A ocupação islâmica da Praça da Figueira - Museu da Cidade

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A ocupação do período da dominação islâmica na Praça da Figueira (Lisboa) 1 . Actas do Congresso Afonso Henriques e a sua época, Lisboa, Ass.Amigos de Lisboa (em publicação) 1. Introdução. Rodrigo Banha da Silva* Entre 1999 e 2001 desenvolveu-se na Praça da Figueira uma extensa escavação arqueológica, motivada pela construção de um parqueamento automóvel subterrâneo, um dos componentes de um projecto de iniciativa municipal de reabilitação das praças da Figueira e do Rossio. O espaço da Praça da Figueira constitui um dos pontos epónimos da arqueologia da cidade de Lisboa pois ali se desenvolveram algumas das acções mais conhecidas e pioneiras: em 1957 os serviços camarários acompanharam a descoberta de restos da escadaria de acesso à Igreja de Todos-Os-Santos; em 1960 a então jovem conservadora dos museus municipais, Irisalva Moita, escavou entre Agosto e Setembro uma extensão apreciável do quadrante setentrional do Hospital Real de Todos-Os-Santos, espaços anexos do Convento de São Domingos, a Ermida de Nossa Senhora do Amparo e o Cano Real de São Domingos; no ano seguinte foi recolhendo do estaleiro de obra do Metropolitano mobiliário funerário, inscrições e outro material romano, despoletando a escavação arqueológica com preocupação estratigráfica conduzida a partir de 1962 por Fernando Bandeira Ferreira; em 1970 Moita retorna ao local para recolher variados elementos arquitectónicos e epigráficos da Época Moderna, aparecidos aquando dos trabalhos de construção do embasamento da estátua equestre de D.João I. Todas estas acções geraram um volume de espólio na sua maioria inédito, que se conserva no Museu da Cidade. E foi justamente por esta ligação estreita da instituição ao local, que se lhe cometeu a direcção dos trabalhos decorridos entre 1999 e 2001, cabendo ao autor a responsabilidade pelos mesmos, 1 Na sequência de reunião científica em Aljezur, foi produzido um outro texto que beneficia do saber dos Srs. Profs. Drs. Rosa e Mário Varela Gomes, elaborado em colaboração, que visou aprofundar os aspectos de natureza arquitectónica e de perspectivação histórica, entretanto publicado- Conf. Rodrigo Banha da Silva, Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes, “O bairro islâmico da Praça da Figueira (Lisboa)”, in Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular- Encontros e Desencontros, Lisboa Instituto de Arqueologia e Paleociências das Universidades Nova de Lisboa e do Algarve, 2011, p. 17- 25.

A <strong>ocupação</strong> do período <strong>da</strong> dominação <strong>islâmica</strong> na <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong><br />

(Lisboa) 1 .<br />

Actas do Congresso Afonso Henriques e a sua época, Lisboa, Ass.Amigos de Lisboa<br />

(em publicação)<br />

1. Introdução.<br />

Rodrigo Banha <strong>da</strong> Silva*<br />

Entre 1999 e 2001 desenvolveu-se na <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong> uma extensa escavação<br />

arqueológica, motiva<strong>da</strong> pela construção de um parqueamento automóvel subterrâneo,<br />

um dos componentes de um projecto de iniciativa municipal de reabilitação <strong>da</strong>s praças<br />

<strong>da</strong> <strong>Figueira</strong> e do Rossio.<br />

O espaço <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong> constitui um dos pontos epónimos <strong>da</strong> arqueologia<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Lisboa pois ali se desenvolveram algumas <strong>da</strong>s acções mais conheci<strong>da</strong>s e<br />

pioneiras: em 1957 os serviços camarários acompanharam a descoberta de restos <strong>da</strong><br />

esca<strong>da</strong>ria de acesso à Igreja de Todos-Os-Santos; em 1960 a então jovem<br />

conservadora dos museus municipais, Irisalva Moita, escavou entre Agosto e<br />

Setembro uma extensão apreciável do quadrante setentrional do Hospital Real de<br />

Todos-Os-Santos, espaços anexos do Convento de São Domingos, a Ermi<strong>da</strong> de Nossa<br />

