O Universo Feminino nas Histórias em Quadrinhos.
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História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
N o 11, outubro/2010 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimag<strong>em</strong>.com.br<br />
O <strong>Universo</strong> <strong>F<strong>em</strong>inino</strong> <strong>nas</strong> <strong>Histórias</strong> <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong><br />
Resumo:<br />
Aline Martins dos Santos<br />
Mestranda <strong>em</strong> História Social –UFF<br />
aline_rural@yahoo.com.br<br />
No trabalho apresentado, interessa-nos particularmente situar a presença f<strong>em</strong>inina no universo das HQ’s,<br />
fazendo uma breve análise de seus principais papéis: as garotas, as namoradas, as mães da década de 1940-50,<br />
as vilãs, as musas, as heroí<strong>nas</strong>, passando pelas guerreiras moder<strong>nas</strong> surgidas a partir da década de 1960,<br />
acompanhando de perto o movimento f<strong>em</strong>inista e as transformações da sociedade, e chegando <strong>nas</strong> “descoladas”<br />
das décadas de 1970-80. Buscar<strong>em</strong>os entender como se deu a mudança de pensamento da sociedade sobre a<br />
questão da mulher e como esse pensamento pode ter influenciado a produção, <strong>em</strong> especial, das histórias de Rê<br />
Bordosa criada por Angeli..<br />
Palavras-chave: gênero, história <strong>em</strong> quadrinhos, sociedade, representações.<br />
1
I - INTRODUÇÃO:<br />
História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
N o 11, outubro/2010 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimag<strong>em</strong>.com.br<br />
Como produções da Indústria Cultural/Cultura de Massa 1 , as <strong>Histórias</strong> <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong><br />
(HQ’s) são, <strong>em</strong> grande medida, uma expressão do imaginário e pod<strong>em</strong> servir, como resposta<br />
a anseios e expectativas coletivas ou como modelos ideológicos e comportamentais, tanto <strong>em</strong><br />
suas expressões textuais quanto <strong>em</strong> suas seqüências narrativas <strong>em</strong> imagens. “Historicamente,<br />
além de reproduzir<strong>em</strong> as contribuições pictóricas, estéticas e literárias advindas das mais<br />
diferentes épocas”, os quadrinhos descrev<strong>em</strong> de maneira desconcertante a realidade social,<br />
psicológica e política que os interpenetram, transmitindo ao leitor conceitos, modos de vida,<br />
visões de mundo, etc. 2 .<br />
Segundo vários estudos ligados à área, não há quadrinhos neutros, assim como não<br />
existe leitura inocente, não pod<strong>em</strong>os achar que este ou aquele escritor (ou cineasta, músico,<br />
teatrólogo, quadrinhista) se encontra à marg<strong>em</strong> do processo social e cultural que o forma.<br />
Na história da Cultura Visual, exist<strong>em</strong> motivos e intenções para que se fabriqu<strong>em</strong><br />
produtos para entretenimento. Através de seus personagens, as histórias <strong>em</strong> quadrinhos<br />
retratam situações vividas ou revelam anseios e desejos com os quais os leitores se<br />
identificam. Sendo que os personagens e enredos tornam-se também expressões das<br />
aspirações, valores, preconceito e mesmo das frustrações de seus criadores, eles mesmos<br />
produtos de sua época. Nos quadrinhos estão a representação do real, ou daquilo <strong>em</strong> que se<br />
deseja transformar a realidade.<br />
“Como objetos culturais, um jogo de futebol, uma telenovela, uma estória <strong>em</strong><br />
quadrinhos, ou uma viag<strong>em</strong> programada pelas agências de turismo têm o<br />
significado de fornecer aos indivíduos, pseudo-universos – ilhas de fácil<br />
compreensão – onde eles possam exercer (ou ficar com a impressão de que<br />
exerc<strong>em</strong>) um grau de controle sobre a “realidade proposta 3 ”.<br />
Como objetos artísticos, as imagens da Cultura Visual também possu<strong>em</strong> funções e<br />
significados implícitos elaborados pela própria sociedade que as produziu.<br />
1<br />
Sendo um conceito dos mais amplos, tomar<strong>em</strong>os então cultura de massa como toda cultura produzida para a<br />
população <strong>em</strong> geral — a despeito de heterogeneidades sociais, étnicas, etárias, sexuais ou psicológicas — e<br />
veiculada pelos meios de comunicação de massa. Enfim, cultura de massa, sendo toda manifestação cultural<br />
produzida para o conjunto das camadas mais numerosas da população; o povo, o grande público. Para Morim, a<br />
Cultura de Massa se utiliza de quatro recursos homogeneizadores capazes de atingir o “hom<strong>em</strong> médio” (aquele<br />
que apresenta chances maiores de consumir uma obra de tal porte). Sendo eles: simplificação, modernização,<br />
maquineização e atualização. In: Morim, 1981, Pg. 54.<br />
2<br />
GALLAS, 1994. In: http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=35&cod_not=817<br />
Acessado pela ultima vez <strong>em</strong> 07/06/2008.<br />
3<br />
MIRANDA, Orlando. Tio Patinhas e os Mitos da Comunicação. São Paulo: Summus Editorial, 1976, p.161.
Cavalcanti vai além e afirma que:<br />
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“A vantag<strong>em</strong> da utilização das HQ’s como fonte para o historiador está na<br />
abertura a possibilidades plurais de um desenvolvimento de um t<strong>em</strong>a,<br />
juntamente com a facilidade com que as obras pod<strong>em</strong> ser situadas<br />
historicamente por seus lugares de fala, no trabalho de critica interna e externa<br />
do material” 4 .<br />
No trabalho apresentado, interessa-nos particularmente situar a presença f<strong>em</strong>inina no<br />
universo das HQ’s, fazendo um breve levantamento de seus principais papéis: as meni<strong>nas</strong>, as<br />
namoradas, as mães das décadas de 1940-50, as vilãs, as musas, as heroí<strong>nas</strong>, passando pelas<br />
guerreiras moder<strong>nas</strong> surgidas a partir da década de 1960, acompanhando de perto o<br />
movimento f<strong>em</strong>inista e as transformações da sociedade, até chegar <strong>nas</strong> “descoladas” das<br />
décadas de 1970-80. Buscar<strong>em</strong>os entender como se deu a mudança de pensamento da<br />
sociedade sobre a questão da mulher e como esse pensamento pode ter influenciado a<br />
produção <strong>em</strong> especial, das histórias da Rê Bordosa, de Angeli.<br />
O artigo se divide <strong>em</strong> uma primeira parte que tratará do mundo dos quadrinhos, mais<br />
especificamente o que são os quadrinhos, seus el<strong>em</strong>entos, sua cronologia, etc e também como<br />
as personagens mulheres foram sendo evocadas neste meio. E a segunda que pretende fazer<br />
uma análise da criação da personag<strong>em</strong> Rê bordosa derivada do movimento underground<br />
brasileiro, no contexto histórico da década de 80. Buscando elucidar algumas das<br />
contradições e paradigmas da época no estudo da personag<strong>em</strong>, que surge num momento de<br />
abertura política, quando a Indústria Cultural coopta a imag<strong>em</strong> da mulher <strong>em</strong>ancipada, que já<br />
rejeita o rótulo de f<strong>em</strong>inista, mas tampouco concorda com as velhas formas de f<strong>em</strong>inino<br />
herdadas do machismo.<br />
I I - O MUNDO DOS QUADRINHOS:<br />
II.1) Afinal, o que são quadrinhos?<br />
As HQ’s integram duas linguagens: a verbal (escrita) e a icônica e se apresentam <strong>em</strong><br />
cada quadrinho num espaço e t<strong>em</strong>po narrativo, que à medida que é lido, é integrado num<br />
processo de elipse, onde o leitor junta as imagens e as vê <strong>em</strong> movimento. Esse suporte<br />
específico das HQ’s, enquanto técnica narrativa, só irá aparecer no final do século XIX,<br />
4 CAVALCANTI, 2006. In: http://www.historiaimag<strong>em</strong>.com.br/edicao2abril2006/milfacesheroi.pdf<br />
Acessado pela última vez <strong>em</strong> 07/06/2008.
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graças às inovações técnicas da imprensa, constituindo-se um típico produto da Indústria<br />
Cultural, mais especificamente da cultura jornalística 5 .<br />
De acordo com Cagnin 6 , as imagens são o traço definidor das HQ’s, o que aponta<br />
para a idéia de que a relevância na linguag<strong>em</strong> das HQ’s se encontra <strong>nas</strong> imagens, como, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, <strong>nas</strong> cores (ou na falta de cor), <strong>nas</strong> ambiências criadas pelas sombras, nos<br />
enquadramentos que nos informam sobre as características dos personagens e do<br />
desenvolvimento da ação. A imag<strong>em</strong> é o desenho contido no interior do quadrinho.<br />
Geralmente apresenta uma cena (cenário), que traduz a mensag<strong>em</strong> do autor para seus leitores.<br />
Além da cena, o artista insere os textos (balões e letreiros), compondo o quadro<br />
(enquadramento). Os quadrinhos contêm a ação enquanto os balões contêm a narrativa. Os<br />
balões são considerados como uma linguag<strong>em</strong> dentro da linguag<strong>em</strong> das HQ’s e serv<strong>em</strong> como<br />
instrumento de inserção do diálogo de uma forma diferente. “O conteúdo do balão, quando<br />
escrito, pode ser chamado de “texto” e representa o diálogo ou o pensamento dos<br />
personagens” 7 Pod<strong>em</strong> ainda dar idéia de frio, censura, choque, movimento, etc.<br />
O artista “arranja” o cenário (o espaço interior dos quadrinhos), para que as figuras<br />
associadas ao texto transmitam a sensação de movimento (ação) e facilit<strong>em</strong> a compreensão<br />
da mensag<strong>em</strong>. O desenhista procura a forma que melhor traduza sua intenção, ou seja, busca<br />
uma organização que permita o desenvolvimento da história. De modo s<strong>em</strong>elhante ao do<br />
cin<strong>em</strong>a ou televisão, nos quadrinhos, o desenho também pode ser apresentado <strong>em</strong> planos e<br />
ângulos de visão diferentes. “Parece que o desenhista usa uma lente zoom, como no cin<strong>em</strong>a<br />
ou na fotografia, para aproximar uma figura ou mostrar uma visão geral da cena” 8 .<br />
As tiras exploram quase s<strong>em</strong>pre, dois, três ou quatro planos, procurando neles retratar<br />
o princípio, o meio e o fim da história. A ação é observada através de um determinado ângulo<br />
de visão. Ao escolher um certo ângulo para dispor os personagens, o desenhista procura<br />
produzir efeitos ou movimentos <strong>em</strong> sua história.<br />
As onomatopéias são para os quadrinhos o que o som é para o cin<strong>em</strong>a. São<br />
representações gráficas onde são usadas letras, palavras que dê<strong>em</strong> idéias ao lê-las, de que<br />
estão <strong>em</strong>itindo sons por ela representados. São sons visuais, gráficos, ou plásticos. Essa<br />
linguag<strong>em</strong> pode ser encontrada dentro ou fora dos balões. O importante é que o som<br />
5<br />
De acordo com Cirne, as <strong>Histórias</strong> <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong> <strong>nas</strong>ceram na Al<strong>em</strong>anha <strong>em</strong> 1865 com Max and Moritz de<br />
W. Bush e passaram a apresentar as características essenciais das HQ’s: a narrativa <strong>em</strong> seqüência de imagens, a<br />
manutenção dos personagens nessas seqüências e os diálogos inseridos no quadro. In: CIRNE, Moacy. Para ler<br />
os quadrinhos – Da narrativa cin<strong>em</strong>atográfica à narrativa quadrinizada. Petrópolis: Vozes, 1975.<br />
6<br />
CAGNIN, Antônio Luiz. Os <strong>Quadrinhos</strong>. São Paulo: Ática, 1975.<br />
7<br />
Id<strong>em</strong>, p. 72.<br />
8<br />
IANNONNE, O Mundo das <strong>Histórias</strong> <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong>. São Paulo: Moderna, 1994, p.63.
