, herói ou bandi<strong>do</strong>, anjo ou diabo, mestre <strong>do</strong> bem<br />
ou congemi<strong>na</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> mal – é o exemplo mais acaba<strong>do</strong> de uma bipolarização<br />
de apreciações de carácter antagónico, estigmatizadas por uma<br />
irreconciliação de avaliações radicalizadas em que se contam poucas<br />
cedências. Difícil é encontrar neste roteiro cindi<strong>do</strong> transversalmente<br />
entre críticas e apologias pareceres menos radicais ou modera<strong>do</strong>s. A<br />
Companhia de Jesus, efectivamente, teve o ensejo de suscitar os ódios<br />
mais viscerais e as admirações mais abnegadas. Mais interessante <strong>na</strong><br />
perscrutação das origens <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> é a observação <strong>do</strong> seu controverso<br />
<strong>na</strong>scimento no seio da própria Igreja. A crítica aos Jesuítas vai<br />
constituir uma corrente de opinião que <strong>na</strong>sceu nos meios eclesiásticos,<br />
ora da parte da Inquisição, ora da parte das outras ordens religiosas<br />
mais antigas, com especial destaque para os Dominicanos e Franciscanos,<br />
ora ainda da parte da burocracia eclesiástica roma<strong>na</strong> e <strong>do</strong> seu clero<br />
secular, este último incomoda<strong>do</strong> com as críticas austeras da pregação e<br />
<strong>do</strong> exemplo de vida <strong>do</strong> grupo de Inácio de Loyola.<br />
Aliás, este aspecto não é extraordi<strong>na</strong>riamente origi<strong>na</strong>l nem estranho,<br />
da<strong>do</strong> que as grandes ordens religiosas, em geral, conheceram reacções<br />
de crítica e de oposição <strong>na</strong> fase <strong>do</strong> seu processo de criação e<br />
de implantação. Isso aconteceu, como é sabi<strong>do</strong>, com as ordens mendicantes<br />
<strong>na</strong> Baixa Idade Média. As novidades organizacio<strong>na</strong>is que os<br />
frades de São Francisco e de São Domingos comportavam, moldadas<br />
para atender pastoralmente, através da sua mendicância, às exigências<br />
da nova mobilidade social que despoletava <strong>na</strong> época, suscitou duras<br />
críticas e viva oposição <strong>na</strong> esfera eclesial, tanto mais que o IV Concílio<br />
de Latrão (1215) tinha proibi<strong>do</strong> então a aprovação de novas regras<br />
monásticas 5 .<br />
O que é realmente novo no movimento de contestação aos Jesuítas<br />
é a sua expressão, dimensão e persistência, que acabou por erguer um<br />
5 Sobre esta problemática e sobre a evolução histórica das Ordens Religiosas, ver<br />
o nosso trabalho de síntese com bibliografia actualizada sobre o tema: José Eduar<strong>do</strong><br />
Franco, “Congregações Religiosas Masculi<strong>na</strong>s”, in Carlos Moreira Azeve<strong>do</strong> (dir.),<br />
Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. A-C, [Lisboa], 2000, pp. 482-<br />
-488.<br />
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12 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
verdadeiro mito negativo em torno destes religiosos à escala mundial.<br />
Jean Lacouture, mais <strong>do</strong> que de <strong>antijesuitismo</strong>, que pertence mais ao<br />
campo de análise <strong>do</strong> “mito social”, prefere caracterizar o comportamento<br />
que ele provoca: “C’est de phobie qu’il faut parler” 6 . Neste senti<strong>do</strong>,<br />
nesta passagem que já destacámos em epígrafe à entrada da nossa<br />
dissertação, este autor considera que “l’aversion qu’inspire la Compagnie<br />
de Jésus à de si nombreuses personnes – et des plus pieuses, des<br />
plus dévotes –, il est difficile de la fonder sur la ‘raison’, tant elle se<br />
nourrit de fantasmes plus ou moins ancrés dans le réel” 7 . Acentuan<strong>do</strong>,<br />
assim, o fenómeno psicológico da fobia, Lacouture sublinha que “le<br />
jésuite est moins jugé que ‘senti’, ou ressenti. Son cas, dans la société<br />
chrétienne, est spécifique. Il relève moins des querelles apologétiques<br />
ou même politiques que de l’imagi<strong>na</strong>ire social” 8 .<br />
Ainda que numa primeira aproximação hermenêutica isto pareça<br />
verdade, entendemos que embora a <strong>do</strong>minância desse ressentimento<br />
seja expressa<strong>do</strong> <strong>na</strong> paixão que marca as campanhas e o seu discurso<br />
antijesuítico, não devemos descurar <strong>na</strong> análise desta expressão psicológica<br />
a formação de um movimento autenticamente ideológico com<br />
carácter político, social, religioso e, em última análise, com sedimentação<br />
cultural e mental. Por seu la<strong>do</strong>, <strong>na</strong> sua génese, a assimilação das<br />
ideias e das imagens que estas produziram em torno <strong>do</strong>s Jesuítas e a sua<br />
cristalização no imaginário social tiveram origem primeiramente <strong>na</strong>s<br />
controvérsias apologéticas. Estas fecundaram a estruturação <strong>do</strong> imaginário<br />
antijesuítico, que por sua vez se tornou fecunda<strong>do</strong>r e reprodutor<br />
de novas e sucessivas querelas.<br />
6 Jean Lacouture, op. cit., p. 75.<br />
7 Ibidem.<br />
8 Ibidem.<br />
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A GÉNESE DA COMPANHIA<br />
DE JESUS E DO<br />
ANTIJESUITISMO<br />
O mimetismo <strong>do</strong> discurso antijesuítico<br />
O mito jesuíta em Portugal, como acontece, aliás, um pouco por toda a<br />
<strong>Europa</strong>, assemelha-se a uma árvore fron<strong>do</strong>sa que desabrochou e cresceu<br />
rápida, ostensiva e poderosamente, com to<strong>do</strong> o seu vigor no perío<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> absolutismo de feição regalista no século XVIII, perduran<strong>do</strong> com a<br />
sua vasta sombra durante o século XIX e as primeiras décadas da centúria<br />
passada. Mas a sua enormidade aprofunda as suas raízes até muito<br />
antes, até à própria génese da Companhia de Jesus.<br />
Em 1933, Ig<strong>na</strong>cio Arbide considerava, não obstante o seu tom apologético,<br />
que as invectivas que se divulgaram <strong>na</strong>quele momento histórico<br />
em Espanha sobre os Jesuítas, não tinham <strong>na</strong>da de novo, pois<br />
bebiam de ma<strong>na</strong>nciais antigos: “Não se pense, no entanto, que aquilo<br />
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14 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
que corre é água fresca. Quase todas as calúnias são repetições e cópia<br />
servil das que se propalaram durante séculos pelos inimigos da Companhia<br />
de Jesus” 9 . Identifican<strong>do</strong> uma das características mais salientes<br />
<strong>do</strong> mito jesuíta (sem o entender como tal, mas como lenda negra) como<br />
fenómeno de longa duração, desmascaran<strong>do</strong> o seu carácter mimético<br />
de des<strong>do</strong>bramento repetitivo <strong>do</strong>s seus mitemas estruturantes, chama a<br />
atenção para a importância prévia <strong>do</strong> conhecimento das suas origens:<br />
“Convém-nos, pois, conhecer aqueles ma<strong>na</strong>nciais originários” 10 .<br />
As raízes da autêntica enxurrada de literatura antijesuítica produzida<br />
em Portugal a partir <strong>do</strong> consula<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ministro <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>rca<br />
D. José I (literatura que dá forma a um mito da Companhia de<br />
Jesus no país), devem ser escavadas mais profundamente no tempo. Os<br />
gérmenes <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> português, como aconteceu com o <strong>antijesuitismo</strong><br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, brotaram logo nos primeiros passos da Ordem<br />
neste reino.<br />
Com efeito, para compreender a figuração mítica operada em torno<br />
da Companhia <strong>na</strong> sua globalidade é imprescindível, pois, perscrutar<br />
prelimi<strong>na</strong>rmente as suas raízes, <strong>na</strong>s quais assenta o edifício mítico que<br />
veio a ser ergui<strong>do</strong> mais tarde no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> iluminismo político. Tanto<br />
mais que as raízes <strong>do</strong> mito pombalino alicerçam-se numa argumentação<br />
onde o passa<strong>do</strong>, apresenta<strong>do</strong> pela sua historiografia de pen<strong>do</strong>r jurídico-<br />
-historicista tem um papel estruturante e fundamenta<strong>do</strong>r, a que se faz<br />
constantemente apelo como meio e base inesgotável de argumentos e<br />
provas e como lugar de justificação para ilumi<strong>na</strong>r a explicação. Daí que<br />
sejamos conduzi<strong>do</strong>s à génese da Ordem de Santo Inácio e aconselha<strong>do</strong>s<br />
pelos resulta<strong>do</strong>s da pesquisa a acompanhar o percurso histórico desde<br />
os <strong>do</strong>is primeiros séculos da sua existência, onde escalpelizaremos o<br />
progressivo rebentar, cada vez mais intenso e clamoroso, de diatribes,<br />
acusações, queixas, denúncias, suspeitas, insinuações pejorativas, cen-<br />
9 Ig<strong>na</strong>cio Arbide, s.j., op. cit., Primeira série, p. 9.<br />
10 Ibidem; ver também Manfred Barthel, The Jesuits: History & legend of the<br />
Society of Jesus, New York, 1984.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 15<br />
suras, contra os Padres Jesuítas 11 .<br />
Interpretações proféticas filo e antijesuíticas<br />
O <strong>na</strong>scimento daquela que se veio tor<strong>na</strong>r a fulgurante Companhia de<br />
Jesus no seio da Igreja Católica e instalada em diversas sociedades e<br />
regiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, foi tanto marca<strong>do</strong> sob o signo <strong>do</strong> sucesso e de um<br />
futuro auspicioso, como sob o signo da hostilidade, da suspeita e da<br />
perquirição.<br />
A ascensão meteriorítica desta Ordem no universo da Cristandade e<br />
o seu papel <strong>na</strong> modificação da face da mesma em várias frentes, quer no<br />
trabalho de revigoramento espiritual ad intra, quer no combate à heresia<br />
protestante, quer ainda ad extra, para além das fronteiras europeias<br />
<strong>na</strong> expansão <strong>do</strong> Cristianismo à escala mundial, dificilmente encontrou<br />
avaliações temperadas e equilibradas da sua história, que foi a muitos<br />
títulos uma aventura fasci<strong>na</strong>nte. O mito positivo <strong>do</strong>s Jesuítas promovi<strong>do</strong><br />
por eles próprios e pelos seus admira<strong>do</strong>res é o reverso <strong>do</strong> mito<br />
negro que se transformou no seu calcanhar de Aquiles, e ilustra bem a<br />
cisão radical entre <strong>do</strong>is tipos de avaliação que é feita acerca da acção<br />
desta instituição. Michel Leroy abre o prefácio da edição portuguesa da<br />
sua obra dedicada à análise <strong>do</strong> Mythe jésuite em França, sublinhan<strong>do</strong><br />
que “poucas associações huma<strong>na</strong>s terão exerci<strong>do</strong> sobre grande parte<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> uma influência comparável à da Companhia de Jesus, durante<br />
mais de quatro séculos, não só <strong>na</strong> vida espiritual, mas também<br />
<strong>na</strong> vida intelectual e até política. Essa influência fasci<strong>na</strong>. Mas também<br />
11 A Companhia de Jesus <strong>na</strong>sce e desenvolve-se tanto com uma áurea de misticismo,<br />
de renovação e de vitalidade apostólica que a prestigia, como sob o signo<br />
da controvérsia que corrói paralelamente aquela imagem beatífica. Mas ela consegue<br />
crescer e afirmar-se neste processo de tensão que lhe desenvolve uma atitude de<br />
resistência permanente.<br />
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16 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
não deixou de inquietar. O reverso <strong>do</strong> papel histórico da Ordem fundada<br />
por Inácio de Loyola é a lenda negra que a persegue desde a sua<br />
origem” 12 . Olhar para a aventura desmedida destes homens te<strong>na</strong>zes e<br />
invulgarmente laboriosos realmente deslumbra, comove, espanta, mas<br />
não deixa de intrigar, pois é a história de uma instituição que foi capaz<br />
de trabalhar com eficiência, de uma forma concertada em várias<br />
<strong>na</strong>ções <strong>do</strong>s vários continentes, com resulta<strong>do</strong>s nunca tão eficazmente<br />
consegui<strong>do</strong>s por outras instituições que prosseguiam objectivos similares.<br />
Na esteira <strong>do</strong> que tinha aconteci<strong>do</strong>, nomeadamente com as ordens<br />
mendicantes, a criação <strong>do</strong>s Jesuítas foi aureolada com uma série de<br />
prognósticos de carácter profético que os membros, os benfeitores e os<br />
admira<strong>do</strong>res da Ordem de Inácio de Loyola atribuíram ao surgimento<br />
da nova ordem. Este esforço de acomodação de profecias de santos e<br />
santas, ou de outras figuras eclesiásticas eminentes pela sua sabe<strong>do</strong>ria<br />
e prestígio moral atendia a uma necessidade, típica da mentalidade das<br />
instituições religiosas da época. Era uma maneira de obter uma espécie<br />
de confirmação ou aprovação sobre<strong>na</strong>tural que tor<strong>na</strong>ria mais sólidas<br />
e incontestáveis as aprovações institucio<strong>na</strong>is huma<strong>na</strong>s ainda que estas<br />
fossem as mais altas autoridades eclesiásticas. Entre as profecias adequadas<br />
à <strong>na</strong>scente ordem i<strong>na</strong>cia<strong>na</strong> destaca-se a da irmã italia<strong>na</strong> Arcangela<br />
Panigarola (1468-1525), que predisse a fundação futura de uma<br />
sociedade ilustre, de sóli<strong>do</strong> fundamento moral que renovaria o cristianismo<br />
13 .<br />
Em Espanha, um prognóstico profético atribuí<strong>do</strong> ao fogoso apóstolo<br />
de Valência, São Vicente Ferrer (1350-1419), da Ordem <strong>do</strong>s Pre-<br />
12 Michel Leroy, “Prefácio da edição portuguesa”, op. cit., p. 7.<br />
13 Cf. Van Ortroy, “Manrèse et ses origines de la Compagnie de Jesus”, in A<strong>na</strong>clecta<br />
Bollandia<strong>na</strong>, XXVII, 1908, pp. 394-418. E ver também sobre o assunto P.<br />
Pietro Taechi Venturi, Storia della Compagnia di Gesú in Italia <strong>na</strong>rrata con sussidio<br />
di fonti inediti, 2. a ed corrigida e emendada, vol. I, Parte II, Roma, 1931, p. 14.<br />
Diz assim um <strong>do</strong>s estratos da profecia em latim: “Etnim, cum tot suppetant aliunde<br />
e<strong>na</strong>menta, quibus sanctus (Ig<strong>na</strong>tius) in sua Societate illustretur et solidiosa et certiora<br />
quam illa sint, quae a prophetis huius modi desumuntur, facile illir supersedeo”.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 17<br />
ga<strong>do</strong>res, vai ser aplica<strong>do</strong> à Companhia de Jesus por outros eclesiásticos<br />
que não os desta ordem, como o <strong>do</strong>minicano Pe. Frei Domingo de Gravi<strong>na</strong><br />
e os prela<strong>do</strong>s D. Rutilo Benzonio, Bispo de Laureto, e D. António<br />
de Zara, Bispo de Petín 14 . O relato profético deste santo <strong>do</strong>minicano<br />
foi publica<strong>do</strong> no livro da sua autoria intitula<strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de la vida espiritual,<br />
e exprime de mo<strong>do</strong> profun<strong>do</strong> a expectativa de uma reforma da<br />
Igreja e das suas instituições. Esta reforma é projectada numa ordem<br />
nova, a qual num futuro que se desejava próximo incar<strong>na</strong>ria e efectivaria<br />
essa vivência regenerada e regenera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Cristianismo através<br />
da encar<strong>na</strong>ção exemplar <strong>do</strong> ideário evangélico. Escreveu o santo, sem<br />
determi<strong>na</strong>r esse tempo, que<br />
“sairá à luz, nos tempos vin<strong>do</strong>uros um novo esta<strong>do</strong> ou uma Ordem<br />
de homens evangélicos, que é muito digno de meditar-se<br />
dias e noites inteiras; de uns homens, digo, em extremo pobres,<br />
sensíveis, mansos, humildes, despreza<strong>do</strong>s, uni<strong>do</strong>s entre si com<br />
o vínculo de um ardente amor; que <strong>na</strong>da pensem, <strong>na</strong>da falem,<br />
<strong>na</strong>da queiram senão somente a Jesus Cristo e este crucifica<strong>do</strong>;<br />
que, esqueci<strong>do</strong>s de si-mesmos, <strong>na</strong>da busquem deste mun<strong>do</strong> senão<br />
somente ponham <strong>na</strong> mira <strong>do</strong>s seus desejos e termo de seus<br />
suspiros a felicidade eter<strong>na</strong> e glória <strong>do</strong>s bem-aventura<strong>do</strong>s; que<br />
desejem e anelem a morte por o amor divino, prorrompen<strong>do</strong> com<br />
o Apóstolo <strong>na</strong>quela inspirada expressão: ‘desejo desatar-me e<br />
ver-me livre das prisões e peso <strong>do</strong> corpo por estar com Jesus<br />
Cristo somente’. Anelo incessantemente por aqueles inestimáveis<br />
e copiosíssimos tesouros e riquezas <strong>do</strong> céu, e por aquelas<br />
melífluas torrentes de suavidade, de delícias e de gostos que se<br />
descobriram inundan<strong>do</strong> maravilhosamente os seus habitantes. A<br />
estes profetiza<strong>do</strong>s heróis deves tu imagi<strong>na</strong>r como se foram uns<br />
anjos que com acordes musicais e bem temperadas cítaras <strong>do</strong> seu<br />
limpo coração se regozijam e alegram no Senhor. E este mesmo<br />
pensamento te incendiará de uns vivos, incríveis e uns impacientes<br />
desejos de ver e chegar a tempos tão felizes” 15 .<br />
14 Ig<strong>na</strong>cio Arbide, op. cit., pp. 45-46.<br />
15 São Vicente Ferrer, Trata<strong>do</strong> de la vida espiritual, Valencia, 1614, p. 669; ver<br />
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18 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Esta projecção profética de um modelo de vida marca<strong>do</strong> por uma<br />
espiritualidade profunda de sabor místico, traduzida numa vida que<br />
transborda de exemplo e de renovação para a própria sociedade <strong>do</strong>s<br />
homens, faz eco de profecias mais antigas que manifestam esta aspiração<br />
cíclica de renovação cristã, cujo eco mais potente vem <strong>do</strong> coração<br />
da Idade Média.<br />
Esse eco mais emblemático, mais elabora<strong>do</strong> e mais influente deste<br />
profetismo renova<strong>do</strong>r, vem de figuras mo<strong>na</strong>cais cimeiras, como é o<br />
caso <strong>do</strong> abade calabrês Joaquim de Flora (c. 1135-c.1202). Este arroja<strong>do</strong><br />
teólogo cisterciense vai profetizar <strong>na</strong> sua peculiar teologia da<br />
história, que muito influenciará os movimentos mile<strong>na</strong>ristas e o pensamento<br />
hetero<strong>do</strong>xo, por vezes radicaliza<strong>do</strong>, da Baixa Idade Média e<br />
da Modernidade, uma Terceira Idade para a História, a Idade da plenitude<br />
<strong>do</strong>s tempos, a era da convivência harmónica entre os homens e<br />
da comunhão com Deus 16 . Compartimentan<strong>do</strong> a história em três idades<br />
com base <strong>na</strong> literatura apocalíptica anterior e apoian<strong>do</strong>-se numa hermenêutica<br />
da história da salvação à luz da periodização das missões das<br />
pessoas da Santíssima Trindade, estatui profeticamente que passada a<br />
Idade <strong>do</strong> Pai, <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>da pelos leigos e pelo casamento, e a <strong>do</strong> Filho,<br />
presidida pela Or<strong>do</strong> Clericorum, <strong>na</strong> qual os homens vivem numa tensão<br />
ainda desequilibrada entre a Carne e o Espírito, sucederá a Idade<br />
<strong>do</strong> Espírito Santo superintendida pela Or<strong>do</strong> Mo<strong>na</strong>chorum, a idade <strong>do</strong>s<br />
monges. Esta última ordem <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte i<strong>na</strong>ugurará uma era de santi-<br />
ainda o Auto de S. Vicente Ferrer, apostolo valenciano, profeta e anjo <strong>do</strong> apocalypse,<br />
em que se referem tantos e tão espantosos milagres, extrahi<strong>do</strong>s da sua prodigiosa<br />
vida, Lisboa, 1854; e cf. Andress Men<strong>do</strong>, Crisis de la Compañía de Jesús, s.l., 1755,<br />
p. 236.<br />
16 Muitos estu<strong>do</strong>s têm vin<strong>do</strong> a lume sobre a figura, o pensamento e a influência<br />
deste célebre teólogo medieval. Entre esses podemos recordar aqui os seguintes:<br />
Henri Mottu, La manifestation de l’Esprit selon Joaquim de Flore, Neuchâtel/Paris,<br />
1977; M. Reeves; B. Hirsch-Reich, The ‘Figuarae’ of Joachim of Fiore, Oxford,<br />
1972; M. Reeves, The influence of Prophecy in the Latter Middle Ages. A study<br />
of Joachimism, Oxford, 1969; Henri Lubac, La posterité spirituelle de Joachim de<br />
Flore, 2 vols., Paris, 1987; e José Eduar<strong>do</strong> Franco, “A utopia da Idade <strong>do</strong> Espírito<br />
Santo”, in Brotéria, vol. 151, pp. 203-216.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 19<br />
dade e de contemplação com características que se filiam <strong>na</strong> tradição<br />
profética de ín<strong>do</strong>le mile<strong>na</strong>rista ou quiliástica.<br />
O advento desta idade deveria ser protagoniza<strong>do</strong> pela acção poderosa<br />
de uma ordem religiosa divi<strong>na</strong>mente delegada para implantar<br />
esta universalização <strong>do</strong> nome de Cristo e da abundância da sabe<strong>do</strong>ria<br />
espiritual, da santidade e <strong>do</strong> amor em toda a face da Terra 17 . Várias<br />
ordens procuraram, entre elas as mendicantes, rever-se nesta profecia e<br />
reivindicar para si o estatuto de funda<strong>do</strong>res e promotores da Idade <strong>do</strong><br />
Espírito, a idade da intelligentia spiritualis que elevaria a humanidade<br />
a uma perfeição nunca antes vista. Na modernidade e no quadro da<br />
epopeia missionária <strong>do</strong>s Descobrimentos, em cuja tarefa de universalização<br />
<strong>do</strong> Cristianismo os Jesuítas vão desempenhar um papel preponderante,<br />
alguns autores, particularmente teólogos da própria Companhia,<br />
pretenderam aplicar esta premonição <strong>do</strong> abade Joaquim à Ordem<br />
de Santo Inácio, e apresentar, assim, esta ordem como a eleita e a predesti<strong>na</strong>da<br />
divi<strong>na</strong>mente para i<strong>na</strong>ugurar a idade da universalização ple<strong>na</strong><br />
<strong>do</strong> Evangelho e da unção da humanidade pelo Espírito Santo.<br />
Em Portugal há exemplos flagrantes desta procura de acomodação<br />
da profecia joaquimita à Companhia de Jesus. Brás Viegas nos seus<br />
Commentarii Exegetici in Apocalypsim, responsáveis pela divulgação<br />
da teologia de Joaquim de Flora nos meios culturais portugueses, vai<br />
associar à Ordem de Santo Inácio a profecia <strong>do</strong> Anjo de Filadélfia, insinuan<strong>do</strong><br />
que esta Ordem seria a funda<strong>do</strong>ra da nova idade que a humanidade<br />
estava desti<strong>na</strong>da a gozar. Neste novo estádio soteriológico, em que<br />
17 Entre as diversas obras de Joaquim de Flora cumpre-nos realçar aqueles livros<br />
de exegese que mais contribuíram para o edifício teológico-profético que fundamenta<br />
e desenvolve a sua visão da história: Concordia Novi et Veteris Testamenti (Concordia<br />
<strong>do</strong> Novo e <strong>do</strong> Velho Testamento), a Expositio in Apocalypsim (Comentário sobre<br />
o Apocalipse), o Psalterium decem chordarum (Saltério de dez cordas) e o Tractatus<br />
super quatuor Evangelia (Trata<strong>do</strong> sobre os quatro Evangelhos), fican<strong>do</strong> este último<br />
inconcluso, pois a morte surpreendeu o autor durante a tarefa de redacção. As três primeiras<br />
obras foram editadas de forma impressa em várias edições entre 1519 e 1527<br />
<strong>na</strong> cidade de Veneza. O Tractatus. . . só veio a lume no século XX, concretamente no<br />
ano de 1930 <strong>na</strong> cidade de Roma.<br />
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20 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
os pii sacer<strong>do</strong>tes e os pii pastores serão substituí<strong>do</strong>s pelos boni claustrales<br />
e pelos boni eremitiae que profetizarão e espalharão por toda a<br />
parte o espírito <strong>do</strong> Evangelho de São João 18 . Esta tese é corroborada de<br />
forma mais intensa e decidida por Bento Pereira <strong>na</strong> sua obra dedicada<br />
às Disputationes super libro Apocalypsis, <strong>na</strong> qual comenta o esquema<br />
teológico <strong>do</strong> Abade Joaquim no que respeita à estrutura da História,<br />
defenden<strong>do</strong>, sem qualquer reserva, que a Companhia de Jesus é a encar<strong>na</strong>ção<br />
autêntica da vida espiritual da última idade profetizada por<br />
