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ontem e hoje - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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Est; deres e<br />

-<br />

O racismo,<br />

<strong>ontem</strong> e <strong>hoje</strong><br />

CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS. FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO


Actas <strong>do</strong> VI1 Colóquio Internacional<br />

Esta<strong>do</strong>s, Poderes e Identi<strong>da</strong>des na África Subsariana<br />

6-7 de Maio de 2004<br />

Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

Coordenação de António Custódio Gonçalves<br />

Centro de Estu<strong>do</strong>s Africanos<br />

Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>


Ficha Técizica<br />

ISBN: 972-99727-0-2<br />

Títiilo: O racismo <strong>ontem</strong> e <strong>hoje</strong>. Actas <strong>do</strong> VI1 Colóquio Internacional<br />

Esta<strong>do</strong>s, poderes e identi<strong>da</strong>des na África Subsariana<br />

Tipo de Encardeniação: B<br />

Airtoc Centro de Estu<strong>do</strong>s Africanos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

Caordei~acão: António Custódio Gonçalves<br />

Data: 30-ÓG-2005<br />

Editor: Centro de Estu<strong>do</strong>s Africanos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />

Mora<strong>da</strong>: Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, Via Panorâmica, SIN<br />

Locali<strong>da</strong>de: <strong>Porto</strong><br />

Código Postal: 4150-564<br />

Correio Electróiiico: ceaup@letras.up.pt<br />

Telefone: 22 607 7141<br />

Fax: 22 607 71 41<br />

Execução Gníjca: T. Nunes, L<strong>da</strong> - Maia<br />

Depósito Legal: 214265104


6 de Maio de 2004 - FLUP (Sala de reuniões -piso 2)<br />

10h30: Sessão Solene de Abertura<br />

Francisco Ribeiro <strong>da</strong> Silva - Vice Reitor <strong>da</strong> U.P.<br />

11h00: Conferência<br />

Adriano Moreira - Presidente <strong>do</strong> CNAVES<br />

"A persistência <strong>do</strong> racismo"<br />

15h00:<br />

Modera<strong>do</strong>r: Alberto Roca - Univ. Llei<strong>da</strong><br />

Amaro Monteiro - Univ. Independente de Lisboa<br />

"A seita de Mafamede: Guiné e Moçnmliiqtre, atitudes semelhantes"<br />

Arliin<strong>do</strong> Barbeitos - UBI/E.H.E.S.S.<br />

A "Raça" ou a ilusão de uma identi<strong>da</strong>de definitiva<br />

17h30:<br />

Modera<strong>do</strong>r: Maciel Santos - CEAUP<br />

Tosé Carlos Venâncio - CEAUP<br />

"A proble~iiiticn socinl lios ~iirstiyus 2111 Áfiic,~, n iirn co~iipnrn$~o LYJII~ n sir1,n~fio nsiciriin"<br />

Manuel Laranjeira Kodrigiies de ?\reis - Universi<strong>da</strong>de de Coinibrz.<br />

"Rncismo, neo-racismo e an~cronismos científico"<br />

Ute Luig - Univ. Libre de Berlim


7 de Mnio de 2004 - FLUP (Snln de retrniões - piso 2)<br />

10h00:<br />

Modera<strong>do</strong>r: José Soares Martins - CEAUP<br />

János Riesz - Universi<strong>da</strong>de de Bayreuth<br />

"lmnges ri'Afriqtre - imnges d'nfricnins. Comment pnrler de l'nltérité rncinle dnns les<br />

étztdes littérnires?"<br />

Albert Roca - Univ. Llei<strong>da</strong><br />

d~~zn, lelzgirn y culttrrn. Acttrnliznciones ntnlgnchesu<br />

A<strong>do</strong>lfo Yanez-Casal - Univ. Nova de Lisboa<br />


Prefácio<br />

ANT~NIO CUST~DIO GONCALVES<br />

No âmbito <strong>do</strong>s trabalhos desenvolvi<strong>do</strong>s pela linha de investigação "Esta<strong>do</strong>s,<br />

Poderes e Identi<strong>da</strong>des na África subsariana", integra<strong>da</strong> na Uni<strong>da</strong>de I & D, financia<strong>da</strong><br />

pela Fun<strong>da</strong>ção para a Ciência e a Tecnologia, publicam-se as Actas <strong>do</strong> VI1 Colóquio<br />

Internacional "O Racismo, <strong>ontem</strong> e <strong>hoje</strong>", realiza<strong>do</strong> na Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, nos dias 6-7 de Maio de 2004.<br />

Inicia<strong>do</strong>s em 1998, e promovi<strong>do</strong>s pela Facul<strong>da</strong>de de Letras e pelo Centro de<br />

Estu<strong>do</strong>s Africanos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, no âmbito <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de de I & D <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção para a Ciência e a Tecnologia, os Colóquios Internacionais sobre Esta<strong>do</strong>s,<br />

Poderes e Identi<strong>da</strong>des na África Subsariana tornaram-se um importante momento<br />

de reflexão científica e de diálogo multiculturai entre especialistas <strong>da</strong>s diversas ciências<br />

sociais e humanas. Realizaram-se já os seguintes Colóquios:<br />

I - "Identi<strong>da</strong>des, Poderes e Etnici<strong>da</strong>des na História <strong>da</strong> África Austral" - 1998<br />

I1 - "Identi<strong>da</strong>des, Poderes e Etnici<strong>da</strong>des na África subsariana: poderes,etnici<strong>da</strong>des<br />

e conflituali<strong>da</strong>de em Angola e na Guiné-Bissau" - 1999<br />

I11 - "Identi<strong>da</strong>des, Poderes e Etnici<strong>da</strong>des na África Subsariana: Esta<strong>do</strong>, língua e<br />

socie<strong>da</strong>de na África subsariana" - 2000<br />

IV - "Multiculturalismo, Poderes e Etnici<strong>da</strong>des na África Subsariana", integra<strong>do</strong><br />

nas Comemorações <strong>do</strong> <strong>Porto</strong> 2001, Capital Europeia <strong>da</strong> Cultura - 2001<br />

V - "Globalizaçâo e Contextos Locais na África Subsariana" - 2002<br />

VI - "O Izláo na África Subsariana" - 2003<br />

VI1 - "O Racismo, <strong>ontem</strong> e <strong>hoje</strong>" - 2004


Este VI1 Colóquio analisou novas problemáticas e interpretações sobre o Racismo<br />

na África Subsariana, nas suas múltiplas perspectivas e nos seus novos desafios. Para<br />

minimizar os efeitos culturalmente totalizantes <strong>da</strong> globalização nos <strong>do</strong>mínios <strong>da</strong>s<br />

culturas e socie<strong>da</strong>des africanas toma-se necessário analisar comparativamente os<br />

sistemas normativos <strong>do</strong>s valores africanos, numa interacção construcionista e<br />

complementar <strong>da</strong> tradição e <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s dinâmicas <strong>do</strong> multiculturalismo<br />

em África.<br />

O conhecimento <strong>da</strong> nossa cultura passa sempre pelo conhecimento de outras<br />

culturas. A experiência <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de elabora-se através <strong>do</strong> encontro de culturas<br />

diferentes <strong>da</strong> nossa e <strong>da</strong> consequente modificação <strong>da</strong> visão <strong>da</strong> nossa cultura e <strong>da</strong><br />

descoberta, necessariamente lenta, <strong>do</strong> facto natural e <strong>do</strong> fenómeno cultural. Assim,<br />

formas de vi<strong>da</strong> e de comportamento em socie<strong>da</strong>de, considera<strong>da</strong>s espontaneamente<br />

como naturais e inatas, são de facto resulta<strong>do</strong> de escolhas culturais. O maior fenómeno<br />

natural em to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong>des é justamente a sua aptidão à variação cultural, a sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de diferenciação, de elaboração de costumes, de instituições, de mo<strong>do</strong>s<br />

de conhecimento, de práticas e ritos simbólicos profun<strong>da</strong>mente diferentes.<br />

A descoberta <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de permite-nos rejeitar a ideia <strong>da</strong> pretensa superiori<strong>da</strong>de<br />

cultural, <strong>da</strong> identificação <strong>do</strong> sujeito a si próprio e <strong>da</strong>s culturas à nossa cultura; permitenos<br />

igualmente romper com algumas abor<strong>da</strong>gens que procedem sempre duma<br />

,,<br />

naturalização" <strong>do</strong> social, como se os nossos comportamentos estivessem inscritos<br />

emnós desde o nascimento e não adquiri<strong>do</strong>s no contacto <strong>da</strong> cultura em que se nasce,<br />

numa atitude reducionista <strong>da</strong> diferen~a, aliás, por vezes, de mo<strong>do</strong> igualitário e com<br />

as melhores intenções. Tentar pensar cientificamente e aceitar a diversi<strong>da</strong>de de<br />

culturas, contra tendências <strong>do</strong>minantes <strong>do</strong> expansionismo ocidental nas suas formas<br />

económicas e políticas, constitui tarefa permanente <strong>da</strong>s Ciências Sociais e Humanas.<br />

Novas perspectivas interdisciplinares implicam, assim, uma autêntica revolução<br />

epistemológica, que começa justamente por uma revolução <strong>do</strong> «olhar», não afasta<strong>do</strong>,<br />

como poderia sugerir o título <strong>da</strong> obra de Claude Lévi-Strauss (Le regard éloigné, Paris,<br />

Plon, 1983), mas próximo, na medi<strong>da</strong> em que permite a ruptura com a ideia <strong>do</strong> duplo,<br />

<strong>do</strong> idêntico e <strong>da</strong> exclusão <strong>do</strong> outro longínquo e irredutível a nós. Ainterpelação critica<br />

<strong>do</strong>s outros acompanha sempre a fun<strong>da</strong>mentação científica <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> crítica de<br />

nós próprios. Além disso, a cultura nas suas manifestações é sobre determina<strong>da</strong>, náo<br />

se apresentan<strong>do</strong> de maneira neutra ou unívoca. Por isso, neste Colóquio insistiu-se<br />

na análise <strong>da</strong> vertente transcultural, cujos conceitos possam ser utiliza<strong>do</strong>s na<br />

compreensão <strong>da</strong>s diferentes culturas e socie<strong>da</strong>des.


Estamos directamente confronta<strong>do</strong>s <strong>hoje</strong> com um movimento de homogeneização<br />

e de globalização sem precedentes na história, ou seja com o desenvolvimento de<br />

formas de cultura industrial e urbana e de formas de pensamento <strong>do</strong> racionalismo e<br />

<strong>do</strong> irracionalismo sociais. A questão que se nos coloca constantemente é a de saber<br />

como uma socie<strong>da</strong>de pode chegar ao estádio de desenvolvimento industrial, pós-<br />

industrial ou tecnológico sem choques dramáticos e sem riscos de despersonalização<br />

e de desestriituração e de racismos. Um <strong>do</strong>s objectivos deste Colóquio consistiu em<br />

reflectir sobre a compreensão <strong>do</strong>s actores sociais quanto ao desenvolvimento<br />

sustenta<strong>do</strong> associa<strong>do</strong> à construção <strong>da</strong>s mutações culturais impostas pelo desenvolvi-<br />

mento rápi<strong>do</strong> de to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong>des c<strong>ontem</strong>porâneas, pelo processo acelera<strong>do</strong> de<br />

urbanização, pelos movimentos de migrações internas e pelas mutações <strong>da</strong>s relações<br />

sociais.<br />

O racismo é uma <strong>do</strong>ença social <strong>da</strong> modemi<strong>da</strong>de, como refere Alain Touraine,<br />

não aceita facilmente a diferença e transforma-a em desigual<strong>da</strong>de. Três princípios<br />

fun<strong>da</strong>mentam o racismo: "nahiralização" dum grupo social, representação como<br />

inferior; <strong>do</strong>mínio duma herança cultural; apelo a medi<strong>da</strong>s de protecção de descri-<br />

minação ou segregação.<br />

Nas comunicações deste Colóquio cruzou-se a análise privilegia<strong>da</strong> de <strong>do</strong>is<br />

racismos, um que "naturaliza" o estrangeiro, o coloniza<strong>do</strong> como inferior, com a cons-<br />

ciência de ser por ele ameaça<strong>do</strong>; o outro, c<strong>ontem</strong>porâneo, que critica a pretensa<br />

superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cultura ocidental; um racismo <strong>da</strong> diferença, a rejeição <strong>da</strong>s outras<br />

culturas em nome <strong>da</strong> salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> pureza e especifici<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> cultura. Estes<br />

<strong>do</strong>is racismos estão associa<strong>do</strong>s a <strong>do</strong>is princípios de exclusão: a desigual<strong>da</strong>de biológica<br />

e a diferença cultural.


Inaugura


A PERSISTÊNCIA DO RACISMO<br />

ADRIANO MOREIRA<br />

A ordem mundial reorganiza<strong>da</strong> pela ONU, com frequentes cedências <strong>do</strong>s princí-<br />

pios à inevitabili<strong>da</strong>de de não poder discutir-se com os factos, tinha, entre os valores<br />

de referência, o de terminar com o colonialismo ocidental e, em comequência, com<br />

uma mitologia de discriminações raciais.<br />

Tratava-se de uma simplificação <strong>do</strong> problema, que delibera<strong>da</strong>mente ignorava,<br />

ou remetia para diferentes capítulos <strong>da</strong>s preocupações assumi<strong>da</strong>s pela organização,<br />

a estrutura social interna de numerosíssimos Esta<strong>do</strong>s, quer <strong>do</strong>s que dinamizaram a<br />

elaboração <strong>do</strong>s estatutos <strong>da</strong> ONU, quer <strong>do</strong>s que ali viriam a tomar assento, libertos<br />

de soberanias externas coloniza<strong>do</strong>ras.<br />

No primeiro caso estavam a URSS e os EUA, a primeira pela subordinação de<br />

vários grupos étnicos, algum com a natureza de nações, ao poder centraliza<strong>do</strong>r e<br />

imperial de Moscovo; os segun<strong>do</strong>s, em vésperas de verem despertar os movimentos<br />

de luta pela igual<strong>da</strong>de de índios, negros, porto-riquenhos, e hispânicos, que já neste<br />

século XXI tiveram a expressão mais significativa no facto de, pela primeira vez na<br />

história <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, o Sena<strong>do</strong> ter escuta<strong>do</strong> uma intervenção política em castelhano.<br />

Entre os Esta<strong>do</strong>s que nasceram para a vi<strong>da</strong> internacional na sequência <strong>da</strong><br />

descolonização destaca-se como exemplo a União Indiana com o sistema de castas<br />

que vai recuan<strong>do</strong> perante o avanço <strong>da</strong> democratização.<br />

Tão evidente era o desafio ao ideário <strong>da</strong> ONU, que não conseguiu encontrar<br />

para as minorias europeias um regime mais equitativo, mais protector <strong>do</strong> que o<br />

instala<strong>do</strong> pela desapareci<strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s Nações, que a UNESCO em 1950 incluiu,<br />

entre as seus primeiros grandes inquéritos, identificar os mitos raciais que afligem<br />

secularmente as socie<strong>da</strong>des civis e a paz entre os Esta<strong>do</strong>s, procuran<strong>do</strong> definir uma<br />

pe<strong>da</strong>gogia capaz de abrir caminhos para a eliiação <strong>do</strong> flagelo.<br />

Entre as inquietações que animaram essa histórica intervenção, avultaram como<br />

referências maiores quer o Holocausto <strong>do</strong>s judeus pelo nazismo durante a guerra de


1939-1945, quer a expressão mais condena<strong>da</strong> <strong>da</strong> intervenção coloniza<strong>do</strong>ra ocidental<br />

que era a África <strong>do</strong> Sul em regime de apartheid.<br />

A Declaração Universal de Direitos Humanos servia de referência normativa<br />

suprema, desenvolvi<strong>da</strong> nos chama<strong>do</strong>s Twiiz Covenants de 1966 - Pacto Internacionnl<br />

sobre os direitos cívicos e políticos, e Pncto Interiiacioi~nl sobre os direitos ecoí~ómicos, sociais<br />

e ctrlttlraiç.<br />

São muitos os inegáveis progressos consegui<strong>do</strong>s para implementar este modelo<br />

observante, mas é excessivo o desastre que ain<strong>da</strong> aKige a Humani<strong>da</strong>de em conse-<br />

quência de uma varie<strong>da</strong>de de interesses que viciosamente procuram legitimar-se pela<br />

renovação <strong>do</strong>s mitos raciais.<br />

Recor<strong>da</strong>mos que a listagem <strong>da</strong> UNESCO incluía o mito ju<strong>da</strong>ico, o mito ariano, o<br />

mito <strong>do</strong> negro, o mito <strong>do</strong> mestiço, e que em relação a qualquer deles não era<br />

infelizmente difícil identificar quebras <strong>da</strong> paz <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil ou entre Esta<strong>do</strong>s.<br />

Depois, genocídios numerosos, quer na Europa envolven<strong>do</strong> a Bósnia-Herzé-<br />

govina, a Croácia, o Kosovo, em suma a dissolução <strong>da</strong> Jugoslávia, quer na África<br />

devastan<strong>do</strong> populações no Burundi, no Rwan<strong>da</strong>, no Sudão, sen<strong>do</strong> esta uma breve<br />

invocação de apenas algumas componentes <strong>do</strong> desastre.<br />

É neste panorama alarmante, que violências que desafiam e excedem as capaci-<br />

<strong>da</strong>des disponíveis para assegurar uma paz razoável, dão origem à organização de<br />

institutos novos como o Direito de Ingerência a favor <strong>da</strong> protecção <strong>do</strong>s direitos<br />

humanos, com referência maior na intervenção no Golfo (1991), e sobreiu<strong>do</strong> no Kosovo<br />

quan<strong>do</strong> a NATO assumiu uma legitimi<strong>da</strong>de privativa, muito apoia<strong>da</strong> no conceito de<br />

Mitterrand: "a obrignçnõ de nio-ingerência termina no ponto exacto em que nasce o risco de<br />

nio-assistência".<br />

Os fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>da</strong> ONU, por vezes chama<strong>do</strong>s os poetas <strong>do</strong>s dividen<strong>do</strong>s <strong>da</strong> paz,<br />

deixaram formula<strong>do</strong> um modelo observante que recolhe uma tábua de valores<br />

inspira<strong>da</strong> nos conceitos <strong>da</strong> terra casa comiím <strong>do</strong>s homens, e <strong>da</strong> igual digni<strong>da</strong>de de to<strong>do</strong>s os<br />

homens, sem diferenças de etnia, cultura ou religião.<br />

O projecto descoloniza<strong>do</strong>r eliminava, no plano <strong>do</strong>s princípios, o conceito euro-<br />

mundista que definia o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> composto de povos ou atrasn<strong>do</strong>s<br />

ou selvagens, que se propunha mol<strong>da</strong>r como se fossem a cera mole à disposição <strong>da</strong>s<br />

intervenções ocidentais.<br />

Os factos, que parecem tão frequentemente obedecer a uma lógica profun<strong>da</strong> que<br />

escapa à lógica aparente <strong>da</strong>s pilotagens políticas, multiplicaram as recusas aos princí-


:.. , .... , .. , ... ,. ,... , . , ,. , ,....., .. ..... , . A PERSISTiNCIA DO RACISMO<br />

. . ... . .. . ... . .. . ... . .. . ... . .... . .. . .. . .... . . . ... . ... . . ... . ... . .. . ... . .. . ... .. . ... .. . .. . .. . .. . . ... . .. . .. . ... . ... . ... . . . .. . ... . ... ... .-<br />

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pios, e até fizeram emergir mitos raciais de sinal contrário aos que orientaram os<br />

pilotos <strong>da</strong> descolonização <strong>da</strong> ONU, <strong>do</strong>utrinan<strong>do</strong> uma superiori<strong>da</strong>de étnica, cultural<br />

e até religiosa que levou a ensombrar a perspectiva <strong>da</strong> polemologia <strong>do</strong> século XXI,<br />

com a previsão de Huntington, largamente objecto de avaliação, de que os conflitos<br />

deste milénio em que estamos serão sobretu<strong>do</strong> entre áreas culturais diferencia<strong>da</strong>s<br />

pela fé. O alarme causa<strong>do</strong> pela intervenção arma<strong>da</strong> de Bin Laden, que para muitos<br />

analistas fixou o 11 de Setembro de 2001 como um ponto de viragem <strong>da</strong> história, e<br />

que procurou causar o levantamento <strong>do</strong> cordão muçulmano, de Gibraltar à In<strong>do</strong>nésia,<br />

contra os ocidentais, deu alento àquela previsão.<br />

O Professor Samuel Huntington anunciou que a polemologia <strong>do</strong> século XXI seria<br />

marca<strong>da</strong> pelo conflito entre áreas culturais diferencia<strong>da</strong>s essencialmente pela<br />

diversi<strong>da</strong>de religiosa. A esperança de que fosse um anúncio académico, que os factos<br />

não confirmassem, parece estar em risco de enfraquecer à medi<strong>da</strong> que sobe aos<br />

extremos o desastre instala<strong>do</strong> no Iraque pela incapaci<strong>da</strong>de de previsão <strong>do</strong>s estrategas<br />

<strong>do</strong> unilateralismo. Um risco aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> pela imparável violência <strong>do</strong> conflito de<br />

Israel com os palestinos.<br />

Quan<strong>do</strong> os analistas e responsáveis ensaiam sugestões conciliatórias que tragam<br />

finalmente o apaziguamento de um conflito que sempre impedirá a paz geral, de<br />

novo anima a percepção catastrófica <strong>da</strong> <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conflito <strong>da</strong>s civilizações ao<br />

anunciar que o perigo emerge no interior <strong>do</strong>s EUA. Deste mo<strong>do</strong> toma árdua a tarefa<br />

de internacionalizar a presença americana no Iraque, e de aju<strong>da</strong>r a superpotência a<br />

salvar a face para benefício <strong>do</strong>s ocidentais e <strong>da</strong> paz geral. Versa<strong>do</strong> na história <strong>do</strong> seu<br />

país, vai recolher avisos, no passa<strong>do</strong> mal escuta<strong>do</strong>s, sobre os perigos que a América<br />

branca, britânica, e protestante, <strong>do</strong>s séculos XVII e XVIII <strong>da</strong> criação, corre o risco de<br />

ser feri<strong>da</strong> pela evolução para multi-étnica e multi-cultural.<br />

O texto divulga<strong>do</strong> refere-se assim ao passa<strong>do</strong>: "Seriam os EUAO país que foram,<br />

e ain<strong>da</strong> largamente são, se tivessem si<strong>do</strong> povoa<strong>do</strong>s nos séculos XVII e XVIII, não por<br />

protestantes britânicos, mas por franceses, espanhóis, ou portugueses católicos? A<br />

resposta é claramente não. Não seriam os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s; seriam Quebec, México,<br />

ou Brasil". Realmente são os hispânicos que activam o alarme <strong>do</strong> politólogo que em<br />

to<strong>do</strong> o caso não relacionou a velha paz cultural que refere com a falta de integração<br />

<strong>da</strong>s minorias políticas, ou com a sua eliinaqão. É uma previsão admissível que "a<br />

divisão cultural entre hispânicos e saxões pode ocupar o que foi a divisão racial entre<br />

negros e brancos como a divergência mais séria <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de americana". Mas talvez<br />

seja discutível incluir a populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong> multiculturalismo entre as<br />

causas, porque talvez a interpretação mais razoável seja a <strong>da</strong> cobertura ideológica<br />

para movimentos de grupos que finalmente escapam à minori<strong>da</strong>de cívica e vão a<br />

caminho de participar no poder.


Terminarei abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s conflitos e alarmes mais significativos e inquie-<br />

tantes <strong>do</strong>s últimos tempos.<br />

Foi importante a intervenção de Kofi Annan no World Economic Fomm, em<br />

Davos, na reunião anual que decorreu entre 21 e 25 de Janeiro último, onde a questão<br />

<strong>do</strong> Iraque pareceu sublinhar to<strong>da</strong>s as declarações feitas, a começar pelo Ministro Jack<br />

Straw <strong>do</strong> Reino Uni<strong>do</strong>. Formalmente uma enti<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, o Forum pareceu avaliar<br />

a guerra, a ocupação, e as responsabili<strong>da</strong>des de reorganização, como um acidente à<br />

margem <strong>do</strong> globalismo económico, e não como um deriva<strong>do</strong> lógico <strong>da</strong>quela orien-<br />

tação.<br />

Aintervenção <strong>do</strong> Secretário-Geral, sem expressamente o dizer, parece claramente<br />

entender que o globalismo económico também está envolvi<strong>do</strong>, e por isso não deixou<br />

de recor<strong>da</strong>r a intervenção que tivera em 1999, antes <strong>do</strong> confronto em Seatle comos<br />

adversários <strong>do</strong> modelo.<br />

No texto dessa <strong>da</strong>ta, as advertências sobre a urgência de rectificar o globalismo<br />

económico no senti<strong>do</strong> de promover uma sociednde globnl de confinnçn, foi uma nota<br />

principal: "nos merca<strong>do</strong>s nacionais a confiança é basea<strong>da</strong> na partilha de valores<br />

comuns... Mas no merca<strong>do</strong> global, as pessoas ain<strong>da</strong> não têm essa confiança. Até que<br />

a obtenham, a economia global será frágil e vulnerável...".<br />

De facto então, e agora, foi o tema <strong>da</strong> reinvençio dn governnnçn que prencheu o<br />

discurso, partin<strong>do</strong> de uma visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em mu<strong>da</strong>nça que, com frequência<br />

crescente, vê desafiar a lógica <strong>da</strong>s relações inter-estndirais pela lógica <strong>da</strong>s relações inter-<br />

merca<strong>do</strong>s, e crescer o que alguns chamam o terceiro espaço.<br />

Neste caso, a questão é a <strong>da</strong>s redes que fizeram emergir outros actores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

internacional, in<strong>do</strong> além <strong>da</strong>s Organizações Não Governamentais - ONG's para assu-<br />

mirem anatureza de poderes erráticos desafiantes <strong>da</strong>s soberanias. Tal como aconteceu<br />

com a A1 Qae<strong>da</strong> que se levantou a exigir igual<strong>da</strong>de aos próprios EUA.<br />

Verifican<strong>do</strong> que, mais uma vez, as intenções detectáveis não levam necessaria-<br />

mente à harmonia, a pe<strong>da</strong>gogia <strong>do</strong> Secretário-Geral pretende despertar pilotagens<br />

que evitem a subi<strong>da</strong> aos extremos de fracturas.<br />

Fracturas e confrontos que parecem objectivos estratégicos de movimentos ten<strong>do</strong><br />

por variável comum as queixas contra a alienação: foram casos como os <strong>do</strong>neutralismo<br />

contra a submissão estratégica à ordem <strong>do</strong>s Pactos Militares; <strong>da</strong> geografia <strong>da</strong> fome<br />

contra as socie<strong>da</strong>des afluentes; <strong>da</strong> área <strong>do</strong>s 3.4.4 (Ásia, África,América Latina) contra<br />

a ci<strong>da</strong>de planetária <strong>do</strong> Norte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.


A PERSISTENCIA DO RACISMO<br />

.. . .. . .. . . ... . ......... . .... . .... . ... . ... . ... . ... . .... . ... . .. . .. . .. . . .. . .. . . .. . .. . .. . . .. . .. . .... . .... . ... . .... . .. . , .... . , . ... , ... , . , .. . , ... , .. , . , .. .... .. . , . .. , ... , . ,<br />

Cinco anos depois <strong>da</strong> sua primeira intervenção, o Secretário-Geral vem declarar<br />

o seguinte: "Hoje, não apenas o ambiente económico global, mas também o clima de<br />

segurança global, e a condução efectiva <strong>da</strong>s políticas internacionais, tomaram-se<br />

largamente menos favoráveis à manutenção de uma ordem global estável, equitativa,<br />

e basea<strong>da</strong> em normas".<br />

Não é de estranhar que o globalismo <strong>do</strong> passivo <strong>da</strong> ordem global económica em<br />

desenvolvimento tenha expressão com acento tónico mais agu<strong>do</strong> no World Social<br />

Forum. Este, reuni<strong>do</strong> em Bombaim, pediu compromisso activo para com to<strong>do</strong>s os<br />

seres humanos que pouco possuem, necessitam de muito, mas são povos mu<strong>do</strong>s.<br />

Não é muito apega<strong>do</strong> a subtilezas diplomáticas o discurso corrente <strong>do</strong> Secretário-<br />

Geral, e neste caso parece fácil ler que o poder está reparti<strong>do</strong> entre os Esta<strong>do</strong>s em<br />

per<strong>da</strong> de função, e os vários movimentos <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des civis transnacionais onde<br />

nascem poderes efectivos que actuam, mas não correspondem ao envelheci<strong>do</strong> conceito<br />

de enti<strong>da</strong>des priva<strong>da</strong>s. E por isso a circunstância, por vezes anárquica, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

internacional, exige uma reinvenção <strong>da</strong> govemança, conceito que começou a circular<br />

pela déca<strong>da</strong> de oitenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>.<br />

No fun<strong>do</strong> é um apelo realista a uma acção convergente <strong>da</strong>s forças políticas internas<br />

em pactos de regime, à busca de definição de umespaço intergovemamentalespecial-<br />

mente marca<strong>do</strong> pelas competências reformula<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Conselho de Segurança, à<br />

govemaqáo contratualiza<strong>da</strong> <strong>do</strong>s interesses comum <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

cosmopolita e transnacional que vai enquadran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os povos e culturas.<br />

Uma pilotagem assumi<strong>da</strong>, participa<strong>da</strong> e normativiza<strong>da</strong> entre gestão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

gestões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, e gestões responsáveis pelas dimensões sociais <strong>da</strong><br />

globalização. Ten<strong>do</strong> como valores de referência a prevenção <strong>da</strong> segurança mundial e<br />

o desenvolvimento humano sustenta<strong>do</strong>.<br />

Embora exija uma crescente e minuciosa especifica~ão<br />

de responsáveis inter-<br />

venientes, de objectivos, e de recursos, a reinvenção <strong>da</strong> govemança, pela via contra-<br />

tualizante, é por agora a mais clara formulação de uma proposta para evitar que<br />

progri<strong>da</strong>m as áreas problemáticas. O que exige um centro de referência, que no pano-<br />

rama actual continua a estar apenas na ONU, está a exigir que os Esta<strong>do</strong>s concordem<br />

urgentemente na reformulação.<br />

i 19


RACISMO, ISLAMISMO POL~TICO E MODERNIDADE<br />

AOELINO TORRES'<br />

O conceito de "raça" que ain<strong>da</strong> <strong>hoje</strong> é por muitos relaciona<strong>do</strong> com factores<br />

biológicos é, desse ponto de vista, uma visão ultrapassa<strong>da</strong> que, como está demonstra<strong>do</strong><br />

pela ciência, não tem qualquer base séria. No entanto, o "racismo" como construção<br />

política sobrevive em múltiplas situações de tensão ou conflito social para fun<strong>da</strong>-<br />

mentar preconceitos.<br />

Esta noção está conti<strong>da</strong> no "islnmismo político", interpretação religiosa, extremista<br />

e teleológica, implicitamente racial ou mesmo racista, que podemos considerar<br />

estranha à essência <strong>da</strong> religião muçulmana na medi<strong>da</strong> em que subordina os valores<br />

políticos e morais a uma concepção redutora <strong>da</strong> mensagem <strong>do</strong> Corão. O islamismo<br />

político é uma visão retrógra<strong>da</strong> que almeja reconstruir um tipo de socie<strong>da</strong>de igual à<br />

que vigorava na península arábica nos primeiros anos <strong>da</strong> era muçulmana durante o<br />

século VII, antes mesmo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> áureo <strong>da</strong> civiliuação muçulmana, configuran<strong>do</strong><br />

a resistência à transformação <strong>da</strong>s ideias, à ausência de percepção <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça e à<br />

negação <strong>do</strong> tempo. Apropósito desse problema antropológico, A. Custódio Gonçalves<br />

observou também que, de uma maneira geral, estamos perante uma "descontinui<strong>da</strong>de<br />

<strong>do</strong> tempo social", a qual pode ser "caracteriza<strong>da</strong> pela conjunção <strong>do</strong> tempo linear e <strong>do</strong><br />

tempo mític~"~.<br />

Essa cognição monolítica ultra-conserva<strong>do</strong>ra, com to<strong>da</strong>s as consequências que<br />

ela implica, é um <strong>do</strong>s elementos que bloqueia <strong>hoje</strong> as socie<strong>da</strong>des muçulmanas <strong>do</strong><br />

Médio Oriente, opon<strong>do</strong>-se a um desenvolvimento que exige modemi<strong>da</strong>de, a qual é,<br />

por sua vez, uma condição sine qun non de desenvolvimento. Esses <strong>do</strong>is conceitos<br />

estão por sua vez inevitavelmente liga<strong>do</strong>s a uma racionali<strong>da</strong>de3 indispensável ao<br />

progresso científico, económico e cultural.<br />

' Universi<strong>da</strong>de Técnica de Lisboa (ISEG). Devo tima palavra de agradecimento ao meuaniigo Prof.<br />

José Carlos Venâncio, <strong>da</strong> UBI, pelas oportunas sugestões que muito aju<strong>da</strong>ram a melhorar a versão hal<br />

deste texto.<br />

'A. Custódia Gonsalves, Qtrestõcs de nntropologin socinl e arlturnl, Porta, Afrontamento, 2" ed. 1997:<br />

136.<br />

~ ~<br />

'Pode ler-se umaanáliseapmíun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>do</strong>conceito de"raciona1i<strong>da</strong>de"emÇofia Miguens,Rncionnlidnde,<br />

<strong>Porto</strong>. Campo <strong>da</strong>s Le&as, 2004.


