As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho ... - UFSCar
As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho ... - UFSCar
As Consequências do Abuso Sexual para o Desempenho ... - UFSCar
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS<br />
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS<br />
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO E METODOLOGIA DE ENSINO<br />
CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA<br />
<strong>As</strong> <strong>Consequências</strong> <strong>do</strong> <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> <strong>para</strong> o <strong>Desempenho</strong> Acadêmico da<br />
Criança<br />
São Carlos<br />
2011
Universidade Federal de São Carlos<br />
Centro de Educação e Ciências Humanas<br />
Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia<br />
<strong>As</strong> <strong>Consequências</strong> <strong>do</strong> <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> <strong>para</strong> o <strong>Desempenho</strong> Acadêmico da<br />
Criança<br />
João Carlos Melli<br />
Trabalho de conclusão de Curso<br />
apresenta<strong>do</strong> à Universidade Federal de São<br />
Carlos, como parte <strong>do</strong>s requisitos <strong>para</strong><br />
obtenção de diploma de graduação no curso<br />
de Licenciatura Plena em Pedagogia.<br />
Orienta<strong>do</strong>ra: Profa. Dra. Rachel de Faria Brino (DMed)<br />
São Carlos 2011
Ficha Catalográfica<br />
MELLi<br />
364.153<br />
MELLI, João Carlos<br />
<strong>As</strong> <strong>Consequências</strong> <strong>do</strong> <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> <strong>para</strong> o<br />
<strong>Desempenho</strong> Acadêmico da Criança. 2011.<br />
41 p.<br />
Trabalho apresenta<strong>do</strong> como requisito <strong>para</strong> aprovação na<br />
disciplina Monografia de Conclusão de Curso em<br />
Licenciatura Plena em Pedagogia da Universidade<br />
Federal de São Carlos (<strong>UFSCar</strong>).<br />
Professor responsável: Rachel Faria Brino<br />
1.PSICOLOGIA. 2.SEXUALIDADE.<br />
3.ABUSO SEXUAL. 4. DESEMPENHO ESCOLAR<br />
I. Título.
Pareceristas<br />
Profa. Sub. Sabrina Mazo D’Affonseca (DPsi)<br />
Prof. Dr. Eduar<strong>do</strong> Pinto e Silva (DEd)
Dedico esse trabalho ao meu pai: Francisco Melli - Um<br />
homem simples e generoso que nunca frequentou uma sala de aula, um<br />
analfabeto que hoje está ven<strong>do</strong> seu filho concluir um curso superior em<br />
Pedagogia.
Agradecimentos<br />
Agradeço primeiramente à minha orienta<strong>do</strong>ra Profa. Dra. Rachel de Faria<br />
Brino <strong>do</strong> Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, pela<br />
prontidão em me orientar, pela paciência e pela atenção a mim dispensada.<br />
Agradeço aos meus amigos que acreditaram em mim, mais <strong>do</strong> que eu mesmo<br />
acreditei. A minha família pela minha ausência e pela minha obstinação em continuar<br />
até o final, apesar de alguns percalços no caminho.
Sumário<br />
Introdução..........................................................................................................08<br />
Capítulo 1- <strong>Abuso</strong> sexual infantil: aspecto histórico e geral..............................09<br />
Capítulo 2- O desenvolvimento da sexualidade infantil....................................19<br />
Capítulo 3- O desenvolvimento cognitivo <strong>para</strong> Jean Piaget...............................26<br />
Capítulo 4- <strong>As</strong> consequências <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> o desempenho acadêmico da<br />
criança.................................................................................................................30<br />
Considerações Finais...........................................................................................37<br />
Referências Bibliográficas..................................................................................40
Introdução<br />
Este trabalho de conclusão de curso teve como aspiração o estu<strong>do</strong> bibliográfico<br />
das consequências <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> o desempenho acadêmico da criança nos<br />
primeiros anos de sua vida escolar. A pesquisa se propôs a fazer um levantamento<br />
bibliográfico sobre o assunto através de artigos acadêmicos e livros de autores que se<br />
debruçaram sobre o tema nos últimos dez anos, tanto no Brasil como no exterior. O<br />
trabalho foi realiza<strong>do</strong> em forma de monografia como requisito básico <strong>para</strong> a conclusão<br />
<strong>do</strong> curso de graduação em licenciatura plena em Pedagogia pela Universidade Federal<br />
de São Carlos.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, buscou-se compreender o fenômeno <strong>do</strong> abuso sexual infantil,<br />
primeiramente no senti<strong>do</strong> de se entender o conceito de abuso sexual. Para isso foi<br />
preciso uma compreensão geral <strong>do</strong> aspecto, fazen<strong>do</strong>-se necessário uma compreensão <strong>do</strong><br />
fenômeno ao longo da História da Humanidade. Onde se procurou fazer um apanha<strong>do</strong><br />
da ocorrência <strong>do</strong> abuso sexual desde a Antiguidade até os dias atuais e também a<br />
compreensão <strong>do</strong>s conceitos de “infância” e “criança”. Só assim foi possível entrar no<br />
tema central da pesquisa que é o aspecto cognitivo da criança abusada sexualmente e as<br />
consequências <strong>para</strong> o seu desempenho escolar.<br />
Sabemos que o abuso sexual, um fenômeno tão atual na nossa sociedade, sempre<br />
esteve presente na Historia da Humanidade, desde os tempos mais remotos e que<br />
continua a crescer nos dias atuais. Para este trabalho foi inestimável a contribuição da<br />
Psicologia <strong>para</strong> a compreensão <strong>do</strong> abuso sexual e de suas consequências <strong>para</strong> vida da<br />
criança, não só no seu aspecto cognitivo, mas também no psíquico. Para isso foi<br />
necessário a presença de autores como Sigmund Freud, Jean Piaget, Christiane<br />
Sanderson, entre outros no senti<strong>do</strong> de se entender com mais objetividade o fenômeno.<br />
8
Capítulo 1<br />
<strong>Abuso</strong> sexual infantil: aspecto histórico e geral<br />
A questão <strong>do</strong> abuso sexual em crianças e a<strong>do</strong>lescentes vem se tornan<strong>do</strong> um<br />
assunto premente nos dias atuais nos diversos meios de comunicação e na mídia em<br />
geral. Tamanha exposição vem acompanhada de uma superficialidade, sem um<br />
aprofundamento e uma compreensão <strong>do</strong> tema por parte desses órgãos de comunicação e<br />
informação, tão somente com o objetivo de causar impacto e sensacionalismo junto a<br />
opinião pública.<br />
Para compreendermos melhor o assunto, iremos num primeiro momento abordar<br />
um pouco da história da criança e o surgimento <strong>do</strong> conceito moderno de infância com o<br />
objetivo de esclarecer que o tema não é tão recente assim na história da humanidade<br />
como apregoam os tão “transparentes” meios de comunicação. Em seguida, será situa<strong>do</strong><br />
o tema <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> a criança, relacionan<strong>do</strong>-o aos maus-tratos e em específico ao abuso<br />
sexual infantil, passan<strong>do</strong> pelo contexto histórico ao longo <strong>do</strong>s tempos.<br />
Após essa trajetória histórica, iremos abordar os vários aspectos envolvi<strong>do</strong>s no<br />
abuso sexual infantil nos dias atuais, ou seja, os aspectos físico, psicológico,<br />
comportamental e social.<br />
1.1. Conceituação de infância<br />
Em relação ao conceito moderno de infância, um nome se faz presente <strong>para</strong><br />
entendermos tal definição: o nome <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r francês Philippe Áries e sua obra de<br />
referência no assunto: “História social da criança e da família”. Com esse trabalho Áries<br />
inaugura – por assim dizer – uma temática até então desconhecida nos estu<strong>do</strong>s<br />
históricos e nos estu<strong>do</strong>s educacionais: a história da infância. O pensa<strong>do</strong>r francês<br />
procurará com essa obra apreender a percepção de diferentes épocas, desde o final da<br />
Idade Média, as representações simbólicas da figura infantil.
10<br />
Para Áries, a Idade Média não conhecera o sentimento de infância ao qual os<br />
tempos modernos consolidaram. Pode-se dizer apenas que a Idade Média<br />
identificava a criança por meio de uma nítida representação que estava ligada<br />
somente a ideia de linhagem. Reconhecia-se o valor da infância pela projeção<br />
que a figura da criança inspirava quanto ao seu destaca<strong>do</strong> lugar na perpetuação<br />
<strong>do</strong> sangue da família. (BOTO, 2007, p.13).<br />
Philippe Áries (1981) revela que o sentimento moderno de infância, inicialmente<br />
surgiu sob a forma da “gracinha frágil”, carente de cuida<strong>do</strong>s e da “paparicação”,<br />
portanto, atrelada a concepção da criança engraçada e graciosa. A criança, que até o fim<br />
da Idade Média, era considerada como um “adulto em miniatura” e assim era<br />
representada na iconografia da época. Essa mesma criança, foi ganhan<strong>do</strong> aos poucos um<br />
status próprio, passan<strong>do</strong> a despertar nas pessoas uma sensibilidade que até então não<br />
existia. Nasceu, a partir <strong>do</strong> século XVII, aquilo que caracterizamos, tal como Áries<br />
(1981) de sentimento moderno de infância. Para esse autor, “o sentimento de infância<br />
não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da<br />
particularidade infantil, essa particularidade infantil, essa particularidade que distingue<br />
essencialmente a criança <strong>do</strong>s adultos, mesmo jovem...”. (Ferreira Jr. & Santos, 2007,<br />
p.162).<br />
Até então a imagem que se tinha da criança, fica clara nas concepções de <strong>do</strong>is<br />
pensa<strong>do</strong>res: Santo Agostinho (Idade Média) e Descartes (início da Idade Moderna). Para<br />
Agostinho, a criança estava imersa no peca<strong>do</strong> (um ser impuro) por não <strong>do</strong>minar<br />
totalmente a fala e, portanto, desprovida da razão, exatamente aquilo que seria o reflexo<br />
da condição divina em nós, os adultos. Descartes viu a criança como alguém que vive<br />
uma época <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio da imaginação, <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e sensações sobre a razão, e<br />
mais, uma época da aceitação acrítica das tradições, postas pelos preceptores – tu<strong>do</strong><br />
aquilo que macularia nosso pensamento na fase adulta. Para os <strong>do</strong>is, Agostinho e<br />
Descartes, quanto mais ce<strong>do</strong> saíssemos da condição de criança melhor <strong>para</strong> nós.<br />
É com as palavras de Neil Postman, um outro estudioso <strong>do</strong> assunto que<br />
fechamos o primeiro item desse capítulo: “a ideia de infância é uma das grandes<br />
invenções da Renascença e talvez a mais humanitária de todas”. (Postman, 1999, p.12)
.<br />
11<br />
1.2. <strong>As</strong>pectos históricos e culturais envolvi<strong>do</strong>s no cuida<strong>do</strong> a<br />
criança, nos maus-tratos e no abuso sexual infantil<br />
<strong>As</strong> dificuldades relacionadas a obtenção de uma definição precisa <strong>do</strong> fenômeno<br />
<strong>do</strong> abuso sexual infantil se deve em função da sua natureza social. Uma conceituação<br />
adequada deveria envolver contextos e significa<strong>do</strong>s culturais, sociais e históricos,<br />
diferentes em cada momento em ocorre. Lloyd de Mause (apud Sanderson, 2005)<br />
escreveu de forma extensa sobre a evidência histórica <strong>do</strong> abuso sexual infantil, o qual<br />
relaciona-se aos conceitos de criança e de infância. Os da<strong>do</strong>s e fatos vêm demonstran<strong>do</strong><br />
que as crenças e as atitudes relacionadas a crianças e aos filhos vêm se modifican<strong>do</strong><br />
consideravelmente ao longo <strong>do</strong> tempo.<br />
O próprio autor (De Mause apud Sanderson, 2005) mostra que os modelos de<br />
cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s filhos desde a Antiguidade até o século IV, que ele chamou de mo<strong>do</strong> de<br />
infanticídio, tinham como base a ideia de que os pequenos (crianças) existiam <strong>para</strong><br />
satisfazer às necessidades e à comodidade <strong>do</strong>s adultos e que crianças defeituosas eram<br />
