20.04.2013 Views

GATELLI, Vanessa Hack. GÊNEROS NÃO-FICCIONAIS ... - WWLivros

GATELLI, Vanessa Hack. GÊNEROS NÃO-FICCIONAIS ... - WWLivros

GATELLI, Vanessa Hack. GÊNEROS NÃO-FICCIONAIS ... - WWLivros

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>GÊNEROS</strong> <strong>NÃO</strong>-<strong>FICCIONAIS</strong> COMO FICÇÃO: UMA<br />

ANÁLISE DE A SEVENTH MAN E UM PASSAPORTE<br />

HÚNGARO<br />

Autora: <strong>Vanessa</strong> <strong>Hack</strong> Gatteli *<br />

Professor Responsável: Dra. Rita Lenira Bittencourt<br />

RESUMO<br />

Este trabalho pretende discutir, sob uma perspectiva comparatista, o livro A Seventh Man, de John Berger e<br />

Jean Mohr e o filme Um Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. O primeiro traz o subtítulo explicativo “A<br />

book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe”. Já o segundo é um<br />

documentário sobre o desenrolar burocrático de um pedido de nacionalidade húngara. As duas obras<br />

discutem, de maneiras diferentes, a insignificância do individuo diante do Estado e do Capitalismo.<br />

Analisarei as obras sob o ponto de vista metaficcional, pois mesmo não sendo ficcionais, elas exploram a<br />

ficcionalidade do mundo para além do texto ficcional. Além disso, em A Seventh Man, John Berger, ao lado<br />

das fotografias de Jean Mohr, usa diferentes gêneros textuais, inclusive poesia ao lado das imagens.<br />

Analisaremos a relação entre texto e imagem das obras bilateralmente, sem a intenção de estipular uma<br />

hierarquia.<br />

PALAVRAS-CHAVE: documentário, ficção, fotografia.<br />

ABSTRACT<br />

This article intends to discuss, under a comparative perspective, the book A Seventh Man, by John Berger and<br />

Jean Mohr and the film Um Passaporte Húngaro, by Sandra Kogut. The book has the self-explanatory<br />

subtitle “A book of images and words about the experience of Migrant Workers in Europe.” The film is a<br />

documentary about the bureaucratic process of a Hungarian nationality request. Both works discuss, in<br />

different ways, the insignificance of people against state and capitalism. We are going to analyze the works<br />

under a metafictional point of view because, in spite of not being fictional, they explore the fictionality of the<br />

world outside the literary fictional text. John Berger uses different kind of texts (including poetry) along Jean<br />

Mohr’s pictures. We are going to analyze the relation between text and image bilaterally, without hierarchy.<br />

KEYWORDS: documentary, fiction, photography.<br />

* Estudante de Letras – Português e Inglês. UFRGS – Bolsista BIC da Pesquisa "Poéticas<br />

do Presente: Espaço e imagem" - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

vanessagatteli@gmail.com


1 Considerações iniciais<br />

Tratando-se de uma jornada de estudos literários, subentende-se que o corpus a ser<br />

analisado no artigo seja de natureza literária. Pelo fato de ter escolhido um corpus não<br />

ficcional, algumas considerações tornam-se necessárias.<br />

Uma obra do autor John Berger fazia parte das discussões do grupo de pesquisa<br />

Poéticas do Presente: Espaço e Imagem. Após ler o livro O livro da metaficção de Gustavo<br />

Bernardo, no qual o autor analisa literariamente o documentário Jogo de Cena de Eduardo<br />

Coutinho, optei fazer uma análise semelhante, usando como corpus outro livro não<br />

ficcional de John Berger: A Seventh Man.<br />

Para tanto, optei por usar o mesmo embasamento teórico de Gustavo Bernardo,<br />

Waugh (1984, p.2) no qual ela afirma:<br />

In providing a critique of their own methods of construction, such writings not<br />

only examine the fundamental structures of the narrative fiction, they also<br />

examine the fundamental structures of narrative fiction, they also explore the<br />

possible fictionality of the world outside the literary fictional text.<br />

Decidi também trazer para a discussão o filme Um passaporte húngaro porque<br />

acredito que ele seja uma espécie de “continuação” do livro. O livro trata do problema da<br />

migração sem volta de trabalhadores e o filme gira em torno da busca da reconquista da<br />

identidade perdida na migração.<br />

Centrei então a leitura no problema da perda da identidade do sujeito. Dada a<br />

complexidade desse assunto e a brevidade do presente trabalho, optei por usar como<br />

embasamento teórico o livro A identidade cultural na pós-modernidade (Hall, 2006).<br />