este monge medieval, a idade da felicidade espiritual 19 . Espalhou-se<br />
uma certa fama entre os meios eruditos portugueses que a Companhia<br />
de Jesus seria, de facto, a ordem profetizada por Joaquim de Flora para<br />
18 Cf. Brás Viegas, Commentarii exegetici in Apocalypsim, Évora, 1601, pp. 196-<br />
-200. Para além desta edição princepes [BA, cód. 48-IV-2], conhecem-se várias<br />
reedições, a saber: Londres, 1606 (BA, cód. 47-V-52], Turnoni, 1614 [Horatium<br />
Car<strong>do</strong>n] e Colónia, 1617 [crithium, sub signo Gall]. O texto manuscrito encontra-se<br />
conserva<strong>do</strong> no cód. 7675 da BNL.<br />
19 Bento Pereira, Disputationes super libro Apocalypsis, Lião, 1606. Ver Disputatio<br />
octava, pp. 24-27, pp. 245-249, pp. 270-272 e pp. 315-317 referentes ao cap.<br />
IV <strong>do</strong> Apocalipse; sobre o cap. VI <strong>do</strong> Apocalipse ver pp. 406-409, pp. 440-443, pp.<br />
448-454 e pp. 468-472; sobre o cap. VII <strong>do</strong> Apocalipse ver pp. 541-543, pp. 551-554<br />
e pp. 555-560; e sobre o De Antichristo ver pp. 28-32. Note-se que perante a “abertura<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao próprio mun<strong>do</strong>” no dizer destas palavras apotegmáticas de António<br />
Vieira, e perante a nunca vista possibilidade efectiva de universalização da <strong>do</strong>utri<strong>na</strong><br />
de Cristo tão sonhada pelas profecias bíblicas e pelas figuras lumi<strong>na</strong>res da história <strong>do</strong><br />
cristianismo antigo e medieval, era difícil para os missionários jesuítas e das outras<br />
ordens, encanta<strong>do</strong>s com a dimensão da obra que realizavam, não serem tenta<strong>do</strong>s a<br />
tirar ilações proféticas e a fazer interpretações ligadas à velha utopia da mundialização<br />
da Fé cristã. Também é importante compreender obrigatoriamente esta demanda<br />
de aplicações proféticas à Companhia de Jesus, como acontecia em relação às outras<br />
ordens, no quadro de uma sociedade sacral, marcada pelo modelo unitário de<br />
Cristandade. Ali o religioso constituía o pólo unifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> social, em que a<br />
cosmovisão e a sócio-visão misturavam o humano com o divino, o imaginário com<br />
o real, em que as fronteiras entre o racio<strong>na</strong>l e o irracio<strong>na</strong>l eram muito débeis. Daí<br />
que a caução dada pelas profecias, embora a historiografia mais crítica <strong>do</strong>s Jesuítas<br />
não a tenha valoriza<strong>do</strong> muito, como o fez a historiografia de outras ordens em relação<br />
às suas profecias, tor<strong>na</strong>va-se um aspecto importante para legitimar com um toque de<br />
transcendência a fundação e acção de uma nova ordem religiosa.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 21<br />
i<strong>na</strong>ugurar os tempos pneumatológicos em que o cristianismo se plenificaria,<br />
para o que contribuiu muito o esforço de divulgação e interpretação<br />
da obra de Joaquim opera<strong>do</strong> pelos intelectuais da Companhia,<br />
como constituem bom exemplo os anteriormente cita<strong>do</strong>s. Frei Leão de<br />
S. Tomás, autor da Benediti<strong>na</strong> Lusita<strong>na</strong>, testemunhava a vigência desta<br />
opinião, quan<strong>do</strong> escreveu a mo<strong>do</strong> de reparo que “não falta quem diga<br />
que o abade Joaquim profetizou também a instituição da santíssima religião<br />
da Companhia de Jesus, comentan<strong>do</strong> aquelas palavras <strong>do</strong> cap. 3<br />
<strong>do</strong> Apocalipse ditas ao Anjo ou Bispo da Igreja de Filadélfia” 20 .<br />
Uma série de outras visões e profecias de outros autores não deixaram<br />
de ser muito divulgadas 21 , algumas delas pela própria Companhia<br />
de Jesus. Isto a fim de caucio<strong>na</strong>r com timbre divino e aureolar miticamente<br />
a afirmação desta nova ordem, em que to<strong>do</strong>s os apoios eram<br />
bem-vin<strong>do</strong>s e acarinha<strong>do</strong>s para munir a resistência e a defesa contra a<br />
pressão contrária <strong>do</strong>s seus oponentes, que serão cada vez mais nume-<br />
20 Frei Leão de S. Tomás, Benediti<strong>na</strong> Lusita<strong>na</strong>, Introd. e notas críticas de José Mattoso,<br />
Lisboa, 1974, Trat. 1, Parte 5, Parag. VIII. Sobre a influência <strong>do</strong> joaquimismo<br />
em Portugal ver os estu<strong>do</strong>s recentes de Manuel J. Gandra, Joaquim de Fiore, Joaquimismo<br />
e Esperança Sebástica, Lisboa, 1999; e José Eduar<strong>do</strong> Franco, “Influência de<br />
Joaquim de Flora <strong>na</strong> Cultura Portuguesa”, in Brotéria, vol. 151, 2000, pp. 285-303.<br />
A nova mundividência que abria caminho para a possibilitação da universalização<br />
<strong>do</strong> Cristianismo pelo processo de missio<strong>na</strong>ção em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> <strong>na</strong> sequência das<br />
Descobertas Portuguesas e Espanholas, em que a Ordem de Santo Inácio trabalhou<br />
<strong>na</strong> conversão de povos sem número, tornou-se o grande motivo inspira<strong>do</strong>r e justifica<strong>do</strong>r<br />
desta aplicação profética de feição mile<strong>na</strong>rista. É esta gesta Dei per hominis<br />
que mais tarde será desenvolvida pelo famoso jesuíta António Vieira, <strong>na</strong> sua História<br />
<strong>do</strong> Futuro. Nesta obra, o autor faz o anúncio profético <strong>do</strong> Quinto Império sedia<strong>do</strong><br />
em Portugal e por este país promovi<strong>do</strong> em estreita colaboração com o Papa, que não<br />
era mais <strong>do</strong> que a realização da grande expectativa cristã da consumação <strong>do</strong> Reino de<br />
Cristo <strong>na</strong> Terra e a plenificação <strong>do</strong> rei<strong>na</strong><strong>do</strong> espiritual de Cristo em to<strong>do</strong> o universo.<br />
Cf. António Vieira, História <strong>do</strong> Futuro, 2. a edição, Introd., actual. e notas por Maria<br />
Leonor Carvalhão Buescu, [Lisboa], 1992.<br />
21 Recorde-se aqui os trechos proféticos de Santa Teresa de Jesus, de Santa Maria<br />
Magdale<strong>na</strong> de Pazzir, de N. Fr. Lorenzo Nola, e <strong>do</strong> próprio São Francisco de Borja,<br />
entre outros, apresenta<strong>do</strong>s como favoráveis à Companhia de Jesus. Cf. Ig<strong>na</strong>cio Arbide,<br />
s.j., op. cit., p. 37 e ss.<br />
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22 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
rosos e não menos expeditos em denegrir este instituto religioso.<br />
Os que começaram a não ver com bons olhos a afirmação fulgurante<br />
desta ordem nova, procuraram contraditar esta aura de profetismo<br />
filojesuítico, aparelhan<strong>do</strong> o seu antí<strong>do</strong>to. Recolheram, reinterpretaram<br />
e acomodaram um conjunto que podemos desig<strong>na</strong>r de anti-profecias<br />
<strong>do</strong>s Jesuítas, isto é, profecias que desabo<strong>na</strong>vam a acção presente e futura<br />
desta Ordem, descreven<strong>do</strong>-a como altamente prejudicial e maléfica<br />
para a Igreja e para a humanidade. Estas anti-profecias chegam a<br />
constituir a própria ordem como sen<strong>do</strong> de <strong>na</strong>tureza malig<strong>na</strong> e to<strong>do</strong> o<br />
seu desempenho apostólico e educativo como nefasto, como se se tratasse<br />
de um meio que o próprio mal dispunha para aceder ao interior<br />
da própria Igreja. Textos proféticos atribuí<strong>do</strong>s a Santa Hildegarda, ao<br />
Bispo de Canárias, Melchior Cano, ao Arcebispo de Dublin, George de<br />
Bronswel, e ao próprio São Francisco de Borja, vão ser amplamente divulga<strong>do</strong>s<br />
pelo movimento antijesuítico para fundamentar também com<br />
algum pen<strong>do</strong>r sobre<strong>na</strong>tural a sua campanha contra os Jesuítas, como veremos<br />
mais concretamente quan<strong>do</strong> abordarmos oportu<strong>na</strong>mente o processo<br />
de sistematização <strong>do</strong> mito no quadro <strong>do</strong> regalismo português.<br />
Ao próprio Inácio de Loyola foi atribuída pela literatura antijesuítica<br />
uma profecia revelada numa experiência mística alegadamente tida<br />
em Manresa, <strong>na</strong> qual teria auferi<strong>do</strong> a visão da futura degeneração da sua<br />
Ordem em relação ao seu fervor inicial, principalmente por causa <strong>do</strong><br />
peca<strong>do</strong> da soberba e da politização de muitos <strong>do</strong>s seus membros. Estas<br />
prevaricações extremadas fariam decair a sua Companhia sem remédio<br />
possível 22 .<br />
22 Ibidem, p. 25 e ss., e p. 49 e ss. Obviamente que as histórias da Companhia de<br />
Jesus desmentem estas visões proféticas divulgadas pelos críticos da Companhia. É<br />
posta em causa pelos historia<strong>do</strong>res jesuítas até mesmo as alegadas experiências que<br />
Santo Inácio teria goza<strong>do</strong> em Manresa. Cf. Antonio Astrain, Historia de la Compañía<br />
de Jesús en la asistencia de España, tomo I, Madrid, 1912, p. 39. Ao referir<br />
que vários autores acreditaram no retiro místico feito por Inácio em Manresa, onde<br />
o Senhor, entre outras coisas lhe teria revela<strong>do</strong> a fundação da Companhia e o seu<br />
percurso futuro de ascensão e queda, desacredita-os, defenden<strong>do</strong> que não existem<br />
“provas positivas que apoiem esta crença, e seguramente não devem existir, pois o<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 23<br />
O anti-iniguismo precede o <strong>antijesuitismo</strong><br />
A história das suspeitas, das queixas e da hostilidade real em relação à<br />
Companhia de Jesus, desde a sua fundação uteri<strong>na</strong> explica-se, em certa<br />
medida, pela feição inova<strong>do</strong>ra que ela assumiu em alguns aspectos enquanto<br />
ordem religiosa no seio da Igreja Católica, ousan<strong>do</strong> ostentar um<br />
perfil adapta<strong>do</strong> às exigências <strong>do</strong> seu tempo através da criação de uma<br />
estrutura organizativa peculiar que procurava distanciar-se da estrutura<br />
pesada das ordens religiosas mo<strong>na</strong>cais e até das mendicantes, flexibilizan<strong>do</strong><br />
o seu corpus institucio<strong>na</strong>l de mo<strong>do</strong> a torná-lo mais maleável e<br />
capaz de responder de forma mais rápida aos desafios emergentes da<br />
evangelização <strong>na</strong> modernidade. Por seu la<strong>do</strong>, a Companhia de Jesus<br />
introduziu uma meto<strong>do</strong>logia de actuação pautada pelo valor da eficácia<br />
a toda a prova.<br />
Além <strong>do</strong> mais, os Jesuítas <strong>na</strong>sceram num tempo invulgarmente promissor,<br />
em que o homem libertava as amarras <strong>do</strong>s horizontes fecha<strong>do</strong>s<br />
abrin<strong>do</strong>-se de forma arrojada para novos céus e novos mun<strong>do</strong>s a explorar.<br />
Revolucio<strong>na</strong>va-se os espaços, as fronteiras, como também, ao<br />
mesmo tempo, se revolucio<strong>na</strong>vam as ideias. Copérnico, Maquiavel,<br />
Erasmo tinham repensa<strong>do</strong> a posição <strong>do</strong> homem no cosmos, <strong>na</strong> sociedade<br />
e <strong>na</strong> Igreja. Rabelais gritava “fazei o que quiserdes!”, cantan<strong>do</strong><br />
a nova era antropocêntrica, em que o homem era coloca<strong>do</strong> no centro<br />
e empurrava Deus para o céu. Lucien Febvre avaliou que “rarement<br />
l’humanité eut plus net le sentiment de vivre les jours énivrants d’un<br />
printemps plein de promesses. Rarement elle eut tirer d’elle-même plus<br />
de projets enthousiastes, mêlés à plus de rêveries” 23 .<br />
santo não falou com ninguém sobre este retiro, segun<strong>do</strong> afirma o P. Polanco”. Entre<br />
os autores antijesuíticos que atestam a historicidade dessas revelações destaca-se<br />
Barriobero no Trata<strong>do</strong> de las cosas íntimas de la Compañía de Jesus. Mas em abono<br />
deste deve-se ter em conta também as obras de autores como Bal<strong>do</strong>ntín, Soriano e<br />
Pey Ordeix, Jesuítas y judios ante la República, Barcelo<strong>na</strong>, 1932.<br />
23 Lucien Febvre, Au coeur religieux du XVI e siècle, Paris, 1983, p. 91.<br />
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24 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Neste contexto, a Companhia de Jesus recorreu e procurou optimizar<br />
méto<strong>do</strong>s e estratégias de afirmação i<strong>na</strong>bituais enquanto ordem<br />
religiosa que era e estranhos para a sensibilidade das ordens instituídas<br />
com tradição secular. Esta procura de eficácia introduziu um elemento<br />
de concorrência forte <strong>na</strong> relação com as ordens congéneres e até com<br />
outros pólos de poder e de interesse <strong>na</strong> Igreja e <strong>na</strong> sociedade. O que<br />
não deixou de inquietar e de provocar reacções contundentes e altamente<br />
vexantes para a fama da Companhia de Jesus.<br />
Boa parte da lenda negra <strong>do</strong>s Jesuítas congeminou-se, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente,<br />
no quadro da realização de um <strong>do</strong>s vectores programáticos<br />
da Ordem que era a luta contra o protestantismo emergente 24 . Os Je-<br />
24 No <strong>do</strong>brar <strong>do</strong> século XVI para o século XVII o <strong>antijesuitismo</strong> estava activíssimo<br />
no mun<strong>do</strong> protestante, sen<strong>do</strong> responsável por uma parte importantíssima da produção<br />
de imagem negativa contra a Ordem I<strong>na</strong>cia<strong>na</strong>. O retracto desta criminologia negra<br />
<strong>do</strong>s Jesuítas é resumi<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s aforismos <strong>do</strong> padre Becanu para efeitos de refutação.<br />
Segun<strong>do</strong> este aforismo, os crimes e as acções diabólicas mais espectaculares<br />
eram atribuídas à autoria <strong>do</strong>s religiosos da Companhia. Os calvinistas tinham-nos<br />
como os adversários mais viscerais que urgia elimi<strong>na</strong>r: “Les Jésuites, nos grands adversaires,<br />
il faut les tuer, ou, si, la chose est trop difficile, les chaner; à tout le moins,<br />
les écraser sous le mensonge et la calomnie (. . . ). En Anglaterre, dit’il, à prévaut<br />
le calvinisme, les Jésuites jusqu’ici ont subi la mort, ainsi Edmond Campion, Roger<br />
Filocus, Henri Garnett et beaucoup d’autres. On sait que récemment on a parlé de<br />
chasser les Jésuites de l’Empire. Quant aux calomnies et mensonges ils sont innombrables.<br />
Je n’en dirai qu’on mot les dernières années, les calvinistes ont répandu le<br />
bruit que les Jésuites en Belgique avaient machiné la mort de Maurice de Nassan.<br />
Ce mensonge a été officielment relevé. Ils ont assuré dans leurs livres, qu’à Anvers<br />
un Jésuite avait été supplicié pour un crime infâme; toute la ville a protesté. Ils ont<br />
raconté que les Jésuites de Munich en Bavière, non seulement avaient ensayé de réduire<br />
une jeune fille, mas qu’ils avaient commis un afreux homicide. Par ordre de<br />
Duc Sérénissime la calomnie a été découverte et réfuté sur <strong>do</strong>cuments authentiques.<br />
Ils ont dit qu’à Cracovie, quatre Jésuites, pour forfaits énormes, avaient été, par ordre<br />
du Sérénissime roi Etienne, punir de mort. Etienne lui-même, sur la prière du<br />
Révérendissime et Illustrissime Sépeig<strong>na</strong>it comme leur complice, réfuta l’acusation<br />
par les lettres royales munies de son sceau (. . . ). D’un mot, les prédicants calvinistes,<br />
dans leurs chaises, vont criant que les Jésuites sont les auteurs de tout les maux d’icibas.<br />
Bien sur, du train <strong>do</strong>nt ils machent, ils disont bientôt au peuple que les Jésuites<br />
ont introduit en ce monde le péché origi<strong>na</strong>le; et que, dans une confession auriculaire,<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 25<br />
suítas foram pinta<strong>do</strong>s como uma milícia de solda<strong>do</strong>s veteranos ou de<br />
elite, obedientes, bem trei<strong>na</strong><strong>do</strong>s, bem discipli<strong>na</strong><strong>do</strong>s, representa<strong>do</strong>s de<br />
cabeça baixa, comanda<strong>do</strong>s por um general papista, um Loyola militar<br />
que desencadeiou uma guerra sem tréguas à Reforma Protestante,<br />
a qual foi repelida e inibida de se amplificar <strong>na</strong> flor da sua expansão<br />
europeia 25 . O facto <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Jesuítas ter si<strong>do</strong> um veterano de<br />
guerra e de ter da<strong>do</strong> a esta ordem um carácter hierárquico piramidal e<br />
verticalmente obediencial muito rígi<strong>do</strong>, não deixan<strong>do</strong> de lembrar as organizações<br />
militares (como o próprio nome da Companhia 26 não deixa<br />
de fazer apelo), estigmatizou indelevelmente a apreciação deste insti-<br />
ils ont conseillé à Absolon de déclarer la guerre à son père David”. Becanus, s.j.,<br />
Aphorismi Doctri<strong>na</strong>e calvinistarum ex eorum libris dictis et factis collecti, cum brevi<br />
responsione ad aphorismos falso Jesuitis impositos, Mayence, 1608, Aforismo 15.<br />
Esta obra foi novamente publicada nos Opuscula Theologica, Paris, 1633.<br />
25 Inácio de Loyola, qualifica<strong>do</strong> por Léon Marcuse como “um dita<strong>do</strong>r de almas”,<br />
constitui uma ordem centralizada, cuja estrutura hierárquica é decalcada <strong>do</strong> macro-<br />
-modelo organizacio<strong>na</strong>l da Igreja Católica e <strong>do</strong> poder centralista <strong>do</strong> Papa<strong>do</strong>, o qual<br />
era visto pelo Funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Jesuítas como o centro nuclear ema<strong>na</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> poder espiritual<br />
supremo, em torno <strong>do</strong> qual deveria gravitar o serviço de Deus no vasto mun<strong>do</strong>.<br />
Cf. Léon Marcuse, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, le dictateur des âmes, Paris, 1936. Para um<br />
excelente estu<strong>do</strong> em torno da imagem de Loyola ver a obra de Pierre-Antoine Fabre,<br />
Ig<strong>na</strong>ce de Loyola. Le lieu de l’image. Le problème de la composition de lieu dans<br />
les pratiques spirituelles et artistiques jésuites de la seconde moitié du XVI e siècle,<br />
[Paris], 1992.<br />
26 Este nome que é da<strong>do</strong> à Ordem de Santo Inácio representa em si uma evolução<br />
em relação às formas de nomeação típica <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>quismo clássico. O vocábulo deriva<br />
<strong>do</strong>s termos latinos cum panis, através da palavra italia<strong>na</strong> compagnia. Jean Delumeau<br />
informa-nos que “dès le XIe siècle le terme désigné une société à responsabilité illimitée<br />
et totale solidarité des contractantes” (Jean Delumeau, La civilisation de la<br />
Re<strong>na</strong>issance, Paris, 1984, p. 467). Para enquadramento ver também as sínteses historiográficas<br />
<strong>na</strong> obra de J.-M. Mayeur et alii (dir.), Histoire du Christianisme. 8.<br />
Le temps des confessions (1530-1630), [Paris], 1992. Esta estrutura organizacio<strong>na</strong>l<br />
forte comportava como características mais destacadas a mobilidade e a capacidade<br />
de intervir em territórios diversos. Aplicou-se habitualmente esta denomi<strong>na</strong>ção a instituições<br />
militares e comerciais. Note-se, todavia, que não era a primeira vez que este<br />
nome era da<strong>do</strong> a uma ordem religiosa. Em 1515, uma ordem então criada incorporou<br />
<strong>na</strong> sua denomi<strong>na</strong>ção este termo: a Companhia <strong>do</strong> Amor Divino.<br />
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26 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
tuto religioso por parte <strong>do</strong>s seus críticos, que não se cansaram de explorar<br />
até à exaustão metáforas sugestivas como a da máqui<strong>na</strong> para definir<br />
pejorativamente a desumanidade e o poder inexorável da sua estrutura<br />
organizativa 27 .<br />
A biografia militar e o mo<strong>do</strong> de vida austero de Inácio de Loyola e<br />
<strong>do</strong> seu primeiro grupo de segui<strong>do</strong>res, incomodaram o statu quo religioso<br />
da época, não deixan<strong>do</strong> de despertar logo reacções. Não é excessivo<br />
afirmar que o <strong>antijesuitismo</strong> começa por ser, em primeiro lugar,<br />
um anti-iniguismo ou anti-loiolismo 28 .<br />
O comportamento religioso <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r depois da sua conversão <strong>na</strong><br />
sequência <strong>do</strong>s ferimentos graves de que foi vítima <strong>na</strong> Batalha de Pamplo<strong>na</strong>,<br />
em 1521, contra a França, marca<strong>do</strong> por uma vida de desprezo <strong>do</strong><br />
corpo e despoja<strong>do</strong> de meios, viven<strong>do</strong> de esmolas, mas sem deixar de lutar<br />
por um estatuto intelectual, percorren<strong>do</strong> os ambientes universitários<br />
da época, vai suscitar fortes censuras. Este militar da nobre família <strong>do</strong>s<br />
Loyolas 29 tor<strong>na</strong>-se um vagabun<strong>do</strong> que, ainda por cima, começará a des-<br />
27 Michel Leroy, referin<strong>do</strong>-se a esta exploração da imagem da máqui<strong>na</strong> escreve<br />
que “la compagnie apparut d’emblée comme une machine de guerre lancée contre le<br />
protestantisme <strong>na</strong>issant, et les réformés la désignérent très vite comme leur adversaire<br />
principal. Sa vocation première était la conversion des Infidèles, et l’importance de<br />
son œuvre missio<strong>na</strong>ire continue d’attester cette fonction originelle”. Michel Leroy,<br />
op. cit., p. 16.<br />
28 Embora preferíssemos usar a palavra anti-iniguismo, pois esta é mais fiel ao<br />
nome basco com que foi baptiza<strong>do</strong> o Funda<strong>do</strong>r da Companhia de Jesus, Inigo, é<br />
certo que depois ele irá a<strong>do</strong>ptar o nome de Inácio que foi vulgariza<strong>do</strong> como forma<br />
de nomear esta figura da história da Igreja Católica. Daí que os Jesuítas sejam por<br />
vezes chama<strong>do</strong>s i<strong>na</strong>cianos ou loiolanos (como os brasileiros preferem), mas também<br />
iniguistas. Inigo é, aliás, um nome pré-romano. O latim a<strong>do</strong>ptou a forma de Enneco<br />
que o basco moderno grafava Eneko.<br />
29 Inácio de Loyola <strong>na</strong>sceu em Loyola em 1491, provavelmente em Outubro, sen<strong>do</strong><br />
o décimo terceiro filho de D. Beltrão de Oñaz e de D. Maria<strong>na</strong> Sanchez de Lico<strong>na</strong>.<br />
De nome completo Iñigo López de Loyola, este gentil-homem <strong>do</strong> vice-rei de Navarra<br />
confrontou-se, numa aventura militar, com uma experiência de sofrimento agu<strong>do</strong> que<br />
modificará transversalmente a sua vida. Em 1521, participa ao serviço de Carlos V<br />
<strong>na</strong> defesa militar de Pamplo<strong>na</strong>. O rei francês, D. Francisco I, aproveitan<strong>do</strong> a ausência<br />
de Carlos V, achou a oportunidade para atender às pretensões de Henri d’Albert ao<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 27<br />
viar jovens estudantes inteligentes e promissores para o imitarem numa<br />
vida de radical entrega a uma vida cristã. Este aguerri<strong>do</strong> guerreiro das<br />
causas político-militares, tor<strong>na</strong>-se um aguerri<strong>do</strong> guerreiro/aventureiro<br />
da causa de Cristo. Foi obriga<strong>do</strong> a afastar-se de Alcalá de He<strong>na</strong>res e<br />
Salamanca (1526) por ter si<strong>do</strong> denuncia<strong>do</strong> e censura<strong>do</strong> pela Inquisição<br />
por suspeita de ligação ao movimento <strong>do</strong>s Alumbra<strong>do</strong>s e por andar a<br />
pregar uma vida de mais radical vivência <strong>do</strong> Evangelho 30 . Foi expulso<br />
de Montserrat por ter vitupera<strong>do</strong> a luxúria que grassava entre os regulares.<br />
Foi também incomoda<strong>do</strong> pelo Santo Ofício de Paris e de Roma e<br />
os seus Exercícios Espirituais 31 foram coloca<strong>do</strong>s sob suspeita e sujei-<br />
ceptro <strong>na</strong>varro. Tanto mais que Navarra tinha si<strong>do</strong> incorporada <strong>na</strong> coroa castelha<strong>na</strong><br />
dez anos antes e o povo continuava descontente com esta sujeição. Em Maio de 1521<br />
um exército francês de 12.000 homens apoia<strong>do</strong> por oitocentos lanceiros e artilheiros<br />
com 29 peças cerca Pamplo<strong>na</strong>. O pequeno exército de mil homens manda<strong>do</strong>s pelo<br />
vice-rei espanhol para defender a cidade não tinha qualquer possibilidade de vencer<br />