responsáveis por suas agruras. Portanto, era comum livrar-se dessas crianças<br />
indesejadas jogan<strong>do</strong>-as em desfiladeiros ou sacrifican<strong>do</strong>-as em rituais religiosos. Do<br />
século IV ao XIII, que De Mause chama de mo<strong>do</strong> de aban<strong>do</strong>no, as crianças eram<br />
encaradas como impuras, possui<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> mal, por isso apanhavam e eram se<strong>para</strong>das <strong>do</strong>s<br />
pais, aban<strong>do</strong>nadas e escambiadas <strong>para</strong> a escravidão. Já <strong>do</strong> século XIV ao século XVII,<br />
os pais eram mais liga<strong>do</strong>s emocionalmente aos filhos, mas ainda os temiam como se<br />
estivessem diante de um mal absoluto. Durante esse mo<strong>do</strong> de ambivalência chama<strong>do</strong><br />
pelo autor, a tarefa <strong>do</strong>s pais era moldar a criança, reprimin<strong>do</strong>-a e agredin<strong>do</strong>-a.<br />
No século XVIII, que De Mause chama de mo<strong>do</strong> de intrusão, as crianças eram<br />
vistas como menos ameaça<strong>do</strong>ras e menos malignas, e era responsabilidade <strong>do</strong>s pais<br />
conquistar o carinho e a atenção delas. Os pais procuravam vencer a vontade das<br />
crianças, controlan<strong>do</strong> seu comportamento por meio de ameaças, culpas e castigos. Nesse<br />
tempo, dizia-se que “pela criança se podia orar, mas com ela não se devia brincar”. A<br />
isso se seguiu o mo<strong>do</strong> de socialização (século XIX e metade <strong>do</strong> século XX) no qual os
pais tentavam dirigir, treinar e ensinar boas maneiras, bons hábitos, corrigir o<br />
comportamento em público e fazer com que a criança respondesse às expectativas <strong>do</strong>s<br />
outros. <strong>As</strong> crianças continuaram a ser maltratadas por causa <strong>do</strong> desrespeito, mas não<br />
eram encaradas como intrinsicamente más. De acor<strong>do</strong> com De Mause (apud Sanderson,<br />
2005,p.3), essa forma de cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos ainda é a mais comum hoje em dia.<br />
12<br />
Desde a metade <strong>do</strong> século XX, os <strong>para</strong>digmas de cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos têm si<strong>do</strong><br />
caracteriza<strong>do</strong>s por um mo<strong>do</strong> de ajuda, no qual se considera que as crianças sabem mais<br />
<strong>do</strong> que precisam <strong>do</strong> qualquer outra pessoa. A tarefa conjunta <strong>do</strong>s pais é criar empatia<br />
com a criança e responder de maneira precisa às necessidades dela em cada fase <strong>do</strong> seu<br />
desenvolvimento. A punição e a disciplina não são mais destaca<strong>do</strong>s, uma vez que se<br />
acredita que se o potencial da criança for cumpri<strong>do</strong> em cada estágio, esta crescerá <strong>para</strong><br />
ser original, alegre, talento sadia, criativa, sem me<strong>do</strong> da autoridade.<br />
Essas mudanças nos mo<strong>do</strong>s de cuidar <strong>do</strong>s filhos provocaram um grande impacto<br />
tanto nas crianças como nos pais, e alguns deles inconscientemente reproduzem as<br />
próprias experiências e modelos de como foram cria<strong>do</strong>s. De Mause (apud Sanderson,<br />
2005:3) defende que, se os pais foram abusa<strong>do</strong>s ou traumatiza<strong>do</strong>s na infância, eles<br />
tendem ou podem se sentir compeli<strong>do</strong>s a repetir esse trauma quan<strong>do</strong> se tornarem pais,<br />
visto que “trauma exige repetição”, confirman<strong>do</strong> o fenômeno que alguns autores<br />
chamam de intergeracionalidade (McCloskey & Bailey, 2000). Isso não implica, no<br />
entanto, que to<strong>do</strong>s agirão dessa maneira, pois muitos pais que sofreram abuso sexual<br />
não se tornaram abusa<strong>do</strong>res de seus filhos necessariamente.<br />
Quanto as tradições culturais, elas acabam exercen<strong>do</strong> um papel destaca<strong>do</strong> nos<br />
modelos e níveis de cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s filhos. Em algumas culturas e subculturas ainda<br />
persistem práticas que defendem surras e castigos severos como meios <strong>para</strong> garantir a<br />
obediência e a disciplina <strong>do</strong>s filhos quanto a aceitação das normas culturais e regras de<br />
comportamento social. Isso, no entanto, não é considera<strong>do</strong> abusivo <strong>para</strong> essas culturas.<br />
No entanto, em algumas tradições ocidentais, onde deixar bebês sozinhos na própria<br />
cama ou no próprio quarto durante a noite, choran<strong>do</strong> e sem alimentação nos horários<br />
estabeleci<strong>do</strong>s e sem darem atenção que essas crianças necessitam, são consideradas<br />
ações abusivas por parte da sociedade.
Retoman<strong>do</strong> o abuso sexual dentro da História, consta que o impera<strong>do</strong>r romano<br />
Tibério, segun<strong>do</strong> a obra <strong>do</strong> escritor Suetônio sobre a vida <strong>do</strong>s Césares, tinha propensões<br />
que incluíam crianças como objeto de prazer. Há relato de que ele se refugiou <strong>para</strong> a<br />
ilha de Capri com várias delas, e que as obrigava a satisfazer sua libi<strong>do</strong> através da<br />
prática de diversas formas de atos sexuais (Carter-Lourensz &Jonhson-Powell, 1999).<br />
13<br />
Dan<strong>do</strong> um salto de mais de mil anos na história, consta que a primeira<br />
monografia na área de saúde, descreven<strong>do</strong> a síndrome da criança espancada, Étude<br />
médico-légale sur les services et mauvais traitements exercís sur des enfants, foi<br />
escrita pelo médico-legista francês Ambroise Tardieu em 1860 (Roche et al., 2005). O<br />
mesmo autor, já em 1857, em Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs,<br />
analisara 632 casos de abuso sexual de mulheres, em sua maioria meninas, e 302 contra<br />
meninos e a<strong>do</strong>lescentes <strong>do</strong> sexo masculino, descreven<strong>do</strong> os sinais físicos conforme a<br />
gravidade <strong>do</strong> caso. No Dictionnáire d’hygiène et de salubrité, de 1862, Tardieu<br />
descreveu quase todas as formas de maus-tratos, inclusive o abuso sexual. O que ele<br />
infelizmente não conseguiu foi convencer seus pares de que o abuso e os maus-tratos<br />
contra crianças e a<strong>do</strong>lescentes aconteciam não só no ambiente de fábricas, minas e<br />
estabelecimentos escolares, mas também no seio das famílias e lares cristãos (Labbé,<br />
2005).<br />
O próprio pai da psicanálise Sigmund Freud, influencia<strong>do</strong> pelo trabalho de<br />
Tardieu, publicou um texto em 1896, conheci<strong>do</strong> como “teoria da sedução”, no qual<br />
afirmava que a causa da histeria estava ligada aos abusos sexuais sofri<strong>do</strong>s na infância. O<br />
trabalho foi recusa<strong>do</strong> nos meios acadêmicos, fazen<strong>do</strong> com que o próprio Freud em 1897<br />
o aban<strong>do</strong>nasse – atribuin<strong>do</strong> a etiologia da histeria em decorrência não <strong>do</strong> abuso em si –<br />
mas das fantasias <strong>do</strong> suposto abusa<strong>do</strong> como está exposto na sua teoria <strong>do</strong> complexo de<br />
Édipo (Aded, Dalcin, Moraes & Cavalcanti, 2006).<br />
1.3. <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> Infantil: aspectos físicos e psicológicos
Há muitos aspectos envolvi<strong>do</strong>s no abuso sexual de crianças e a<strong>do</strong>lescentes. No<br />
presente trabalho iremos nos ater especificamente aos aspectos físicos e psicológicos <strong>do</strong><br />
fenômeno e faremos uma introdução a seguir sobre algumas definições dessa forma de<br />
maus-tratos tão presente em nossos dias.<br />
14<br />
1.3.1. Conceituação de abuso sexual<br />
O abuso sexual infantil dentro da literatura especializada sobre o assunto é<br />
defini<strong>do</strong> como uma situação em que a criança ou o a<strong>do</strong>lescente é usa<strong>do</strong> <strong>para</strong> a<br />
gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um a<strong>do</strong>lescente mais velho. Com base<br />
em uma relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália,<br />
mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato<br />
sexual com ou sem penetração, com ou sem violência (<strong>As</strong>sociação Brasileira<br />
Multiprofissional de Proteção à Infância e A<strong>do</strong>lecência – ABRAPIA, 1997; Azeve<strong>do</strong> &<br />
Guerra, 1989).<br />
O abuso pode, ainda, ser defini<strong>do</strong> como to<strong>do</strong> jogo ou ato sexual, relação hetero<br />
ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossexual mais<br />
adianta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que a criança ou a<strong>do</strong>lescente, ten<strong>do</strong> por finalidade estimulá-los<br />
sexualmente ou utilizá-los <strong>para</strong> estimulação sexual, impostas à criança ou aos<br />
a<strong>do</strong>lescentes por violência física, ameaça ou indução de sua vontade (Habigzang &<br />
Caminha, 2004). Sem esquecer que o termo abuso é aqui usa<strong>do</strong> por etmologicamente<br />
significar, ao mesmo tempo, uso erra<strong>do</strong>, uso excessivo e uso que extrapola os limites,<br />
transgredin<strong>do</strong>-os (Gabel, 1997).<br />
Para a pesquisa<strong>do</strong>ra britânica Christiane Sanderson (2005) o abuso sexual em<br />
crianças é defini<strong>do</strong> como:<br />
O envolvimento de crianças e a<strong>do</strong>lescentes dependentes em atividades<br />
sexuais com um adulto ou com qualquer pessoa mais velha ou maior em<br />
que haja uma diferença de idade, de tamanho ou de poder, em que a<br />
criança é usada como objeto sexual <strong>para</strong> a gratificação das necessidades<br />
ou <strong>do</strong>s desejos, <strong>para</strong> qual é incapaz de dar consentimento consciente por<br />
causa de desequilíbrio no poder, ou de qualquer incapacidade mental ou
física pode ser caracteriza<strong>do</strong> como uma relação abusiva.<br />
(SANDERSON, 2005, p.17).<br />
Basicamente, o abuso sexual divide-se em <strong>do</strong>is tipos: sem contato físico (verbal,<br />
telefonemas obscenos, exibicionismo e voyeurismo) e com contato físico (atos físico-<br />
genitais, sadismo, pornografia e prostituição infantil) (ABRAPIA, 1997; Habigzang &<br />
Caminha, 2004).<br />
15<br />
Em termos sexuais, o que define o ato abusivo, é o uso da criança ou<br />
a<strong>do</strong>lescente como objeto <strong>do</strong>s desejos <strong>do</strong> agressor, e a relação de poder travada entre este<br />
e a vítima. Para tanto, as marcas físicas nem sempre são comprobatórias de que o abuso<br />
tenha realmente ocorri<strong>do</strong>, como veremos mais adiante nesse trabalho.<br />
Outro aspecto envolvi<strong>do</strong> na definição <strong>do</strong> abuso sexual infantil refere-se ao<br />
consentimento da vítima. O consentimento, também, não deve ser o limite entre uma<br />
relação abusiva e uma relação não abusiva. Uma criança, ou mesmo um a<strong>do</strong>lescente<br />
mais novo, geralmente não têm condições de estabelecer os limites em uma relação<br />
abusiva. Uma criança não tem a capacidade de discriminar e consentir sobre uma<br />
relação sexual, sen<strong>do</strong> que o adulto é quem deve ser responsável por estabelecer este<br />
limite (ABRAPIA, 2004).<br />
• <strong>As</strong>pectos físicos envolvi<strong>do</strong>s no abuso sexual infantil<br />
Uma das maiores dificuldades <strong>para</strong> se identificar o abuso sexual infantil é que<br />
ele frequentemente costuma não deixar marcas físicas nos corpos de suas vítimas. Isto<br />
ocorre principalmente <strong>para</strong> as crianças aliciadas por um longo perío<strong>do</strong>, não haven<strong>do</strong>, no<br />
entanto, nenhuma penetração, tanto na vagina como no ânus, não sen<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong><br />
também o uso da força física por parte <strong>do</strong> agressor. Quan<strong>do</strong> ocorre o uso da força física<br />
por parte <strong>do</strong> abusa<strong>do</strong>r, fica mais fácil a detecção <strong>do</strong> abuso sexual na criança por meio de<br />
exames físicos e médicos. Se a força e a violência física foram empregadas, a criança<br />
pode apresentar hematomas e, em alguns casos, sangramento, especialmente nas coxas e<br />
na região genital. <strong>As</strong>sim como lesões nos seios, nádegas, baixo ventre e coxas podem<br />
ocorrer.