Senhora do Amparo e o Cano Real de São Domingos; no ano seguinte foi recolhendo<br />

do estaleiro de obra do Metropolitano mobiliário funerário, inscrições e outro material<br />

romano, despoletando a escavação arqueológica com pre<strong>ocupação</strong> estratigráfica<br />

conduzi<strong>da</strong> a partir de 1962 por Fernando Bandeira Ferreira; em 1970 Moita retorna ao<br />

local para recolher variados elementos arquitectónicos e epigráficos <strong>da</strong> Época<br />

Moderna, aparecidos aquando dos trabalhos de construção do embasamento <strong>da</strong> estátua<br />

equestre de D.João I. To<strong>da</strong>s estas acções geraram um volume de espólio na sua<br />

maioria inédito, que se conserva no <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. E foi justamente por esta<br />

ligação estreita <strong>da</strong> instituição ao local, que se lhe cometeu a direcção dos trabalhos<br />

decorridos entre 1999 e 2001, cabendo ao autor a responsabili<strong>da</strong>de pelos mesmos,<br />

1 Na sequência de reunião científica em Aljezur, foi produzido um outro texto que beneficia do saber<br />

dos Srs. Profs. Drs. Rosa e Mário Varela Gomes, elaborado em colaboração, que visou aprofun<strong>da</strong>r os<br />

aspectos de natureza arquitectónica e de perspectivação histórica, entretanto publicado- Conf. Rodrigo<br />

Banha <strong>da</strong> Silva, Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes, “O bairro islâmico <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong><br />

(Lisboa)”, in Cristãos e Muçulmanos na I<strong>da</strong>de Média Peninsular- Encontros e Desencontros, Lisboa<br />

Instituto de Arqueologia e Paleociências <strong>da</strong>s Universi<strong>da</strong>des Nova de Lisboa e do Algarve, 2011, p. 17-<br />

25.


pontualmente coadjuvado por Marina Carvalhinhos.<br />

As intervenções <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de ´1960, contudo, foram feitas de forma descontínua<br />

entre os diferentes horizontes ocupacionais. Por essa razão, entre as altimetrias dos<br />

pavimentos do edificado de Época Moderna, situados em torno dos 9m, e as de época<br />

romana, com valores de cerca de 6m ou inferiores, um potente hiato correspondia aos<br />

vestígios legados por cerca de um milénio de história, acerca dos quais o<br />

desconhecimento era total. Este constitui, portanto, um dos objectivos iniciais <strong>da</strong><br />

extensa intervenção arqueológica, ou seja, o de esclarecer o tipo de <strong>ocupação</strong> do<br />

espaço entre a Antigui<strong>da</strong>de Tardia e a Baixa I<strong>da</strong>de Média.<br />

2. Os antecedentes à <strong>ocupação</strong> medieval muçulmana.<br />

No espaço <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong> foi identificado por Moita, e depois<br />

convenientemente escavado pela equipa dirigi<strong>da</strong> por Bandeira Ferreira, um troço<br />

importante de uma <strong>da</strong>s necrópoles de Felicitas Iulia Olisipo. Fazendo parte de um<br />

espaço suburbano onde se privilegiou um uso funerário em Época Alto-Imperial<br />

romana, que denominámos como Necrópole Noroeste 2 , ladeava um dos dois<br />

devertículos de uma <strong>da</strong>s mais importantes vias <strong>da</strong> Hispania ocidental que, com início<br />

na ci<strong>da</strong>de do Tejo se dirigia à capital conventual, Scallabis, e <strong>da</strong>li para o Noroeste<br />

Peninsular ou para a capital provincial, Emerita.<br />

No estado actual dos conhecimentos não é possível recuar a <strong>da</strong>ta de instalação<br />

<strong>da</strong>s construções funerárias para antes <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60 d.C., <strong>da</strong>ta próxima de uma<br />

profun<strong>da</strong> reforma do troço de via, cujo funcionamento se iniciara já em época de<br />

Tibério (14-37 d.C.) embora com uma orientação ligeiramente distinta na parte<br />

conheci<strong>da</strong> mais setentrional.<br />

Assumindo uma expressão arquitectónica monumentaliza<strong>da</strong>, denunciando a sua<br />

importância, provavelmente reforça<strong>da</strong> pela proximi<strong>da</strong>de com o circo, iria sofrer uma<br />

intensa campanha de desmantelamento para aproveitamento de pedra no último terço<br />

do século III d.C., como provavelmente terá acontecido com o edifício lúdico vizinho.<br />