o inimigo. Contra to<strong>do</strong>s, e mesmo depois de outros chefes militares terem opta<strong>do</strong> por<br />
fugir, Iñigo em nome da honra decide lutar até ao fim e toma a dianteira <strong>do</strong>s poucos<br />
que restavam dispostos a imolar a vida resistin<strong>do</strong> até à morte. Com facilidade os<br />
franceses tomaram de assalto o castelo. Na refrega, em que lutava este oficial com<br />
os últimos homens, uma bala de calabri<strong>na</strong> despedaça uma das per<strong>na</strong>s deste intérpri<strong>do</strong><br />
guerreiro e feriu-lhe gravemente a outra. O acidente provoca a rendição da cidade<br />
e representa o princípio de uma longa viagem <strong>na</strong> vida deste militar <strong>do</strong> exército castelhano.<br />
Durante o longo tempo de convalescência em que foi sujeito a diversas e<br />
<strong>do</strong>lorosas intervenções cirúrgicas, a fim de matar o tédio resultante da inércia, em vez<br />
<strong>do</strong>s deseja<strong>do</strong>s romances de cavalaria, foi obriga<strong>do</strong> a ler livros que lhe forem disponibiliza<strong>do</strong>s<br />
no solar de Loyola: os quatro volumes da Vida de Cristo de Lu<strong>do</strong>lfo da<br />
Saxónia e um Flos Sanctorum de Jacobus de Voragine. Assim, é neste longo perío<strong>do</strong><br />
de mais de 7 meses, de Junho de 1521 a princípios de 1522 que Inácio opera um<br />
volte-face interior que o leva a encetar um longo caminho de peregri<strong>na</strong>ção espiritual,<br />
tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se um eremita, depois um peregrino em Jerusalém, e a seguir inician<strong>do</strong> uma<br />
carreira de estu<strong>do</strong> pelas universidades de Espanha e França.<br />
30 Sobre a corrente mística <strong>do</strong>s Alumbra<strong>do</strong>s ver Antonio Marquez, Los Alumbra<strong>do</strong>s:<br />
origens y filosofia (1525-1529), Madrid, 1972; e Alvaro Huerga, Historia de los<br />
Alumbra<strong>do</strong>s, vol. 1, Madrid, 1978.<br />
31 Para uma edição comentada desta obra ver Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, Exercices Spirituels,<br />
Textos defini<strong>do</strong>s em 1548, traduzi<strong>do</strong>s e comenta<strong>do</strong>s por Jean-Claude Guy,<br />
Paris, 1962. A meto<strong>do</strong>logia de educação e aprofundamento espiritual codificada nos<br />
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28 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
tos à crítica inquisitorial e temi<strong>do</strong>s como um meio para desencaminhar<br />
jovens e quiçá desviá-los <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> e da carreira para se entregarem à<br />
oração e à caridade 32 .<br />
Apesar de todas as censuras e perseguições efectivas da Inquisição<br />
e de reitores das universidades, <strong>na</strong>da logrou impedir a constituição, por<br />
parte de Inácio, de um primeiro grupo de jovens estudantes que aderiram<br />
à sua causa que consistia primeiramente tão só em colocar a vida<br />
ao serviço de Cristo e da propagação da sua <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> para ir à Terra<br />
Santa converter os infiéis 33 . O poder de atracção da sua perso<strong>na</strong>lidade<br />
célebres Exercícios Espirituais cria<strong>do</strong>s e ministra<strong>do</strong>s por Santo Inácio, sen<strong>do</strong> depois<br />
instituí<strong>do</strong>s até aos dias de hoje como prática fundamental da espiritualidade jesuítica,<br />
marca, por excelência paradigmática, a espiritualidade típica da Companhia de Jesus.<br />
Sobre este catecismo i<strong>na</strong>ciano de meto<strong>do</strong>logia espiritual, ver, entre outras obras, a<br />
análise de Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola, Paris, 1971, p. 49 e ss.; e os estu<strong>do</strong>s<br />
clássicos de Alexandre Brou, Les Exercices Spirituels de Saint Ig<strong>na</strong>ce de Loyola,<br />
Paris, 1922; e Idem, La spiritualité de S. Ig<strong>na</strong>ce, Paris, 1928; bem como bibliografia<br />
mais actualizada sobre o assunto, como as obras de Jesús M. Gramero, Espiritualidade<br />
ig<strong>na</strong>cia<strong>na</strong>, Madrid, 1987; e Hugo Rahner, La Genèse des ‘Excercices’, Paris,<br />
1989.<br />
32 Sobre a biografia <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Jesuítas, ver por exemplo a obra de André<br />
Ravier, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola fonde la Compagnie de Jésus, Paris, Desclée de Brower,<br />
1973. E ter em conta a história da sua própria vida escrita por Inácio antes de falecer:<br />
Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, Autobiographie (ou récit du Pèlerin), Trad. e anotação de Alain<br />
Guillermou, Paris, 1962.<br />
33 O plano primordial de Santo Inácio de Loyola, que não deixa de ser o gérmen,<br />
o motor-primeiro, o sonho-desejo que conduzirá o grupo <strong>do</strong>s sete conjura<strong>do</strong>s a criar<br />
uma nova ordem no seio da velha cristandade, é expresso no voto origi<strong>na</strong>l e pessoal<br />
de Inácio. Este voto consistia em recuperar a Terra Santa para o cristianismo pela<br />
evangelização devotada junto <strong>do</strong>s muçulmanos e pela reanimação <strong>do</strong> resto de cristãos<br />
aí residentes. Isto até ao extremo, se preciso fosse, de dar a vida pela causa junto <strong>do</strong><br />
Gólgota. Quan<strong>do</strong> Inácio fez, no ano de 1523, a sua peregri<strong>na</strong>ção à Terra Santa, este<br />
projecto de evangelização da Palesti<strong>na</strong> já se revelava temerário. Mais tarde, <strong>na</strong> década<br />
seguinte, tal objectivo tornou-se impossível em virtude da interdição <strong>do</strong> acesso a<br />
Jerusalém, agora sob o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> poder islâmico. Daí que Inácio de Loyola se visse<br />
obriga<strong>do</strong> a por em execução o plano ou ideal alter<strong>na</strong>tivo, isto é, a entrega da vontade<br />
sua e <strong>do</strong>s seus companheiros <strong>na</strong>s mãos <strong>do</strong> Sumo Pontífice para as missões mais urgente<br />
e possíveis da Igreja segun<strong>do</strong> o julgamento e orientação deste. A fundação da<br />
Companhia de Jesus foi inscrita abundantemente pela historiografia antijesuítica num<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 29<br />
e da sua vida de exigência espiritual venceram as hostilidades <strong>do</strong>s seus<br />
críticos e <strong>do</strong>s seus opositores 34 .<br />
vasto ‘plano vaticanista’, já bem desenha<strong>do</strong> pelo ‘cérebro militarista’ <strong>do</strong> fidalgo <strong>do</strong>s<br />
Loyolas. Todavia, olhan<strong>do</strong> o percurso deste grupo concluímos que a opção roma<strong>na</strong><br />
<strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r da Companhia acabou por ser a alter<strong>na</strong>tiva e não a primeira escolha, em<br />
termos <strong>do</strong> sonho fundacio<strong>na</strong>l, mas um ‘expediente subsidiário’, conforme podemos<br />
ver pelos testemunhos <strong>do</strong>s contemporâneos, pela autobiografia de Inácio e pelos registos<br />
escritos de Laynez, Rodrigues, Polanco, etc. De qualquer mo<strong>do</strong>, esta opção<br />
estratégica beneficiou muito mais o futuro da Companhia, libertan<strong>do</strong>-a da região circunscrita<br />
da Palesti<strong>na</strong> abrin<strong>do</strong>-a ao mun<strong>do</strong> inteiro, então em efervescente permutação<br />
de culturas, de abertura de rotas, de possibilidades novas de atingir povos nunca antes<br />
vistos nem fala<strong>do</strong>s pelos Europeus. As vicissitudes históricas da sua implementação<br />
acabaram por conduzir a Ordem i<strong>na</strong>cia<strong>na</strong> a sonhar num plano evangeliza<strong>do</strong>r à medida<br />
<strong>do</strong> universo. Sobre esta problemática ver o capítulo “Papistes et Romains” de Jean<br />
Lacouture, op. cit., pp. 86-102.<br />
34 As obras publicadas sobre Inácio de Loyola dariam para encher uma peque<strong>na</strong><br />
biblioteca especializada. Como acontece, em grande medida, com a sua Companhia<br />
também sobre ele foram escritos uma plêiade considerável de livros com motivações<br />
ideológicas diversas. Um significativo conjunto de obras biográficas sobre<br />
esta figura, estão marcadas pelo combate ideológico contra os Jesuítas. Portanto,<br />
geralmente pouco abo<strong>na</strong>tórias em relação ao percurso existencial <strong>do</strong> seu funda<strong>do</strong>r,<br />
demonizan<strong>do</strong>-os, por vezes, no âmbito da ideologia antijesuítica de mo<strong>do</strong> a atacar<br />
melhor a Companhia de Jesus, começan<strong>do</strong> pelo desgaste da imagem da sua colu<strong>na</strong><br />
fundante. Outras foram escritas para louvar e beatificar a sua vida da parte <strong>do</strong> filojesuitismo.<br />
Note-se também que <strong>na</strong>s diferentes histórias que foram escritas sobre esta<br />
Ordem, é habitualmente reservada uma primeira parte à sua fundação e <strong>na</strong>turalmente<br />
à vida <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> <strong>na</strong>turalmente lida a vida deste pela bitola ideológica com<br />
que é contada a história da instituição por ele fundada. E há a registar ainda algumas<br />
obras, mais nossas contemporâneas, que procuram apresentar a vida <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong>s Jesuítas distancian<strong>do</strong>-se destes tradições ideológicas radicalizadas, e alinhan<strong>do</strong><br />
por uma perspectiva mais crítica. Entre as obras que foram escritas sobre Inácio<br />
de Loyola podemos lembrar aqui algumas a título exemplificativo: Pierre Ques<strong>na</strong>l,<br />
The History of the Wonderful Don Ig<strong>na</strong>tius Loyola de Guipuscoa: founder of the<br />
Jesuits: with an account of the establishment and gouvernment of that powerful order,<br />
Lon<strong>do</strong>n, 1754; Robert Harvey, Ig<strong>na</strong>tius Loyola, a general in the church militant,<br />
Milwaukee, 1936; José Maria Salaverría, Las sombras de Loyola, Madrid, 1911; Georg<br />
Lomer, San Ig<strong>na</strong>cio de Loyola. De erótico a santo. Estu<strong>do</strong> histórico-patográfico,<br />
Madrid, 1923; James Brodrick, Saint-Ig<strong>na</strong>tius Loyola: the Pelgrim years, 1491-1539,<br />
New York, 1956; John Donne, Ig<strong>na</strong>tius his conclave, Oxford, 1969; Cándi<strong>do</strong> de Dal-<br />
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30 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
O <strong>na</strong>scimento de uma Ordem de<br />
contracorrente<br />
Inigo, cognomi<strong>na</strong><strong>do</strong> por ele mesmo <strong>na</strong> sua Autobiografia de “Peregrino”<br />
quan<strong>do</strong> residia em Paris, conseguiu “roubar” à Universidade<br />
desta capital cultural da <strong>Europa</strong> seis segui<strong>do</strong>res que se entregaram ao<br />
seu ideal de estudante-mendigo, exercitan<strong>do</strong> nos tempos livres <strong>do</strong> estu<strong>do</strong><br />
a assistência aos pobres e <strong>do</strong>entes, a pregação e a catequese. Francisco<br />
Xavier, Pedro Favre, Diego Laynez, Alonso Salmeron, Simão<br />
Rodrigues (português e bolseiro <strong>do</strong> rei D. João III), Nicolas Bobadilla,<br />
formaram, sob a direcção de Inácio, o grupo funda<strong>do</strong>r da Companhia<br />
de Jesus. Estes sete estudantes de Paris proferiram, a 15 de Agosto<br />
de 1534, um voto religioso <strong>na</strong> cripta de São Dionísio em Montmartre,<br />
pelo qual prometiam a Deus de “irem a Jerusalém e de lá gastarem as<br />
suas vidas em favor da conversão <strong>do</strong>s muçulmanos e, se não conseguissem<br />
permissão de ficar em Jerusalém, de voltar a Roma e de se porem<br />
às ordens <strong>do</strong> Papa” 35 . Este voto tornou-se emblemático <strong>na</strong> história da<br />
masés, Le Fondateur des Jésuites, Paris, 1984; Léon Marcuse, Ingacio de Loyola, le<br />
dictateur des âmes, Paris, 1936; Mark Rotsaert, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola et les Renouveaux<br />
spiritueles en Castille au début du XV e siècle, Paris, 1988; Tellechea Idigoras, Ig<strong>na</strong>ce<br />
de Loyola, pèlerin de l’absolu, Paris, 1990; Pedro de Leturia, El gentilhombre, Iñigo<br />
Lopez de Loyola en su patria y en su siglo, Montevideu, 1938; Pedro de Rivadeneira,<br />
Vida del Bie<strong>na</strong>ventura<strong>do</strong> Padre Ig<strong>na</strong>cio de Loyola, Madrid, 1900; Hugo Rahner, Inácio<br />
de Loyola, homem da Igreja, Porto, 1955; André Suarés, Portraits sans modèles,<br />
Paris, 1935; Karl Rahner, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, Paris, 1979; Julio Caro Baroja (dir.),<br />
Ig<strong>na</strong>cio de Loyola: Magister artium en París (1528-1535) – Libro de home<strong>na</strong>je de<br />
las universidades del País Vasco y de la Sorbonne a Ig<strong>na</strong>cio de Loyola en el V cente<strong>na</strong>rio<br />
de su <strong>na</strong>scimiento, San Sebastián, 1991; Jean Delpace, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola: les<br />
chemins de la certitude, Paris, 1991; Marjorie O’Rourke Boyle, Loyola’s Acts: The<br />
rhetoric of the self, Berkeley, Los Angeles, 1997.<br />
35 Pedro de Rivadeneira, op. cit., p. 112; e cf. Bertrand Dominique, La politique<br />
de Saint Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, Pref. de Pierre Chaunu, Paris, 1982.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 31<br />
Companhia de Jesus, por este acto ser considera<strong>do</strong> o primeiro momento<br />
funda<strong>do</strong>r da Ordem – a fundação simbólica e oficiosa.<br />
Este grupo funda<strong>do</strong>r esmaga<strong>do</strong>ramente de origem espanhola foi,<br />
entretanto, engrossa<strong>do</strong> com novas adesões até à aprovação oficial da<br />
Companhia seis anos depois. Em 1538, entraram Diogo Hozes e Francisco<br />
Estrada; em 1539, agregam-se António Araoz, Jerónimo Doménech<br />
e Pedro Ribadanera; em 1540, Diego de Egríca. A 3 de Setembro<br />
de 1539, Paulo III aprova viva voce o esboço apresenta<strong>do</strong> pelo grupo<br />
chama<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ‘iniguistas’ para Fórmula <strong>do</strong> instituto que projectavam<br />
fundar 36 . E nessa altura são manda<strong>do</strong>s pelo Papa a diversas partes da<br />
<strong>Europa</strong> em missão. Um ano mais tarde acontece um <strong>do</strong>s factos que se<br />
veio a revelar mais significativo <strong>do</strong> século XVI: Paulo III aprova oficialmente,<br />
a 27 de Setembro de 1540 a Companhia de Jesus pela bula<br />
Regimini Militantis Ecclesiae 37 . Assim <strong>na</strong>sce a Ordem que ousou usar<br />
<strong>na</strong> sua denomi<strong>na</strong>ção, que também não deixou de ser polémica, o nome<br />
<strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Cristianismo – Companhia de Jesus – e trabalhar para a<br />
realizar o objectivo supremo que toma como ideal carismático: Ad majorem<br />
Dei gloriam, que deve imprimir nos seus religiosos a preocupa-<br />
36 Inácio de Loyola tinha apresenta<strong>do</strong> nos inícios <strong>do</strong> Verão de 1539 os pontos<br />
essenciais <strong>do</strong> novo instituto religioso, orde<strong>na</strong><strong>do</strong>s em cinco capítulos, os quais ficaram<br />
conheci<strong>do</strong>s por Fórmula <strong>do</strong> Instituto. Isto apesar da resistência de algumas figuras<br />
da Cúria Pontifícia à admissão de novas ordens religiosas, pois eram de parecer que<br />
já havia ordens a mais, sen<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s necessário renovar as que já existiam. Além<br />
disso apontavam o excesso de novidades que a configuração proposta para o novo<br />
instituto comportava, entenden<strong>do</strong> que a Igreja não poderia permitir tanta inovação,<br />
nomeadamente a de isentar os religiosos i<strong>na</strong>cianos da obrigação <strong>do</strong> coro e de um<br />
hábito específico. Cf. Manuel Pereira Gomes, s.j., Santo Inácio e a Fundação de<br />
Colégios, s.l., 1995, p. 28; e cf. Alain Woodrow, Les Jésuites, Histoire de Pouvoirs,<br />
Paris, 1990.<br />
37 Serafim Leite, s.j., História da Companhia de Jesus no Brasill, tomo I (Século<br />
XVI – o estabelecimento), Lisboa/Rio de Janeiro, 1938, pp. 5 e ss.; James Brodrick,<br />
Origines et Expansion des Jésuites, 2 vols., Paris, 1950; e David J. Mitchell, History<br />
of Jesuits, New York, 1981. Apesar <strong>do</strong>s fortes antagonismos, o Papa Paulo III<br />
aprovou o novo instituto proposto por Inácio de Loyola e seus companheiros, ten<strong>do</strong><br />
si<strong>do</strong> atribuídas ao Pontífice estas palavras de to<strong>na</strong>lidade profética bem justificativas<br />
<strong>do</strong> risco assumi<strong>do</strong>: “digitus Dei hic” (Está aqui a mão de Deus).<br />
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32 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
ção constante de acrescentar a glória de Deus, orientan<strong>do</strong> e justifican<strong>do</strong><br />
toda a sua acção ten<strong>do</strong> como horizonte esta meta 38 .<br />
É este grupo de estudantes notáveis, que se quiseram fazer religiosos,<br />
que vão dar ao Papa Paulo III a mão para colaborar <strong>na</strong> reforma<br />
da Igreja e da própria vida religiosa caída em escandaloso descrédito,<br />
escarnecida pelos seculares e atacada pelos protestantes 39 . Erasmo de<br />
Roterdão, ao la<strong>do</strong> de Martinho Lutero ou de um Rabelais, destaca-se<br />
por tecer as mais duras críticas à vida monástica da época e ao seu formalismo<br />
oco, acusan<strong>do</strong> com a sua autoridade de sábio que “mo<strong>na</strong>chatus<br />
non est pietas” 40 . Era esta fórmula erudita que o povo, <strong>na</strong>s praças, nos<br />
38 Cf. Joseph de Guibert, La Spiritualité de la Compagnie de Jésus, Roma, 1953;<br />
Alain Guilhermou, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola: ‘Pour la plus grande gloire de Dieu’, Paris,<br />
1991; e Idem, Les Jésuites, Paris, 1961.<br />
39 No âmbito <strong>do</strong> movimento cultural <strong>do</strong> Re<strong>na</strong>scimento assiste-se a uma crítica<br />
acérrima ao estilo de vida monástica e mendicante, em paralelismo consequente com<br />
a afirmação <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> homem e a valorização da sua radicação no mun<strong>do</strong> e <strong>na</strong><br />
sua visão optimista da vida civil. A nível europeu alguns intelectuais humanistas<br />
vão sobressair nesta corrente crítica. Podemos lembrar entre as mais significativas,<br />
as críticas de Bracciolini ao estilo mendicante, estrutura a<strong>do</strong>ptada pela maioria <strong>do</strong>s<br />
religiosos <strong>na</strong> Igreja. Francisco Filelfo e Mateo Palmieri tecem louvores à riqueza<br />
desvalorizan<strong>do</strong> o ideal religioso da probreza. Lourenço Valla censura a existência de<br />
congregações regulares como um meio de segregação, e o esta<strong>do</strong> de vida religiosa <strong>na</strong><br />
Igreja como sen<strong>do</strong> antagónico com a lei básica da igualdade vocacio<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s cristãos<br />
pelo baptismo e com a ‘normalidade’ <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> laical. Sobre o Re<strong>na</strong>scimento<br />
ver, entre outras, as obras de Jacob Burckardt, La civilisation de la Re<strong>na</strong>issance en<br />
Italie, Paris, 1958; Ernst Cassier, Individuo e cosmo nella filosofia del Ri<strong>na</strong>scimento,<br />
Florença, 1950; Robert Klein, L’Europe de la Re<strong>na</strong>issance: L’âge de l’Humanisme,<br />
Paris, 1963; e J. Huizinga, Men and ideas: history, the Middle Ages, the Re<strong>na</strong>issance,<br />
New York, 1959.<br />
40 Entre as obras de Erasmo que operam esta crítica purifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> cristianismo,<br />
destacam-se O elogio da loucura (cf. Erasme, L’éloge de la folie, Paris, 1967). A<br />
crítica à vida conventual consig<strong>na</strong>da por este teólogo de Roterdão, chama<strong>do</strong> sábio da<br />
Philosophia Christi, foi assumida também por alguns <strong>do</strong>s espíritos mais avança<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> humanismo <strong>na</strong> modernidade. Em Portugal, conhecem-se alguns intelectuais que<br />
ousaram encetar também esta crítica, apesar da vigilância inquisitorial, influencia<strong>do</strong>s<br />
pelo pensamento erasmiano, sofren<strong>do</strong> depois as consequências numa sociedade<br />
cada vez mais controlada pela teia de terror montada pelo Santo Ofício. Entre eles<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 33<br />
merca<strong>do</strong>s, nos caminhos, nos adros das igrejas, traduzia em zombaria<br />
através de ane<strong>do</strong>tas picantes acerca <strong>do</strong> que debaixo <strong>do</strong> hábito aparentemente<br />
inocente <strong>do</strong> frade se poderia esconder.<br />
Este ambiente não era muito diferente daquele que os Dominicanos<br />
já tinham si<strong>do</strong> constrangi<strong>do</strong>s a suportar no tempo dito áureo <strong>do</strong>s<br />
seus alvores quan<strong>do</strong> São Tomás de Aquino ensi<strong>na</strong>va em Paris. Humberto<br />
Rashdall evoca este ambiente no seu livro sobre As Universidade<br />
da <strong>Europa</strong> <strong>na</strong> Idade Média, ao descrever que “logo que avistavam<br />
um monge, cachos humanos faziam chover sobre ele porcarias e palha<br />
(. . . ). Sobre as cabeças encarapuçadas caíam lama e pedras (. . . ).<br />
Chegaram a lançar flechas sobre um convento que teve de ficar guarda<strong>do</strong><br />
pelas tropas <strong>do</strong> rei noite e dia (. . . ). Os religiosos que, durante o<br />
Inverno de 1255, tentaram mendigar o seu pão no Quartier Latin passaram<br />
horas aflitivas” 41 .<br />
Este tipo de reacção negativa é, com efeito, um facto comum à história<br />
da maioria das Ordens. Tanto mais que pode ser considera<strong>do</strong> um<br />
fenómeno de reacção típica <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de ser e de estar da esfera eclesiástica,<br />
<strong>na</strong> qual as suas instituições são pautadas por um horizonte<br />
jurídico-<strong>do</strong>utri<strong>na</strong>l eminentemente conserva<strong>do</strong>r. O universo eclesiástico<br />
tendeu a desenvolver di<strong>na</strong>mismos de oposição e suspeita a quase tu<strong>do</strong><br />
o que seja novo, e sobretu<strong>do</strong>, neste caso, a tu<strong>do</strong> o que assume algumas<br />
características revolucionárias ou a feição de mudança de fun<strong>do</strong>.<br />
podemos destacar Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Oliveira (c. 1507-c. 1582), que transportou para Portugal<br />
o cinzel crítico de Erasmo, consideran<strong>do</strong> os Frades uma invenção moder<strong>na</strong>,<br />
que não existia no tempo de Jesus e que <strong>na</strong> vida religiosa grassavam maus costumes<br />
muito pouco cristãos, os quais em <strong>na</strong>da abo<strong>na</strong>vam em favor <strong>do</strong> bom nome da Igreja<br />
de Cristo. Cf. Henrique Lopes de Men<strong>do</strong>nça, O Padre Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Oliveira e a sua<br />
obra náutica, Lisboa, 1898, p. 99 e ss.; José Sebastião da Silva Dias, O erasmismo<br />
e a Inquisição em Portugal. Processo de Fr. Valentim da Luz, Coimbra, 1975; e<br />
José Eduar<strong>do</strong> Franco, O mito de Portugal, op. cit., p. 56. E ver as obras clássicas<br />
de Marcel Bataillon, Érasme et l’Espagne, Paris, 1937; de Jean-Claude Margolin,<br />
Érasme, Paris, 1967; e de Marcelino Menéndez Pelayo, História de los Hetero<strong>do</strong>xos<br />
Españoles, Madrid, 1965-1967, pp. 828 e ss.<br />
41 Hastings Rashdall, The universities of Europe in the Middle Ages, New York,<br />
1964, pp. 387-388.<br />
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34 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
A hostilidade tinha-se já verifica<strong>do</strong>, com algum relevo, em relação<br />
ao aparecimento e aprovação das Ordens Mendicantes medievais,<br />
Dominicanos e Franciscanos, enquanto institutos regulares novos adapta<strong>do</strong>s<br />
pela sua inova<strong>do</strong>ra dimensão mendicante, à emergência de uma<br />
fervilante mobilidade social <strong>na</strong> Baixa Idade Média, em resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
incremento <strong>do</strong> comércio e da itinerância que ele suscitou, assim como<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong>s centros urbanos. A configuração mendicante<br />
destas ordens tinha representa<strong>do</strong> um avanço significativo em relação às<br />
ordens tradicio<strong>na</strong>is. Ao trocar a vida “secular” (exiit de saeculo) pela<br />
vida consagrada a Cristo (Deo vota) não realizaram uma ple<strong>na</strong> fuga<br />