No caso de práticas como a masturbação ou o sexo oral, podem não ocorrer<br />
sinais físicos. Contu<strong>do</strong>, pode haver sintomas físicos indiretos relaciona<strong>do</strong>s ao abuso<br />
sexual, mesmo não haven<strong>do</strong> sinais diretos relaciona<strong>do</strong>s a ocorrência <strong>do</strong> abuso. Isto se<br />
deve em função de que muitos abusa<strong>do</strong>res não deixam sinais visíveis de hematomas,<br />
sangramento ou mesmo traumas no corpo da criança ou <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente. Mas a criança<br />
pode desenvolver sequelas psicossomáticas <strong>do</strong> abuso sofri<strong>do</strong>, tais como <strong>do</strong>enças de pele<br />
e <strong>do</strong> trato-gastrointestinal.<br />
16<br />
Em crianças mais velhas, especialmente meninas (que são as maiores vítimas de<br />
abuso sexual) pode ocorrer uma gravidez ou mesmo o risco de infecção de DST,<br />
incluin<strong>do</strong> o HIV. Alguns abusa<strong>do</strong>res podem usar os de<strong>do</strong>s ou mesmo a introdução de<br />
objetos estranhos nos orifícios genitais, <strong>do</strong> reto e da uretra em suas vítimas, causan<strong>do</strong><br />
danos tão sérios quanto a introdução <strong>do</strong> pênis. Alguns sinais físicos mais sutis podem se<br />
manifestar por meio de <strong>do</strong>enças psicossomáticas, especialmente <strong>do</strong>r genital e retal sem<br />
nenhuma explicação médica ou infecção presente. Algumas crianças têm <strong>do</strong>res de<br />
garganta recorrentes, sem infecção presente, o que pode indicar o abuso sexual por via<br />
oral. Problemas estomacais frequentes, sem explicação médica, podem representar<br />
danos em decorrência da ingestão de esperma ou me<strong>do</strong> de gravidez.<br />
• <strong>As</strong>pectos psicológicos envolvi<strong>do</strong>s no abuso sexual infantil<br />
O abuso sexual deixa a maioria das pessoas incomodadas. É triste pensar que<br />
adultos causem <strong>do</strong>r física e psicológica nas crianças <strong>para</strong> satisfazer seus<br />
próprios desejos, especialmente quan<strong>do</strong> esses adultos são amigos e confiáveis<br />
membros da família. (WATSON, 1994, p.12).<br />
Iniciamos esse tópico com a citação acima <strong>para</strong> mostrarmos que a ocorrência <strong>do</strong>s<br />
abusos sexuais ainda é assunto difícil de ser trata<strong>do</strong> e reconheci<strong>do</strong> por grande parte da<br />
sociedade. Nesse senti<strong>do</strong>, é importante a compreensão de que abusa<strong>do</strong>res sexuais são<br />
pessoas comuns, não ten<strong>do</strong> nada de monstros e que muitas vezes vivem no seio das<br />
famílias sen<strong>do</strong> pessoas humanas queridas das próprias crianças.<br />
Serão apresenta<strong>do</strong>s e discuti<strong>do</strong>s o impacto e as consequências psicológicas <strong>do</strong><br />
abuso sexual <strong>para</strong> as suas vítimas, especialmente crianças e a<strong>do</strong>lescentes, sen<strong>do</strong> então
apresenta<strong>do</strong> o conceito de violência intrafamiliar. Mesmo que o abuso sexual, em<br />
muitos casos, não deixe marcas físicas visíveis em suas vítimas – tal prática pode deixar<br />
profundas impressões no “psiquismo” de suas vítimas, tanto a curto como a longo prazo<br />
– trazen<strong>do</strong> um grande sofrimento <strong>para</strong> elas.<br />
A criança ou o a<strong>do</strong>lescente sexualmente abusa<strong>do</strong> pode apresentar sinais ou<br />
sintomas que indicariam ou indicam que o abuso de fato se consumou. Tais sintomas<br />
com já dissemos anteriormente, podem surgir a curto ou a longo prazo. <strong>As</strong><br />
consequências em curto prazo podem ser: curiosidade sexual excessiva, auto-conceito<br />
negativo, tentativa e/ou comportamento suicida, raiva e/ou hostilidade, ansiedade,<br />
masturbação excessiva ou pública, sentimento de vergonha e/ou culpa, baixa auto-<br />
estima, me<strong>do</strong>s, pesadelos e dificuldades <strong>para</strong> <strong>do</strong>rmir, ansiedade relacionada a temas<br />
sexuais, tocar e/ou coçar seus genitais, excitabilidade aumentada, falta de competência<br />
social com pares, agressividade sexual, colocar objetos no ânus ou na vagina, fuga de<br />
casa, requisitar estimulação sexual de outras pessoas, brinque<strong>do</strong>s e/ou jogos<br />
sexualiza<strong>do</strong>s, conhecimento sexual inapropria<strong>do</strong> <strong>para</strong> a idade, evitação a determinadas<br />
pessoas e lugares, exposição frequente <strong>do</strong>s genitais, retraimento ou isolamento e<br />
transtornos alimentares (ABRAPIA; 1997, ABRAPIA, 2002; Kendall-Tacket, Williams<br />
& Finkelhor, 1993; Meichenbaum, 1994). Para Meichenbaum (1994) estes efeitos em<br />
curto prazo podem ocorrer até <strong>do</strong>is anos após o abuso ter ocorri<strong>do</strong>.<br />
17<br />
<strong>As</strong> consequências em longo prazo podem ser: risco quatro vezes maior <strong>para</strong><br />
qualquer tipo de distúrbio psiquiátrico (aproximadamente oito por cento <strong>do</strong>s casos<br />
psiquiátricos podem ser atribuí<strong>do</strong>s a abuso sexual infantil), risco três vezes maior de<br />
alcoolismo, depressão, ansiedade, ajustamento social pobre e falta de confiança em<br />
outras pessoas, esquiva, transtornos dissociativos, transtorno <strong>do</strong> estresse pós-traumático,<br />
transtornos alimentares (falta de apetite, bulimia e anorexia nervosa), transtornos<br />
psicossomáticos (<strong>do</strong>enças de pele, gastrites, fadiga e cansaço) e alterações <strong>do</strong> sono<br />
(Habigzang &Caminha, 2004; Kendall-Tacket, Williams & Finkelhor, 1993;<br />
Meichenbaum, 1994).<br />
Segun<strong>do</strong> Brino & Williams (2009), os sinais e sintomas podem variar entre as<br />
crianças que sofreram ou sofrem o abuso sexual, sen<strong>do</strong> que há diversos fatores que<br />
podem determinar o impacto <strong>do</strong> abuso sexual.
Alguns estu<strong>do</strong>s têm mostra<strong>do</strong> que diversos aspectos e fatores interferem no<br />
desenvolvimento e na gravidade <strong>do</strong>s sintomas. Kendall-Tackett, Williams e Finkelhor<br />
(1993) apontam que quanto mais próximo for o relacionamento com o agressor (pai ou<br />
padrasto), e quanto mais velha for a criança (especialmente a<strong>do</strong>lescentes), maior e mais<br />
devasta<strong>do</strong>r será o impacto <strong>do</strong> abuso e mais difícil será o seu tratamento. Por isso o<br />
ambiente familiar da vítima pode contribuir significativamente <strong>para</strong> o impacto <strong>do</strong> abuso<br />
sexual. Os pais e o apoio por eles forneci<strong>do</strong> têm um grande papel no impacto <strong>do</strong> trauma<br />
da criança. A escola seria também outro local ideal de proteção, detecção e intervenção<br />
nos casos de abuso sexual infantil, uma vez que o agressor contra essa população<br />
frequentemente se encontra na família (Brino & Williams, 2003). Para os autores<br />
cita<strong>do</strong>s acima, algumas das consequências observadas tendem a se reduzir com o passar<br />
<strong>do</strong> tempo, tal como a ansiedade (por exemplo, problemas <strong>para</strong> <strong>do</strong>rmir e me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
agressor) outras, porém tendem a se intensificar se nenhuma intervenção terapêutica for<br />
realizada, como as preocupações relacionadas à sexualidade (Rodrigues, Brino<br />
&Williams, 2006).<br />
18<br />
Outro aspecto importante, e que determina as consequências <strong>do</strong> abuso sexual<br />
sofri<strong>do</strong> é a classificação <strong>do</strong> mesmo em intrafamiliar ou extrafamiliar, sen<strong>do</strong> que a<br />
definição de cada um está associada ao grau de parentesco <strong>do</strong> abusa<strong>do</strong> com o agressor.<br />
No caso <strong>do</strong> abuso sexual extrafamiliar ele é pratica<strong>do</strong> por pessoas que geralmente não<br />
moram na mesma casa da vítima (como os estranhos) e ele é menos comum que o<br />
intrafamiliar. Para vários autores o abuso sexual intrafamiliar é o mais comum, já que os<br />
atos abusivos ocorrem dentro de casa e são pratica<strong>do</strong>s por pessoas próximas da criança,<br />
facilitan<strong>do</strong> o acesso <strong>do</strong> agressor à vítima.