No centro <strong>do</strong>s conceitos de desenvolvimento, moderni<strong>da</strong>de e rncionnlidnde, está o<br />

objectivo de democrncin na sua acepção axiológica mais lata, entendi<strong>da</strong> como diálogo<br />

através de "debate público", à qual não é estranha nenhuma cultura desde a mais<br />

remota antigui<strong>da</strong>de como Amartya Sen o demonstrou recentemente, denuncian<strong>do</strong><br />

ao mesmo tempo "o erro conceptual que vê a democracia essencialmente em termos<br />

de voto e de eleições em lugar <strong>da</strong> perspectiva mais vasta <strong>do</strong> debate públi~o"~.<br />

Este trabalho abor<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s principais obstáculos ao desenvolvimento e à<br />

modemi<strong>da</strong>de essencial ao progresso, o "islamismo político", e procura demonstrar<br />

que esse radicalismo na defesa de determina<strong>da</strong>s "tradições" mistifica<strong>do</strong>ras em nome<br />

<strong>da</strong> autentici<strong>da</strong>de é sobretu<strong>do</strong> um pretexto para justificar o imobilismo que pode<br />

condenar os países <strong>do</strong> Médio Oriente e <strong>da</strong> África a um retrocesso incessante, cujos<br />

efeitos, a confirmarem-se, não deixarão de ter repercussões profun<strong>da</strong>mente negativas<br />

para as relações entre a Europa e aquelas regiões.<br />

O "racismo" biológico tem como consequência a diferenciação entre os homens,<br />

em especial em razão <strong>da</strong> sua origem étnica ou cor <strong>da</strong> pele, e assenta frequentemente<br />

em teorias preconceituosas de "superiori<strong>da</strong>de" ou de "inferiori<strong>da</strong>de" biológica -e<br />

por via de consequência de ordem cultural - entre indivíduos, grupos ou nações. A<br />

origem deste fenómeno remonta longe no tempo, mas as suas formas tiveram uma<br />

expressão especialmente forte no século XIX quan<strong>do</strong> prevalecia um cientismo deter-<br />

minista e estreito5.<br />

Hoje a ciência já demonshou que, na espécie humana, as raças não existem nem<br />

se justifica qualquer hierarquização <strong>da</strong>quele tipo. Apesar disso, a ideia persiste<br />

tenazmente como to<strong>do</strong>s os mitos ....<br />

Em 1960, por iniciativa <strong>da</strong> UNESCO, vários autores debruçaram-se sobre a<br />

problemática <strong>do</strong> racismo, nomea<strong>da</strong>mente o racismo que se fun<strong>da</strong>mentava na biologia,<br />

assinalan<strong>do</strong> a sua incoerência e falta de ver<strong>da</strong>de científica. Claude Lévi-Strauss<br />

escreviaentão que "na<strong>da</strong>,no esta<strong>do</strong> actual <strong>da</strong> ciência, permite afirmar a superiori<strong>da</strong>de<br />

ou inferiori<strong>da</strong>de intelectual de uma raça em relação a ~utra"~.<br />

Martiniello é mais claro ao afirmar que "no que diz respeito às diferenças fiicas<br />

e psicológicas, os biologistas demonstraram que a noção de 'raça'não tinha nenhum<br />

senti<strong>do</strong> científico quan<strong>do</strong> se tenta aplicá-la à espécie humana. Numa palavra, as raças<br />

humanas não existem de um ponto de vista físico e biológico'".<br />

' Amartya Sen, Democrncynnd its Global Roots, tmd. fr. Ln dénmcrntiedes awtres - Poicrquoi la libertén'est<br />

pns ilnc irrventiori de I'Occident, Paris, Payot, 2003 : 44.<br />

Sáa conheci<strong>da</strong>s as ideias de Renan, Gabineau, etc.<br />

Claude Lévi-Strausç, « Race et liistoire », in AAVV, Le rncisn~e dcunnf ln çcicnce, Paris, Unesm/<br />

Gallirnard, 1960 : 241.<br />

'Marco MARTINIELLO, L'éfhnicité dnns les çciences socinles c<strong>ontem</strong>pornines, Paris, P.U.F., 1995.


No entanto, apesar <strong>da</strong> inexistência biológica <strong>da</strong>s "raças" humanas, é usual a<br />

utilização <strong>do</strong> conceito de "raça" como construção social e política8. Certos investiga-<br />

<strong>do</strong>res propuseram mesmo a noção de "rnçn socinl" de maneira a pôr em evidência o<br />

carácter construí<strong>do</strong> e não biológico desse termo, admitin<strong>do</strong> ao mesmo tempo que<br />

"raça", como conceito analítico (político e social), é uma varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> etnicirlnde. Como<br />

assinala ain<strong>da</strong> Martiniello, a etnici<strong>da</strong>de não é uma questão de parentesco e de<br />

ascendência biológica, mas antes uma questão de construção social e política. É, por<br />

conseguinte, uma variável e não uma característica imutável <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />

Por essa razão, muitos investiga<strong>do</strong>res sustentam que mais vale raciocinar em<br />

termos de "identificaçZo étizica" <strong>do</strong> que em termos de "identi<strong>da</strong>de étnica", pelo que devem<br />

ser rejeita<strong>da</strong>s tanto as teorias naturalistas que reduzem o social ao biológico ou ao<br />

natural, como as teorias sociobiológicas que, no fun<strong>do</strong>, pela sua inconsistência episte-<br />

mológica e pelo seu conteú<strong>do</strong> "não refutável" (no senti<strong>do</strong> de Karl Popper) implicam<br />

uma renúncia às próprias ciências sociais como instrumento de análise.<br />

Na sua acepção mais corrente, o conceito de "racismo" é ain<strong>da</strong> mais precário e<br />

impreciso <strong>do</strong> que o termo que lhe dá etimologicamente origem, não só porque<br />

filosoficamente enviesa as concepções de identi<strong>da</strong>de e de pertença que pretende<br />

reivindicar, mas também porque, ao transformar-se num instdmento de rejeição <strong>do</strong><br />

outro, introduz uma ruptura no seu próprio discurso que passa a fazer-se como que<br />

em "circuito fecha<strong>do</strong>", ciija lógica circular reside, em última análise, numa violência<br />

que acaba por ser auto-destrui<strong>do</strong>ra , como aconteceu com o nazismo na Europa e o<br />

Apartheid na África <strong>do</strong> Sul.<br />

Michel Wieviorka escreve que o racismo deixou de poder reclamar-se <strong>da</strong> ciência,<br />

procuran<strong>do</strong> <strong>hoje</strong> "a sua legitimi<strong>da</strong>de sobretu<strong>do</strong> em termos culturais, o que o toma<br />

mais inquietante", e acrescenta que quanto mais as identi<strong>da</strong>des culturais particulares<br />

se desenvolvem, mais o espaço <strong>do</strong> racismo se renova e alarga em proveito <strong>da</strong>s suas<br />

versões de <strong>do</strong>minante diferencialistaq. A esse propósito podem talvez evocar-se os<br />

exemplos, entre outros, <strong>da</strong> Jugoslávia ou de certos países africanos onde a manipulação<br />

de particularismos multiculturalistas é sobretu<strong>do</strong> um pretexto para a conquista de<br />

poder de determina<strong>da</strong>s facções, mesmo à custa de genocídios friamente executa<strong>do</strong>s<br />

(Argélia, Rwan<strong>da</strong>, Sudão, Libéria, Congo, etc.P0 ou de expulsões brutais de minorias<br />

étnicas (originários <strong>da</strong> índia no Ugan<strong>da</strong> por exemplo) ou de nacionali<strong>da</strong>de estrangeira.<br />

É certo que isto é susceptível de atingir to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong>des, tanto dentro como<br />

fora <strong>da</strong> Europa", pois nenhuma nação está ao abrigo de tais excessos com base em<br />

falsas razões de ehia, "raça", religião, cultura ou nacionali<strong>da</strong>de.<br />

. . .<br />

nppnrfcnnnce ethniqire, Paris, i~armattan, 2605.<br />

" No que concerne à Eurapa, basta relembrar a massacre <strong>do</strong>s judeus pelos nazis, <strong>do</strong>s arménios na<br />

Turquia e, mais recentemente, <strong>do</strong>s bósnios na Jugoslávia.


Também é possível dizer que uma forte componente de racismo (numa pretensa<br />

"pureza árabe") está no cerne <strong>do</strong> movimento catártico <strong>do</strong> Islamismo Político nas suas<br />

versões radicais e terroristas. Estas seitas, <strong>hoje</strong> já muito numerosas, ain<strong>da</strong> que<br />

minoritárias no mun<strong>do</strong> islâmico, merecem ser segui<strong>da</strong>s com atenção, em especial<br />

depois <strong>do</strong> 11 de Setembro de 2001. As causas que lhes dão origem estão certamente<br />

para além <strong>da</strong>s explicações económicas, sociais ou religiosas, mesmo que to<strong>da</strong>s elas<br />

devam ser toma<strong>da</strong>s em consideração na análise <strong>da</strong>s consequências <strong>do</strong>s actos por eles<br />

perpetra<strong>do</strong>s. Não obstante, é indispensável fazer uma distinção clara entre o islamismo<br />

politico, radical e/ou terrorista, e a cultura e religião muçulmana ou islâmica que<br />

não podem ser ti<strong>da</strong>s como directamente responsáveis <strong>do</strong>s extremismos acima<br />

referi<strong>do</strong>s. Alain Touraine observa, com razão, que "seria tão falso como perigoso<br />

considerar a imensa maioria islamiza<strong>da</strong> como um bloco anti-m~demista"'~.<br />

Já me esforcei por tratar com algum pormenor esta questão num trabalho anterior,<br />

pelo que julgo suficiente limitar-me a sublinhar aqui a distin~ão entre islnnzistns e<br />

muçul~nanos'~.<br />

Ademais, o islamismo político não deixa de reivindicar o seu "arabismo" e o sei1<br />

carácter de islamismo "Rrnbe", como se o termo, para além de possuir um conteú<strong>do</strong><br />

civiliiacional ou cultural, fosse também de ordem "racial': o que bem entendi<strong>do</strong> é<br />

uma falácia. Apesar disso a ideia está muitas vezes presente, vela<strong>da</strong>mente ou não, no<br />

discurso e nas práticas governamentais <strong>do</strong>s países árabes, como o demonstra<br />

actualmente o ver<strong>da</strong>deiro genocídio <strong>do</strong>s africanos negros no Darfur <strong>do</strong> su<strong>do</strong>este<br />

su<strong>da</strong>nês (animistas, católicos e muçulmanos negros) neste princípio <strong>do</strong> século XXI,<br />

genocídio já denuncia<strong>do</strong> pelas próprias Nações Uni<strong>da</strong>s. Mais uma vez "não há<br />

separação clara entre guerra de religião, guerra social e guerra de raça"' 4 .<br />

O islamismo político radical representa um fun<strong>da</strong>mentalismo que nega a<br />

hermenêutica, quer dizer a interpreta~ão'~. É um pensamento totalitário de recusa <strong>do</strong><br />

outro, obscurantista na medi<strong>da</strong> em que subordina a racionali<strong>da</strong>de e o próprio<br />

procedimento empírico ao arbitrário te~lógico'~. Arbitrário não só porque nega qualquer<br />

interpretação que não a sua <strong>da</strong>s escrituras sagra<strong>da</strong>s ou <strong>da</strong> strnn, impon<strong>do</strong> uma<br />

leitura "à letra" <strong>do</strong> Corão, mas igualmente porque esse "letrismo" é, ele próprio,<br />

contraditoriamente, uma "interpretação" unilateral <strong>da</strong>s fontes sagra<strong>da</strong>s imposta por<br />

254. -. ~<br />

'2AlainTouraine, Un noirvenil pnrndigme- Poi


RACISMO, ISLAMISMO POLIIICO E MODERNIDADE<br />

/. . . . . . . . . .... . .. . .. . .. . .. , .. , .. , ... , ... , .. , .... , .. , .. , ... , .. , . , . .. . , ..... . .... . ... . ... . . ... . .. . . ... . .. . ... . .. . ... . .. . ... . ... . . .. . ...... . .. .. . .. . . ... . .... .. . .<br />

i 27<br />

um único critério que utiliza, por assim dizer, a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> força em vez <strong>da</strong> força<br />

<strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de'?.<br />

Guillebaud escreve que este fun<strong>da</strong>mentalismo "é dificilmente sustentável na<br />

medi<strong>da</strong> em que a 'Revelação'é tributária <strong>da</strong> tradição que transmitiu os livros sagra<strong>do</strong>s<br />

e <strong>do</strong> trabalho exegético que constantemente os interpreta. Isso quer dizer que os textos<br />

estão vivos e que pertence aos crentes questioná-los de geração em geraçã~'"~. A<br />

unilaterali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentalistas impede justamente qualquer tipo de diálogo<br />

nessa dinâmica <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de, que é uma característica fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />

e <strong>do</strong> desenvolvimento, conceitos que exigem "abertura", a<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de e uma<br />

dinâmica em movimento.<br />

Se essa "abertura" (à mu<strong>da</strong>nça, à tolerância, ao diálogo e ao movimento) não se<br />

efectivar, nenhum <strong>da</strong>queles objectivos terá correspondência na acção, tanto mais que<br />

não há desenvolvimento sem moderni<strong>da</strong>de nem tão pouco moderni<strong>da</strong>de sem<br />

desenvolvimento, na medi<strong>da</strong> em que <strong>do</strong>is princípios constitutivos estão presentes<br />

em ambos: a crença na razão e na acção racional e o reconhecimento <strong>do</strong>s direitos<br />

universais <strong>do</strong> indivíduo, quer dizer a afirmação de um universalismo que dá a to<strong>do</strong>s<br />

os indivíduos os mesmos direitosI9, sem que nos coloquemos numa perspectiva<br />

etnocêntrica nem confun<strong>da</strong>mos "universalismo" com "ocidentalismo".<br />

O progresso resultante <strong>da</strong> conjugação <strong>da</strong>quelas duas vertentes (desenvolvimento<br />

e modemi<strong>da</strong>de) depende de um debate livre com base no racionalismo que constitui<br />

um <strong>do</strong>s seus elementos fun<strong>da</strong>mentais e é ao mesmo tempo um compromisso com o<br />

crescimento e a inovação contínuos. J. Habermas observa que temos "de remontar a<br />

Hegel se quisermos compreender o que significou a relação interna entre (...) modemi-<br />

<strong>da</strong>de e racionali<strong>da</strong>de, ti<strong>da</strong> como evidente até Max Weber e <strong>hoje</strong> posta em questão"20.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a chama<strong>da</strong> globaliznçio é <strong>hoje</strong> uma plataforma onde podem<br />

assentar essas duas dinâmicas apesar <strong>da</strong> controvérsia que o conceito suscita e que<br />

continua relativamente mal esclareci<strong>do</strong>. Por isso é necessário enunciar previamente<br />

que a globalização não é, a meu ver, uma "conspiração" como demasia<strong>da</strong>s vezes se<br />

tem afirma<strong>do</strong>, mas tão somente um "processo" com múltiplas variantes (tecnológica,<br />

científica, financeira, cultural) cujo alcance e significa<strong>do</strong> dependem <strong>da</strong>s políticas <strong>do</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s no plano internacional: políticas económicas, estratégias político-militares,<br />

comércio, relações intemacionais, etc. Assim, o pre<strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> influência neoliberal<br />

na globaliuação existe, não por uma inevitabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> destino ou por uma qualquer<br />

"lei <strong>da</strong> natureza", mas porque, nos diversos países e nas instituições internacionais<br />

que estes controlam, o neoliberalismo tem actualmente a supremacia ideológica nas<br />

" Vd. a importante discussão cientiíica que Abou Zeid tentou abrir sem sucesso no Egipto e pela<br />

qual foi duramente persew<strong>da</strong>. Cf. Zeid (Naçr Abau), Critiqire dtr diçcor~rs re1igieit.r. Paris, Sindbad, 1999.<br />

"Cf. Guillebaud 2003,oa cit.: 310.<br />

Cf. Alain Touraine 2005, op. cit.: 121-122<br />

" Cf. Jürgen Habermas, O discursofilosófico <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, had. port., Lkboa, Dom Quixote, 3'ed.<br />

2000: 16


diferentes instâncias de poder como já a teve no século XIX. O fracasso retumbante<br />

<strong>da</strong>s experiências socialistas e comunistas durante o século XX e os excessos <strong>da</strong><br />

intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> desde a 2" guerra mundial, explicam, em parte, esta situação e<br />

deixam em aberto problemas <strong>da</strong> repartição <strong>do</strong> rendimento e <strong>da</strong> justiça social que se<br />

colocam ao nível mundial com mais acui<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> que <strong>da</strong>ntes2'.<br />

O actual descontentamento visível <strong>da</strong>s populações europeias provoca<strong>do</strong>, em<br />

parte, pela opção à primeira vista ca<strong>da</strong> vez mais neoliberal <strong>do</strong>s responsáveis políticos<br />

<strong>da</strong> União Europeia pode vir a ter graves consequências para o futuro <strong>da</strong> Europa.<br />

Voltou aser ver<strong>da</strong>de nestes primeiros anos <strong>do</strong> século XXI, se é que alguma vez deixou<br />

de o ser, a assertiva de Keynes segun<strong>do</strong> a qual "os <strong>do</strong>is vícios marcantes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

económico em que vivemos, são o de que o pleno emprego não é assegura<strong>do</strong> e o de<br />

que a repartição <strong>do</strong> sucesso e <strong>do</strong> rendimento é arbitrária e não equitativarfu.<br />

Acrescentem-se ain<strong>da</strong> duas observações que podemos considerar de senso<br />

comum:<br />

Por um la<strong>do</strong>, na<strong>da</strong> impede - política ou tecnicamente - que a globalização venha<br />

a favorecer uma forte "convergência" entre os interesses <strong>do</strong>s países e regiões num<br />

quadro de concorrência alarga<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que o estreitamento <strong>da</strong>s relações<br />

inter-nnciolinis <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (pelos transportes, comunicações, electrónica) é susceptível<br />

de contribuir para um melhor conhecimento <strong>do</strong> outro, favorecen<strong>do</strong> intercâmbios que<br />

preparam a "aldeia global" de que falava Marshall McLuhan.<br />

Mas, por outro la<strong>do</strong>, isso não deveria conduzir a um optimismo ingénuo, na<br />

medi<strong>da</strong> em que é necessário não perder de vista que o próprio conceito de "aldeia<br />

global" inerente à globalização, quase sempre visto como um factor positivo de<br />

aproximação universalista <strong>do</strong>s homens, não deixa de ter um conteú<strong>do</strong> ambíguo se<br />

nos recor<strong>da</strong>rmos que a noção de "aldeia" (microcosmo) pode ser umlocal de conflitos,<br />

por vezes tão intensos e violentos como os que se registam por vezes entre nações<br />

(macroc~smo)~~. Em suma, contrariamente ao que alguns rousseauístas pretendem, a<br />

"aldeia global" não tem um senti<strong>do</strong> unidimensional, pois tanto pode tomar o caminho<br />

<strong>do</strong> universalismo como a perigosa via <strong>do</strong> agravamento de particularismos, como<br />

aliás se começa a verificar um pouco por to<strong>da</strong> a parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

O multiculturnlismo, mesmo obedecen<strong>do</strong> ajustifica<strong>do</strong>s intentos, é visto por muitos<br />

como a porta aberta à fragmentação social com efeitos dramáticos. Mais uma vez,<br />

tu<strong>do</strong> leva a crer que são sobretu<strong>do</strong> as estratégias (nacionais e internacionalmente<br />

promovi<strong>da</strong>s pelos agentes nacionais) subjacentes ao processo de globalização que<br />

2' Vd. O importante eshi<strong>do</strong>de Jacqries Sapir, Lcs écononiiçfes corifreIa déniocrnfie-Poirvoir, moirdinlisnfion<br />

c déntocrnfic, Paris, Albin Micliel, 2002<br />

Cita<strong>do</strong> por J.l? Fitouççi, A dcmocrncin c o Mercfl<strong>do</strong>, trad. port., Lisboa, Terramar, 2005: 16<br />

BTalcamo a microfísica náa é menos camdexa <strong>do</strong> aue a macrofiçica, contrariamente ao 4ue Descartes<br />

peiisnva ,~iiaiid.,a;oiisclliov.i n~ seii.\


em grande parte determinam os seus resulta<strong>do</strong>s. Quer dizer que a globalização não<br />

pode ser vista de per se. Uma globalização sem regulação e com um Esta<strong>do</strong> fragiliza<strong>do</strong>,<br />

como querem as ideologias neoliberais, poderia configurar a subordinação total de<br />

valores democráticos a critérios <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> ou ain<strong>da</strong>, como diz Adriano Moreira, à<br />

"teologia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>".<br />

É certo que o merca<strong>do</strong> é um elemento essencial <strong>do</strong> funcionamento <strong>da</strong>s economias<br />

e um motor indispensável <strong>do</strong> desenvolvimento, mas isso não significa que se passe<br />

<strong>do</strong> excesso de intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, como aconteceu frequentemente na segun<strong>da</strong><br />

metade <strong>do</strong> século XX, para o seu desmantelamento. J.P. Fitoussi observa bem que "na<br />

ausência de intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> -por exemplo, sob forma de subvenções públicas<br />

-o merca<strong>do</strong> escolheria espontaneamente um nível de investimento na educação e na<br />

cultura muito mais fraco <strong>do</strong> que a eficácia económica exige. Raciocínio semelhante<br />

pode ser aplica<strong>do</strong> aos <strong>do</strong>mínios <strong>da</strong> saúde, <strong>da</strong> protecção no trabalho, et~.''~~.<br />

É evidente que a submissão <strong>do</strong> político ao económico e ao financeiro denuncia<strong>da</strong><br />

por Karl Polanyi nasua obra-prima mais actual <strong>do</strong> que nunca (Agrnnde trn~tsformnçio)<br />

está, na opinião de muitos ensaístas, manifestamente em cursoE. Já em Outubro de<br />

1932 Emmanuel Mounier, num artigo publica<strong>do</strong> na revista Esprit, atribuía ao espiritual<br />

a função de coman<strong>da</strong>r o político e o económico, deploran<strong>do</strong> que no mun<strong>do</strong> modemo<br />

a "presença concreta e exigente <strong>do</strong> espírito" se tenha pouco a pouco retira<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>z6<br />

Se,para omun<strong>do</strong> e não apenas para o Médio Oriente, o islamismo político parece<br />

especialmente perigoso, não é apenas por causa <strong>do</strong> terrorismo em si que poderia ser<br />

ou não circunstancial, mas porque aquilo que pressupõe no plano gnosiológico aponta<br />

para um retrocesso histórico. É uma concepção teológica redutora <strong>da</strong>s relações entre<br />

os homens, uma metafísica estreita27 que perverte o pensamento, contribui para um<br />

empobrecimento brutal <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de e para a anulação <strong>do</strong> espírito crítico. Caso a<br />

sua influência se venha a estender a várias centenas de milhões de pessoas, é óbvio<br />

que estaremos perante um grave dilema que não pode ser ignora<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong><br />

c<strong>ontem</strong>porâneo pelos riscos a que expõem a humani<strong>da</strong>de. A aplicação <strong>da</strong> CháriaZ<br />

em várias partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, especialmente no Médio Oriente (Arábia Saudita, Irão) e<br />

na África (Nigéria) dá indicaqões sobre as ameaças que pesam sobre as perspectivas<br />

de desenvolvimento e de modemi<strong>da</strong>de" em muitas regiões <strong>do</strong> sul devi<strong>do</strong> às inter-<br />

Cf. Jean-Paul Fitoussi 2005, op. cit : 54.<br />

li Vd. Karl Polanyi, The Grent Trnnsformntion - Tlie Politicnl nnd Economic Origins o/ Osr Time, 1944. E<br />

também Eahveli (John) and Taylar (Lance), Globnl Finnnce nt Risk - nle Case for Internnfiannl Regiilotion,<br />

Cambridge, Paiity Presç, 2000.<br />

Cita<strong>do</strong> Dor Michel Raimond, glorie et critio~re de Ia modernité, Paris, PUF, 2000 : 121.<br />

u<br />

"Não é a metafísica enquanto tal que está aquiem causa, mas a versão elementar eanti-humanista<br />

<strong>do</strong>s radicais islamitas.<br />

" Chária : lei islãmica.<br />

" Vd. ChristianComeliau, Les impnsses de In modernité- Critique de Ia mnrchnndisntion dir monde, Paris,<br />

Seuil, 2000.


pretações medievais e totalitárias <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentalistas de to<strong>do</strong> o género, especialmente<br />

os que evocam motivos religiosos.<br />

Não obstante, a análise <strong>do</strong> islamismo político não dispensa uma leitura <strong>do</strong><br />

contexto histórico em que se desenvolveu nos últimos anos. Em particular, deve-se<br />

relembrar a evolução <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>s países em desenvolvimento desde a 2" guerra<br />

mundial, quan<strong>do</strong> a ideia de "modernização" aí fez a sua aparição promovi<strong>da</strong> pelos<br />

nacionalistas depois <strong>da</strong>s independências (a modernização na generali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s países<br />

<strong>do</strong> Sul, embora parcelar, é de facto bem anterior).<br />

O mun<strong>do</strong> moderno nos finais <strong>do</strong> século XVIII era, antes de mais, o projecto de<br />

um mun<strong>do</strong> racional que devia assegurar a libertação <strong>do</strong>s indivíduos. O racionalismo<br />

<strong>da</strong>s Luzes via a liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> homem garanti<strong>da</strong> pelo triunfo <strong>da</strong> razão e pela destruição<br />

<strong>da</strong>s crenças antigas: o auge desse movimento era a Declaração <strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong><br />

HomemM. Apesar <strong>da</strong>s vicissitudes a que o conceito de "moderno" foi submeti<strong>do</strong> nos<br />

séculos XIX e XX e <strong>da</strong>s desilusões que provocou, a eclosão de szrb-teorias, na mo<strong>da</strong>,<br />

não chega, creio, para o rejeitar definitivamente. Talvez seja preciso redimir outros<br />

conceitos que a "moderni<strong>da</strong>de" apagou desde o século XVIII, mas o objectivo em si<br />

guar<strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de, quanto mais não seja como ideal-tipo weberiano, abstracto mas<br />

essencial, como referência <strong>da</strong> prática.<br />

O conceito de "moderniznçZo" é aqui utiliza<strong>do</strong> nas suas aplicações económicas e<br />

tecnológicas (por exemplo, transferência de tecnologia "chaves na mão" sem<br />

transferência concomitante de conhecimento científico de raiz). Em contraparti<strong>da</strong>, o<br />

conceito de "modernidnde" é sociologicamente mais abrangente e extensivo a to<strong>da</strong>s as<br />

estruturas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, incluin<strong>do</strong> as estruturas sociais, culturais, mentais, num<br />

processo endógeno e auto-sustentável onde o espaço e o tempo são construí<strong>do</strong>s "em<br />

tomo <strong>da</strong> ideia de uma socie<strong>da</strong>de auto-cria<strong>da</strong>" que designa, para lá <strong>da</strong> acção <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de sobre si própria, as fontes <strong>do</strong>s direitos, a presença <strong>do</strong> universalno sociaY3'.<br />

Esta assertiva é, evidentemente, rejeita<strong>da</strong> pelos particularismos identitários, ditos<br />

"tradicionais" e, com mais vigor ain<strong>da</strong>, por aqueles cujo programa político e social<br />

está submeti<strong>do</strong> ao religioso, ou melhor a uma interpretação unívoca, estreita e<br />

intolerante <strong>do</strong> religioso como é o caso <strong>do</strong> islamismo político.<br />

Dito de outro mo<strong>do</strong>, citan<strong>do</strong> J. Habermas, o conceito de modernização "refere-se<br />

a um feixe de processos cumulativos que se refor~am mutuamente: à formação de<br />

capital e mobilização de recursos, ao desenvolvimento <strong>da</strong>s forças produtivas e ao<br />

aumento de produtivi<strong>da</strong>de de trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos<br />

centraliza<strong>do</strong>s e à formação de identi<strong>da</strong>des nacionais, à expansão de direitos de<br />

participação política, de formas urbanas de vi<strong>da</strong> e de formação escolar formal, refere-<br />

-se à secularização de valores e normas, et~.''~~.<br />

Vd. Michel Raimond 2000, op. cit.: 2.<br />

" Cf. Alain Touraúie 2005, op. cii : 121-122<br />

'' Cf. Habermas 2000, op. cit.: 14.


Entre as "teorias <strong>da</strong> modemização" que nasceram no pós-guerra podemosgrosso<br />

mo<strong>do</strong> distinguir duas em especial.<br />

Em primeiro lugar, a "modernização", assumi<strong>da</strong> de maneira mais exógena <strong>do</strong><br />

que endógena, correspondeu à transferência sem precauções de mo<strong>do</strong>s de pensar,<br />

meto<strong>do</strong>logias, técnicas e instituições <strong>do</strong>s países desenvolvi<strong>do</strong>s para as jovens nações<br />

recém-independentes, numa visão algo linear que consistia em reproduzir sem a<strong>da</strong>ptar<br />

à história e às condições locais o que tinha si<strong>do</strong> concebi<strong>do</strong> para as necessi<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s<br />

países industrializa<strong>do</strong>s.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, alguns países envere<strong>da</strong>ram por um caminho que almejava reproduzir<br />

a organização <strong>do</strong>s países industrializa<strong>do</strong>s. To<strong>da</strong>via não dispunham <strong>do</strong>s recursos<br />

humanos adequa<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>s estruturas sociais, institucionais e políticas indispensáveis,<br />

nem tão pouco beneficiavam de experiência favorável à construção e funcionamento<br />

de uma máquina administrativa suficiente para pôr a economia em marcha.<br />

Os respectivos governos, tanto no Médio Oriente como na África Subsaariana,<br />

na maioria <strong>do</strong>s casos acabaram por aplicar mecanicamente procedimentos desajusta<strong>do</strong>s<br />

ou irrealistas, combaten<strong>do</strong> por exemplo a "tradição" em nome <strong>do</strong> "progresso"<br />

ou assimilan<strong>do</strong> acriticamente tradição com atraso, perspectiva redutora que Karl<br />

Popper justamente fustigou antes mesmo de muitos economistas e sociólogos <strong>do</strong><br />

desenv~lvimento~~.<br />

Nesse capítulo, e apesar <strong>do</strong>s erros que foram cometi<strong>do</strong>s, os países em desenvolvimento<br />

têm, em geral, razão em assinalar as responsabili<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s antigas potências<br />

europeias por não terem prepara<strong>do</strong> as suas colónias para uma independência condigna<br />

e viável. Porém, não é certo que o argumento seja ain<strong>da</strong> completamente váli<strong>do</strong> 45<br />

anos depois <strong>da</strong>s independências africanas e mais de meio século depois <strong>da</strong>s independências<br />

no Médio Oriente. De qualquer mo<strong>do</strong>, é ver<strong>da</strong>de que ele se justificava pelo<br />

menos durante as duas primeiras déca<strong>da</strong>s posteriores à independência, especialmente<br />

no continente africano.<br />

Asegun<strong>da</strong> via escolhi<strong>da</strong> para a "modernização"- que, repete-se, deve ser distingui<strong>da</strong><br />

de "m~derni<strong>da</strong>de"~ - atribuiu inicialmente as causas <strong>do</strong> subdesenvolvimento<br />

e de to<strong>do</strong>s os males que aKigiram o perío<strong>do</strong> pós-independência incluin<strong>do</strong> até aos<br />

dias de <strong>hoje</strong>, à <strong>do</strong>minação colonialista, capitalista, imperialista, etc., e consistiu em<br />

escolher a "via <strong>do</strong> socialismo" em muitos países <strong>do</strong> então chama<strong>do</strong> "Terceiro Mun<strong>do</strong>",<br />

copian<strong>do</strong> mais ou menos o modelo soviético ou chinês (nmrxismo "clríçsico). A variante<br />

<strong>da</strong>s "teorias <strong>da</strong> dcpendêncin" ("neomnr~istno")~~ <strong>do</strong>s anos 60-70 sustentava teses como a<br />

" Vd. Karl Popper, "Rumo a uma teoria racional <strong>da</strong> tradição" in Conjeciirrns e rejrtnyões (1963), lrad.<br />

port., Brasília, Editora Universi<strong>da</strong>de de BraçMa, 1972: 147-160. (Há uma ouira tradução mak recente em<br />

Portugal).<br />

"A teoria <strong>da</strong> modernização procede a uma aùsiracção <strong>do</strong> conceito de 'modemi<strong>da</strong>de'de Webercom<br />

imvortantes conseauências". Cf. Habermas 2000. . on. . cit.: 14.<br />

" Vd Jo5o C. Cravinho. Virõcs <strong>do</strong> nztiii<strong>do</strong> - As rilii~üi~ I,ittrrinrioiints s c iiiii,ii/o ru>it:inl.3r.i>z~.o. Lisboa,<br />

V??,n,?'<br />

I.C.S., 2302; Adclino Torrei. Ilarizciiies <strong>da</strong> dcsz~t~~o1tiiiii:nr~ ~ifrlia~io tio tintinr <strong>do</strong> $::


<strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> subdesenvolvimento ou <strong>do</strong> dualismo centro-periferia e,<br />

contrariamente a versão "clássica" reivindica<strong>da</strong> pelos países <strong>do</strong> Leste, pretendia "saltar<br />

por cima" <strong>da</strong> etapa <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e <strong>do</strong> desenvolvimento "capitalista" para entrar directa-<br />

mente na era "s~cialista"~~.<br />

Até aos anos 80 várias experiências tiveram lugar no "Terceiro Mun<strong>do</strong>", mas<br />

nenhuma delas teve afinal o sucesso inicialmente espera<strong>do</strong> desde 1917, até que em<br />

1989 a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> muro de Berlim assinalou o colapso <strong>do</strong> comunismo e, por arrasta-<br />

mento, o descrédito <strong>do</strong> movimento socialista no mun<strong>do</strong>.<br />

Porém, tal como na lei de Gresham em economia a má moe<strong>da</strong> expulsa a boa<br />

moe<strong>da</strong>, também noutras disciplinas científicas acontece por vezes que as más ideias<br />

expulsam as boas.<br />

Com efeito, <strong>do</strong> descrédito <strong>do</strong> comunismo e <strong>da</strong>s suas contestáveis experiências<br />

tirou-se não só a ideia de que to<strong>do</strong>s os regimes que evocavam a palavra "socialismo",<br />

mesmo modera<strong>da</strong>mente, eram necessariamente desastrosos em to<strong>do</strong>s os aspectos.<br />

Mas sobretu<strong>do</strong> cresceu um movimento de rejeição <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong> Providência<br />

(confundin<strong>do</strong>-o com o "Esta<strong>do</strong> Assistência") e de uma maneira geral hi<strong>do</strong> o que era<br />

preocupação de política económica com um conteú<strong>do</strong> social. Foi a vitória <strong>do</strong> neoli-<br />

beralismo económico, esvazia<strong>do</strong> de história, de filosofia e de conteú<strong>do</strong> social37 de<br />

que os primeiros obreiros foram M. Tatcher no Reino Uni<strong>do</strong> e R. Reagan nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> América nos anos 80 <strong>do</strong> século XX38. Este movimento triunfou em to<strong>do</strong> o<br />

mun<strong>do</strong> nos anos 80-90, basean<strong>do</strong>-se, em parte, numa lógica económica que, é preciso<br />

reconhecê-lo, é contestável, mas assaz coerente no plano puramente teórico abstracto3'.<br />

Mas não é excessivo admitir que também é constituí<strong>do</strong> por convicções ideológicas<br />

que não poucas vezes tomam foros de quase "fé religiosa".<br />

Entre parênteses, é conveniente esclarecer que, como escreveu a filósofa Monique<br />