mundi, como os monges propriamente ditos. Os mendicantes passaram<br />
a ser irmãos (fratres) que procuravam fugir <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong>”, estan<strong>do</strong><br />
no mun<strong>do</strong>, para acompanhar a realidade existencial <strong>do</strong>s homens com o<br />
fito de convertê-los pelo testemunho e pela palavra, e não já ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong><br />
solidão, longe <strong>do</strong>s dramas <strong>do</strong> quotidiano <strong>do</strong>s homens 42 .<br />
O esforço de adaptação das novas formas de vida regular transportava<br />
em si uma crítica e uma proposta de renovação <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>quismo<br />
tradicio<strong>na</strong>l. Daqui a reacção de antagonismo e de animadversão protagonizada<br />
em geral pelos que são postos em causa. Tanto mais que o<br />
IV Concílio de Latrão (1215) tinha interdito a possibilidade de criação<br />
de Ordens que seguissem novas regras. Dominicanos e Franciscanos<br />
que se vão destacar no protagonismo das primeiras invectivas à Ordem<br />
de Santo Inácio, já tinham também si<strong>do</strong> alvo de críticas pela sua maneira<br />
de viver a vida religiosa, aquan<strong>do</strong> <strong>do</strong> primeiro momento <strong>do</strong> seu<br />
<strong>na</strong>scimento e afirmação no seio da Igreja e da Cristandade europeia.<br />
São ilustrativas <strong>do</strong> antimendicantismo no século XIII as invectivas de<br />
Guilherme de Sant-Amour que faziam <strong>do</strong>s frades mendicantes os per-<br />
42 Para uma visão evolutiva da história <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>quismo ver, por exemplo, as seguintes<br />
obras: Jesus Alvarez Gomes, Historia de la Vida Religiosa, vol. I, Madrid,<br />
1990; Elie Maire, Histoire des Instituts Religieux et Mission<strong>na</strong>ires, Paris, 1930; José<br />
Eduar<strong>do</strong> Franco, “Congregações Religiosas Masculi<strong>na</strong>s”, in Dicionário de História<br />
Religiosa de Portugal, Carlos Moreira Azeve<strong>do</strong> (Dir.), vol. A-C, Mem Martins, 2000,<br />
pp. 482-488.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 35<br />
cursores <strong>do</strong> Anticristo 43 . Esta desig<strong>na</strong>ção virá a ser novamente aplicada<br />
no século XVI aos Jesuítas pelo <strong>do</strong>minicano Melchior Cano, como veremos.<br />
Provavelmente devi<strong>do</strong> a esta imagem <strong>do</strong>s regulares que vigorava<br />
entre o povo, os Jesuítas não quiseram vestir o hábito típico <strong>do</strong>s regulares,<br />
nem barrete, antes preferiram usar a indumentária própria <strong>do</strong> clero<br />
secular 44 .<br />
Mas o esta<strong>do</strong> da própria Igreja não era melhor, a começar<br />
pela Cúria Roma<strong>na</strong>, marcada pelo nepotismo, pela luxúria e pela<br />
corrupção mais descarada 45 . Paulo III, rodean<strong>do</strong>-se para o efeito de<br />
homens eminentes como Jean du Bellay, John Fisher, Gasparro Contarini,<br />
Regi<strong>na</strong>ld Pole, Otto von Truchsen e Marcelo Cervini, mostrou-se<br />
realmente empenha<strong>do</strong> em ensaiar uma renovação. Tanto mais que uma<br />
comissão episcopal e cardi<strong>na</strong>lícia, desig<strong>na</strong>da pelo Papa para fazer uma<br />
avaliação da situação da Igreja em Roma lhe havia apresenta<strong>do</strong> um relatório<br />
pouco anima<strong>do</strong>r, que continha apreciações mais negativas que<br />
as próprias imprecações de Lutero, como se pode facilmente constatar:<br />
“De lá, très saint Père, comme du cheval de Troie, se déversèrent<br />
dans l’Eglise de Dieu une foule de maux et d’abus qui nous<br />
conduisirent dans un état à nous faire désespérer de son salut.<br />
Cette situation est connue jusque chez les infidèles, et c’est pour<br />
cela qu’ils tournent en dérision notre religion et que le nom du<br />
Christ est déshonoré (. . . ). Bienheureux Père, tous les étrangers<br />
se scandalisent, en entrant dans l’église de Saint-Pierre, d’y voir<br />
43 Cf. Guilherme de Saint-Amour, Liber de Antichristo et ejusdum ministris, cita<strong>do</strong><br />
por Daniel J. Boorstin, Os pensa<strong>do</strong>res. A história da tentativa constante <strong>do</strong> Homem<br />
para compreender o seu mun<strong>do</strong>, Lisboa, 1999, pp. 144-145.<br />
44 Mas distintamente <strong>do</strong>s clérigos comuns, os Jesuítas podiam receber a orde<strong>na</strong>ção<br />
sacer<strong>do</strong>tal sem terem à partida qualquer benefício garanti<strong>do</strong>. Cf. António Manuel<br />
Hespanha, História de Portugal Moderno, Lisboa, 1995, p. 113.<br />
45 Para uma boa síntese sobre o esta<strong>do</strong> geral da Igreja Católica neste perío<strong>do</strong> ver<br />
o trabalho de Mário Fois, “A Igreja europeia <strong>na</strong> época da fundação da Companhia<br />
de Jesus”, in A Companhia de Jesus e a missio<strong>na</strong>ção no Oriente, Lisboa, 2000, pp.<br />
15-34.<br />
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36 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
la messe célébrée par certains prêtres ignorants et aux vêtements<br />
liturgiques immondes (. . . ). Cela vaut pour les autres églises.<br />
Les courtisanes vont dans la ville comme des ‘matrones’: elles<br />
circulent dans les coches à mules, escortées en plein jours para<br />
des nobles person<strong>na</strong>ges, des familiers de cardi<strong>na</strong>ux, des clercs.<br />
En aucune autre ville ne se voit un pareil désordre” 46 .<br />
E conclui esta comissão, lançan<strong>do</strong> um repto aflito ao Papa Paulo<br />
III:<br />
“Tu t’es choisi le nom de Paul. Tu imiteras, nous croyons, la<br />
charité de Paul. Il fut élu par prédilection, pour le nom du Christ<br />
parmi les Gentils: nous espérons que tu a été élu pour restaurer<br />
dans nos cœurs et dans nos œuvres le nom du Christ oublié par le<br />
peuple, pour rassembler en un seul troupeau les brebis du Christ<br />
et la vengeance méritée qui est déjà suspendue au-dessus de nos<br />
têtes” 47 .<br />
Era este o esta<strong>do</strong> de espírito que rei<strong>na</strong>va em Roma no tempo de<br />
Paulo III, feito de pessimismo e desilusão, gritan<strong>do</strong> por renovação séria<br />
como único meio de salvar a cabeça da Igreja Católica assim tão<br />
desviada da <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de Cristo.<br />
Apesar deste relatório negro da situação da Igreja <strong>na</strong> primeira metade<br />
<strong>do</strong> século XVI, também há a registar fortes tendências reforma<strong>do</strong>ras<br />
emergentes que fervilhavam no seio da Igreja Católica, como<br />
recorda Mário Fois, pon<strong>do</strong> em contraste <strong>do</strong>is di<strong>na</strong>mismos de si<strong>na</strong>l contrário<br />
que marcavam a vida eclesial <strong>na</strong>quele tempo: “por um la<strong>do</strong>, estão<br />
ainda muito presentes, nesta época, os si<strong>na</strong>is de decadência e de mundanismo;<br />
por outro la<strong>do</strong>, afirmam-se e reforçam-se as tendências reforma<strong>do</strong>ras,<br />
de conteú<strong>do</strong> profundamente religioso, que vão di<strong>na</strong>mizar a<br />
46 Ju<strong>do</strong>cus Le Plat (ed.), Monumentorum ad historiam concilii Tridentini illustrandam.<br />
. . collectio, vol. 2, Louvain, 1781, p. 604<br />
47 Ibidem. Sobre esta problemática ver Hermann Tuchle et alii, “Réforme et contre-<br />
-réforme”, in L. J. Rogier et alii (dir.), Nouvelle Histoire de l’Église, vol. 3, Paris,<br />
1968; André Ravier, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola, op. cit., pp. 35 e ss. Ju<strong>do</strong>cus Le Plat (ed.),<br />
op. cit.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 37<br />
renovação eclesial” 48 . A situação de corrupção e de laxismo moral extremo<br />
despoletou um movimento de crítica e renovação. Mas durante<br />
este perío<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is movimentos chocavam-se, coexistin<strong>do</strong> por vezes<br />
de forma tensa. O afrouxamento da resposta ao apelo de exigência<br />
no senti<strong>do</strong> de imprimir uma renovação da vida eclesial em consonância<br />
com o Evangelho, em especial por parte <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes e da alta<br />
hierarquia da Igreja, inspirava um pessimismo aterra<strong>do</strong>r, mesmo apocalíptico,<br />
quanto à perspectivação <strong>do</strong> futuro da Igreja. Enquanto que o<br />
movimento de renovação incutia alguma esperança <strong>na</strong> revolução efectiva<br />
<strong>do</strong> presente statu quo 49 .<br />
48 Mário Fois, op. cit., p. 15.<br />
49 Cf. Idem, “Il contexto ecclesiastico ed ecclesiale italiano alla <strong>na</strong>scida dei chierici<br />
regolari”, in Achivum Historicae Pontificiae, 27, 1989, pp. 401-418. No quadro<br />
de uma Igreja dita <strong>do</strong> Re<strong>na</strong>scimento (marcada pelo nepotismo mais escandaloso, que<br />
se tinha constituí<strong>do</strong> como sistema <strong>na</strong> Corte Pontifícia e que permitia o acesso às<br />
dignidades eclesiásticas mais elevadas e mais ren<strong>do</strong>sas enconomicamente indivíduos<br />
incompetentes, não vocacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s e moralmente indignos) surgiram, em particular a<br />
partir da década de 20 <strong>do</strong> século XVI, papas que tentaram inverter o sistema e incentivar<br />
algumas reformas. Um caso interessante é o de Clemente VII (1523-1534),<br />
antecessor de Paulo III, que embora fosse um pontífice pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente de perfil<br />
político, procuran<strong>do</strong> grandes soluções para os graves problemas que afectaram a<br />
Igreja Católica no perío<strong>do</strong> da reforma lutera<strong>na</strong>, tentou combater as práticas munda<strong>na</strong>s<br />
<strong>do</strong> Vaticano introduzidas e amplamente difundidas pelo seu primo Leão X. Clemente<br />
VII era um homem de espírito religioso e como cardeal já tinha demonstra<strong>do</strong> algum<br />
zelo cristão ao fundar em Roma, no ano de 1519, a confraria de S. Jerónimo<br />
da Caridade desti<strong>na</strong>da a dar assistência aos forasteiros que residiam <strong>na</strong> capital <strong>do</strong> catolicismo.<br />
Figuras que se vieram a notabilizar no quadro <strong>do</strong> movimento reformista,<br />
como foi o caso de S. Filipe de Néri, foram formadas nesta instituição de assistência<br />
social. Foi também este papa que apoiou grandemente a Companhia <strong>do</strong> Amor Divino,<br />
uma instituição religiosa, criada em 1515 e que teve <strong>na</strong>s suas filheiras arautos<br />
da reforma católica como Caetano Thiene, Gianpietro Carafa e Matteo Giberti. O<br />
mesmo papa projectou a reforma da Ordem <strong>do</strong>s Frades Menores Observantes, oficializou<br />
os Capuchinhos e uma outra ordem chamada <strong>do</strong>s Ermitas de S. Ronual<strong>do</strong>,<br />
fundada por Paulo Giustiniani, bem como duas ordens de clérigos regulares: os Teatinos<br />
e os Bar<strong>na</strong>bitas. No quadro destas aprovações, Clemente VII promoveu a revisão<br />
<strong>do</strong>s critérios de acesso ao sacerdócio no senti<strong>do</strong> de restaurar a dignidade e identidade<br />
origi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> presbitera<strong>do</strong> e da sua missão iminentemente pastoral, abrin<strong>do</strong> caminho<br />
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38 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Vista a partir da evolução <strong>do</strong> catolicismo em geral, o <strong>na</strong>scimento e<br />
peculiaridade da Companhia de Jesus, deve ser situada no quadro da<br />
reforma <strong>do</strong> clero orde<strong>na</strong><strong>do</strong>, ou seja, numa fase de mutação da ideia, da<br />
revisão e potenciação da missão sacer<strong>do</strong>tal <strong>na</strong> vida da Igreja. Mas ao<br />
mesmo tempo no âmbito de um processo de revisão e actualização <strong>do</strong><br />
modelo monástico, que tinha entra<strong>do</strong> em declínio, <strong>na</strong> sua sinonímica<br />
de modelo de actualização e de renovação <strong>do</strong> religioso.<br />
Os religiosos da Companhia de Jesus, apelida<strong>do</strong>s no princípio de<br />
papistissimi devi<strong>do</strong> ao seu voto de obediência ao Papa 50 estatuí<strong>do</strong> <strong>na</strong>s<br />
para o apelo a uma reforma <strong>do</strong> episcopa<strong>do</strong> e <strong>do</strong> cardi<strong>na</strong>lato, que seria mais tarde<br />
consagrada pelo Concílio de Trento. O papa que admitiu a Companhia de Jesus ao<br />
estatuto de ordem religiosa, Paulo III, também se tornou um Papa reforma<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong><br />
a aprovação desta ordem um aspecto dessa adesão à corrente reformista. É curioso<br />
notar a evolução de Paulo III (1534-1549) neste âmbito, que opera uma viragem <strong>na</strong><br />
sua visão e vivência da dignidade eclesiástica. Converteu o seu entendimento tipicamente<br />
re<strong>na</strong>scentista da dignidade cardi<strong>na</strong>lícia no senti<strong>do</strong> de uma visão mais pastoral.<br />
O volte-face dá-se <strong>na</strong> sua vida em 1513, ten<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> até este ano como autêntico<br />
homem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Era diácono concubinário, sen<strong>do</strong>-lhe atribuída a paternidade de<br />
4 filhos. Desde então passou a dedicar-se à sua diocese, elaborou <strong>do</strong>cumentos que<br />
definiam e promoviam a reforma <strong>do</strong> clero e convocou um síno<strong>do</strong> diocesano em 1519.<br />
Só então é que recebeu a orde<strong>na</strong>ção sacer<strong>do</strong>tal e episcopal. Depois como Papa quis<br />
obrigar os clérigos a uma vida mais em conformidade com as exigências <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong><br />
eclesiástico, desde a maneira de vestir até ao zelo pastoral. Decretou proibições<br />
contra a vida munda<strong>na</strong> <strong>do</strong> clero (taber<strong>na</strong>s, jogos, teatros). A sua reforma <strong>do</strong> colégio<br />
cardi<strong>na</strong>lício abriu o caminho à convocação <strong>do</strong> Concílio de Trento, embora seja certo<br />
que não tivesse consegui<strong>do</strong> evitar o favorecimento de alguns casos de nepotismo ao<br />
ter eleva<strong>do</strong> ao cardi<strong>na</strong>lato <strong>do</strong>is netos: Gui<strong>do</strong> Ascanio Sforza di Santa Fiora, filho de<br />
Constança, e Alexandre Farnese, filho de Pier Luigi. Cf. García Villoslada, Raíces<br />
históricas del luteranismo, Madrid, 1976; Mario Fois, “La chiesa gerarchica al tempo<br />
de S. Ig<strong>na</strong>zio”, in Sentire com la Chiesa, Roma, 1980, pp. 9-47.<br />
50 A rígida estrutura inter<strong>na</strong> da Companhia de Jesus e a sua ligação especial de obediência<br />
ao Papa não deixa de ser o resulta<strong>do</strong> de uma longa evolução da vida religiosa<br />
monástica que se vinha operan<strong>do</strong> desde Cluny, tendente a transformar os monges e<br />
frades numa espécie de milícia ao serviço <strong>do</strong> Sumo Pontífice. Sobre a ideia de obediência<br />
<strong>na</strong> Companhia de Jesus ver Manuel Espinosa Pólit, Perfect obedience: Comentary<br />
on the letter on obedience of Saint Ig<strong>na</strong>tius of Loyola, Westminster, 1947. Para<br />
uma concepção actualizada da vivência da obediência pelos Jesuítas ver Karl Rahner,<br />
Discours d’Ig<strong>na</strong>ce de Loyola aux Jésuites d’aujourd’hui, Paris, 1978; e Maurice<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 39<br />
suas Constituições 51 , pretenderam assumir-se como contra-corrrente,<br />
como uma esperança de renovação. O seu arrojo e espírito de iniciativa,<br />
neste <strong>do</strong>mínio, merecer-lhes-á tanto os mais so<strong>na</strong>ntes aplausos, como<br />
as mais verrinosas censuras 52 .<br />
Críticas à <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> Instituto da<br />
Companhia de Jesus<br />
À partida, a feição inova<strong>do</strong>ra desta ordem levantou muitas dúvidas e<br />
suspeitas, especialmente por parte das outras ordens religiosas, quanto<br />
à plausibilidade <strong>do</strong> novo instituto religioso merecer o estatuto de Ordem<br />
em termos canónicos, assim como as prerrogativas jurídicas e privilégios<br />
eclesiásticos próprios das ordens clássicas da Igreja Católica.<br />
Giulioni, “Nuit et lumière de l’obéissance”, in Christus, n. o 7, 1955, pp. 349-368. E<br />
para uma interessante problematização da relação entre obediência e poder ver a tese<br />
de <strong>do</strong>utoramente de J. A. Pereira Monteiro, Poder e obediência. Uma perspectiva,<br />
Lisboa, 1949.<br />
51 Cf. Constitutiones Societatis Jesu lati<strong>na</strong>e et hispanicae cum earum declaratio-<br />
nibus, Madrid, 1892.<br />
52 Para ilustrar de uma forma apotegmática as invectivas polémicas lançadas nos<br />
primeiros anos contra a Companhia de Jesus, é interessante lembrar aqui a síntese <strong>do</strong>s<br />
conteú<strong>do</strong>s das críticas disferidas contra esta Ordem elenca<strong>do</strong>s por L. Estrada meses<br />
depois da morte <strong>do</strong> seu Funda<strong>do</strong>r a fim de elogiar a sua resistência:<br />
“Uns perseguem-nos porque são modernos<br />
outros porque se arrogam o nome de Jesus<br />
outros porque não trazem o hábito de frades<br />
outros porque os vêem muito depressa aproveita<strong>do</strong>s<br />
. . . tu<strong>do</strong> suportava aquele homenzinho de Deus, que tinha paciência”<br />
(Apud Manuel Pereira Gomes, op. cit., p. 30).<br />
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40 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Comenta Sebastião da Silva Dias, reportan<strong>do</strong>-se à polémica influência<br />
erasmia<strong>na</strong> <strong>na</strong> concepção desta nova Ordem, que<br />
“a estrutura e a piedade da Companhia assentavam num ideal<br />
de enlace secularista. Se o pre<strong>do</strong>mínio da oração mental, o senti<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> apostola<strong>do</strong> e a formação activista revelam já uma curiosa<br />
desvalorização <strong>do</strong> formalismo religioso, a orgânica <strong>do</strong> instituto<br />
contém outros indícios não menos significativos de uma preocupação<br />
inversa à <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>sticismo. A suspensão <strong>do</strong> coro, a<br />
simplificação <strong>do</strong> ofício divino e <strong>do</strong> cerimonial litúrgico, o aligeiramento<br />
das penitências corporais, patenteiam o desejo não<br />
de recluir o mun<strong>do</strong> nos conventos, mas de levar os conventos<br />
para o meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” 53 .<br />
Inácio de Loyola inspirou-se nos modelos organizativos centraliza<strong>do</strong>s<br />
típicos da sua época para modelar a sua ordem. A estrutura piramidal<br />
da hierarquização <strong>do</strong> poder <strong>na</strong> Companhia de Jesus é decalca<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> modelo da própria Igreja Católica e, de algum mo<strong>do</strong>, pretende<br />
demarcar-se em relação à crítica protestante das hierarquias fortes e às<br />
suas propostas de comunitarização <strong>do</strong> poder. A hierarquia da Ordem<br />
53 José Sebastião da Silva Dias, Correntes <strong>do</strong> Sentimento Religioso em Portugal<br />
(século XVI a XVIII), tomo I, Coimbra, 1960, p. 169. Os Jesuítas aparecem com uma<br />
estrutura organizacio<strong>na</strong>l que podemos considerar de proto-laica, no quadro da Igreja<br />
Católica, se tivermos em conta o seu modelo facilita<strong>do</strong>r para efeitos de inserção em<br />
ambientes seculares os mais varia<strong>do</strong>s, e a meabilidade que oferece aos membros de<br />
se identificarem com os diferentes mo<strong>do</strong>s de estar e agir em diferentes sociedades e<br />
culturas, <strong>na</strong>turalmente com objectivos proselitistas. Mas tal possibilitava uma quebra,<br />
num primeiro acesso, de barreiras, pela elimi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s si<strong>na</strong>is culturais distintivos que<br />
faziam <strong>do</strong> clericato uma classe à parte e não lhe permitia o acesso fácil a determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />
ambientes. Cumpre aqui recordar que algumas das novidades organizacio<strong>na</strong>is<br />
e discipli<strong>na</strong>res, particularmente a dispensa <strong>do</strong> coro, institucio<strong>na</strong>lizadas pela Companhia<br />
de Jesus, não são propriamente origi<strong>na</strong>is, pois já tinham si<strong>do</strong> ensaiadas com a<br />
criação da primeira ordem <strong>do</strong>s Clérigos Regulares denomi<strong>na</strong>da vulgarmente de Teatinos,<br />
por Gaetano de Thiene (1480-1547) e por Giovanni-Pietro Caraffa (1476-1559),<br />
que obteve a confirmação <strong>do</strong> Papa Clemente VII a 24 de Junho de 1524. Mas devi<strong>do</strong><br />
à fulgurante projecção adquirida pelos Jesuítas estas novidades ganharam mais<br />
visibilidade e suscitaram mais polémica.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 41<br />
de Loyola reproduz e reforça a eclesiologia católica que concebe a hierarquia<br />
como uma instituição de raiz divi<strong>na</strong>, que está acima <strong>do</strong> poder<br />
<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s temporais e das suas intromissões e inspecções. O carácter<br />
vitalício da<strong>do</strong> à nomeação <strong>do</strong> Geral da Ordem ainda veio acentuar<br />
este carácter hierarquista e de aproximação à estrutura-mãe da Igreja,<br />
em que o Pontífice também usufrui <strong>do</strong> direito vitalício pela sua eleição.<br />
Quanto ao perfil militar que muitos historia<strong>do</strong>res apontaram como uma<br />
aspecto característico desta nova ordem fundada por um ex-oficial <strong>do</strong><br />
exército espanhol e bem patente <strong>na</strong> utilização de terminologia típica das<br />
sociedades castrenses, deve ser compreendi<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> em consideração<br />
a formação e experiência militar <strong>do</strong> Funda<strong>do</strong>r, assim como no quadro<br />
da mentalidade de pen<strong>do</strong>r cruzadística que ainda estava subjacente às<br />
lutas religiosas desenvolvidas <strong>na</strong> época 54 .<br />
De qualquer mo<strong>do</strong>, o espírito reformista que a Companhia de Jesus,<br />
em grande medida encarnou ao la<strong>do</strong> das instituições católicas que<br />
foram surgin<strong>do</strong> com o mesmo intuito, representou, no plano da Contra-<br />
-Reforma, aquilo que Eduar<strong>do</strong> Lourenço denominou de “Revolução<br />
i<strong>na</strong>cia<strong>na</strong>”. Esta revolução era caracterizada pelo pragmatismo missi-<br />
54 Cf. Dauril Alden, The making of an enterprise. The Society of Jesus in Portugal,<br />
its Empire, and Beyond (1540-1750), Stanford, 1996, pp. 8-10; e Teotónio de Souza,<br />
“Free<strong>do</strong>m for service. Individually guided retreats”, in Ignis, vol. 16, n. o 101, 1987.<br />
A organização fortemente centralizada da Ordem de Loyola que encerra um poder<br />
ao mesmo tempo monárquico e democrático, orde<strong>na</strong>va-se essencialmente em função<br />
da realização ágil e eficaz <strong>do</strong>s seus objectivos, como comenta Adrien Demoustier:<br />
“Mais cette centralisation est, selon le modèle theorique que dessinent les diverses<br />
réglementations, clairement or<strong>do</strong>nnée à la constitution d’un cadre où chaque jésuite<br />
puisse travailler selon des directives qui lui evident d’avoir à tout inventer dans chaque<br />
situation. Un telle codification de l’experience antèrieure était nécessaire pour faire<br />
face au travail considerable dû a la multiplication rapide des établissements” (“La<br />
distinction des fonctions et l’exercice du pouvoir selon les règles de la Compagnie de<br />
Jésus”, in Les Jésuites à la Re<strong>na</strong>issance. Système éducatif et production du savoir,<br />
Paris, 1995, p. 31). Hercule Rasiel da Silva tentan<strong>do</strong> classificar a organização centralizada<br />
assente <strong>na</strong> autoridade pessoal <strong>do</strong> Geral e no princípio da obediência absoluta,<br />
perinde ac cadaver, apelida pela primeira vez a Companhia de Jesus como sen<strong>do</strong> a<br />
“Mo<strong>na</strong>rquia <strong>do</strong>s Iniguistas”, porque fundada por Inigo de Loyola (cf. Hercule Rasiel<br />
da Silva, Histoire de l’admirable Don Inigo de Guipuzcoa, La Haye, 1736).<br />
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42 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