19<br />
Capítulo 2<br />
O Desenvolvimento da <strong>Sexual</strong>idade Infantil<br />
Em prosseguimento ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> abuso sexual e suas consequências <strong>para</strong> a vida<br />
acadêmica da criança, faz-se necessário inicialmente o entendimento de como se dá o<br />
desenvolvimento da sexualidade infantil. Sabe-se que a sexualidade infantil é a primeira<br />
etapa da sexualidade humana, além de, por meio de pesquisas, fica evidente que essa<br />
área é uma das mais negligenciadas dentro <strong>do</strong> campo de estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> desenvolvimento<br />
infantil.<br />
A discussão a ser apresentada no presente capítulo será pautada principalmente<br />
nas contribuições <strong>do</strong> neurologista austríaco e cria<strong>do</strong>r da psicanálise Sigmund Freud<br />
(1856-1939), bem como em outros autores, <strong>para</strong> uma melhor compreensão <strong>do</strong> assunto.<br />
A escolha de Freud <strong>para</strong> esse capítulo não foi aleatória, mas foi intencional, já que ele<br />
foi um <strong>do</strong>s autores que mais lançaram luz nesse terreno ári<strong>do</strong> que é a sexualidade<br />
infantil e talvez um <strong>do</strong>s primeiros a se enveredar por essas instâncias <strong>do</strong> conhecimento<br />
humano. Outra referência <strong>para</strong> esse capítulo será a da pesquisa<strong>do</strong>ra britânica Christiane<br />
Sanderson com larga experiência no campo <strong>do</strong> abuso sexual infantil.<br />
infantil<br />
2.1. <strong>As</strong> contribuições de Sigmund Freud <strong>para</strong> a compreensão da sexualidade
Os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> neurologista vienense Sigmund Freud (1856-1939) foram<br />
considera<strong>do</strong>s fundamentais <strong>para</strong> o estu<strong>do</strong> e <strong>para</strong> a compreensão da sexualidade humana<br />
de uma forma mais abrangente. Ele foi o responsável por uma verdadeira “revolução”<br />
nessa área e por criar uma nova técnica de análise psicológica denominada por ele de<br />
“psicanálise”. Isso foi possível por meio da “teoria <strong>do</strong> inconsciente” por ele formulada e<br />
que proporcionou um entendimento da formação <strong>do</strong>s traumas e das neuroses e de como<br />
tratá-las de uma forma mais profunda.<br />
20<br />
No que concerne à criança e a sua sexualidade, Freud descobriu através de seus<br />
estu<strong>do</strong>s que o comportamento neurótico <strong>do</strong>s adultos está liga<strong>do</strong> a uma educação<br />
coercitiva e a uma “repressão sexual” que sofreram de forma sistemática na infância.<br />
Para Freud, os sintomas neuróticos são substitutivos da sexualidade reprimida na<br />
infância. Eles são o resulta<strong>do</strong> das inibições impostas à energia sexual por ele chamada<br />
de “libi<strong>do</strong>”. Quan<strong>do</strong> reprimi<strong>do</strong>s tais sintomas acabam se manifestan<strong>do</strong> em forma de<br />
comportamentos <strong>do</strong>entios, caracterizan<strong>do</strong> um quadro clássico de neurose.<br />
Em seus estu<strong>do</strong>s clássicos, Freud considerou a sexualidade infantil desde o<br />
nascimento da criança (a primeira infância que chamou de “pré-história <strong>do</strong> indivíduo”).<br />
Ele foi o primeiro homem de ciência a considerar com naturalidade os atos e efeitos<br />
sexuais das crianças como a ereção, a masturbação e mesmo as simulações sexuais que<br />
os “pequenos” projetam através das brincadeiras como “papai e mamãe”, entre outras.<br />
Em uma conferência proferida em 1909 nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e mais tarde reunida<br />
na obra clássica “Cinco Lições de Psicanálise” – Freud lançou as primeiras ideias sobre<br />
a sexualidade presente na criança, até então tida como um ser assexua<strong>do</strong>.<br />
Transcreveremos a seguir um excerto das palavras <strong>do</strong> próprio autor proferidas nessa<br />
conferência <strong>para</strong> elucidar melhor a nossa argumentação a respeito da sexualidade<br />
infantil. Foram palavras que causaram um furor desconcertante em meio a plateia<br />
naqueles dias e que reverberaram nos ouvi<strong>do</strong>s mais conserva<strong>do</strong>res e puritanos de então:<br />
Mas agora sim estou realmente certo <strong>do</strong> espanto <strong>do</strong>s ouvintes: “existe então – perguntarão – uma<br />
sexualidade infantil?” “A infância não é, ao contrário, o perío<strong>do</strong> da vida marca<strong>do</strong> pela ausência<br />
<strong>do</strong> instinto sexual?” Não meus senhores. Não é verdade certamente que o instinto sexual começa<br />
na puberdade, entre no indivíduo como, segun<strong>do</strong> o Evangelho, os demônios entraram nos porcos.<br />
A criança possui, desde o nascimento, o instinto (libi<strong>do</strong>) e as atividades sexuais. Ela os traz<br />
consigo <strong>para</strong> o mun<strong>do</strong>, e deles provêm, através de uma evolução rica de etapas, a chamada<br />
sexualidade <strong>do</strong> adulto. Não são difíceis de observar as manifestações da atividade sexual infantil;
ao contrário, deixa-las passar despercebidas ou incompreendidas é que é que preciso considerarse<br />
grave. (FREUD apud NUNES & SILVA, 2000, p.46).<br />
Para melhor elucidar esse conceito de sexualidade infantil, será delinea<strong>do</strong> a<br />
seguir as fases e as etapas que seriam na concepção de Freud as mais universalmente<br />
vivenciadas pelos “pequenos” no seu desenvolvimento sexual. Na sua concepção – eles<br />
seriam os seguintes:<br />
21<br />
• A fase oral (até 1 ano de idade) – Essa fase se caracteriza basicamente<br />
pela satisfação e pelo prazer que provêm da boca. Nessa fase a criança, sente uma<br />
grande satisfação libidinosa em atividades como morder, sorrir, chorar e sugar, oriundas<br />
de sua atividade oral de experimentar o mun<strong>do</strong>. Freud afirma que estas atividades são<br />
primeiramente sensoriais e que a satisfação encontrada nesta ação cristaliza-se a partir<br />
da “libi<strong>do</strong>”, entendida como energia psíquica que perpassa toda a educação social da<br />
criança.<br />
• A fase anal (1 a 3 anos) – Perío<strong>do</strong> de internalização e educação das<br />
normas de controle <strong>do</strong> intestino, em que a criança sente prazer em produzir as fezes e<br />
urina. A fase anal inicia-se ao final <strong>do</strong> primeiro ano de vida, sen<strong>do</strong> difícil vivencia-la<br />
antes, e consolida-se durante o segun<strong>do</strong> ano. A satisfação libidinosa não é, nesta fase,<br />
puramente neurológica ou sensorial, mas ultrapassa este plano das sensações, ainda que<br />
o contenha, <strong>para</strong> situar-se nas primeiras expressões de gratificação simbólico-social da<br />
criança em cumprir com as exigências paternas da higiene e controle metódico e<br />
adequa<strong>do</strong> <strong>do</strong> esfíncter, através da padronização de suas necessidades fisiológicas.<br />
• A fase fálica (3 a 6 anos) – Coincide com a descoberta <strong>do</strong>s órgãos<br />
sexuais, manipulação e prazer neste exercício, das diferenças sexuais e <strong>do</strong> afloramento<br />
da questão edipiana. Freud aponta aqui a época das descobertas das diferenças genitais,<br />
na qual o menino seria diferentemente identifica<strong>do</strong> com a sociedade patriarcal através<br />
da descoberta <strong>do</strong> “pênis” e sua simbologia e a menina experimentaria a “castração”<br />
simbólica, gera<strong>do</strong>ra de ansiedade, a base das sublimações, pela descoberta da “ausência
<strong>do</strong> pênis”. É uma fase de intensos idílios e jogos sexuais. Durante sua vivência realiza-<br />
se o auge da resolução ou não da questão edipiana, tema central da psicanálise<br />
freudiana.<br />
22<br />
• O perío<strong>do</strong> de latência (6 a 9 anos) – O impulso sexual sofre diminuição,<br />
ocorren<strong>do</strong> maior ênfase nos aspectos de sociabilidade, gregarismo e descobertas<br />
intelectuais. Freud aponta uma “distensão”, talvez causada pelo excesso de energia<br />
psíquica empreendida na questão <strong>do</strong> idílio e uma retomada <strong>do</strong>s jogos de regras, além da<br />
vibrante internalização de diferenças sexuais e papéis sociais.<br />
• A fase genital – Tem início por volta <strong>do</strong>s 10 anos, passan<strong>do</strong> por<br />
transformações corporais, biológicas, afetivas e sociais que culminam na a<strong>do</strong>lescência.<br />
É um perío<strong>do</strong> de maturidade psíquica e organização das estruturas da psique,<br />
anteriormente consolidadas em experiências de tensão entre o “princípio de prazer” e o<br />
princípio de realidade”.<br />
2.1. <strong>As</strong> contribuições de Sanderson <strong>para</strong> o estu<strong>do</strong> da sexualidade da criança<br />
Sabe-se que <strong>para</strong> que as crianças fiquem protegidas contra o abuso sexual e a<br />
pe<strong>do</strong>filia é necessário que elas conheçam a sua própria sexualidade e possam entendê-la<br />
em uma linguagem adequada a sua idade e de acor<strong>do</strong> com o seu desenvolvimento<br />
psíquico e cognitivo. Essa afirmação tem como base que a sexualidade é ainda hoje, em<br />
pleno século XXI, um assunto difícil <strong>para</strong> muitos pais e adultos discutirem de forma<br />
aberta e sem impedimentos com os seus filhos. Isto porque o sexo continua sen<strong>do</strong> ainda<br />