Canto-Sperber, "o liberalismo não se reduz ao liberalismo económico" e "não pode<br />

ser amalgama<strong>do</strong> ao ultraliberali~mo"~~.<br />

Quanto a famosa teoria <strong>do</strong>fim dn Histórin de Francis Fukuyama4', arguta tese<br />

hegeliana e algo escatológica - aliás fascinante - que tanta celeuma suscitou, esta foi,<br />

por sua vez, uma ilustração <strong>da</strong> tese segun<strong>do</strong> a qual, depois <strong>do</strong> colapso <strong>da</strong>s ditaduras<br />

de direita e de esquer<strong>da</strong>, se iria chegar a uma democracia capitalista liberal que seria<br />

a etapa final <strong>do</strong> processo histórico mundial. É esquecer que, desde o século XIX até<br />

"Sobre n .,ueicio m~i~geriL~i7 relaqi penianl~~>co n~ilr\ist~ ca prblcm;lii~ã <strong>da</strong> Utopia ver:<br />

I-Icnri Xlaler, Com ~f:? 1'1n,v:;j!h12 - l.'ttt0v8~.nt C,: Alflr.~, ~~,~~1272.\l,~7.v, l'arib, .Aibin .Micl~ei, I11Y5.<br />

"Vd. Geoffrev M. ~Xdeson. - . Horo ~;onornics ~orpof " ~l


<strong>hoje</strong>, "o capitalismo sobreviveu como forma <strong>do</strong>minante de organização económica<br />

grnçns i democrncin e nlio npesnr deln42.<br />

Partilhan<strong>do</strong> este finalismo filosófico, os democratas de to<strong>da</strong>s as tendências<br />

também julgaram que o fim <strong>do</strong> comunismo era o fim <strong>da</strong> injustiça e <strong>do</strong> imobilismo<br />

económico, e que esse capitalismo liberal que agora parecia surgir como vence<strong>do</strong>r<br />

inquestionável na luta contra o comunismo abria o caminho a um desenvolvimento<br />

ininterrupto de progresso e de bem-estar. Quase duas déca<strong>da</strong>s depois, apesar de<br />

benefícios materiais em vários planos, em especial no caso de determina<strong>da</strong>s regiões<br />

<strong>da</strong> Ásia, verifica-se agora que os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pela globalização estão longe de<br />

corresponder aos resulta<strong>do</strong>s então espera<strong>do</strong>s que pretendiam beneficiar to<strong>da</strong> a<br />

humani<strong>da</strong>de, mesmo poden<strong>do</strong>-se sempre argumentar que é demasia<strong>do</strong> ce<strong>do</strong> para<br />

tirar conclusões definitivas. Entretanto, por to<strong>da</strong> a parte surgiram grupos numerosos<br />

que vieram contestar a globalização como o movimento "anti-mundialista" ou "alter-<br />

mundialista".<br />

O fim <strong>do</strong> comunismo como regime nos países <strong>da</strong> Europa central e oriental, o<br />

fracasso de experiências como a <strong>da</strong> Coreia <strong>do</strong> Norte e de Cuba, a viragem <strong>da</strong> China<br />

(que apesar <strong>da</strong> sua ambigui<strong>da</strong>de não deixa de ser uma confissão de derrota <strong>do</strong><br />

comunismo maoista), a substituição de um mun<strong>do</strong> bipolar cuja rivali<strong>da</strong>de não deixava<br />

de beneficiar até certo ponto os países em desenvolvimento por um mun<strong>do</strong> unipolar<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s43, o aban<strong>do</strong>no de objectivos sociais a cargo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

em favor <strong>da</strong> convicção utópica de que o merca<strong>do</strong> melhor e mais rapi<strong>da</strong>mente<br />

desempenharia esse papel, a subaltemizaqão <strong>da</strong> "ética" em favor <strong>da</strong> "eficácia", <strong>da</strong><br />

produtivi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> rentabili<strong>da</strong>de a to<strong>do</strong> o custo, o falso pragrnatismo <strong>da</strong> supremacia<br />

<strong>do</strong> económico sobre o "político", to<strong>do</strong>s esses factores semearam no planeta o que<br />

alguns chamam o "caos ideológico", feito de incerteza e de receio de uma "mu<strong>da</strong>n~a"<br />

cujos fins parecem escapar ao controlo <strong>da</strong>s instituições democráticas. Na própria União<br />

Europeia as orientações <strong>da</strong>s elites políticas dirigentes são vistas como estan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong><br />

vez mais afasta<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s objectivos sociais iniciais e <strong>da</strong> filosofia perfilha<strong>da</strong> por fun<strong>da</strong>-<br />

<strong>do</strong>res como Jean Monet. Muitos analistas consideram que essas elites estão crescen-<br />

temente obceca<strong>da</strong>s por um neoliberalismo a-social e tecnocrático com os olhos postos<br />

no modelo norte-americano, cometen<strong>do</strong> porventura o erro de comparar o que não é<br />

comparável.<br />

As perturbações económicas agravaram as dificul<strong>da</strong>des na maioria <strong>do</strong>s países<br />

<strong>do</strong> Sul, especialmente em África, no Médio Oriente e em boa parte <strong>da</strong> Ásia e <strong>da</strong><br />

América Latina, impon<strong>do</strong> a muitos deles o "far<strong>do</strong> <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> externa", ao mesmo<br />

tempo que a acção de governos corruptos e sem respeito pelos direitos humanos<br />

exercia uma opressão insensata sobre as suas populações, aumentan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> mais as<br />

desigual<strong>da</strong>des sociais e provocan<strong>do</strong> uma frustração gera<strong>do</strong>ra de ressentimentos<br />

"J.P. Fitoussi 2005, O?, cit.: 47 (sublinha<strong>do</strong> pelo autor).<br />

*'Não sen<strong>do</strong> impossível que se volte de novo a um mun<strong>do</strong> bipolar desta vez EUA-China ou &ipolar<br />

EUA-China-UE ...


profun<strong>do</strong>s em relação aos países mais ricos, mesmo quan<strong>do</strong> parte <strong>da</strong>s responsa-<br />

bili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> crise interna são frequentemente imputáveis às classes dirigentes desses<br />

paíseP. Perdi<strong>da</strong> a esperanqa tanto no projecto socinlistn como no projecto cnpitnliçtn,<br />

nasceu no "Terceiro Mun<strong>do</strong>" um vazio ideológico que as forças mais obscurantistas<br />

iriam tentar ocupar.<br />

No Médio Oriente, esse vazio resultou igualmente, entre outros factores, <strong>do</strong> défice<br />

de legitimi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s regimes políticos, <strong>da</strong> crise regional (nacionalismo, panarabismo4:<br />

conflito lsraelo-Árabe) e, tal como na África Subsaariana, <strong>da</strong> falência <strong>da</strong>s políticas<br />

económicas leva<strong>da</strong>s a cabo depois <strong>da</strong>s independências apesar <strong>da</strong> existência de petróleo<br />

nalguns países.<br />

Por to<strong>da</strong> a região começaram a surgir movimentos messiânicos de origem<br />

nacionalista, religiosa e éhica. E nesse contexto que os islamitas mais radicais se vão<br />

organizar e propor o islamismo político como uma ideologia alternativa, a qual<br />

assumiu proporções desmedi<strong>da</strong>s depois <strong>da</strong>s guerras israelo-árabes e <strong>do</strong>s aconteci-<br />

mentos no Irão, no Líbano e na Palestina, trazen<strong>do</strong> para o primeiro plano <strong>da</strong> actuali-<br />

<strong>da</strong>de um problema que se julgava ultrapassa<strong>do</strong>: o projecto de socie<strong>da</strong>de que tinhano<br />

âmago o velho conflito entre a "tradição" e a "moderni<strong>da</strong>de".<br />

Esse debate assumiu nos países árabes duas orientações: a <strong>da</strong>s reformas, a que<br />

chamarei de uma maneira aproxima<strong>da</strong>, apenas para fixar ideias: as reformas "intrn-<br />

islrimicns" e as reformas "extra-islrimicnç".<br />

Arefonna "intra-islâmica" (potencialmente violenta) fun<strong>da</strong>-se nos textos <strong>do</strong> Isláo<br />

(Corão, Suna, Chária) e subordina a economia, a política e o social a uma leitura<br />

estrita dessas fontes, necessariamente anti-racionalista e anti-il~minista~~..<br />

A reforma "extra-islâmica" (ou "extra-religiosa"), de tendência laica, procura<br />

captar os elementos de progresso científico e cultural <strong>do</strong> Ocidente, sem que isso<br />

signifique renunciar à sua identi<strong>da</strong>de cultural própria.<br />

A abor<strong>da</strong>gem "intra-islâmica" tomou o nome de ijtihnd , ou esforço de reflexio", e<br />

refere-se, em princípio, ao conjunto de méto<strong>do</strong>s jurídicos e religiosos para encontrar<br />

respostas às questões modernas com base nos textos sagra<strong>do</strong>s e em interpretações<br />

teológico-filosóficas. O problema é que os desafios coloca<strong>do</strong>s por esta orientação são<br />

muito mais complexos <strong>do</strong> que os islamitas supunham. De facto, os islamitas apresen-<br />

'(Esse é a principal motivo pelo qual a opinião pública europeia vê commaus olhos um aumento<strong>da</strong><br />

aju<strong>da</strong> pública ao desenvolvimento <strong>do</strong> "Terceiro Mun<strong>do</strong>", especialmente aos países airicanos ande a<br />

corrupçáo é mais visível e as guerras civis projectam demasia<strong>da</strong>s vezes o continente para as primeiras<br />

páginas de actuali<strong>da</strong>de mundial.<br />

" Vd. Adeed Dawislia, Arnb Nnfionnlism in flie Twenfiefh Centlrnj- From Triirmph to Despnir, Rincetan<br />

University P~eçç, 2003.<br />

'Wd as críticas contundentes que o tunisino Mohamed Charfi faz &s universi<strong>da</strong>des ultra-comerva<strong>do</strong>ras<br />

de Zitouna (Tuniçia) e de AI-Ahzar (Egipto) e ao papel negativo que a primeira desempediouna<br />

história <strong>da</strong> Tunisia moderna: MaliamedCharfi, Islnm et liberte-Lcmnlentcndit hisforiqire, Paris,AlbinMichel,<br />

1998.<br />

" Cf. Dominique et Janine Çaurdel, Dicfionnnire hisforiqire de l'islnm, Paris, PUF, 1996


tam o Islão como um Islão "globaliza<strong>do</strong>r" <strong>da</strong>s dimensões profana e sagra<strong>da</strong>, o to<strong>do</strong><br />

subordina<strong>do</strong> ao sagra<strong>do</strong>, evidentemente.<br />

Esta visão "legalista", por assim dizer, que transpõe o quadro tradicional <strong>do</strong><br />

século VI1 <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong>s quatro primeiros califas para a vi<strong>da</strong> moderna <strong>do</strong> século XXI,<br />

esconde sub-repticiamente fins políticos não explícitos numa primeira fase e que só<br />

serão revela<strong>do</strong>s à luz <strong>do</strong> dia, geralmente sob a formamais violenta, aquan<strong>do</strong><strong>da</strong> futura<br />

toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> poder.<br />

Foi o que aconteceu com os Talibaus no Afeganistão, os quais mostraram clara-<br />

mente até onde o islamismo político poderá ir se a ocasião for ofereci<strong>da</strong> aos integristas<br />

religiosos muçulmanos de porem em prática as suas ideias.<br />

Há alguns anos o antigo ministro <strong>da</strong> Justica <strong>do</strong> Sudão, Hassan A1-Turabi, deu<br />

uma longa entrevista ao canal televisivo francês TV5 sobre desenvolvimento e<br />

modemi<strong>da</strong>de. O seu discurso era um modelo de inteligência, de serena democra-<br />

tici<strong>da</strong>de e de justeza que entusiasmou muitos telespecta<strong>do</strong>res. Estes não sabiam,<br />

porém, que Hassan Al-Turabi, durante os poucos anos que esteve 110 poder,foi talvez<br />

o ministro que mais mãos man<strong>do</strong>u cortar na história <strong>do</strong> Sudão, geralmente por<br />

pequenos roubos, e é certamente um <strong>do</strong>s políticos mais extremistas <strong>da</strong>quele pais.<br />

Como muitas vezes acontece com os islamitas, os princípios "de fnchndn"que Turabi<br />

proclamou durante a entrevista na<strong>da</strong> tinham a ver com a filosofia integrista que<br />

realmente defendia ...<br />

Esta imagem redutora <strong>do</strong> Islão tem conteú<strong>do</strong>s meto<strong>do</strong>lógicos e epistemológicos<br />

que se diferenciam <strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> modernidnde. Nela o saber islâmico é percebi<strong>do</strong><br />

como um conjunto de <strong>da</strong><strong>do</strong>s externos e absolutos, cujas fontcs são exclusivamente o<br />

Coráo e a Suna toma<strong>do</strong>s "à letra" como se no século VI1 nos encontrássemos.<br />

Esta visão "clássica" não corresponde a uma procura <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>,mas antes<br />

a um processo mecânico para reunir e controlar o que é conheci<strong>do</strong>.<br />

Um autor muçulmano disse que o processo cognitivo islamita é um processo<br />

cognitivo passivo. O saber, acrescentou, não é considera<strong>do</strong> como uma acção activa<br />

para alcancar o desconheci<strong>do</strong>, mas sim uma aquisição passiva <strong>do</strong> saber já estabeleci<strong>do</strong>.<br />

Assim, o saber religioso é, por um la<strong>do</strong>, a razão exegética que subestima o raciocínio<br />

independente e crítico para se tornar ela própria um saber autista incontesta<strong>do</strong>; e,<br />

por outro la<strong>do</strong>, é um saber cíclico, por assim dizer, que funciona num circuito fecha<strong>do</strong><br />

onde a legitimacão se passa no interior <strong>do</strong> próprio paradigma.<br />

Isto traduz de certo mo<strong>do</strong> uma auto-suficiência epistemológica que consiste em<br />

contentar-se de um conjunto axiomático de postula<strong>do</strong>s que só precisam de justificação<br />

na "fé", o que impede a sua inter-relação e diálogo com disciplinas científicas,<br />

bastan<strong>do</strong>-se a si própria.<br />

Olivier Roy notou que o letra<strong>do</strong> islâmico (em particular no caso <strong>do</strong> islâmico<br />

radical ou islnrnitn como acima ficou defini<strong>do</strong>) elimina a questão <strong>do</strong> laicismo como<br />

irrelevante. Para ele o paradigma que defende é um paradigma irredutivelmente<br />

compartirnenta<strong>do</strong>, quer dizer ancora<strong>do</strong> no transcendente e, desde logo, não crítico.<br />

Este conceito de "nio crítico" é importante porque admite sem hesitação a possibili<strong>da</strong>de


prática de recuar 1400 anos na história, impon<strong>do</strong> de novo o Califa<strong>do</strong> e o regresso às<br />

práticas de uma era definitivamente obsoleta e que não se pode repetir, e negan<strong>do</strong>,<br />

enfim, qualquer valor ao pensamento livre e racionalista sem os quais a ciência e a<br />

cultura estiolariam irremediavelmente.<br />

Arelação com o passa<strong>do</strong> é pois uma relação fun<strong>da</strong><strong>do</strong>ra para o islamismo radical.<br />

A tradição determina o presente e ignora o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> futuro. O futuro é apenas a<br />

ressuscitação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Mesmo os avanços <strong>da</strong> ciência, cuja evidência concreta é<br />

difícil recusar, são, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, vistos apenas como a confirmação <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>gmas sagra<strong>do</strong>s ou pura e simplesmente ignora<strong>do</strong>s, como o físico paquistanês Pervez<br />

Hoodbhoy revelou ao denunciar professores de universi<strong>da</strong>des paquistanesas que<br />

ain<strong>da</strong> ensinavam (em 1991) a teoria geocêntrica como ver<strong>da</strong>deira e negavam a teoria<br />

heliocêntrica como contrária às escrituras sagra<strong>da</strong>s 48...<br />

Esta postura está no ceme <strong>do</strong> pensamento islamita. Para os islamitas a teologia,<br />

a ética e a lei islâmica (Chária) derivam directamente desta maneira "tradicionalista"<br />

de ver as coisas e a vi<strong>da</strong> e a que o indivíduo está "naturalmente" submeti<strong>do</strong>, na<br />

medi<strong>da</strong> em que o Islão não c<strong>ontem</strong>pla a valorização <strong>do</strong> indivíduo mas impõe a sua<br />

sujeição em proveito de um to<strong>do</strong> que lhe é exterior. O indivíduo não é um fim, mas<br />

tão só um meio para a salvaguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> fé através <strong>da</strong> Umma (comuni<strong>da</strong>de).<br />

Essa <strong>do</strong>utrina dá lugar a um tipo de "rncionnlidnde" exterior à racionali<strong>da</strong>de<br />

individual. O indivíduo não é o ver<strong>da</strong>deiro actor <strong>da</strong> história. Tem apenas um papel<br />

de segun<strong>do</strong> plano nessa história. A sua acção é, portanto, determina<strong>da</strong> por uma<br />

ver<strong>da</strong>de transcendental que o ultrapassa. Nessas condições, o "homem ideal" a que<br />

chamam por vezes o "homo islnmiczrs" é o que representa a submissão total a Deus,<br />

aos preceitos sagra<strong>do</strong>s, a uma religiosi<strong>da</strong>de afinal mutila<strong>da</strong>. No centro <strong>do</strong> islamismo<br />

político, onde o político é manipula<strong>do</strong> pelo religioso, está o conceito de jihad ("guerra<br />

santa" ou, mais exactamente, "guerra legal"). Acorrente sufista, desde o século XI, e<br />

certos autores c<strong>ontem</strong>porâneos, procuram alargar o conceito de jihnd, definin<strong>do</strong>-o<br />

antes demais como "umcombate interior contra as paixões e uma etapa indispensável<br />

para aceder à união mística", mas a opinião que prevalece considera em geral a jihnd<br />

como a acção arma<strong>da</strong> que visa o triunfo <strong>da</strong> Islão contra ocidentais "infiéis" e dirigentes<br />

muçulmanos seus alia<strong>do</strong>s49.<br />

Estamos perante uma situação semelhante à que já existiu na Europa ocidental<br />

nos séculos XII-XIII e que o Renascimento quebrou no século XVI. Com uma diferença<br />

fun<strong>da</strong>mental que J.C. Guillebaud relembra: "no catolicismo ou no protestantismo o<br />

recurso à violência era claramente identificável com uma deriva ou como uma trniçtio<br />

temporal. A sua condenação e a sua rejeição não colocam problemas <strong>do</strong>utrinais<br />

particulares (...). Não acontece o mesmo com o Islão que, desde a origem (...) não<br />

manifesta nenhuma reticência em relação à guerra (...). Apacificação <strong>do</strong> termo jihnde


a aceitação pelo Islão <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> laicismo são, por conseguinte, problemáticas, o<br />

que não quer dizer inconcebíveis a prazo"j0.<br />

O desenvolvimento (distinto <strong>do</strong> "crescimento") aponta em linhas gerais para o<br />

progresso <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des em termos de liber<strong>da</strong>de, de democracia e de bem-estar. A<br />

sua realização exige portanto a conjugação no tempo de diversos vectores, sobretu<strong>do</strong><br />

no médio e longo prazos, para responder às necessi<strong>da</strong>des e meios <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des.<br />

Embora os seus resulta<strong>do</strong>s não dêem à parti<strong>da</strong> lugar a certezas absolutas nem<br />

impliquem nenhum determinismo, são esperáveis melhorias sucessivas nos diferentes<br />

planos de activi<strong>da</strong>de e na vi<strong>da</strong> social, política, económica, científica e cultural.<br />

Mas o desenvolvimento que está na confluência <strong>da</strong>s conquistas obti<strong>da</strong>s nos<br />

últimos <strong>do</strong>is séculos pelo menos, não é separável nem <strong>da</strong> modemi<strong>da</strong>de nem <strong>do</strong><br />

racionalismo. Nenhum <strong>do</strong>s termos desta trilogia pode ser subverti<strong>do</strong> por qualquer<br />

forma de irracionali<strong>da</strong>de que não permita um pensamento sistémico, tanto teórico<br />

como experimental, onde a liber<strong>da</strong>de de pensar e agir seja salvaguar<strong>da</strong><strong>da</strong>. O misticismo,<br />

a metafísica e outras formas de expressão têm o seu lugar no cognoscível e<br />

podem até desempenhar um papel positivo em determina<strong>do</strong>s sectores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas<br />

não podem subordinar aquela trilogia aos seus próprios critérios de apreensão <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> sob pena <strong>do</strong> progresso <strong>da</strong>s nações se imobilizar ou regredir.<br />

Há autores que contestam estes conceitos, optan<strong>do</strong> por uma postura relativista<br />

segun<strong>do</strong> a qual o seu significa<strong>do</strong> e alcance é variável segun<strong>do</strong> as culturas e as circunstâncias.<br />

Ao utilizar o padrão ocidental para a definição aparentemente unívoca de<br />

desenvolvimento, de moderni<strong>da</strong>de ou de racionali<strong>da</strong>de, incorre-se numa prática<br />

etnocêntrica de "imperialismo" cultural que desrespeita e falseia a reali<strong>da</strong>de<strong>do</strong>s países<br />

<strong>do</strong> "Terceiro Mun<strong>do</strong>". O argumento relativista é conheci<strong>do</strong> e na<strong>da</strong> impede que, por<br />

hipótese, o admitamos até certo ponto. Com efeito, não é naturalmente impossível<br />

que as diversas culturas e/ou civilizações, que têm necessariamente o seu génio<br />

próprio, consigam num futuro mais ou menos longínquo formas de desenvolvimento<br />

e moderni<strong>da</strong>de que, mesmo diferentes <strong>da</strong>s ocidentais, consigam satisfazer os requisitos<br />

<strong>do</strong> que se define como "progresso", seja ele no ocidente ou em qualquer outra região<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

É uma hipótese logicamente verosímil, independentemente de se saber se se<br />

realizará e quan<strong>do</strong>. Já vimos que as diferenças entre os povos não podem ser feitas<br />

em termos de "raças" superiores ou inferiores, noções desacredita<strong>da</strong>s e sem qualquer<br />

valor heuristico. As capaci<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s nações dependem essencialmente <strong>da</strong> História e<br />

<strong>da</strong>s condições que esta proporciona à eclosão de novas ideias. Se as condi~ões materiais<br />

estiverem reuni<strong>da</strong>s na<strong>da</strong> obsta a que novos contributos culturais e científicos<br />

emanan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s países <strong>hoje</strong> subdesenvolvi<strong>do</strong>s venham valorizar o património <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de.<br />

=Cf. Gudiebaud 2003, op. cit.: 307-308.


No entanto, e no esta<strong>do</strong> actual <strong>da</strong>s coisas, a trilogia acima referi<strong>da</strong> (desenvolvimento,<br />

moderni<strong>da</strong>de, racionali<strong>da</strong>de) é gmçso mo<strong>do</strong> universal, mesmo que só o seja<br />

provisoriamente. Estamos perante um "sistema mundial hierarquiza<strong>do</strong>", como lhe<br />

chamou Michel Beaud, variável segun<strong>do</strong> as regiões mas comum nas suas caracteristicas<br />

essenciais (moe<strong>da</strong>, merca<strong>do</strong>, lógicas de organização, universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ciência,<br />

etc.), sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o duo capitalismo-socialismo deixou de existir na prática<br />

enquanto modelo que propunha, pelo menos aparentemente, uma alternativa.<br />

Portanto não está à vista nenhuma outra via exequível que dê acesso ao desenvolvimento-moderni<strong>da</strong>de<br />

tal como ficou defini<strong>do</strong>. To<strong>da</strong>s as formas de pensamento e<br />

de acção onde a irracionali<strong>da</strong>de <strong>do</strong>mine conduzirão a um beco sem saí<strong>da</strong> e a novos<br />

sofrimentos para os povos a ela submeti<strong>do</strong>s. Mais uma vez, o exemplo <strong>do</strong> regime <strong>do</strong>s<br />

Talibans no Afeganistão e <strong>da</strong>s suas exacções deve estar presente na memória.<br />

O perigo que espreita a civilização muçulmana e certos países africanos como a<br />

Nigéria5', é a vitória <strong>do</strong> islamismo político que bloqueará as perspectivas de democracia,<br />

de desenvolvimento e de progresso no Médio Oriente, aprofun<strong>da</strong>n<strong>do</strong> uma<br />

tendência regressiva que consagrará por muito tempo a subaltemização científica,<br />

económica e cultural <strong>do</strong>s países dessa região <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

O problema não se resolverá apenas com mais aju<strong>da</strong> financeira internacional,<br />

mas com drásticas reformas internas nesses países, a começar pela retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> aparelho<br />

educativo <strong>da</strong>s mãos <strong>do</strong>s religiosos, pela restauração de ver<strong>da</strong>deiras democracias e<br />

pela aplicação de reformas económicas profun<strong>da</strong>s.<br />

O que dá "grandiosi<strong>da</strong>de à nossa época é o reconhecimento <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, a<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> espírito, o reconhecimento de que o espírito estan<strong>do</strong> em si está<br />

~onsigo"~. O que supõe inter-conectivi<strong>da</strong>de entre individualismo, &reito à critica,<br />

autonomia <strong>do</strong> agir e filosofia idealistas3.<br />

Se tu<strong>do</strong> isso fosse concretiza<strong>do</strong> ou, pelo menos, se os governantes árabes<br />

pudessem aplicar algumas <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s leva<strong>da</strong>s à prática por Mustapha Kemal na<br />

Turquia, no 1' quartel <strong>do</strong> século XX, verificar-se-ia então que os "fanatismos" no<br />

Médio Oriente se desmoronariam como castelos de cartas ...<br />

Bibliografia indicative<br />

AHMED (Akbar) and FORST (Brian), Edited by, After Terror: Promoting Dinlogile Among<br />

Civilizntions, Cambridge, 2005.<br />

BHAGWATI, Jagdish, A Strenm of Win<strong>do</strong>ws, Massachusettes, RIIT Press, 1998<br />

CANTO-SPERBER, Monique, Les règles de ln liberté, Paris, Plon, 2003<br />

Relembram-se as eçcán<strong>da</strong>las recentes que comoveram a opinião mundial sobre a condenação de<br />

rndiieres à morte por lapi<strong>da</strong>ção ...<br />

"Hegel, cita<strong>do</strong> por Habermas 2000, op. cif., 27.<br />

=Cf. Habermas 2000,op. cif.,: 27


RACISMO. ISLAMISMO POLiTlCO E MODERNIDADE<br />

:, .. , .... , ...., .... , .., .. , .. . ... . .. .. . .. .. . ... .. . .. . . ... . .. . . .. ... . .. . .. . .. .. . .. . .. . ..... . ... . . .... . .. . .... . ..... . ... . .. . .. . .. . .. . ... . ... . ... . .. .. ... . . .. . ...... . .. . :<br />

CHARFI, Mohamed, Islnni et liberté - Le ninlentendu Iiistoriqiie, Paris, Albin Michel, 1998.<br />

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Paris, Seuil, 2000<br />

CRAVINHO, João G., Visões <strong>do</strong> iilun<strong>do</strong> -As relnções ititeriincioiinis e o iii~in<strong>do</strong> conteniporn^iieo, Lisboa,<br />

I.C.S., 2002<br />

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ed. 2000<br />

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ZEID, Nasr Abou, Critiqire du discoiirs religieux, Paris, Sindbad, 1999.<br />

i 39


AVISÃO DO OUTRO<br />

OS COLONOS EM ESCRITOS MOÇAMBICANOS<br />

A ESTESIA BANTA NOS CRONISTAS PORTUGUESES<br />

Como provavelmente acontece em to<strong>da</strong> a África de língua banta, em Moçambique<br />

os problemas linguísticos são encara<strong>do</strong>s de uma forma que diria visceral e muito<br />

para além <strong>do</strong>s meios académicos convencionais. Por razões práticas como são a <strong>do</strong><br />

relacionamento pessoal e <strong>do</strong> acesso ao saber mas principalmente por aquilo que a<br />

palavra representa na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Homem e pela categoria que se reveste na sublimação<br />

<strong>da</strong> sua existência. A sacralização <strong>da</strong> palavra inscreve-se no mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> etkos<br />

<strong>do</strong> povo de língua banta. Foi assim que os moçambicanos abor<strong>da</strong>ram de assalto a<br />

leitura e a escrita quan<strong>do</strong> estas lhes foram proporciona<strong>da</strong>s e, uma vez politicamente<br />

independentes, passaram a debater apaixona<strong>da</strong>mente os múltiplos problemas<br />

linguísticos com que se deparam.<br />

Ao fascínio <strong>do</strong> fenómeno limguístico se entregam pois os mo~ambicanos de forma<br />

não vulgar, <strong>do</strong> que me prezo de ser testemunha privilegia<strong>da</strong>. Qual seja a de ter<br />

acompanha<strong>do</strong> de perto não somente a paixão aplica<strong>da</strong> a debates escritos e verbais<br />

como sobretu<strong>do</strong> ter assisti<strong>do</strong> à explosão de milhares de neoescreventes em transe de<br />

se entregarem tão iniciática quão dramática e entusiasticamente a grafia, nem sequer<br />

na língua materna, outros sim na língua <strong>do</strong> Próspero propicia<strong>do</strong>r <strong>da</strong> nova forma de<br />

expressão.<br />

Aquilo a que me refiro passou-se nos anos sessenta <strong>do</strong> século XX. Nesse momento<br />

em que as tensões sociais resultantes <strong>da</strong> circunstância colonial tinham atingi<strong>do</strong> o<br />

ponto de ruptura, iniciou-se na ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Beira a publicação <strong>do</strong> heb<strong>do</strong>madário Voz<br />

Africnnn que despertou uma atenção inusita<strong>da</strong> entre os moçambicanos. Semana a<br />

semana, a re<strong>da</strong>cção era invadi<strong>da</strong> por uma correspondência de tal maneiranumerosa<br />

que o jornal lhe passou a dedicar duas páginas de ca<strong>da</strong> edição sem, de maneira<br />

nenhuma, mesmo assim, poder atender à totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mensagens. Mas se a<br />

quanti<strong>da</strong>de foi impressionante, o teor não o foi menos. Por muitas e varia<strong>da</strong>s razões.<br />

Nos escritos desnu<strong>da</strong>vam-se aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> africana em fase de transição profun<strong>da</strong>,<br />

portanto, de crise. Os subscritores denunciavam socie<strong>da</strong>des e pessoas em conflitos<br />

permanentes e totais: com os indivíduos e com as estruturas. Por sua vez a originali-<br />

Cenko de Estu<strong>do</strong>s Africanos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>.


<strong>da</strong>de <strong>da</strong> expressão não somente a partir <strong>do</strong> tratamento de uma nova língua ain<strong>da</strong><br />

não assimila<strong>da</strong> e logo recria<strong>da</strong>. Especialmente surpreendentes tornam-se os contornos<br />

estéticos desse tratamento iniciático, o desenho impressionista tanto de manifestações<br />

comportamentais como sentimentais e em que o caricatura1 vai de par com o trágico<br />

e com o cómico. Também a sereni<strong>da</strong>de face à tragédia. Não menos surpreendente é a<br />

capaci<strong>da</strong>de manifesta<strong>da</strong> de administração de uma grande diversi<strong>da</strong>de de temas.<br />

Por detrás de simplici<strong>da</strong>de, talvez mesino de uma infantili<strong>da</strong>de aparente, o leitor<br />

atento ao meio social e à mentali<strong>da</strong>de envolventes descobre no conjunto <strong>do</strong>s escritos<br />

uma riqueza insuspeita<strong>da</strong> tanto pela reali<strong>da</strong>de ontológica que encerra como pela<br />

morfologia de que se reveste.<br />

Deste acervo <strong>do</strong>cumental foi publica<strong>da</strong> uma antologia1.<br />

A totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cartas é <strong>da</strong> ordem <strong>do</strong>s milhares, procedentes <strong>do</strong>s pontos mais<br />

diferencia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país. Os subscritores, na sua generali<strong>da</strong>de, dispõem de uma escolari-<br />

<strong>da</strong>de sudimentar que nunca ultrapassa o ensino primário elementar. Podemos dizer,<br />

afoitamente, que é a voz <strong>do</strong> povo. Um povo subjuga<strong>do</strong>, mas um povo relativamente<br />

ao qual os acontecimentos c<strong>ontem</strong>porâneos denunciaram uma conscientização política<br />

de que esta correspondência é um prenúncio.<br />

Os enuncia<strong>do</strong>s sob que foram agrupa<strong>da</strong>s as cartas publica<strong>da</strong>s denunciam o ca-<br />

rácter sociológico <strong>do</strong>minante nas preocupações <strong>do</strong>s subscritores:<br />

1 Das relações clânicas para a amizade individual<br />

2 Um mun<strong>do</strong> afectivo diferente<br />

3 De uma moral tribal para uma outra moral<br />

4 O clã não acabou mas já aí está a familia<br />

5 De uma socie<strong>da</strong>de comunitária para as empresas de finali<strong>da</strong>de lucrativa<br />

6 Em pátria ocupa<strong>da</strong><br />

7 A vi<strong>da</strong> na tragédia <strong>do</strong> dia a dia<br />

Ao longo <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> <strong>do</strong>cumentação patenteia-se o impacto <strong>do</strong> encontro de culturas<br />

e de conflitos inerentes. Podemesmo dizer-se que temos por diante uma frente conflituosa<br />

intensa e extensa que atinge os indivíduos, as famílias, as formações sociais em crise de<br />

mutação profun<strong>da</strong> e inevitavelmente as mentali<strong>da</strong>des. Conflitos físicos, sociais e mentais.<br />

Deste panorama conflituoso emerge não só a visão de um outro, bem demarca<strong>do</strong>, mas<br />

também a manifestação de uma consciência social e política.<br />

Em meio social como aquele em que se desenrolou o processo em causa não<br />

podia deixar de estar presente a visão <strong>do</strong> outro. Naquilo que a tal respeito consta <strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>cumentação privilegiaria <strong>do</strong>is sujeitos: o colono (no senti<strong>do</strong> de coloniza<strong>do</strong>r) e os<br />

seus colaboracionistas (bem personifica<strong>do</strong>s no sipni2). Dois protagonistas de uma cena<br />

' Moçambique pelo seu Povo-Cartas i «Voz Africana*, selecção, prefácio e notas de José Capela,<br />

<strong>Porto</strong>, 1971.<br />

2S@j - designação importa<strong>da</strong> <strong>da</strong> India e aplica<strong>da</strong> ao aju<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> policia. 0s constituíam os<br />

Corpos policiais no interior <strong>da</strong> colónia.