onário de carácter proselitista, em que os meios mais controversos justificavam<br />
a prossecução <strong>do</strong>s fins transcendentes. Aqui os projectos e<br />
a vontade huma<strong>na</strong> concitava-se numa simbiose perfeita com a vontade<br />
divi<strong>na</strong>, que tu<strong>do</strong> unificava e explicava 55 .<br />
Assim sen<strong>do</strong>, a criação da Companhia de Jesus personifica, por<br />
uma la<strong>do</strong>, a Reforma Católica e, por outro, a cultura re<strong>na</strong>scentista 56 .<br />
Distancian<strong>do</strong>-se das ordens tradicio<strong>na</strong>is, a nova estrutura e orde<strong>na</strong>mento<br />
constitucio<strong>na</strong>l da Ordem i<strong>na</strong>cia<strong>na</strong> não constitui propriamente<br />
uma ruptura com o mo<strong>na</strong>quismo clássico. Apresenta-se antes como<br />
uma tentativa de síntese entre a tradição monástica e as novas correntes<br />
de espiritualidade e de reforma eclesiástica emergentes <strong>na</strong> modernidade.<br />
Neste esforço de síntese entre a tradição, a inovação e a reformação,<br />
os Jesuítas desenvolveram uma nova piedade perfilada para<br />
a acção. A sua reflexão teológico-antropológica professava uma valorização<br />
<strong>do</strong> indivíduo e da sua liberdade, <strong>do</strong> seu espírito crítico e da<br />
possibilidade <strong>do</strong> homem se capacitar e se aperfeiçoar pela aquisição de<br />
saber e de técnicas 57 .<br />
A concepção de vida religiosa subjacente a esta organização e regra<br />
de funcio<strong>na</strong>mento de feição mais maleável (o que não veio a ser, como<br />
muitos pensaram, mais vulnerável, antes pelo contrário), orientou-se<br />
bastante em ordem a dar resposta aos novos desafios missionários decorrentes<br />
<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> processo classicamente de “descompartimentação<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” 58 . Este processo de longo alcance, efectua<strong>do</strong> <strong>na</strong> sequên-<br />
55 Cf. Eduar<strong>do</strong> Lourenço, “Portugal e os Jesuítas”, in Oceanos, n. o 12, Lisboa,<br />
1992, p. 47.<br />
56 Maria de Deus Beites Manso, A Companhia de Jesus <strong>na</strong> Índia: 1542-1622.<br />
Aspectos da sua acção missionária e cultural, vol. I, Évora, 1999, p. 78.<br />
57 O espírito de aventura marcou a acção <strong>do</strong>s Jesuítas desde a sua fundação. O<br />
desejo intenso de ousar ir mais longe, de contactar povos e culturas diferentes de<br />
qualquer parte da terra, especialmente de regiões longínquas, de transpor fronteiras<br />
tradicio<strong>na</strong>lmente difíceis de contor<strong>na</strong>r, por razões civilizacio<strong>na</strong>is e políticas, expressa<br />
bem o modelo de homem re<strong>na</strong>scentista idealiza<strong>do</strong> pela cultura humanista que os missionários<br />
jesuítas souberam muito bem encar<strong>na</strong>r.<br />
58 Os Descobrimentos encetaram um processo histórico que a partir <strong>do</strong> dealbar da<br />
época moder<strong>na</strong> se veio a revelar contínuo e em crescen<strong>do</strong> até aos nossos dias, o pro-<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 43<br />
cia das viagens marítimas <strong>do</strong>s Portugueses e Espanhóis, no século XV e<br />
XVI, teve como efeito, apontan<strong>do</strong> para uma perspectiva de longo prazo,<br />
o que Ber<strong>na</strong>rd Vincent denominou sugestivamente o desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> processo de “unification du Monde” 59 , neste perío<strong>do</strong>, que podemos<br />
chamar da proto-globalização.<br />
De facto, a Companhia de Jesus representou um avanço, em diversos<br />
aspectos, no seu esforço de actualização <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>quismo tradicio<strong>na</strong>l<br />
60 . Superava, com vantagem, as dificuldades decorrentes de um<br />
certo imobilismo das estruturas canónicas das ordens mendicantes e<br />
mais ainda das ordens mo<strong>na</strong>cais, as quais estavam condicio<strong>na</strong>das por<br />
uma série de obrigações comunitárias, rituais e hierárquicas que impediam<br />
uma resposta rápida (e até mais criativa) às exigências da nova<br />
evangelização de amplitude planetária. Os novos desafios para o proselitismo<br />
cristão obrigavam os missionários a posicio<strong>na</strong>rem-se em várias<br />
frentes, em meios culturais tão diversos e diante de povos e territórios<br />
cesso denomi<strong>na</strong><strong>do</strong> por alguns historia<strong>do</strong>res, primeiro por Pierre Chaunu e depois por<br />
Pierre Léon, pela terminologia que se tornou clássica da “Descompartimentação <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>” (Cf. Pierre Léon, História e económica e social <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, vol. 1, Lisboa,<br />
1981, pp. 11-12). O historia<strong>do</strong>r da missio<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> Japão, Oliveira e Costa, trabalhan<strong>do</strong><br />
muito com o conceito que esta terminologia encerra advoga que esta é “uma<br />
ideia-chave para compreender o verdadeiro enquadramento e importância da expansão<br />
portuguesa quatrocentista e quinhentista no contexto da história universal. Com<br />
efeito, as civilizações fechadas sobre si próprias, que em muitos casos tinham evoluí<strong>do</strong><br />
até então completamente isola<strong>do</strong>s, começaram a contactar gradualmente umas<br />
com as outras até chegar aos sistemas de relações inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is <strong>do</strong>s nossos dias, que<br />
desig<strong>na</strong>mos comummente por aldeia global”. J. Paulo A. Oliveira e Costa, O Cristianismo<br />
no Japão e o Episcopa<strong>do</strong> de D. Luís Cerqueira, Dissertação de <strong>do</strong>utoramento<br />
apresentada à Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 3. Ver também os<br />
estu<strong>do</strong>s de Alain Milhou, “Découvertes et christianisation loitaine”, in HC, VII, pp.<br />
521-616; e o estu<strong>do</strong> excelente de Luís Filipe Barreto, Portugal, mensageiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
re<strong>na</strong>scentista. Problemas da cultura <strong>do</strong>s Descobrimentos, Lisboa, 1989.<br />
59 Ber<strong>na</strong>rd Vincent, 1492. L’année admirable, s.l., 1996, p. 149; e Idem, “Les univers<br />
des Gama e des Colomb”, in Arquivos <strong>do</strong> Centro Cultural Calouste Gulbenkian,<br />
Lisboa-Paris, XXXIX, 2000, pp. 3-8.<br />
60 Para uma visão evolutiva das Ordens religiosas ver v.g. Jesus Alvarez Gomes,<br />
Historia de la vida religiosa, 3 vols., Madrid, 1990.<br />
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44 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
tão distantes.<br />
Não obstante, esta nova estrutura religiosa não se caracteriza tanto<br />
pela revolução <strong>do</strong> ideário de vida religiosa tradicio<strong>na</strong>l da Igreja, em termos<br />
teóricos, como <strong>na</strong> mudança da forma de estar, de se organizar e de<br />
viver esse compromisso radical com Cristo e com o seu Evangelho <strong>na</strong>s<br />
contingências da história e <strong>do</strong> tempo, pois a aparência revolucionária<br />
da Companhia de Jesus equacio<strong>na</strong>-se fundamentalmente em função de<br />
uma orientação práxica. O que nem sempre foi compreendi<strong>do</strong> como tal,<br />
mas foi visto antes, por alguns sectores da Igreja, com uma perversão<br />
ou uma deturpação da vida regular tradicio<strong>na</strong>l cristã:<br />
“A feição nova, quase revolucionária, da Companhia de Jesus<br />
chocou os intelectuais da escola monástica tanto em Portugal<br />
com no estrangeiro (. . . ). Os seus filia<strong>do</strong>s foram alvo de campanhas<br />
e perseguições que se reflectiram no próprio processo de<br />
aprovação <strong>do</strong> instituto. As suas estruturas assentavam numa base<br />
activista e positiva. É deliberadamente uma piedade para a acção,<br />
uma piedade para a vida. Já se lhe chamou ‘uma espiritualidade<br />
<strong>do</strong> esforço’ – e não é esse, decerto, o seu traço menos saliente.<br />
Tal como a orgânica da Companhia amalgamou os sectores<br />
clássicos <strong>do</strong> mo<strong>na</strong>quismo com as tendências <strong>do</strong>s institutos modernos,<br />
de mo<strong>do</strong> a tor<strong>na</strong>r viável a assunção cristã da sociedade<br />
civil, também a piedade i<strong>na</strong>cia<strong>na</strong> supera as contradições <strong>do</strong> formalismo<br />
religioso e <strong>do</strong> idealismo erasmiano e greco-germânico,<br />
dirigin<strong>do</strong>-se imediatamente à formação <strong>do</strong>s homens chama<strong>do</strong>s a<br />
viver no coração da vida” 61 .<br />
No quadro institucio<strong>na</strong>l da Companhia, a vivência religiosa assente<br />
nos compromissos deriva<strong>do</strong>s da profissão <strong>do</strong>s votos e da prática da sua<br />
espiritualidade não são encara<strong>do</strong>s como um fim em si mesmo, mas<br />
como um meio, o sustentáculo, a força mobiliza<strong>do</strong>ra e motiva<strong>do</strong>ra para<br />
apressar e tor<strong>na</strong>r eficiente a realização <strong>do</strong> seu escopo de transformação<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Este foi o ideal que lançou um grupo cada vez mais numeroso<br />
de homens <strong>na</strong> reeducação cristã da velha cristandade europeia e<br />
61 José Sebastião da Silva Dias, Correntes, op. cit., p. 170.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 45<br />
<strong>na</strong> conversão <strong>do</strong>s povos que ignoravam a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de Cristo, operadas<br />
ao ritmo das viagens de exploração marítima e comercial 62 .<br />
O sucesso expansionista da Companhia de Jesus enquanto ordem<br />
religiosa nova, explica-se, em parte, <strong>na</strong> linha <strong>do</strong> que já sugeriu a análise<br />
de Silva Dias, pela capacidade que teve de associar a visibilidade<br />
social de um enorme prestígio ao nível da santidade e <strong>do</strong> heroísmo,<br />
à modernidade cultural, integran<strong>do</strong>-se de forma empenhada no movimento<br />
de restauração católica, e acima de tu<strong>do</strong> pelo desenvolvimento<br />
e difusão de uma espiritualidade adaptada aos novos condicio<strong>na</strong>lismos<br />
da sociedade 63 .<br />
Percursores <strong>do</strong> mito jesuíta a nível<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />
A acção e o mo<strong>do</strong> de ser e estar <strong>do</strong>s Padres da Companhia vão rodeá-<br />
-los de admira<strong>do</strong>res incondicio<strong>na</strong>is e de benfeitores devota<strong>do</strong>s, que eles<br />
procuram cativar e acarinhar nos centros mais influentes <strong>do</strong> poder. A<br />
Companhia de Jesus empenhar-se-á, empregan<strong>do</strong> meios avulta<strong>do</strong>s, em<br />
publicitar a sua acção em particular junto das elites e centros políticos,<br />
culturais e religiosos da <strong>Europa</strong>, publican<strong>do</strong> os seus relatórios missionários,<br />
as suas cartas, promoven<strong>do</strong> a beatificação e reconhecimento <strong>do</strong>s<br />
seus santos e mártires ao mais alto nível junto das cúpulas eclesiásticas.<br />
Como ordem nova que era e, portanto, necessitada de uma afirmação<br />
efectiva no seio da própria Igreja e das sociedades onde desenvolvia<br />
a sua acção, não bastava trabalhar denodadamente nos territórios de<br />
missão ou nos seus colégios, ou angariar cada vez mais candidatos.<br />
62 Sobre História <strong>do</strong>s Descobrimento Portugueses ver v.g. Joel Serrão; A. H. Oliveira<br />
Marques, Nova História da Expansão Portuguesa, vol. VI, Lisboa, 1992.<br />
63 José Sebastião da Silva Dias, Correntes. . . , op. cit., tomo I, p. 641.<br />
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46 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
O investimento <strong>na</strong> propaganda para formar uma opinião social, em<br />
geral, e das elites <strong>do</strong> poder, em particular, favorável à sua causa e ao<br />
seu mo<strong>do</strong> de actuação tornou-se para a Companhia uma questão vital,<br />
pois a seguir à sua aprovação eclesiástica precisou de provar o que valia<br />
e de ser reconhecida e protegida como tal. Tanto mais que os seus<br />
inimigos, como o fizeram desde a sua formação uteri<strong>na</strong>, nunca mais lhe<br />
deixaram de ladrar à porta, e cada vez mais intensamente. Estas operações<br />
de promoção e de produção de imagem, te<strong>na</strong>zmente levadas a<br />
cabo, registaram, no Outono de 1640, um momento exponencial com a<br />
publicação em Antuérpia de um enorme in-fólio encima<strong>do</strong> com o título<br />
Imago primi saeculi societatis Jesu (Reflexo ou imagem <strong>do</strong> primeiro<br />
século da Sociedade de Jesus) 64 . Esta obra-prima tipográfica <strong>do</strong> editor<br />
Plantin (“ex offici<strong>na</strong> Plantinia<strong>na</strong> B. Moreti), editada sob a direcção <strong>do</strong><br />
Padre Bolland 65 , historia<strong>do</strong>r da Companhia e avatar da escola <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s<br />
‘bolandistas’, constitui uma autêntica celebração <strong>do</strong>s primeiros<br />
cem anos da Ordem, que conta a história <strong>do</strong>s Jesuítas como ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />
uma epopeia ao serviço <strong>do</strong> Evangelho, com laivos de algum triunfalismo<br />
66 .<br />
Este esforço de publicitação e de construção de uma imagem, que<br />
tinha como desti<strong>na</strong>tários um público admira<strong>do</strong>r que tinha si<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong><br />
e amplia<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s anos, justifica-se em boa medida pela<br />
necessidade de contrami<strong>na</strong>r o movimento cada vez maior <strong>do</strong>s seus críticos,<br />
mesmo de inimigos viscerais, que iam surgin<strong>do</strong> um pouco por<br />
to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong>.<br />
Logo a acompanhar os primeiros passos da Ordem, deparamo-nos<br />
com a oposição combativa contra o grupo funda<strong>do</strong>r e o seu estilo de<br />
64 Imago primi saeculi societatis Jesu a provincia Flandro-Belgica ejusdem Societatis<br />
representata, Antuérpia, 1640. Ver também outras obras <strong>do</strong> mesmo teor, como<br />
a de Pierre Aubert, Le mercure jesuit ou recueil de pieces concer<strong>na</strong>nt le progrés des<br />
Jesuites leurs ecrits & differents, Geneve, 1626-1630.<br />
65 E com a colaboração de Tolle<strong>na</strong>rio e de Henschenio.<br />
66 Cf. Marc Fumaroli, Baroque et classicisme: l’imago primi seculi (1640) et ses<br />
adversaires, Louvain, Louvain-la-neuve, 1986; e Francois Ribadeau Dumas, Grandeur<br />
et misère des Jésuites, Paris, 1994.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 47<br />
vida por parte de Agostinho Mai<strong>na</strong>rd 67 e <strong>do</strong>s seus partidários espanhóis<br />
em Roma, com as disputas <strong>do</strong> cardeal Ghinueci e <strong>do</strong>s seus apanigua<strong>do</strong>s<br />
das Cúria Roma<strong>na</strong>. A aprovação da Companhia de Jesus pela<br />
Santa Sé, apesar de ter si<strong>do</strong> um processo célere, tal não significa que tenha<br />
si<strong>do</strong> pacífico. Entre os cardeais se havia apoiantes incondicio<strong>na</strong>is<br />
como Contarini, não deixou de causar estron<strong>do</strong> o grupo de contraditores.<br />
Ghinueci, que tinha levanta<strong>do</strong> problemas inicialmente, impôs<br />
como condição para dar o seu voto favorável a introdução de alterações<br />
<strong>na</strong> Summa estatutária (Prima Societatis Jesu instituti summa, elaborada<br />
por Inácio, Fabvre e Codure entre Julho e Agosto de 1539) proposta<br />
para a nova Ordem, que serviria de base para a bula de aprovação. A<br />
67 Este prega<strong>do</strong>r que fazia lembrar Lutero, não tanto <strong>na</strong> crítica aos costumes laxistas<br />
e imorais <strong>do</strong> papa<strong>do</strong>, mas <strong>na</strong> acentuação teológica <strong>do</strong> papel da justificação pela<br />
Graça em detrimento <strong>do</strong> valor sublinha<strong>do</strong> catolicamente das obras, tinha apoiantes<br />
devota<strong>do</strong>s, em que se destacava um grupo de espanhóis de alta estirpe. Este grupo<br />
que conhecia bem o percurso de Inácio de Loyola, propalou boatos entre o povo de<br />
Roma e as elites eclesiásticas que este grupelho de “<strong>do</strong>utores parisienses” era constituí<strong>do</strong><br />
por bandi<strong>do</strong>s, charlatões, cadastra<strong>do</strong>s, e que o seu líder tinha si<strong>do</strong> intima<strong>do</strong> pela<br />
Inquisição e pelas autoridades seculares, sen<strong>do</strong> expulso e repeli<strong>do</strong> de Alcalá, Paris e<br />
Veneza. No fun<strong>do</strong>, estes opositores tentaram inculcar a imagem de que estes lobos<br />
disfarça<strong>do</strong>s de cordeiros eram heréticos e subvertores da Igreja. Foi de tal mo<strong>do</strong> violenta<br />
a campanha promovida por estes opositores espanhóis que a opinião pública<br />
roma<strong>na</strong> chegou a exigir que o grupo <strong>do</strong>s iniguista fosse queima<strong>do</strong> em auto-de-fé. O<br />
próprio Inácio de Loyola testemunha a hostilidade que representou este afrontamento<br />
da população roma<strong>na</strong> que o fazia também recordar as tribulações passadas desde a<br />
sua conversão: “Durante oito meses, sofremos a mais rija contradição ou perseguição<br />
que nunca em nossa vida passámos. Não quero dizer que nos tenham maltra<strong>do</strong> em<br />
nossas pessoas ou citan<strong>do</strong>-nos a juízo ou de alguma maneira, mas espalhan<strong>do</strong> boatos<br />
pela multidão e chaman<strong>do</strong>-nos nomes i<strong>na</strong>uditos, nos tor<strong>na</strong>vam suspeitos e odiosos ao<br />
povo e levantavam grande escândalo” (Carta de 19 de Dezembro de 1538, in Monumenta<br />
Ig<strong>na</strong>tia<strong>na</strong> ex autographis vel ex antiquioribus exemplis collecta, Series prima<br />
– Epistolae et Instructiones, vol. I, Madrid, 1903-1911, p. 137). Esta guerra polémica<br />
desencadeada da parte <strong>do</strong> Pe. Mai<strong>na</strong>rd resultou <strong>do</strong> facto <strong>do</strong>s companheiros de Inácio<br />
terem teci<strong>do</strong> algumas críticas em torno <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>utrinário da sua parenética.<br />
Esta contenda em torno da teologia herética patente nos sermões <strong>do</strong> Pe. Mai<strong>na</strong>rd<br />
acabou por ser dirimida a favor <strong>do</strong>s Jesuítas por parecer da<strong>do</strong> em foro judicial e confirma<strong>do</strong><br />
pelo Papa Paulo III.<br />
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48 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
facção mais radical liderada pelo cardeal Giudiccioni opôs-se categoricamente<br />
a esta pretendida instituição de uma ordem nova, devi<strong>do</strong> à sua<br />
opinião desfavorável em relação ao papel das ordens <strong>na</strong> Igreja. Este<br />
cardeal estava convenci<strong>do</strong>, de facto, de que a maioria das vicissitudes e<br />
problemas que enfermavam a Igreja Católica decorriam da proliferação<br />
de ordens religiosas 68 . Não obstante estas oponências, a ordem acabou<br />
por ser aprovada de acor<strong>do</strong> com o desejo <strong>do</strong>s seus funda<strong>do</strong>res, e talvez<br />
não foi de somenos importância no debelar das oposições inter<strong>na</strong>s da<br />
Cúria, o apoio de figuras poderosas como D. João III de Portugal, <strong>do</strong><br />
senhor feudal, Hercule d’Este, e de Margarida de Áustria, chamada a<br />
Madame, casada com Ottavio Farnese, neto <strong>do</strong> Papa 69 .<br />
Mas com mais expressão e de maior repercussão foram as invectivas<br />
e a acção combativa de Melchior Cano 70 , iminente teólogo <strong>do</strong>mini-<br />
68 Havia, desde há muito tempo, uma corrente de hostilidade ao <strong>na</strong>scimento de<br />
novas ordens religiosas <strong>na</strong> Igreja. O que é inédito no <strong>antijesuitismo</strong>, como já referimos,<br />
e que o diferencia, por exemplo, <strong>do</strong> efémero anti-franciscanismo ou <strong>do</strong> anti-<br />
-<strong>do</strong>micanismo (este não tão efémero em razão da ligação <strong>do</strong>s Dominicanos à Inquisição)<br />
é a sua intensidade e persistência no tempo, assim como a dimensão e amplitude<br />
<strong>do</strong> movimento cultural que ele gera. Apesar desta forte corrente de oposição à fundação<br />
de novas ordens radicada <strong>na</strong> Santa Sé, foram criadas e aprovadas, entre 1524 e<br />
1621, oito novas ordens de clérigos regulares.<br />
69 Cf. Jean Lacouture, op. cit., vol. 1, pp. 99-100.<br />
70 Este professor de Salamanca procurou fazer com que os Jesuítas fossem cúmplices<br />
<strong>do</strong> iluminismo místico que grassava <strong>na</strong> Península Ibérica. A opinião de Cano<br />
contra os Jesuítas subiu em crescen<strong>do</strong> desde 1542, atingin<strong>do</strong> o grau mais acentua<strong>do</strong><br />
em 1555. Quan<strong>do</strong> escreve a sua obra De locis theologicis não deixa de referir-se-lhes<br />
indirectamente, ao falar das “pessoas que, manejan<strong>do</strong> e citan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os dias Baptista<br />
de Crema, Henrique Herp, João Tulero e outros da mesma farinha, não percebem os<br />
seus erros, o seu espírito e a sua intenção” (Melchior Cano, De locis theologicis, Salamanca,<br />
1563, vol. I, cap. 10, p. 442; cf. Idem, Trata<strong>do</strong> de la victoria de si mesmo<br />
y ansi mismo u<strong>na</strong> institucion de fray Domingo de Sito a loor del nombre de Dios,<br />
Tole<strong>do</strong>, 1551; e Juan Belda Plans, Los lugares teologicos de Melchior Cano en los<br />
comentarios a la ‘Suma’, Pamplo<strong>na</strong>, 1982).<br />
Devemos, todavia, notar que a hostilidade de Frei Cano contra os Jesuítas não é<br />
uma questão meramente pessoal, mas reflecte o ambiente que vigorava no meio inquisitorial<br />
espanhol, como nos meios conserva<strong>do</strong>res de Roma. Os alertas em relação<br />
à Companhia de Jesus podem ser detecta<strong>do</strong>s mesmo no círculo da corte de Carlos V,<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 49<br />
cano, que no Concílio de Trento e em Salamanca se tornou a primeira<br />
grande face da oposição aos Jesuítas, combaten<strong>do</strong>-os sem descanso. As<br />
suas apreciações, ou melhor, as suas depreciações que atingiram foros<br />
proféticos, vão ser cita<strong>do</strong>s e recita<strong>do</strong>s pelos antijesuítas ao longo de<br />
mais de três séculos. Por isso, este prela<strong>do</strong> espanhol deve ser conta<strong>do</strong><br />
como um <strong>do</strong>s primeiros, senão mesmo o primeiro grande ideólogo <strong>do</strong><br />
<strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong>scente 71 .<br />
A Companhia tinha entra<strong>do</strong> em Espanha através de uma carta de<br />
apresentação <strong>do</strong> soberano português, no dia 17 de Março de 1545, levada<br />
à corte de Filipe II pelos Jesuítas António Araoz e Pedro Fabre.<br />
Nesta altura já pululava muita confusão a respeito da denomi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s<br />
Padres Jesuítas e da <strong>na</strong>tureza da sua ordem. Contava o Pe. Araoz que<br />
“alguns nos chamam os iniguistas, outros papistas, outros apóstolos,<br />
outros teatinos e reforma<strong>do</strong>s” 72 . Mas mais grave <strong>do</strong> que esta confusão<br />
foi o embate crítico que algumas perso<strong>na</strong>lidades célebres protagonizaram.<br />
Embora os Jesuítas tivessem angaria<strong>do</strong> a simpatia de importantes<br />
perso<strong>na</strong>lidades da ce<strong>na</strong> sociopolítica <strong>do</strong> tempo, como foi o caso, desde<br />
logo, <strong>do</strong> duque de Gandia, os opositores que se levantam contra eles<br />
não foram de menos peso, como foi o caso de Juan Martinez Siliceo,<br />
recém-nomea<strong>do</strong> arcebispo de Tole<strong>do</strong> e Primaz de Espanha, que desconfiava<br />
destes apóstolos, chegan<strong>do</strong> ao ponto de qualificá-los de heréticos<br />
e de emitir uma proibição que os impedia de pregar e administrar os<br />
sacramentos <strong>na</strong> sua diocese.<br />
Em Espanha, como um pouco por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong>, os Padres da Companhia,<br />
encontram tanto os seus melhores recomenda<strong>do</strong>res como os<br />