um assunto proibi<strong>do</strong>, carrega<strong>do</strong> de crenças religiosas e visto ainda por muitas pessoas<br />
como algo sujo e pecaminoso. A verdade é que muitos adultos sentem um certo<br />
constrangimento em falar abertamente com as crianças sobre sexo e orientá-las melhor<br />
quanto a sua sexualidade de forma mais natural e saudável. Isso pode ser transmiti<strong>do</strong> a<br />
criança de forma negativa e sutil, fazen<strong>do</strong> com que as relações de <strong>do</strong>minação e
submissão permaneçam na esfera <strong>do</strong> sexo e da sexualidade humana, permean<strong>do</strong> os<br />
abusos e as violências que são cometi<strong>do</strong>s nessa área.<br />
Acredita-se que pais e adultos representam um papel fundamental <strong>para</strong> o<br />
desenvolvimento da compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela criança e de sua sexualidade, assim<br />
como da sua proteção e segurança. Portanto se os pais e adultos em geral têm uma<br />
atitude negativa quanto ao sexo, isso pode ser transmiti<strong>do</strong> de forma sutil a criança,<br />
fazen<strong>do</strong> dela uma pessoa frustrada quan<strong>do</strong> adulta e não se realizan<strong>do</strong> sexualmente.<br />
23<br />
É possível afirmar que o desenvolvimento da sexualidade é uma parte muito<br />
importante <strong>do</strong> desenvolvimento geral da criança e o que fará dela um adulto saudável<br />
tanto psíquica quanto fisicamente. Além disso, é possível afirmar também que a<br />
manifestação da sexualidade na criança começa mesmo antes dela nascer e já nos<br />
primeiros anos de vida. Alguns pesquisa<strong>do</strong>res como Master & Johnson, 1986 (apud<br />
Sanderson, 2005: 34) descobriram através <strong>do</strong> uso de ultra-som que os bebês masculinos<br />
ainda no útero são capazes de ter ereções reflexas, que também podem ser observadas<br />
em recém-nasci<strong>do</strong>s.<br />
Isto porque, a sexualidade infantil é um assunto complexo, e assim como a<br />
sexualidade humana não é formada somente pelo aspecto biológico. Como diz<br />
SANDERSON (2005: 29) “a sexualidade é construída biológica e socialmente e reflete<br />
crenças culturais e religiosas”.<br />
Outro aspecto da sexualidade infantil, diz respeito à sensualidade da criança ou<br />
seja de como ela vive as experiências sensoriais que lhe causam prazer em seu corpo<br />
quan<strong>do</strong> tocadas. Pode-se dizer que as crianças são sensuais desde o nascimento<br />
(Shorter Oxford English Dictionary-1993 apud SANDERSON, 2005:30). E que <strong>para</strong><br />
elas a sexualidade é bem diferente <strong>do</strong> que é <strong>para</strong> o adulto, uma vez que não é<br />
direcionada especificamente ao prazer genital, mas sim aquele experimenta<strong>do</strong> pelo<br />
corpo to<strong>do</strong>. Sen<strong>do</strong> este aspecto muito importante <strong>para</strong> a descoberta não só <strong>do</strong> corpo pela<br />
criança, mas também <strong>para</strong> a sua própria sexualidade (SANDERSON, 2005:30).<br />
Alguns pesquisa<strong>do</strong>res como PIAGET, 1952 (apud SANDERSON, 2005:30-31)<br />
destacam o quanto essas experiências sensoriais são importantes <strong>para</strong> a aprendizagem,
pois acreditam que o recém- nasci<strong>do</strong> se vale delas <strong>para</strong> aprender sobre o mun<strong>do</strong>. Essas<br />
experiências são sua fonte primária de coleta de informações sobre ele mesmo e sobre<br />
sua condição no mun<strong>do</strong> naquele perío<strong>do</strong>.<br />
2.2. Fases ou estágios <strong>do</strong> comportamento sexual infantil <strong>para</strong> Sanderson<br />
24<br />
Para Sanderson (2005:35) os comportamentos sexuais da criança se dividem em<br />
fases ou estágios – descritos a seguir:<br />
• Comportamento sexual em crianças com idade pré-escolar(0-4anos)<br />
O desenvolvimento <strong>do</strong> comportamento sexual, como outros comportamentos na<br />
infância, assume a forma de brincadeira. A brincadeira é um processo espontâneo e<br />
despreocupa<strong>do</strong> de reunião de informações que representam um continuum de<br />
curiosidade sobre o mun<strong>do</strong>, auto-descoberta e deleite no corpo e em explorar diferenças<br />
e semelhanças. É uma maneira de obter um significa<strong>do</strong> e de construir senti<strong>do</strong> em<br />
relação ao mun<strong>do</strong> que a criança tem dele.<br />
Outra característica dessa fase é a masturbação, sen<strong>do</strong>, portanto, uma atividade<br />
normal com potencial erótico deriva<strong>do</strong> da estimulação manual, fricção das coxas,<br />
esfrega <strong>do</strong>s genitais contra brinque<strong>do</strong>s, bonecas, mobília e adultos, poden<strong>do</strong> ser vista<br />
como um processo saudável de auto-descoberta. <strong>As</strong> crianças, também nessa fase, podem<br />
despir bonecos e bonecas e colocar os bonecos em cima das bonecas, esfrega-los um no<br />
outro e emitir sons que em essência refletem o que elas sabem sobre a sexualidade<br />
adulta, incluin<strong>do</strong> parecer “paquera<strong>do</strong>r” e “sedutor”. Quan<strong>do</strong> brinca de “médico”, a<br />
criança pode incluir suas próprias experiências de ter os ouvi<strong>do</strong>s ou a garganta<br />
examina<strong>do</strong>s. De vez em quan<strong>do</strong> isso pode se estender a outras partes <strong>do</strong> corpo, tal como<br />
inserir de<strong>do</strong>s ou outros pequenos objetos dentro de outras aberturas, tais como a boca,<br />
as narinas, os ouvi<strong>do</strong>s, o umbigo ou os genitais. Se esse comportamento causar <strong>do</strong>r e
desconforto, a criança <strong>para</strong>rá; mas se persistir com esses comportamentos, em especial<br />
em orifícios genitais, isso pode indicar que a criança foi abusada sexualmente.<br />
• Comportamento sexual de crianças em idade escolar (5-12anos)<br />
25<br />
Esse estágio é acompanha<strong>do</strong> por um aumento de perguntas: “De onde<br />
eu vim” e “Como são feitos os bebês”. <strong>As</strong> crianças parecem ficar tanto atraídas<br />
quanto enojadas pelo comportamento afetivo ou sexual público, poden<strong>do</strong><br />
expressar um desejo de olhar <strong>para</strong> imagens <strong>do</strong> corpo humano e, ainda assim,<br />
ficarem constrangidas ou darem risadinhas ao ver beijos na televisão ou em<br />
filmes. É também a fase em que as crianças terão ti<strong>do</strong> a sua primeira experiência<br />
sociossexual.<br />
O fim desse estágio é caracteriza<strong>do</strong> por um campo mais vasto de<br />
interesses sexuais, pois, à medida que há mais contato com colegas, são mais<br />
frequentes as oportunidades <strong>para</strong> experimentação, ocorren<strong>do</strong>, no entanto,<br />
perío<strong>do</strong>s de inibição e desinibição. Existe uma enorme variação durante esse<br />
estágio, em decorrência <strong>do</strong>s níveis de supressão e inibição lá pelo final da<br />
infância.<br />
• Comportamento sexual em a<strong>do</strong>lescentes (13-16anos)<br />
Ao chegar à puberdade, as crianças ficam cada vez mais reticentes<br />
quanto a atividades sexuais públicas e se tornam cientes de mais restrições<br />
sociais. Dessa forma, o comportamento sexual começa a se mesclar mais com o<br />
comportamento adulto, o que está liga<strong>do</strong> à puberdade, pois as mudanças<br />
hormonais que nela ocorrem ativam o desenvolvimento de características
sexuais secundárias. Os hormônios influenciam não apenas as mudanças físicas,<br />
mas também sensações e reações emocionais.<br />
26<br />
Capítulo 3<br />
O desenvolvimento cognitivo <strong>para</strong> Jean Piaget<br />
O objetivo deste capítulo é apresentar de forma sucinta as ideias de um <strong>do</strong>s<br />
maiores pensa<strong>do</strong>res da Psicologia <strong>do</strong> século XX, o suíço Jean Piaget (1896-1980) acerca<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento cognitivo <strong>do</strong> ser humano. <strong>As</strong> ideias desse pensa<strong>do</strong>r tiveram um<br />
grande impacto não só na psicologia, mas sobretu<strong>do</strong> no campo da Educação que<br />
revolucionaram, a forma de ensino <strong>do</strong>s professores e no da aprendizagem <strong>do</strong>s alunos. A<br />
partir de Piaget ficou mais claro <strong>para</strong> os educa<strong>do</strong>res como a criança aprende e como<br />
efetuar essa aprendizagem de forma mais elaborada, dentro de cada estágio que o aluno<br />
se encontra. Além <strong>do</strong> aspecto cognitivo, um outro fator envolvi<strong>do</strong> na aprendizagem da<br />
criança é o da “afetividade” que esta liga<strong>do</strong> ao da cognição, também aborda<strong>do</strong> por esse<br />
cientista em sua obra. Tentaremos fazer uma relação <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> o<br />
desenvolvimento normal da criança, abordan<strong>do</strong> as suas consequências na área da<br />
cognição.<br />
3.1. Afetividade e cognição na teoria de Piaget<br />
Apesar de não ter centra<strong>do</strong> seus estu<strong>do</strong>s e pesquisas no desenvolvimento afetivo<br />
das crianças e sim da lógica <strong>do</strong> pensamento das mesmas, Piaget não desconsiderou essa<br />
dimensão afetiva <strong>para</strong> o estu<strong>do</strong> da inteligência e <strong>do</strong> desenvolvimento psicológico e<br />
colocou em suas obras que é incontestável que o afeto desempenha um papel<br />
fundamental no funcionamento da inteligência.