Como vimos repeti<strong>da</strong>mente salientando, um tal esforço relacionar-se-á com a<br />

edificação <strong>da</strong> primitiva muralha Baixo Imperial, que assim <strong>da</strong>taria com maior<br />

2 Rodrigo Banha <strong>da</strong> Silva, “As sepultras <strong>da</strong> Calça<strong>da</strong> do Garcia e o Urbanismo de Olisipo”, in Actas <strong>da</strong>s<br />

II Encontro Nacional de Arqueologia Urbana (Alma<strong>da</strong>, 1997), Alma<strong>da</strong>, C.M.Alma<strong>da</strong>/Divisão de<br />

<strong>Museu</strong>s, 2002, pp. 193-205.


probabili<strong>da</strong>de de Época Tetrárquica 3 .<br />

0 50 m<br />

Logo após o desmentelamento <strong>da</strong>s estruturas monumentais funerárias, núcleos<br />

3 Idem e “Olisipo”, in Actas de La Reunón La Gestión de los resíduos en la Hispania Romana, col.<br />

Anejos de Archivo Español de Arqueología, vol. XL, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones<br />

Científicas, 2011, p.203-212.


do espaço foram utilizados para a prática de sepulturas de inumação e incineração,<br />

algumas <strong>da</strong>s quais de apreciável riqueza de mobiliário, uso que parece extinguir-se<br />

ain<strong>da</strong> durante o século IV d.C. Reaproveitando partes dos embasamentos de um<br />

pequeno recinto funerário, uma pequena habitação dos finais <strong>da</strong>quele século terá<br />

funcionado como casal agrícola até meados do século V d.C., iniciando a etapa<br />

histórica rural do espaço <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong>. Data deste período, mais precisamente<br />

do dominado de Arcádio, a última pavimentação <strong>da</strong> via romana, bem atesta<strong>da</strong> por dois<br />

numismas na cama<strong>da</strong> de preparação nos dois sectores exumados.<br />

Após esta última <strong>ocupação</strong>, os vestígios são por demais escassos, e resumem-se<br />

a um fragmento de “sigillata cinzenta paleocristã”, oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> Gália, um pequeno<br />

fragmento de inscrição funerária mencionando um “Vicentius”, e um poço de<br />

apreciáveis dimensões, a que se acedia por um pequeno pátio, instalado acima do<br />

local onde jazia a via. Não parece crível que o itinerário tivesse sido abandonado<br />

nesta época (sécs.V-VI d.C.), sendo antes provável que fosse percorrido agora sem<br />

uma estrutura formal, justificando-se assim as flutuações de implantação que iria<br />

sofrer até aos dois séculos finais <strong>da</strong> dominação <strong>islâmica</strong>, quando retoma clara<br />

expressão arquitectónica.<br />

Cobrindo as últimas ocupações de cronologia tardo-antiga, depositaram-se dois<br />

potentes estratos (c. 50 cm) que ocupavam to<strong>da</strong> a extensa área escava<strong>da</strong> <strong>da</strong> praça<br />

(c.4500 m2). Argilosos, de granulometria fina, contendo raríssimas inclusões<br />

cerâmicas <strong>da</strong>táveis sobretudo de momentos anteriores, poderão ser interpretados como<br />

correspondentes a um episódio de maior insalubri<strong>da</strong>de do local? E será este o<br />

resultado de um longo episódio de degra<strong>da</strong>ção climática? O estádio actual dos nossos<br />

conhecimentos paleoambientais para a zona de Lisboa entre os séculos VI e X d.C.<br />

são demasiado limitados, e só a investigação posterior o poderá esclarecer.<br />

3. As evidências mais antigas <strong>da</strong> <strong>ocupação</strong> do espaço em época medieval<br />

muçulmana.<br />

No sector mais ocidental <strong>da</strong> intervenção arqueológica foi revela<strong>da</strong> uma estrutura<br />

viária de grande quali<strong>da</strong>de construtiva. Trata-se de um tabuleiro de circulação<br />

rectilíneo, reconhecido ao longo de 18 m de extensão, de 3,95 m de largura, com um<br />

piso empedrado empregando blocos calcários e basálticos de média dimensão,<br />

definido lateralmente por elementos também pétreos mas de maior dimensão,<br />

arqueado <strong>da</strong>do ser sobrelevado no centro.