seus mais apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong>s e radicais opositores. Por exemplo, se em Sa-<br />
não faltan<strong>do</strong> prega<strong>do</strong>res que apodassem os Jesuítas de inova<strong>do</strong>res perigosos e hipócritas<br />
que iriam ter o mesmo destino <strong>do</strong>s hereges alemães (cf. Caballero, Historia<br />
de Carlos V, pp. 830-833). Boehmer refere <strong>na</strong> sua história <strong>do</strong>s Jesuítas que “trois<br />
puissances s’opposaient à la marche victorieuse des Jésuites: la royauté espagnole, le<br />
haute clergé, les Dominicains” (H. Boehmer, Les Jésuites, Introd. e notes par Gabriel<br />
Menod, Paris, 1910, p. 87).<br />
71 Cf. Jean Lacouture, op. cit., pp. 122-123 e 195.<br />
72 Apud António Astrain, op. cit., tomo II, pp. 247-248.<br />
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50 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
ragoça, receberam o apoio sincero <strong>do</strong> prior <strong>do</strong>s Dominicanos, tiveram<br />
como críticos mais acérrimos uma série de religiosos de hábito carmelita,<br />
franciscano e agostinho, acrescen<strong>do</strong> ainda alguns membros <strong>do</strong><br />
clero secular.<br />
Mas foi em Salamanca que os Jesuítas sofreram o pior revés até<br />
então experimenta<strong>do</strong>. O cardeal Francisco de Men<strong>do</strong>nza, Bispo da Cúria,<br />
insistiu muito com o funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Jesuítas para que promovesse a<br />
abertura de um colégio da Companhia junto da mais antiga universidade<br />
de Espanha. Foi precisamente aqui onde os educa<strong>do</strong>res jesuítas<br />
foram mais mal recebi<strong>do</strong>s em toda a Península Ibérica, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> a<br />
oposição liderada por Melchior Cano que alimentava a convicção de<br />
que estes auto-denomi<strong>na</strong><strong>do</strong>s companheiros de Jesus eram sim os verdadeiros<br />
percursores <strong>do</strong> Anticristo. Este teólogo <strong>do</strong>minicano lançou a<br />
suspeita sobre o comportamento sócio-pastoral <strong>do</strong>s iniguistas, duvi<strong>do</strong>u<br />
da autenticidade <strong>do</strong> seu Instituto enquanto ordem religiosa, questionou<br />
severamente a orto<strong>do</strong>xia da sua <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>, como já tinha feito em<br />
Trento atacan<strong>do</strong> Laynez 73 . Frei Cano pregou <strong>na</strong> Quaresma de 1548 um<br />
virulento sermão de sabor apocalíptico no púlpito da universidade. Temen<strong>do</strong>,<br />
de forma delirante, a aproximação <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s tempos, elege<br />
como uma das pragas da Cristandade a visão curta de alguns prela<strong>do</strong>s<br />
que com o intuito mesquinho de agradar a algumas almas pie<strong>do</strong>sas<br />
davam a sua caução para o estabelecimento de novas ordens que não<br />
observam normas rígidas à maneira tradicio<strong>na</strong>l. E concretiza, visan<strong>do</strong><br />
directamente o girofilismo <strong>do</strong>s Jesuítas, vituperan<strong>do</strong> as ordens, cujos<br />
membros andam para a frente e para trás <strong>na</strong>s ruas como qualquer pessoa.<br />
Ordens que albergam pessoas relaxadas, que não trabalham, que<br />
não são intransigentes, que não procuram a mortificação <strong>do</strong> corpo, que<br />
procuram permissão para dizerem as suas orações à margem <strong>do</strong> Breviário<br />
Romano 74 . Acrescenta a estas invectivas a acusação de hipocrisia e<br />
lança um aviso profético, em que afirma condicio<strong>na</strong>lmente que se es-<br />
73 Diogo Laynez participou como perito no Concílio de Trento entre Agosto de<br />
1562 e fi<strong>na</strong>is de de 1563.<br />
74 Ibidem, tomo I, lib. II, cap. VIII, e tomo II, cap. V, lib I.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 51<br />
tes homens continuassem a ser tolera<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> o que era sagra<strong>do</strong> seria<br />
arrui<strong>na</strong><strong>do</strong>, enfeitiça<strong>do</strong>, desacredita<strong>do</strong> e conduzi<strong>do</strong> até às portas <strong>do</strong> inferno<br />
pelos Jesuítas. Além disto, insinuou gravemente uma suspeita<br />
moral contra estes, ao referir-se maliciosamente àqueles homens que<br />
“Prennent plaisir aux entretiens familiers avec les femmes pieuses et<br />
vont fréquemment chez elles sous le prétexte de les convertir, de leur<br />
venir en aide ou de les guider vers une vie plus parfaite” 75 .<br />
Estas primeiras críticas gravíssimas contra os Jesuítas, inscrevem-<br />
-se num <strong>do</strong>s paradigmas mais extremos que tipificaram as diversas acusações<br />
feitas contra a Ordem: o paradigma apocalíptico. O uso de figuras<br />
simbólicas <strong>do</strong> último livro da Bíblia, interpretadas normalmente<br />
para anunciar a chegada <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s tempos e das catástrofes a este<br />
inerentes que afectariam a Igreja e a Humanidade em geral, tempo escatológico<br />
que deveria ser precedi<strong>do</strong> por uma degeneração moral <strong>do</strong>s<br />
homens e das instituições sem precedentes 76 .<br />
Entretanto um confrade de Frei Melchior, Frei Teófilo apressa-se a<br />
apresentar queixa à Inquisição, sob o controlo da Ordem Dominica<strong>na</strong>,<br />
em que acusava “os padres que se dizem da ‘Companhia de Jesus’,<br />
a quem também chamam ‘reformistas, ilumi<strong>na</strong><strong>do</strong>s ou i<strong>na</strong>cianos’, que<br />
teriam infligi<strong>do</strong> às senhoras Joa<strong>na</strong> e Constança Conti uma vergonha<br />
pública, espalhan<strong>do</strong> com a sua tagalerice os segre<strong>do</strong>s da confissão” 77 .<br />
Recorde-se que por esta altura tinha-se levanta<strong>do</strong> uma enorme celeuma<br />
a propósito da casa de Santa Marta, fundada <strong>na</strong> cidade papal para acolher<br />
as raparigas arrependidas, em especial as ‘Onorate Cortegiane’<br />
(dig<strong>na</strong>s cortesãs) que tinham caí<strong>do</strong> <strong>na</strong> prostituição e no adultério. O<br />
75 Apud Hugo Rahner, Ig<strong>na</strong>ce de Loyola et les Femmes de son temps, Paris, 1964,<br />
p. 31; cf. Tacchi Venturi, op. cit., tomo I, vol. 2, pp. 278-286; e Epist. Mixt. V, 665.<br />
76 Sobre a temática <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s tempos ver, entre muitas outras, as seguintes obras:<br />
Stephan Jay Gould, et alii, O fim <strong>do</strong>s tempos, Lisboa, 1999; Hillel Schwartz, Os<br />
Fi<strong>na</strong>is de Século, Lisboa, 1992; Jean-Paul Clibert, História <strong>do</strong> Fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, Mem<br />
Martins, 1995; José Eduar<strong>do</strong> Franco e José Manuel Fer<strong>na</strong>ndes, O mito <strong>do</strong> milénio,<br />
Lisboa, 1999; e Fin(s) de siècle(s): Actes du Colloque tenu le mars 1998 à l’université<br />
Jean Moulin-Lyon, Paris, 1999.<br />
77 Apud Hugo Rahner, op. cit.<br />
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52 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
projecto <strong>do</strong>s Jesuítas de limpar Roma de todas as mulheres adúlteras<br />
levou Frei Barbon a denúnciá-los não já à Inquisição, mas ao próprio<br />
Papa. Loyola chegou a escrever que o franciscano Frei Barbon tinha<br />
julga<strong>do</strong> duramente os Jesuítas, asseveran<strong>do</strong> que “to<strong>do</strong>s os Jesuítas de<br />
Perpig<strong>na</strong>n a Sevilha merecem a fogueira” 78 . Estas denúncias levaram<br />
Inácio de Loyola a recuar e a tomar medidas severas para redefinir as<br />
relações entre os membros da Companhia e o universo feminino.<br />
Para afrontar estes críticos <strong>do</strong>minicanos que estavam a inocular um<br />
veneno que poderia vir a ser mortal para a imagem da Companhia, Inácio<br />
de Loyola teve de usar de influência junto da família Conti para<br />
conseguir que a queixa fosse retirada, e recorreu também a Paulo III,<br />
à rainha Joa<strong>na</strong> de Portugal e ao Mestre Geral da Ordem <strong>do</strong>minica<strong>na</strong>,<br />
os quais lhe exararam cartas e declarações em que manifestavam o seu<br />
total apoio ao prosseguimento <strong>do</strong> trabalho da Companhia de Jesus. Entretanto<br />
Melchior Cano foi nomea<strong>do</strong> Bispo de Canárias. E alguns alvitraram<br />
que tal nomeação se deveu às “maqui<strong>na</strong>ções” <strong>do</strong>s Jesuítas a<br />
fim de afastá-lo de Espanha e assim levar para longe aquela voz crítica,<br />
retiran<strong>do</strong> aos antijesuítas espanhóis a liderança no terreno de um<br />
protagonista prestigia<strong>do</strong> 79 . Certo é que depois desta nomeação o movimento<br />
antijesuíta em Espanha perdeu alguma força, reacenden<strong>do</strong>-se<br />
vigorosamente cerca de meio século mais tarde quan<strong>do</strong> os Jesuítas e<br />
Dominicanos se voltarem a confrontar por causa das divergências em<br />
torno da <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> da Graça, disputa que se prolongará durante cerca de<br />
<strong>do</strong>is séculos 80 .<br />
78 Ibidem, p. 37.<br />
79 Cf. António Astraín, op. cit., cap. 8; e Ludwing von Pastor, The History of the<br />
Popes, vol. 13, Lon<strong>do</strong>n-S th Louis, 1898-1953, pp. 92-95.<br />
80 A virulência das críticas à Companhia de Jesus e à sua produção teológica é<br />
revela<strong>do</strong>ra de uma sociedade que via <strong>na</strong> novidade, <strong>na</strong> criatividade, especialmente<br />
vinda de uma instituição religiosa, um perigo, e mais ainda uma perversão, típica de<br />
uma mentalidade fechada que caracterizava em muitos aspectos a sociedade típica<br />
<strong>do</strong> modelo de cristandade. As determi<strong>na</strong>ções discipliniza<strong>do</strong>ras e orto<strong>do</strong>xizantes de<br />
Trento ainda acentuaram mais, no universo eclesiástico e em torno da realidade que<br />
ele influía, esta tendência redutora e restritiva. Em parte, os Jesuítas tor<strong>na</strong>ram-se<br />
vítimas de uma Igreja pós-tridenti<strong>na</strong> que eles ajudaram a criar.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 53<br />
Outra figura emblemática que se destacou <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> <strong>do</strong> século XVI<br />
pela sua luta contra os Jesuítas foi o advoga<strong>do</strong> Étienne Pasquier, considera<strong>do</strong><br />
o funda<strong>do</strong>r da Lenda Negra <strong>do</strong>s Jesuítas por Jean Lacouture 81 .<br />
Convém notar desde logo que o <strong>antijesuitismo</strong> francês revestiu-se, inicialmente,<br />
a partir <strong>do</strong> <strong>do</strong>minicano Jean Benoît 82 e passan<strong>do</strong> por António<br />
Ar<strong>na</strong>ud, de uma espécie de legitimação de pen<strong>do</strong>r pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente<br />
jurídico e <strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong> pela questão educativa. A guerra aos<br />
Jesuítas foi normalmente encabeçada por lentes da universidade, por<br />
advoga<strong>do</strong>s, membros <strong>do</strong> parlamento e magistra<strong>do</strong>s. A entrada da Companhia<br />
de Jesus em França não foi pacífica. Apesar <strong>do</strong> rei Henrique II,<br />
por influência <strong>do</strong> Cardeal de Lore<strong>na</strong>, ter autoriza<strong>do</strong> por escrito a abertura<br />
de um colégio em Paris em 1550, o Parlamento que deveria dar<br />
o seu aval entrepôs dificuldades, exigin<strong>do</strong> até o direito de exami<strong>na</strong>r as<br />
bulas pontifícias que autorizavam a nova ‘religião’ <strong>do</strong>s Jesuítas.<br />
O debate foi longo e encarniça<strong>do</strong>. Os Jesuítas já intensamente rotula<strong>do</strong>s<br />
de papistissimi, pela sua obediência incondicio<strong>na</strong>l ao Papa, não<br />
agradavam à Igreja francesa que labutava ciosamente por garantir os<br />
seus direitos e a sua autonomia crescente. Por seu la<strong>do</strong>, a Companhia<br />
de Jesus fundada por um espanhol e povoada por uma larga maioria de<br />
membros de origem castelha<strong>na</strong> não se tor<strong>na</strong>va muito simpática a uma<br />
<strong>na</strong>ção marcada pela hostilidade contra o país vizinho. Isto sem falar <strong>do</strong><br />
conflito crescente entre protestantes e católicos que se agudizava <strong>na</strong>s<br />
terras gaulesas.<br />
81 Cf. Jean Lacouture, op. cit., vol. 1, p. 213 e ss.<br />
82 Em nome da Faculdade de Teologia da Sorborne Frei Benoît emitiu um parecer<br />
fulmi<strong>na</strong>nte redigi<strong>do</strong> em Latim, a 1 de Dezembro de 1554, contra a presença da Companhia<br />
de Jesus. Sublinha neste parecer que a Sociedade de Jesus representava, pelas<br />
liberdades dadas aos seus membros, violan<strong>do</strong> as regras tradicio<strong>na</strong>is da vida monástica,<br />
por admitir candidatos de diversas categorias sociais, de criminosos e homens<br />
de má fama, uma desonra para o esta<strong>do</strong> regular e um perigo para a pureza da Fé da<br />
Igreja e motiva<strong>do</strong>ra, no futuro, de perturbações e confusões sem número (cf. Ibidem,<br />
p. 228 e ss.). Esta hostilidade foi depois corroborada superlativamente por Eustache<br />
du Bellay, Bispo de Paris, que acusou esta organização religiosa de por em causa o<br />
poder <strong>do</strong>s Bispos, ser ofensora <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> Papa e desestabiliza<strong>do</strong>ra da Igreja de<br />
França, pon<strong>do</strong> em causa as suas prerrogativas e privilégios.<br />
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54 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Os Jesuítas serão apanha<strong>do</strong>s neste fogo cruza<strong>do</strong> que prejudicou a<br />
sua instalação pacífica num <strong>do</strong>s países mais cultos da <strong>Europa</strong>, onde a<br />
sua ordem tinha <strong>na</strong> realidade germi<strong>na</strong><strong>do</strong>. Todavia, apesar da oposição<br />
irredutível <strong>do</strong> Parlamento e da Universidade, o favor da rainha regente,<br />
Catari<strong>na</strong> de Médicis, e de alguma nobreza permitiu que os Jesuítas fundassem<br />
o seu primeiro colégio em Paris, em 1562, o chama<strong>do</strong> Colégio<br />
de Clermont. Esta fundação foi devida, em grande medida, ao acolhimento<br />
e protecção <strong>do</strong> Guilherme du Prat, que tinha trava<strong>do</strong> conhecimento<br />
com os Jesuítas no Concílio de Trento e ganha<strong>do</strong> admiração por<br />
esta ordem emergente 83 .<br />
Mas a Universidade de Paris não baixou os braços. O ensino que<br />
os Jesuítas ministravam levantava questões sérias, tanto mais que eles<br />
arvoravam os privilégios garanti<strong>do</strong>s pelo Papa de poderem conceder<br />
graus académicos independentemente da tutela e exame da Universidade,<br />
bem como de só prestarem contas a Roma em termos de jurisdição<br />
suprema, além de concorrerem vantajosamente com a Universidade,<br />
por, diferentemente desta, ministrarem um ensino de carácter<br />
gratuito.<br />
Étienne Pasquier 84 foi escolhi<strong>do</strong> para defender a causa da universidade<br />
em Tribu<strong>na</strong>l contra os advoga<strong>do</strong>s da Companhia de Jesus, Tourneur<br />
e Versoris. Pasquier ganhou celebridade neste processo, da<strong>do</strong> que<br />
83 Sobre a problemática da implantação da Companhia de Jesus em França, ver<br />
Henri Fouquery, Histoire de la Compagnie de Jésus en France, des origines à la<br />
supression (1528-1762), vol. I, Paris, 1910, p. 163 e ss.; J.-M.-S. Orliac, Histoire de<br />
la Compagnie de Jésus depuis sa fondation jusqu’à nous jours, vol. I, Paris, 1862; e<br />
Jean-Claude Dhôtel, Histoire des Jésuites en France, [Paris], 1991.<br />
84 Etiènne Pasquier <strong>na</strong>sceu em Paris em 1520 e morreu <strong>na</strong> mesma cidade em 1605,<br />
celebrizou-se pelo requisitório judicial e pelos consequentes escritos publica<strong>do</strong>s contra<br />
a Companhia de Jesus, bem como pelos versos que fizera a uma pulga que vira<br />
no seio da meni<strong>na</strong> de Desroches, que muita fama alcançaram em França, Espanha e<br />
Itália e deram origem a muitos outros versos sobre o assunto. Cf. Edme-François<br />
Wilfrid de la Loge d’Ausson, Conférence Domat. Notice sur Étienne Pasquier, son<br />
époque et ses ouvrages, Paris, 1855; e Paul Bouteiller (ed.), Recueil de <strong>do</strong>cuments<br />
sur la vie et l’œuvre d’Étienne Pasquier, avocat, poète et historien, 1529-1615, Paris,<br />
1991.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 55<br />
conseguiu vencer a causa da não permissão <strong>do</strong>s Jesuítas se agregarem<br />
à Universidade, nem <strong>do</strong> seu ensino ser reconheci<strong>do</strong> por esta, embora<br />
não conseguisse, pelo menos <strong>na</strong>quele momento, que estes religiosos-<br />
-educa<strong>do</strong>res fossem bani<strong>do</strong>s de França, nem sequer proibi<strong>do</strong>s de ensi<strong>na</strong>r,<br />
como já tinha exigi<strong>do</strong> em 1562 o Barão des Andrets.<br />
A aversão exacerbada que Pasquier (que tinha ligações com os sectores<br />
calvinistas e a Charles de Moulin) alimentou contra os iniguistas<br />
levou-o à elaboração de uma das obras-primas <strong>do</strong> género literário satírico<br />
escrito em língua francesa 85 . O Catecismo <strong>do</strong>s Jesuítas publica<strong>do</strong><br />
em 1602 é, com efeito, a primeira grande obra funda<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> mito jesuíta<br />
em termos inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, fazen<strong>do</strong> de Pasquier um <strong>do</strong>s maiores<br />
ferrabrás <strong>do</strong>s Padres da Companhia da história <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong>. Este<br />
Catecismo divulga<strong>do</strong> primeiramente em França, vai depois sobrepujar<br />
as suas fronteiras, sen<strong>do</strong> traduzi<strong>do</strong> em sete línguas, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lizan<strong>do</strong><br />
assim o leque largo de razões pelas quais os Padres da Companhia deveriam<br />
ser detesta<strong>do</strong>s e persegui<strong>do</strong>s 86 .<br />
85 Cf. Gustavo Lanson, Histoire de la littérature française, 8. a ed., Paris, 1903, p.<br />
296.<br />
86 Recorde-se que no fi<strong>na</strong>l de Quinhentos, mais propriamente em 1594, a Companhia<br />
de Jesus foi alvo de uma fortíssima suspeita que vai marcar de maneira indelével<br />
a sua “factologia simbólica”, uma factologia carregada de imaginário. Os filhos de<br />
Loyolas foram envolvi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> tentativa de assassi<strong>na</strong>to de Henrique IV. Desta tremenda<br />
suspeita resultou a proibição <strong>do</strong> exercício de qualquer actividade em França por parte<br />
da Companhia de Jesus. Roland Mousnier acentuou o carácter simbólico desta acusação,<br />
acusação que avaliou como sen<strong>do</strong> infundada. Esta era ape<strong>na</strong>s fundada numa<br />
ardilosa construção imaginária que os inimigos da Companhia vinham erguen<strong>do</strong>. Define<br />
concretamente esta construção imagiológica como “um mito de duplicidade, de<br />
intrigas tortuosas, de fraudes e de crueldades” (Roland Mousnier, L’assassi<strong>na</strong>t de<br />
Henri IV, Paris, 1964, p. 212). Mais tarde, no ano de 1603, foi assi<strong>na</strong><strong>do</strong> um acor<strong>do</strong><br />
que dava a possibilidade <strong>do</strong>s Jesuítas regressarem a França, mediante as condições<br />
<strong>do</strong> provincial ser sempre de origem francesa, <strong>do</strong>s jesuítas jurarem fidelidade ao Rei e<br />
de um membro desta Ordem residir permanentemente <strong>na</strong> Corte. Embora estas condicio<strong>na</strong>ntes<br />
fossem contrárias ao espírito legislativo da Companhia, o Geral e o Papa<br />
viram-se obriga<strong>do</strong>s a aceitar esta via de compromisso, por conselho insistente <strong>do</strong> Provincial<br />
francês, o Pe. Pierre Coton, como única possibilidade de reintroduzir a Ordem<br />
de Loyola em França, com aconteceu de facto.<br />
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56 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Etiènne Pasquier estabelece uma espécie de matriz onde é definida<br />
e sistematizada, em grande medida, argumentação mestra <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong><br />
passa<strong>do</strong> e futuro. Inventa o chama<strong>do</strong> jesuíta de casaca, ou o<br />
jesuíta secreto ou disfarça<strong>do</strong>, que espalhou fama em França. Põe em<br />
causa a <strong>na</strong>tureza da Ordem, qualifican<strong>do</strong>-a como sen<strong>do</strong> uma Ordem<br />
hermafrodita, por se distanciar <strong>do</strong>s institutos regulares clássicos, sem<br />
ser, todavia, uma instituição secular. Denuncia a sua hipocrisia, a sua<br />
ambição de poder, a sua falsa pobreza, o seu carácter secretista que rodeia<br />
a sua organização e acção, a sua perigosa acumulação de riqueza<br />
pela captação de heranças. Esgrime contra a usurpação que, <strong>na</strong> óptica<br />
francesa, constituía a sua obediência a um poder trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. . . , mas,<br />
profetiza Pasquier que essa suspeita fidelidade acabaria por ser a ruí<strong>na</strong><br />
<strong>do</strong> próprio papa<strong>do</strong> 87 .<br />
Curiosamente, como veremos em muitos outros casos, os antijesuítas<br />
acabam por tirar ilações proféticas sobre o futuro da Igreja e da sociedade,<br />
tão forte era a exacerbação, quase delirante, que a peculiaridade<br />
da nova ordem causava, de tal mo<strong>do</strong> que transformava os seus opositores<br />
numa espécie de visionários apocalípticos. É ainda interessante<br />
notar que o catecismo conclui com um Pai Nosso e uma Avé Maria<br />
antijesuítica, como convém necessariamente a um catecismo. O que<br />
acrescenta<strong>do</strong> ao carácter profético que a ideologia antijesuítica vinha<br />
assumin<strong>do</strong> desde Melchior Cano, dá ao <strong>antijesuitismo</strong> uma espécie de<br />
dimensão religiosa, implican<strong>do</strong> um certa crença no mal que os Jesuítas<br />
representam, extravasan<strong>do</strong> assim as fronteiras <strong>do</strong> racio<strong>na</strong>l.<br />
Discreteia o advoga<strong>do</strong> francês também sobre a acção <strong>do</strong>s Jesuítas<br />
em Portugal, acusan<strong>do</strong>-os fantasticamente de terem induzi<strong>do</strong> o<br />
rei D. Sebastião 88 , de quem eram confessores, a publicar uma lei que<br />
87 Cf. Etiènne Pasquier, Le catecisme des Jesuites ou le mystère de leur <strong>do</strong>ctrine,<br />
mesme solon la croyance de l’Eglise Roma<strong>na</strong>ine, A Villefranche, 1677, passim.<br />
88 Sobre a problemática <strong>do</strong> rei<strong>na</strong><strong>do</strong> de D. Sebastião e da crise sucessória que com<br />
ele se abriu ver Francisco de Sales Loureiro, “D. Sebastião e Alcácer Quibir”, in José<br />
Hermano Saraiva (dir.), História de Portugal, vol. 4, Lisboa, 1982, pp. 127-160; e<br />
Carlos Margaça Veiga, O Poder e os Poderes <strong>na</strong> Crise Sucessória Portuguesa (1578-<br />
-1581), Lisboa, 1999.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 57<br />
determi<strong>na</strong>va que só os membros da Companhia fossem eleitores e elegíveis<br />
para o trono português. Traduz, no fun<strong>do</strong>, de forma hiperbólica a<br />
fama espalhada inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente pelos antijesuítas de que os Padres<br />
da Companhia se tinham apodera<strong>do</strong> <strong>do</strong> ânimo <strong>do</strong> rei e das rédeas <strong>do</strong><br />
reino de Portugal 89 .<br />
Deprecia também a vaidade, a astúcia e o atrevimento <strong>do</strong>s Jesuítas<br />
em se terem feito passar por apóstolos em Coimbra e em Lisboa:<br />
“Celuy a vrayment grand tort qui revoque en <strong>do</strong>ute leur societé<br />
de Jesus: car il faut necessairement qu’en leur Compagnie<br />
y ait un Jesus, puis que nous trouvons avoir eu des Apostres, e<br />
qu’encores pour l’ajourd’huy il y en a au Royaume de Portugal.<br />
Impietè certes qui fait ponte a nostre Eglise Catholique, Apostolique,<br />
Romaine. Que sous ombre d’une obeissence fardée, qu’ils<br />
dissent porter au S. Siege, nous permettions que ces affards ayent<br />
pris le nom d’Apostres, non seulement au Portugal, mais aussi<br />
en plusiers villes des Indes, qui sont de son’obeissance. Cette<br />
Histoire, bien que hondeuse, si merite-elle d’estre entendue &<br />