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representado pela escrita é tão necessário quanto o seu desenho e irá completar as ações.<br />
Pensando os quadrinhos enquanto manifestação artística capaz de revelar traços<br />
importantes de uma sociedade <strong>em</strong> um determinado período e dentro de um certo contexto<br />
histórico, nos aproximamos do que defende Moacy Cirne:<br />
“O discurso quadrinizado deve ser entendido como uma prática significante, e<br />
mais ainda, como uma prática social que se relaciona com o processo histórico<br />
e o projeto político de uma dada sociedade. (...) O quadrinho, narrativa<br />
gráfico-visual, pois existe como prática significante no interior dos discursos<br />
artísticos. Sua especificidade, <strong>em</strong> sendo uma linguag<strong>em</strong> carregada de bens<br />
simbólicos e/ou de el<strong>em</strong>entos gráficos implica uma história” 9 .<br />
Os quadrinhos de acordo com Cirne são, antes de mais nada, uma arte seqüencial,<br />
“(...) uma narrativa gráfico-visual, com suas particularidades próprias, a partir<br />
do agenciamento de, no mínimo, duas imagens desenhadas que se relacionam.<br />
Entre as imagens, um corte, que chamar<strong>em</strong>os de corte gráfico - de certo<br />
modo, o lugar que marca o espaço do impulso narrativo. Esse corte tanto será<br />
espacial quanto t<strong>em</strong>poral (aqui, gerando as elipses: um t<strong>em</strong>po a ser<br />
preenchido, muitas vezes pela imaginação do leitor)” 10 .<br />
Cabe salientar a participação fundamental do receptor nesse processo, pois ele deve<br />
exercer suas capacidades intelectivas e perceptivas para que os efeitos das ilusões aludidas<br />
sejam apreendidas. A narrativa gráfica dos quadrinhos necessita de uma cooperação entre<br />
autor e leitor, cuja ligação deve ser efetuada através de dados compartilhados por ambos,<br />
derivados de experiências sociais comuns.<br />
II.2) Cronologia das HQ’s e contexto histórico:<br />
O suporte específico da História <strong>em</strong> quadrinhos, enquanto técnica narrativa, só irá<br />
aparecer no final do século XIX, graças às inovações técnicas da imprensa, constituindo-se<br />
assim, um típico produto da Cultura de Massa, mais especificamente da cultura jornalística.<br />
De acordo com Cirne, as H Q’s como gênero narrativo, <strong>nas</strong>ceram na Al<strong>em</strong>anha <strong>em</strong><br />
1865 com Max and Moritz de W. Bush. Para ele, somente na primeira década deste século os<br />
quadrinhos se constituíram como linguag<strong>em</strong> definida ou “articulação de signos visuais e<br />
verbais como prática significante, narrativa fundada na mais pura visualidade” 11 . Os enredos<br />
passaram a apresentar as características essenciais dos quadrinhos, a partir de 1880. Sendo<br />
9 CIRNE, Moacy. Uma introdução política aos <strong>Quadrinhos</strong>. Rio de Janeiro: Edições Achiame, 1982, p.18.<br />
10 CIRNE, Moacy. <strong>Quadrinhos</strong>, Sedução e Paixão. Petrópolis - Rio de Janeiro: Vozes, 2000, p.14.<br />
11 CIRNE, 1975, Pg. 12.
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elas: a narrativa <strong>em</strong> seqüência de imagens, a manutenção dos personagens nessas seqüências<br />
e os diálogos inseridos no quadro.<br />
Nessa mesma época, Joseph Pulitzer e Willian Randolph Hearst, dois magnatas da<br />
imprensa nova-iorquirna, entraram numa acirrada briga comercial. Willian tornou-se um<br />
grande incentivador dos Comics 12 . Já Pulitzer, promoveu diversas inovações, conseguindo<br />
<strong>em</strong> abril de 1893, produzir a primeira página colorida <strong>em</strong> seu jornal New York World. Nesse<br />
mesmo jornal, <strong>em</strong> 16 de fevereiro de 1896, foi publicado o primeiro cartoon colorido, ou<br />
melhor, o primeiro no qual aparecia a cor amarela, que daria o nome ao personag<strong>em</strong> que o<br />
protagonizava, The Yellow Kid. 13 De acordo com Iannone, Rudolph Dirks, jov<strong>em</strong> desenhista<br />
norte-americano da equipe do Morning Journal (dirigido por Willian Hearst), apresentou <strong>em</strong><br />
1897 “um modelo de expressão cômico-gráfica que ficaria definitivamente conhecido como<br />
História <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong>”.<br />
No final de 1903, os desenhistas pressionados pelos editores, decidiram reviver as<br />
daily strips, “tiras diárias” 14 . Logo elas proliferaram e inúmeros artistas aderiram ao novo<br />
formato. Conjuntamente proliferaram também os Syndicates, termo <strong>em</strong>pregado no jornalismo<br />
para definir as <strong>em</strong>presas distribuidoras de notícias, horóscopos, histórias <strong>em</strong> quadrinhos e<br />
outras matérias 15 . De 1914 a 1918 ocorre a Primeira Guerra Mundial. Logo após a guerra, os<br />
Estados Unidos financiam a reconstrução dos países europeus destruídos e exportam uma<br />
grande quantidade de produtos para esses países. Porém, com a estabilização econômica da<br />
Europa há uma diminuição do número de exportações, o que provocou nos Estados Unidos<br />
um excedente de produção que acabou gerando uma grave crise econômica, a Grande<br />
Depressão (1929).<br />
O Crack da bolsa de valores <strong>em</strong> 29 foi um ponto importante na História das HQ’s, e<br />
nos anos 30 elas cresceram, invadindo o gênero da aventura, gênero esse que passou a<br />
12 Comics, palavra inglesa que significa “cômico” ou “humorístico”. As histórias <strong>em</strong> quadrinhos <strong>nas</strong>ceram nos<br />
EUA e lá foram batizadas de comics, por que os primeiros artistas exploraram o gênero para fazer graça com o<br />
universo miserável dos cortiços das grandes cidades america<strong>nas</strong> no final do século XIX. Essa expressão<br />
universalizou-se e é utilizada até hoje, inclusive para designar histórias que não são de caráter cômico. In:<br />
IANNONE, 1994, Pg. 22-23.<br />
13 IANNONE, 1994, Pgs. 30-33.<br />
14 Iannone observa que de dominicais as tiras passaram a ser diárias. “Criaram-se histórias <strong>em</strong> capítulos, s<strong>em</strong>pre<br />
com uma situação de suspense no último quadro. Assim, o leitor ficava na expectativa da próxima tira e era<br />
obrigado a comprar o jornal no dia seguinte. Os capítulos duravam algumas s<strong>em</strong>a<strong>nas</strong> e as tiras acabaram<br />
convertendo-se <strong>em</strong> seção fixa nos periódicos norte-americanos” In: IANNONE, 1994, Pg. 42.<br />
15 IANNONE, 1994, Pg.44. Surgidos por volta de 1840, os syndicates proliferaram com o sucesso das tiras<br />
diárias. Hoje, eles atuam no mundo inteiro e além de promover<strong>em</strong> e distribuír<strong>em</strong> as HQ’s acumulam também as<br />
funções de cuidar dos direitos autorais dos artistas que representam, dos aspectos mercadológicos, como por<br />
ex<strong>em</strong>plo, o combate à concorrência, e também <strong>em</strong> muitos casos, uma espécie de censura. Há qu<strong>em</strong> acuse essa<br />
censura de ter sido utilizada <strong>em</strong> certas épocas, na promoção dos Estados Unidos no resto do mundo. Os<br />
ex<strong>em</strong>plos estariam na divulgação dos super-heróis norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.