A estrutura viária fóssil estava implanta<strong>da</strong> no preciso local onde outrora se<br />

localizou a arcaria <strong>da</strong> facha<strong>da</strong> do Hospital Real de Todos-Os-Santos, localiza<strong>da</strong> quatro<br />

metros mais acima. Como é sobejamente conhecido, o projecto do edifício hospitalar<br />

integrou na sua estrutura um dos principais eixos medievais de saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, a<br />

“Corredoura” que se desenvolvia até ao exterior <strong>da</strong>s Portas de Santo Antão <strong>da</strong> «Cerca<br />

Fernandina», definindo o lado oriental do Rossio anterior ao terramoto de 1755. A<br />

relação directa entre a estrutura viária de época <strong>islâmica</strong> e as referencia<strong>da</strong>s para a<br />

baixa medievali<strong>da</strong>de e Época Moderna foi documenta<strong>da</strong> arqueologicamente, e<br />

corresponde à origem <strong>da</strong>queles traçados urbanos.<br />

A construção, de alta quali<strong>da</strong>de, pressupõe um elevado investimento por parte<br />

do seu man<strong>da</strong>tário, e também condições políticas e económicas propícias para a sua<br />

realização.<br />

Os níveis de preparação apresentavam-se semelhantes à composição do rudus<br />

preceituado na tratadística romana, denunciando o conhecimento dos mesmos e a<br />

perícia técnica do “planificador“. De ambos os lados <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> foram implementados<br />

espaços não edificados atingindo 2,20 m de largura, que funcionavam como zonas de<br />

protecção em termos de proprie<strong>da</strong>de. Limitados por dois muros laterais, estas<br />

construções foram sucessivamente remodela<strong>da</strong>s durante à I Dinastia Portuguesa,<br />

época em que a estrutura se manteve em funcionamento, agora com um piso em terra<br />

bati<strong>da</strong>.<br />

O conjunto de artefactos recolhido neste ambiente inclui um número razoável<br />

mas muito fragmentado de cerâmicas, onde se contam recipientes decorados com a<br />

técnica <strong>da</strong> “cor<strong>da</strong>-seca” total, um candil fragmentado e diversos fragmentos de<br />

“cerâmica comum” com pintura a branco, espólio que pode ser remetido<br />

genericamente para a segun<strong>da</strong> metade do século XI.<br />

Para oriente <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, os vestígios encontrados foram pouco significativos. Na<br />

sua proximi<strong>da</strong>de foram identifica<strong>da</strong>s duas fossas ovala<strong>da</strong>s de grande dimensão, tendo<br />

uma delas servido para depositar os restos de um equídeo. Mais para o interior <strong>da</strong><br />

praça, dispersas pelo espaço e sem uma geometria aparente, estruturas escava<strong>da</strong>s nos<br />

estratos de base deverão corresponder a fossas detríticas e/ou a cavas provoca<strong>da</strong>s por<br />

trabalhos agrícolas.<br />

O espólio artefactual recolhido nestas estruturas negativas compreende<br />

cerâmicas vidra<strong>da</strong>s, decora<strong>da</strong>s em “cor<strong>da</strong>-seca” total e parcial, vasos importados do<br />

sul peninsular com pintura a vermelho e outros recipientes em produção local/regional


com pintura a branco. Sem se poder precisar melhor a sua cronologia, ela é<br />

enquadrável nos finais do séc.XI-primeira metade do século XII.<br />

Planta de síntese <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> do período islâmico exuma<strong>da</strong> nos trabalhos<br />

arqueológicos <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong>/1999-2001.