cogneüe par tous les gens de bien, afin qu’ils sçachent que les<br />
Jesuites n’ont espargné aucunes impostures pour s’avantager de<br />
reputation aux despens de la vraye Eglise de Dieu” 90 .<br />
89 O tema da influência nefasta <strong>do</strong>s Jesuítas junto de D. Sebastião começou a funcio<strong>na</strong>r<br />
como um exemplo paradigmático frequentemente alega<strong>do</strong> pelos antijesuítas<br />
para denegrir a Companhia, assim como o carácter e o senti<strong>do</strong> da acção <strong>do</strong>s seus<br />
membros. Por exemplo, autores, nomeadamente protestantes, como Lucas Onisander<br />
acusam os Jesuítas de terem prepara<strong>do</strong> pacientemente a derrota de D. Sebastião<br />
em Alcácer-Quibir e de terem vendi<strong>do</strong> depois Portugal a Filipe II, assim como facilmente<br />
os responsabilizam por terem si<strong>do</strong> os instiga<strong>do</strong>res <strong>do</strong> morticínio protestante<br />
em França no dia de São Bartolomeu, que também se veio a tor<strong>na</strong>r um caso paradigmático<br />
<strong>do</strong> requisitório antijesuítico. Cf. Alexandre Brou, Les Jésuites. . . , op. cit., p.<br />
40. 90 Etiènne Pasquier, op. cit., p. 58. Ver também a edição de 1602 para verificarmos<br />
a interessante evolução <strong>do</strong> subtítulo. É de notar que o subtítulo da edição de 1677 regista<br />
uma evolução no senti<strong>do</strong> da classificação da <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> <strong>do</strong>s Jesuítas no âmbito <strong>do</strong><br />
misterioso, o que apela mais para a crescente figuração mítica registada em torno da<br />
Companhia de Jesus (Idem, Le catecisme des Jesuites examen de leur <strong>do</strong>ctrine, Vil-<br />
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58 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Esta passagem é bem indica<strong>do</strong>ra de que a má fama <strong>do</strong>s Jesuítas espalhada<br />
pelos seus críticos circulava inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente. Sabia-se em<br />
França das opiniões negativas sobre a actuação <strong>do</strong>s Padres da Companhia<br />
em Portugal, como se saberá em Portugal da crítica à sua actuação<br />
em França, ou noutros países.<br />
Pelo mesmo perío<strong>do</strong>, tanto em Inglaterra, como <strong>na</strong> Alemanha, apareceram<br />
também diversos antijesuítas, em particular no meio protestante,<br />
não mais benignos <strong>na</strong> apreciação <strong>do</strong> carácter e <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s<br />
membros desta ordem-alvo. O que é revela<strong>do</strong>r de que durante o século<br />
XVI a expansão <strong>do</strong>s Jesuítas desencadeou uma espécie de histeria<br />
crítica da parte <strong>do</strong>s seus inimigos e concorrentes <strong>na</strong>s suas áreas de actuação<br />
e de interesse. Eles começam, nesta fase, a ser coloca<strong>do</strong>s, sem<br />
cedências, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> negro da história, eleva<strong>do</strong>s a autênticas vedetas <strong>do</strong><br />
mal, acusa<strong>do</strong>s de serem envene<strong>na</strong><strong>do</strong>res de almas, instiga<strong>do</strong>res de paixões<br />
públicas, usurpa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> nome de Jesus, corruptores da juventude,<br />
subvertores da autoridade episcopal, além de ostentarem um orgulho e<br />
uma vaidade desmesurada, de tal mo<strong>do</strong> que o arcebispo de Dublin chegou<br />
a considerá-los mais perigosos que Martinho Lutero e “piores que<br />
os Judeus” 91 .<br />
No combate acérrimo <strong>do</strong>s protestantes contra a Igreja Católica, os<br />
Jesuítas foram eleitos como os alvos privilegia<strong>do</strong>s a abater, em virtude<br />
<strong>do</strong> seu protagonismo, da sua eficácia e de algum sucesso <strong>na</strong> realização<br />
<strong>do</strong> programa de contra-reforma pós-trindenti<strong>na</strong>, que os tor<strong>na</strong>vam irri-<br />
lefranche, 1602. Para uma edição crítica contemporânea da autoria de Claude Sutto<br />
(ed.), Catéchisme des Jésuites, Sherbrooke, 1982). Recorde-se que outros escritores<br />
continuaram quase ininterruptamente a tradição antijesuítica neste perío<strong>do</strong>, entre os<br />
quais podemos destacar o poeta francês Teófilo Viaud e as suas sátiras que punham a<br />
ridículo os Jesuítas (cf. Théophile Viaud, Le Par<strong>na</strong>sse des poetes ou recueil des vers<br />
picquans et gaillards de nostre temps, satyriques, s.l., 1625); e o italiano Fray Paulo<br />
de Sarpi que em Londres publica, em 1613 sob pseudónimo, a História <strong>do</strong> Concílio<br />
de Trento, em que tece apreciações muito desfavoráveis em relação à acção <strong>do</strong>s<br />
Jesuítas. Esta obra conheceu variadíssimas edições, entre as quais esta publicada no<br />
século XVIII: Fray Paolo Sarpi, Histoire du concile de Trente, Amsterdam, 1751.<br />
91 Sobre o <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong>s Ilhas Britânicas ver Alexandre Brou, Les Jésuites, op.<br />
cit., p. 482 e ss.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 59<br />
tantes quer para os luteranos, quer para os calvinistas, ou ainda para os<br />
anglicanos.<br />
Na Alemanha um livro publica<strong>do</strong> em 1593, no terreno das controvérsias<br />
com os Protestantes 92 , ultrapassou todas as medidas, trans-<br />
92 Recorde-se que a denomi<strong>na</strong>ção de Jesuítas que entretanto foi vulgarizada e<br />
a<strong>do</strong>ptada para desig<strong>na</strong>r os religiosos da Companhia de Jesus, começou por ser usada<br />
em senti<strong>do</strong> pejorativo pelos luteranos alemães para apelidar estes seus adversários por<br />
excelência, particularmente contra Canisius, o cognomi<strong>na</strong><strong>do</strong> ‘martelo <strong>do</strong>s heréticos’.<br />
Não se tratou propriamente de uma invenção, mas de uma readaptação específica aos<br />
Padres da Companhia, para efeitos polémicos, de um termo que desde a Idade Média<br />
vinha carrega<strong>do</strong> com uma significação, em geral, depreciativa. Jesuíta era um vocábulo<br />
utiliza<strong>do</strong> para desig<strong>na</strong>r por antífrase os hipócritas, os que ostentavam uma falsa<br />
piedade, no fun<strong>do</strong>, era o sinónimo daquela outra palavra que veio a ganhar um senti<strong>do</strong><br />
pejorativo no quadro da história <strong>do</strong> cristianismo, o nome de fariseu. Por seu la<strong>do</strong>, o<br />
nome Jesuíta <strong>na</strong> tradição de nomeação que vinha da Idade Média, era também usa<strong>do</strong><br />
para apelidar os heréticos. Este senti<strong>do</strong> axial <strong>do</strong> nome para desig<strong>na</strong>r a falsidade de<br />
uma prática cristã já tinha si<strong>do</strong> codifica<strong>do</strong> nos penitenciários, como se pode constatar<br />
no Confessio<strong>na</strong>l de Gottschalk Rosemund, Anvers, 1519, onde se estabelece: “Praetermin<br />
verbum Dei <strong>do</strong>cere, etc. ob quonmdam derisorum obloquutionem qui dicerent<br />
me esse pharisaeum, iesuitam, hypocritam, begi<strong>na</strong>n”. Ver também Lu<strong>do</strong>lphe de Saxe,<br />
Vida Jesu Christi, Venise, 1568, Pars I, cap. 10; e J. Brucker, Calvin, les Jésuites et<br />
M. Sabatier, tomo II, p. 511 e ss. Embora em alguns casos se encontre o uso desta<br />
desig<strong>na</strong>ção em senti<strong>do</strong> positivo, isto é, não pejorativo, para desig<strong>na</strong>r um autêntico<br />
segui<strong>do</strong>r de Jesus Cristo. No tempo de Santo Inácio de Loyola o substantivo jesuíta<br />
não era ainda usa<strong>do</strong> dentro da sua ordem para desig<strong>na</strong>r os seus religiosos. O funda<strong>do</strong>r<br />
costumava chamar os seus correligionários de ordem de compañeros, de nosotros, de<br />
los de la Compañia, e não Jesuítas. Na última fase <strong>do</strong> Concílio de Trento, aparece-nos<br />
já a a<strong>do</strong>pção desta forma de nomeação, pois Diego Laynez, que sucedeu como Padre<br />
Geral ao funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Jesuítas, é aí apresenta<strong>do</strong> como generalis jesuitarum. E a partir<br />
de então o próprio nome Jesuíta passa a encerrar em si mesmo, em termos semânticos,<br />
a clivagem cada vez mais acentuada da dupla visão <strong>do</strong>s religiosos i<strong>na</strong>cianos, <strong>na</strong><br />
utilização que é feita desta desig<strong>na</strong>ção ora <strong>na</strong> sua acepção positiva ou negativa, conforme<br />
a perspectiva, a <strong>do</strong> filojesuitismo ou a <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong>. Ora o termo Jesuíta<br />
passa a significa, para uns, o religioso excelente, o missionário intrépi<strong>do</strong>, o padre dedica<strong>do</strong>,<br />
o apóstolo zeloso, o pastor eficaz, o educa<strong>do</strong>r sábio. Para outros, o parasita,<br />
o térmite, o usurpa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> nome sagra<strong>do</strong> de Jesus, o ambicioso, o dissimula<strong>do</strong>, o cúpi<strong>do</strong>,<br />
o fariseu, o ser mais adstringente que existe à face da terra. Ainda que o termo<br />
Jesuíta tenha si<strong>do</strong> a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> e vulgariza<strong>do</strong> mesmo dentro da própria Companhia para<br />
desig<strong>na</strong>r os seus religiosos, só em 1995 <strong>na</strong> XXXIV Congregação Geral é que o vocá-<br />
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60 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
pon<strong>do</strong> a fronteira <strong>do</strong> insulto e da vexação. Esta obra acintosa ostentava<br />
o título de Historia Ordinis Jesuitici 93 e figurava os Jesuítas com<br />
epítetos e metáforas pouco lisonjeiras de “assassinos”, “ferozes javalis”,<br />
“ladrões”, “trai<strong>do</strong>res”, “serpentes”, “víboras”, “cabras nojentas”<br />
e “porcos repug<strong>na</strong>ntes” 94 . O livro acusa os Jesuítas de recorrerem à<br />
tortura como um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s pedagógicos mais frequentes. Esta obra<br />
diaboliza totalmente a Ordem de Santo Inácio quer no presente, quer<br />
enferman<strong>do</strong>-a de satanismo <strong>na</strong> sua génese institucio<strong>na</strong>l. Segun<strong>do</strong> esta<br />
anti-história da História da Ordem <strong>do</strong>s Jesuítas, as regras e as constituições<br />
que regem esta instituição <strong>na</strong>da tinham a ver com a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de<br />
Cristo e os Jesuítas não teriam nenhum outro objectivo que desonrar o<br />
nome de Cristo e substituírem-se ao próprio Deus e à Igreja, sen<strong>do</strong> o<br />
Papa não mais <strong>do</strong> que uma marionete <strong>na</strong>s suas mãos para atingirem o<br />
seu intento satânico. Tu<strong>do</strong> isto é explica<strong>do</strong> à luz de uma causalidade<br />
diabólica <strong>na</strong> linha da hermenêutica poliakovia<strong>na</strong>.<br />
Este panfleto faz a acusação espectacular de que a fundação da<br />
Companhia de Jesus teria si<strong>do</strong> realizada pelas artes <strong>do</strong> próprio Satã,<br />
pois este teria si<strong>do</strong> alegadamente o verdadeiro mestre espiritual de Inácio<br />
de Loyola. Assim sen<strong>do</strong>, este livro facilmente identifica nesta Ordem<br />
um carácter apocalíptico. Apresenta os Jesuítas como os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> Anticristo, sen<strong>do</strong> eles a própria encar<strong>na</strong>ção da Besta profetizada<br />
para os tempos escatológicos pelo livro <strong>do</strong> Apocalipse de S. João 95 ,<br />
bulo foi utiliza<strong>do</strong> nos textos legislativos produzi<strong>do</strong>s por este órgão máximo da Ordem<br />
de Santo Inácio. Cf. Companhia de Jesus, Congregação Geral XXXIV. Selecção de<br />
textos, Lisboa, 1996, passim.<br />
93 Esta obra panfletária foi atribuída pelo seu editor, o teólogo protestante Polycarpe<br />
Leiser, a um antigo noviço da Companhia de Jesus. É um livro de referência<br />
para o <strong>antijesuitismo</strong> protestante alemão e não só, pois inspirará uma série de outras<br />
obras panfletárias antijesuíticas que se lhe sucederão como foi o caso de Jesuiticum<br />
Jejunium e o Miroir des Jésuites.<br />
94 Cf. Alexandre Brou, Les Jésuites. . . , op. cit., vol. I, pp. 41-42; e ver também<br />
A. Lynn Martin, “The Jesuit Mystique”, in Sixteenth Century Jour<strong>na</strong>l, I, Abril, 1973,<br />
pp. 31-40; e Enrico Borgianelli, Discorso nell’antica, e moder<strong>na</strong> gesuitofobia. . . ,<br />
Napoli, 1850.<br />
95 Cf. Ap 13.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 61<br />
que tinha grava<strong>do</strong> <strong>na</strong> sua testa o terrível e misterioso número de 666,<br />
que geralmente era identifica<strong>do</strong> <strong>na</strong> época com o Império Otomano 96 .<br />
Verifica-se aqui uma deslocação da visão bestial apocalíptica da ameaça<br />
Turca para os Jesuítas. Pois, os próprios Jesuítas são aqui da<strong>do</strong>s<br />
como sen<strong>do</strong> mais ferozes que os mesmos Turcos 97 .<br />
O coro de vozes críticas contra a Companhia crescia proporcio<strong>na</strong>lmente<br />
à sua expansão e sucessos. Todavia, esta crescente oposição não<br />
impediu que os Jesuítas ampliassem os seus campos de acção e se consolidassem<br />
como ordem prestigiada e influente no seio da Igreja e <strong>do</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s. Com efeito, a sua ascensão foi verdadeiramente espectacular<br />
durante o século XVI, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se o instrumento da Santa Sé que<br />
ganhou mais visibilidade no processo da Reforma Católica. Os i<strong>na</strong>cianos<br />
obtiveram a liderança da educação das elites masculi<strong>na</strong>s europeias<br />
e ergueram “uma das mais profícuas empresas missionárias da Igreja”<br />
desde a Modernidade. Tu<strong>do</strong> isto foi acompanha<strong>do</strong> por um fulgurante<br />
crescimento numérico e expansão institucio<strong>na</strong>l da Companhia durante<br />
os primeiros cinco generalatos até à morte de Aquaviva em 1615 98 .<br />
96 Este tipo de formulações e de me<strong>do</strong>s apocalípticos não era uma caso isola<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
época, antes foi uma marca característica da mentalidade moder<strong>na</strong>. O protestantismo<br />
<strong>na</strong>scente foi muito permeável ao apocaliptismo, sen<strong>do</strong> a própria Reforma Protestante<br />
associada até mesmo por alguns <strong>do</strong>s seus <strong>mentores</strong> como Martinho Lutero e Filipe<br />
Melanchthon a crenças mile<strong>na</strong>ristas. Nesta ambiência facilmente o Papa<strong>do</strong> e, neste<br />
caso, os Jesuítas foram figura<strong>do</strong>s senão muitas vezes como o próprio Anticristo, com<br />
a própria besta <strong>do</strong> capítulo 13 <strong>do</strong> Apocalipse. Sobre o apocaliptismo e o mile<strong>na</strong>rismo<br />
protestante ver Robin Bruce Barnes, Prophecy and Gnosis: Apocalyptism in<br />
the Wake of the Lutheran Reformation, Stanford, 1987; G. J. R. Parry, A Protestant<br />
vision: William Harrison and the Reformation of Elizabeth England, Cambridge,<br />
1987; e Albert-Marie Schmidt, Jean Calvin et la tradition calviniste, Paris, 1957.<br />
Para uma contextualização historiográfica da Reforma Protestante ver J.-M. Mayeur<br />
et alii (dir.), op. cit., vol. 7 – De la Réforme à la Reformation (1450-1530).<br />
97 Cf. História Ordinis Jesuitici, s.l., 1593, passim. Esta obra polémica foi refutada,<br />
ponto por ponto, pelo padre Jacques Getzer logo no ano seguinte. Cf. Jacques<br />
Getzer, Opera, tomo XI, 1734, pp. 4-147.<br />
98 Apesar disto, o certo é que foram admiti<strong>do</strong>s muito menos candidatos <strong>na</strong> Companhia<br />
de Jesus <strong>do</strong> que os que entraram para as duas ordens mendicantes, Franciscanos<br />
e Dominicanos, durante o seu perío<strong>do</strong> fundacio<strong>na</strong>l. Por exemplo, entre 1213 e 1256,<br />
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62 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Precisamente neste pico de apogeu da Companhia de Jesus virá a<br />
lume no ano de 1614, <strong>na</strong> Polónia, um <strong>do</strong>cumento que se tor<strong>na</strong>rá emblemático<br />
<strong>na</strong> acentuação da dimensão secreta da Companhia e <strong>do</strong>s seus<br />
intentos crípticos de <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção e de implementação maquiavélica, utilizan<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s os meios ardilosos para atingir os seus fins. As Instruções<br />
Secretas <strong>do</strong>s Jesuítas mais conhecidas pelo seu título latino de Monita<br />
Secreta, comporta, entre outros aspectos, a novidade polémica de ser<br />
atribuí<strong>do</strong> à autoria <strong>do</strong>s próprios Jesuítas. Este conjunto de conselhos secretos<br />
(que chegaram a ser apresenta<strong>do</strong>s como sen<strong>do</strong> da autoria <strong>do</strong> Padre<br />
Geral Aquaviva), imensamente edita<strong>do</strong>s e reedita<strong>do</strong>s em numerosas<br />
edições e em várias línguas, tor<strong>na</strong>ram-se, sem dúvida, uma das obras<br />
da literatura antijesuítica mais conhecida, divulgada e citada inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente,<br />
e um <strong>do</strong>s arquétipos justifica<strong>do</strong>res da propaganda contra a<br />
Companhia, que assim pretendia provar o carácter secreto da organização<br />
e <strong>do</strong>s seus planos pouco escrupulosos de conquista <strong>do</strong> poder e de<br />
riqueza 99 . Acreditada durante muito tempo, realmente como sen<strong>do</strong> um<br />
manual de acção tácita e táctica <strong>do</strong>s Jesuítas para atingir os seus fins,<br />
a crítica contemporânea acabou por desmascarar esta obra como sen<strong>do</strong><br />
uma falsificação grosseira <strong>do</strong> ex-jesuíta polaco Heronym Zahorawski,<br />
que assim se pretendeu vingar da sua expulsão da Companhia pouco<br />
13.000 homens ingressaram <strong>na</strong> Ordem <strong>do</strong>s Prega<strong>do</strong>res, e em 1303 esse número atingiu<br />
20.650 membros, número que passa a ser a cifra média <strong>do</strong>s seus membros durante<br />
o perío<strong>do</strong> medieval, e a Ordem <strong>do</strong>s Franciscanos rondava os 28.000 membros. Também<br />
é certo que a população europeia, <strong>na</strong> modernidade, era maior que <strong>na</strong> Baixa Idade<br />
Média. Todavia, os mais jovens eram chama<strong>do</strong>s a prestar serviço em cargos administrativos,<br />
<strong>na</strong> guerra, no comércio e <strong>na</strong>s instituições eclesiásticas que, por sua vez,<br />
tinham aumenta<strong>do</strong>. Não obstante, independentemente <strong>do</strong>s paralelismos numéricos,<br />
os Jesuítas tiveram maior impacto em termos da recepção social e cultural <strong>do</strong> que as<br />
outras ordens que não criaram um tão persistente e visceral movimento antagónico,<br />
lidera<strong>do</strong> pelas grandes patentes culturais e políticas. Cf. Gor<strong>do</strong>n Leff, Paris and<br />
Oxford universities in the Thirteenth and Fourteenth centuries: an institutio<strong>na</strong>l and<br />
intellectual history, New York, 1968, pp. 260-270.<br />
99 Durante o século XIX estas Instruções foram abundantemente publicadas e comentadas<br />
como veremos a seu tempo, como arma de arremesso privilegiada <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong><br />
liberal.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 63<br />
tempo antes 100 .<br />
No contexto das disputas acesas entre os Jesuítas e Jansenistas em<br />
torno da questão teológica da Graça e em torno da chamada moral jesuítica,<br />
considerada menos rigorista e perigosamente optimista, notabilizou-se<br />
neste combate, <strong>na</strong> segunda metade <strong>do</strong> século XVII, um lumi<strong>na</strong>r<br />
da ciência, da matemática e da literatura francesa, que veio a ser<br />
também uma referência incontornável <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> francês e inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Escolhi<strong>do</strong> pelo grupo rigorista de Port-Royal, que fazia<br />
juz ao seu áugure, Jansénio 101 , que odiava os filhos de Santo Inácio<br />
com “perfecto odio oderam illos”, Blaise Pascal instiga<strong>do</strong> por António<br />
Ar<strong>na</strong>ud (filho <strong>do</strong> velho Ar<strong>na</strong>ud) 102 , edita sucessivamente, de forma separada<br />
a partir de 1656, as famigeradas dezoito Cartas a um Provincial<br />
que passaram a ser conhecidas simplesmente pelo nome de Provinciais.<br />
É o reverso perfeito da Imago primi saeculi, publicada pelos Jesuítas<br />
em 1640. Com efeito, o orgulho da Companhia pelos troféus alcança-<br />
100 Sobre a Monita Secreta ver os seguintes estu<strong>do</strong>s críticos: Carlos Sommervogel,<br />
Le véritable auteur des ‘Monita Secreta’, Bruxelles, 1890; Francisco Rodrigues, Os<br />
Jesuítas e a Monita Secreta, Roma, 1912; e cf. H. Böhmer, op. cit., pp. LII e ss.<br />
101 Cornelius Jansen, bispo holandês de Ypes e amigo <strong>do</strong> Abade de Saint-Cyran, que<br />
era a alma <strong>do</strong> grupo de solitários de Port-Royal, é inspira<strong>do</strong>r <strong>do</strong> movimento rigorista<br />
que vai assumir o seu nome: Jansenismo. Augustinus é a sua obra póstuma publicada<br />
em 1640 que apresenta uma interpretação radical da teologia de Santo Agostinho e da<br />
sua <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> sobre a Graça. Sobrevaloriza a graça divi<strong>na</strong> e o seu poder para realizar o<br />
desiderato de salvação huma<strong>na</strong>, juntamente com um entendimento antropologizante<br />
carrega<strong>do</strong> de pessimismo no que respeita à condição peca<strong>do</strong>ra e debilitada pelo mal<br />
da <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> (cf. Jean Laporte, La <strong>do</strong>ctrine de Port-Royale. La Morale, 3<br />
vols., Paris, 1952). Esta antropologia teológica e moral contrasta com a antropovisão<br />
mais optimista e mais compreensiva teorizada e praticada em termos de aplicação<br />
moral pelos teólogos moralistas da Companhia de Jesus. Nesta controvérsia acende-<br />
-se um debate que se converte em hostilidade combativa que dividiu especialmente a<br />
França durante cerca de <strong>do</strong>is séculos.<br />
102 Trata-se <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> velho Ar<strong>na</strong>ud, advoga<strong>do</strong> da Universidade de Paris contra<br />
a Companhia de Jesus no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século XVI. O filho tinha si<strong>do</strong> alvo de uma censura<br />
<strong>do</strong>s Jesuítas. Pascal decide vingar o amigo com esta obra que foi considerada<br />
uma obra-prima da literatura francesa, pois constituiu um avanço no aperfeiçoamento<br />
desta.<br />
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64 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
<strong>do</strong>s ao serviço da Igreja e da sociedade foi duramente vergasta<strong>do</strong> pela<br />
pe<strong>na</strong> ácida de Pascal. Este autor considera que a fúria conquista<strong>do</strong>ra da<br />
Companhia encerra a pretensão de substituir-se à própria Igreja. Está<br />
aqui em causa uma oposição dilemática entre duas visões <strong>do</strong> homem,<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> próprio Deus. Ao rigor <strong>do</strong>s Jansenistas causava repúdio<br />
a moral <strong>do</strong>s teólogos e <strong>do</strong>s casuístas Jesuítas como Moli<strong>na</strong> ou o<br />
P e . Bauny e a sua Súmula <strong>do</strong>s Peca<strong>do</strong>s, que valorizavam o livre-arbítrio<br />
da pessoa huma<strong>na</strong> teorizada <strong>na</strong> sua moral probabilista 103 . Esta era<br />
considerada altamente perigosa, pois era vista como sen<strong>do</strong> passível de<br />
conduzir o homem à relaxação moral, <strong>na</strong> medida em que poderia, no<br />
limite, justificar todas as acções pecaminosas e absolvê-las. A partir<br />
da 5. a carta o tom antijesuíta, altamente sarcástico e até cáustico, esfacela<br />
o edifício moral e a acção <strong>do</strong>s Padres da Companhia que gabavam<br />
de ter muda<strong>do</strong> a face da Cristandade. Ironiza com a aplicação de uma<br />
profecia de Isaías aos Jesuítas. Esta profecia anunciava a vinda de anjos<br />
célebres e ágeis ao serviço <strong>do</strong> nome de Iavé, a fim a desvalorizar e<br />
mesmo demolir a imagem encomiástica de excepcio<strong>na</strong>lidade criada em<br />