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substituir as caricaturas das histórias cômicas ou infantis que predominaram até a década de<br />
20. Surg<strong>em</strong> assim, as primeiras revistas <strong>em</strong> quadrinhos (comics books) e são criados os<br />
personagens que vão constituir a base dos <strong>Universo</strong>s das duas maiores editoras america<strong>nas</strong> de<br />
quadrinhos dos dias de hoje: A Marvel Comics e a DC comics. Alguns deles: Super-hom<strong>em</strong><br />
(Superman, 1938 - DC); Batman (1939-DC); Namor (1939 – Marvel); Tocha Humana<br />
(Human Toch, 1939 - Marvel); Capitão América (Captain American, 1941 – Marvel) ;<br />
Mulher-Maravilha (Wonder-Woman, 1941 – DC), etc.<br />
Esse período, que vai de 1929 até o início da Segunda Guerra Mundial, passou a ser<br />
considerado então a Era de ouro das HQ’s, devido principalmente à ampliação t<strong>em</strong>ática<br />
produzida pela introdução dessa mitologia aventureira, que provocou um notável aumento do<br />
número de leitores. É neste momento que surge o principal esteriótipo da representação do<br />
herói no século XX, o super-herói, um novo modelo de herói, dotado de capacidades sobrehuma<strong>nas</strong>,<br />
capacidades essas que eram utilizadas para defender a população de qualquer<br />
ameaça 16 .<br />
Na década de 40 o mundo observava o fim da segunda Guerra Mundial e o início da<br />
“guerra fria” entre EUA e URSS. É possível perceber neste momento, talvez inspirado pelo<br />
clima instaurado pelo macarthismo 17 na política norte-americana, que há uma clara<br />
substituição <strong>nas</strong> Hq’s de super-heróis do ataque ao nazismo pela necessidade de defender a<br />
nação do comunismo. Assim, diversos personagens serão r<strong>em</strong>odelados e outros criados,<br />
adequando-se aos novos inimigos criados <strong>em</strong> função da Guerra-Fria, o que inaugurou a<br />
chamada Era de Prata dos quadrinhos.<br />
Os quadrinhos foram exaustivamente estudados pelos pedagogos na década de 50,<br />
que os acusaram de conter <strong>em</strong> suas pági<strong>nas</strong> vestígios de uma influência deletéria e<br />
<strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente ideológica, e por extensão também pelos teóricos da comunicação, que<br />
tentaram estabelecer relações entre os quadrinhos, o poder e a indústria cultural. Um livro<br />
que causou o pânico entre pais e educadores neste período foi Seduction of the Innocent<br />
(1954) do psiquiatra Frederich Wertham, que acabou por obrigar as editoras a criar<strong>em</strong> um<br />
código de autocensura 18 .<br />
16 È importante observar que este período de criação dos super-heróis, que se dá entre os anos de 1938 e 1941, é<br />
justamente o período marcado por uma intensa insegurança, <strong>em</strong> que a sociedade americana ainda assombrada<br />
pelos reflexos da crise de 1929 observava o prelúdio de uma nova guerra mundial.<br />
17 Macarthismo: Movimento político anticomunista desencadeado nos EUA depois da II Guerra Mundial pelo<br />
senador republicano Joseph McCarthy. Durou até o final dos anos 50 e caracterizou-se pela perseguição<br />
implacável a todos os comunistas e simpatizantes com base principalmente na delação.<br />
18 Segundo Junior, Wertham teria publicado um tratado implacável contra os comics com base <strong>em</strong> conclusões<br />
que teria tirado dos tratamentos feitos <strong>em</strong> sua clinica <strong>em</strong> crianças e adolescentes com distúrbios de
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A campanha contra a indústria dos comics t<strong>em</strong> seu ápice com a instalação do Comics<br />
Code Authority 19 , <strong>em</strong> 1954, por sugestão do senador Robert C. Hendrickson da subcomissão<br />
do Senado. Toda essa campanha contra os quadrinhos, só aumentou sua expansão para outros<br />
países da Europa e também no Brasil por conta do facilitamento de suas exportações pelos<br />
syndicates norte-americanos que, desde os anos 30, monopolizavam o cenário de quadrinhos<br />
no mundo ocidental. Porém é também na década de 50 que começa a era intelectual dos<br />
quadrinhos, com uma maior valorização do texto sobre a imag<strong>em</strong>, marcada pelo lançamento<br />
da tira Peanuts, de Charles M. Schulz.<br />
Desta forma, afirma Jos<strong>em</strong>ara Neis,<br />
“Para apagar as marcas deixadas tanto pela guerra quanto pelo pós-guerra,<br />
<strong>nas</strong>ce o quadrinho adulto, intelectual, pensante, existencialista, recheado de<br />
críticas a t<strong>em</strong>as sociais e políticos [...] Não se tratava mais de conflitos entre<br />
países, mas sim, do conflito interno de cada cidadão, dos medos, inseguranças,<br />
esperanças, sonhos, conquistas que o hom<strong>em</strong> buscava dentro dele mesmo para<br />
tentar viver <strong>em</strong> tranqüilidade consigo mesmo e com a sociedade da qual faz<br />
parte” 20 .<br />
As editoras DC Comics e Marvel Comics se consolidam então no setor, com histórias<br />
b<strong>em</strong> comportadas, dentro dos padrões dos bons costumes da sociedade conservadora. Porém,<br />
algumas editoras mudaram sua linha editorial com uma maior segmentação de estilos e<br />
propostas e uma conseqüente diferenciação do público visado, um ex<strong>em</strong>plo é a revista Mad,<br />
editada por Bill Gainnes, que burlava o código ao apresentar não só quadrinhos, mas textos<br />
satíricos tendo como alvo os sucessos de Hollywood e os costumes da sociedade<br />
estadunidense. A revista introduziu, mudanças na estética, na forma de apresentação das<br />
histórias, dos quadros, dos balões e da estrutura narrativa.<br />
Na década de 60 os quadrinhos eram vistos pelos intelectuais mais sérios como<br />
“para-literatura. [...] Para muitos, os comics só permitiam um tipo de análise: o<br />
sociológico” 21 , ou seja, a análise do processo social de produção das HQ’s, os valores<br />
culturais presentes nelas, os seus efeitos no público leitor, entre outros aspectos sociais.<br />
comportamento. A obra denunciava de modo contundente, que terríveis crimes cometidos por crianças nos<br />
últimos anos foram estimulados pela leitura dos comics. Ao ligar os crimes aos comics, o psiquiatra estaria<br />
dando indícios da presença do comunismo por trás do propósito de desestabilizar a conduta do povo americano.<br />
In: JUNIOR, Gonçalo. Biblioteca dos <strong>Quadrinhos</strong>. São Paulo: Opera Graphica, 2006, Pg. 235.<br />
19<br />
O código de ética restringiu o espaço de criação dos artistas. Entre outras coisas, ele proibia a aparição da<br />
nudez, a exaltação de qualquer atributo físico f<strong>em</strong>inino e exigia o respeito às autoridades.<br />
20<br />
NEIS, Jos<strong>em</strong>ara. In: http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/J/Jos<strong>em</strong>ara_Neis_08.pdf Acessado pela<br />
ultima vez <strong>em</strong> 07/06/2008<br />
21<br />
CIRNE, 2000, Pg. 17.
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Enquanto isso, <strong>nas</strong> HQ’s, assistir<strong>em</strong>os a fortificação da ideologia nacionalista na construção<br />
de inimigos para a nação, encarnados <strong>em</strong> um el<strong>em</strong>ento traidor que põe <strong>em</strong> risco a ord<strong>em</strong><br />
d<strong>em</strong>ocrática. Diante desse cenário, Stan Lee 22 irá recriar todo o <strong>Universo</strong> da Marvel Comics<br />
introduzindo personagens mais próximos do leitor, com probl<strong>em</strong>as, conflitos pessoais,<br />
relacionamentos amorosos. Acompanhando o movimento pelos direitos civis, cria também os<br />
X-Men, grupo de mutantes que t<strong>em</strong> como maior desafio ser<strong>em</strong> aceitos pela sociedade. Dáse<br />
a explosão da contracultura e do movimento hippie, que questionavam à política<br />
imperialista do país protagonizada pela Guerra do Vietnã. Essa onda de contestação ficou<br />
conhecida como movimento underground, que pretendia transformar todo o sist<strong>em</strong>a vigente.<br />
O movimento alastrou-se por várias expressões artísticas, entre eles os quadrinhos. Alguns<br />
autores retomam sua identidade e postura crítica e surg<strong>em</strong> então os quadrinhos<br />
underground 23 , como expressão contestatória e irreverente, à marg<strong>em</strong> do mercado editorial e<br />
s<strong>em</strong> vínculos com lucros, livres das restrições morais e tendo como regra, não ter regra.<br />
Os movimentos de contracultura introduziram el<strong>em</strong>entos radicalmente inovadores à<br />
t<strong>em</strong>ática e a linguag<strong>em</strong> desses quadrinhos, caracterizados por um modo de narrar fundado<br />
sobre uma abordag<strong>em</strong> crítica do cotidiano, a celebração do sexo, das drogas, o<br />
estabelecimento de uma oposição aos valores identificados como dominantes, propondo<br />
assim novos olhares para a realidade americana. As possibilidades de experimentação<br />
estética, estilística e de diferentes fantasias expamdiram-se. As fantasias consideradas até<br />
então aversivas seriam legitimadas pelo público consumidor. Estas revistas irão se<br />
caracterizar por estilos e propostas visuais variados, com uma estética caricatural e realista,<br />
mas com aspecto sujo, carregado de traços e hachuras.<br />
Nomes como Robert Crumb, Gilbert Shelton, Bill Griffith, Victor Moscoso e Richard<br />
Corben tornaram-se célebres ao publicar com recursos próprios revistas <strong>em</strong> quadrinhos que<br />
desafiavam o código de ética e a censura imposta ao mercado. Delas, a mais famosa foi Zap<br />
Comix 24 , lançada <strong>em</strong> 1967 por Crumb 25 Os personagens underground se mostrarão<br />
22<br />
Escritor e editor norte-americano, que, com vários artistas e co-criadores - especialmente Jack Kirby e Steve<br />
Ditko -introduziu personagens complexas e um universo compartilhado entre heróis de histórias <strong>em</strong> quadrinhos.<br />
Seu sucesso ajudou a transformar a Marvel Comics de uma pequena publicadora para uma grande corporação<br />
multimídia.<br />
23<br />
“Nos estados Unidos, o termo underground é utilizado para definir movimentos contrários ao convencional<br />
ou movimentos de protesto. No caso dos comics, o underground equivale à “marginalidade”, isto é, à<br />
abordag<strong>em</strong> de assuntos considerados antiéticos ou proibidos, como liberdade sexual, f<strong>em</strong>inismo,<br />
homossexualismo e outros t<strong>em</strong>as condenados pela censura dos syndicates”. In: IANNONE, op cit, p.54.<br />
24<br />
Comix <strong>em</strong> oposição aos enquadrados comics. Na revista circularam diversos personagens exóticos e<br />
pornográficos.<br />
25<br />
O caminho aberto por Crumb, expoente máximo do movimento, se revelaria fecundo e originaria uma<br />
seqüência de comics revolucionários que não almejavam o lucro n<strong>em</strong> a popularidade dos respectivos autores,
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“extr<strong>em</strong>amente diferentes dos super-heróis, não ape<strong>nas</strong> por não possuír<strong>em</strong> superpoderes. Eles<br />