OSCOLONOSEMESCRTIOS MOÇAMBICANOSAESTESIABANTANOSCRONISTASPORTUGUESES<br />

:. . . ... . . .. . . , . . ., ....... , . , .. , . . .. . .. . .. . .. . .. . ... . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . ... . .. . .. .. . ... . ... . .. . ... . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .... .. . .. . . ..... ........ <<br />

i 43<br />

sobre os quais recai a denúncia <strong>da</strong>s mal-querenças consabi<strong>da</strong>s devi<strong>da</strong>s ao sistema.<br />

No contexto de então em que coisas tão simples como a denúncia de abusos e<br />

descomiderações <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des policiais para com ci<strong>da</strong>dãos se podia transformar<br />

em crime, fazê-lo requeria astúcias insuspeita<strong>da</strong>s. É o caso <strong>da</strong> carta seguinte de um<br />

residente de Iapala e m que para denunciar as atitudes <strong>do</strong>s sipais se começa por elogiar<br />

o comportamerito <strong>do</strong> administrata<strong>do</strong>r3 aparentemente iludin<strong>do</strong> as suas responsabili-<br />

<strong>da</strong>des nas situações descritas:<br />

Sio poticns ns pnlnvrns qtie me levnrn~~t n escrever pnrn o nosso jornnl Voz Africnnn. É o<br />

segtliitte ci em Iapnln. É uma ferrn de muita geitte. Tentos o iiosso nd~izinistrn<strong>do</strong>r novo é milito<br />

bom. E nté diz to<strong>do</strong>s vnmos nndnr cnlçn<strong>do</strong>s. E quase to<strong>do</strong>s mesnio meniiin e ntenino encoittrn-<br />

-se cnlçn<strong>do</strong>. E nssim to<strong>do</strong>s qtian<strong>do</strong> vnmos assistir no contboio de 2'. feira e 4". e Gn. feira e<br />

siíbn<strong>do</strong>fcnmos nruito mereci<strong>do</strong>s. Mas o que nos faz nldrnbnr é tini sipniqtie nós tentos chamn<strong>do</strong><br />

Bonveizttirn. Este sipni nn stia qtinlidnde nio esti bom. Ele qunn<strong>do</strong> uni pnrn forn em serviço,<br />

quan<strong>do</strong> eizcontrn os ~zossos pnis em cnsn deles ele diz o Sr. Administra<strong>do</strong>r man<strong>do</strong>u-me gnlinlins.<br />

E sent os <strong>do</strong>nos <strong>da</strong>rem n resposta logo ntnndn o polícia dele persegtiir ns gnlinhns sem<br />

conhecimento <strong>da</strong> itosso bom administra<strong>do</strong>r. Isto Sr. Director nchn que estb jtisto? E o seli<br />

nmigo é tlm clinnm<strong>do</strong> Mndeirn. Este Mndeirn nio podin fnzer essas coisas. E até quan<strong>do</strong> srio<br />

ninndn<strong>do</strong>s n fazer outro serviço nn povonçrio fnzem o qtie qtierem. Eu vi tim dia o Mndeirnfoi<br />

mnndn<strong>do</strong> pnrn procrirnr quem iiio tinhn snpnto dtirnizte o comboio. E quait<strong>do</strong> chegoti li nRo<br />

npnnhou neizht~vn e ele foi n prender os qtre vinham no comboio e que iam tzn carreira no dia<br />

segtiinte. Efiqtiei muito admira<strong>do</strong> elen prenderporqtie nrio tinham guia de Inpnln4. Enquanto<br />

o Madeira nio tinhn na<strong>da</strong> de prender gente que pnssn sem fnzer mnl nenhtrnt. E nindn estes<br />

estnvnm calça<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s. E até to<strong>do</strong>sjicnrnm ndmirn<strong>do</strong>s por qtie é que aquela gente iam presos<br />

sem motivo.<br />

Com efeito o administra<strong>do</strong>r encarnava a totali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> demoníaco <strong>do</strong> sistema. É<br />

o que expressa um outro leitor:<br />

O caso qtie me levou n escrever é o seguinte:<br />

Desde a »tinha idnde de ttso <strong>da</strong> rnziio recebemos nttritos Administrn<strong>do</strong>res no nosso posto<br />

<strong>do</strong> Gilé mns ntincn vi trm ndministrn<strong>do</strong>r como este qtie em vez defnzer o bem dn NnçZo traz n<br />

ntisérin de fome no povo <strong>do</strong> Gilé por segtiinte em Setembro de 1965 nté ?i <strong>da</strong>ta de <strong>hoje</strong> de 1966<br />

os homens terminar <strong>do</strong> serviço e estnr no menos 2 otr 3 meses n fnzer R ntachnmbn5 para os sens<br />

strstentos. Obrign que homent tem qtie estnr to<strong>do</strong> o tempo n trnbnlhnr no Gt~niésem terminnr<br />

os seus 6 meses pnrn fnzer o stin ninchnmbn <strong>do</strong> seti stistetito n mirlher e osfilhosficnm ent cnsn<br />

n sofrer porque nio têni n qtient lhes sustentnr.<br />

Administra<strong>do</strong>r - hincionário colonial subordina<strong>do</strong> ao governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> distrito e que exercia o poder<br />

político, judicial, administrativo epolicialna área desiea<strong>da</strong> por «circunscrição».<br />

'Os «indígenas» não podiam circular fora <strong>da</strong> sua circunscrição semguia passa<strong>da</strong> pelaadministração<br />

respectiva.<br />

A legislaqão que regulava o trabaiho compeli<strong>do</strong> impunha uma interrup~ão de seis ao fim de <strong>do</strong>ze<br />

meses depreçtação, o que nemsempre era respeita<strong>do</strong>.


O homem que devia fazer grande mnchnnzbn de sicsteiztos depois de ser termiiin<strong>do</strong> obrign<br />

voltar pnrn Guncè sem trntnr izndn de mnchnnzbn nenz dn pnlhotn.<br />

Estoic n ver que hb-de suceder como sucedetc nos nnos pnssn<strong>do</strong>ç porque o honzem nfricnno<br />

gernlnzeizte <strong>da</strong> minhn terra niio hnbiticnnzos viver por meio de comprns nzns sinl dn própria<br />

mnchnmbn.<br />

Além disso temos unzn mina Morricn os homeiis que lh trnbnlhnm-se por dificicldnde<br />

ntcsentnr 1 oi~ 2 dins seiviço qimn<strong>do</strong> ele lb clzegnr sío qiceixn<strong>do</strong>s e di pnlmntórins e ptcrrndns e<br />

obrign trnbnlhnl.3 senznnns degrnçn e ele é qttegnnhn nqicele dinheiro. Mnizdn polícins ngnrrnr<br />

ns gnlinhns, 1111 povonçiio sein conzprnr e os <strong>do</strong>iiosficnin n clzornr e o povo encheu de tristeza<br />

sobre »zzritns oirtrns injirçtiçns que ele faz e esti cheios cins promessas e festas que hnverío<br />

qzcniz<strong>do</strong> ele for transferi<strong>do</strong> esse ndnzinisfrn<strong>do</strong>r é mnic nssim é bom? Seizhor Director.<br />

Dir-se-á que moçambicanos houve, muito antes, que puderam comunicar com o<br />

grande público, inclusive através <strong>da</strong> imprensa. E que o fizeram de uma maneira supe-<br />

rior6.<br />

O que é inédito, neste caso, é que se pode falar de um fenómeno de massas em<br />

que umnúmero alarga<strong>do</strong> de moçambicanos (moçambicanos nvnlzt IR lettre ten<strong>do</strong> como<br />

traço de união a Língua Portuguesa? - moçambianos com a consciência de moçam-<br />

bicanos?) se abalançou a comirnicar com o público de uma forma massiva, na língua<br />

em cuja escrita se iniciava.<br />

Pelo que tenho vin<strong>do</strong> a afirmar não se infira que remeto a valoração <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cu-<br />

mentos referi<strong>do</strong>s para a exclusivi<strong>da</strong>de sociológica. Não somente a psicolinguística e<br />

a sociolinguística como a linguística em geral têm aqui um enorme campo de<br />

investigação.<br />

Relativamente aos textos em causa, para além <strong>do</strong>s aspectos evidencia<strong>do</strong>res de<br />

uma visão <strong>do</strong> outro que se não remete ao simplismo <strong>da</strong> valoração comportamental,<br />

não posso deixar de pôr em destaque o eleva<strong>do</strong> grau <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de com que inicia<strong>do</strong>s<br />

de fresca <strong>da</strong>ta utilizam a Língua Portuguesa dela extrain<strong>do</strong> desenhos de esta<strong>do</strong>s de<br />

espírito a que não são alheios a ironia profun<strong>da</strong> e às vezes mesmo a teatrali<strong>da</strong>de<br />

envolvente. Na escrita propriamente dita salientaria a alegria <strong>do</strong> exercício. De meio<br />

de expressão e de comunicação a escrita transporta-se assim a uma categoria em que<br />

O lúdico e o sagra<strong>do</strong> vão de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s. É a pessoa que se realiza, superan<strong>do</strong>-se.<br />

Que a temática se revista pre<strong>do</strong>minantemente de cariz sociológico leva-nos isso<br />

a acreditar que estamos perante uma socie<strong>da</strong>de cujos indivíduos não foram ain<strong>da</strong><br />

mentalmente e totalmente subverti<strong>do</strong>s pelo liberalismo economicamente <strong>do</strong>minante.<br />

(Aliás liberalismo coxo <strong>do</strong> qual apenas eram visíveis os piores aspectos <strong>do</strong> capitalismo).<br />

Mas a língua se está então a ser factor de alguma aproxima~ão <strong>da</strong> classe <strong>do</strong>minante e<br />

se por isso mesmo é tão entusiasticamente cultiva<strong>da</strong>, tal aproximação não vai no<br />

Desde o inicio <strong>da</strong> século XX tinha havi<strong>do</strong>, em LourenGo Marques, capital <strong>da</strong> colónia, uma imprensa<br />

de africanos, nomea<strong>da</strong>mente os jornais. "O Africano" e "O Bra<strong>do</strong> Ah.icana". Essa imprema era redigi<strong>da</strong><br />

por africanos ilustra<strong>da</strong>s e o seu público restringia-se a uma elite africana.


OS COLONOS EM ESCRIIOS MOÇAMBICANOS A ESTESIA BANTA NOS CRONISTAS PORTUGUESES<br />

:. . .. . .... .. . .. . ... . . ... . .... . ..... . .. . .. .... . ..... . ... .. . .. ... . .. .. . ... .. . .. . .. . .. . .. . . .. . . . .. .. . .... . .... . ... . .... . ... . ... . ..... . .. .. . . ... . .. . .... . .. ... . . . . . ... . .. . .. . .<br />

i 45<br />

senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> integração para o qual não existiam, quaisquer perspectivas. O distancia-<br />

mento não é explicita<strong>do</strong> porque a aproximação está excluí<strong>da</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>pensável.<br />

Ao referir-se o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s brancos esse é um outro mun<strong>do</strong> que, sen<strong>do</strong> embora muito<br />

real e perfilan<strong>do</strong>-se à vista desarma<strong>da</strong>, é um mun<strong>do</strong> apenas imaginável nos sonhos.<br />

Um subscritor, de 27 anos de i<strong>da</strong>de, residente no Marromeu, utiliza mesmo a<br />

imagem <strong>do</strong> «rádio de sonhos,, para <strong>da</strong>r corpo a um diálogo de colonos. É, de facto, o<br />

trecho de uma conversa de colonos, de um realismo indiscutível. Mas que ele, autor,<br />

apenas sonhou:<br />

O que me leuotr R escrever esta mi~zhn carta é o segirázte. No dia 29-6-65 npnnhei no meu<br />

ridio de sonhos as fnlns <strong>do</strong> s~zr. José Mnrin Soares de Cnstro fnlnn<strong>do</strong> como seu nmigo M.S.<br />

Rnmos. Sobre respeito dn Africa.<br />

Dizin as seguintes palnurns, que ngora consegui nrrnnjnr um emprego dn Sena Shugar<br />

de Mnrromeu, onde ganho trmn médin de 6 500$00 por mês, niio pago igim nem Itrz nem<br />

ren<strong>da</strong> de cnsn, e n cnsn é todn mobilndn, só com isto poupo algtlmn coisn, comer tenho-me irm<br />

preto que me faça comi<strong>da</strong> e laun a rotrpn, e nssim uotr an<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, o pior é de trnbalhnr de noite;<br />

e nq~rin noite é mititofrin por cntrsn de ~zeuoeiro. No local onde estou é no meio <strong>do</strong> ninto iziio hi<br />

distrncçóes ne~zhtlnms a ci<strong>da</strong>de mnis pertoficn n 400 qzrilómetros de distfincin, como vê aqui<br />

vivemos como bichos. Agorn quen fibricn começorr n trnlinlhnr temos 16 000pretosn trnbnlknr;<br />

só a mim cnlhotr 63 como uêse eles quiserem crí uni o rapnz fnzer tijolo no jardim rins tabirletas;<br />

a companhia deu-nos uma pistoln mas qtreadinntn timn pistola contra to<strong>do</strong>s negros, eles comigo<br />

têm potrcn sorte mal eles começnm R refilnr ji é a npnnhnr um murro lios qtreixos que nem sn-<br />

bem aondp uno pnrnr r assim P que eles nos temem, coso contririo ern pior, só de pnncndns é<br />

queeles an<strong>da</strong>m direitos, eaqtreles qtre mais bntemos sio os melhores, nos dias segtrintes trnzem<br />

umns capoeiras de galinhas nos nossos quintais, e é isso que nós queremos.<br />

Ao invés <strong>do</strong>s protagonistas <strong>da</strong> cena que não ultrapassam a mesquinhez <strong>do</strong><br />

quotidiano o autor tem a visão alarga<strong>da</strong> <strong>da</strong> África. É to<strong>do</strong> um conceito, diria mesmo<br />

é uma cosmogonia. Quem diria melhor? Mais sucinta e acusa<strong>do</strong>ramente?: Sobre respeito<br />

de Áfricn! Dir-se-á que não é intencional. É um facto que consta <strong>do</strong> texto. Digamos<br />

que se trata de uma intencionali<strong>da</strong>de intuí<strong>da</strong>. O autor <strong>da</strong> carta enquadra os interlo-<br />

cutores, pequenos colonos na sua visão imediatista <strong>do</strong> quotidiano. O que levo à conta<br />

de uma profun<strong>da</strong> ironia. Ironia amarga que reaparece no hal <strong>do</strong> texto.<br />

Não está, por igual, despi<strong>da</strong> de amargura subjacente a carta que irradian<strong>do</strong> um<br />

profun<strong>do</strong> humor e também de uma ironia sem limites se reveste de teatrali<strong>da</strong>de<br />

cómica:<br />

O qtre etr estou n lamentar é o segtriizte os bêba<strong>do</strong>s de Nnmpuln precisnm de ser defendi<strong>do</strong>s,<br />

um dinjiri etr beber no bar <strong>do</strong> Senhor Pinto Soares e otrtro metr amigo que estnvn senta<strong>do</strong> no<br />

ntetr la<strong>do</strong> levou bofeta<strong>da</strong>s ponta pés socos e mnis muitas coisns qtre si0 utiliza<strong>do</strong>s para aleijar<br />

uma pessoa ou para castigar trma pesson que merece castigo.


Eu como bêba<strong>do</strong> npelo pnra nrrtoridndes competentes para ver esse caso de nós os bêba<strong>do</strong>s<br />

(NAWAJUS)'para ser mos protegi<strong>do</strong>s, porqtre o Senhor Pinto Soares precisa <strong>do</strong> dinheiro e o<br />

liêbn<strong>do</strong> precisa <strong>do</strong> vinho, Pinto Soares é irnm pessoa educa<strong>da</strong> e o bêba<strong>do</strong> nio é.<br />

Eir sei mirito bem qtre nós nlcoólicos qtran<strong>do</strong> estnmos grossos fnlnmos mal e sem respeito,<br />

mas mesmo assivi podia haver protecçio nos bnres de Naniprrla porqtre eu vi mlritos brancos<br />

nos bares próprios <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de bebem eficam grossos e até outros rectrsnm de pagarem, mas ~iio<br />

sio mal trata<strong>do</strong>s.<br />

E porque nós no bar <strong>do</strong> senhor Pinto Soares somos nial trata<strong>do</strong>s, se etr nio votr beber no<br />

hotel Portugnl éporqtre tenho receio 16 também vai o mert pntrio tomar cnféngorn ezr mio posso<br />

sentar junto com o meir pntrio, porqtre ntnnnhi se etr pedir aumento patrzo uni dizer qne o<br />

dinheiro nio te chega mas tens pnrn gastar rio vinho é por essa raznõ que eu gosto beber no<br />

senhor Pinto Soares e no senhor Martins, porqtre 16 tenho os nieus nmigos <strong>da</strong> minha classe etr<br />

podia ir tio hotel Portugal onde podia ser respeita<strong>do</strong> mas as rnzões qtre me impedem si0 esse<br />

que eu escrevi etn cima desta carta, porque sei que em terrns portngiresns nRo há distinçio só<br />

o senhor Pinto Soares é qtre quer semear ódio entre o portirgtrês e eiegro agradeço mirito e peço<br />

2s nzrtorihdes pnra defender os bêba<strong>do</strong>s negros de Nnnipuln qtre estio desprotegi<strong>do</strong>s, além de<br />

gnstarem o seu miserável snlário por cima leva milito de Mzrctmhas. Pinto Soares, estamos no<br />

séctrlo vinte o senhor Pinto Soares tenha paciência porque diz uma história <strong>do</strong>s nossos<br />

antepassa<strong>do</strong>s que quer chuva tem que agiientar lama, senhor Soares quer dinheiro elztio qiie<br />

attrre os bêba<strong>do</strong>s se estou a mentir qtre irm <strong>do</strong>s leitores de Namptrln desminta o que etr escrevi.<br />

Sou eu um <strong>do</strong>s bêba<strong>do</strong>s, LK., padeiro liesta ci<strong>da</strong>de de Naniptrla.<br />

O efeito hilariante desta arquiteckra de humor ameaça distrair-nos <strong>do</strong> significa<strong>do</strong><br />

mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto onde ironicamente se vai afirman<strong>do</strong> aquilo que se quer negar<br />

como é o caso <strong>da</strong> inexistência de racismo. A mestria em criar um clima de à - vontade<br />

para denunciar as projecções <strong>do</strong> racismo no quotidiano <strong>do</strong> então oficialmente indígena<br />

são insuperáveis. Aíestá o outro: o patrão, o taberneiro, o comparsa <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong> quesó<br />

o não é porque até aos bêba<strong>do</strong>s os separa a cor <strong>da</strong> pele, a diferença de classe.<br />

Onde esta escrita abun<strong>da</strong> é na denúncia <strong>da</strong> exploração própria <strong>do</strong> sistema então<br />

em vigor. Somos postos diante de to<strong>do</strong> um panorama de atropelo aos mais elementares<br />

princípios de justiça social. As denúncias de uma tal situacão c<strong>ontem</strong>plam as misérias<br />

mais comezinhas e to<strong>do</strong> um sistema. Quan<strong>do</strong> falamos <strong>da</strong> visão <strong>do</strong> outro, temo que<br />

nos restriijamos a essa dicotomia folclórica <strong>do</strong> preto vs. branco, <strong>do</strong> indígenavs. exótico.<br />

Os escreventes de que aqui curo vão mais longe: enfrentam sem ambigui<strong>da</strong>des o<br />

sistema. Haviam si<strong>do</strong> subtraí<strong>do</strong>s a uma economia comunitária que se lhes não pro-<br />

porcionara nem a abundância nem sequer a resolução <strong>do</strong>s problemas <strong>da</strong> subsistência,<br />

apesar de tu<strong>do</strong> não os vexava com to<strong>da</strong> a espécie de submissões. Ilusoriamente intro-<br />

'Na&&- termo forma<strong>do</strong> a parai de caju, fruto <strong>do</strong> cajueiro, de cujo sumo fermenta<strong>do</strong> se produz<br />

uma bebi<strong>da</strong> muito aprecia<strong>da</strong>.<br />

'Mtic~~nhn -homem branco.


OSCOLONOSEMESCRIIOSMOÇAMBICANOSAESTESIABAMANOSCRONISTASPORTUGUESES<br />

: , .. , .. , .... .. .. . .. . .. . .. . .. . .. , . , .. . , . .. , . .. , . . ... . .... . .... . ... . .. . , .. , . ... , . ... . .. . .... . ... . .. . . .. . .. . . .. . ... . . ... . .... . ... . .. . .. . .. .. . .. .. . . . .... . . . .. .. . . . . . . i 47<br />

duzi<strong>do</strong>s na economia de lucro <strong>da</strong>í não retiravam mais que uma exploração directa e<br />

vexatória <strong>do</strong> seu trabalho. O caso mais flagrante era o <strong>do</strong> algodão. As cartas que a<br />

seguir testemunham com o maior realismo alguns <strong>do</strong>s aspectos dessa exploração,<br />

são eluci<strong>da</strong>tivas.<br />

Um agricultor de 24 anos de i<strong>da</strong>de, natural de Demba e residente no posto<br />

administrativo <strong>do</strong> Canxixe:<br />

O motivo porqzre obrigttei-me a escrever esta cnrtn é o segtriizte: Ezr sofr ngricultor de seis<br />

n7ioç. Por innis que e11 tenha seis anos enquanto estou cultivar nlgodiio, este ano de 1964eiiz 10<br />

de Agosto chegotr o nosso mercn<strong>do</strong>. Eil tinha recebi<strong>do</strong> 30 sncos e enchi-os de to1 mo<strong>do</strong> qzre iri~m<br />

mitlher nio consiga transporth-10s senio ftm honze7iz de bicicleta novn, e tío forte ninrcn Cztmber.<br />

Porfim o resrrltn<strong>do</strong> <strong>do</strong>s melrs 30 sncos tiveram com totais de 1083 kgs.. E o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

dinheiro éo seguinte: 3 929$80. É ver<strong>da</strong>de Senhor Director que eu merecia de receber0 dinheiro<br />

deste?! Eles dizem que ca<strong>da</strong> qirilo cusin 3$80 mas etrfiz ns minhas contas iiio deram o resirltn<strong>do</strong><br />

senielhnizte. Assim os pesa<strong>do</strong>res nio é prnticar rozrbos? Se algirém tiver dificrrldndesfazer o<br />

segfrinte: 1083 Kgs. multiplicar por 3$80 qite é de ca<strong>da</strong> qirilo. Estd n ver? Portn~lto, se assim<br />

for pnrn o ano, niio terei uocnçio de cultivar o nlgodiio senío de trnbnlhnr qunlqtier serviço qite<br />

iiZo se* <strong>do</strong> nlgodio. Bem sei que etr sol1 bruto. Mas nio sotr tZo brztto <strong>da</strong> primeira niarcfl coino<br />

os outros são. Assim terminan<strong>do</strong> os meus reca<strong>do</strong>s que nn<strong>da</strong> mais n dizer.<br />

Outro escrito que vai no mesmo senti<strong>do</strong> é o de um correspondente natural <strong>do</strong><br />

Gilé, residente no Alto Ligonha, de 31 anos de i<strong>da</strong>de:<br />

Senhor Director ji é n minhn primeira vez de escreuer irinn carta por niio ter defnlnr. Por<br />

intermédio que nze levou de man<strong>da</strong>r esta cnrtn é o seguinte. CR no posto ndministrntivo de Gilé<br />

aconteceu zrmn grande coisa de nlgodio um eirropetr de nome Albilqtrerqtre que é cnpntnz de<br />

algodiio rozrbotr mzrito dinheiro: qzran<strong>do</strong> zrnm pessoaficar com nove sacos gnnhnunse 650$00<br />

irinn vergonha. Mas o senhor Mntetrs que é um capataz de ozrtro sítio desta locnlidnde <strong>do</strong> Gilé<br />

com 9 sncos era 1 300$00 porqire ele sabe que cultiunr é mtrito difícil. Porque se fosse fbcil<br />

ctrltiunr ele teria grnnde mnclinmbn de nlgodio. Essa porcarin de nio venderem bem o nlgodio<br />

começou este ano porque Antigo que eles pnssnvam nos merca<strong>do</strong>s com o senhor Chefe de Posto<br />

nio ncontecin nndn. Vedes amigos leitores os ngricultores <strong>do</strong> Mactrla-Mnna qiie resoluinm<br />

para pergzrntnr o senhor chefe deposto,gnnhnrnm mzritos dinheiros só ns intrlheresque tinhnm<br />

começadns nio ganharam na<strong>da</strong>.<br />

No interior <strong>da</strong>s empresas as coisas não se passavam melhor. Os testemunhos<br />

abun<strong>da</strong>m. Um correspondente <strong>do</strong> Marromeu conta o que se passa na Sena Sugar<br />

Estates:<br />

Venho contar pnrn o nosço jornal como somos nlimenta<strong>do</strong>s nesta Companhin, Senn Szrgnr<br />

Estntes Limited desta locali<strong>da</strong>de, pnra nós qiie somos emprega<strong>do</strong>s especinlizn<strong>do</strong>s qiie tem direito<br />

fl rnçio. Senhor Director receben<strong>do</strong> somente os 7 litros de nrroz por semana sem cnril; isto diz<br />

com direito com alimentnçio? Isto é Irma rzlinn para to<strong>do</strong>s os emprega<strong>do</strong>s procedi<strong>do</strong> este


direito, porque ningzrénz que pode ngtieittnr conier comi<strong>da</strong> simples çent caril. Estnnzos viver é<br />

porque njudnmos com o nosso dinheiro. Meus cnros leitores hotrve trntnfirma que fornece<br />

igtrnl nssinz como estií <strong>da</strong>r estn Contpnnhin? Ern melhor $e n Compnnhin resolvesse nlgtrnin<br />

coisn sobre este problenzn. Niio ern mnl se fornecesse com bncalhnir como tem dn<strong>do</strong> os<br />

trnbnlhn<strong>do</strong>res. Rogo n V. Excin. pnrn publicar estn cnrtn que é <strong>do</strong> nssuizto <strong>do</strong> nosso sofrimeiito<br />

nestn conformidnde.<br />

O leitor F. Azuara, solteiro, de 18 anos de i<strong>da</strong>de, natural de Miguerene e residente<br />

no posto de Maquivale fala-nos <strong>do</strong> que eram as relações de trabalho:<br />

O motivo qrte nze levn n escrever esta cnrtn é o seguinte. Estive R trnbnlhnr no Rhdio<br />

Qtrelimn~ze deMoçnmbique como soldn<strong>do</strong>r ntimn manhiiezr tive 5$00 no meu bolso e tive fome<br />

pnrn comer qualquer coisn,fni pedir o senhor Simns que é encnrregn<strong>do</strong> desta Companhia qtre<br />

vou comprnr qtrnlqtier coisn nn lojn <strong>do</strong> senhor Mnrtins pnrn mntnbichnr, e ele fez-me negnr etr<br />

fiquei n trnbnlhnr , pnssnit<strong>do</strong> nlgltns minutos vi um cozinheiro dele ir nnqtreln lojn e eu tirei<br />

2$50 que eu tive e deinqtrele cozinheiro pnrn comprnr-me qtrnlquer coisns pnrn conter, qtrnn<strong>do</strong><br />

o senhor encnrregn<strong>do</strong> viti-me n <strong>da</strong>r o dinheiro veio e nrrnncolr na moe<strong>da</strong> e pôs no bolso dele, e<br />

etr calei. E passan<strong>do</strong> 2 mintitos veio irm <strong>do</strong>s meus amigos chnmn<strong>do</strong> Emilio Gabriel, etr pedi-lhe<br />

mziito favor pnrn me comprar e ele nceitou coitadinho o meu nmigo foi comprar 1 piio de 1$00<br />

qfrnn<strong>do</strong> me trouxe, e eu estive n comer nquele pio e qirnn<strong>do</strong> ele me viu começou a instritar-nle,<br />

eetr resolvicobrar os metrs 2$50 qunn<strong>do</strong> lhe cobrei, ele resolveu me despedir <strong>do</strong>serviço. Amigos<br />

leitores, assim é rnzão de despedir um emprega<strong>do</strong>? Fiz mal de ter cobra<strong>do</strong> os metrs 2$50 qtre<br />

levnvn?<br />

Um leitor, solteiro, de 29 anos de i<strong>da</strong>de, natural <strong>do</strong> Búzi e residente em Macuse,<br />

Marrode, contrasta o comportamento <strong>do</strong>s diversos encarrega<strong>do</strong>s <strong>da</strong> companhia onde<br />

trabalha, exaltan<strong>do</strong> a educação de uns e o que considera afalta de educação de outros:<br />

Senhor Director, Hh-de-me desctilpnr por lhe ter rottbn<strong>do</strong> um bocadinho o setr rico tempo.<br />

Estive bastantes nnos R trnbnlhnr nns oficinns de serrnlhnrin dn compnnhin <strong>do</strong> Boror em Mnctise<br />

mas snípor uns desgostos que o encnrregn<strong>do</strong> <strong>da</strong>queln oficina nndn n praticnr. Primeiramente<br />

entrei no serviço com um chefe que se chamavn Polnnií depois de alguns anos foi transferi<strong>do</strong><br />

pnrn trmn otrtrn estnçio e depoisfiquei com o outro chnnm<strong>do</strong> António Rouchi e depois este<br />

despeditr-se <strong>do</strong> serviço efican<strong>do</strong> com o outro chnmn<strong>do</strong>forge Rebelo e este foi também transferi<strong>do</strong><br />

eficou o outro chnmn<strong>do</strong> Branchi e este depois <strong>do</strong> setr tempo peditr trmn licença pnrn ir goznr nn<br />

strn ferrn Nntnl ctijo estes 4 patrões fornm bons pesçonç mns pessoas bem educndns pelos pnis e<br />

pelns strns mzes. E ngorn esth este encnrregn<strong>do</strong> chnmn<strong>do</strong> J.V. e niio se snbe <strong>do</strong>nde n compnnhin<br />

o npnnhou este homem qtre niio tem nbsoltitnmente nenhuma edtrcaçiio e niio se sabe se este<br />

homem tinha pai e mie educa<strong>do</strong>s. Se digo assim éporque niio hh direito que este homem venhn<br />

n fazer uma coisn nos seus inferiores. Se é certo segun<strong>do</strong> como ele diz de que o preto niio vale?<br />

Peço pnra que R V Excin. Sr. Director nos explique.


].S. Fio, casa<strong>do</strong>, de 37 anos de i<strong>da</strong>de, natural <strong>da</strong> circunscrição de Murntpula,<br />

residente emNampula, estabelece o contraste flagrante entre trabalha<strong>do</strong>reseuropeus<br />

e africanos dentro <strong>da</strong> mesma empresa:<br />

Estou-me com muito admira<strong>do</strong> por o caso que eu entrei serviço no dia 3 de Novembro de<br />

1964, com o vencimeilto de 200500. Desde qtre entrei sempre estou meganlinr em to<strong>do</strong>s meses<br />

mnis pnra tratar a minha vi<strong>da</strong> desconsegue, nem tenho sapato nem bicicleta. HR mtritos<br />

emprega<strong>do</strong>s etrropeus qtre entrant serviço mais a ntim atrcís só ele trabalha duraiitehk 6 meses<br />

e contpra o que ele qtrer carro, rcídio, mcíqttiizn de costirrar, casaco, camisa de categoria nus<br />

para mim mesmo assim desconsegue saber porque me trabalha. Etr adiniro porque elr ,tio<br />

tenho na<strong>da</strong> a minhn casa. Ten<strong>do</strong> etr a minha vi<strong>do</strong> não é leva<strong>do</strong> como branco.<br />

Opatético <strong>da</strong> situação <strong>do</strong> desemprega<strong>do</strong> àprocura de trabalho face à displicên-<br />

cia <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>res vai de par com anostalgia <strong>do</strong> órfão sau<strong>do</strong>so <strong>do</strong>s pais perdi<strong>do</strong>s:<br />

O caso que me levotr a escrever esta minhn carta éo segtrinte: Sou o Lucas BentoMirnlides<br />

de 24 anos de i<strong>da</strong>de, cnsa<strong>do</strong>, nattrrnl de Iapaln, baptiza<strong>do</strong> na religiio protestaiite em 7 de<br />

Setentbro de 1966, Rs 15 horas. Encontro-me na plantaçio <strong>do</strong> senhor Eduar<strong>do</strong> Vieira <strong>da</strong> Silva,<br />

Nachiueia como njir<strong>da</strong>nte de escritório. Uma coisa tenho a dizer nos meus qtreri<strong>do</strong>s leitores é<br />

os meus pnis man<strong>da</strong>r-me na escola em 1950, com mal sorte minha mãe faleceu em 1952 antes<br />

de me passar examefinal. E em 1955fz me examefinal <strong>da</strong> 4". classe e o mesmo nnofalecetr<br />

meu pai, efiquei-me em órfno <strong>do</strong>s pais, efqtrei a resolver pnrn arranjar emprego pnrn szrstentnr<br />

minhn vi<strong>da</strong> e a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s meus irmãozinhos.<br />

A 1"uiagemfui-me na plantação <strong>do</strong> Senhor Martins, e o Senhor Martins diz vai voltnr<br />

na Quintn;feira. Quan<strong>do</strong> chegotr o dia combina<strong>do</strong> ele diz, nio te preciso vai-te embora.<br />

2". Fui-me em Ribnuè na loja <strong>do</strong> Senhor Santos e o Senhor Santos diz vai voltar amnnki.<br />

Quan<strong>do</strong> chegou o dia combina<strong>do</strong>, diz vai-te embora nio te preciso.<br />

3". Fui-me na loja <strong>do</strong> Senhor Normamade, em lapala, para pedir aprendiz nlfniate, e trm<br />

a(faiate que li tralinlhnvn chama<strong>do</strong> Snulino, ele diz-me o metr patrio é muito mnir nio precisa<br />

de aprendiz, se você não tens me<strong>do</strong> vai ter com ele, mas você vai apanhar purradns, como era<br />

pequeno teimei <strong>da</strong> respostas que me detr Sanlino.<br />

4". Continuei outra vez pnra Ribatré trabalhar como cria<strong>do</strong> na casa <strong>do</strong> nteil ctinhn<strong>do</strong><br />

Zacnrias, aonde foi-me <strong>da</strong><strong>do</strong> calçRo e camisa.<br />

5". Fui-me em terra de Aria na casa <strong>da</strong> minha tia mnis velha.<br />

6". Fui-me na plantaçio <strong>do</strong> Senhor Edtrar<strong>do</strong> Vieira <strong>da</strong> Silva, ondefiri-me arranjar emprego<br />

como aju<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> escritório. Efiri-me recebi<strong>do</strong> em 7 de Fevereiro de 1957, até agora encontro-<br />

-me na mesma plantação.<br />

E tenho muitas lembranças por não ter os pais.<br />

Meus qtreri<strong>do</strong>s leitores a vidn de órfio <strong>do</strong>s pais é a vi<strong>da</strong> muito mal. Eu atélioje estou no<br />

emprego e compro-me casacos calças vesti<strong>do</strong>s bem mereci<strong>do</strong>s os meus pais, apenns não vejo<br />

quem posso <strong>da</strong>r, posso comprar e <strong>da</strong>r otrtra gente que não sofreram por mim mio fico bern<br />

disposto. Queri<strong>do</strong>s leitores quem tem os pais tem que tratd-10s bem; a vi<strong>da</strong> de órfio não é vidn<br />

boa, a vi<strong>da</strong> muito melhor é de ter os pais.