Segun<strong>do</strong> Bringuier (1977), Piaget afirma que “<strong>para</strong> que a inteligência funcione, é<br />
preciso um motor que é o afetivo. Jamais se procurará resolver um problema se ele não lhe<br />
interessa. O interesse, a motivação afetiva é o móvel de tu<strong>do</strong>”. (BRINGUIER, 1977, p.71-<br />
72).<br />
De acor<strong>do</strong> com a teoria de Piaget, o desenvolvimento intelectual é considera<strong>do</strong> como<br />
ten<strong>do</strong> <strong>do</strong>is componentes: o cognitivo e o afetivo. <strong>As</strong>sim, o desenvolvimento afetivo se<br />
dá em <strong>para</strong>lelo ao cognitivo e tem uma profunda influência sobre o desenvolvimento<br />
intelectual. Segun<strong>do</strong> Piaget o aspecto afetivo por si só não pode modificar as estruturas<br />
cognitivas. No caso da criança que é abusada sexualmente há uma ruptura dessa<br />
afetividade em função da perda de confiança que se mantinha entre ela e o adulto que<br />
lhe perpetrou o abuso. Isso acaba de forma geral se estenden<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os adultos,<br />
incluin<strong>do</strong> os professores e isso acaba por acarretar um prejuízo a essa criança na sua<br />
aprendizagem escolar, já que o aspecto da afetividade acaba influencian<strong>do</strong> no seu<br />
desenvolvimento cognitivo. Para uma melhor compreensão da correspondência que<br />
existe entre esses <strong>do</strong>is aspectos o cognitivo e afetivo, será delinea<strong>do</strong> no item a seguir os<br />
estágios de desenvolvimento cognitivo propostos por Piaget.<br />
Piaget<br />
27<br />
3.2. Estágios de desenvolvimento cognitivo e afetivo na perspectiva de<br />
No estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> desenvolvimento humano, Piaget defendeu a ideia de que a criança<br />
passa por diferentes estágios ou fases de desenvolvimento, que correspondem ao<br />
surgimento de diferentes estruturas mentais e diferentes perspectivas das quais a criança<br />
vê o mun<strong>do</strong>, compreende-o e nele age.<br />
Para Piaget (1964, p.11), “o desenvolvimento, portanto é uma equilibração<br />
progressiva, uma passagem contínua de um esta<strong>do</strong> de menor equilíbrio <strong>para</strong> um esta<strong>do</strong> de<br />
equilíbrio superior”. É dentro dessa perspectiva de desenvolvimento progressivo <strong>do</strong><br />
pensamento que Piaget irá desenvolver em sua teoria os quatro estágios <strong>para</strong> explicar<br />
como se dá a estruturação e a equilibração da inteligência da criança. Segun<strong>do</strong> ele esses<br />
estágios são os seguintes:
28<br />
• Sensório-motor (0 – 2anos)<br />
Nesse estágio, a criança está concentrada principalmente nas experiências<br />
sensoriais e motoras, ocorren<strong>do</strong> apenas o início <strong>do</strong> desenvolvimento da linguagem e <strong>do</strong><br />
pensamento. A criança nesse estágio é dependente da representação física de coisas e<br />
confia na orientação <strong>do</strong>s adultos <strong>para</strong> identificar e nomear objetos.<br />
• Pré-operatório (2 – 7 anos)<br />
É nesse estágio que a criança começa a usar a linguagem <strong>para</strong> se comunicar, e,<br />
embora os processos de pensamento sejam cada dia mais sofistica<strong>do</strong>s, ela não é ainda<br />
capaz de conceituar ou raciocinar com a lógica <strong>do</strong> adulto. É por isso que nesse estágio, a<br />
criança tende a generalizar tu<strong>do</strong>. Tipo assim, “To<strong>do</strong>s os homens são pais”, “To<strong>do</strong>s os<br />
animais de quatro patas e cauda são cachorros”.<br />
Outra marca desse estágio é o egocentrismo da criança. Ela só pode usar a<br />
própria experiência como um requisito básico <strong>para</strong> entender as suas próprias<br />
experiências vividas. <strong>As</strong>sim, uma interpretação comum da criança é “Se me sinto má,<br />
então devo ser má”. A criança também não tem um conceito real de tempo, que é uma<br />
medida abstrata, e se tornará difícil <strong>para</strong> ela recontar de maneira detalhada um<br />
acontecimento <strong>do</strong> seu passa<strong>do</strong>.<br />
Nesse estágio se dá também a incorporação das regras nos jogos e brincadeiras<br />
pela criança. <strong>As</strong> regras são tão importantes <strong>para</strong> a criança, pois é o momento em que ela<br />
começa a aban<strong>do</strong>nar seu “egocentrismo”, característico dessa fase <strong>do</strong> seu<br />
desenvolvimento <strong>para</strong> uma equilibração superior.<br />
• Operacional concreto (7 a 12 anos)
Nesse estágio o pensamento da criança se torna mais semelhante ao <strong>do</strong> adulto,<br />
mas ela ainda não é capaz de um pensamento abstrato sofistica<strong>do</strong> ou de um uso<br />
consistente da lógica adulta. Como o uso da lógica adulta é inconsistente, a resolução de<br />
problemas pode por vezes ser bastante aleatória. <strong>As</strong>sim, no plano cognitivo, esse<br />
estágioé marca<strong>do</strong> pela capacidade de realização das operações lógicas, mesmo que<br />
ainda um pouco inconsistentes. Operações lógicas são ações cognitivas internalizadas<br />
que permitem à criança chegar a conclusões que são lógicas, não mais <strong>do</strong>minadas pela<br />
percepção. <strong>As</strong> crianças passam a desenvolver raciocínios lógicos que podem ser<br />
aplica<strong>do</strong>s a situações/problemas reais.<br />
29<br />
Em sua obra “Epistemologia Genética” (1990), Piaget explica que, com a<br />
aquisição da reversibilidade das ações mentais, a criança torna-se capaz de coordenar<br />
seus pensamentos afetivos de um evento <strong>para</strong> o outro. Destacan<strong>do</strong> o desenvolvimento<br />
afetivo, Piaget mostra que a reversibilidade de pensamento e a descentração são marcas<br />
desse estágio.<br />
Ainda no plano afetivo, Piaget destaca <strong>do</strong>is elementos fundamentais que<br />
ocorrem nesse estágio: a vontade e a autonomia. Enquanto a vontade assume papel<br />
regula<strong>do</strong>r de afeto e, portanto, é o mecanismo pelo qual os valores são conserva<strong>do</strong>s, a<br />
autonomia em Piaget, significa ser governa<strong>do</strong> por si mesmo e não mais pelos outros.<br />
• Operacional formal (12 anos em diante)<br />
Este estágio final é caracteriza<strong>do</strong> por um pensamento cada vez mais sistemático<br />
e organiza<strong>do</strong>, incluin<strong>do</strong> a lógica formal e o pensamento abstrato. Mesmo assim Piaget<br />
não acreditava que todas as crianças alcançassem esse último estágio, essa ideia anos<br />
depois foi revista por ele e reformulada.<br />
Portanto o desenvolvimento das operações formais nesse estágio se edifica sobre<br />
o desenvolvimento das operações concretas, as incorpora e as amplia. O<br />
desenvolvimento afetivo não é independente <strong>do</strong> desenvolvimento cognitivo. Como<br />
afirma Wadsworth (1996):
<strong>As</strong>sim como o desenvolvimento cognitivo alcança um limite máximo com a plena consolidação<br />
das operações formais, o mesmo ocorre com o desenvolvimento afetivo (...) O desenvolvimento<br />
<strong>do</strong>s sentimentos normativos, autonomia e vontade no estágio das operações concretas conduzem<br />
à construção <strong>do</strong>s sentimentos idealistas e ao posterior desenvolvimento da personalidade nas<br />
operações formais (...) Ela (a personalidade) é, em parte uma submissão <strong>do</strong> “eu” à disciplina<br />
(WADSWORTH, 1996, p.139).<br />
30<br />
E com isso fechamos esse capítulo, vimos que na perspectiva de Piaget o<br />
desenvolvimento cognitivo da criança se dá com o seu desenvolvimento afetivo e que<br />
ambos dependem de uma maturação biológica que ocorre mediante fases ou estágios de<br />
desenvolvimento das estruturais mentais <strong>do</strong> ser humano ao longo da vida. Sen<strong>do</strong> que,<br />
quan<strong>do</strong> o ocorre o abuso sexual essa progressão é de certa forma é impedida de se<br />
realizar plenamente, trazen<strong>do</strong> sérios prejuízos na aprendizagem escolar dessas crianças<br />
vítimas de abuso sexual.
31<br />
Capítulo 4<br />
<strong>As</strong> consequências <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> o desempenho acadêmico da criança<br />
O abuso sexual constitui uma das categorias de maus-tratos contra crianças e<br />
a<strong>do</strong>lescentes, as quais incluem ainda o abuso físico, o abuso psicológico, o aban<strong>do</strong>no e a<br />
negligência. E como tal, as consequências <strong>do</strong> mesmo podem ser sentidas, na vida <strong>do</strong><br />
abusa<strong>do</strong>, de forma dura<strong>do</strong>ura ao longo da sua vida. Tais conseqüências podem envolver<br />
prejuízos não só <strong>para</strong> a sua vida psíquica, mas, sobretu<strong>do</strong>, no que se refere a sua<br />
aprendizagem escolar, que envolvem os processos cognitivos da criança.<br />
Um <strong>do</strong>s fatores que contribuem <strong>para</strong> esse prejuízo é o Transtorno de Estresse<br />
Pós-Traumático (TEPT) aponta<strong>do</strong> por muitos autores como o transtorno psicológico<br />
mais associa<strong>do</strong> ao abuso sexual infantil. Os autores Garbarino, Kostelny e Dubrow<br />
(1991) definem trauma como um prejuízo, um esta<strong>do</strong> psíquico ou comportamental<br />
desorienta<strong>do</strong>, provoca<strong>do</strong> por estresse mental ou emocional ou dano físico, relaciona<strong>do</strong> a<br />
eventos que podem provocar me<strong>do</strong> agu<strong>do</strong> ou crônico. E por tais características, o abuso<br />
sexual infantil pode ser descrito como um evento traumático ou simplesmente trauma e,<br />
desta forma, estar associa<strong>do</strong> ao desenvolvimento <strong>do</strong> TEPT.<br />
Em decorrência <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> TEPT ( sen<strong>do</strong> que nem todas as vítimas<br />
de abuso sexual irão desenvolvê-lo) a criança abusada sexualmente terá uma<br />
interferência no seu processo de maturação emocional- cognitiva e na sua organização<br />
cerebral, isto ocorren<strong>do</strong> em função a uma hiperativação <strong>do</strong>s sistemas neurais de<br />
respostas ao estresse. Adicionalmente, poderão ocorrer com isso prejuízos<br />
neuropsicológicos em funções executivas <strong>do</strong> cérebro como aprendizagem verbal, a<br />
memória e a atenção - fundamentais <strong>para</strong> o desenvolvimento cognitivo pleno da criança.<br />
Os psicólogos usam o termo cognitivo <strong>para</strong> descrever processos como a percepção, a
atenção e associação, sen<strong>do</strong> estes fatores que o cérebro usa <strong>para</strong> processar a informação<br />
recebida em conhecimento e aprendizagem.<br />
Para Sanderson (2005), um <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> abuso sexual é distorcer a percepção<br />
de mun<strong>do</strong> da criança. Para essa autora britânica, um relacionamento aparentemente<br />
32<br />
amoroso pode se tornar um pesadelo abusivo sexualmente, levan<strong>do</strong> a uma<br />
confusão sobre quais os comportamentos adequa<strong>do</strong>s e inadequa<strong>do</strong>s entre adultos e<br />
crianças. É por isso que crianças sexualmente abusadas quase sempre se sentem<br />
culpadas e, de alguma forma, culpam-se pelo que está acontecen<strong>do</strong> com elas. Essa<br />
distorção da realidade que o abuso sexual causa sobre a criança se constitui como uma<br />
das consequências <strong>do</strong> processo de maturação ainda em desenvolvimento, facilitan<strong>do</strong> o<br />
trabalho <strong>para</strong> o agressor, em detrimento da vulnerabilidade da vítima. Por isso, é<br />
importante saber em que estágio de desenvolvimento cognitivo a criança se encontra<br />
<strong>para</strong> que ela possa ter uma compreensão mais acurada da realidade e de mun<strong>do</strong> e desta<br />
forma seja melhor orientada pelos adultos no tocante a sua integridade física e<br />
emocional.<br />
Quanto mais nova for a criança, menos percepção ela terá da realidade e com<br />
isso ficará mais suscetível aos desejos <strong>do</strong> agressor. É por isso que tais crianças podem<br />
crer que sexo entre adultos e crianças seja normal, internalizan<strong>do</strong> este padrão, uma vez<br />
que seu conhecimento <strong>do</strong> comportamento sexual adequa<strong>do</strong> ainda é muito incipiente.<br />
Além disso, a internalização deste padrão pode levar a pior conseqüência da ocorrência<br />
de abuso sexual, a intergeracionalidade, ou seja, a criança tornar-se um agressor sexual<br />
quan<strong>do</strong> adulta (McCloskey &Bailey, 2000).<br />
Outro efeito da distorção da realidade, como consequência da vida cognitiva da criança<br />
ainda em formação, é a fuga por parte da criança, da realidade <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> um<br />
mun<strong>do</strong> interior de confusão e perturbação. Esse processo é necessário <strong>para</strong> que se<br />
proteja e, assim, conseguir sobreviver à experiência traumática <strong>do</strong> abuso. É por isso que<br />
ela pode se refugiar em um mun<strong>do</strong> de fantasia to<strong>do</strong> seu, onde ela terá o poder e o<br />
controle que lhe faltam na vida real.
