78 – J. <strong>Herculano</strong> <strong>Pires</strong> A lição individual se aplica no plano coletivo. Os cristãos medievais se apegaram àquilo que consideravam como a sua própria vida: os hábitos religiosos antigos, os formalismos que pareciam darlhes segurança. Os cristãos reformistas se apegaram aos textos. Mas, para encontrar a vida, era necessário ainda um último desapego, a libertação final, que devolveria ao Cristianismo a sua essência desfigurada pelas amoldagens humanas. O Cristianismo tinha também de ouvir a lição do Cristo: perder a sua vida formal e literal, para encontrála em espírito e verdade. Coube ao Consolador, como o próprio Cristo anunciara, a tarefa de produzir esse rompimento final. “Em verdade vos digo — anunciou o Espírito da Verdade — que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos.” Em O LIVRO DOS ESPÍRITOS, nas respostas dadas à pergunta 627, encontramos a mesma afirmação, com maiores esclarecimentos. Não só os textos sagrados do Cristianismo, mas todos os grandes textos sagrados e sistemas filosóficos, afirma o Espírito, “encerram os germens de grandes verdades”, que podem ser libertados, “graças à chave que o Espiritismo fornece”. Na introdução de O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, logo nas primeiras linhas, Kardec oferece um exemplo da maneira pela qual o Espiritismo “quebra a noz para tirar a amêndoa”, segundo uma sua expressão. O respeito aos textos não se refere à forma, mas ao conteúdo. O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o espírito que nelas se incorpora, e não a própria letra. Analisando os textos evangélicos, Kardec afirma: “A matéria contida nos Evangelhos pode ser dividida em cinco partes: os atos ordinários da vida do Cristo; os milagres; as profecias; as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja; e o ensino moral. As quatro primeiras serviram para controvérsias, mas a última subsiste inatacável”. Logo mais, esclarece: “Essa parte constitui o objeto exclusivo da presente obra”. A noz foi quebrada e a amêndoa retirada. O arcabouço literal foi rompido, para que o espírito se libertasse da letra. Os próprios adeptos do Espiritismo, em geral, não percebem a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um estudo minucioso dos textos, analisando vírgula por vírgula. Outros, achando que Kardec fez pouco, preferem embrenharse no cipoal de “Os Quatro Evangelhos”, de Roustaing, aceitando as mais esdrúxulas interpretações de passagens evangélicas. Tudo por quê? Simplesmente porque continuam “apegados a sua vida”, subjugados pela fascinação da letra, em vez de se entregarem ao espírito dos ensinos, que Kardec libertou, num trabalho inspirado e orientado pelas mais elevadas forças espirituais que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer. As escrituras são encaradas pelo Espiritismo como elaborações proféticas, ou seja, como produtos mediúnicos das chamadas épocas de revelação. Nessas épocas, que assinalaram os momentos decisivos, ou pelo menos importantes, da evolução humana, as figuras
79 – O ESPÍRITO E O TEMPO proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram aos homens alguns aspectos ocultos do processo da vida, ensinandolhes princípios de orientação espiritual. Todas as escrituras sagradas, por isso mesmo, “encerram os germens de grandes verdades”. Nos livros do Cristianismo, que incluem os livros fundamentais do Judaísmo, esses germens aparecem de maneira mais acessível a nós, por se dirigirem especialmente ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução cristã. É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apóia, para confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as energias criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para reelaborálas em novas expressões de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova, na expansão de suas mais profundas e poderosas energias, para libertar e renovar o mundo.