parec<strong>em</strong> ter uma existência real, parec<strong>em</strong> ser pessoas que viv<strong>em</strong> no cotidiano das grandes<br />
cidades e são diretamente influenciados pelos acontecimentos a sua volta” 26 . Essa<br />
aproximação da realidade faz desse tipo de quadrinho um lugar privilegiado para o debate <strong>em</strong><br />
torno destas questões consideradas polêmicas pela sociedade.<br />
No Brasil o cartunista Henfil deu início a tradição do formato “tira” 27 , com seus<br />
personagens Graúna e Os Fradinhos. O golpe militar e seu moralismo bateram de frente<br />
com os quadrinhos, mas inspiraram também publicações cheias de charges como O Pasquim<br />
(1969) que, <strong>em</strong>bora perseguido pela censura abusava de uma linguag<strong>em</strong> polêmica de humor<br />
contra o milagre econômico e fazia críticas incansáveis à ditadura. Henfil, Ziraldo, Fortuna,<br />
Milor Fernandes, Jaguar, são ape<strong>nas</strong> alguns autores da revista que chegou a vender cerca de<br />
200 mil ex<strong>em</strong>plares.<br />
Diversos livros com a t<strong>em</strong>ática dos quadrinhos foram lançados na década de 70,<br />
quando se tornaram praticamente um modismo, alguns deles: História <strong>em</strong> <strong>Quadrinhos</strong> de<br />
Zilda Augusto (1975), Os <strong>Quadrinhos</strong> de Antonio Cagnin (1975), Apocalípticos e Integrados<br />
de Umberto Eco (1970), Shazam! de Álvaro de Moya (1977), Para Ler os <strong>Quadrinhos</strong><br />
(1972) e A Linguag<strong>em</strong> dos <strong>Quadrinhos</strong>, ambos de Moacy Cirne (1975), entre outros.<br />
Houve uma razoável produção envolvendo o t<strong>em</strong>a <strong>nas</strong> décadas passadas, porém a<br />
grande maioria dos autores abordava o t<strong>em</strong>a de forma maniqueísta, ou seja, abordavam o<br />
t<strong>em</strong>a através de princípios antagônicos, como o b<strong>em</strong> e o mal. Para muitos estudiosos, que se<br />
apoiavam na teoria de Louis Althusser 28 , havia uma dominação dos meios de comunicação<br />
através dos aparelhos ideológicos de Estado. Sendo um dos ex<strong>em</strong>plos mais expressivos, o<br />
caso dos estudiosos Ariel Dorfman e Armand Matellart, que analisaram os personagens da<br />
mas o protesto de sinal libertário. Eles expressavam a sensibilidade do autor que detinha o domínio sobre sua<br />
obra, mesmo quando seu trabalho era publicado por editoras comerciais.<br />
26<br />
SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e cotidiano <strong>nas</strong> histórias <strong>em</strong> quadrinhos. São Paulo: Annablume,<br />
2002, p.23.<br />
27<br />
A única vertente dos quadrinhos da qual se pode dizer que desenvolveu um conjunto de características<br />
profundamente nacional é a tira. Sob a influência da rebeldia contra a ditadura durante os anos 60 e mais tarde<br />
de grandes nomes dos quadrinhos underground nos 80, a tira brasileira ganhou uma personalidade muito mais<br />
ácida e menos comportada do que a americana.<br />
28<br />
A ideologia, para Althusser, é a relação imaginária, transformada <strong>em</strong> práticas, reproduzindo as relações de<br />
produção vigentes. Os chamados aparelhos ideológicos de Estado, construíriam uma visão monolítica e acabada<br />
de organização social, onde tudo é rigidamente organizado, planejado e definido pelo Estado, que teria como<br />
objetivo manter e gerar a reprodução social. A visão extr<strong>em</strong>amente simplista dos aparelhos ideológicos como<br />
meros agentes para garantir o des<strong>em</strong>penho do Estado e da ideologia atraiu para Althusser freqüentes críticas. In:<br />
ALBUQUERQUE, J.A. Guilhon. “Althusser, A ideologia e as Instituições”. In: ALTHUSSER, Louis.<br />
Aparelhos Ideológicos do Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). RJ: Edições Graal,<br />
1985, 2° edição. Pgs.25-29.
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família Disney no Chile durante o governo do ex-presidente Salvador Allende (1970-<br />
1973) 29 .<br />
Eles acreditavam que essas histórias poderiam “manipular a mente” das crianças<br />
chile<strong>nas</strong> de tal forma que seriam utilizadas como “meros robôs” do “capitalismo selvag<strong>em</strong>”.<br />
Por outro lado, o estudo dos pesquisadores permitiu analisar a importância dos quadrinhos<br />
como mídia e como produto da indústria cultural que tinha como fim, além do<br />
entretenimento e da produção de lucro, exercer influência ideológica.<br />
Com a derrota na guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate 30 , as HQ’s na década<br />
de 70 serão marcadas por histórias carregadas de mudanças de valores no universo dos superheróis.<br />
Personagens (como o Capitão América) que se identificam com o papel dos EUA de<br />
guardião da liberdade e da d<strong>em</strong>ocracia, começam a se questionar sobre suas ações e outros<br />
(como o Wolwerine e Batman) ag<strong>em</strong> de forma individualizada, descrente das instituições e<br />
do Estado.<br />
Nos anos 80, os americanos criam as “grafic novels” 31 direcionadas para o público<br />
adulto. O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller decreta a maioridade nos quadrinhos, ao<br />
trazer um Batman sombrio, amargurado e violento. No fim da década de 1980 e ao longo dos<br />
anos 90, com o fim da Guerra Fria e a derrocada do comunismo, cai também a figura do<br />
“velho inimigo do Ocidente”. O inimigo agora estava dentro do próprio país: a extr<strong>em</strong>adireita.<br />
É a Era de bronze dos quadrinhos.<br />
Com a abertura política no Brasil, observou-se uma proliferação até então não vista<br />
no mercado nacional de produtos direcionados para a juventude urbana. Há uma absorção<br />
cada vez maior da população urbana, principalmente o jov<strong>em</strong> de classe média urbana, pela<br />
esfera de consumo. Um ex<strong>em</strong>plo é o rock, o rock nacional, b<strong>em</strong> como os quadrinhos.<br />
Paradoxalmente surg<strong>em</strong> as tribos urba<strong>nas</strong> com uma atitude de contestação dos valores<br />
dominantes. Surg<strong>em</strong> então novas propostas de revistas explorando esse mercado com<br />
características anárquicas e com conteúdos que l<strong>em</strong>bravam o teor de contracultura dos anos<br />
60 ou a ideologia punk dos anos 70.<br />
Este processo pelo qual passou o modelo heg<strong>em</strong>ônico de quadrinhos no Brasil<br />
alcançou seu ápice na década de 1980, revelando quadrinhistas que se mostravam sensíveis<br />
29 DORFMAN, Ariel & MATTELART, Armand. Para Ler o Pato Donald: Comunicação deMassa e<br />
Colonialismo. 2° Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.<br />
30 Escândalo político ocorrido na década de 1970 nos Estados Unidos da América que, ao vir a tona, acabou por<br />
culminar com a renúncia do presidente americano Richard Nixon eleito pelo partido republicano. "Watergate"<br />
de certo modo tornou-se um caso paradigmático de corrupção.<br />
31 Romance gráfico.
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para captar as novas linguagens e percepções da época. O ingresso na vida pública se dava<br />
não ape<strong>nas</strong> através da política formal, mas por diversos meios de expressão, entre eles o<br />
quadrinho underground. Novos horizontes passaram a ser almejados então por nossos jovens<br />
quadrinistas e cartunistas que irão se organizar <strong>em</strong> torno de centros acadêmicos para a<br />
produção de suas revistas “marginais”.<br />
Nomes como Angeli, Glauco e Laerte vieram a estabelecer os quadrinhos<br />
underground no Brasil durante os anos 80, desenhando <strong>em</strong> revistas como Circo e Chiclete<br />
com Banana, que surg<strong>em</strong> concomitant<strong>em</strong>ente à tribo punk. Juntos eles produziram as<br />
histórias de Los Três Amigos (sátira western com t<strong>em</strong>áticas brasileiras). Mais tarde juntou-se<br />
a "Los Três Amigos" o quadrinhista gaúcho Adão Iturrusgarai. 32<br />
A revista Chiclete com Banana, publicada pela Circo Editorial, de Toninho Mendes 33<br />
(que resolveu abrir a editora para divulgar seus amigos autores egressos dos fanzines 34 e<br />
revistas independentes da década de 70), tinha Angeli como editor e se auto denominava<br />
udigrudi 35 . Chiclete com Banana abriu no mercado brasileiro um filão de revistas que estava<br />
esquecido com personagens caricaturais que representavam os tipos sociais urbanos. Ela se<br />
tornou um marco no mercado editorial brasileiro, não só pelos altos índices de vendag<strong>em</strong><br />
(cerca de 120 mil ex<strong>em</strong>plares por edição, perdendo somente para o Pasquim que chegou a<br />
vender mais de 200 mil ex<strong>em</strong>plares), mas, sobretudo pela proposta de humor de costumes<br />
anárquicos e urbanos, criando figuras inigualáveis e tendo como seus principais<br />
consumidores, os punks.<br />
Mais tarde Angeli toma a audaciosa decisão de matar, <strong>em</strong> pleno auge, sua principal<br />
personag<strong>em</strong>: Rê Bordosa. O artista t<strong>em</strong>ia transformar-se <strong>em</strong> um autor preso a uma<br />
32 Os quatro publicam até hoje* na Folha de São Paulo e lançam álbuns por diversas editoras (mas<br />
principalmente pela Devir). A folha também publica tiras de Caco Galhardo (Pescoçudos) e Fernando Gonsales<br />
(Níquel Náusea).<br />
*Glauco foi recent<strong>em</strong>ente assassinado <strong>em</strong> sua casa na cidade de Osasco – São Paulo.<br />
33 Jornalista com passag<strong>em</strong> pelos jornais setentistas Movimento, Ovelha Negra e Versus.<br />
34 Essas revistas, devido à falta de estrutura econômica e organizacional, duravam poucos números ou n<strong>em</strong><br />
passavam do primeiro. Era um esforço coletivo s<strong>em</strong> grande fôlego, mas que traduzia de forma clara a<br />
insatisfação dos autores com a falta de veículos para publicação e com a situação política do país. Além da<br />
crítica e análise sobre os quadrinhos, eles fizeram surgir novos autores que não tinham espaço <strong>nas</strong> publicações<br />
comerciais.<br />
35 Espécie de Underground tardio, com forte eco do movimento punk inglês, dos guetos universitários de São<br />
Paulo. Underground aqui se transformou <strong>em</strong> udigrudi, no melhor jeitinho antropofágico brasileiro. O próprio<br />
nome da revista Chiclete com Banana parece revelar a percepção dos autores para um novo momento de<br />
abertura da cultura urbana brasileira. O chiclete, como aquilo que é industrializado, artificial, icônicamente<br />
americano e a banana, algo atrasado, natural, mas icônicamente nacional parecendo dizer que somos essa<br />
mistura que abriga grandes contrates. Isso parece ficar evidente na fala de Angeli que afirma que seus<br />
personagens são universais, mas com um diferencial: “Eles são do udigrudi. Underground tupiniquim é a coisa<br />
brasileira”. Entrevista que consta nos extras do filme/animação: Wood e Stock - Sexo, orégano e Rock’n’ Roll,<br />
2006.