torno destes Padres pelos próprios e pelos seus admira<strong>do</strong>res:<br />
“Cienquème lettre écrite a un Provincial par un de ses amis.<br />
Voici ce que je vous ai promis. Voici les premiers traits de la<br />
morale des bons Pères Jésuites, ‘de ces hommes éminents en<br />
<strong>do</strong>ctrine et en sagesse qui sont tous conduits par la sagesse divine,<br />
qui est plus assurée que toute la philosophie’. Vous pensez<br />
peut-être que je raille; je le dis sérieusement, on plutôt ce sont<br />
eux-mêmes qui le disent. Je ne fais que copier leurs paroles aussi<br />
bien que dans la suite de cet éloge. C’est une société d’hommes<br />
ou plutôt d’anges qui a été prédite par Isaïe en ces paroles. Allez,<br />
‘anges promptes et ligers’. La prophétie n’en est-elle pas<br />
claire ? Ce sont des esprits d’aigles; c’est une troupe de Phénix,<br />
un auteur ayant montré depuis qu’il y en a plusieurs. ‘Ils sont<br />
changé la face de la chrétienté’. Il le faut croire, puisqu’ils le<br />
103 Cf. Étienne Bauny, Somme des péchez qui se commenttent en tous estats de leurs<br />
conditions et qualitez, 3. a ed, Paris, 1635.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 65<br />
disent. Et vous l’allez bien voir dans la suite de ce discours, qui<br />
vous apprendra leurs maximes” 104 .<br />
E continua este mestre da ironia e da língua francesa, avançan<strong>do</strong><br />
sobre a Companhia de Jesus com a sua pe<strong>na</strong> devasta<strong>do</strong>ra:<br />
“Sachez <strong>do</strong>nc que leur objet n’est pas de corrompe les moeurs:<br />
ce n’est pas leur dessein; mais ils n’ont pas aussi pour unique but<br />
celui de les réformer: ce serait une mauvaise politique. Voice<br />
quelle est leur pensée: ils ont assez bonne opinion d’eux-mêmes<br />
pour croire qu’il est utile et comme nécessaire au bien de la religion<br />
que leur crédit s’étende partout et qu’ils gouvernent tous les<br />
consciences. Et, parce que les maximes évangéliques et sévères<br />
sont propres pour gouverner quelques sortes de personnes,<br />
ils s’en servent dans ces occasions où elles leur sont favorables.<br />
Mas, comme ces mêmes maximes ne s’accorent pas au dessein<br />
de la plupart des gens, ils les laissent à l’égard de ceux-là, afin<br />
d’avoir de quoi satisfaire tout le monde” 105 .<br />
Nesta batalha impie<strong>do</strong>sa aqui encetada por Pascal, cataloga de laxista<br />
a moral <strong>do</strong>s Padres Jesuítas, que no seu entender permitirá um<br />
adaptacionismo anti-<strong>do</strong>gmático sem limites. Denuncia o cheiro a heresia<br />
que impreg<strong>na</strong>, <strong>na</strong> sua óptica, o edifício da teologia moral jesuítica.<br />
E, em particular, aponta acusatoriamente o exercício jesuítico <strong>do</strong> sacramento<br />
da Confissão, em que é aplicada concretamente a sua moral<br />
prática, através <strong>do</strong> qual a ‘pura’ tradição moral e sacramental da Igreja<br />
seria vilipendiada. Localiza aqui o nódulo e o segre<strong>do</strong> da fama <strong>do</strong>s<br />
Jesuítas, <strong>do</strong> seu sucesso e aceitação, pois, segun<strong>do</strong> ele, triunfam pelo<br />
meio de procurar agradar a to<strong>do</strong>s, possibilita<strong>do</strong> pela sua prática confessio<strong>na</strong>l<br />
baseada numa moral adaptacionista: “C’est par cette conduite<br />
104 Pascal, Les Provinciales. (Texte de 1656-1657), Paris, s.d., p. 55.<br />
105 Ibidem, p. 57.<br />
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66 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
obligeante et accommodante, comme l’appelle le P. Petau, qu’ils tendent<br />
les bras à tout le monde” 106 .<br />
O paradigma laxizante da moral <strong>do</strong>s Jesuítas que alegadamente tu<strong>do</strong><br />
per<strong>do</strong>a, até os crimes mais horren<strong>do</strong>s, constituiu um <strong>do</strong>s temas constantes,<br />
basilares e sempre recorrentes da argumentação antijesuítica posterior.<br />
Esta moral é dada como esteio para fazer compreender a plausibilidade<br />
de se imputar aos Jesuítas to<strong>do</strong>s os crimes e a sua justificação,<br />
sem que a consciência individual, quer <strong>do</strong>s indivíduos, seus executores<br />
ou instiga<strong>do</strong>res, fosse alguma vez perturbada pelo remorso ou pelo<br />
arrependimento.<br />
Embora não se conheça nenhuma edição portuguesa das Provinciais,<br />
sabe-se que elas foram divulgadas e conhecidas em Portugal, como<br />
consta de diversos exemplares que ficaram guarda<strong>do</strong>s em bibliotecas e<br />
arquivos <strong>do</strong> país, pertença de particulares, bem como pelo uso referencial<br />
e citacio<strong>na</strong>l que os autores antijesuítas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is deram delas,<br />
elevan<strong>do</strong> Pascal à categoria de um <strong>do</strong>s avatares <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong>.<br />
Cumpre-nos aqui recordar que a crítica antijesuítica pascalia<strong>na</strong> foi<br />
influenciada por uma obra <strong>do</strong> suíço protestante Ro<strong>do</strong>lfo Hospiniano<br />
publicada em 1619, cujo título é bem indicativo <strong>do</strong> seu teor polémico:<br />
Historia jesuitica, hoc est de origine, regulis constitutionibus, privilegiis,<br />
incrementis, progressu et propagation ordinis-jesuitarum. Item de<br />
corum <strong>do</strong>lis, fraudibus, imposturis, nefariis facinoribus, cruentis consiliis,<br />
falsa quoque et sanguinolenta <strong>do</strong>ctri<strong>na</strong> 107 . Como também não se<br />
106 Ibidem. As Provinciais foram primeiramente publicada de forma anónima, depois<br />
a 3. a Provincial foi editada sob a autoria das iniciais E.A.A.E.P.A.F.D.E.P., e<br />
depois com o pseudónimo de Luís de Montalte. Para um estu<strong>do</strong> desta obra e <strong>do</strong> seu<br />
significa<strong>do</strong> polémico, ver Rober Duchêne, L’imposture littéraire dans les Provinciales<br />
de Blaise Pascal, Aix, 1985; e P. Bénichou, Morales du Grand Siècle, Paris,<br />
1948.<br />
107 Ru<strong>do</strong>lf Wirth Hospinianus, Historia jesuítica, hoc est de origine, regulis constitutionibus,<br />
privilegiis, incrementis, progressu et propagation ordinis-jesuitarum. Item<br />
de corum <strong>do</strong>lis, fraudibus, imposturis, nefariis facinoribus, cruentis consiliis, falsa<br />
quoque et sanguinolenta <strong>do</strong>ctri<strong>na</strong>, Tiguri, 1619. Ter em contra também, <strong>na</strong> mesma<br />
linha, as obras de um importante antijesuíta alemão, Gaspar Scioppius que por vezes<br />
usava o pseudónimo Alfonso de Vargas: Actio perduellionis in Jesuitas (1632);<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 67<br />
pode esquecer a importância inspira<strong>do</strong>ra fundamental, <strong>na</strong> obra de Pascal,<br />
da publicação em 1644 da Teologia Moral <strong>do</strong>s Jesuítas da autoria<br />
de António Ar<strong>na</strong>ud, o Velho 108 , pai <strong>do</strong> António Aranud companheiro<br />
de Blaise Pascal e dirigente <strong>do</strong>s Jansensistas. Esta obra opera a sistematização<br />
combativa da moral atribuída aos Teólogos Jesuítas a fim de<br />
denegri-la, consideran<strong>do</strong>-a, no essencial, herética, ímpia e criminosa.<br />
Os Jansenistas de Port Royal trouxeram a lume em 1657 a Nouvelle<br />
Théologie morale des Jésuites et des nouveaux casuistes 109 , que acaba<br />
por ser, em última análise, a reprodução da obra de Ar<strong>na</strong>ud revista,<br />
corrigada e ampliada, contribuin<strong>do</strong> para fazer crescer a bola de neve<br />
antijesuítica. E esta bola não vai parar à medida que caminhamos para<br />
o fim de Seiscentos. Os rigoristas de Port Royal não vão dar tréguas <strong>na</strong><br />
sua propaganda contra os seus inimigos de estimação. Só para referir<br />
ainda outras das peças mais significativas da propaganda <strong>do</strong> Jansenista,<br />
podemos lembrar que em 1667 aparece outra obra detractora da Moral<br />
des Jésuites, extraite fidelement de leurs livres; em 1669, o padre jansenista<br />
Sebastião José de Cambout de Pont-Château, trouxe a público o<br />
1. o volume sobre La morale pratique des Jésuites, représ en plusieurs<br />
histoires arrivés dans toutes les parties du monde. Extraitte ou des livres<br />
très autorisez et fidellement traduits, ou de memoires très seurs<br />
et indubitables; e em 1683 é trazi<strong>do</strong> a lume o 2. o volume dedica<strong>do</strong> a<br />
investigar as práticas missionárias da Companhia 110 , sen<strong>do</strong> até 1895<br />
Flagellum jesuiticum (1632); A<strong>na</strong>tomia Societatis Jesu (1633), etc.<br />
108 Ar<strong>na</strong>ud teceu uma imagem tão deprimente e odiosa <strong>do</strong>s Jesuítas ao tentar inculcar<br />
a ideia-chave de que a moral veiculada pela sua educação e actividade missionária<br />
conduzia a toda a espécie de opressão e mortificação. Chegou mesmo a afirmar temerariamente<br />
que “des péres de famille qui envoient leur fils Jésuites sont pires que<br />
les carthaginois sacrifiant les leurs à Maloch” (A. Ar<strong>na</strong>ud, o Velho, Plai<strong>do</strong>yé pour<br />
l’Université . . . contre les Jésuites, tomo II, Paris, 1594, p. 525).<br />
109 Esta edição veio a lume, apresentan<strong>do</strong> uma autoria colectiva: um grupo de “Curas<br />
de França”.<br />
110 Cf. Sebastião José de Cambout de Pont-Château, La moral pratique des Jésuites,<br />
second volume, divisé en sept parties, où l’on reprèsent leur conduite dans la Chine,<br />
dans le Japon, dans l’Amerique et dans l’Ethyopie, le tout tiré de livres bien autorisez<br />
ou de pièces très authentiques, Paris, 1669.<br />
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68 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
completada a obra com mais seis volumes que se atribuíram a Ar<strong>na</strong>ud<br />
e a outros companheiros de luta 111 .<br />
Se os Jesuítas foram vistos como “une ‘machine de guerre’ lancée<br />
contre le protestantisme <strong>na</strong>issant” 112 , e em virtude disso os reforma<strong>do</strong>s<br />
fizeram <strong>do</strong>s membros da Companhia o seu inimigo de eleição no âmbito<br />
<strong>do</strong> combate contra o Papa<strong>do</strong> e à Igreja Católica, não menos aconteceu<br />
com os Jansenistas que, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Protestantes e das ordens<br />
mendicantes, protagonizaram as mais virulentas polémicas religiosas<br />
<strong>do</strong>s séculos XVI e XVII. Destacan<strong>do</strong> particularmente a controvérsia<br />
entre Jansenistas e Jesuítas, conclui Fer<strong>na</strong>nd Braudel que “en tout cas,<br />
le XV e siècle, le XVII e vont vivre sous le signe de passions religieuses<br />
attentives, de querelles spirituelles extrêmes <strong>do</strong>nt la chaleur ne <strong>do</strong>i pas<br />
surprendre: ainsi la querelle aiguë entre le rigorisme des jansénistes<br />
et la moral plus simple, laxiste, mais humaine, des Jésuites, au temps<br />
de Saint-Cyran, des Messieurs de Port-Royal, le M me de Sévigné, de<br />
Racine, de Pascal” 113 . Nestas paixões polémico-religiosas acesas, as<br />
preocupações humanistas <strong>do</strong>s Jesuítas, fundadas numa concepção antropológica<br />
optimista e traduzidas num sistema moral mais bran<strong>do</strong>, foram<br />
compreendidas, pelo <strong>antijesuitismo</strong> radical, como permissividade<br />
e depravação. O seu trabalho de evangelização foi, ao mesmo tempo,<br />
olha<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> guia<strong>do</strong> por uma ambição extrema e orientada no<br />
senti<strong>do</strong> da <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção para fins de baixo interesse e solipsismo institucio<strong>na</strong>l.<br />
Este relance de olhar por algumas figuras, obras e polémicas emblemáticas<br />
e inspira<strong>do</strong>res <strong>do</strong> combate à Companhia de Jesus, tor<strong>na</strong>das<br />
uma espécie de paradigma, referência incontornável <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong><br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, tem importância para situar o <strong>antijesuitismo</strong> português,<br />
quer nos primeiros <strong>do</strong>is séculos, quer nos subsequentes. Permitir-nos-á<br />
verificar as interessantes inter-influências, bem como olhá-lo como um<br />
111 Cf. Antoine Ar<strong>na</strong>uld et alii, La moral pratique des Jésuites, 8 vols., Cologne,<br />
1669-1695.<br />
112 Michel Leroy, op. cit., p. 16.<br />
113 Fer<strong>na</strong>nd Braudel, Grammaire des civilisations, Paris, 1987, p. 371; e Jean Orcibal,<br />
Saint-Cyran et le Jansénisme, Paris, 1961.<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 69<br />
fenómeno não isola<strong>do</strong>. Esta apresentação sumária <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> ideológico<br />
nuclear e <strong>do</strong>s tecelões <strong>do</strong> mito <strong>do</strong>s Jesuítas em termos inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />
permitir-nos-á verificar o carácter mimético <strong>do</strong>s grandes vectores da<br />
argumentação e até, em alguns casos, das motivações das campanhas<br />
contra os membros da Companhia, e nessa medida, constatar os paralelismos<br />
flagrantes relativos aos retratos que dela são pinta<strong>do</strong>s nos<br />
diferentes cenários. Surpreender-nos-á o facto de o pano de fun<strong>do</strong> argumentativo<br />
ser substancialmente o mesmo, varian<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s algumas<br />
matizes acidentais <strong>na</strong> cor da sua imagerie fundamental.<br />
Como veremos, neste perío<strong>do</strong> que definimos como o <strong>do</strong>s antecedentes<br />
<strong>do</strong> mito jesuíta, as grandes controvérsias em torno <strong>do</strong> ensino e<br />
das questões teológicas ou morais, não atingiram os graus de elaboração,<br />
nem a dimensão, como no caso da Espanha ou da França; nem o<br />
movimento antijesuítico produziu qualquer obra que tivesse marca<strong>do</strong> a<br />
língua portuguesa, como aconteceu em relação à língua francesa, ou influencia<strong>do</strong><br />
expressivamente o <strong>antijesuitismo</strong> além fronteiras. O que se<br />
explica em grande medida pelo controlo aperta<strong>do</strong> exerci<strong>do</strong> pela Inquisição<br />
portuguesa que impedia ideólogos e polemistas de arriscar grandes<br />
voos neste <strong>do</strong>mínio, bem como em virtude da protecção e pre<strong>do</strong>minância<br />
cultural que os Jesuítas conquistaram no país. Mas mesmo assim,<br />
as querelas não foram poucas, embora não atingin<strong>do</strong>, de facto, o nível<br />
espectacular, bem como a qualidade e o grau de mobilização de outras<br />
congéneres europeias.<br />
Apesar de persistentes, as querelas limitaram-se <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente a<br />
questões jurídico-insitucio<strong>na</strong>is de pouca expressão sócio-cultural e religiosa,<br />
a questões de meto<strong>do</strong>logias missionárias e a chica<strong>na</strong>s em torno<br />
de bens e espaços de influência educio<strong>na</strong>l, missionária e também política.<br />
Mas algumas delas são o reflexo daquilo que se passava no estrangeiro,<br />
e outras tor<strong>na</strong>m-se referência paradigmática para o <strong>antijesuitismo</strong><br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, como a questão da influência <strong>do</strong>s Jesuítas junto<br />
de D. Sebastião e a querela <strong>do</strong>s Ritos Chineses. Este perío<strong>do</strong> longo<br />
contrastará com aquilo que acontecerá no perío<strong>do</strong> pombalino, em que<br />
o <strong>antijesuitismo</strong> português ganhará protagonismo e uma significativa<br />
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70 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
influência inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se percursor e sen<strong>do</strong> uma referência<br />
incontornável <strong>na</strong> estigmatização e erradicação da Ordem de Loyola no<br />
tempo triunfante <strong>do</strong> iluminismo político e cultural. Será, todavia, da<br />
maior pertinência a<strong>na</strong>lisar este perío<strong>do</strong> longo de latência da imagiologia<br />
mítica da Companhia de Jesus, pois é neste tempo que se elabora<br />
aquilo que podemos chamar a mitogénese <strong>do</strong>s Jesuítas, fundamental<br />
para compreendermos a sistematização pombali<strong>na</strong> <strong>do</strong> mito.<br />
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José Eduar<strong>do</strong> Franco (n. 1969) Historia<strong>do</strong>r, jor<strong>na</strong>lista, poeta e ensaísta. Especialista<br />
em História da Cultura. Doutora<strong>do</strong> pela École des Hautes Études en Sciences<br />
Sociales de Paris em “História e Civilização” e Doutora<strong>do</strong> em “Cultura” (através de<br />
equivalência) pela Universidade de Aveiro, Mestre em História Moder<strong>na</strong> pela Faculdade<br />
de Letras da Universidade de Lisboa e Mestre em Ciências da Educação pela<br />
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.<br />
Tem desenvolvi<strong>do</strong> trabalhos pioneiros de investigação nos <strong>do</strong>mínios da mitologia<br />
portuguesa e das grandes polémicas históricas que marcaram a vida cultural, política<br />
e religiosa <strong>do</strong> nosso país. Especial novidade têm representa<strong>do</strong> os seus estu<strong>do</strong>s sobre<br />
os Jesuítas, de mo<strong>do</strong> particular, sobre o fenómeno <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> e sobre a hermenêutica<br />
<strong>do</strong>s mitos e das utopias portuguesas e europeias. Articulista assíduo da<br />
imprensa periódica, ten<strong>do</strong> já várias deze<strong>na</strong>s de artigos publica<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s áreas da História,<br />
da Mitocrítica, da Hermenêutica da Cultura, da Ideografia Europeia, da Filosofia,<br />
da Ciência das Religiões, das Ciências da Educação e da História da Mulher. Entre a<br />
sua vasta obra publicada podem-se destacar os seguintes livros: O Mito de Portugal,<br />
Lisboa, Roma Editora, 2000 (Premia<strong>do</strong> por u<strong>na</strong>nimidade com o 1. o Prémio “Livro<br />
2004” da Sociedade Histórica da Independência de Portugal); Brotar Educação, Lisboa,<br />
Roma Editora, 1999; Monita Secreta (Instruções Secretas <strong>do</strong>s Jesuítas). História<br />
de um manual conspiracionista (em co-autoria com Christine Vogel), Lisboa,<br />
Roma Editora, 2002; O Mito <strong>do</strong> Milénio (em co-autoria com José Manuel Fer<strong>na</strong>ndes),<br />
Lisboa, Pauli<strong>na</strong>s, 1999; Falésias da Utopia, Lisboa, Editora Arkê, 2000; Teologia<br />
e Utopia em António Vieira, Separata da Lusitania Sacra, Lisboa, 1999; Vieira<br />
<strong>na</strong> Literatura Anti-Jesuítica (em co-autoria com Bruno Car<strong>do</strong>so Reis), Lisboa, Roma<br />
Editora, 1997; História <strong>do</strong>s Dehonianos em Portugal, Porto, Edições Dehonia<strong>na</strong>s,<br />
2000; Fé, Ciência e Cultura. Brotéria – 100 anos (co-coorde<strong>na</strong>ção com Hermínio<br />
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72 José Eduar<strong>do</strong> Franco<br />
Rico, Prefácio de Eduar<strong>do</strong> Lourenço), Lisboa, Gradiva, 2003; coorde<strong>na</strong>ção da edição<br />
<strong>do</strong> manuscrito inédito <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> Quinto Império em Portugal, com edição integral<br />
<strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> da Quinta Mo<strong>na</strong>rquia de Sebastião de Paiva, Prefácio de Ar<strong>na</strong>l<strong>do</strong> Espírito<br />
Santo, Lisboa, Imprensa Nacio<strong>na</strong>l-Casa da Moeda, 2006; O mito <strong>do</strong> Marquês de<br />
Pombal (em co-autoria com An<strong>na</strong>bela Rita), Lisboa, Prefácio, 2004; Metamorfoses<br />
de um povo: Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa – com edição<br />
integral <strong>do</strong>s Regimentos da Inquisição Portuguesa (em co-autoria com Paulo de<br />
Assunção), Lisboa, Prefácio, 2004; Dois exercícios de Ironia: “Contra os Jesuítas”<br />
de Se<strong>na</strong> Freitas e “Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Pio IX” de<br />
Antero de Quental (em co-autoria com Luís Macha<strong>do</strong> de Abreu), Lisboa, Prefácio,<br />
2005; Influência de Joaquim de Flora em Portugal e <strong>na</strong> <strong>Europa</strong>. Com edição <strong>do</strong>s<br />
escritos de Natália Correia sobre a “Utopia da Idade Femini<strong>na</strong> <strong>do</strong> Espírito Santo”<br />
(em co-autoria com José Augusto Mourão), Lisboa, Roma Editora, 2004; O Mito <strong>do</strong>s<br />
Jesuítas em Portugal e no Brasil, Séculos XVI-XX, 2 vols., Lisboa, Gradiva, 2006-<br />
-2007; O Padre António Vieira e as Mulheres: Uma visão barroca <strong>do</strong> Universo feminino<br />
(em co-autoria com Isabel Morán Caba<strong>na</strong>s), Porto, Campo das Letras, 2008;<br />
Padre Manuel Antunes (1918-1985): Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia<br />
(co-coorde<strong>na</strong>ção com Hermínio Rico), Porto, Campo das Letras, 2007; Jesuítas e Inquisição:<br />
cumplicidades de confrontações, Rio de Janeiro, Editora da Universidade<br />
Estadual <strong>do</strong> Rio de Janeiro, 2007; Padre António Vieira (1608-1697): Impera<strong>do</strong>r<br />
da Língua Portuguesa (coorde<strong>na</strong>ção e co-autoria), Lisboa, Correio da Manhã, 2008;<br />
Jardins <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>: Discursos e Práticas (co-coorde<strong>na</strong>ção com A<strong>na</strong> Cristi<strong>na</strong> da Costa<br />
Gomes), Lisboa, Gradiva, 2008; Dança <strong>do</strong>s Demónios: Intolerância em Portugal (co-<br />
-coorde<strong>na</strong>ção com António Marujo), Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates,<br />
2009; Madeira – mito da ilha-jardim: cultura da regio<strong>na</strong>lidade ou da <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lidade<br />
imperfeita <strong>na</strong> Madeira, Lisboa, Gradiva, 2010 (no prelo); Dicionário Histórico das<br />
Ordens e Instituições Afins em Portugal (co-direção com José Augusto Mourão e A<strong>na</strong><br />
Cristi<strong>na</strong> da Costa Gomes), Lisboa, Gradiva, 2010; Dicionário Histórico das Ordens,<br />
institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal (direção),<br />
Lisboa, Gradiva, 2010; Arquivo Secreto <strong>do</strong> Vaticano. Expansão Portuguesa –<br />
Documentação (coorde<strong>na</strong>ção geral), Lisboa, Esfera <strong>do</strong> Caos, 2011. Foi Coorde<strong>na</strong><strong>do</strong>r<br />
Geral <strong>do</strong> projecto da edição crítica (em 14 volumes) da Obra Completa <strong>do</strong> Padre<br />
Manuel Antunes, sj em processo de publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian.<br />
Além <strong>do</strong> seu trabalho de pesquisa, de coorde<strong>na</strong>ção de projectos e de organização<br />
de congressos inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de grande projecção (p. ex. “Inquisição Portuguesa”,<br />
“Padre Manuel Antunes: Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia”, “Jardins <strong>do</strong><br />
Mun<strong>do</strong>: Discursos e Práticas”, “Ideas of/for Europe”, “Ordens e Congregações Religiosas<br />
em Portugal: Memória, Presença e Diáspora”; “A <strong>Europa</strong> das Nacio<strong>na</strong>lidades.<br />
Mitos de origem: Discursos Modernos e Pós-Modernos”), tem exerci<strong>do</strong> as funções<br />
de Director-Adjunto <strong>do</strong> Centro de Literaturas e Culturas Lusófo<strong>na</strong>s e Europeias da<br />
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<strong>Génese</strong> e <strong>mentores</strong> <strong>do</strong> <strong>antijesuitismo</strong> <strong>na</strong> <strong>Europa</strong> Moder<strong>na</strong> 73<br />
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de Vice-Presidente da COMPARES<br />
– Associação Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de Estu<strong>do</strong>s Ibero-Eslavos e de Vice-Presidente da Associação<br />
Portuguesa de Tradutores. Actualmente é Presidente da Direcção <strong>do</strong> Instituto<br />
Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes (instituição fundada pela Faculdade<br />
de Letras da Universidade de Lisboa em parceria com a ESAD-Fundação<br />
Ricar<strong>do</strong> Espírito Santo Silva).<br />
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Esta publicação foi fi<strong>na</strong>nciada por Fun<strong>do</strong>s Nacio<strong>na</strong>is através da<br />
FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito <strong>do</strong><br />
projecto “PEst-OE/ELT/UI0077/2011”<br />
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