68 – J. <strong>Herculano</strong> <strong>Pires</strong> Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito contra a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação que não traz consigo esses arroubos? Passadas, porém, as emoções do início, o coração se acalma e a razão restabelece as suas leis. Por outro lado, a “loucura do mundo”, a que Carlyle se refere, pode ser historicamente identificada com a própria razão, pois vemola sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conservadores renitentes, nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens velhos, como as castas e os povos envelhecidos — ensina Ingenieros — vivem esclerosados em suas armaduras ideológicas e não podem compreender senão como loucura as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os interesses estabelecidos e transformam as ideias dominantes. A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideísta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvolvida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências, de geração a geração, de civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento que o relativismo crítico realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a razão é o sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiência sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma as exigências vitais da natureza, em toda parte, assim também a razão, violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, fundamento e essência do homem, que asfixiada durante um milênio no caldeirão medieval, explodiu com o fragor de uma detonação atômica, no período da Revolução Francesa. Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não foi um caso isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos dessa espécie. Já Tivemos ocasião de lembrar o antecedente pitagórico da luta medieval entre a razão e a fé. Jérome Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e o cristianismo primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. No período medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvimento dessa luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a sua continuidade no mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como essa luta sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a ideia de uma religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento. Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuemos que Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da Verdade. Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá. Logo a seguir, temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional de uma interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby, “do mais radical racionalismo escriturístico”. Dessas tentativas, surgem muitas derivações e paralelismos, que parecem desembocar na Convenção. Clootz propõe que o Deus
69 – O ESPÍRITO E O TEMPO Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará na mão o cetro de Júpiter Povo. Fracassada a tentativa revolucionária, e retomadas as igrejas, não tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação da Religião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita, que surge com Kardec, em meados do século dezenove, como a síntese definitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta, que em nome da última asfixiava a primeira.