4. A instalação do conjunto edificado <strong>da</strong>tado dos finais <strong>da</strong> <strong>ocupação</strong> <strong>islâmica</strong>.<br />

No quadrante sudoeste <strong>da</strong> área afecta<strong>da</strong> pela contrução do parqueamento<br />

automóvel subterrâneo foi escava<strong>da</strong> uma área apreciável de um edificado instalado<br />

nos finais <strong>da</strong> época de dominação <strong>islâmica</strong> que se prolongava para sul, para o coração<br />

<strong>da</strong> Baixa, e para oriente, em direcção ao Poço do Borratém e Encosta <strong>da</strong> Mouraria.<br />

O conjunto de estruturas apresentava-se em razoável estado de conservação, não<br />

se tendo contudo preservado nenhuma uni<strong>da</strong>de com a totali<strong>da</strong>de dos elementos <strong>da</strong><br />

planta original. Da mesma forma, dos muros que formavam as compartimentações<br />

apenas se preservou o seu soco porque construído em pedra vã uni<strong>da</strong> com argila,<br />

tendo desaparecido o restante <strong>da</strong> superestrutura, ergui<strong>da</strong> em “arquitectura de terra”.<br />

Duas razões justificam o carácter lacunar <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des detecta<strong>da</strong>s no terreno: por um<br />

lado as acções de reaproveitamento de materiais construtivos que se seguiram ao<br />

abandono do “bairro”, ao longo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do séc.XII e primeira metade do<br />

séc.XIII; por outro, o carácter húmido do ambiente em que os contextos estiveram<br />

soterrados entre, pelo menos, os anos centrais do século XIV e a actuali<strong>da</strong>de, o que<br />

provocou uma evidente lexiviação dos depósitos.<br />

Ain<strong>da</strong> assim, foi possível identificar numa área aproxima<strong>da</strong> de 1100 m2 cinco<br />

artérias de circulação, uma parte apreciável <strong>da</strong> planta de quatro quarteirões e<br />

reconhecer a existência de três outros, correspondentes a um número superior a<br />

catorze uni<strong>da</strong>des distintas.<br />

Conforme se esclareceu já noutro local, a maioria <strong>da</strong>s habitações segue<br />

preceitos urbanísticos islâmicos “canónicos”: um único vão, orientado a SE/Meca,<br />

conectava a habitação com os eixos de circulação, localizando-se um compartimento<br />

maior, cego para o exterior, no lado oposto <strong>da</strong> casa, ocupando todo o seu topo, num<br />

espaço equivalente a 1/3 ou 1/4 <strong>da</strong> área total; na restante área localizavam-se os<br />

pátios, geralmente descobertos, e as divisões a que se acedia através destes,<br />

designam<strong>da</strong>mente a cozinha, identifica<strong>da</strong> em três ocasiões, “armazém”, “zaguán” e,<br />

em dois casos seguros apenas, a latrina 4 .<br />

O tratamento arquitectónico dos interiores não revelou restos de fresco ou outro<br />

revestimento parietal, que provavelemente estaria presente, e apenas num caso a área<br />

de salão denunciou a presença de um piso almagrado de melhor quali<strong>da</strong>de, aliás<br />

patente numa <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des de maior área.<br />

O cálculo <strong>da</strong>s áreas edifica<strong>da</strong>s denota uma média de 48 m2, valor bastante


limitado que denuncia o reduzido estatuto económico e social dos respectivos<br />

utilizadores, uni<strong>da</strong>des familiares básicas porventura não muito extensas 5 . O carácer<br />

eminentemente habitacional do edificado parece a hipótese de interpretação mais<br />

pláusivel, apenas se tendo detectado um caso com vestígios materiais expressivos de<br />

activi<strong>da</strong>de siderúrgica.<br />

Planta simplifica<strong>da</strong> <strong>da</strong>s estruturas <strong>islâmica</strong>s do “bairro” <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong><br />

(estruturas identifica<strong>da</strong>s a negro e supostas a cinza).<br />

A planta <strong>da</strong>s artérias circulação, conforma<strong>da</strong> pelos quarteirões, mostrava alguma<br />

4 Conf. R.B.Silva, R. e M. Varela Gomes, op.cit.<br />

5 Idem.


egulari<strong>da</strong>de, e poderá resultar <strong>da</strong> existência de um parcelamento rural prévio,<br />

aproveitado (no seu todo ou em parte) no desenho urbanístico, encontrando eco nas<br />

descrições <strong>da</strong>s zonas arrabaldinas existentes à <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> conquista cristã de 1147 6 .<br />