50 o:<br />

Josi Capr!~<br />

A pigmentação cria<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> dicotomia preto-branco que pretexta o preconceito<br />

rácico e a sua repercussão no quotidiano não deixa de ser explicita<strong>da</strong> por um leitor<br />

solteiro, de 23 anos de i<strong>da</strong>de, natural <strong>do</strong> Marromeu e residente na Beira:<br />

Ofim destn é pedir-lhe trni socorro. O motivo que me levou n escrever é o seguinte, eir<br />

qimn<strong>do</strong> sní na minhn terra pnra cá nn Beirn nunca fnzer despedi<strong>da</strong> n ninguém porque tive<br />

milito rnivn<strong>do</strong> sníno dia 30-9-64 nqzri apresentei no din 1-10-64 desde <strong>da</strong> minhn chegndn nté<br />

<strong>da</strong>tn sempre estou a sentir <strong>do</strong>i no nzeir corpo estive nindn frnbnlhar mns snípor motivo de<br />

<strong>do</strong>ente de lonzbuigas pnssei 5 dins até estnr melhor quan<strong>do</strong> jiri apresentar ao serviço tinhn<br />

encontra<strong>do</strong> o rnpnz n trabalhar no meir lirgnr nindn eu pedi licençn ao pntrão atéfiz o contrnto<br />

conz ele mas niio pensn nndn disso só pensn mnndnr embora. Então eu possofingir qite estou<br />

<strong>do</strong>ente enqz,aizto não sinto nadn?<br />

É verdnde to<strong>do</strong>s os europetls não confinrnm-nos que os Africanos tambem sentem qtlalqaer<br />

coisn de <strong>do</strong>i, nadn estão pensar de nós pareci<strong>do</strong> como animnis sobre de nosso côr negro é por<br />

isso que não tentos vnlor com os eilropeils porqtre eles têm cor branco. Q~lnn<strong>do</strong> trmn pesson<br />

pedir o pntrnõ n licença que eic estoir <strong>do</strong>ente, ele aceitou-se n nirtorizar de licença quan<strong>do</strong> estnr<br />

bem de saiíde voltnr no seu semiço já encontrn no liigar nlgirém n trabalhar nesse lirgnr este<br />

pntrão não é confi<strong>do</strong> só gostn o emprega<strong>do</strong> estar de sntíde to<strong>do</strong>s os dias qtmn<strong>do</strong> strceder qtmlqirer<br />

coisn <strong>do</strong> corpo pronto pnrn mnndnr embora.<br />

No texto que se segue não saberei que mais admirar: se o aticismo <strong>do</strong> desenho<br />

de uma situação em que se respira simultaneamente a tragédia de uma repressão<br />

desproporciona<strong>da</strong> se a capaci<strong>da</strong>de de extrair de um vocabulário escasso e de uma<br />

sintaxe improvisa<strong>da</strong> a narração precisa <strong>do</strong> facto que assim nos salta à vista de forma<br />

ver<strong>da</strong>deiramente hlmica. A carta é de um natural <strong>da</strong> Machanga, residente na Beira,<br />

de 22 anos de i<strong>da</strong>de:<br />

A decisão que me levou R escrever esta missivn, foi n seguinte: Certo dia na áren dn<br />

Chipangnrn no pântano o11 Chipangara Matope, um homem <strong>da</strong> cor negra que tronxern dn sila<br />

terrn 5 litros com szlrn9 que niio era parn vendn mas sim pnrn ele beber de quan<strong>do</strong> em qzlnti<strong>do</strong><br />

que precisnsse. Assim que chegoir o homem, tirou um litro para o irmão que morn porica<br />

distante dn stra. Quan<strong>do</strong> pelo o caminho dirigin-se pnra casn, encontrou com a polícin, que lhe<br />

perguntou <strong>do</strong>nde tinha comprn<strong>do</strong> a bebi<strong>do</strong>. O pobre homem preto disse-lhe que tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> por<br />

irmão que trouxera <strong>da</strong> minha terra 5 litros parn bebermos no tempo de almoço o11 de jnntnr. E<br />

n polícia ordenou no homem voltar para trás mostrnr n cnsn onde foi dn<strong>do</strong>. Qunn<strong>do</strong> chegaram,<br />

a polícin entrou logo para dentro <strong>da</strong> cnsn n obserunr se havia mais além dnqiieles 5 litros com<br />

surn que tinhn visto na snln qmn<strong>do</strong> logo entrotl. Infelizmente não houve nlém <strong>da</strong>queln<br />

quanti<strong>da</strong>de.<br />

'Sua - bebi<strong>da</strong> feita de cereais fermenta<strong>do</strong>s.


OS COLONOS EM ESCRITOS MOÇAMBICANOS A ESTESIA BANTA NOS CRONISTAS PORTUGUESES<br />

:. .. . .. . , .... . . ... , . ..... . , . .... . . , . , .. , , , , , .. . . .. . . ... . . . . ... . . . . . . ... . . . . ....... . . ..... . . . ... . . . .. . . .. . . . .. . . . ... . . .. . . .. . . ... . . ... . . . .. . . .. . . . ... . ..... . . ... . ... . . . . .. . . . .... . . ..... . ...... . . . ... . . . .... . . .... . .... . .. .. .. . . . . . ... . . ..... . . . . . .. . .<br />

i 51<br />

Depois man<strong>do</strong>u aquele homem qtre trouxe aqueles 5 litros, pôrforn ogarrnfiio jirntamente<br />

com o litro qtre já tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> ao irmiio. Porfim man<strong>do</strong>u levar trmn tábzrn que estavn encosta<strong>da</strong><br />

a casa para partir aqueles garrafóes.<br />

O homem, além de sofrinzentos de pesos que por onde trouxe lhe fartozr, levotl a tábtm<br />

conforme a ordem e partiu. A polícia nofim de tu<strong>do</strong> começou bater pela caceta os <strong>do</strong>is irmiios<br />

até que sangraram.<br />

Amigos leitores tiram a conclt~siio deste facto e respon<strong>da</strong>m-me se isto está certo.<br />

Será possívsl que o esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> Beira leve o regime de D. Pedro (o Justiceiro)?<br />

2. A estesia banta nos cronistas portugueses<br />

Em contraponto, far-se-ia mister apresentar a imagem que os cronistas portu-<br />

gueses retiraram <strong>do</strong>s moçambicanos ao longo <strong>do</strong>s séculos ou num determina<strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> baliza<strong>do</strong> por circunstâncias que justificassem a sua escolha. Não vou fazer<br />

uma coisa nem outra pela impossibili<strong>da</strong>de óbvia de aqui inserir a envergadura que<br />

tal obra teria de exibir. Limitar-me-ei a apresentar textos que privilegiam manifestações<br />

estéticas na convicção em que estou de que a estesia é a primeira <strong>da</strong>s categorias com-<br />

portamentais nas civilizações <strong>do</strong>s bantos. A primeira tanto na ordem lógica como na<br />

ordem ontológica.<br />

A minha apresentação está portanto conscientemente vicia<strong>da</strong>, à parti<strong>da</strong>. Não<br />

pretende, de maneira nenhuma, confrontar posições. O coloniza<strong>do</strong>r de um la<strong>do</strong> e o<br />

coloniza<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro. Procura simplesmente atestar um <strong>da</strong><strong>do</strong> de facto, qual é uma<br />

grande, uma incomensurável cultura <strong>do</strong> estético presidin<strong>do</strong> às civilizações bantas<br />

desde há séculos. Isto por um la<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong> que os portugueses se deram<br />

conta disso mesmo. É claro que foram muito mais frequentes em outro tipo de enqua-<br />

dramento <strong>do</strong>s povos de África, não apenas negativos mas mesmo injuriosos.<br />

Porque sempre deparei com um geral desconhecimento de textos em que os<br />

descobri<strong>do</strong>res exaltam os aspectos nobres <strong>da</strong>s civiiiiações bantas, mais não preten<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que chamar a atenção para uma reali<strong>da</strong>de sedutora a quem porventura ain<strong>da</strong> não<br />

se tenha <strong>da</strong><strong>do</strong> conta <strong>da</strong> sua existência.<br />

Por incrível que pareça o primeiro escrito de um português que entraem contacto<br />

com o povo banto <strong>da</strong> costa oriental de África dá primazia ao que era uma novi<strong>da</strong>de<br />

para quem ali chegava pela primeira vez. No Diário <strong>da</strong> Viagem de Vasco <strong>da</strong> Gama,<br />

atribuí<strong>do</strong> a Álvaro Velho, pode ler-se o episódio que teve lugar na que agoraé chama<strong>da</strong><br />

a costa <strong>do</strong> Natal:<br />

Item, ao sába<strong>do</strong> vieram obra de duzentos negros entre grandes e pequenos e traziam obra<br />

de <strong>do</strong>ze reses entre bois e vacas e quatro ou cinco carneiros e nós como os vimosfomos logo em<br />

terra e eles começaram logo de tanger quatro ou cincofrautas e uns tangiam nlto e outros<br />

baixo em maneira que concertavam muito bem.


Isto quer dizer que, há cerca de 500 anos, um navega<strong>do</strong>r chega<strong>do</strong> <strong>da</strong>s costas <strong>da</strong><br />

Europa se extasiou, tal e qual como o fazemos <strong>hoje</strong>, perante a espontanei<strong>da</strong>de com<br />

que os povos desta parte de África produzem harmonia instrumental e vocal. Como<br />

contraponto a este apontamento <strong>do</strong> cronista para aqui aportaria um outro, este de<br />

um centurião de finais <strong>do</strong> século XIX que igualmente se extasia com a polifonia <strong>da</strong>s<br />

impis ngunis. É Aires de Omelas que em 14 de Agosto de 1895, <strong>da</strong> residência <strong>da</strong><br />

representação portuguesa junto <strong>da</strong> corte de Gungunhana, aonde se deslocara em<br />

missão diplomática, escreve à Mãe:<br />

(...) tratemos de <strong>da</strong>r uma idein <strong>do</strong> espectáculo qtre presenciei nesse dia, espectáctrlo que<br />

bem poucos etrropetrs têm visto e com certeza o mnis extraordinário n qtre tenho assisti<strong>do</strong> .<br />

Pelas 9 horas <strong>da</strong> manhü, <strong>do</strong> mato qtrefechn a elevaçto onde está a corte <strong>do</strong> Gungtrnhnna,<br />

vinha sain<strong>do</strong> trma multidüo de gente descen<strong>do</strong> pnra a grande langua <strong>do</strong> Mangunnhann.<br />

Ao chegar R planície tu<strong>do</strong> isso fez alto forman<strong>do</strong> uma densa linha negra que nosfechavn<br />

o horizonte. Lentamente se foi ela aproximnn<strong>do</strong> de nós; potrco n pouco iam-se perceben<strong>do</strong> e<br />

distingtrin<strong>do</strong> os vultos quan<strong>do</strong> se partiu em 6 cohfnns, 2 delns muito projirndns laden<strong>da</strong>s, ca<strong>da</strong><br />

trmn por duas mais pequenns. Eram ns dtrns mnngns de guerra <strong>do</strong>s Impafirmnne (homens<br />

altos) e Zinhone M' Chope (pássaros brancos) dividi<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> zrmn em três troços (mabange)<br />

na força de perto de 3000 homens ca<strong>da</strong> trma, ostentan<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a gala e a riqtrezn selvngem <strong>do</strong><br />

magntjrico trajo de guerra v~íttrn. Vinham nrmn<strong>do</strong>s só de cacetes, prova <strong>da</strong>s suas intenções<br />

pactjricas, e todn essa massa imensa avnnçavn pnra nós cercan<strong>do</strong> a Residência sem um rtrí<strong>do</strong><br />

sequer, mnnobran<strong>do</strong> com uma precisüo e regulari<strong>da</strong>de qtre fnrinm inveja a etrropetrs. A cerca de<br />

500 metros de nós destaca-sepnrn afrenteo bobo ou jogral <strong>do</strong> exército, literalmente coberto<br />

de peles de tigre, com um imenso cnpncete de penas negras na cabeça, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> cnbriolas, lndran<strong>do</strong><br />

como um cto, cantan<strong>do</strong> como trm galo. Já estavam RS mnngas juntas R residêncin, e as seis<br />

colunas formarnm linha em semicírculo em volta de nós vin<strong>do</strong> parn a frente até 15 o11 20<br />

metros trm grupo de cerca de 100 homens. Entre estes vinha o Gungunhann qtle conheci logo,<br />

apesar de nunca lhe ter visto retrato algum; ern evidentemente o Chefe de trma grande raça.<br />

Desse grupo adiantou-se um <strong>do</strong>s principnis, oran<strong>do</strong> por bastante tempo, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-nos as boas<br />

vin<strong>da</strong>s em nome <strong>do</strong> réplo e dn sua naçüo e terminan<strong>do</strong> pela sau<strong>da</strong>çüo vitua: bahete! que<br />

repeti<strong>da</strong> pelns milhares de bocas que nos cercavam produzia o efeito de uma descarga defirzilarin.<br />

Entüo o régulo adiantou-se sentamo-nos e trocaram-se os mnis cordiais ctrmprimentos. É<br />

trm homem alto e sem ter ns magníjicas feições qtre tenho nota<strong>do</strong> em tantos <strong>do</strong>s setrs, tem-nas<br />

sem dzívi<strong>da</strong> belas, testa ampla, olhos cnstanhos inteligentes, e um certo ar de grnndezn e<br />

superioridnde. Ao levantar-se fez-se de novo otrvir os estron<strong>do</strong>so bahete! e forman<strong>do</strong> outra<br />

vez RS mangas em coluna, nmiz<strong>do</strong>tr-as entoar o cnnto de guerrn. Aqui devia eu parar! Nn<strong>da</strong> no<br />

mun<strong>do</strong> pode<strong>da</strong>r trma páli<strong>da</strong> idein <strong>da</strong> mngnificêncin <strong>do</strong> hino, dn hnrmonia <strong>do</strong> canto, ctrjns nofns<br />

graves e profimdns vibrn<strong>da</strong>s com entusinsmo por 6 000 bocas faziam-nos estremecer até no<br />

ínfimo. Qtre majestade, que energia naqtrela mzísica orn arrasta<strong>da</strong> e lenta qirase moribtrn<strong>da</strong>,<br />

para ressurgir triunfante numfrémito de ar<strong>do</strong>r, numa explosüo queimante de entusinsmo! E R<br />

medi<strong>da</strong> qtre as mnngas se iam afastan<strong>do</strong>, as notas graves iam <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> por lnrgo<br />

espaço, reboan<strong>do</strong> pelas encostas e entre as matas <strong>do</strong> Manjacaze! Qtrem seria o compositor


OS COLONOS EM ESCRIIOS MOCAMBICANOS A ESTESIA BANTA NOS CRONISTAS PORTUGUESES<br />

:. .. , . ..... , ....... . ..... . ....... , .. , ... , .. , ... , .. , ... , . .. . ... . ... . ..... . ... , ... , ..... , .. , .... , . .... . .. . .... . ..... . ... . ... , . .. , . , .. , .. . .. . ... . .. . .. . .. . .... .. . ..... ...... . . .. . ,........ .... . -<br />

i 53<br />

nnóizimo dnqtreln mnrnvilkn? Quem seria o coinpositor anónimo dnqueln mnrnuilhn? Qire<br />

nlmn ilio terin qtrent sotrbe meter em três oir qtrntro compassos n gtrerra nfricnnn com to<strong>da</strong> n<br />

acre rudeza dn sua poesia? Aindn <strong>hoje</strong> nos t, o eco <strong>do</strong> terrível<br />

canto de guerra vittrn, que tniztns vezes o esculcn chope ouvitr trnnsi<strong>do</strong> de terror, perdi<strong>do</strong> por<br />

entre as breilltns destes matos 710s qtrnis vivo hií um mês.<br />

Um outro centurião que muito escreveu sobre as suas conquistas foi Azeve<strong>do</strong><br />

Coutinho. Sempre na posição <strong>do</strong> conquista<strong>do</strong>r não deixa, no entanto, de exaltar o<br />

mirífico mun<strong>do</strong> zambeziano pelo qual ver<strong>da</strong>deiramente se apaixonou. Comma prosa<br />

desatavia<strong>da</strong>, jamais deixa de enaltecer as quali<strong>da</strong>des de guerreiros, de carácter e de<br />

nobreza quer <strong>da</strong>queles que o acompanharam nas suas incursóes bélicas, quer <strong>do</strong>s<br />

chefes e senhores locais, quer <strong>do</strong>s mais humildes <strong>do</strong>s seus servi<strong>do</strong>res. Quan<strong>do</strong>, na<br />

conquista <strong>do</strong> Báruè, conseguiu finalmente aprisionar um Makombe, de nome<br />

Chipitura, e com ele se dirigia para Quelimane descreve-o com um aceno de homena-<br />

gem:<br />

No percurso, desde que entrimos nos territórios <strong>da</strong> Compnnhin de Moçnmbiqne, n gente<br />

<strong>da</strong>s povoações pacíficas vinha à beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> sau<strong>da</strong>r-nos, com enttrsirísticn ndmiraçio, e<br />

to<strong>do</strong>s qirerinm ver o Chipiturn, que com setrsfilhos cnmiizhovn indiferente e orgirlhoso, entren<br />

forte escolta que os gtrnrdnvn, com aquele estoicismo ndmirivel quefnz de cndn preto iim<br />

ver<strong>da</strong>deiro herói, pelo indiferença absoltrtn e extrnordinirin coragem, com que snbern eiicnrnr<br />

R morte.<br />

Tomar-se-ia fastidioso prosseguir na leitura de textos. Não posso no entanto<br />

deixar de lembrar autores que primaram pela apreciação estética na sua c<strong>ontem</strong>plação<br />

de Moçambique. De tanto são exemplo Diocleciano Femandes <strong>da</strong>s Neves in Ifineririo<br />

de Uma Vinaem 2 Cncn <strong>do</strong>s Elefnntes com belíssimas páginas de homenagem à amizade<br />

e leal<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s seus servi<strong>do</strong>res e acompanhantes assim como à beleza física e moral<br />

de tantos que encontrou pelo longo caminho que percorreu, nomea<strong>da</strong>mente as<br />

princesas e <strong>do</strong>nzelas <strong>da</strong> casa real cossa e Emílio de San Bruno in Znmbezinnn Scenns dn<br />

Vi<strong>da</strong> Colonial onde, por igual, abun<strong>da</strong>m páginas que vão no mesmo senti<strong>do</strong>.<br />

A aquisição <strong>da</strong> Língua Portuguesa pelos moçambicanos foi feita ao preço <strong>do</strong><br />

sangue, <strong>do</strong> suor e <strong>da</strong>s lágrimas. Também na alegria de quem, no seu exercício, descobre<br />

e abor<strong>da</strong> um mun<strong>do</strong> novo. De imposição, a língua transformou-se em aquisição.<br />

Estamos perante um acontecimento que, situan<strong>do</strong>-se em tempo e em espaço precisos,<br />

isto é, sen<strong>do</strong> histórico, não obstante extravasa <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> mesmo tempo e <strong>do</strong><br />

mesmo espaço para fazer parte integrante <strong>do</strong> percurso de um povo.<br />

Que a prática dessa Língua esteja limita<strong>da</strong> a uma parte desse mesmo povo tal<br />

não impede que ela constitua um património idiossincrático para o conjunto nacional.


Porque foi e continua a ser ela mesmo elemento constitutivo desse to<strong>do</strong> e porque<br />

permanece na categoria mais profun<strong>da</strong> <strong>do</strong> substrato que legitima a moçambicani<strong>da</strong>de.<br />

Eis também porque me socorri tão abun<strong>da</strong>ntemente de textos de moçambicanos de<br />

há déca<strong>da</strong>s atrás que, pela primeira vez nas suas vi<strong>da</strong>s, tão apaixona<strong>da</strong>mente<br />

escreveram em português. No maior respeito pela soberania <strong>do</strong>s moçambicanos, em<br />

prol <strong>da</strong> Língua, faço votos para que esses pioneiros não tenham sofri<strong>do</strong> em vão a sua<br />

escrita!


RACISMOY PENSAMIENTO MODERNO: EL EJEMPLO<br />

DE LA INVENCIÓN DE LOS CAMITASY DE LOS<br />

SUBSAHARIANOS<br />

1. Introducción: tradición plural y moderni<strong>da</strong>d etnoci<strong>da</strong><br />

Las etnias (ergo, las naciones) han esta<strong>do</strong> siempre etnocentra<strong>da</strong>s, es decir: han<br />

visto y valora<strong>do</strong> e1 mun<strong>do</strong> según sus propios criterios. Pero nunca, o casinunca, han<br />

trata<strong>do</strong> de imponer estos criterios a 10s otros.<br />

Desde sus inicios, la moderni<strong>da</strong>d occidental, caracteriza<strong>da</strong> (entre otros rasgos)<br />

por su obsesión para consoli<strong>da</strong>r a la fuerza su visión de1 mun<strong>do</strong> como si hera Ia<br />

única posible, ha trata<strong>do</strong> de borrar to<strong>da</strong> traza diferencial, to<strong>da</strong> etnia. La modemi<strong>da</strong>d<br />

occidental es una auténtica nove<strong>da</strong>d en la historia, pues es Ia primera que se considera<br />

a sí misma como la única ver<strong>da</strong>deramente humana. Los otras, 10s diferentes, son<br />

considera<strong>do</strong>s como no-humanos o minusváli<strong>do</strong>s culturales dignos o bien de menos-<br />

precio, o bien de conversión forza<strong>da</strong>. Y aquí está la base de1 racismo. Conla modemi-<br />

<strong>da</strong>d, e1 tradicional respeto por las diferencias (incluyen<strong>do</strong> las 'raciales'), ha si<strong>do</strong><br />

radicalmente borra<strong>do</strong>.<br />

Hace falta decir que só10 se empieza a habla de 'razas' desde finales de1 siglo XV.<br />

No es casual, ni mucho menos, que la raíz etimológica de razn sea la misma que la de<br />

rnzón. La "ratio", la desecación de1 calei<strong>do</strong>scopio humano en compartimentos estancos,<br />

la taxonomización esclerótica emparenta<strong>da</strong> con la entomología ...<br />

Por otro la<strong>do</strong>, la palabra 'racismo' es un invento de1 siglo XX, que tomo fuerza en<br />

10s anos veinte y treinta. La idea de racismo (aún sin adjetivar) tomó cuerpo de forma<br />

acelera<strong>da</strong> durante e1 siglo XIX, coincidien<strong>do</strong> con la combinación de colonialismo,<br />

industrialización y utilitarismo voraz.<br />

La modemi<strong>da</strong>d, en e1 senti<strong>do</strong> más peyorativo (asimilable a un procesocontinua<strong>do</strong><br />

de homogeneización planetaria), absolutiza la reali<strong>da</strong>d y separa de manera irrecon-<br />

ciliable 10s diversos campos, conceptos y categorías en qué clasifica e1 mun<strong>do</strong>. La<br />

culminación de1 pensamiento occidental moderno es e1 capitalismo y, por 10 tanto, no<br />

resulta extraiio que e1 capitalismo sea la base, e1 cal<strong>do</strong> de cultivo, de1 racismo y de 10s<br />

genocidios. En base a la escisió más brutal que Ia humani<strong>da</strong>d moderna ha crea<strong>do</strong>,<br />

' Doctor en Antropologia Social, Universi<strong>da</strong>d de Barcelona


que es Ia existente entre naturaleza y cultura, y entre ser humano y medio ambiente,<br />

surgió e1 denomina<strong>do</strong> 'especismo', es decir, Ia consideración que to<strong>da</strong>s aquellas<br />

especies diferentes de Ia humana no tenían otra sali<strong>da</strong> que verse someti<strong>da</strong>s a Ia<br />

explotación, e1 uso y e1 abuso por parte de una supuesta 'especie superior'. De aquí<br />

a1 racismo genoci<strong>da</strong> va un solo paso: 10s seres humanos que no son 10s de tu 'raza'<br />

salen hera de la categoría 'humano' y caen, de pleno, en e1 campo semántico de<br />

aquello que, sien<strong>do</strong> conceptnaliza<strong>do</strong> como 'inferior', puede ser someti<strong>do</strong> a Ia voluntad<br />

de la especie (en este caso, de Ia 'raza') <strong>do</strong>minante.<br />

No es casual que e1 racismo surgiera de forma paralela a1 surgimiento de1<br />

imperialismo occidental. Así, la primera clasificación racial rigurosa y sistemática,<br />

fue Ia de1 alemánBlumembach, e1 &o 1775. En Ia ediciónde 1795 aparece, por primera<br />

vez, Ia palabra 'caucásico' para referirse a la 'raza blanca' (Bemal, 1993: 211). Tampoco<br />

hace falta pasar por alto que Descartes subrayara que e1 ser humano tenía que ser e1<br />

propietario absoluto de lanaturaleza, disponien<strong>do</strong> sobre ella de un iiisfnicii, utendi te<br />

nbntendi. También resulta adecua<strong>do</strong> observar Ias disquiciones de Hobbes, plenamente<br />

presentes en e1 pensamiento utilitarista occidentak<br />

«La felici<strong>da</strong>d en esta vi<strong>da</strong> no consiste en Ia tranquili<strong>da</strong> de un espíritu satisfecho.<br />

Pues, en reali<strong>da</strong>d, no existe este objetivo final ni aquel bien supremo de1 que hablan<br />

10s antiguos. La felici<strong>da</strong>d es una continua marcha hacia adelante de1 deseo, desde un<br />

objeto hacia otro. Yo sitúo en primer lugar, como inclinación general de to<strong>da</strong> la<br />

humani<strong>da</strong>d, un deseo perpetuo y sin tregua de lograr poder tras poder» (Ia negrita<br />

es nuestra).<br />

Aquíestá la raíz de1 problema. Pensar que to<strong>do</strong> el mun<strong>do</strong> TIENE QUE PENSAR<br />

cómo piensa e1 sistema moderno capitalista. Como si fuera algo natural, como si<br />

fuera algo genético, biológico.. .E1 racismo biologka y naturaliza e1 pensamiento social<br />

y 10s procesos culturales, y excluye de Ia humani<strong>da</strong>d 10s que no son iguales a Ia<br />

'norma' supuestamente natural y universal.<br />

2. Las invenciones racistas: Egipto y Grecia<br />

Durante 10s siglos XIX y XX, sujetos a 10s prejuicios racistas, se ha i<strong>do</strong> negan<strong>do</strong><br />

sistemáticamente e1 origen cultural africano, negro, de la civilización egipcia. Tanto<br />

la lengua, como e1 color de piel, Ia religión, Ia cultura y e1 sistema de pensamiento,<br />

demuestran de fonna evidente que e1 Egipto antiguo era negroafricano. Con elementos<br />

"mediterráneos" y quizá semitas, desde luego, pero profun<strong>da</strong>mente africano en e1<br />

plano de1 pensamiento, de Ias concepciones de1 mun<strong>do</strong> y de La estructuración social.<br />

Y Grecia, lejos de ser Ia cuna blanca y aria de Europa, fue ima civilización profun<strong>da</strong>-<br />

mente influencia<strong>da</strong> por 10s Egípcios y por sus 'primos hermanos', 10s Fenicios. Grecia<br />

fue una civiiiiación de frontera, naci<strong>da</strong> de1 interacción entre e1 area cultural meridional<br />

y e1 mun<strong>do</strong> Ilama<strong>do</strong> "in<strong>do</strong>europeo". Los intercambios produci<strong>do</strong>s en dicho espacio


de frontera entre 10s anos 2100 y 1000 ac generaron e1 mal denomina<strong>do</strong> 'milagro'<br />

griego. La génesis de 10s griegos está directamente relaciona<strong>da</strong> con la expansión de<br />

10s egipcios por e1 Mediterráneo oriental. De hecho, había numerosas colonias egipcias<br />

(y fenicias) en Grecia. Ejemplos de1 carácter 'mestizo' de la civilización clásica: La<br />

mitad de1 vocabulario es africano (egipcio) y fenicio. Dichas reali<strong>da</strong>des históricas<br />

han si<strong>do</strong> oculta<strong>da</strong>s por e1 racismo epistemológico, to<strong>da</strong>vía bien vivo en ciertas<br />

geografías de1 pensamiento académico.<br />

3. La invención de 10s "camitas"<br />

De entre las producciones de dicho racismo epistemológico cabría destacar una<br />

que piemo que continua notan<strong>do</strong>, quizá en manantiales subterráneos, por notables<br />

capas de las perspectivas actuales sobre las socie<strong>da</strong>des africanas, desde las ciencias<br />

sociales a1 neocolonialismo trasvesti<strong>do</strong> de cari<strong>da</strong>d que practican muchaç ONG's y<br />

gobiemos. La base de esta varie<strong>da</strong>d de1 racismo consiste en negar e1 origen africano,<br />

autóctono, de aquellas culturas 'sospechosas' de ser 'demasia<strong>do</strong>' refina<strong>da</strong>s y desar-<br />

rolla<strong>da</strong>s, y e110 partien<strong>do</strong> dela idea de Ia substancial incapaci<strong>da</strong>d de 10s africanos (y,<br />

por extensión, de1 'Tercer Mun<strong>do</strong>') para gobernarse a sí mismos.<br />

Para facilitar la tarea en 10s tiempos prístinos delas fábricas de conceptos racis-<br />

toides, hacía falta crear unprototipo de negro, es decir, hacía falta sacarse dela manga<br />

e1 estereotipo de1 negro-negro: feo (mostruosamente feo), bajito, con unprognatismo<br />

hiperbólico, simiesco y sub-humano. Recordemos la idea de 'especismo' en este<br />

senti<strong>do</strong> ...<br />

Focos 'ejemplares' que reúnan estos requisitos pueden encontrarse (ni en África<br />

ni entre nosotros), pero 10 importante de un estereotipo no es que sea real, sino que<br />

funcione, es decir, que la gente se 10 crea y genere concreciones sobre la vi<strong>da</strong> material.<br />

Na<strong>da</strong> más y na<strong>da</strong> menos. Y mientras haya quien pieme que só10 Europa (la Europa<br />

occidental ...i claro está!) puede aportar 'La' civilización, y que 10s negritos son parias<br />

políticoculturales, e1 estereotipo continuará presente.<br />

Antes de continuar, una reflexión: imagínense que algún mal pensa<strong>do</strong> y retorci<strong>do</strong><br />

personaje creara la imagen de1 'blanco-blanco' (rubio, blanco-albino, ojos de color<br />

azul-cielo.. .). Siguien<strong>do</strong> esta idea, 10s europeos de1 sur no seriamos blancos. ~Quizás<br />

somos negros de pie1 morena? iQuien 10 sabe! E1 cierto es que esto supondria que<br />

só10 de África puede haber llega<strong>do</strong> la 'cultura' a Europa, pues 10s Griegos no<br />

responden (ni respondían) a1 estereotipo de1 blanco-blanco<br />

4. E1 mito camita: precedentes<br />

E1 mito camita tiene unos precedentes que distan mucho de Ia posterior<br />

reelaboración destina<strong>da</strong> a legitimar prácticas y discursos racistas. En e1 capitulo quinto<br />

de1 Génesis bíblico hace acto dw aparición la palabra 'Cam' para hacer referencia a<br />

un hijo de Noé que es maldeci<strong>do</strong> por su padre. Ahora bien: no se hace ninguna mención


a diferencias raciales entre 10s ancestros de Ia hiimani<strong>da</strong>d. Fue bastante más tarde,<br />

como ya hemos indica<strong>do</strong>, cuan<strong>do</strong> Ia idea de 'raza' apareció para caracterizar a 10s<br />

hijos de Noé, en concreto en e1 Talmud babilónico, <strong>do</strong>nde se indica que Cam fue<br />

maldeci<strong>do</strong> por e1 hecho de ser negro.<br />

Este mito persistió durante Ia E<strong>da</strong>d Media, y desembocó eii la creencia de que<br />

10s hijos de Cam eran esclavos negros, porta<strong>do</strong>res de1 estigma de Ia maldición de<br />

Noé. De esta manera, 10s cristianos podían explotar 10s africanos melanodermos para<br />

obtener grandes beneficios econórnicos, y to<strong>do</strong> esto con e1 beneficio anímico de tener<br />

la conciencia tranquila. Una conciencia que aún permanecía más tranquila tenien<strong>do</strong><br />

en cuenta que 10s negros, en tanto que descendentes de Noé, eran 'hermanos' de 10s<br />

blancos y, por 10 tanto, parte de Ia humani<strong>da</strong>d.<br />

Hacia e1 siglo XVIII, empero, e1 mito camita dió un formi<strong>da</strong>ble giro y demostró<br />

una gran capaci<strong>da</strong>d de a<strong>da</strong>ptación a 10s nuevos tiempos, marca<strong>do</strong>s por un espíritu<br />

científico y racional. E1 anteriormente cita<strong>do</strong> Johann Friedrich Blumenbach fue uno<br />

de 10s progenitores de1 mito camita moderno, refina<strong>do</strong> y 'perfecciona<strong>do</strong>'. Pero Ias<br />

ideas no suelen venir de1 cielo, sino que se origina en un lugar, en un contexto y a<br />

partir de unas determina<strong>da</strong>s instituciones sociales. Antes de hablar de Blumenbach<br />

tendremos que fijar la mira<strong>da</strong> en e1 medio ambiente académico que 10 vió nacer: la<br />

universi<strong>da</strong>d de Gottingen. Esta universi<strong>da</strong>d fue fun<strong>da</strong><strong>da</strong> e1 afio 1734 por rey de<br />

Inglaterra, Jorge 11, puesto que la ciu<strong>da</strong>d pertenecía a1 territorio de Hannover, situa<strong>do</strong><br />

entonces bajo soberanía inglesa a pesar de ser germánico (como mínimo, geográfica-<br />

mente). Esta relación con la Gran Bretafia convirtió la universi<strong>da</strong>d de Gottingen en<br />

una especie de correa de transmisión de1 romanticismo escocés y de Ias ideas filosóficas<br />

y políticas de Locke y de Hume, profun<strong>da</strong>mente racistas, ideas que encontraron un<br />

terreno a<strong>do</strong>ba<strong>do</strong> en la socie<strong>da</strong>d alemana 'culta' dela época.<br />