Hall (2006) divide a identidade do sujeito em três concepções diferentes: sujeito do<br />

Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-modernos. O sujeito do Iluminismo, como o<br />

próprio nome diz, é centrado, racional e individualista. O sujeito sociológico refletia o<br />

complexo mundo moderno e é concebido na interação com a sociedade. O sujeito pósmoderno<br />

seria mais heterogêneo, não tendo uma identidade fixa.<br />

O próprio autor (Hall, 2006) argumenta que essas concepções são um tanto<br />

simplistas, mas ainda assim ajudam a realizar uma leitura das obras em questão.


Para uma leitura mais apropriada das imagens optei pelo embasamento teórico de<br />

Barthes (1969) e Barthes (1984). Em Barthes (1969) temos alguns processos de conotação<br />

que auxiliam na nomenclatura da leitura das imagens: truncagem, pose, objetos, fotogenia,<br />

estetismo e sintaxe. Da mesma forma, o conceito de punctum em Barthes (1984 p. 46) será<br />

trazido na leitura de algumas imagens: “vem quebrar (ou escandir) o studium. (...) é ele que<br />

parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar.”.<br />

Logo, precisamos trazer o conceito de studium:<br />

(...) é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante<br />

familiaridade em função de meu saber, de minha cultura; esse campo pode ser<br />

mais ou menos estilizado, mais ou menos bem-sucedido, segundo a arte ou a<br />

oportunidade do fotógrafo (...) (BARTHES, 1984, p. 44 – 45)<br />

A partir desses suportes teóricos, o artigo divide-se, a seguir, em considerações<br />

sobre as obras e encerra com um estudo das convergências e algumas considerações finais,<br />

ainda em processo inconcluso.<br />

2 Das obras<br />

2.1 A Seventh Man<br />

A Seventh Man, de John Berger 1 e Jean Mohr 2 é um trabalho que inicialmente<br />

pretendia mostrar como os países ricos da Europa necessitavam do trabalho das nações<br />

pobres do mesmo continente. A intenção inicial era rodar um filme. No entanto, por falta<br />

de recursos, os autores optaram por escrever um livro de imagens e palavras. Não consta<br />

nenhuma classificação pela editora quanto ao gênero do livro. Devido a suas<br />

características, ainda que heterogêneas, tomei a liberdade de classificar o livro como<br />

documentário. O livro é divido em três partes: Departure, Work e Return.<br />

Como o próprio subtítulo do livro diz, se trata de “um livro de imagens e palavras<br />

sobre a experiência de trabalhadores migrantes na Europa”. O texto não serve para explicar<br />

as imagens e as imagens não servem para ilustrar o texto, cada um deve ser lido<br />

1 John Berger nasceu em Londres em 1926. Ele é autor de romances e de poesia, mas é mais conhecido por<br />

seus trabalhos como ensaísta. Ficou mundialmente conhecido em 1972 pela série televisiva Ways of Seeing,<br />

que mais tarde virou um livro homônimo.<br />

2<br />

Jean Mohr nasceu em Genebra em 1925. É fotógrafo desde 1949 e um de seus principais trabalhos envolve<br />

a fotografia de refugiados palestinos durante cinquenta anos.<br />

2


individualmente (salvo raras exceções), ainda que ambos que se complementem para<br />

constituir uma narrativa. É importante ressaltar que os autores, propositalmente, não<br />

colocam a legenda das imagens junto às mesmas, na maioria dos casos. Há legenda apenas<br />

quando estritamente necessário. Os próprios autores (BERGER; MOHR, 2010, p.11)<br />

afirma: “both should be read in their own terms”.<br />

O texto é bastante fragmentado, não há subdivisões definidas dentro dos capítulos.<br />