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personag<strong>em</strong>. Assim, coloca <strong>nas</strong> bancas uma edição de luto de Chiclete com Banana, e lança o<br />
livro Rê Bordosa 1984-1987 - A morte da porraloca, um assassinato de Angeli.<br />
Por meio do periódico, Glauco popularizou sua personag<strong>em</strong> Geraldão, que divertia a<br />
partir de idéias psicológicas, como o complexo de édipo, a dependência <strong>em</strong>otiva e o<br />
complexo de Peter Pan, além de Casal Neuras, um casal que vivia brigando e tentando viver<br />
a revolução sexual, e Doy Jorge, roqueiro viciado que parodiava o artista Boy George,<br />
cantor do grupo Culture Club, ícone dos anos 80 graças às constantes internações por abuso<br />
de drogas, seu visual andrógino e sua assumida homossexualidade. Outro cartunista muito<br />
presente era Laerte, que comparecia bimestralmente com seu Piratas do Tietê. Outros ilustres<br />
colaboradores, foram Paulo Caruso, Marcatti, Reinaldo e Cláudio Paiva, que faziam outro<br />
periódico cômico do período, o Planeta Diário.<br />
A partir da década de 90 grandes desenhistas das HQ’s atuais sa<strong>em</strong> das duas maiores<br />
editoras de quadrinhos – Marvel Comics e DC Comics – e fundam a Image Comics e assim<br />
dois marcos se dão para a História da HQ’s estadunidenses, a colorização computadorizada e<br />
a influência dos mangás (quadrinhos japoneses) na caracterização dos personagens.<br />
Após o ataque as Torres Gêmeas nos EUA <strong>em</strong> 11 de set<strong>em</strong>bro de 2001, o mercado de<br />
quadrinhos foi afetado e desta forma foi feito um resgate ao estilo de arte dos pioneiros dos<br />
quadrinhos da Era de Prata e da década de 80. Nos últimos anos, com o avanço tecnológico<br />
do cin<strong>em</strong>a, o que v<strong>em</strong>os cada vez mais são adaptações de super-heróis para o cin<strong>em</strong>a que<br />
firmam, expand<strong>em</strong> e propagam ainda mais esse meio de Comunicação de Massa.<br />
II.3) E as mulheres como entram nessa História?<br />
No início do século havia dois universos distintos e b<strong>em</strong> delimitados para cada um<br />
dos sexos, o do hom<strong>em</strong> era público e o da mulher privado, limitado ao reduto doméstico 36 .<br />
Contudo, o desenrolar dos fatos políticos, econômicos e sociais trataram de mudar esta<br />
configuração. Com a Grande Depressão (1929 -1940) e a Segunda Guerra Mundial (1941 -<br />
1945), as mulheres foram obrigadas a assumir papéis mais ativos na sociedade e na família.<br />
Muitas delas passaram a trabalhar <strong>em</strong> fábricas - principalmente de munições - para sustentar<br />
a família e ajudar nos esforços de guerra. Outras - mais de 350 mil - foram ao próprio front<br />
36 É importante ressaltar que à mulher s<strong>em</strong>pre foram relegadas as atividades dentro de casa, <strong>nas</strong> ofici<strong>nas</strong> e nos<br />
ateliês das famílias, como rendeira, fiandeira, costureira, artesã, atividades consideradas de segunda categoria,<br />
associadas ao trabalho barato, ou seja, trabalho de mulher. Sobre este assunto, consultar Duby e Perrot, <strong>em</strong> A<br />
História das Mulheres. Vol. IV, 1991.
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auxiliando as tropas dos Estados Unidos, servindo como enfermeiras ou operadoras de rádio.<br />
O espaço f<strong>em</strong>inino foi arduamente conquistado, construído no contexto sócio-cultural.<br />
O cartaz de “Rosie, a Rebitadeira” (Ver figura abaixo) que mostrava a seguinte frase:<br />
“Nós pod<strong>em</strong>os fazê-lo!”, foi um ícone do envolvimento f<strong>em</strong>inino na guerra.<br />
Fonte: http://www3.eou.edu/hist06/Pictures.html Consultado <strong>em</strong> 06 /2008<br />
A identidade f<strong>em</strong>inina, antes escondida não tendo como se expressar vai surgir no<br />
campo do trabalho, mediante o saber-fazer estruturando a mulher como ser “real”. A partir<br />
daí ela vai ocupar um lugar antes só permitido ao hom<strong>em</strong> e que se expande, na medida <strong>em</strong><br />
que a produção e a d<strong>em</strong>anda de mão de obra convocam cada vez mais o trabalho f<strong>em</strong>inino,<br />
porém, ainda com salários indignos. É nesse momento que é concebida a imag<strong>em</strong> da Mulher-<br />
Maravilha como um símbolo da luta f<strong>em</strong>inina. Em 1942, fez então sua estréia a primeira<br />
super-heroína do mundo, criada pelo psicólogo William Moulton Marston, causando celeuma<br />
numa sociedade cheia de tabus, <strong>em</strong> que homens e mulheres tinham seus papéis definidos e<br />
diametralmente opostos <strong>em</strong> todas as áreas.<br />
O editor-chefe da DC Comics, Max Gaines, procurou Marston com o objetivo de<br />
inventar uma nova personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina no mesmo estilo de Batman, Super-Hom<strong>em</strong> e outros<br />
super-heróis da época. Em resposta, ele escreveu uma história chamada "Supr<strong>em</strong>a, a Mulher<br />
Maravilha" o que originou a nova personag<strong>em</strong> na All Star Comics, Sensation Comics e<br />
Detective Comics. 37<br />
O conceito de uma figura f<strong>em</strong>inina que subjugava o macho, <strong>em</strong> todos os sentidos, não<br />
era b<strong>em</strong> aceito. Marston antevendo a ida dos homens para a guerra 38 , acreditava que as<br />
mulheres eram mais honestas que os homens e criou uma personag<strong>em</strong> que levava a<br />
mensag<strong>em</strong> de que as mulheres tinham de entender seu potencial, lutar por direitos iguais e se<br />
37 Por mais que a personag<strong>em</strong> seja uma representação tida na época como “positiva” da mulher - “positiva”<br />
segundo os parâmetros sobre os quais seus produtores se baseavam com o intuito de atrair o público f<strong>em</strong>inino<br />
mais intensamente -, acabava-se por revelar um constructo do f<strong>em</strong>inino sob os olhos masculinos.<br />
38 A Guerra era algo que a mulher Maravilha condenava no “mundo patriarcal”.
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virar<strong>em</strong> por si mesmas, s<strong>em</strong> a ajuda doa homens. A Mulher Maravilha usava (e usa) as cores<br />
da bandeira americana 39 e, na maioria das HQ’s deste período inicial, combatia o crime e<br />
ajudava as mulheres. Porém, com a volta dos soldados para os EUA, as vendas da revista<br />
foram reduzidas consideravelmente, na mesma medida <strong>em</strong> que as mulheres foram<br />
recolocadas <strong>em</strong> "seu lugar": dentro de casa, e só voltaram a crescer após a morte de<br />
Marston. 40<br />
Isto pode ser verificado na capa abaixo (Conferir figura abaixo), onde a Supr<strong>em</strong>a, que<br />
meses antes derrotava exércitos sozinha, agora “frágil” aparecia nos colos de seu namorado<br />
(o soldado Steve Trevor) que a ajudava a cruzar um córrego.<br />
Fig.2 Fonte: http://www.coverbrowser.com/covers/sensation-comics/2 Consultado <strong>em</strong> 06/ 2008.<br />
Houve muitas heroí<strong>nas</strong> durante a história dos comics, mas a maioria tinha mais o<br />
propósito de alimentar as fantasias de garotos adolescentes do que focar o interesse de uma<br />
audiência f<strong>em</strong>inina. Nos quadrinhos de super-heróis, as personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong> foram quase<br />
s<strong>em</strong>pre retratadas ora como mocinhas indefesas que precisavam de heróis para salvá-las, ora<br />
como vilãs s<strong>em</strong> moral, que provocavam os heróis virtuosos.<br />
Mas, mesmo precisando dos homens as mulheres dos quadrinhos foram aos poucos<br />
ganhando autonomia e conquistando seu espaço. Dois ex<strong>em</strong>plos são: Diana Palme-Walker,<br />
esposa do Fantasma, e Lois Lane, eterna namorada do Superman. Elas são mulheres<br />
decididas e arrojadas, que quando surgiram (entre as décadas de 1930 e 1940) apresentavam<br />
uma certa independência e determinação incomuns para a época. Diana foi abandonando o<br />
estereótipo de mulher dedicada que cuida dos filhos e aguarda a chegada do companheiro à<br />
39 Apesar do uniforme, a heroína não é americana, n<strong>em</strong> cristã: é uma amazona grega, politeísta pagã, e<br />
originária de uma cultura matriarcal, com as mulheres guiando a sociedade desde a família aos negócios e até<br />
<strong>nas</strong> Forças Armadas.<br />
40 Pode-se dizer que neste momento ocorreu um verdadeiro baclash, palavra que na língua inglesa significa<br />
retrocesso, <strong>em</strong> especial, aquele que implica <strong>em</strong> perda de direitos para as mulheres, de espaço, <strong>em</strong> uma virada<br />
conservadora.