En medio de to<strong>do</strong> este ambiente de fuentes intelectuales surgió la figura J. F.<br />

Blumenbach. Según su opinión, Ia raza caucásica ('inventa<strong>da</strong>' por é1, como hemos<br />

visto) era Ia más bella e inteligente de to<strong>da</strong>s las razas que sobre la faz de Ia tierra son.<br />

Fero la pregunta es: ipor qué se escogió Ia cordillera de1 Cáucaso como cuna de la<br />

humani<strong>da</strong>d blanca?. Pueden existir varias razones:<br />

- En primer lugar, porque según una creencia religiosa populariza<strong>da</strong> en e1 siglo<br />

XVIII , se tendría que pensar que e1 hombre reapareció tras e1 Diluvio y, como ya se<br />

sabe, e1 Arca de Noé se depositó en e1 monte Ararat, en plena vertiente meridional<br />

de1 Cáucaso.<br />

- En segun<strong>do</strong> lugar, porque según una tendencia ca<strong>da</strong> vez más <strong>do</strong>minante en e1<br />

romanticismo alemán de la época, ellugar de origen de Ia humani<strong>da</strong>d (y,por 10 tanto,<br />

de 10s europeos), estaba situa<strong>do</strong> en las montafias de Oriente; no en 10s valles de1 Nilo<br />

y de1 Éufrates, como creían 10s antiguos.<br />

- En tercer lugar, porque en aquella época se relacionaba muy estrechamente 10s<br />

términos 'caucasico' y 'ario'. La razón principal era que, según Ia tradición, e1 Cáucaso<br />

fue e1 lugar <strong>do</strong>nde fue castiga<strong>do</strong> Prometeo, héroe cultural que estaba considera<strong>do</strong>


símbolo de Europa entera. Además, Prometeo era hijo de Jápeto, identifica<strong>do</strong> con<br />

Jafet, tercer hijo de Noé y mítico antepasa<strong>do</strong> de 10s europeos. Pero to<strong>da</strong>via hay más:<br />

e1 carácter heroico y abnega<strong>do</strong> de la acción de Prometeo fue considera<strong>do</strong> como<br />

tipicamente ario. Prometeo es, pues, una suerte de calvinista nunnt-ln-lèttre.<br />

E1 ya cita<strong>do</strong> Blumenbach, hijo de Ia filosofia de Ias Luces, queria iliiminar e1<br />

mun<strong>do</strong> (e1 blanco, por supuesto) sustih~yen<strong>do</strong> la anterior ecuación Camita:Negro<br />

por Ia de Camita:Caucásico, y dió vía libre a la ver<strong>da</strong>dera base de1 mito camita<br />

'depura<strong>do</strong>', que se podría resumir en este principio: to<strong>do</strong> negro, por muy negro que<br />

sea, será considera<strong>do</strong> caucásico (blanco) si se observa en é1 un mínimo barniz de<br />

inteligencia.<br />

Por otro la<strong>do</strong>, e1 alma racional de 10s ilustra<strong>do</strong>s europeos de Ia época tenía que<br />

explicar e1 por qué de la existencia de este extrafio elemento que es 'e1 negro'. Existían<br />

<strong>do</strong>s grandes teorías: (1) e1 monogenismo, que incidía en e1 clima como factor<br />

determinante de Ia oscura pigmentación (síntoma de degeneración ...) ; (2) e1<br />

poligenismo, que apostaba por e1 carácter 'sub-humano' de1 negro, visto como un<br />

'semi-mono', defendi<strong>do</strong> en tiempos recientes por la ciencia oficial nazi y por ciertos<br />

sectores de las aficiones futbolísticas europeas.<br />

Vemos, pues, que Ia imagen de1 negro se deterioraba a medi<strong>da</strong> que aumentaba<br />

su valor como mercancía (Sanders, 1969). No ha de extraiiar 10 más mínimo que sele<br />

expulsara dela familia humana por tiempo indefini<strong>do</strong>.<br />

5. E1 mito camita: antiguo Egipto<br />

Desde comienzos de1 siglo XIX, numerosos historia<strong>do</strong>res y estudiosos otorgaron<br />

un origen camita a 10s antiguos egipcios. Supiiestamente, estos camitas tendrían sus<br />

raíces en culturas in<strong>do</strong>europeas procedentes de Asia aun cuan<strong>do</strong> estas 'razas' camitas<br />

no existían (ni existen) en ninguna parte de1 continente asiático. ipor qué esta<br />

insistencia a1 otorgar a1 Antiguo Egipto un origen asiático?: esencialmente, como ya<br />

hemos apunta<strong>do</strong> antes, perque Asia era vista como la ver<strong>da</strong>dera cuna de 10s<br />

caucasianos, es decir, de 10s blancos. Una civilización tan 'desarrolla<strong>da</strong>' y con un<br />

gra<strong>do</strong> de perfección técnica y espiritual tan eleva<strong>da</strong> como Ia egipcia, no podía ser<br />

negra, sino blanca. Y esto pese a que 10s antiguos egipcios fueran blancos de color<br />

muy oscuro, tal y como las evidencias arqueológicas y 10s testigos históricos demos-<br />

traban de manera reiterativa y contundente.<br />

E1 inicio de la obsesión enfermiza por blanquear e1 antiguo Egipto y poblarlo de<br />

supuestos camitas tuvo lugar e1 aiio 1798, coincidien<strong>do</strong> con la invasiónnapoleònica<br />

de este país africano. Los estudiosos que acompanaron a las tropas galas fun<strong>da</strong>ron<br />

una nueva ciencia (la egiptologia) que tuvo en e1 mito camita su espal<strong>da</strong>razo más<br />

valioso. Resultaba evidente, para ellos, que e1 origen dela civilización occidental no<br />

era ya Grecia o Roma, sino Egipto. Evidentemente, 10s egipcios tenían que ser, a la<br />

fuerza, blancos. Pero 10s intelectuales franceses iiegaron a la conclusión que 10s egipcios<br />

eran negroides (Iniesta, 1989), y civiliza<strong>do</strong>s hasta e1 tuétano.


Ni que decir tiene que, en 10s aÍios posteriores a esta expedición científico-militar,<br />

se multiplicaron de manera exponencial las publicaciones que trataban de negar la<br />

'negritud' de 10s antiguos egipcios. Uno de 10s artilugios utiliza<strong>do</strong>s fue e1 que<br />

equiparaba raza con lengua. Ca<strong>da</strong> grupo racial tenía que poseer, a Ia fuerza, su propio<br />

lenguaje. Puesto que e1 copto (idioma muy similar a1 antiguo egipcio) tenía ciertos<br />

pareci<strong>do</strong>s con e1 árabe, la conclusión era que 10s egipcios faraónicos eran, como mucho,<br />

semitas.<br />

A 10 largo de1 siglo XIX, 10s viajeros europeos reafirmaron e1 carácter caucásico<br />

de 10s etíopes, nubios y somalíes, to<strong>do</strong>s ellos hablantes de idiomas emparenta<strong>do</strong>s. E1<br />

círculo que<strong>da</strong>ba bien re<strong>do</strong>ndea<strong>do</strong>. Otro medio de demostrar Ia blanca pie1 de 10s<br />

egipcios antiguos fue e1 aporta<strong>do</strong> por Ia cranología, impulsa<strong>da</strong> sobre to<strong>do</strong> por la<br />

escuela americana de antropología física, emperra<strong>da</strong> en demostrar de manera<br />

científica, 'seria', que 10s egipcios eran perfectos caucásicos. Según estos fabulosos<br />

intelectuales, 10s cráneos egipcios eran, sin e1 menor asomo de du<strong>da</strong>, blancos. Las<br />

teorías de 10s es ta<strong>do</strong>unidenses tuvieron una audiencia receptiva en Europa. Además,<br />

las coloraciones morenas que presentaban muchos egipcios decimonónicos eran<br />

atribui<strong>da</strong>s ala huella deja<strong>da</strong> porlos numerosos esclavos negros que habrían importa<strong>do</strong><br />

10s faraones caucásicos.<br />

iLa posición de1 negro como 'esclavo natural' de1 blanco era un hecho!<br />

La profun<strong>da</strong> interiorización social de1 mito camita en su variante egiptológica<br />

to<strong>da</strong>vía provoca lipotimias a aquellos que ven como una blasfemia insufrible Ia<br />

africani<strong>da</strong>d de1 imperio faraónico.<br />

6. Sangre blanca, camitas y civilización<br />

Los últimos aÍios de1 siglo XIX vieron nacer <strong>do</strong>s nuevas ideologías que proveyeron<br />

de renova<strong>da</strong>s energías e1 mito camita: e1 colonialismo y e1 racismo moderno (Sanders,<br />

1969). Los ca<strong>da</strong> vez más numerosos expedicionarios europeos encontraban a su paso<br />

por las comarcas africanas pueblos, como por ejemplo 10s Bugan<strong>da</strong>, con organizaciones<br />

políticas complejas que no podían ser otra cosa que e1 resulta<strong>do</strong> dela 'gotablanca' de<br />

turno. Por otro la<strong>do</strong>, resultaba evidente que aun cuan<strong>do</strong> 10s camitas eran caucásicoç,<br />

también eran africanos, 10 cual creaba una para<strong>do</strong>ja que hacía falta resolver, y es<br />

evidente que se resolvió.<br />

La nueva teoría de las razas dibujaba una jerarquia racial dentro de la rama<br />

caucásica. En la cumbre de esta pirámide estaban 10s germánicos y 10s anglo-sajones,<br />

segui<strong>do</strong>s por 10s mediterráneos y por 10s eslavos y, en última posición, en e1 pel<strong>da</strong>iio<br />

más bajo, por 10s camitas. La ciencia suplantaba la teología de forma admirable. En<br />

concor<strong>da</strong>ncia con Ia ya comenta<strong>da</strong> equiparación entre grupo racial y grupo lingüístico<br />

(y viceversa), a comienzos de1 siglo XX surgió la denomina<strong>da</strong> 'familia de lenguas<br />

camitas' y, en consecuencia, Ia sub-raza camita recibió su bautizo a1 mismo tiempo<br />

que se buscaban 10s pueblos que tenían que encajar dentro de estas innova<strong>do</strong>ras y<br />

'objetivas' clasificaciones: así, dentro de1 cajón de sastre proporciona<strong>do</strong> por esta


fantasmagòrica raza camita, se hizo entrar con calza<strong>do</strong>r grupos humanos tan<br />

'semejantes' entre ellos como 10s Beréberes (muchos de 10s cuales sonde piel clara y,<br />

a veces, rubios y de ojos azules.. .) y 10s Etíopes (muy oscuros, y de piel biennegra en<br />

bastantes casos).<br />

Demostran<strong>do</strong> una enorme capaci<strong>da</strong>d de equilibrismo intelectual sin red, pobla-<br />

ciones como por ejemplo 10s Tutsi y 10s Masai (entre otros pueblos 'afortuna<strong>do</strong>s')<br />

también fueron considera<strong>do</strong>s como camitas, es decir, como caucásicos, o sea, como<br />

blancos (de piel negra.. .). Y atención: porque mentes tan ilumina<strong>da</strong>s como por ejemplo<br />

Ia de G. Sergi incluyeron dentro de1 grupo racial camita a 10s Íberos. Siguien<strong>do</strong> este<br />

razonamiento, resultará que 10s sensatos y pacíficos catalanes, descendientes de esos<br />

antiguos pobla<strong>do</strong>res de Ia Península Ibérica, estamos emparenta<strong>do</strong>s con 10s belicosos<br />

y valerosos guerreros Masai. Quién 10 iba a decir ...<br />

Charles G. Seligmanfue, enlos anos 1920, elenésimo refun<strong>da</strong><strong>do</strong>r delmito camita.<br />

Seligman trató de <strong>da</strong>r a este mito Ia hondura 'científica' que necesitaba. AI fin y a1<br />

cabo, se hallaba en medio de una época de euforia eurocentrista. Una euforia que<br />

anos después fue apacigua<strong>da</strong> por Ia amarga experiencia de Ia segun<strong>da</strong> guerra mundial,<br />

Ia cual fue, esencialmente, una guerra entre europeos. Según C. G. Seligman, Ias<br />

civilizaciones de África só10 son Ias que constituyeron 10s pueblos Camitas, Ia<br />

influencia de 10s cuales Ilegó hasta 10s altamente civiliza<strong>do</strong>s egipcios. Los Camitas,<br />

siempre en palabras de Seligman, eran pueblos pastoriles europeos (sic) que Ilegaron<br />

a tierras africanas en sucesivas olea<strong>da</strong>s, que estaban mejor arma<strong>do</strong> y que eran mucho<br />

más ingeniosos que 10s agricultores negros.<br />

Cualquier aroma civilizatorio es considera<strong>do</strong>, a Ia fuerza, consecuencia de1<br />

contacto entre 10s Camitas y 10s negros 'autóctones'. La metalúrgia, Ias instituciones<br />

complejas, Ia irrigación, e incluso la organización social en grupos de e<strong>da</strong>d, fueron<br />

inyecta<strong>da</strong>s en Ias masas negras por obra y gracia de 10s camitas.<br />

Por otro la<strong>do</strong>, Seligman también tuvo la gentileza de ofrecernos una depuración<br />

de Ia grosera taxonomía racial, y afiadió Ia categoría de 10s Nilotes, también<br />

denomina<strong>do</strong>s 'Half-Camites', es decir, una especie de monstruo de Frankenstein,<br />

mitad negro, mitad caucásico. No por casuali<strong>da</strong>d, C. G. Seligman dedicó un capítulo<br />

de su libro The Races of Africn (1930) na<strong>da</strong> menos que a «The Tme Negros, o sea, a 10s<br />

negros 'puros', 10s de ver<strong>da</strong>d, confina<strong>do</strong>s en Ia costa de1 Guinea y su hinferlnnd,<br />

aproxima<strong>da</strong>mente desde e1 Senegal hasta e1 Camerún, aisla<strong>do</strong>s de Ias gotas de blancura<br />

racional y hera de Ia irradiación de Ia luz caucasoide por culpa de la selva o de otras<br />

barreras. En palabras de1 sefior Seligman, e1 resto de negros africanos que no eran<br />

true-negroes 'consisten en negros camitiza<strong>do</strong>s [sic] en varios gra<strong>do</strong>s: Bantu, Nilotes<br />

y Semi-Camitas'(Seligman, 1930: 55). To<strong>do</strong> 10 que hemos comenta<strong>do</strong> implica, de hecho,<br />

que só10 10s europeos fueron avituallan<strong>do</strong> con <strong>do</strong>sis de civilización a 10s retrasa<strong>do</strong>s<br />

negros. La sangre blanca fue penetran<strong>do</strong>, gota a gota, por determina<strong>da</strong>s rutas Ia<br />

desembocadura de Ias cuales eran espléndi<strong>da</strong>s culturas que contrastaban con 10s<br />

sistemas sociales 'negros-negros'.


7. La última invención de1 racismo occidental: 10s<br />

subsaharianos<br />

E1 calificativo


anteriori<strong>da</strong>d hemos comenta<strong>do</strong> e1 senti<strong>do</strong> ahistórico de1 término 'subsahariano', hará<br />

falta precisar que 10s antiguos egipcios constituyeron una especie de hipertrofia de Ia<br />

civilización neolítica sahariana, 10s vástagos culturales de Ia cual se encuentran hoy<br />

en día presentes en buena parte de Ia población negroafricana.<br />

Así, resulta aún más evidente Ia seria amputación histórica y cultural que<br />

representa e1 calificativo 'subsahariano'. Además, Ia utilización de un único etnónimo<br />

para categorizar un conjunto tan heterogéneo como son 10s pueblos sitos a1 sur de1<br />

desierto de1 Sahara, resulta de una simplificación que frota 10 aberrante: se mete en<br />

un mismo saco semántico a 10s malgaches, a 10s etíopes, a 10s su<strong>da</strong>fricanos protestantes<br />

de pie1 albina, y a 10s pueblos su<strong>da</strong>neses de coloración negra y de creencias de cariz<br />

~anirnistan.<br />

una incongruencia? Sí, pero hasta cierto punto: Ia invención de identi<strong>da</strong>des y,<br />

10 que es mucho peor, su imposición, ha si<strong>do</strong> una constante en Ia etnoci<strong>da</strong> y racista<br />

trayectoria histórica de Occidente. Son legión e1 número de eh-iias artificiales impuestas<br />

sobre Ia miría<strong>da</strong> de sistemas culturales africanos por parte de 10s coloniza<strong>do</strong>res. Por<br />

no hablar de Ia vivisección étnica que supusieron Ias geométricas fronteras<br />

intercoloniales (hoy, "estatales").<br />

En definitiva, Ia invención de algo tan artificial como es Ia etiqueta


INTEGRAÇÃO ECONÓMICA EM ÁFRICA: PODER E<br />

IDENTIDADE<br />

Introdução<br />

O processo de integração económica regional em África tem mais de quarenta<br />

anos, remontan<strong>do</strong> aos primeiros anos <strong>do</strong>s anos 60, para não referir os casos<br />

desenvolvi<strong>do</strong>s em alguns países, ao tempo ain<strong>da</strong> colónias. Pode surpreender esta<br />

simples referência histórica quan<strong>do</strong> se analisa o desempenho económico <strong>da</strong>s múltiplas<br />

organizações regionais neste continente. É um facto que, desde ce<strong>do</strong>, o discurso<br />

institucional, nomea<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> OUA, ou nacional, através <strong>do</strong>s seus líderes políticos,<br />

apontou a cooperação e a integração regionais como um factor, para uns decisivo,<br />

para outros supletivo mas de enorme importância, impulsiona<strong>do</strong>s <strong>do</strong> desenvolvi-<br />

mento económico nacional e um meio de quebrar a forte dependência comercial<br />

externa. Mas a reali<strong>da</strong>de tem mostra<strong>do</strong> quase o oposto. Inoperância, inactivi<strong>da</strong>de,<br />

mas sempre uma catadupa de declarações de fé no papel <strong>da</strong> integraçáo económica<br />

regional. Quan<strong>do</strong> o processo de globalização segue imparável e, curiosamente, associa<br />

(ou concilia) o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> regionalismo económico num contexto de<br />

liberalização e multilateralismo de acor<strong>do</strong> com as imposições <strong>da</strong> OMC, África não<br />

tem consegui<strong>do</strong> dinamizar e aproveitar o movimento de regionalização económico<br />

no seu interior. Vários factores explicam esta reali<strong>da</strong>de, associa<strong>do</strong>s a questões<br />

económicas, naturalmente, mas igualmente a factores não-económicos. Éneste quadro<br />

que surge o presente trabalho. Ultrapassan<strong>do</strong> a mera análise económica <strong>da</strong> teoria<br />

tradicional <strong>da</strong> integração regional, propomo-nos envere<strong>da</strong>r pelo enfoque <strong>da</strong> economia<br />

política <strong>da</strong> integração regional. Qualquer criação de uma organizaqão regional<br />

promotora <strong>da</strong> integração económica <strong>do</strong>s seus merca<strong>do</strong>s nacionais baseia-se na adesão<br />

voluntária <strong>do</strong>s seus membros. Contu<strong>do</strong>, as suas estruturas económicas e políticas<br />

não têm que se encontrar necessariamente no mesmo patamar de desenvolvimento.<br />

Donde, individualmente, ca<strong>da</strong> Esta<strong>do</strong> membro tem um poder económico, político e<br />

militar ou um reconhecimento e um estatuto regional e internacional diferente.<br />

Acomo<strong>da</strong>r pacificamente to<strong>da</strong>s estas matizes é um exercício muitas vezes complica<strong>do</strong><br />

para as organizações regionais. Se à parti<strong>da</strong> o desnível entre os países é muito<br />

acentua<strong>do</strong>, um tratamento diferencia<strong>do</strong> ou compensatório é exigível, sob pena de<br />

poder estiolar, a prazo, o interesse comum e a própria organização. Ou seja, a


identi<strong>da</strong>de de objectivos projecta<strong>da</strong> no futuro, basea<strong>da</strong> em valores económicos, sociais,<br />

políticos ou institucionais, pode não ser suficiente para segurar a força centrífuga <strong>da</strong><br />

desintegração sen<strong>do</strong> que aquela bastas vezes evocou, com base no passa<strong>do</strong>, uma<br />

identi<strong>da</strong>de assente numa uni<strong>da</strong>de ou homogenei<strong>da</strong>de cultural, línguística, histórica<br />

ou éhica. Sen<strong>do</strong> exploratório ain<strong>da</strong>, este artigo ensaiará observar o processo de<br />

integraçáo pela óptica <strong>do</strong> 'poder e identi<strong>da</strong>de' existente nas organizações, tratan<strong>do</strong>-<br />

as na generali<strong>da</strong>de, exemplifican<strong>do</strong> aqui e ali com casos concretos. Para isso, o trabalho<br />

encontra-se estrutura<strong>do</strong> <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: no ponto 1 será apresenta<strong>da</strong> sinteticamente<br />

a fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> teoria económica <strong>da</strong> integração e sua aplicação aos países em<br />

desenvolvimento; no ponto 2 situar-se-á o aparecimento e o desenvolvimento histórico<br />

<strong>do</strong> movimento de integração em África, ao que se seguirá, no ponto 3, uma apre-<br />

sentação <strong>do</strong>s principais obstáculos aquele processo; no ponto 4 tratar-se-á de analisar<br />

o desempenho <strong>da</strong> integração regional à luz <strong>do</strong> 'poder e identi<strong>da</strong>de' que emanam<br />

individual e regionalmente <strong>do</strong>s processos de integração e <strong>do</strong>s seus Esta<strong>do</strong>s Membros.<br />

As conclusões encerrarão o artigo.<br />

1. Teoria económica <strong>da</strong> integração e os países em desen-<br />

volvimento<br />

A teoria económica <strong>da</strong> integração na sua conceptualização e formalizaçáo mais<br />

elabora<strong>da</strong> remonta ao trabalho seminal' de Viner (1950). Contributos posteriores,<br />

nomea<strong>da</strong>mente de Geherls (1956), Lipsey (1957; 1960), Meade (1956), Mundell(1964)<br />

e Cooper-Massel (1965) lançaram as bases <strong>da</strong>quilo que é <strong>hoje</strong> usual denominar-se a<br />

teoria orto<strong>do</strong>xa ou tradicional <strong>da</strong> integração económica'". A este processo correspon-<br />

dem, no tempo, vários níveis de integração. Desde as formas mais incipientes até às<br />

mais elabora<strong>da</strong>s (ver Balassa, 1961), to<strong>da</strong>s elas têm em comum a supressão de discri-<br />

minação entre os seus membros e num ca<strong>da</strong> vez maior número de <strong>do</strong>mínios e a<br />

existência de discricionari<strong>da</strong>de negativa contra o resto <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>: a zona de comércio<br />

livre, a união aduaneira, o merca<strong>do</strong> comum e a união económica. Tem si<strong>do</strong> usual<br />

considerar-se ain<strong>da</strong> uma outra forma de integraçáo, anterior a to<strong>da</strong>s as indica<strong>da</strong>s: a<br />

área preferencial de comércio2.<br />

Basean<strong>do</strong>-se nos conceitos de criação de comércio e desvio de comércio, nos efeitos<br />

produção <strong>da</strong>í resultantes, nas suas implicações ao nível <strong>do</strong> volume e <strong>do</strong> direciona-<br />

mento <strong>do</strong> comércio externo (tanto de importação como de exportação) <strong>do</strong>s países<br />

integrantes de uma união aduaneira, bem como ain<strong>da</strong> na reafectação de recursos e<br />

' Expressão utiliza<strong>da</strong> por POMFRET (1986: 441-4421 embora este autor admita terem existi<strong>do</strong> vários<br />

coritribiitos pr>-i,inoriaiioi, contu<strong>do</strong> b ~slaiit~ m:iiui el~bura<strong>do</strong>s Vc acor<strong>do</strong> coin BALASS,\ (1961: 10-41)<br />

uu ROBSON (lzS5. IS), atL' 1950 rijo tcri Ihn\,i<strong>do</strong> iieciliiimn =niii,c. rdúricn cunsijtente acerca <strong>da</strong> rria;;.o


na nova estrutura de produção, Viner procurou demonstrar que uma união aduaneira<br />

aumentaria o bem-estar <strong>do</strong>s países membros se o efeito de criação de comércio fosse<br />

superior ao <strong>do</strong> desvio de comércio. Esta análise <strong>do</strong> bem-estar2"acabou por ser comple-<br />

menta<strong>da</strong> pelos três primeiros autores acima nomea<strong>do</strong>s com a introdução deum outro<br />

efeito - o efeito-consumo.<br />

A partir de posteriores contributos teóricos e <strong>da</strong> reflexão sobre os resulta<strong>do</strong>s<br />

alcança<strong>do</strong>s pelas diversas organizações de integração económica regional, Robson<br />

(1985: 39-40) procurou ensaiar uma generalização <strong>da</strong>s diferentes circunstâncias em<br />

que poderá ocorrer a criação e/ou o desvio de comércio. No entanto, no que se refere<br />

à aplicação <strong>da</strong> teoria aos países em desenvolvimento, vários autores têm procura<strong>do</strong><br />

relativizar alguns <strong>do</strong>s princípios e conclusões anteriores, a<strong>da</strong>ptá-los às circunstâncias<br />

específicas <strong>da</strong>quele conjunto de países3 ou ain<strong>da</strong> integrá-los nas suas estratégias de<br />

desenvolvimento (por exemplo, Robson, 1987) A este respeito refiram-se <strong>do</strong>is deles.<br />

Bambhri (1962), por exemplo, põe em causa a aplicabili<strong>da</strong>de nos países em<br />

desenvolvimento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is princípios de Lipsey (1960) que determinam a magnitude<br />

<strong>do</strong> ganho potencial de um país em virtude <strong>do</strong> aumento de especialização que ocorre<br />

no interior de uma união aduaneira", visto que nestes países o comércio entre si é<br />

uma proporção muito pequena <strong>do</strong> seucomércio externo totale o rácio <strong>do</strong> seu comércio<br />

extemo relativamente ao PIB é, a maior parte <strong>da</strong>s vezes, muito eleva<strong>do</strong>. Por outro<br />

la<strong>do</strong>, pensa ser razoável sugerir que o desvio de comércio no interior de uma UA<br />

pode ser duplamente benéfico ao aju<strong>da</strong>r a reduzir os custos nas indústrias onde as<br />

economias de escala são importantes e ao contribuir para o aumento <strong>da</strong> taxa de<br />

investimento e crescimento económico. Donde, conclui, "the ortho<strong>do</strong>x economist will<br />

find these proposals distasteful. A customs union is considered desirable only if it<br />

increases the degree of competition within the union and minimises the trade diverting<br />

effect by reducing the average leve1 of duties on goods imported From other countries.<br />

On the face of it my proposals run counter to the principles of ortho<strong>do</strong>x theory"<br />

(Bhambri, 1962: 54).<br />

Niehauss (1987, p.44), por seu la<strong>do</strong>, destaca igualmente alguns limites <strong>da</strong><br />

abor<strong>da</strong>gem tradicional aplicável aos países desenvolvi<strong>do</strong>s e a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua<br />

a<strong>da</strong>ptação: "in the ortho<strong>do</strong>x theory of customs unions the consumption of private<br />

goods is the sole determinant of national welfare, and hence also of the advantages of<br />

"Sobre as efeitos <strong>do</strong> bemestar ver, entre ouhrs, COLLIER (1979).<br />

Existe actualmente uma vasta literatura acerca desta questão. Recuan<strong>do</strong> no tempo, COOPERand<br />

MASSEL(1965: 461) partilhama opinião de que até então fora cançtruí<strong>do</strong> umaparato teóricopara analisar<br />

o efeito <strong>da</strong> formação de uma união aduaneira sobre um grupo -. de ~aíses economicamente avanca<strong>do</strong>s ,<br />

"mas iiáo existe nenltixm CLI~PU (tcúri~o, de ~nilisc


integration. The 'unortho<strong>do</strong>x' models of an integration theory revised to suit the<br />

situation in developing countries are different, in that the welfare function is widened<br />

to include a public good, namely the industrialisation of the country".<br />

Mas há um elemento que tradicionalmente é <strong>do</strong>s que mais se destacam como<br />

sen<strong>do</strong> um importante factor positivo deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong> integração económica regional e<br />

que beneficia os países em desenvolvimento: as economias de escala. Embora durante<br />

a déca<strong>da</strong> de 50 diversos autores tivessem procura<strong>do</strong> destacar esta questão, é com<br />

Corden (1972) e com a introdução <strong>do</strong>s efeitos redução-custo e supressão de comércio,<br />

ca<strong>da</strong> qual com uma componente de produção e de consumo, que se inicia a teorização<br />

mais elabora<strong>da</strong> acerca <strong>da</strong>s economias de escala nas uniões aduaneiras.<br />

Porém, e no que se refere aos países em desenvolvimento, já na déca<strong>da</strong> anterior<br />

Bhambri (1962) havia tenta<strong>do</strong> enquadrar essa problemática nas características destes<br />

países: "The liiited demand (size market) for most manufactured goods makes large<br />

scale production unprofitable. And without large scale production it <strong>do</strong>es not seem<br />

possible to create efficient industries which could face international competition even<br />

after a reasonable period of protection. In order to increase the size of market for<br />

manufactured goods it has often been suggested that underdeveloped countries<br />

should form customs unions or enter into preferential trading agreements" (p.235).<br />

Embora tradicionalmente uma maior ênfase seja coloca<strong>da</strong> nos efeitos de comércio<br />

que derivam <strong>da</strong> integração económica regional, uma outra vertente, não menos<br />

importante, tem vin<strong>do</strong> a ser ca<strong>da</strong> vez mais referencia<strong>da</strong>. Trata-se <strong>da</strong>s suas conse-<br />

quências sobre os fluxos e orientação <strong>do</strong> investimento, estrangeiro e regional.<br />

Um <strong>do</strong>s aspectos que é posto destaque com a criação <strong>da</strong>s organizações económicas<br />

regionais prende-se com a reafectação de recursos ao nível <strong>da</strong> estrutura de produção.<br />

Um ambiente de maior competitivi<strong>da</strong>de e eficiência no interior <strong>da</strong> área é um <strong>do</strong>s<br />

resulta<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s. Logo, ao nível <strong>do</strong> direcionamento <strong>do</strong> investimento espera-se<br />

que este se dirija para os sectores económicos, nomea<strong>da</strong>mente a indústria, onde o<br />

país apresente maiores vantagens comparativas na produção. O padrão de especiali-<br />

zação que <strong>da</strong>í pode derivar deverá utilizar, particularmente, o espaço alarga<strong>do</strong><br />

conferi<strong>do</strong> pelo conjunto <strong>do</strong>s países que integram o organismo regional. Mas não só.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de a viabilização industrial ser possível através <strong>da</strong> exportação dirigi<strong>da</strong><br />

ao Resto <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> é também uma importante opção que se abre.<br />

Neste contexto, a par <strong>da</strong> criação e desvio de comércio, o realinhamento <strong>do</strong>s<br />

acor<strong>do</strong>s tarifários entre os países <strong>da</strong> área de integração vai igualmente <strong>da</strong>r origem a<br />

<strong>do</strong>is outros efeitos, como destaca Yannoupulos (1987: 94-95): o efeito de criação de<br />

investimento, isto é, o fluxo de investimento originário <strong>do</strong> exterior como resposta<br />

directa aos efeitos <strong>do</strong> desvio de comércio e o efeito de desvio de investimento,<br />

consequência <strong>do</strong>s efeitos de criação de comércio5. Assim, a reacção <strong>do</strong> investimento<br />

'Apenas para elucl<strong>da</strong>r este movimenta, por exemplo o associa<strong>do</strong> à criago de investimento, refira-se<br />

que ele surge porque a desvio de comércio implica per<strong>da</strong> de merca<strong>do</strong> para o produtor <strong>do</strong> país terceira e<br />

que exportava anteriormente para a nova área integra<strong>da</strong>. A resposta a esta ameasa vai ser <strong>da</strong><strong>da</strong> por


estrangeiro às novas condições que se estabeleceram nos países membros <strong>da</strong> área<br />

integra<strong>da</strong>não é menor, quer ao nível <strong>do</strong> volume de investimento quer ao nível <strong>da</strong> sua<br />

afectação sectorial e respectiva orientação <strong>da</strong> produção, seja para o merca<strong>do</strong> regional<br />

seja para países terceiros.<br />

Não haven<strong>do</strong> certamente quaisquer fórmulas únicas e acaba<strong>da</strong>s que garantam o<br />

sucesso <strong>da</strong>s organizações de integração económica regional, nomea<strong>da</strong>mente entre<br />

países em desenvolvimento, Straubhaar (1987a) contu<strong>do</strong>, apresenta uma interessante<br />

aproximação a esta problemática6. Segun<strong>do</strong> ele, exis te um grau óptimo de integração,<br />

determina<strong>do</strong> conjuntamente pela ac~ão interdependente <strong>da</strong> dimensão <strong>da</strong> área a<br />

integrar e <strong>do</strong> nível e homogenei<strong>da</strong>de <strong>do</strong> desenvolvimento industrial <strong>do</strong>s seus<br />

membros. Por outro la<strong>do</strong>, e como condição necessária n priori para que a integração<br />

económica possa vir a ter sucesso, é também imprescindível a existência de algum<br />

grau de harmonização <strong>da</strong>s políticas económicas <strong>do</strong>s diferentes países membros, como<br />

demonstra Blejer (1988: 38): "from past experience it is possible to claim that the<br />

harmonization of policies is in fact a precondition for success and not an additional<br />

stage in the process".<br />

2. A integração económica regional em África<br />

A integração económica africana assumiu, nos primeiros anos após o início <strong>da</strong><br />

vaga de independências no continente, características bem mais próximas <strong>da</strong><br />

cooperação económica <strong>do</strong> que de uma ver<strong>da</strong>deira integração 'tradicional' <strong>do</strong>s seus<br />

merca<strong>do</strong>s, de acor<strong>do</strong> com o estipula<strong>do</strong> na teoria económica <strong>da</strong> integração. As<br />

recomen<strong>da</strong>ções saí<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s duas primeiras reuniões de dirigentes africanos, em 1958<br />

e em 1960, são a este respeito muito claras: promover a cooperação económica entre<br />

os novos Esta<strong>do</strong>s independentes como estratégia de transformação económica. Poucos<br />

anos mais tarde, em 1963, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> Organização de Uni<strong>da</strong>de<br />

Africana (OUA), aquela ideia passa a estar incluí<strong>da</strong> nos seus princípios e objectivos.<br />