Na escola ficam mais evidentes as consequências <strong>do</strong> abuso sexual sobre a vida<br />
cognitiva da criança e uma das consequências mais visível é a falta de concentração e o<br />
desinteresse pela aprendizagem. Segun<strong>do</strong> Sanderson:<br />
33<br />
Uma criança que está sempre preocupada, com me<strong>do</strong>, terror, confusão ou que antecipa o<br />
próximo acesso sexual não vai conseguir prestar atenção no que se espera que aprenda na escola.<br />
Essas crianças se comportam como se estivessem em um mun<strong>do</strong> de sonho e parecem aéreas na<br />
classe, quase rudes em suas respostas. (SANDERSON, 2005, p.220).<br />
Para essas crianças, pode ser muito difícil aprender qualquer coisa na escola. A<br />
dificuldade em se concentrar faz com que elas não absorvam ou não armazenem<br />
informações, e nem aprendam ou tentem relembrá-las. É por isso que essas crianças que<br />
são abusadas sexualmente poderão ter um aproveitamento insuficiente em seu<br />
desempenho acadêmico na escola. Poderá ocorrer por parte <strong>do</strong>s professores um<br />
equívoco com relação a essas crianças, quan<strong>do</strong> estes associam um baixo desempenho<br />
acadêmico a “problemas de aprendizagem” e com isso poderão abalar a confiança<br />
dessas crianças em obter um aproveitamento acadêmico mais satisfatório. Sabemos que<br />
todas as crianças têm capacidade <strong>para</strong> aprender e <strong>para</strong> desenvolver novas habilidades,<br />
entre elas a cognitiva.<br />
Mas há também aquelas crianças que mesmo ten<strong>do</strong> sofri<strong>do</strong> abuso sexual irão<br />
desenvolver-se brilhantemente na escola. Ten<strong>do</strong> até mesmo um desempenho acadêmico<br />
acima da média em relação as outras crianças. Isto poderá ocorrer em função dessas<br />
crianças encontrarem na escola um refúgio <strong>do</strong> abuso sexual que vivencia fora dali. É<br />
que a escola propicia a essas crianças abusadas sexualmente uma distração de sua<br />
confusão emocional e fazen<strong>do</strong> com elas concentrem toda a sua energia em aquisição de<br />
conhecimentos. Esse apoio que a escola proporciona a essas crianças as mantém a salvo<br />
de uma devastação emocional mais aguda e permite que elas construam habilidades<br />
acadêmicas que não demandam muita energia emocional. Isso ocorre muitas vezes,<br />
mesmo quan<strong>do</strong> a escola desconhece a violência sexual que essas crianças vêm sofren<strong>do</strong><br />
ao longo da sua vida escolar.
Em geral, essas crianças parecem extremamente brilhantes, inteligentes, sensatas<br />
<strong>para</strong> além de sua idade. Como escreve Sanderson (2005):<br />
34<br />
Elas podem se tornar leitores ávi<strong>do</strong>s, sempre procuran<strong>do</strong> saciar sua sede de conhecimento. Ler e<br />
aprender se tornam um meio de escapar de sua realidade aterrorizante e obter significa<strong>do</strong> em um<br />
mun<strong>do</strong> muito desestrutura<strong>do</strong> e confuso, em que coisas inexplicáveis acontecem. Crianças<br />
sexualmente abusadas, na maioria das vezes, desenvolvem habilidades cognitivas, como<br />
estratégias de planejamento, tomada de decisão e fuga, mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> que as crianças não<br />
abusadas sexualmente. Isso acontece em parte porque elas precisam decifrar o incompreensível e<br />
também desenvolver estratégias <strong>para</strong> antecipar e evitar o abuso sexual. (Sanderson, 2005,<br />
p.221).<br />
<strong>As</strong> distorções cognitivas mais comuns que as crianças abusadas sexualmente<br />
apresentam, na opinião de Sanderson (2005,) são as seguintes: “tu<strong>do</strong> ou nada”, a<br />
supergeneralização, a rotulação inadequada, a filtragem mental, a desqualificação <strong>do</strong><br />
positivo, as conclusões precipitadas, o aumento ou a minimização, a racionalização<br />
emocional, as declarações “deveria” e a personalização.<br />
No pensamento tu<strong>do</strong> ou nada, a criança tende a ver o mun<strong>do</strong> em uma<br />
categorização como “Não tenho absolutamente nenhum valor” ou “To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é<br />
brilhante”. Esse pensamento é característico de crianças mais novas que não são capazes<br />
de levar em conta as sutilezas entre duas ideias extremas. Enquanto as crianças mais<br />
velhas, em um estágio de desenvolvimento cognitivo posterior, são mais capazes de<br />
tolerar a ambivalência, a criança mais nova sexualmente abusada tende a se engajar em<br />
pensamentos extremos. Na supergeneralização, a criança generaliza sua própria<br />
experiência <strong>para</strong> outras situações. Exemplo disso pode incluir “Sou abusada por um<br />
homem, logo to<strong>do</strong>s os homens são abusa<strong>do</strong>res sexuais”. Essa tese pode contribuir <strong>para</strong><br />
um me<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os homens, fazen<strong>do</strong> com que essas crianças acreditem<br />
que to<strong>do</strong>s os homens querem ser sexuais com elas, o que pode ser visto em uma criança<br />
mais nova que só consegue se relacionar de mo<strong>do</strong> sexual com adultos <strong>do</strong> mesmo sexo<br />
que o agressor.
A rotulação inadequada é caracterizada pela criação de uma auto-imagem<br />
completamente negativa, pela criança, baseada em uma única falha com “Eu não disse<br />
não e não me defendi o suficiente <strong>do</strong> abuso sexual, por isso sou fraca e patética, o que<br />
mostra quanto sou inútil”. De mo<strong>do</strong> semelhante, na filtragem mental, a criança<br />
concentra-se exclusivamente em to<strong>do</strong>s os aspectos negativos <strong>do</strong> eu e,<br />
consequentemente, filtra os aspectos positivos. Isso está relaciona<strong>do</strong> com a<br />
desqualificação <strong>do</strong> positivo, em que a criança pensa ser impossível deixar entrar<br />
qualquer experiência positiva em outras áreas de sua vida ou desconsidera qualquer<br />
atributo ou habilidade positiva. Exemplo disso poderia ser o da criança que nega sua<br />
capacidade de ir bem na escola ao dizer <strong>para</strong> si mesma que “Foi pura sorte eu ter tira<strong>do</strong><br />
um 10” ou “O professor deve ter senti<strong>do</strong> pena de mim e resolveu me dar uma nota alta”.<br />
35<br />
Nas conclusões precipitadas ou inferências arbitrárias, a criança<br />
invariavelmente imagina uma conclusão negativa, que não está baseada em nenhuma<br />
evidência real. Exemplo comum disso é “To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que me conhece vai me culpar<br />
pelo abuso sexual; eles não vão mais querer ser meus colegas”. A minimização ou o<br />
aumento pode ser extremamente devasta<strong>do</strong>r da auto-estima da criança. Na<br />
minimização, a criança diminui os efeitos devasta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> abuso sexual como forma de<br />
se proteger <strong>do</strong> impacto real que ele tem. Essa minimização ou negação permite que a<br />
criança sobreviva à experiência, visto que o impacto total poderia ser devasta<strong>do</strong>r demais<br />
<strong>para</strong> a percepção de si mesma. No aumento, ela exagera os erros e deficiências <strong>para</strong><br />
além da proporção, o que pode levar ao fatalismo <strong>do</strong> tipo “Fui tão devastada pelo o<br />
abuso sexual que nunca mais vou ser capaz de levar uma vida normal, vou sempre<br />
permanecer ferida”.<br />
Esse tipo de pensamento está relaciona<strong>do</strong> com a racionalização emocional, que<br />
pode ser própria da idade e certamente reflete com precisão a experiência da criança.<br />
Um bom exemplo disso é quan<strong>do</strong> os sentimentos de vergonha e de culpa sobre o abuso<br />
são equaciona<strong>do</strong>s com o sentimento de responsabilidade por ele. A criança racionaliza<br />
que “Eu fui responsável pelo abuso porque me sinto muito mal sobre não ter dito não”.<br />
Muitas crianças sexualmente abusadas têm expectativas irreais de si mesmas,<br />
acreditan<strong>do</strong> que deveriam sempre se comportar de acor<strong>do</strong> com essas altas expectativas.
O fracasso em realizar essas expectativas causa culpa, baixa auto-estima e raiva. Essas<br />
crianças são geralmente perfeccionistas ao tentar desfazer o quão mal se sentem a<br />
respeito de si mesmas. Finalmente, na personalização, ou atribuição inadequada, a<br />
criança assume a responsabilidade de algo em que não deveria haver nenhuma.<br />
36<br />
Exemplo comum disso é a criança que toma <strong>para</strong> si toda a responsabilidade pelo<br />
abuso sexual ao fazer declarações como “Devo ter si<strong>do</strong> responsável pelo abuso sexual<br />
porque gostei e porque meu corpo respondeu ao abuso”. Os agressores que colocam<br />
essa responsabilidade sobre a criança ajudam a reforçar a atribuição inadequada.<br />
É por isso que quan<strong>do</strong> a criança confessa o abuso sexual, é muito importante que<br />
os adultos forneçam informações factuais e precisas <strong>para</strong> corrigir qualquer informação<br />
errada dada a criança pelo abusa<strong>do</strong>r. <strong>As</strong> crenças da criança e o significa<strong>do</strong> que ela teve<br />
<strong>do</strong> abuso sexual precisam ser confronta<strong>do</strong>s e substituí<strong>do</strong>s por pensamentos mais<br />
precisos e compreensivos. Uma criança nunca é responsável pelo abuso sexual, não<br />
importa como ela se comporte; e o fato de o abuso ser algo ruim e ter aconteci<strong>do</strong> com<br />
ela não faz dela uma criança má.<br />
Então <strong>para</strong> finalizar esse capítulo, vimos que os principais sintomas e<br />
consequências <strong>do</strong> abuso sexual <strong>para</strong> vida cognitiva da criança são baixa concentração e<br />
atenção, dissociação, transtornos de memória em decorrência <strong>do</strong> TEPT, negação,<br />
refúgio na fantasia, tanto um sub como um superaproveitamento na escola das<br />
habilidades cognitivas da criança. Em alguns casos pode ocorrer o chama<strong>do</strong><br />
superaproveitamento <strong>do</strong> potencial cognitivo da criança na escola. Mas o que acaba<br />
ocorren<strong>do</strong> com mais frequência é um sub-aproveitamento das funções cognitivas da<br />
criança vítima de abuso sexual em função de to<strong>do</strong> um emaranha<strong>do</strong> de emoções e<br />
sentimentos provoca<strong>do</strong>s pelo trauma.