Interessa aqui enfatizar, noutro sentido, que o conjunto urbano não possui<br />

quaisquer antecendentes similares arqueologicamente documentados no local. Como<br />

também, que alguns dos quarteirões partilhavam o mesmo muro de limite, que a<br />

evidência arqueológica mostrava de forma categórica ter sido contruído num primeiro<br />

momento, ao qual as paredes de compartimentação interna iriam ser adossa<strong>da</strong>s<br />

ulteriormente, significando assim uma primeira erecção de recintos só depois<br />

subdivididos.<br />

Ambas as observações autorizam a sua leitura como equivalente a uma<br />

instalação sincrónica, ou próximo disso, ocorri<strong>da</strong> num momento que se pode situar,<br />

em função <strong>da</strong> observação <strong>da</strong>s cerâmicas recolhi<strong>da</strong>s naqueles contextos, algures<br />

durante a primeira metade do séc. XII, mais provavelmente durante o período de<br />

domínio Almorávi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de (1111-1147), e que ilustram bem a vitali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

Lisboa de então.<br />

5. Um apontamento breve sobre o abandono do “bairro”islâmico <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Figueira</strong>.<br />

O panorama geral do conjunto do edificado aponta, como leitura mais provável,<br />

para um generalizado abandono a partir dos meados, e que se prolongaria ao longo <strong>da</strong><br />

segun<strong>da</strong> metade do séc.XII.<br />

Algumas habitações e troços de arruamentos apresentavam-se cercea<strong>da</strong>s por<br />

fossas detríticas, por vezes de grande dimensão e profundi<strong>da</strong>de, contendo materiais<br />

cerâmicos cujo facies pouco se distingue do detectado durante a <strong>ocupação</strong> <strong>islâmica</strong>:<br />

parece suficientemente evocativo que <strong>da</strong>s talhas estampilha<strong>da</strong>s com motivos<br />

epigráficos, tão bem documenta<strong>da</strong>s para o período Almóa<strong>da</strong> noutras latitudes, apenas<br />

um fragmento tenha sido recolhido; ou que, <strong>da</strong>s grandes taças carena<strong>da</strong>s de vidrado<br />

melado ou verde, decora<strong>da</strong>s no fundo com motivos estampilhados, que se julgam<br />

associa<strong>da</strong>s à mesma periodização, apenas se tenham identificado quatro fragmentos<br />

até ao momento, qualquer deles associado às estruturas negativas aludi<strong>da</strong>s; outros<br />

elementos <strong>da</strong>tantes enquadram-se no mesmo âmbito, e os raros numismas em pouco<br />

auxiliam para precisar a questão <strong>da</strong>s cronologias dos abandonos.<br />

6 Idem, p.25.


Parece, contudo, que algumas <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des encerraram mais alguma<br />

longevi<strong>da</strong>de, que nos surge documenta<strong>da</strong> por reformulações dos espaços internos <strong>da</strong>s<br />

habitações ou reparações em muros meeiros. Ain<strong>da</strong> assim, um conjunto de potentes<br />

depósitos argilo-arenosos, altamente lexivados, irá depositar-se sobre os níveis<br />

estratigráficos dos abandonos em to<strong>da</strong> a área, incluindo as fossas detríticas<br />

menciona<strong>da</strong>s, os muito revolvidos e incompletos colapsos de telha e o remanescente<br />

de muros, o que mais uma vez colocam de manifesto a sujeição do lugar <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Figueira</strong> a fenómenos de colmatação do Vale <strong>da</strong> Baixa.<br />

Será sobre estas reali<strong>da</strong>des que os recém chegados dominicanos se irão instalar,<br />

nos meados do séc.XIII, constituindo as «Hortas de São Domingos»: uma homogénea<br />

uni<strong>da</strong>de estratigráfica de calco-arenitos transportados <strong>da</strong>s imediações, que chega a<br />

atingir 0,60 m, irá recobrir to<strong>da</strong> a área escava<strong>da</strong> à excepção <strong>da</strong> zona <strong>da</strong> «Corredoura»<br />

medieva, e representa um enorme investimento no isolamento hídrico dos terrenos,<br />

certamente promovido pela Ordem Mendicante aquando <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção conventual; os<br />