Mas não demorou muito para que a perspectiva de integração <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s<br />

nacionais num único merca<strong>do</strong> regional passasse a ser a orientação <strong>do</strong>minante. A<br />

formulação de directrizes para a sua concretização com o intuito final de criar uma<br />

comuni<strong>da</strong>de económica africana (CEA), seguin<strong>do</strong> as fases tradicionais de integração<br />

económica, e partin<strong>do</strong> de blocos regionais, foi repeti<strong>da</strong>mente estipula<strong>da</strong> na Cimeira<br />

de Argel (1968), de Addis-Abeba (1970 e 1973) e formaliza<strong>da</strong> na Cimeira de Libreville<br />

(1977) ao ser ratifica<strong>da</strong> a Declaração de Kmshasa a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong> pelo Conselho de Ministros<br />

investiieiito directo por parte <strong>da</strong> empresa afecta<strong>da</strong> de mo<strong>do</strong> a poder beneficiar <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> alarga<strong>do</strong><br />

regional e <strong>da</strong>s prefergnciaç tarifárias ai existentes.<br />

"questão de parti<strong>da</strong> para este autor é formula<strong>da</strong> na sezrkte interrozacão: "Whv has the acha1


em Dezembro de 1976. Acriação de um Merca<strong>do</strong> Comum Africano, prelúdio <strong>da</strong> CEA,<br />

ficou assente na Declaração de Compromisso de Monróvia (1979), ao que se seguiu,<br />

em 1980, com a 1" Cimeira Económica Extraordinária <strong>da</strong> OUA realiza<strong>da</strong> em Lagos<br />

(Nigéria), a aprovação <strong>do</strong> Plano de Acção de Lagos, eiva<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> de um espírito <strong>do</strong><br />

tipo 'locus controlo externo' quanto à identificação <strong>do</strong>s factores explicativos <strong>da</strong>s<br />

debili<strong>da</strong>des económicas <strong>do</strong> continente. Em consonância com isso, a ideia <strong>da</strong> per-<br />

manência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> auto-centramento no seu pior senti<strong>do</strong> e <strong>do</strong> reforco <strong>da</strong><br />

cooperação e integraçáo regionais como forma de oposição ao exterior, encontraram<br />

aqui terreno fértil7. Foi então afirma<strong>da</strong> a intenção de criar até ao ano 2000 uma CEA<br />

"a fim de assegurar a integração económica, social e cultural <strong>do</strong> Continente"Lpartin<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des sub-regionais já existentes ou a criar.<br />

Finalmente, e depois de reafirma<strong>da</strong> a determinação <strong>do</strong>s países africanos na<br />

toma<strong>da</strong> de medi<strong>da</strong>s que permitissem acelerar a realização <strong>do</strong> projecto <strong>da</strong> CEA<br />

(Declaração <strong>do</strong> 25"Aniversário <strong>da</strong> OUA, em 1988), foi finalmente a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong> durante<br />

a 28" Cimeira (1991) umanova 'Magna Carta' <strong>da</strong> integração económica africana e que<br />

é conheci<strong>da</strong> pelo Trata<strong>do</strong> de Abuja9. Ficou ai decidi<strong>do</strong> que o objectivo <strong>do</strong>s países<br />

africanos seria a criaçáo de uma comuni<strong>da</strong>de económica continental, a ser atingi<strong>da</strong><br />

no final de um perío<strong>do</strong> de 34 anos (ano 2028), excepcionalmente ao fim de 40 anos,<br />

depois de cumpri<strong>da</strong>s seis etapas1$ cujos objectivos e prazos de implementação são os<br />

seguintes:<br />

1) Reforçar as comuni<strong>da</strong>des económicas regionais e criar outras quan<strong>do</strong><br />

necessário (5 anos, isto é, até 1999)<br />

2) Estabilizar as tarifas e outras barreiras ao comércio regional e reforçar a<br />

integração sectorial, nomea<strong>da</strong>mente ao nível <strong>do</strong> comércio, agricultura, finanças,<br />

transportes e comunicações, indústria e energia, bem como ain<strong>da</strong> coordenar e<br />

harmonizar as activi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des regionais (8 anos, isto é, até 2007)<br />

3) Estabelecer uma área de comércio livre e uniões aduaneiras em ca<strong>da</strong> uma<br />

<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des regionais (10 anos, isto é, até 2017)<br />

4) Coordenar e harmonizar o sistema tarifário e não-tarifário entre as comuni-<br />

<strong>da</strong>des regionais, com vista ao estabelecimento de uma União Aduaneira Continental<br />

(2 anos, isto é, até 2019)<br />

5) Estabelecer um Merca<strong>do</strong> Comum Africano e a<strong>do</strong>ptar políticas comuns (4 anos,<br />

isto é, até 2023)<br />

. .<br />

'Sobre esta ouestao ver, entre out~os, TORRES (1986).<br />

*De acor<strong>do</strong> iam o ~reikbulo <strong>do</strong> ~rata<strong>do</strong> de Cria~ão <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de Económica Africana, cf. texto<br />

constitutivo, VASQUES (ed.) (1997: 2).<br />

'Este Trata<strong>do</strong> relativa à criacáo de uma Comuni<strong>da</strong>de Económica Africana bemcomooçaueçe referem<br />

:i Coinrini<strong>da</strong>de Cc~nVmica <strong>do</strong>a tsri<strong>do</strong>a <strong>da</strong> Africa O;i.ienl.il (CFDFAO), :i UiiiQo Fzxiiinic; c Munetirii<br />

Oestc-Africmn (CEJtOA). i UriiJu Myiuti:rári~ O~sl~-,lfric~n~ (UhtO~\l, ao Mcr:atio Cumiiin <strong>da</strong> ifrica<br />

Oriental e Austral (COMESA) ou à Comuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Desenvolvimento <strong>da</strong> África Austral (SAIX). nadem<br />

~~ ~,..<br />

ser enc~n~a<strong>do</strong>s em VASQUÉS (ed.) (1997).<br />

'O Ver Trata<strong>da</strong> <strong>da</strong> CEA, capitulo~l, nomea<strong>da</strong>mente art. 4 (objectivos) e art. 6 (mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