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noite. Atualmente, ela é uma alta funcionária da ONU, que concilia muito b<strong>em</strong> os afazeres de<br />
mãe e trabalhadora. Já Lois era um repórter que se metia <strong>em</strong> diversas confusões <strong>em</strong> nome da<br />
verdade, o que s<strong>em</strong>pre servia de mote para as ações heróicas do Hom<strong>em</strong> de Aço.<br />
Se até meados dos anos 50 as mulheres representadas pela cultura de massas eram<br />
namoradas virginais, heroí<strong>nas</strong> intocáveis ou vilãs tão sedutoras quanto inacessíveis, a<br />
revolução cultural dos anos 60 comprometeria definitivamente a representação dos papéis de<br />
gênero. Além disso, o Movimento F<strong>em</strong>inista 41 , iniciado no século 19 na Europa e nos EUA e<br />
catapultado ao centro dos acontecimentos, principalmente, pela classe média estadunidense<br />
do pós Segunda Guerra Mundial, eclode neste momento. Brigando contra preconceitos e<br />
tentando assumir seu lugar na história, as mulheres “atacam” <strong>em</strong> várias frentes 42 para<br />
divulgar suas idéias como: os direitos civis, os direitos trabalhistas e o confronto do sexismo<br />
com que eram abordados seus papéis na família.<br />
O estupro e a violência doméstica se tornaram os principais alvos no ativismo<br />
f<strong>em</strong>inino, e algumas f<strong>em</strong>inistas, como Andréa Dworkin, afirmavam que as mulheres não<br />
eram ape<strong>nas</strong> estupradas fisicamente, mas também economicamente e espiritualmente. A<br />
pílula anticoncepcional revolucionava o controle da reprodução e mudanças <strong>nas</strong> leis de<br />
aborto e controle da natalidade surgiam. Esta onda do f<strong>em</strong>inismo também foi marcada por<br />
uma extensa campanha voltada a compensar a discriminação social da mulher e por outro<br />
lado, pela insatisfação causada pelo recuo da situação das mulheres após a II Guerra<br />
Mundial. O movimento de contracultura esteve fort<strong>em</strong>ente presente no tipo de literatura,<br />
cin<strong>em</strong>a e política feitos na época, com as HQ’s não seria diferente.<br />
Nesta época aconteceu o boom f<strong>em</strong>inino <strong>nas</strong> HQ’s, foi uma avalanche de<br />
detetives, modelos, jornalistas, fotógrafas, artistas, <strong>em</strong>presárias b<strong>em</strong> sucedidas, verdadeiras<br />
guerreiras que acabaram por alterar os perfis das eter<strong>nas</strong> namoradas de heróis e das matro<strong>nas</strong><br />
mal humoradas. Barbarella (Jean Claude Forest) foi a pioneira e na sua esteira vieram,<br />
Jodelle (Guy Pellaert), a italiana Valentina (Guido Crepax), e outras. Elas exerciam<br />
deliberadamente sua sexualidade, que as mulheres lutavam tanto para conseguir, <strong>em</strong><br />
41 Além de reivindicar direitos e deveres iguais para mulheres e homens, o movimento também começou a<br />
trazer à tona informações pouco divulgadas sobre hábitos e modos do universo f<strong>em</strong>inino, além de lutar pelo<br />
reconhecimento da mulher como “Sujeito” dentro da sociedade.<br />
42 Uma das frentes mais importantes, <strong>em</strong> razão da grande influência que exerc<strong>em</strong> na sociedade, são as<br />
universidades. Por isso, durante a década de 60 as mulheres começam a questionar os cânones literários,<br />
fazendo com que o paradigma da crítica literária patriarcal vá, aos poucos, desmoronando. O foco de atenção do<br />
movimento na área literária é, primeiro, a representação da mulher na literatura e, depois, o restrito número de<br />
mulheres escritoras consideradas “a altura” dos escritores homens para pertencer ao cânone literário.
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aventuras que as colocavam <strong>em</strong> épocas e situações inverossímeis, <strong>nas</strong> quais a troca constante<br />
de parceiros e as façanhas sexuais estão entre o intangível e o pornográfico. 43<br />
Nos quadrinhos da Marvel desse período, apesar de haver pelo menos uma mulher <strong>em</strong><br />
cada super-grupo da editora, o papel destas heroí<strong>nas</strong> geralmente era limitante, dividindo sua<br />
participação à subordinação a um hom<strong>em</strong> e aos desmaios freqüentes. A Garota Invisível, do<br />
Quarteto Fantástico, além de ficar invisível para evitar se envolver <strong>nas</strong> lutas, muitas vezes<br />
extenuava-se ao usar seu poder e desmaiava. A Garota Marvel, dos X-Men, tinha o fantástico<br />
poder da telecinésia, mas s<strong>em</strong>pre se mostrava inclinada a desmaiar. Ambas eram referidas<br />
como “Garotas” e não como “Mulheres”, enquanto heróis adolescentes como o Hom<strong>em</strong>-<br />
Aranha e o Hom<strong>em</strong> de Gelo não eram retratados como “Garotos”.<br />
A antítese dessas "bonecas de luxo", Mary Jane Watson, liberada e auto-suficiente<br />
desde sua primeira aparição, nunca pareceu ser a mulher ideal para Peter Parker (Hom<strong>em</strong>-<br />
Aranha), n<strong>em</strong> mesmo quando, finalmente, casaram-se. Ela e Lois Lane ass<strong>em</strong>elhavam-se no<br />
fato de, não se encontrar<strong>em</strong> muito satisfeitas com seus respectivos maridos, e até tiveram<br />
seus momentos de infidelidade. E infiel é algo que seus companheiros nunca foram, o que<br />
reforça um traço do machismo ainda reinante <strong>nas</strong> HQs, <strong>nas</strong> quais o mocinho vive acima de<br />
qualquer deslize e suas parceiras carregam os pecados do mundo.<br />
Na década de 70, o poder e a atuação das mulheres na coletividade norte-americana<br />
vinham crescendo e o desenvolvimento da consciência f<strong>em</strong>inista e da luta pelos direitos civis<br />
das mulheres havia transformado os papéis de gênero na América. Com o advento da pílula,<br />
da revolução sexual e dos costumes, da inserção acelerada das mulheres no mercado de<br />
trabalho, o “escurecimento” dos movimentos f<strong>em</strong>inistas e de forte opressão e instauração das<br />
ditaduras militares sul america<strong>nas</strong>, eclodia um debate latente de gênero.<br />
Naquela época, as personagens <strong>nas</strong> HQ’s seguiam representando imagens cada vez<br />
mais controversas que, por sua vez, prosseguiam convivendo com as já conhecidas. Estas<br />
mudanças sobre a performance das mulheres na sociedade estadunidense refletiram-se nos<br />
quadrinhos de super-heróis. Até então os criadores e editores nunca haviam estado tão<br />
preocupados <strong>em</strong> criar novas idéias para atrair o público jov<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inino. Roy Thomas e<br />
Gerry Conway criaram Thundra para o Quarteto Fantástico, uma vilã que depois se tornaria<br />
aliada, vinda de uma linha t<strong>em</strong>poral futura matriarcal e tecnologicamente avançada, onde as<br />
mulheres haviam subjugado os homens. Foi o primeiro personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inino da editora a se<br />
equiparar <strong>em</strong> força e tamanho com seus heróis masculinos. Na década seguinte, com este<br />
43 MOYA, Álvaro de. “As taradinhas dos <strong>Quadrinhos</strong>”. In: Shazam. Perspectiva: São Paulo, 1977, p.181.
História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
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mesmo ideal, surgiriam a Mulher-Hulk, prima do Hulk, que se tornaria heroína, e Titânia,<br />
que ganhando poderes, resolvia se tornar uma vilã após uma vida de humilhação e derrota.<br />
A verdade era que a despeito dos estereótipos usados na criação de alguns<br />
personagens f<strong>em</strong>ininos, a Marvel queria investir na audiência de jovens mulheres que agora<br />
começavam a se tornar mais representativas tanto socialmente como economicamente. Em<br />
1972, a editora lançou três revistas não só estreladas por personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong>, mas também<br />
desenvolvida por artistas e escritoras mulheres. As séries eram: Shanna, the She-Devil, Night<br />
Nurse e The Claws of the Cat.<br />
Com o grande crescimento editorial das revistas f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong>, surgia no Brasil, a<br />
ex<strong>em</strong>plo do que acontecia <strong>em</strong> outros países, a figura da mulher moderna, aquela que<br />
questionava os velhos arquétipos do f<strong>em</strong>inino, inserindo-se cada vez mais nos dil<strong>em</strong>as do<br />
mundo público. Elas incorporavam as propostas libertárias do f<strong>em</strong>inismo, herdadas da<br />
contracultura dos anos 60. Predominava no Brasil, neste momento, o humor político do<br />
Pasquim, com conteúdo de ferina oposição à ditadura. Em grande parte das vezes que a<br />
figura da mulher era evocada no Pasquim, servia aos clichês do objeto de desejo, figurava<br />
como adereço meramente decorativo. Isto quando não era utilizado o escárnio para retratar<br />
t<strong>em</strong>as da inserção da mulher no mundo público, satirizando as desventuras da então<br />
<strong>em</strong>ergente cruzada f<strong>em</strong>inista 44 .<br />
No Brasil da década seguinte, com a descoberta das consumidoras mulheres e da<br />
consolidação da imprensa f<strong>em</strong>inina, assistimos o surgimento da lânguida mulher pósmoderna:<br />
Radical Chic de Miguel Paiva, publicada <strong>em</strong> 1982, na ultima página da revista<br />
Domingo, supl<strong>em</strong>ento s<strong>em</strong>anal do Jornal do Brasil. Com seu corpo longilíneo e seus cabelos<br />
curtos e vermelhos, ela representava as aspirações das mulheres de trinta anos que,<br />
supostamente, conciliavam a independência financeira sexual à busca pela estética e pelo<br />
consumo. Ela pensa, diz e faz tudo que qualquer mulher desejaria neste mundo machista, e<br />
vive o papel que quer, não o que a sociedade determina. Durante todos esses anos, porém,<br />
ainda não encontrou o hom<strong>em</strong> que conseguisse entender seu comportamento tão avançado.<br />
Mas, as aparentes mudanças comportamentais não trouxeram grandes rupturas com as<br />
imagens clássicas, popularizadas até então, mesmo quando utilizadas com o propósito da<br />
contestação. Ainda que sujeitos e protagonistas das HQs, as personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong><br />
continuavam a ser objeto de desejo do olhar dos homens, que produziam e consumiam suas<br />
44 Referência s<strong>em</strong>elhante encontramos na revista argentina Sex Humor, que trazia cartunistas do porte de Quino (celebre<br />
criador de Mafalda), exercendo a critica social num período de repressão. A mulher surgia também como paisag<strong>em</strong> - neste<br />
caso fort<strong>em</strong>ente erótica, já que também se enaltecia o conteúdo picante- intercalando o viés político da publicação.