<strong>da</strong>dos arqueológicos deste contexto, onde pontuam produções cerâmicas de “barro<br />

vermelho” que mostram modelos já “cristãos” a par de produções oleiras de tradição<br />

<strong>islâmica</strong> (cerâmica pinta<strong>da</strong> a branco), conjuntamente com pichéis vidrados<br />

importados, denominados como «Cerâmica de Paris», concor<strong>da</strong>m com uma <strong>da</strong>tação<br />

de finais do séc.XIII-inícios do XIV para este evento significativo, que ocultou to<strong>da</strong>s<br />

as reali<strong>da</strong>des que lhe eram anteriores.<br />

6. Considerações finais.<br />

Os resultados de uma prática arqueológica continua<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de, inicia<strong>da</strong> de<br />

facto em 1989, vem revelando um acervo de vital importância para a leitura do sítio<br />

de Lisboa, lançando em particular uma luz sobre períodos mal documentados de outra<br />

forma, como ocorre para a Época de Dominação Islâmica. Múltiplos trabalhos, com<br />

saliência natural para os que a Câmara Municipal custeia na área do Castelo de São<br />

Jorge desde 1996 7 , <strong>da</strong><strong>da</strong> a importância dos resultados e o elevado investimento feito,<br />

mas também para os conhecimentos adquiridos a propósito <strong>da</strong>s competências<br />

artesanais oleiras olisiponenses, demonstrado a propósito de dois locais distintos na<br />

Rua Augusta 8 , são alguns dos elementos que traçam hoje uma imagem ain<strong>da</strong> difusa,<br />

7<br />

Susana Serra, Alexandra Gaspar e Ana Gomes, Núcleo Museológico do Castelo de São Jorge, Lisboa,<br />

Egeac, 2008.<br />

8<br />

Jacinta Bugalhão e Deolin<strong>da</strong> Folgado, “O arrabalde ocidental <strong>da</strong> Lisboa Islâmica: urbanismo e<br />

produção oleira”, in Arqueologia Medieval, n.º7, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 2001,


mas claramente mais próxima do que seriam as reali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Al-Ushbuna aquando do<br />

cerco de 1147.<br />

No plano geral, os elementos urbanísticos gerais eram-nos já conhecidos,<br />

julgando-se ter a Alcáçova e Medina ficado cristaliza<strong>da</strong>s nos recintos defensivos<br />

medievais posteriores, sendo a este propósito necessário demonstrar, de forma<br />

arqueológica mais concludente, a efectiva coincidência entre as construções<br />

muralha<strong>da</strong>s dos dois períodos.<br />

O acumular de <strong>da</strong>dos de escavações, independentemente <strong>da</strong> sua extensão e<br />

significado, tem revelado um conjunto, na sua maioria muito fragmentário mas<br />

alargado no espaço, de materiali<strong>da</strong>des que vêm sendo remeti<strong>da</strong>s para os últimos 100<br />

anos de dominação <strong>islâmica</strong>. A ci<strong>da</strong>de parece, portanto, ser particularmente rica em<br />

vestígios destes momentos, por contraste com as evidências relativas às etapas inciais<br />

<strong>da</strong> islamização de Lisboa, que teimam em escapar ao olhar dos arqueólogos, ou<br />

mesmo ao período de taifas e califal, este tão discretamente documentado por uns<br />

poucos objectos, como os recipientes decorados a verde e negro expostos no Núcleo<br />

Museológico do Castelo de São Jorge, certamente importações do sul do Al-An<strong>da</strong>luz 9 .<br />

Não pode deixar de se colocar em questão, contudo, se esta fraca visibili<strong>da</strong>de não será<br />

mais aparente que real.<br />

Tal como hoje se perspectiva, a primeira metade do século XII assume-se como<br />

um período de marca<strong>da</strong> expansão urbana: numa aproximação à matéria, em 1994<br />