37<br />
Considerações Finais<br />
O presente trabalho visou como objetivo um estu<strong>do</strong> teórico <strong>do</strong> abuso sexual e<br />
suas consequências <strong>para</strong> o desenvolvimento cognitivo da criança nos primeiros anos de<br />
sua vida escolar. O trabalho teve início com um levantamento bibliográfico sobre o<br />
assunto através de artigos acadêmicos e livros de autores sobre o tema, publica<strong>do</strong>s nos<br />
últimos dez anos, tanto na literatura brasileira, quanto na estrangeira. O trabalho foi<br />
realiza<strong>do</strong> em forma de monografia, como requisito <strong>para</strong> a conclusão <strong>do</strong> curso de<br />
graduação em pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, buscou-se compreender o fenômeno <strong>do</strong> abuso sexual infantil, em<br />
relação as suas consequências <strong>para</strong> o desenvolvimento normal das crianças, <strong>para</strong> além<br />
<strong>do</strong> aspecto cognitivo, mas também de forma mais global. Para tanto, buscou-se uma<br />
compreensão ampliada <strong>do</strong>s conceitos de “criança” e “infância”, apresentadas no curso<br />
da história social da humanidade. Para tanto, foram utilizadas, contribuições de vários<br />
autores, tanto da Psicologia, como de outras áreas <strong>do</strong> conhecimento, a fim de nos<br />
debruçarmos de forma mais abrangente sobre esse fenômeno tão presente na sociedade<br />
atual.<br />
Além desses aspectos gerais aborda<strong>do</strong>s no trabalho, ficou evidente que tal<br />
fenômeno traz inúmeras consequências <strong>para</strong> o desenvolvimento da criança que sofre tal<br />
abuso ao longo da sua vida. Especialmente <strong>para</strong> o seu desenvolvimento cognitivo, o<br />
abuso sexual se mostra devasta<strong>do</strong>r na vida dessa criança, causan<strong>do</strong>-lhe prejuízos na sua<br />
aprendizagem escolar. Apesar de ocorrer em alguns casos um superaproveitamento <strong>do</strong>
conteú<strong>do</strong> escolar, o que acaba prevalecen<strong>do</strong> na vida dessas crianças é um<br />
subaproveitamento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> escolar, por conta de um déficit de aprendizagem muito<br />
acentua<strong>do</strong> em função <strong>do</strong> trauma vivi<strong>do</strong>. Isto ocorre devi<strong>do</strong> ao trauma deixar marcas não<br />
só no psiquismo dessas crianças, mas também causan<strong>do</strong> disfunções de ordem<br />
neurológica e cognitiva em sua formação mental e em sua memória. Um outro aspecto<br />
muito atingi<strong>do</strong> é o da “afetividade”, sen<strong>do</strong> esse muito importante <strong>para</strong> a aquisição de<br />
novas aprendizagens e habilidades cognitivas no meio escolar. Tão importante que<br />
autores como Piaget e Wallon se debruçaram sobre ele de forma categórica e irredutível,<br />
quanto a essa questão da aprendizagem escolar, contribuin<strong>do</strong> de forma inestimável não<br />
só <strong>para</strong> a Psicologia, mas, sobretu<strong>do</strong>, <strong>para</strong> a área da educação.<br />
38<br />
Para que ocorra a aprendizagem é preciso que o educan<strong>do</strong> possa estabelecer<br />
vínculos afetivos com o educa<strong>do</strong>r, e <strong>para</strong> isso é preciso que haja confiança entre ambos.<br />
No caso da criança que sofreu abuso sexual esse vínculo tem a tendência a ser rompi<strong>do</strong>,<br />
pois a criança acaba perden<strong>do</strong> a confiança nos adultos de forma geral. Isto ocorre em<br />
detrimento de uma proteção que a criança espera <strong>do</strong> adulto, que em alguns casos não<br />
acaba ocorren<strong>do</strong>. Já que essa mesma criança acaba sofren<strong>do</strong> essa violência de um adulto<br />
muito próxima a ela, como o próprio pai ou padrasto, consideran<strong>do</strong> que a maioria <strong>do</strong>s<br />
casos de abuso sexual ocorre dentro da família ou são pratica<strong>do</strong>s por pessoas conhecidas<br />
da criança. Onde estão em jogo não só laços sanguíneos, mas também laços afetivos<br />
entre ambos.<br />
Esse fator de proteção é muito importante <strong>para</strong> que a criança crie vínculos<br />
afetivos com os adultos. E a família se constitui <strong>para</strong> a criança como um fator de<br />
proteção ímpar dentro da sociedade, permitin<strong>do</strong> que ela (criança) se reconheça como<br />
indivíduo no mun<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> essa ordem é rompida por meio <strong>do</strong> abuso sexual dentro da<br />
própria família, isso acarreta <strong>para</strong> a criança uma perda significativa <strong>do</strong>s vínculos<br />
afetivos e um trauma de proporções imensas <strong>para</strong> a sua vida psíquica e mental. Tu<strong>do</strong><br />
isso acaba culminan<strong>do</strong> na total disfuncionalidade dessa própria família, geran<strong>do</strong> um<br />
fator conheci<strong>do</strong> como “transgeracionalidade”, ou seja, a criança que sofre abuso sexual<br />
pode vir a tornar-se um agressor sexual, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto em que se desenvolve<br />
e <strong>do</strong>s fatores de risco e de proteção presentes. No tocante a esse fator, autores como<br />
Costa, Gramkow, Santana e Ferro (apud Lima, 2009) concordam que situações de<br />
violência na família extensa criam um esta<strong>do</strong> de vulnerabilidade <strong>para</strong> que a violência se
perpetue e ocorra em um ciclo vicioso. Nesse senti<strong>do</strong>, Rangel (apud Lima, 2009)<br />
argumenta que a violência sexual, especificamente o abuso sexual intergeracional<br />
apresenta especificidades, nem sempre visíveis como no caso <strong>do</strong> “incesto”. Como<br />
afirma Imber-Black (1994 apud Braun 2002, p.35) que o abuso sexual incorpora as<br />
forças mais perversas da natureza humana. O incesto se constitui, segun<strong>do</strong> essa autora,<br />
como a história de poder mal utiliza<strong>do</strong>, exploração e traição da inocência da criança.<br />
39<br />
Na conclusão dessa monografia ficou evidente que os diversos fatores<br />
envolvi<strong>do</strong>s no abuso sexual trazem prejuízos significativos <strong>para</strong> o desenvolvimento<br />
cognitivo da criança na sua fase escolar. Mas que a família e a escola podem atuar como<br />
fatores de proteção às consequências negativas <strong>do</strong> abuso sexual e precisam estar unidas<br />
<strong>para</strong> que esse tipo de violência seja um dia expurga<strong>do</strong> da nossa sociedade e que as<br />
crianças possam encontrar proteção, compreensão e carinho no interior dessas<br />
instituições seculares.
40<br />
Referências Bibliográficas<br />
ADED, Naura Liane de Oliveira., DALCIN, Bruno Luís Galluzzi da Silva., MORAES,<br />
Talvane Marins de., CAVALCANTI, Maria Tavares. <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> em crianças e<br />
a<strong>do</strong>lescentes: revisão de 100 anos de literatura. In: Rev. Psiq. Clin. 33 (4); 204-213,<br />
2006.<br />
ARIES, P. (1981). História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora<br />
Afiliada.<br />
<strong>As</strong>sociação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e A<strong>do</strong>lescência –<br />
ABRAPIA, 1997.<br />
<strong>As</strong>sociação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e A<strong>do</strong>lescência. (2004).<br />
<strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> Infantil. http // www.abrapia.com.br.<br />
AZEVEDO, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). Crianças vitimizadas: a síndrome <strong>do</strong><br />
pequeno poder. São Paulo: Iglu.<br />
BOTO, Carlota. Civilizar a infância na Renascença: estratégia de distinção de<br />
classe. In: Cadernos da Pedagogia, ano I, Vol. 01, Janeiro/Julho de 2007.<br />
BRINGUIER, J. C. (1977). Conversan<strong>do</strong> com Jean Piaget. Rio de Janeiro – São<br />
Paulo.<br />
BRINO, R. F., Williams, L. C. A. (2003). Concepções da professora acerca <strong>do</strong> abuso<br />
sexual infantil. In: Cadernos de Pesquisas, 119, 113-128.<br />
BRINO, R. F., Williams, L. C. A. (2009). A escola como agente de prevenção <strong>do</strong><br />
abuso sexual. São Carlos: Suprema.<br />
CARTER – Lourensz, J. H., Johnson – Powell, G. <strong>Abuso</strong> Físico, <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> e<br />
Negligência da Criança. In: Kaplan, H. I., Sad<strong>do</strong>ck, B. J. Trata<strong>do</strong> de Psiquiatria,<br />
V.3. Artmed, Porto Alegre, pp. 2660 – 2676, 1999.
FERREIRA Jr. A. & Santos, K. J.A <strong>do</strong>s. Infância, Modernidade e Pós-Modernidade.<br />
In: Estu<strong>do</strong>s em Fundamentos da Educação, São Carlos: Pedro & João Editores, 2007.<br />
FREUD, S. (1970). Cinco Lições de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.<br />
GABEL, M. (1997). Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus.<br />
HABIGZANG, L.F., & Caminha, R.M. (2004). <strong>Abuso</strong> sexual contra crianças e<br />
a<strong>do</strong>lescentes: Conceituação e intervenção clínica. São Paulo: Casa <strong>do</strong> Psicólogo.<br />
41<br />
IMBER BLACK, E. (1994). Os segre<strong>do</strong>s na família e na terapia familiar. Porto<br />
Alegre: Artes Médicas.<br />
KENDALL-TACKETT, K.A., Williams, L.M., & Finkelhor, D. (1993). Impact of<br />
sexual abuse on children: A review and synthesis of recent empirical studies.<br />
Psychological Bulletin, 113 (1) 164-180.<br />
LABBÉ, J. Ambroise Tardieu: The man and his work on child maltreatment a<br />
century before kempe. Child Abuse & Neglet 29 (4): 307-3009, 2005.<br />
MEICHENBAUM, D. (1994). A clinical handbook / pratical therapist manual for<br />
assessing and treating adults with pos-traumatic stress disorder (PTSD). Waterloo:<br />
Institute Press.<br />
MCCLOSKEY, L.A., & Bailey, J.A. (2000). The intergerational transmission of risk<br />
for child sexual abuse. Journal of Interpersonal Violence, 15, 10, 1019-1035.<br />
PIAGET, J. (1964). Seis estu<strong>do</strong>s de psicologia. Rio de Janeiro: Forense – Universitária.<br />
PIAGET, J. (1990). Epistemologia Genética. São Paulo: Martins Fontes.<br />
POSTMAN, Neil. (1999). O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia.<br />
ROCHE, A. J., Fortin, G., Labbé, J., Brown, J., Chadwick, D. (2005). The work of<br />
Ambroise Tardieu: The first definitive discription of child abuse. Child Abuse &<br />
Neglet 29 (4): 325-335.<br />
RODRIGUES, L. J., Brino, R.F., Williams, L.C.A. (2006). Concepções De<br />
<strong>Sexual</strong>idade Entre A<strong>do</strong>lescentes Com E Sem Histórico De Violência <strong>Sexual</strong>. In:<br />
Paideia, 16 (34), 229-240.<br />
SANDERSON, Christiane. (2005). <strong>Abuso</strong> <strong>Sexual</strong> em Crianças: Fortalecen<strong>do</strong> pais e<br />
professores <strong>para</strong> proteger crianças de abusos sexuais. (Tradução Frank de Oliveira).<br />
São Paulo: M. Books <strong>do</strong> Brasil Editora.<br />
WADSWORTH, B.J. (1996). Inteligência e afetividade da criança na teoria de<br />
Piaget. São Paulo: Pioneira.
WATSON, K. (1994). Substitute care providers: Helping abused and neglet<br />
children. Washington, D.C: National Center on Child Abuse and Neglect.<br />
42