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imagens. O mesmo se pode dizer do underground nos anos 80. E a personag<strong>em</strong> Rê Bordosa,<br />
que analisar<strong>em</strong>os mais detidamente a seguir, era ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático dessa ironia.<br />
III- Rê Bordosa<br />
III.1) A pin-up dos anos 80:<br />
Criada <strong>em</strong> 1984, Rê Bordosa, aparece <strong>em</strong> sua primeira história deitada <strong>em</strong> sua<br />
banheira, lamentando não se l<strong>em</strong>brar do que havia feito na noite passada. Começava assim a<br />
saga da “pin-up dos anos 80” 45 . Entretanto, a personag<strong>em</strong> não se parecia muito, n<strong>em</strong><br />
fisicamente, n<strong>em</strong> ideologicamente, com as tradicionais pin-ups. Sua discutível sensualidade<br />
era fruto exatamente da sua não-f<strong>em</strong>inilidade.<br />
Surgida no período <strong>em</strong> que o cin<strong>em</strong>a, as telenovelas e a imprensa, sobretudo a<br />
f<strong>em</strong>inina, destacavam a imag<strong>em</strong> da mulher liberada, capaz de d<strong>em</strong>onstrar abertamente seu<br />
interesse por uma realização sexual fora do casamento, a personag<strong>em</strong> tornou-se famosa por<br />
apresentar-se <strong>em</strong> situações inusitadas frente à moral cristã e machista brasileira, num<br />
comportamento autodestrutivo que oscilava entre noites de farras nos bares e dias de ressaca<br />
na banheira. Entretanto, diante dela havia s<strong>em</strong>pre os “d<strong>em</strong>ônios” da época: a culpa cristã, o<br />
conflito generacional e a psicanálise freudiana. Rê Bordosa optava por uma solução distinta<br />
das práticas f<strong>em</strong>inistas de reivindicação dos anos 60 e 70. Refugiava-se na bebida e no sexo<br />
como forma de evidenciar a sua discordância com o sist<strong>em</strong>a. Sua apatia não se limitava às<br />
instituições opressoras, mas estendia-se à sociedade como um todo, inclusive aos<br />
movimentos que vinham na contramão destes valores. A personag<strong>em</strong> combinava o ceticismo<br />
e o desprezo às convenções provenientes do movimento punk ao comportamento de uma<br />
geração que vivia um momento de abertura política 46 .<br />
45<br />
Angeli a chamaria assim, numa brincadeira com as sensuais ilustrações de belas mulheres, que se tornariam<br />
mania a partir dos anos 50, principalmente entre os soldados que levavam esses desenhos consigo como um<br />
“alivio”das guerras.<br />
46<br />
SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e cotidiano <strong>nas</strong> histórias <strong>em</strong> quadrinhos. São Paulo: Annablume,<br />
2002, p.28).
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Fig. 3 - Imag<strong>em</strong> digitalizada da capa do livro de Angeli: Rê Bordosa. Vida e obra da Porraloca.<br />
São Paulo:Devir, 2001<br />
Para mostrar que toda “liberação” t<strong>em</strong> um preço alto a se pagar, Rê Bordosa aparece<br />
com freqüência lastimando-se da própria vida. Há nela uma latente necessidade de<br />
“contenção e punição” por suas transgressões 47 . Rê Bordosa representava a mulher indefinida<br />
da época, que numa sociedade pós-f<strong>em</strong>inista permitia-se entregar aos prazeres mundanos da<br />
bebida e do sexo casual e, no caso da personag<strong>em</strong>, admitia a aversão ao casamento e a vida<br />
doméstica.<br />
Em Rê Bordosa encontramos o que Bhabba 48 descreve como esteriótipo binário. Ao<br />
dar a mulher a possibilidade de desfrutar de tudo aquilo que lhe era proibido pelo patriarcado,<br />
no caso a vivência de uma sexualidade superlativa e o pleno antagonismo diante dos prazeres<br />
mundanos, logo surg<strong>em</strong> outros estratag<strong>em</strong>as, outras leis que inib<strong>em</strong> as suas aspirações. A<br />
imag<strong>em</strong> de mulher “<strong>em</strong>ancipada” e avessa às coerções e preconceitos colide com os códigos<br />
de controle, que sobreviv<strong>em</strong> mesmo <strong>em</strong> produções culturais contrárias à ord<strong>em</strong> estabelecida.<br />
III.2) A virg<strong>em</strong> ou a promíscua?<br />
Em Rê Bordosa, coexist<strong>em</strong> imagens conflitantes de f<strong>em</strong>inino. A mesma personag<strong>em</strong>,<br />
ao atuar como protagonista, assume o comportamento de devoradora de homens, mas, <strong>em</strong><br />
seus momentos de depressão, sonha com o “príncipe encantado”. Nos bares, s<strong>em</strong>pre está<br />
disponível para aquele que se dispuser a pagar uma dose de bebida. O que mostra os homens<br />
figurando como os provedores, sugerindo que o sexo continua a ser moeda de troca das<br />
mulheres.<br />
47<br />
KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cin<strong>em</strong>a: os dois lados da câmera. Tradução Helen Márcia Potter Pessoa.<br />
Rocco: Rio de Janeiro, 1995, p.232).<br />
48<br />
BHABBA, Homi. O local da cultura. Trad: Myriam Ávila, Eliana Reis, Gláucia Gonçalves. Ed. UFMG: Belo<br />
Horizonte, 1998.
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Em seus delírios de culpa, a personag<strong>em</strong> freqüent<strong>em</strong>ente adota um discurso de<br />
arrependimento e evoca el<strong>em</strong>entos sacro-religiosos, mencionando missas, padres, igrejas e<br />
casamentos. A culpa e a solidão do aborto também são mostradas <strong>nas</strong> tiras de Rê Borbosa.<br />
Ao descobrir que está grávida, depara-se com a omissão de todos os freqüentadores do bar,<br />
ex-parceiros que se apressam a afirmar que não são os pais da criança. Dirigindo-se ao<br />
guichê da clínica de abortos, é interpelada pela atendente que pergunta se ela vai querer “com<br />
culpa ou s<strong>em</strong> culpa”.<br />
Em outra tira ameaça suicidar-se pulando do parapeito de um prédio, caso não<br />
aparecesse um marido nos próximos quinze minutos. Mostrando quais são as duas únicas<br />
opções para a mulher: assumir o fardo da autopreservação e conseguir um casamento ou<br />
entregar-se à promiscuidade, condenando-se a um inferno social. Porém, ao mostrar a<br />
liberação de uma mulher que escolhe quando e com qu<strong>em</strong> exerce sua sexualidade, apela-se<br />
para o estereótipo da ninfomaníaca e para características historicamente marcadas como<br />
masculi<strong>nas</strong> como a força e a agressividade 49 .<br />
O que se vê é uma amante insaciável com atitudes masculinizadas. Rê Bordosa é<br />
mostrada numa postura s<strong>em</strong>elhante a dos homens: faz xixi de pé no banheiro masculino,<br />
apresenta um comportamento monogâmico, trocando incansavelmente de parceiros, se<br />
comportando como um típico boêmio à caça. Objeto de desejo de homens, mas também<br />
desejando ter uma vida “normal”, confrontando então, características de uma mulher<br />
“liberada”, porém com traços da mulher tradicional, conservadora. Nada mais faz senão<br />
incorporar os estereótipos negativos conferidos a eles, que, com o aval da sociedade, pod<strong>em</strong><br />
exercer a infidelidade, o descompromisso afetivo ou se envolver<strong>em</strong> com muitas mulheres ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po. A personag<strong>em</strong> parece ser não somente uma construção do desejo do hom<strong>em</strong>,<br />
mas o espelho do próprio hom<strong>em</strong> 50 .<br />
III.3) A censura moral:<br />
Rê Bordosa está cercada de personagens que lhe chamam para os deveres da<br />
sociedade dominante, a maioria deles incorporam papéis autoritários, como a sua mãe, o<br />
analista e até mesmo o garçom do bar que freqüenta. Atuando como discretos censores,<br />
apesar de apresentar<strong>em</strong> suas próprias contradições, eles reprim<strong>em</strong> o comportamento marginal<br />
49 PASSERINI, Luise. “Mulheres, consumo e cultura de massas”. In: Duby, Georges & Perrot, Michele. [Orgs].<br />
História das Mulheres no Ocidente: o Século XX. Tradução Maria Helena da C. Coelho, Irene Maria<br />
Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota. Afrontamento: Porto, Ebradil: São Paulo. V. 5, 1991, p.383.<br />
50 Angeli já teria afirmado <strong>em</strong> diversas entrevistas ser a Rê Bordosa sua versão f<strong>em</strong>inina.