Cláudio Torres supunha já uma eleva<strong>da</strong> dimensão para o arrabalde ocidental, que se<br />

extendia <strong>da</strong> Porta Férrea e pelo Vale <strong>da</strong> Baixa 10 , perspectiva que aliás se pecou foi por<br />

ser timorata, como os resultados obtidos na <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong> vieram demonstrar. A<br />

expansão deste arrabalde ter-se-á iniciado, segundo alguns autores, no séc.IX 11 , mas<br />

os <strong>da</strong>dos arqueológicos advogam uma maior dimensão do fenómeno no séc. XII,<br />

momento em que os escritores árabes e cristãos mencionam uma populosa e<br />

economicamente florescente urbe 12 .<br />

Em termos genéricos, a área suburbana extramuros de 1147 quase que duplica a<br />

<strong>da</strong> Medina e Alcáçova em conjunto, o que parece sintomático não só <strong>da</strong> importância<br />

adquiri<strong>da</strong> pela ci<strong>da</strong>de, a maior do ocidente do Al-An<strong>da</strong>luz, como traduz um<br />

p.115-145.<br />

9 Susana Serra, Alexandra Gaspar e Ana Gomes, op.cit.<br />

10 Vide planta em Cláudio Torres, “Lisboa muçulmana: Um espaço urbano e o seu território”, in Lisboa<br />

Subterrânea, Lisboa, Electa/<strong>Museu</strong> Nacional de Arqueologia/Lisboa´94, 1994, p. 81.<br />

11 Jacinta Bugalhão e Deolin<strong>da</strong> Folgado, op.cit., p.125.


crescimento demográfico sem precedentes.<br />

As evidências arqueológicas colecta<strong>da</strong>s no “bairro” <strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong><br />

autorizam uma aliciante leitura para as razões que permitiram este fenómeno de<br />

expansão tão acentua<strong>da</strong> <strong>da</strong> área edifica<strong>da</strong>: o movimento <strong>da</strong> conquista critã terá sido<br />

acompanhado, de norte para sul, e <strong>da</strong> área rural para a urbana, por movimentações de<br />

contingentes populacionais muçulmanos 13 .<br />

Assim se justificará a formação, num tão curto espaço de tempo, de um denso<br />

urbanismo como o patenteado numa zona sem precedente desse tipo como era a área<br />

<strong>da</strong> <strong>Praça</strong> <strong>da</strong> <strong>Figueira</strong>. Porventura o desenvolvimento dos trabalhos arqueológicos<br />

noutras ci<strong>da</strong>des do sul permitirá aferir de fenómenos semelhantes, conferindo maior<br />

solidez a esta interpretação dos <strong>da</strong>dos arqueológicos, bastante pláusivel para Lisboa.<br />

Bibliografia.<br />

Bugalhão, Jacinta e Folgado, Deolin<strong>da</strong>- “O arrabalde ocidental <strong>da</strong> Lisboa Islâmica:<br />

urbanismo e produção oleira”, In Arqueologia Medieval, n.º7, Mértola, Campo<br />

Arqueológico de Mértola, 2001, p.115-145.<br />

Serra, Susana; Gaspar, Alexandra e Gomes, Ana- Núcleo Museológico do Castelo de<br />

São Jorge, Lisboa, Egeac, 2008.<br />

Silva, Rodrigo Banha <strong>da</strong>- “As sepultras <strong>da</strong> Calça<strong>da</strong> do Garcia e o Urbanismo de<br />

Olisipo”, in Actas <strong>da</strong>s II Encontro Nacional de Arqueologia Urbana (Alma<strong>da</strong>, 1997),<br />

Alma<strong>da</strong>, C.M.Alma<strong>da</strong>/Divisão de <strong>Museu</strong>s, 2002, pp. 193-205.<br />

Silva, Rodrigo Banha <strong>da</strong>- “Olisipo”, in Actas de La Reunón La Gestión de los<br />

resíduos en la Hispania Romana, col. Anejos de Archivo Español de Arqueología,<br />

vol. XL, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2011, p.203-212.<br />

Torres, Cláudio- “Lisboa muçulmana: Um espaço urbano e o seu território”, in Lisboa<br />

Subterrânea, Lisboa, Electa/<strong>Museu</strong> Nacional de Arqueologia/Lisboa´94, 1994, p. 80-<br />

85.<br />

12 R.Banha <strong>da</strong> Silva, R. e M.Varela Gomes, op.cit., p.25.<br />

13 Idem.

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