É comum o texto trazer dados estatísticos em um parágrafo e no parágrafo seguinte mudar<br />

para uma reflexão filosófica e até para poesia.<br />

Percebemos ao longo de todo o livro que a jornada dos trabalhadores constitui em<br />

uma perda da identidade dos mesmos.<br />

No primeiro capítulo do livro, Departure, podemos observar aquilo que Hall (2006,<br />

p.11) chama de “sujeito sociológico”:<br />

este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era<br />

formado na relação com “outras pessoas importantes para ele” que mediavam<br />

para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que<br />

ele/ela habitava.<br />

No primeiro capítulo temos a imagem de um mercado a céu aberto na Iugoslávia:<br />

Figura 1 - Mercado a céu aberto em uma vila, na Iugoslávia (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 28)<br />

Observamos claramente nessa foto que há semelhança entre os indivíduos: roupas<br />

semelhantes, cestas e sacolas, mercadorias. A sintaxe dessa imagem é harmônica, eu não<br />

ressaltaria nenhum punctum. Além disso, há uma clara interação esses indivíduos,<br />

conversam na mesma língua: eles se identificam como semelhantes.


Da mesma maneira, o texto descreve o dia-a-dia de um futuro emigrante, ainda<br />

inserido em seu meio:<br />

The father is in the forest felling and cutting. After midnight, having loaded the<br />

wood on to a mule, he will leave on his seven-hour journey to the nearest market<br />

village where, with a hundred or so other peasants from the high plateau, he will<br />

hope to sell the wood. (For stakes, fences, buildings: not for burning.) The night<br />

will be frosty but there is a moon. Occasionally a hoof will strike a spark from<br />

the road. He will return the following night, having hopefully sold the wood.<br />

(BERGER; MOHR, 2010, p. 24)<br />

Os dois textos (tanto a imagem como o texto escrito) opõe-se a uma foto que está<br />

no segundo capítulo, na qual os trabalhadores estão na fila do refeitório de uma fábrica:<br />

percebe-se que há várias nacionalidades ali. Ainda que seja circunstancial, essa foto é uma<br />

metáfora do que acontece com os trabalhadores quando migram – tornam-se parte de uma<br />

linha de produção, sua força de trabalho vira mercadoria.<br />

Figura 2 - Refeitório de uma fábrica em Frankfurt, na Alemanha. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p.102)<br />

Da mesma maneira, o seguinte fragmento explicita como não há interação, a cultura<br />

torna-se uma barreira:<br />

Look for lodgings. His cousin and the seven others have told him, where to try.<br />

The first door opens and immediately frames an unknown person. He asks in five


words learnt by heart. He imagined the reply to his question would be an action,<br />

an opening of a room door, the handing over some money. Instead the the<br />

unknown person stares at him with an unknowable expression (…) (BERGER;<br />

MOHR, 2010, p. 94)<br />

No mesmo sentido de desumanização e perda da identidade, os autores trazem a<br />

imagem de um estudo em “Engenharia Humana”:<br />

Figura 3 - Engenharia humana (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 109).<br />

Já no terceiro capítulo, Return, o autor fala explicitamente da perda de identidade<br />

por parte dos trabalhadores: “Only if he becomes a trouble-maker does he earn an identity;<br />

and then he will be recognized in order to be kept out.” (BERGER; MOHR, 2010, p. 212)<br />

Esse último capítulo, ao invés de ser um reencontro da identidade, na verdade se<br />

torna algo apenas a lamentar. O retorno é o fim da ilusão da migração. O autor passa de<br />

dados estatísticos para a poesia:<br />

In Portugual the average income is $350 a year. The population is eight<br />

and a half million, and there are estimated to be 1.6 million Portuguese working<br />

abroad.<br />

According to his calculations, his annual return is preparation for his<br />

final return. (…)<br />

To be one’s own master in the economic as well as the social sense.<br />

To receive all the money which the finished job brings in.