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de Rê Bordosa que por sua vez, <strong>em</strong> vez de argumentar <strong>em</strong> favor de suas convicções mostrase<br />
frágil e culpada.<br />
Com Juvenal, o garçom, chora e desabafa no balcão, admitindo o seu desencanto pela<br />
vida, enquanto ele se mostra solícito e paternal, consolando-a e pagando a sua conta no bar.<br />
Mesmo sendo também amante de Rê Bordosa, Juvenal critica a sua promiscuidade e chega a<br />
lhe propor casamento, mostrando que é um “bom sujeito”. A mãe, que aparece sob o título de<br />
“a culpada”, se limita a dar conselhos para que ela procure um marido e tapa os ouvidos para<br />
não escutar as histórias de suas peripécias. “Uma mãe sofre quando vê a filha afundar pelo<br />
ralo”, diz ao verificar que a filha tinha escoado junto à água da banheira. O analista surge<br />
para escutar as divagações existenciais da solitária personag<strong>em</strong>, e questiona seu<br />
comportamento com a autoridade de qu<strong>em</strong> assume o papel de “voz da consciência”.<br />
O repúdio de Rê Bordosa às instituições também é relativo. Em suas crises<br />
existenciais ela aceita pedidos de casamento, liga para centros de valorização da vida,<br />
alcoólicos anônimos e, uma vez, se apresenta num balcão de achados e perdidos tentando<br />
resgatar “sua vida, seu corpo, sua moral”, enfim tudo que havia perdido, por não acreditar na<br />
sociedade.<br />
Ao retratar uma mulher movida por estímulos libertadores políticos e sociais, o que se<br />
evidencia é que ela fracassou ao tentar concretizar seu intuito de fugir dos modelos impostos.<br />
A visão derrotista impregna a personag<strong>em</strong> – algumas vezes partindo de seu próprio olhar –<br />
atestando que a busca pela <strong>em</strong>ancipação f<strong>em</strong>inina é uma luta vã que levará a uma previsível<br />
derrota. Em momento algum Rê Bordosa orgulha-se de sua condição f<strong>em</strong>inina, ou explicita<br />
os reais motivos de haver rejeitado o comportamento padrão. Sua busca por independência e<br />
prazer é vista como sintoma de uma época <strong>em</strong> que as identidades encontram-se estilhaçadas,<br />
onde o porvir não é mais ansiado com esperança e o presente é assistido com ceticismo.<br />
III.4) A Morte como punição<br />
Na década de 80 os movimentos coletivos de <strong>em</strong>ancipação viviam um período de<br />
descrédito e enfraquecimento, f<strong>em</strong>inilidades fragmentadas dispersavam-se, sendo aos<br />
poucos, absorvidas pela Indústria Cultural que dava vez às vozes f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong> - quase s<strong>em</strong>pre<br />
trazidas à vida pelo olhar masculino - mas que as mantinham sob as pressões de uma<br />
sociedade ainda patriarcal.<br />
Como observa E. Ann Kaplan ao analisar o cin<strong>em</strong>a produzido nos anos 80:
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“A ameaça trazida à tona pelo movimento de liberação da mulher foi reduzida<br />
nos anos 80 à medida que a cultura americana trabalhou no sentido de integrar<br />
(na melhor das hipóteses), cooptar (na pior), as exigências feitas pelas<br />
mulheres; de modo que abriu-se uma brecha dentro da qual os probl<strong>em</strong>as<br />
envolvendo diferenças sexuais e papéis diferentes dos sexos finalmente<br />
puderam ser enunciados, mesmo que os resultados estejam longe de ser<br />
progressistas” 51<br />
É possível observar que nessa brecha aberta na produção cultural dos anos 80, ocorre<br />
um visível desacordo entre interesses da “massa” e imposições da “indústria”. No caso<br />
específico da personag<strong>em</strong> Rê Bordosa, isto pode ser observado no fenômeno de<br />
“aniquilamento”, ocorrido no momento <strong>em</strong> que a tira vivia o auge de sua popularidade. Ela<br />
foi “morta” pelo autor numa edição especial da Chiclete com Banana – intitulada A morte da<br />
porraloca - lançada <strong>em</strong> 1989 pela Circo Editorial. Angeli desistiu de a seguir publicando por<br />
opinar que seria difícil “acreditar numa mulher que leva uma vida como a dela nesses t<strong>em</strong>pos<br />
de AIDS e patrulha sexual” 52 .<br />
Na história, ela escapa à tentativa de Angeli <strong>em</strong> crise de matá-la, é salva das águas<br />
sujas de um rio por um grupo de mendigos, escapa de um carro <strong>em</strong> chamas e abriga-se num<br />
convento onde se torna noviça. Mas, como o apelo da nostalgia é forte frente à quietude da<br />
vida religiosa, ela retorna, finalmente, à caça nos bares da cidade. Chegando lá, depara-se<br />
com dois negros que a convidam para uma festa privada. A diversão é interrompida por uma<br />
batida policial, que a obriga a fugir pela janela, para não ser detida. Fora do prédio, pendurase<br />
num meio fio que não resiste ao peso e despenca no chão das ruas. Estendida na calçada,<br />
agonizante, enxerga um bando de espermatozóides voadores a qu<strong>em</strong> pede socorro, mas eles<br />
respond<strong>em</strong> <strong>em</strong> coro: “Se procuras a salvação, baby, bateste <strong>em</strong> porta errada. Somos o fim do<br />
milênio...Yeah! Somos o vírus da destruição...”, numa alusão à AIDS - “os terríveis vírus do<br />
mundo moderno” como são chamados na história. Sozinha e aflita, ela corre na direção<br />
contrária, dobrando a esquina oposta para pedir ajuda à primeira pessoa que encontra pelo<br />
caminho. Encontra um pregador evangélico da direita religiosa que também passa a perseguíla,<br />
de crucifixo <strong>em</strong> punho, anunciando que ela “queimará no fogo do inferno”.<br />
Rê Bordosa entra pela primeira porta que aparece. No interior do ambiente,<br />
reconhece uma voz amigável, que imagina ser a de Deus. Mas surpreende-se ao constatar que<br />
qu<strong>em</strong> lhe falava era Juvenal, o garçom do bar que freqüentava, o “bom sujeito” s<strong>em</strong>pre apto a<br />
ouvir os seus queixumes e a oferecer doses gratuitas de vodca <strong>em</strong> troca de um pouco de sexo.<br />
51 KAPLAN,op.cit, p.113<br />
52 CIRNE, Moacy.História e Crítica dos <strong>Quadrinhos</strong> Brasileiros. Editora Europa: Rio de Janeiro, 1990, p.83
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Juvenal arrebata Rê Bordosa com o pedido irrecusável de que se case com ele: “A vida tá<br />
perigosa, só o casamento é a salvação”.<br />
Fora da proteção do bar e da sua banheira, não existia muitos lugares onde sua<br />
existência pudesse ser possível. A ameaça transgressora de uma mulher como ela era<br />
considerada uma afronta ao patriarcado. Só o casamento poderia domá-la, mantê-la distante<br />
dos vícios e com sua sexualidade vigiada e controlada. Rê cai então na armadilha daquele<br />
que foi seu grande rival - o casamento.<br />
Os últimos dias da personag<strong>em</strong> resum<strong>em</strong>-se à rotina conjugal, numa sátira aos casais<br />
que se sentam no sofá da sala para ver TV, acumulando quilos, despreocupados com o lazer e<br />
a sexualidade. Rê se converte numa dona de casa s<strong>em</strong> grandes aspirações, com um marido<br />
possessivo que proíbe as bebidas e o cigarro, controla o que ela come, veste e com qu<strong>em</strong> sai,<br />
legitimado pelo rótulo de “protetor”. Completamente entediada, a personag<strong>em</strong> sente falta de<br />
seu passado noturno, dos amantes e da bebida. Assim, Rê Bordosa sucumbe ao vírus tédius<br />
matrimonius e finalmente morre, explodindo, literalmente, quando ele sugere que tenham seu<br />
primeiro filho.<br />
IV- CONCLUSÃO:<br />
Com a evolução das HQs, a forma como as mulheres eram retratadas sofreu algumas<br />
modificações. E estas refletiam o contexto social de cada época. Se, <strong>em</strong> princípio, elas eram<br />
meros objetos do desejo, passaram a amantes insaciáveis com a liberação sexual. As<br />
mulheres dos quadrinhos assumiram modelos diversos, que foram se modificando à medida<br />
<strong>em</strong> que as mulheres reais iam conquistando seu espaço na sociedade.<br />
Assim, se, por um lado, ascender ao papel de protagonistas e ganhar maior<br />
visibilidade num veículo de comunicação de massa como as histórias <strong>em</strong> quadrinhos é uma<br />
vitória das mulheres, por outro, a “nova” mulher, que reivindica igualdade de direitos com os<br />
homens, não consegue se identificar com sua representação de papel. Tudo porque as<br />
personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong> que passam a habitar os quadrinhos, independentes e liberadas, não<br />
são uma criação das mulheres, mas uma projeção masculina sobre os modelos reivindicados<br />
por mulheres no mundo todo 53 . A falta de identificação do público f<strong>em</strong>inino com as<br />
personagens esbarra, sob todos os ângulos, no conceito de representação f<strong>em</strong>inina difundido<br />
pelos artistas homens.<br />
53 Não é só com as personagens das histórias <strong>em</strong> quadrinhos que as mulheres da década não consegu<strong>em</strong> se<br />
identificar. O mesmo ocorreria com as personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong> da literatura e do cin<strong>em</strong>a.
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“A forma essencial de ver a mulher, o uso básico a que se destina sua imag<strong>em</strong><br />
não mudou. A mulher é representada de uma maneira bastante diferente do<br />
hom<strong>em</strong> – não porque o f<strong>em</strong>inino é diferente do masculino – mas porque se<br />
presume s<strong>em</strong>pre que o expectador “ideal” é masculino, e a imag<strong>em</strong> da mulher<br />
t<strong>em</strong> como objetivo agradá-lo”. 54<br />
O estudo de caso de Rê Bordosa nos ajuda a refletir sobre a permanência dos modelos<br />
conservadores na construção das personagens f<strong>em</strong>ini<strong>nas</strong> surgidas num contexto posterior ao<br />
f<strong>em</strong>inismo e à revolução sexual. Ao observarmos a evolução narrativa, culminando com a<br />
morte, observamos um ex<strong>em</strong>plo de contraponto ao discurso triunfalista da <strong>em</strong>ancipação<br />
f<strong>em</strong>inina do final dos anos 80, que se apressava <strong>em</strong> afirmar que a mulher ocupava os espaços<br />
públicos da sociedade de forma pro<strong>em</strong>inente e tinha conquistado a ansiada autonomia.<br />
Ela escapa pela fresta do casamento, alternativa apresentada como “correta” desde o<br />
início, mas rejeitada <strong>em</strong> função de sua aparent<strong>em</strong>ente “inútil” sede de prazer e diversões,<br />
mostrando que a opção pela independência era ape<strong>nas</strong> capricho de uma mulher que não<br />
queria enfrentar sua verdadeira vocação social. O sofrimento de Rê Bordosa durante todo o<br />
episódio de sua morte mostra que a releitura dos papéis sexuais, mesmo numa estética e<br />
discurso inovadores, aporta numa nova perspectiva de misoginia, na qual as “coerções se<br />
revest<strong>em</strong> <strong>em</strong> novas rendas” 55 .<br />
V - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />
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54 BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.66.<br />
55 DOTTIN-ORSINI. A Mulher que eles chamavam fatal: textos e imagens da misoginia fin-desiécle.Tradução<br />
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Disponível <strong>em</strong>: http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/J/Jos<strong>em</strong>ara_Neis_08.pdf<br />
Acessado pela ultima vez <strong>em</strong> 07/06/2008<br />
Revistas:<br />
As Maiores <strong>Histórias</strong> da Mulher-Maravilha. São Paulo, Panini comics, julho de 2008.<br />
Chiclete com Banana São Paulo, Circo Editora. n.1-24. (1985-1990).<br />
Fonte: http://www3.eou.edu/hist06/Pictures.html Consultado <strong>em</strong> 06 /2008<br />
Fig.2 Fonte: http://www.coverbrowser.com/covers/sensation-comics/2 Consultado <strong>em</strong> 06/ 2008.
História, imag<strong>em</strong> e narrativas<br />
N o 11, outubro/2010 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimag<strong>em</strong>.com.br<br />
Fig. 3 - Imag<strong>em</strong> digitalizada da capa do livro de Angeli: Rê Bordosa. Vida e obra da Porraloca.<br />
São Paulo:Devir, 2001