To have a shop. (BERGER; MOHR, 2010, p.218)<br />

Pelo fato de o livro ter sido primeiramente publicado em 1975, os dados são<br />

bastante obsoletos. Apesar disso o livro continua a ter uma significância. O trecho acima<br />

mostra todas as ilusões de uma vida melhor que levam um trabalhador a largar sua família<br />

e seu local de origem. No entanto, ao retornar, acabam por encontrar apenas desilusão:<br />

Because the village has scarcely changed since he left, there is still no livelihood<br />

for him. When he carries out one of his plans, he will become the victim of the<br />

same stagnation which first forced him to leave. (…) Two or three years after his<br />

final return he or other members of his family will be compelled to go abroad<br />

once more. (BERGER; MOHR, 2010, p. 221-223)<br />

Como podemos ver, a migração de trabalhadores vira um círculo vicioso, algo<br />

permanente, assim como a perda da identidade dos mesmos.<br />

O livro A Seventh Man estaria situado em um local de transição entre o sujeito<br />

sociológico e o sujeito pós-moderno definidos por Hall (2006). Enquanto eles interagem<br />

com o mundo que habitam originalmente, podemos chamá-los de sujeitos sociológicos. A<br />

partir do mundo que vão para outro país para trabalhar e interagem com diversas culturas<br />

(tanto a nativa quanto a de outros imigrantes) podemos chamá-los de sujeitos pósmodernos:<br />

heterogêneo, fragmentado, constituído de várias outras identidades.<br />

2.2 Um passaporte húngaro<br />

O filme se trata do desenrolar burocrático do pedido de nacionalidade húngara da<br />

própria diretora do filme, Sandra Kogut 3 . O filme lida também com o mesmo problema do<br />

livro, a migração. Aparentemente, as razões são diferentes. No livro comentado<br />

anteriormente, os trabalhadores deixam seus locais de origem por um período específico e<br />

por opção própria. No filme, a migração ocorre devido aos rumores iniciais da Segunda<br />

Guerra Mundial.<br />

No entanto, como observado nos comentários sobre o livro acima, os trabalhadores<br />

migram, retornam e acabam tendo que migrar novamente por causa da falta de trabalho,<br />

eles migram para sobreviver e aquilo que era para ser provisório acaba por ser definitivo.<br />

No filme, um jovem casal judeu migra da Hungria para o Brasil devido aos rumores<br />

3 Sandra Kogut nasceu no Rio de Janeiro em 1965. Entre vários trabalhos, destaca-se Mutum, longametragem<br />

adaptado da obra Campo Geral de João Guimarães Rosa.<br />

3


iniciais da Segunda Guerra Mundial e da perseguição de Hitler aos judeus. Para poder<br />

permanecer legalmente no Brasil eles precisam abdicar de sua nacionalidade Húngara.<br />

No filme também fica clara a perda da identidade pela qual passam esses<br />

imigrantes. Ao tentar resgatar sua nacionalidade húngara, a diretora não só passa por<br />

trâmites burocráticos. Ela vai muito além, ela busca informações que a levem a resgatar<br />

sua própria identidade.<br />

Ao buscar maiores informações sobre a mudança de nome de seu avô ela logo é<br />

informada que ela não terá acesso a essa informação específica, visto que aquele arquivo<br />

não tem informações tão antigas. Mesmo assim a diretora continua a conversar com aquele<br />

funcionário e tenta obter o máximo de informações sobre a mudança do nome avô dela. Ela<br />

descobre que por ser judeu seu avô havia mudado o nome para não ser perseguido. Ela<br />

também descobre que o nome de seu avô “Lajta” significa o nome de um rio que marcava<br />

a antiga fronteira entre a Hungria e a Áustria.<br />

A diretora do filme mostra-se como uma possível representante do sujeito pósmoderno<br />

Hall (2006): heterogêneo, constituído de várias outras identidades. E ela tenta de<br />

todas as formas recuperar a identidade do sujeito sociológico Hall (2006). A avó da<br />

diretora era austríaca e se tornou húngara ao casar. Sandra tem nacionalidade brasileira,<br />

vive na França e se comunica em inglês com parentes húngaros para tentar entender uma<br />

das culturas a qual pertence, ela é constituída de várias culturas e identidades diferentes.<br />

Pela dimensão e temática desse artigo, as considerações elaboradas a respeito do<br />

filme mantiveram-se restritas ao enredo, forçando uma separação da estrutura imagética<br />

que não se sustenta muito, e que permanece ainda por explorar.<br />

3 Pontos de convergência entre as obras<br />

O filme Um passaporte húngaro, de Sandra Kogut, faz o caminho inverso do livro<br />

de Berger/Mohr. Enquanto em A Seventh Man os trabalhadores perdem sua identidade ao<br />

deixar sua família e seu local de origem, em Um passaporte húngaro a diretora busca<br />

resgatar a identidade perdida por seus antepassados.<br />

No entanto, a redução do sujeito a simples códigos, letras é ressaltada nas duas<br />

obras.


Em A Seventh Man, em um degradante exame eliminatório admissional, os<br />

candidatos a empregados de uma fábrica alemã são examinados minuciosamente por um<br />

médico. São obrigados a ficar seminus diante de desconhecidos. Eles são identificados<br />

apenas por um número.<br />

Figura 4 - Exame médico de candidatos turcos para trabalhar na Alemanha. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010,<br />

p. 54).


Figura 5 - Cada homem examinado tinha tem seu número marcado no peito e no pulso. (Fonte: BERGER;<br />

MOHR, 2010, p. 55)<br />

O punctum dessa fotografia é claramente o número sobre o peito, mas precisamos<br />

levar em consideração o peculiar enquadramento do fotógrafo, ele escolheu uma pose de<br />

modo que cortou parcialmente o rosto do homem, focando no número.<br />

Em Um passaporte húngaro os passaportes dos avós da diretora receberam um<br />

grande carimbo (na capa) com a letra “K”, a inicial da palavra húngara “kivándorlás” que<br />

em uma tradução livre significa “emigração”. Na prática, esse carimbo significa que o<br />

portador desse passaporte não pode mais voltar para a Hungria.<br />

O capital e o Estado, respectivamente representados por médicos e funcionários<br />

aduaneiros, ignoram completamente o sujeito existente por trás das letras e dos números.<br />

Em outra cena do filme, na qual a diretora busca informações com parentes (mais<br />

uma vez, não é nada burocrático, apenas o resgate das origens) um senhor já idoso mostra<br />

um papel e diz “this paper is my life”. Ele precisou se livrar de seu passaporte e se livrou<br />

de entrar em um trem com destino a um campo de concentração porque inventou na hora<br />

um número, sob o pretexto de saber o número de cor.<br />

Em A Seventh Man, muitos emigrantes portugueses morriam em travessias de<br />

fronteiras ilegais. Para resolver a situação, eles passaram a tirar fotos assim que deixavam<br />

o país. A foto era então partida em duas, uma parte ficava com o “guia” e a outra parte era<br />

enviada pelo correio à família somente quando o trabalhador chegasse ao seu destino:


Figura 6 - Migrante português. (Fonte: BERGER; MOHR, 2010, p. 49).<br />

É interessante a sintaxe que os autores deram para a foto, reconstruindo a realidade<br />

daqueles trabalhadores, separando a foto em duas partes.<br />

Mais uma vez, a vida desses trabalhadores se reduzia a burocracias, fossem elas<br />

oficiais ou não.<br />

Outra questão sobre a qual as duas obras dialogam, é sobre o preconceito que<br />

sofrem por serem estrangeiras.<br />

Em A Seventh Man, para mostrar o quão complexas são essas relações, o autor dá<br />

voz aos trabalhadores nativos. Nota-se que as diferenças culturais e a falta de interação<br />

resultam em preconceito:<br />

They come here, what do they come for?<br />

To get as much money as they can and send it out of the country. They are not<br />

interested in anything. Just money. It’s always the same story. They take our<br />

money, they take our Jobs, they take our houses – if they could, if we let them,<br />

they would take over everything.<br />

Do you know they all eat out of the same plate? They are barbarians. (BERGER;<br />

MOHR, 2010, p. 118)


No filme, a avó da diretora relata ter sido chamada de cidadã de segunda ordem,<br />

mesmo após ter obtido a nacionalidade brasileira.<br />

Como já foi citado, Hall (2006) nos diz que para o sujeito sociológico, a identidade<br />

reside na relação com pessoas importantes para ele (sujeito). Como o estrangeiro está fora<br />

desse grupo de pessoas, gera-se preconceito e xenofobia.<br />

4 Considerações finais<br />

Por fim, podemos ler que a recuperação da identidade não é possível. Os motivos<br />

não são simples de explicar.<br />

Uma explicação poderia ser o fato de os fatos apresentados em A Seventh Man e<br />

Um passaporte húngaro serem relacionados com o “sujeito sociológico”. Ao ser uma<br />

brasileira que mora em Paris e tenta resgatar sua nacionalidade húngara, Sandra Kogut<br />

poderia ser relacionada com aquilo que Hall chama de “sujeito pós-moderno”.<br />

Outra leitura poderia ser o fato de que “identidade” é algo que não pode ser<br />

resgatado. Por mais que se esforce para se inserir na cultura húngara, Sandra Kogut parece<br />

ser menosprezada por sua falta de conhecimento. Em uma cena na qual a diretora interage<br />

com uma Húngara, esta pergunta para aquela se ela sabe quantos milhões de habitantes<br />

existem em Budapeste. Diante da negativa, a interlocutora de Sandra comenta<br />

ironicamente: “e você quer ser húngara...”.<br />

Em uma última análise, talvez a noção de identidade usada aqui tenha sido um tanto<br />

simplista, mas este é um trabalho que ainda pode ter a discussão levada adiante. A cena<br />

final do filme se passa em um trem com origem em Budapeste e destino a Paris, após a<br />

diretora finalmente conquistar seu passaporte húngaro. O funcionário do controle de<br />

passaportes pede o passaporte da diretora. Ao pedir para falar em inglês, o funcionário<br />

desconfia: “uma húngara que não fala húngaro?” e em seguida pede outro documento, que<br />

a diretora não possui. Apenas o passaporte com a nacionalidade húngara não foi suficiente<br />

para identificá-la como uma cidadã húngara, o Estado pediu mais.<br />

Toda a tensão do filme se passa na busca por esse passaporte, como se ele fosse o<br />

atestado da reconquista da identidade. Apesar de a vida dos imigrantes dependerem de<br />

simples papéis, o resgate da identidade depende de muitas outras coisas.


O funcionário então sai de cena por instantes e depois retorna. Ele devolve o<br />

passaporte sem nenhum comentário.<br />

Outra passagem do filme que corrobora a leitura de que é identidade é algo<br />

irrecuperável, é aquela em que a avó da diretora conta que seu falecido esposo jamais<br />

sentira-se realmente “em casa” no Brasil. Por outro lado, mesmo com o fim da guerra, ele<br />

sabia que jamais se sentiria “em casa” na Hungria novamente.<br />

Por fim, ela cita uma antiga música alemã que, nas palavras delas, dizia o seguinte:<br />

“- Aonde você vai? – para casa. – De onde você vem? – De casa.” Uma belo paradoxo que<br />

permeia essas duas obras que abordam o tema dos complexos problemas que envolvem a<br />

migração, abrindo um vasto campo de reflexão teórica sobre a política pós-nacional.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 6ª impressão. Rio de Janeiro: Nova<br />

Froneira, 1984. 185 p.<br />

BARTHES, R. A Mensagem Fotográfica. In: LIMA, L.C. Teoria da cultura de massa. Rio<br />

de Janeiro: Editora Saga S/A, 1969. p. 301 – 314.<br />

BERGER, J. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 166 p.<br />

BERGER, J.; MOHR, J. A Seventh Man: A book of images and words about the<br />

experience of Migrant Workers in Europe. London: Verso, 2010. 240 p.<br />

BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial,<br />

2010. 276 p.<br />

DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. 13ª Edição. Campinas, SP: Papirus, 2010.<br />

362 p. (Série Ofício de Arte e Forma)<br />

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A,<br />

2006. 102 p.<br />

KOGUT, Sandra. Um passaporte húngaro. [Filme-vídeo]. Direção de Sandra Kogut. Rio<br />

de Janeiro, Zeugma Films, República Pureza Filmes, Arte France, Hunnia Film Studio,<br />

Cobra Filmes, RTBF, CIVC Pierre Schaeffer, 2002. 71 min. Colorido.<br />

WAUGH, P. Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction. London and<br />

New York: Routledge, 1984. 176 p. (Série New Accents)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!