estabelecimento <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de).<br />

~~~~-~


6) Integrar to<strong>do</strong>s os sectores, estabelecer um Banco Central e uma moe<strong>da</strong> única<br />

africanas, edifican<strong>do</strong> uma União Económica e Monetária Africana e crian<strong>do</strong> e elegen<strong>do</strong><br />

o primeiro Parlamento Pan-Africano (5 anos, isto é, até 2028).<br />

Este novo impulso introduzi<strong>do</strong> pela aprovação <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Abuja lançou uma<br />

certa on<strong>da</strong> de entusiasmo em África, com vários autores a verem aqui uma nova<br />

'janela de oportuni<strong>da</strong>de' para o processo de integração regional (Schweickert, 1996;<br />

Rowlands, 1998; Dupréelle, 2001 ou Olivier, 2001), já que, com a viragem <strong>do</strong> século, a<br />

ideia <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong> OUA em União Africana, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhe um novo fôlego, e a<br />

previsível aprovação de um programa económico para o continente -que veio a ser<br />

o NEPAD - poderão vir a ser decisivos para a ultrapassagem <strong>do</strong>s bloqueamentos à<br />

integração económica regional.<br />

De mo<strong>do</strong> a facilitar a criação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de económica continental (CEA), a<br />

Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD), a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong> pelos países<br />

africanos em 2001, coloca uma ênfase especial no processo de integração, articulan<strong>do</strong>-<br />

-o com os seus objectivos mais gerais (NEPAD, 2001; UNCTAD, 2003). É proposto<br />

que os esforços de integração regional se façam em torno <strong>da</strong>s principais organizações<br />

existentes, deven<strong>do</strong>, neste caso, ca<strong>da</strong> país ficar membro de uma única dessas organi-<br />

zações, ao contrário <strong>do</strong> que actualmente se passa. Essas organizaçóes deverão ser a<br />

UMA, a CEEAC, a COMESA, a SADC, a CEDEAO e o IGAD, sen<strong>do</strong> que a CEN-SAD<br />

(Comuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Sahel-Saharianos) deverá também integrar aquele<br />

grupo1'.<br />

3. Obstáculos à integração económica regional emÁfrica<br />

Embora o movimento de cooperação e integração económica regionaisem África<br />

seja uma reali<strong>da</strong>de de algumas déca<strong>da</strong>^'^, as dificul<strong>da</strong>des senti<strong>da</strong>s pelos seus membros<br />

em aprofun<strong>da</strong>r as suas relações económicas, antes <strong>do</strong> mais comerciais, evidenciam a<br />

existência de inúmeros factores que condicionam a prossecução desses objectivos.<br />

Estes factores não sáo exclusivamente económicos. É certo que na maior parte<br />

<strong>do</strong>s casos serão determinantes. Mas outros, de ín<strong>do</strong>le política, social, cultural ou<br />

histórica têm igualmente desempenha<strong>do</strong> papel assinalável. Por outro la<strong>do</strong>, a reflexão<br />

e o balanço sobre a prática e os resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s pelas organizações regionais<br />

africanas de integração económica necessitam de ser analisa<strong>da</strong>s e questiona<strong>da</strong>s à luz<br />

<strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>des próprias <strong>do</strong>s países em desenvolvimento. Isto é, será demasia<strong>do</strong><br />

imprudente olhar a aplicação <strong>da</strong> teoria económica <strong>da</strong> integração sem se atender à<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua a<strong>da</strong>ptação em contextos diferencia<strong>do</strong>s <strong>da</strong>queles para os quais foi<br />

originalmente pensa<strong>da</strong>13. Porém, se isto é ver<strong>da</strong>de, não devem existir igualmente con-<br />

" Conforme UNECA (2002) ou GRIGGS (2003: 83).<br />

"Entre os muitos textos sobre este assunta, ver ROBÇON (1987), BADI (1993) ou AURRE (2002).<br />

"Ver as críticas de, entre outros, BHAMBN (1962), COOPER and MASSEL (1965), STRAUBHAAR<br />

(1987), NIEIiAUS (1987) ou BLEJER (1988).


cessões gratuitas diante de argumentos explicativos mas falaciosos para os limita<strong>do</strong>s<br />

resulta<strong>do</strong>s que essas organizações têm regista<strong>do</strong>.<br />

Daqui resiilta que, sen<strong>do</strong> importante olhar para os efeitos e ganhos estáticos <strong>da</strong><br />

integração, nomea<strong>da</strong>mente pela análise <strong>da</strong> criacão e desvio de c~mércio'~, a interpretação<br />

basea<strong>da</strong> na evolução temporal <strong>do</strong>s valores de comércio intra-regional, isto é,<br />

efectua<strong>do</strong> entre os países-membros <strong>da</strong> organização regional, relativamente ao valor<br />

<strong>da</strong>s trocas efectua<strong>da</strong>s com o Resto <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, é um importante elemento, e tem si<strong>do</strong><br />

uma referência, de aferição <strong>da</strong>s consequências <strong>da</strong> criação de uma zona de integração<br />

económica. Espera-se que esse rácio aumente ao longo <strong>do</strong> tempo como consequência<br />

<strong>do</strong> estímulo que decorre <strong>do</strong> abatimento de barreiras aduaneiras e não aduaneiras no<br />

interior <strong>da</strong> zona, o que funciona como uma protecção face às importações de países<br />

não-membros.<br />

Mas um <strong>do</strong>s principais aspectos referi<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> um elemento decisivo para<br />

a criação de áreas de integração económica regional tem aver com os efeitos dinâmicos<br />

que ela permite obter, nomea<strong>da</strong>mente as economias de escala.<br />

A simples oportuni<strong>da</strong>de de alargamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> potencial onde operarão<br />

as indústrias pode conduzir à obtenção de rendimentos crescentes deriva<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s<br />

economias de escala. Este alargamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> possibilitará então atingir uma<br />

maior racionali<strong>da</strong>de no aproveitamento <strong>do</strong>s recursos existentes, na obtenção de economias<br />

de escala e na definição de uma especialização produtiva <strong>do</strong>s países envolvi<strong>do</strong>s.<br />

Nestas circunstâncias viabilizaria quer o futuro <strong>da</strong> área a integrar quer o desenvolvimernto<br />

<strong>do</strong>s países toma<strong>do</strong>s individ~almente'~.<br />

Aleitura <strong>do</strong> Quadro 1, cobrin<strong>do</strong> uma largo perío<strong>do</strong> de tempo, desde os anos précriação<br />

desta ou <strong>da</strong>quela organização, até à actuali<strong>da</strong>de, permite tirar algumas<br />

conclusões interessantes sobre aquelas organizações.<br />

Na entanto, e como faz notar EL AGRAA (1985: 198-199), a criagáo de comércio entre PVD será<br />

numa primeira fase bem menor <strong>do</strong> que o desvio de comércio emvirhide <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de industrialização<br />

que esses oaises sentem. Daiaue só a longa-vazo ,. . os efeitos <strong>da</strong> integra<strong>do</strong> - . económica entre PVD possam<br />

scr r~,alinciitcsi~tiificiti\.us I'iiriiiitr~,Iidu, I'E.Alarativo<br />

par., .iii.ilis.ir J, efeitos LI, Lieiii-estir cm <strong>do</strong>is paiic., african Clna c ZI Cos13 <strong>do</strong> Xlaifim,<br />

demoiiçtram; importância <strong>do</strong>s ganlios potenciais que podem obter em virtude <strong>da</strong> existência de<br />

economias de escala e <strong>da</strong>s divergências existentes nas estrutiiras e,conómicas nacionais.<br />

Ver, por exemplo KREININ, 1964. Num caço aplica<strong>do</strong> a Africa, IHAZLEWOOD (1966: 13) refeie<br />

que "If tliecommon market (Tlw Eaçt AfricanCammonMarket) survives itis likelv to become of incieasing u<br />

iiiipi>rtaiicz in tli: fiirur~, L~at .Africa is rill in did wry :arly slii8r.s


Quadro 1<br />

Quota <strong>do</strong> comércio intra-regional e <strong>do</strong> comércio mundial <strong>do</strong>s principais<br />

agrupamentos econórnicos regionais em África (em %)<br />

Fonte: elabora<strong>do</strong> a partir de World Bnnk (1998; 2004)<br />

Notas: a) a 1" linha correspondente, para ca<strong>da</strong> agrupamento, à quota (em %) <strong>da</strong>s exportaçócs<br />

efectua<strong>da</strong>s no seu interior relativamente às suas exportações totais;<br />

. . L<br />

b) a 2' linha corresoondente. vara ca<strong>da</strong> aeruoamento. à auota (em %) <strong>da</strong>s suas exoortacóeç totais<br />

. L . .<br />

.<br />

relativamente às exportações mundiais;<br />

CEMAC (Comuni<strong>da</strong>de Económica e Monetária <strong>da</strong> África Central): Chade, Camarões, Gabio,<br />

~uiné-Équatorial, Cango e Rep. Centro-Africana; UDEAC (União Aduaneira e Económica <strong>da</strong> Áfka<br />

Central); CEPGL (Comuni<strong>da</strong>de Económica <strong>do</strong>s Países <strong>do</strong>s Grandes Lagos): Ruan<strong>da</strong>, Burundi e R.D.<br />

Congo; COMESA (Merca<strong>do</strong> Comum <strong>da</strong> África Oriental e Austral): Egipto, Sudão, E~itreia, Djibouti,<br />

Çomália. Ugan<strong>da</strong>, Quénia, Burundi, Ruan<strong>da</strong>, Tanzânia, Comores, Seycheleç, Mauricias, R.D. Congo, Angola,<br />

MaLawi, Ma<strong>da</strong>gáscar,Suazilândia, Zmbabwe, Zâmbia e Namiiia; PTA (Acor<strong>do</strong> Preferencial de Comércio<br />

<strong>da</strong> Africa Oriental e Austral); CBI (IniciativaTrans-Franteiriga): Burundi,Comores,Quénia,Ma<strong>da</strong>gáscar,<br />

Malawi, Maurícias, Namiiia, Ruan<strong>da</strong>, Seycheleç, S:azilândia, Tanzânia, Ugan<strong>da</strong>, Zâmbia e Zimbabwe;<br />

CEEAC (Comuni<strong>da</strong>de Económica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Africa Central): Angola, Biirundi, Camarões, Chade,<br />

Congo. Guiné-Equatorial, Gabão, Ruan<strong>da</strong>, São Tomé e Príncipe, Rep. Centro Africana e R.D. Congo;<br />

CEDEAO (Comuni<strong>da</strong>de Económica <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Africa Ocidental): Bénine,Burkina Faso,Cabo Verde,<br />

Costa <strong>do</strong> Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Biçsau, Libéria, Mali, Mattritânia, Níger, Iqigériu, Sencgal,<br />

Serra Leoa e Togo; IOC (Comissão <strong>do</strong> Oceano Indico): Comores, Ma<strong>da</strong>gascar, Maurícias, Reunião e<br />

Seycheles; MRU (União <strong>do</strong> Rio Manu!: Guiné, Libéria e Serra Leoa; SADC (Comuni<strong>da</strong>de para o<br />

Desenvolvimento <strong>da</strong> África Austral): Africa <strong>da</strong> Sul, Angola, Batswana, Lesoto, Malaivi, Maiiriciaç,<br />

Maçambique, Nadia, R.D. Conm, ., Sevclieles. . Suazilándia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwe; SADCC<br />

(cunferêneia para a Coordeiiaibi.i c Ziinbabsvc; UE\IUA (Unijo Lconiirnica c<br />

Monet~rin<strong>da</strong>Áfri~aOrideninl): UI:iiiiic. Biirkiii;i T.?~o,Cost.~~l~ \I


Aprincipal conclusão que decorre <strong>do</strong> Quadro 1 diz respeito à diminuta quota <strong>do</strong><br />

comércio intra-regional nas várias organizações, atingin<strong>do</strong> o máximo de 12-13s no<br />

caso <strong>da</strong> UEMOA, segui<strong>do</strong> por valores na ordem <strong>do</strong>s 10% para os casos <strong>da</strong> CBI, <strong>da</strong><br />

SADC e <strong>da</strong> CEDEAO. Nas restantes organizações, e retiran<strong>do</strong> o caso <strong>da</strong> COMESA<br />

(cerca de 6%), os valores são bastante incipientes. Asegun<strong>da</strong> constatação, e que deve<br />

ser interpreta<strong>da</strong> conjuntamente com a conclusão anterior, refere-se à evolução temporal<br />

<strong>da</strong> quota <strong>do</strong> comércio intra-regional. Com excepção <strong>da</strong> CEDEAO e <strong>da</strong> SADC, que<br />

antes <strong>da</strong> sua formação apresentavam um valor de cerca de 5% de comércio intraregional<br />

e que, após surgirem, subiram para 10% e por aí se têm manti<strong>do</strong>, e <strong>da</strong> UEMOA<br />

(que integra vários países <strong>da</strong> CEDEAO) que de forma um pouco mais pronuncia<strong>da</strong><br />

tem vin<strong>do</strong> a ganhar quota intra-regional, em to<strong>da</strong>s as restantes organizações os efeitos<br />

são negligenciáveis. Finalmente, e de acor<strong>do</strong> com o que se tem vin<strong>do</strong> a registar com a<br />

dimimuição <strong>da</strong> importância relativa de África no comércio internacional, o peso <strong>da</strong>s<br />

organizações de integração africanas nas exportações mundiais é bastante reduzi<strong>do</strong>,<br />

sempre inferior a 1%. Exemplares são os casos <strong>da</strong> UMA, COMESA e SADC. A soma<br />

<strong>da</strong> participação <strong>do</strong>s seus actuais membros no comércio mundial no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 70 era superior a 1% (no caso <strong>da</strong> SADC era mesmo superior a 2%) e foi sucessivamente<br />

decain<strong>do</strong> até atingir quotas muito abaixo <strong>do</strong>s 1%.<br />

As explicações económicas para este baixo desempenho têm a ver sobretu<strong>do</strong><br />

com a 'falta de complementari<strong>da</strong>de comercial entre os países parceiros, a dimensão<br />

reduzi<strong>da</strong> <strong>do</strong>sseus merca<strong>do</strong>s, a kaca infraestrutura de transportes ou ain<strong>da</strong> os eleva<strong>do</strong>s<br />

custos de comércio nas fronteiras' (Yang and Gupta, 2005: 37 ou ain<strong>da</strong> UNCTAD,<br />

2003: 54). Destaque-se a importância <strong>da</strong> dimensão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> associa<strong>da</strong> à baixa<br />

diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> estrutura económica <strong>do</strong>s países, nomea<strong>da</strong>mente a industrial. As<br />

implicações práticas sobre o comércio intra-regional são evidentes, como evidente se<br />

torna, neste caso concreto, a aplicação <strong>do</strong>s preceitos teóricos tradicionais. Como<br />

sublinham Greenaway and Milner (1990: 59), "a z~nion nmong similar economies presunze<br />

thnt trnde expnnsion will comefrom intrnindt~stry specinlizntion nnd product d$ferentintion.<br />

Such expansion has been found among the members of the EC, where market size<br />

and incomes can support such specialization, birt it is fnr less possiblenmong compnrnlile<br />

but smnller, poorer mnrkets". Estes e outros factores têm conduzi<strong>do</strong> os países a insistirem<br />

numa política próxima <strong>da</strong> substituição de importações, à custa de eleva<strong>do</strong>s proteccionismos<br />

quer face aos países parceiros quer face ao exterior, o que não tem<br />

contribuí<strong>do</strong> para melhorar o ambiente propício à integração (ver UNECA, 2004a).<br />

Uma <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong>des <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>queles autores diz respeito à chama<strong>da</strong> de atenção<br />

para o esforço que deve ser coloca<strong>do</strong> na integração regional ten<strong>do</strong> em conta a<br />

necessi<strong>da</strong>de de aproveitar a sua inserção na economia mundial (atitude pró-a~tiva)'~<br />

e não, como no passa<strong>do</strong>, com a ideia de auto-centramento e isolamento <strong>do</strong> resto <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> (atitude defensiva e conserva<strong>do</strong>ra). Aliás, é neste mesmo senti<strong>do</strong> que o NEPAD<br />

Situavão, aliás, referi<strong>da</strong> por diversos autores. Veja-se, entre ouhos, MBAKU (1995) e BOTCHWEY,<br />

1998.


pugna como nova orientação e dinâmica <strong>da</strong>s organizações regionais africanas, o que<br />

não passa sem críticas de diversos autores, os quais sublinham o carácter neo-liberal<br />

desta via (a propósito <strong>do</strong> caso <strong>do</strong>s países <strong>da</strong> SADC, ver, por exemplo, Pallotti, 2004).<br />

Por seu turno, Mshomba (2000), à semelhança de Hugon (1998), sintetiza os<br />

constrangimentos em tomo de seis explicações: falta de vontade e empenhamento<br />

político <strong>do</strong>s líderes nacionais; eleva<strong>da</strong> dependência face aos países <strong>do</strong>a<strong>do</strong>res; <strong>do</strong>mínio<br />

de países estrangeiros, nomea<strong>da</strong>mente em termos de permissão de acesso aos<br />

merca<strong>do</strong>s; calendários irrealistas; receio <strong>da</strong> distribuição desigual <strong>do</strong>s benefícios e<br />

instabili<strong>da</strong>de política. Ninalowo (2003), referin<strong>do</strong>-se a Adebayo Adedeji, secretário<br />

executivo <strong>da</strong> Comissão Económica <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a África, destaca a falta<br />

de vontade política para estabelecer instituições regionais credíveis, a falta de sanções<br />

contra os prevarica<strong>do</strong>res <strong>da</strong>s decisões, a sobreposição de organizações regionais e a<br />

pertença simultânea a várias delas por parte <strong>da</strong> maioria <strong>do</strong>s países africanos16: a<br />

forte dependência <strong>da</strong>s receitas aduaneiras no orçamento de Esta<strong>do</strong>': a falta de<br />

mecanismos compensatórios para tomar mais equitativa a balança <strong>do</strong>s custos e a<br />

apropriação diferencia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s benefícios por parte <strong>do</strong>s diversos países, os objectivos e<br />

os calendários irrealistas <strong>da</strong>s organizações regionais, a náo observação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de<br />

direito ou ain<strong>da</strong> a existência de um fraco sector económico priva<strong>do</strong> e diminuta participação<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civillS.<br />

Bra<strong>da</strong> e Mendez (1985), por seu la<strong>do</strong>, chamam a atenção para os eleva<strong>do</strong>s custos<br />

de transporte, ou seja, o factor distância, considera<strong>do</strong>s nulos na teoria tradicional,<br />

mas toma<strong>do</strong>s por vezes incontornáveis <strong>da</strong><strong>da</strong> a dimensão (área) geográfica <strong>da</strong> organiza~ão'~<br />

e a incipiente rede de infraestruturas ro<strong>do</strong>viárias, ferroviárias ou portuárias<br />

existente nesses paísesm. Confirman<strong>do</strong> isto mesmo, a UNECA (2004; 2005) publicou<br />

um exaustivo e clarifica<strong>do</strong>r estu<strong>do</strong> sobre as barreiras à integração económica regional<br />

que derivam <strong>da</strong> existência de uma fraca quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s infraestruturas nacionais e<br />

regionais no continente. Outros constrangimentos referi<strong>do</strong>s na literatura sobre este<br />

tema são: a) a dificul<strong>da</strong>de de conciliação de políticas económicas origina<strong>da</strong>s nas<br />

lbO que não impediu o reaparecimento <strong>da</strong> Comi<strong>da</strong>de Económica <strong>da</strong> África Oriental em 2001, d:<br />

MAUNDI, 2001.<br />

" Em 2000, por exemplo, aquelas receitas representavam 23% 27% 53% 31%. 52% 54% e 49%<br />

respectivamente para a R.D. C~ngo, Costa <strong>do</strong> Marfim, Ma<strong>da</strong>gascar, Maurícias, Seycheles, Swazilândia e<br />

Ugan<strong>da</strong>, enquanto que para a Africa <strong>do</strong> Sul esse valor era apenas de 3%.<br />

"O texto em causa é Adebaya Adedeji (2000), "Defining prioritieç for regional integiation: history<br />

and prospects . . for rezional interratian in Africa". Afrrcnn Developmenf Fonuiz 111, Uneca, Addis Ababa.<br />

'~cis~du~;rne~a(.\ler~.i.lu~uniiirn<strong>do</strong>~~;l.i~osil.i .íf;ici iicI.~~sir.i~ù~ ~frica~ur!i.~l), fcirnii<strong>do</strong><br />

cin !99l equcsiicxicii tio MA (19Sl),~~i~~corigr~~~?3<br />

paisesccuja irca lrilalc mais d~.-I )'.<strong>da</strong> siip~r!icie<br />

dc Afric.1 c'lalvc~ oc~sna;iu~l iiiiiscvideiitc, eniiibora euist~moitlrassitii~~úis (Vr.r, por crrmplo, hlCUK.4,<br />

ct aI, 19%) SIMCBI 1.AAR (1987: 39,. rcfcrccliiesconflitu L. limires riu yruce,iJ de iiitc;:i(So na Viiii~,<br />

Ilcr>ti6inic;~ c Adnan~ir~ dl Áfrim Cciiird (CViAC) e na Corniini<strong>da</strong>dc ,105 IJais2s <strong>do</strong> i.catc de Africa<br />

(EAC) se deveram mais à dimemáo <strong>da</strong> área a integrar <strong>do</strong> que à heterogenei<strong>da</strong>de enhe osseus membros.<br />

Problema que náo é recente, antes pelo conkário, desde a formação <strong>da</strong>s primeiras organizações<br />

regionais que ele tem vin<strong>do</strong> a ser destaca<strong>do</strong> como salientava já HAZLEWOOD (1966: 13)referin<strong>do</strong>-se à<br />

extinta Comuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> África de Leste: "the geography of East Africa resuits in much of<br />

Kenias's industry receiving a 'transport-cost protectian".


diferenças de estrutura económica <strong>do</strong>s países membros; b) as diferenças relativamente<br />

ao desenvolvimento industrial alcança<strong>do</strong>, a sua capaci<strong>da</strong>de para o dinamizar no<br />

contexto regional2' e a posição <strong>do</strong>minante que isso lhe confere nas trocas inlraregionais;<br />

c) o não cumprimento <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong>s regimes aduaneiros preferenciais,<br />

conduzin<strong>do</strong> na maior parte <strong>do</strong>s casos a políticas 'nacionalistas' proteccionista^^^, o<br />

que está directamente liga<strong>do</strong> à importância <strong>da</strong>s receitas aduaneiras no total <strong>da</strong>s receitas<br />

fiscais de um paísa; d) a dificul<strong>da</strong>de de conciliar as políticas de liberalização comercial<br />

e económica, a nível nacional e dentro <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s de integração, com a<br />

toma<strong>da</strong> demedi<strong>da</strong>s no âmbito <strong>do</strong>s programas de estabilização e ajustamento estrutural<br />

(ver, por exemplo, Torres, 1999 ou Aurre, 2002) ou enquanto instrumentos de promoção<br />

<strong>do</strong> desenvolvimento nacional (Oyejide, 1998; UNECA, 2004a); e) a inaplicabili<strong>da</strong>de<br />

<strong>do</strong>s regimes de compensação financeira a favor <strong>do</strong>s países mais drsfavore~i<strong>do</strong>s~~; f) a<br />

diferença na apropriação e distribuição <strong>do</strong>s benefícios e custos <strong>do</strong> processo de<br />

integração, o que, como destacam Greenaway and Milner (1990: 60), pode levar à<br />

dissolução <strong>da</strong> organização: "(if countries are at different stages of development)<br />

asymmetrical gains without a formal mechanism for redistribution can create political<br />

tensions among the members that undermine their commitment and can eventually<br />

destroy the union"; g) a diferença de estratégias e políticas de desenvolvimento entre<br />

os países membrosz5; h) os problemas de falta de coordenação <strong>do</strong>s instrumentos de<br />

política económica; i) a dificul<strong>da</strong>de de compatibilização de sistemas políticos e<br />

económicos; j) a instabili<strong>da</strong>de interna de um número apreciável de países; k) a existência<br />

de conflitos políticos entre países membrosz6; 1) a falta de apoio político-social<br />

permanente, no interior <strong>do</strong>s países, relativamente ao processo de integração.<br />

" Ouestão senti<strong>da</strong> desde muito ce<strong>do</strong>: "the oroeress of inteiration will deuend in vart on a deal<br />

wliicli ~siiire~each plrticipniit of some iriiiiistri~l groirili Uial it iioiild not arlicrwibvIiavealtract~~d',ri<br />

IIOBSOS (1966: 105,, r,.ferindii-.c i iiitc.^r~


4. Identi<strong>da</strong>de e poder na integração ecorzómica em África<br />

Poder e identi<strong>da</strong>de desde sempre estiveram presentes, mesmo quena maior parte<br />

<strong>do</strong>s casos apenas de forma implícita, no debate sobre a via e os objectivos <strong>do</strong> movimento<br />

'cooperativo' africano, com a ideia de uni<strong>da</strong>de africana e fronteiras coloniais a<br />

ocuparem o seu centro. Ain<strong>da</strong> antes <strong>do</strong> início <strong>da</strong> vaga de independências <strong>do</strong> final <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 50 e princípios <strong>do</strong>s anos 60, diversos intelectuais e políticos africanos<br />

abor<strong>da</strong>vam a questão, particularmente em torno <strong>da</strong> ideia de um 'pan-africanismo'<br />

(Tre<strong>da</strong>no, 1989: 42-48) que projectavam para o perío<strong>do</strong> pós-independência. É neste<br />

contexto que surgem tentativas de efectivar reagrupamentos regionais anteceden<strong>do</strong><br />

a independência, como sejam o Conselho <strong>da</strong> Entente (União Sahel-Benine), a União<br />

Africana e Malgache, ou o projecto <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> África Latina de Barthélemy<br />

Bogan<strong>da</strong>, a Federação <strong>do</strong> Mali (Senegal, Sudão, Burkina Faso e Benine) ou a União<br />

Gana-Guiné. Diferentemente <strong>da</strong>s primeiras, as últimas aproximavam-se mais <strong>da</strong> ideia<br />

pan-africana que punha em causa as fronteiras coloniais traça<strong>da</strong>s na Conferência de<br />

Berlim (Tre<strong>da</strong>no, 1989: 48-59).<br />

Neste movimento, N'Krumah, que viria a tornar-se no primeiro Presidente<br />

<strong>do</strong> Gana, ocupou um lugar de destaque. Num <strong>do</strong>s seus textos mais conheci<strong>do</strong>s,<br />

N'Krumah insistia que "os africanos deveriam tornar 'supérfluas e obsoletas' as<br />

fronteiras coloniais" (Muchie, 2000: 299), acrescentan<strong>do</strong>: "it is a golden opportunity<br />

to prove that the genius of the African people can surmount the separatist tendencies<br />

in sovereign nationhood by coming together speedily, for the sake of Africa's greater<br />

glory and infinite well-being, into a Union of African State~"~~. Como refere Aurre<br />

(2002: 67) ou Badi (1993: 119), a reivindicação <strong>da</strong>quela altura baseava-se na falta de<br />

correspondência entre as fronteiras estabeleci<strong>da</strong>s pelos poderes coloniais sem lógica<br />

racional assente em critérios étnicos, económicos ou políticos, <strong>da</strong><strong>da</strong> a completa<br />

ausência de sensibili<strong>da</strong>de no que respeita à composição pré-colonial <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />

africanas". No entanto, e logo que os países se tomaram independentes, a ideia <strong>da</strong><br />

manutenção <strong>do</strong> 'status quo' fronteiriço e o início <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder no'seu'espaço<br />

nacional, levou os dirigentes africanos a voltarem costas à questão que aparentemente<br />

parecia ser a central e de justiça - a redefiniqão <strong>da</strong>s fronteiras coloniais que implicaria<br />

nalguns casos uma fusão de países. Ao assim se proceder, tomou-se claro que a questão<br />

central era, na reali<strong>da</strong>de, uma questão de poder, de exercício de poder, sem abdicar<br />

de soberania para outros. Não é de estranhar, assim, que diante destas resistências,<br />

os líderes africanos, ao criarem a Organização de Uni<strong>da</strong>de Africana, em 1963, inscrevessem<br />

na sua Carta Constitutiva a ideia <strong>da</strong> 'intangibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras à época<br />

<strong>da</strong>s independências'". Ou seja, a reivindicação de uma identi<strong>da</strong>de pré-colonial e a<br />

=Kwame N'Krumah (1963). Africn Mirst Unite, Lon<strong>do</strong>n, Panaf, p.221-222, cita<strong>do</strong> emMUCHIE (2000:<br />

299).<br />

%Para umestu<strong>do</strong> muito detalha<strong>do</strong> sobre esta questão verTREDAN0 (1989)


sua reposição para ultrapassar o artificialismo e a divisão imposta pelas potências<br />

coloniais não foram suficientes perante a perspectiva <strong>do</strong> exercício de poder nacional.<br />

Neste quadro, Aurre (2002: 68) defende que, num primeiro momento, o reforço <strong>do</strong>s<br />

laços inter-territoriais passou para segun<strong>do</strong> plano <strong>da</strong><strong>da</strong> a importância <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de<br />

de construção nacional e <strong>do</strong> sentimento de identi<strong>da</strong>de nacional, o que se torna mais<br />

complica<strong>do</strong> em Esta<strong>do</strong>s multi-éinicos, como muitos autores o têm sublinha<strong>do</strong>.<br />

Donde, a ideia funcionalista pan-africana de conteú<strong>do</strong> político avança<strong>da</strong> por<br />

N'Kmmah apenas alimentou a quimera enquanto não se passou para o la<strong>do</strong> prático<br />

<strong>da</strong> questão, isto é, após as colónias se tomarem independentes, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>-se então<br />

a ideia <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de política continental em favor de blocos regionais (Nweke, 1987).A<br />

proposta de integração <strong>do</strong> Gana e <strong>do</strong> Togo, em 1960, avança<strong>da</strong> por N'ICrumah e<br />

rechaça<strong>da</strong> como sen<strong>do</strong> um 'insulto' pelo primeiro-ministro togolês ou a consideração<br />

pelo presidente <strong>da</strong> República Centro Africana de que a abertura de uma sede <strong>do</strong><br />

parti<strong>do</strong> único zairensena capital <strong>da</strong>quele país era um atenta<strong>do</strong> à integri<strong>da</strong>de territorial<br />

nacional (o que levou à saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> RCAfricana <strong>da</strong> organizaçao regional UEAC em 1968),<br />

revela bem como a 'soberania nacional', isto é, o poder, teve mais força e argumentos<br />

<strong>do</strong> que a evocação identitária histórica. O resulta<strong>do</strong> é que, ao fim de 40 anos, o padrão<br />

<strong>da</strong>s ligações verticais e a ausência virtual de ligações horizontais inter-africanas tanto<br />

a nível regional como continental (Muchie, 2000: 298) é uma efectiva denúncia <strong>da</strong><br />

vitória <strong>da</strong> retórica ou, visto de outro ângulo, <strong>do</strong> pragmatismo sobre a real disponi-<br />

bili<strong>da</strong>de e vontade política em avançar no processo de integração regional e<br />

continental.<br />

A questão identitária, nomea<strong>da</strong>mente pela evocação histórica, cultural, linguística<br />

ou mesmo étnica, serviu antes e depois <strong>da</strong>s independências como argumento para a<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reposição <strong>da</strong> 'ver<strong>da</strong>de' em diversas dimensões. Propostas como as<br />

efectua<strong>da</strong>s por Mobutu com o projecto LENA, ten<strong>do</strong> criar uma sub-OUAque excluisse<br />

os países árabes ou o seu processo de 'autenticité' zairense e africana; o projecto <strong>do</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>da</strong> África Bantú proposta por T. Obenga em 1985, ver<strong>da</strong>deiro núcleo<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Federal <strong>da</strong> África Negra de Cheik Anta Diop, apontan<strong>do</strong> a reunificação de<br />

22 Esta<strong>do</strong>s numa organização supranacional <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s de culturabantú (CICIBA),<br />

são exemplos disso mesmo mas que não conduziram a la<strong>do</strong> nenhumz9.<br />

A questão central, mais <strong>do</strong> que a retórica <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des culturais e históricas,<br />

as quais, diga-se em abono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, não deixam de ser um importante elemento<br />

mobiliza<strong>do</strong>r e justificativo para os processos de integração regional, desde ce<strong>do</strong><br />

revelou ser a questão <strong>do</strong> poder, poder político, mas igualmente poder económico.<br />

Bem pode, por exemplo, a SADC invocar que "a shared vision is anchored on the<br />

common values and principies and the historical and cultural affmities that exist<br />

between the peoples of Southem Africa" (SADC, s/d). Porém, o problema reside<br />

mais na comunhão de valores comuns que os países devem partilhar nas organizações<br />

" Ver BADI (1993: 46)


egionais (UNECA, 2002), valores esses que são de ordem política e económica. E<br />

estas questões têm a ver com o mo<strong>do</strong> como ca<strong>da</strong> país tem organiza<strong>do</strong> o seu sistema<br />

económico e político, o mo<strong>do</strong> como funciona a economia e o modelo de participação<br />

política e cívica <strong>da</strong> população. Neste senti<strong>do</strong>, Haefliger (2001) considera que "the<br />

intellectual pan-Africanism of the 50s was soon overtaken by the interests of national<br />

elites, who realized that it would not only be simpler - and probably more peaceful-<br />

to accept the colonial fragmentation of the continent, but also more lucrative, inview<br />

of the offices and privileges provided by a greater multiplicity of nation-sates". E<br />

interroga-se: "how then should a sense of common identity be generated in Africa, of<br />

a11 places?".<br />

Se a questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de acabou por se revelar secundária no processo de<br />

integração regional, o problema <strong>do</strong> poder, quer a nível nacional quer regional, tem<br />

esta<strong>do</strong> sempre presente. Não apenas o poder político mas igualmente, ou na maior<br />

parte <strong>do</strong>s casos, o poder económico.<br />

A diferença de níveis de desenvolvimento entre os países que constitutem os<br />

agrupamentos regionais africanos é uma <strong>da</strong>s suas características. Por outro la<strong>do</strong>, a<br />

semelhança <strong>da</strong>s suas estruturas económicas, bastante extroverti<strong>da</strong>s para o merca<strong>do</strong><br />

mundial e basea<strong>da</strong>s na exportação de matérias-primas, confere-lhes uma diminuta<br />

complementari<strong>da</strong>de regional, transferin<strong>do</strong> a concorrência para o mesmo sector no<br />

merca<strong>do</strong> mundial. Isto significa pelo menos <strong>do</strong>is problemas: por um la<strong>do</strong>, quaisquer<br />

medi<strong>da</strong>s de liberalização comercial intra-regional afecta o principal, ou um <strong>do</strong>s<br />

principais, meios de arreca<strong>da</strong>ção de receitas para o orçamento de Esta<strong>do</strong>, isto é, as<br />

receitas aduaneiras; por outro, <strong>da</strong><strong>da</strong> afalta de dinâmica económicaintemaem grande<br />

número de países africanos, aqueles que à parti<strong>da</strong> apresentavam estruturas econó-<br />

micas mais diversifica<strong>da</strong>s (nomea<strong>da</strong>mente a industrial), contan<strong>do</strong> com a existência<br />

de uma classe empresarial nacional e com estabili<strong>da</strong>de política e institucional, têm<br />

podi<strong>do</strong> beneficiar mais <strong>do</strong> processo de integração regional. No fun<strong>do</strong>, a polarização<br />

<strong>do</strong>s benefícios assentuou-se.<br />

Quan<strong>do</strong> países há, como atrás jáfoi indica<strong>do</strong>, em que 50% <strong>da</strong>s suas receitas fiscais<br />

provêm <strong>da</strong>s receitas aduaneiras, quaisquer diminuições representam um pesadelo<br />

para as fianças públicas e para o desenvolvimento <strong>do</strong> país30. É aqui que entram em<br />

jogo os 'mecanismos de compensação' financeiros. Ora a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s organizações<br />

económicas regionais africanas tem evidencia<strong>do</strong> a extrema dificul<strong>da</strong>de que tais<br />

medi<strong>da</strong>s compensatórias sejam efectivamente realiza<strong>da</strong>s, o que pode ser causa para,<br />

a partir de certo momento, assistir-se a um abran<strong>da</strong>mento no empenhamento <strong>do</strong>s<br />

países nas organizações. Em limite, esta questão pode levar ao seu fim. Badi (1993:<br />

123) chama a atenção para isto mesmo referin<strong>do</strong> os casos <strong>da</strong> UDEAC, UEAC e <strong>da</strong><br />

CEA. Assim, não é de estranhar que, por exemplo, Haefliger (2001) seja de opinião<br />

que o protocolo de comércio na SADC, ao prever tantas excepções à liberalização<br />

jD HAEFLIGER (2001) indica que, em média, as países africanos dependem em 113 <strong>da</strong>s receitas<br />

aduaneiras no total <strong>da</strong>s receitas &cais.


aduaneira, é mais um pacto sobre a justificação <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s barreiras<br />

aduaneiras <strong>do</strong> que sobre a redução <strong>da</strong>s tarifas. OLI como refere Griggs (2003: 88), "the<br />

experience of trade liberalisation in protocols has had a very little impact on intra-<br />

REC trade flows. Many African economies are tied to primary export commodities<br />

and too hungry for hard currencies to refocus on inha-REC trade when trade barriers<br />

drop".<br />

Esta questão está intimamente liga<strong>da</strong> à segun<strong>da</strong> atrás referi<strong>da</strong>: a polarização <strong>do</strong>s<br />

benefícios no seio de uma organização regional.<br />

Quan<strong>do</strong> o comércio intra-regional não apresenta um certo equilíbrio e há países<br />

que quase têm o monopólio <strong>da</strong>s exportações intra-regionais, isto é uma clara indicaçáo<br />

de que o poder regional não é equitativo e que uns têm claramente a ganhar mais <strong>do</strong><br />

que outros, se é que estes últimos não têm mais custos que benefícios. Não pode<br />

deixar de ter efeitos no processo de integracão regional ou no empenhamento<br />

individual <strong>do</strong>s países, o facto de, no COMEÇA e entre 1994-1996, o Quénia ter si<strong>do</strong><br />

responsável por 41% <strong>da</strong>s exportações intra-regionais e o Zimbabwe por 25%, contra<br />

12 países com participação inferior a 1%, ou, no caso <strong>da</strong> SADC, a África <strong>do</strong> Sul ter<br />

ti<strong>do</strong> uma quota de 72% segui<strong>da</strong> pelo Zimbabwe com 18%, ou, na CEDEAO, a Nigéria<br />

e a Costa <strong>do</strong> Marfim abarcarem 41% e 35%, respectivamente, <strong>da</strong>s exportações intra-<br />

regionais ou, finalmente, os Camarões com 82% <strong>da</strong>quele comércio no seio <strong>da</strong> CEEAC<br />

(Muuka et al, 1998; Mshomba, 2000: 184-192). Ou ain<strong>da</strong>, especifican<strong>do</strong> o caso <strong>da</strong> SADC,<br />

a África <strong>do</strong> Sul, principal investi<strong>do</strong>r africano no continente, ter aumenta<strong>do</strong> de 67%<br />

para 90% entre 1997 e 2001, a parte <strong>do</strong>s seus investimentos destina<strong>do</strong>s ao SADC no<br />

conjunto <strong>do</strong>s seus investimentos em África (Pallotti, 2004: 524) ou <strong>da</strong>s suas exportações<br />

para o continente terem aumenta<strong>do</strong> entre 1992 e 2002 cerca de 780%, toman<strong>do</strong>-se<br />

África o seu 4" merca<strong>do</strong> de destino (Daniel et al, 2004: 344). O que tu<strong>do</strong> isto revela é<br />

uma clara polarização <strong>do</strong>s ganhos. Na óptica de Pallotti (2004: 529) "in Southern<br />

Africa during the 90s, the polarisation of economic development among the countries<br />

has continued unabated during the last decade, adding to the already tense relations<br />

between some of the members states of the regional grouping".<br />

Em suma, a questão <strong>do</strong> poder económico, neste caso regional, ao beneficiar uns<br />

países mais <strong>do</strong> que outros, pode conduzir ao marasmo ou mesmo ao fim <strong>do</strong> processo<br />

de integração regional. Se bem que <strong>do</strong> ponto devista económico identitário, os sistemas<br />

segui<strong>do</strong>s pelos países africanos se assemelham, isto é, economias assentes nas regras<br />

de funcionamento típicas de uma economia de merca<strong>do</strong>, o grau de intervenção e<br />

presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na economia ain<strong>da</strong> varia muito entre os países africanos. O mesmo<br />

se diga quanto à existência e participação de uma classe empresarial priva<strong>da</strong>nacional.<br />

É O somatório destas características que explicam a atitude reticente <strong>da</strong> maioria <strong>do</strong>s<br />

países africanos em cederem soberania, económica e política, para orgãos regionais.<br />

OS difíceis exercícios de poder nacional podem ser, em muitos casos, agrava<strong>do</strong>s pela<br />

per<strong>da</strong> de poder negocialregional. Neste caso, o 'status quo'é a situação mais deseja<strong>da</strong>,<br />

o que é dizer, a manutenção <strong>do</strong> equilíbrio de poder regional. Mas isso será alcança<strong>do</strong>,<br />

tem si<strong>do</strong> alcança<strong>do</strong>, à custa <strong>do</strong> aprofun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> processo de integração regional.


5. Conclusão<br />

O processo deintegração económica regional já emÁf?ica é longo. Sucessivamente<br />

reafirma<strong>do</strong> pelos dirigentes africanos como um imperativo para a uni<strong>da</strong>de contimental<br />

e para o desenvolvimento nacional e colectivo de África, o seu desempenho, no<br />

entanto, deixa uma sensação de frustração. Poder e identi<strong>da</strong>de sempre estiveram<br />

presentes e condicionaram o an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>queles agrupamentos. A evocação <strong>da</strong><br />

identi<strong>da</strong>de histórica e cultural, linguística e étnica teve o seu momento áureo no<br />

perío<strong>do</strong> pré-independência e nos anos que se lhe seguiram. Contu<strong>do</strong>, a identi<strong>da</strong>de<br />

de valores políticos e económicos nunca foi suficientemente atendi<strong>do</strong>, o que aju<strong>da</strong> a<br />

explicar a convivência de governos ditatoriais e autocráticos com outros democráticos<br />

ou em democratização, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que se juntaram países claramente vira<strong>do</strong>s<br />

para a economia de merca<strong>do</strong> com outros de carácter socialista ou de forteintervenção<br />

económica estatal. Embora este seja um factor não muitas vezes devi<strong>da</strong>mente referi<strong>do</strong>,<br />

a ausência de uma clara identi<strong>da</strong>de comum em tomo <strong>do</strong>s mesmos valores políticos e<br />

económicos condicionou fortemente a obtenção de progressos visíveis na integração<br />

regional africana.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, o exercício <strong>do</strong> poder regional por parte de países cuja diferença<br />

de desenvolvimento económico, político e institucional é evidente, tem feito retrair o<br />

empenhamento <strong>do</strong>s restantes países membros. O aparecimento <strong>da</strong> CEDEAO em 1975,<br />

como forma de disputa regional <strong>da</strong> Nigéria face ao Senegal e à Costa <strong>do</strong> Marfim,<br />

estes <strong>do</strong>is integra<strong>do</strong>s na CEAO que anteriormente tinha surgi<strong>do</strong>, ou a recomposição<br />

<strong>do</strong>s poderes de afirmação regional com a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Si11 para a SADC, ou<br />

até mesmo a inclusáo <strong>da</strong> R. D. Congo (normalmente considera<strong>do</strong> como um país <strong>da</strong><br />

África Central) neste último agrupamento, ou ain<strong>da</strong> a inclusáo de Angolana CEEAC<br />

(que se refere à África Central), reflecte bem que a identi<strong>da</strong>de geográfica pouco conta<br />

nestes processos, antes são coman<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelos equilíbrios políticos regionais. Não é<br />

de estranhar, neste contexto, que a resistência à per<strong>da</strong> de soberania 'nacional para os<br />

agrupamentos regionais seja uma <strong>da</strong>s suas manifestações mais evidentes. Trata-se<br />

<strong>da</strong>quilo que Deng (1996: 49) apeli<strong>da</strong> de 'incompatibili<strong>da</strong>des' relaciona<strong>da</strong>s com<br />

questões tangíveis, tal como a distribuição <strong>do</strong> poder ou <strong>da</strong> riqueza, ou intangíveis,<br />

estas directamente liga<strong>da</strong>s às várias identi<strong>da</strong>des, nacional, cultural ou moral.<br />

Neste quadro, o futuro <strong>da</strong> integração regional em África não augura facili<strong>da</strong>des<br />

maiores <strong>do</strong> que aquelas que até agora enfrentou. E o movimento imparável de globa-<br />

lização repercute-se necessariamente sobre elas, também não facilitan<strong>do</strong> a tarefa. Com<br />

uma nova institutição, a União Africana, um programa de desenvolvimento con-<br />

tinental, a NEPAD, e um renova<strong>do</strong> espírito que se pretende incutir, o Renascimento<br />

Africano3', um novo enquadramento parece existir. Mas será que a identi<strong>da</strong>de de<br />

"Aideia de Renascimento Akicano foi apresenta<strong>do</strong> pela primeka vez por Nelson Mandela em 13 de<br />

Junho de 1994, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> Cheira Anual <strong>da</strong> OUA em T d , Tunisia.


valores políticos e económicos irá impor-se desta vez? O certo é que o exercício <strong>do</strong><br />

poder regional por parte de alguns países não desaparecerá. Neste contexto, qual o<br />

papel <strong>do</strong> poder de certos países na definição <strong>da</strong>s organizações regionais que têm de<br />

desaparecer? e continuar-se-á a assistir à atitude 'free-riding' de um razoável número<br />

de países? O problema é que 'free-riding' é uma maneira elegante de dizer 'não' ao<br />

aprofun<strong>da</strong>mento <strong>do</strong> processo de integração regional. Está-se contra mas não se o<br />

pode dizer, sob pena de se ser critica<strong>do</strong> pelos parceiros ou pela comuni<strong>da</strong>de regional.<br />

Em última análise estes últimos até podem cortar aju<strong>da</strong>s (Mshomba, 2000). A opção é<br />

ficar numa atitude passiva e não activa face à integraçáo. É tu<strong>do</strong> uma questão de<br />

equilíbrios de poder, interno e regional. Nesta situação, a integração, ao invés <strong>do</strong> que<br />

a teoria tradicional propõe, está longe de ser um jogo de soma positiva. Pode ser<br />

também, no mínimo, de soma nula, ou, em muitas situações, de soma negativa.<br />

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RAZA, LENGUAY CULTURA. ACTUALIZACION ES<br />

MALGACH ES<br />

"Racismo" es una de esas palabras que a1 hilo de 10s aiios se ha i<strong>do</strong> cargan<strong>do</strong> de<br />

connotaciones que se han i<strong>do</strong> entretejien<strong>do</strong> en 10s usos heterogéneos a 10s que ha<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> lugar. E1 resulta<strong>do</strong> ha si<strong>do</strong> una maraiia de redes semánticas que convierten en<br />

un asunto delica<strong>do</strong> cualquier recuperación de1 concepto por parte de instancias con<br />

pretensiones científicas. Naturalmente, esta dificultad no hace de1 racismo un tema<br />

de estudio indeseable ni, mucho menos, inabor<strong>da</strong>ble. Muchas otras nociones padecen<br />

10s mismos problemas a consecuencia de su variable raigambre sociolingüística, es<br />

decir, de1 hecho de que sean vocablos emplea<strong>do</strong>s tanto en contextos "expertos"<br />

(habitualmente preocupa<strong>do</strong>s por e1 rigor terminológico) como "no expertos" (<strong>do</strong>nde<br />

e1 rigor cede a menu<strong>do</strong> e1 paso ala expresivi<strong>da</strong>d o la capaci<strong>da</strong>d de difusión). Tal vez<br />

10 que distinga e1 caso que nos ocupa sea e1 altísimo gra<strong>do</strong> de consenso acerca dela<br />

valoración muy negativa que se otorga a to<strong>do</strong> significa<strong>do</strong> asocia<strong>do</strong> a1 significante<br />

"racismo", jsea cual sea e1 significa<strong>do</strong> que se propone! Semejante axiología inclusiva<br />

-que comporta a menu<strong>do</strong> emociones muy fuertes- ha oscureci<strong>do</strong> la investigación<br />

sobre e1 tema y obliga casi ritualmente a una declaración mínima sobre las<br />

concepciones y enfoques emplea<strong>do</strong>s por e1 autor. Ahí va la de1 presente texto.<br />

En primer lugar, vale Ia pena recor<strong>da</strong>r que, desde e1 siglo XIX, e1 racismo implica<br />

una discriminación entre individuos que se pretenden pertenecientes a grupos<br />

biológicos distintos y jerarquiza<strong>do</strong>s, Ias razas, entendi<strong>da</strong>s como grandes troncos o<br />

como finas ramificaciones <strong>da</strong>rvinianas; estas razas compartirían un patrimonio<br />

genético particular, independientemente de Ia manifestación fenotípica en ca<strong>da</strong><br />

individuo. Antes, la palabra "raza" no se definía específicamente como un taxón<br />

biológico, sino que, aunque vincula<strong>da</strong> a la idea de especie, clase, tipo2, se confundia<br />

' Universi<strong>da</strong>de de Llei<strong>da</strong>.<br />

Corominas propone convincentemente su derivaúón dei latín ratio -anis, "'cálculo, cuenta', en e1<br />

senti<strong>do</strong> de '<strong>da</strong>ççe, ín<strong>do</strong>le, mo<strong>da</strong>ii<strong>da</strong>d'", kente a otras "candi<strong>da</strong>turas" como e1 árabe rnis,"jefe", e1 lak<br />

rndin, "raya<strong>do</strong>" o e1 longobar<strong>do</strong> rnizn, "ünea, raya". Este autor til<strong>da</strong> de extravagancia carpetobetó~ca Ia<br />

idea, un tanto difundi<strong>da</strong> entre algunos africaniçtas, que e1 uso internacional dela palabra "raza" derivaba<br />

de ias lenguaç ibéricas.


con otras denominaciones -en principio, sociales y, en to<strong>do</strong> caso, más espúreas-, como<br />

"pueblo" o "nación". La relación frecuente de esos usos prec<strong>ontem</strong>poráneos con Ia<br />

noción de estirpe o filiación (piénsese en vocablos como "generación") no conllevaba<br />

en mo<strong>do</strong> alguno un senti<strong>do</strong> puramente biológico; a este respecto, basta con revisar Ia<br />

crítica de antropólogos como D. Schneider a Ia conexión entre parentesco y biologia.<br />

La biologización decimonónica de1 concepto de raza supuso su puesta de largo<br />

en e1 contexto de la ciencia moderna; esta renovación no tardó en impregnar to<strong>do</strong>s<br />

10s usos dela palabra y determinó decisivamente la comprensión de la idea deriva<strong>da</strong><br />

de "raci~mo"~. Una consecuencia fun<strong>da</strong>mental de esta biologización fue que Ias<br />

diferencias entre 10s pueblos (tan evidencia<strong>da</strong>s en e1 mun<strong>do</strong> colonial) se "ensancharon"<br />

enormemente a1 calificarlas como "raciales", desbaratan<strong>do</strong> en buena medi<strong>da</strong> e1 ideal<br />

pe<strong>da</strong>gógico de Ia Ilustración, que a su vez había queri<strong>do</strong> quebrar esencialismos<br />

anteriores. A1 fin y a1 cabo, con Darwin, se había empeza<strong>do</strong> a imponer en paralelo e1<br />

convencimiento de que 10s mecanismos de transmisión biológica y cultural eran<br />

autónomos y bien diferencia<strong>do</strong>s, revelán<strong>do</strong>se 10s primeros (que afectaban por<br />

definición a 10s "caracteres raciales") mucho más lentos y difíciles de manipular (a1<br />

menos hasta que la ingeniería genética -aún en mantillas y muy difícilmente<br />

universalizable- diga otra cosa). A partir de ahí, e1 racismo se fue configuran<strong>do</strong><br />

mediante múltiples trasvases multidireccionales entre e1 "senti<strong>do</strong> común" imperante<br />

en 10s países europeos y una pseu<strong>do</strong>ciencia (o simplemente una mala práctica<br />

científica), que se dedicó a "fijar", y jerarquizar, biológicamente Ias diferencias<br />

culturales, entre personas y colectivos.<br />

Las en principio tími<strong>da</strong>s condenas a1 racismo (que prácticamente inauguraron e1<br />

uso mismo de1 concepto) conseguirían un enorme eco tras Ia I1 Guerra Mundial,<br />

que<strong>da</strong>n<strong>do</strong> incorpora<strong>da</strong>s a Ia Declaración de Derechos Humanos y conforman<strong>do</strong> e1<br />

eje de algunas de Ias conquistas sociales más celebra<strong>da</strong>s de1 final de1 siglo XX (piénsese<br />

en iconos como Martin Luther King o Nelson Mandela); esta lucha marcó<br />

especialmente Ia emancipación de 10s esta<strong>do</strong>s africanos, <strong>da</strong><strong>do</strong> que Ia cuna de la "raza<br />

negra" -o congoide o melanoderma o.. .- se había ubica<strong>do</strong> a1 sur de1 Sáhara y <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

que 10s discursos racistas solían situar a dicha "raza negra" en e1 punto más bajo de<br />

su rnnking particular. Es en este contexto cuan<strong>do</strong> la palabra racismo adquirió su<br />

desconcertaute polisemia actual. Por una parte, 10s usos populares y políticos de Ia<br />

palabra han tendi<strong>do</strong> a equiparar racismo con exclusión o discriminación,<br />

confundien<strong>do</strong> Ia parte con e1 to<strong>do</strong>; una versión atenua<strong>da</strong> de esta tendencia viene a<br />

considerar e1 racismo como Ia discriminación por antonomasia. Por otra parte, y más<br />

allá dela adhesión a to<strong>do</strong> tipo de proclamas más o menos igualitarias sobre la uni<strong>da</strong>d<br />

Fue en e1 siglo XIX cuan<strong>do</strong> se acuiiaron adjetivos como "racial" (probablemente en inglés,<br />

extendién<strong>do</strong>çe deçpués a okas lenguas) o substantivos como "racialwmo" y "rackmo".


de la especie humana, las estrategias contra e1 racismo divergieron: mientras unos<br />

negaban Ia validez de1 racismo afirman<strong>do</strong> la inexistencia de la raza, su razón de ser,<br />

otros preferían revalorizar a 10s grupos discrimina<strong>do</strong>s, sin poner en du<strong>da</strong> explícita-<br />

mente su existencia.<br />

La primera estrategia ha conferi<strong>do</strong> una falsa sensación de seguri<strong>da</strong>d teóricoética<br />

(una ecuación siempre algo inquietante) a muchos científicos sociales, tal vez<br />

sobre to<strong>do</strong> en Europa. La preeminencia de 10s factores genéticos individuales sobre<br />

cualquier intento de caracterización colectiva (es decir, <strong>do</strong>s personas supuestamente<br />

de distinta raza, en e1 senti<strong>do</strong> puramente fenotípico, pueden estar más próximos<br />

genéticamente que <strong>do</strong>s de igual raza) o la dificultad de detectar una covariancia<br />

coherente (sobre to<strong>do</strong> geográficamente) de las características atribui<strong>da</strong>s a una raza<br />

concreta son algunos de 10s principales argumentos que han hecho que incluso 10s<br />

biólogos humanos hayan prescindi<strong>do</strong> mayoritariamente de1 término. Ahora bien,<br />

dicho aban<strong>do</strong>no es algo engaiioso. Para comenzar, la argumentación biologista<br />

continúa viva, cuan<strong>do</strong> no pujante, merced a1 impulso de la investigación genética y<br />

de las expectativas que está crean<strong>do</strong>. Si e1 eugenismo está en consecuencia en plena<br />

reconstrucción, bien que reforma<strong>do</strong>, e1 racismo o e1 "ra~ialismo"~ pueden cristalizar<br />

de mil maneras tal como 10 muestra la periódica polémica sobre 10s coeficientes de<br />

inteligencia (IQ), reaviva<strong>da</strong> a principios de 10s noventa por Herrstein y Murray.<br />

Por otro la<strong>do</strong>, si se puede defender la inoperancia biológica de1 concepto de raza<br />

por 10 que hace a1 estudio de 10s humanos, no ocurre 10 mismo en e1 campo delas<br />

ciencias sociales. Es indii<strong>da</strong>ble que las razas existen en tanto que construcciones<br />

sociales y que, por mucho que partan de 10s fenotipos, semejantes construcciones se<br />

han visto inevitablemente afecta<strong>da</strong>s por Ia menciona<strong>da</strong> biologización. Si selas excluye<br />

de1 discurso de la ciencia social o si éste se limita a descartarlas en tanto que<br />

mistificaciones, se corre e1 peligro de falsear gravemente e1 objeto de estudio. Este<br />

peligro se acentúa cuan<strong>do</strong> Ia esirategia "negacionista" tiende a desautorizar simul-<br />

táneamente las estrategias "revaloriza<strong>do</strong>ras", una asociación harto frecuente en e1<br />

contexto africanista, materializa<strong>da</strong> en la repudia de1 llama<strong>do</strong> afrocentrismo que ha<br />

suscrito buena parte de la academia. Sé que muchos no veránelpeligro de1 que hablo<br />

y, sin embargo, sí juzgarán peligrosa esta última línea argumental, aunque hayan<br />

podi<strong>do</strong> comulgar hasta este momento con e1 tono general de1 texto. Es por e110 que,<br />

entre 10s muchos subtemas que admiten la rúbrica de1 racismo, he elegi<strong>do</strong> centrarme<br />

'La ~alabra "racialismo". orácticamente , ausente de Ias diccionarias de esoafiol. . se haaueri<strong>do</strong> ualizar<br />

cri ùIgim~~xcoiiti.ito.; expcrtos yira dinominlr 1.i t:iidciiii3 a c.,tri.liar IAS difr.r


en e1 análisis de ese "peligro" a partir de una reflexión sobre las socie<strong>da</strong>des malga~hes.~<br />

Pero antes creo necesaria una precisión general.<br />

La condena de1 "revaloracionismo" por parte de1 "negacionismo" suele derivar<br />

en la cita<strong>da</strong> expansión semántica de1 término "racismo", con las condenas que conlleva.<br />

Un ejemplo claro es la sospecha continua que 10s enfoques denomina<strong>do</strong>s "cultura-<br />

listas" despiertan entre 10s negacionistas. La equiparación automática de "cultura-<br />

lismo" y racismo es tanfalsa como Ia de nacionalismo y racismo o, sobre enel contexto<br />

africano, la de etnkismo y racismo. Esta false<strong>da</strong>d resulta <strong>do</strong>lorosa cuan<strong>do</strong> se emplea<br />

e1 término "culturalismo" para designar vagamènte a las diversas corrientes de la<br />

antropología cultural esta<strong>do</strong>unidense. Resulta casi cómico, si no tuviera su la<strong>do</strong><br />

sórdi<strong>do</strong>, que un investiga<strong>do</strong>r tan serio como A<strong>da</strong>m Kuper presente su trabajo sobre<br />

la noción de cultura en antropología6 enlazan<strong>do</strong> e1 culturalismo americano con e1<br />

apartheid a1 tiempo que salvaguar<strong>da</strong>, como alternativa antirracista, la antropologia<br />

social británica, lidera<strong>da</strong> por Radcliffe-Brown. Lo cierto es que 10s antropólogos<br />

sociales británicos, independientemente de sus inclinaciones políticas, trabajaron<br />

integra<strong>do</strong>s en Ia política colonial británica en África (j"culpable" de tantas cosas!),<br />

mientras que buena parte de 10s antropólogos americanos o americaniza<strong>do</strong>s se<br />

convirtieron en defensores de Ias minorias y francotira<strong>do</strong>res dentro de1 sistema.<br />

2Dónde que<strong>da</strong> e1 análisis histórico y etnográfico que pue<strong>da</strong> poner en su sitio la<br />

batalla de Ias ideas? Por encima de to<strong>do</strong>,por encima incluso de 10s dilemas éticos que<br />

pue<strong>da</strong> evocar, e1 tratamiento científico de1 racismo exige un rigor meto<strong>do</strong>lógico a<br />

partir de la información "empírica" que ha falta<strong>do</strong> en e1 campo "negacionista" tanto<br />

o más que en e1 "revaloracionista". Para ilustrar y desmenuzar esta aserción, propongo<br />

una sucinta panorámica malgache.<br />

E1 racismo en e1 discurso político malgache<br />

En e1 Ma<strong>da</strong>gascar independiente, y hasta hace bien poco, 10s discursos racistas<br />

explícitos han si<strong>do</strong> raros en la "arena formal", es decir, en e1 espacio político ("público",<br />

dirían algunos) defini<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente por e1 esta<strong>do</strong> moderno y las instituciones<br />

que sele asocian. Ello no quiere decir que no existieran posicionamientos y categorías<br />

catalogables como racistas, pero eran poco conspicuas y no se definían con e1 rigor<br />

biológico delas acepciones aciuales. No deja de ser curioso y, con to<strong>da</strong> probabili<strong>da</strong>d,<br />

significativo, que e1 racismo haya aflora<strong>do</strong>, tími<strong>da</strong> pero perceptiblemente, y se haya<br />

sistematiza<strong>do</strong>, a1 menos en algún gra<strong>do</strong>, durante e1 largo proceso de democratización<br />

en e1 que se ha sumi<strong>do</strong> la isla desde principios de 10s noventa.<br />

- . . -.<br />

'En oiro luzar, he desamiia<strong>do</strong> unaareumentaciónequioarable sobre elEzioto Antizuo, con polémica<br />

incliii<strong>da</strong> (veanse c1 ti" li ); piir rr.fr.rciicias, r.1 no I1 de Ia rci.i


E1 marco en e1 cual se presentan 10s discursos racistas es 10 que podríanios llaniar<br />

la "cuestión federalista". Con e1 advenimiento de la 111 República (1991-1992), y de la<br />

democracia, se opusieron <strong>do</strong>s modelos de esta<strong>do</strong>, uno que se podría denominar<br />

"unitario", y que ha resulta<strong>do</strong> claramente vence<strong>do</strong>r hasta la fecha, y otro que, intermi-<br />

tentemente, se ha veni<strong>do</strong> autodenominan<strong>do</strong> "federal". La mayor parte de 10s medios<br />

de comunicación y de Ia intelligentsin de1 país ha demoniza<strong>do</strong> la alternativa federal<br />

(mucho menos consistente, organizativa e ideológicamente) y ha creí<strong>do</strong> detectar<br />

dinámicas excluyentes, califica<strong>da</strong>s a veces como racistas, entre sus parti<strong>da</strong>rios. Sin<br />

embargo, algo paradójicamente, las formulaciones racistas más coherentes y explícitas<br />

han surgi<strong>do</strong> de1 mismo núcleo que ha conforma<strong>do</strong> e1 principal apoyo de la tesis<br />

unitaria: la socie<strong>da</strong>d merina7, a menu<strong>do</strong> opuesta coloquialmente a1 resto de grupos<br />

étnicos de Ia isla, reuni<strong>do</strong>s de manera abusiva bajo la denominación de côtiers. Puede<br />

decirse, pues, que e1 campo federalse divide como mínimo en <strong>do</strong>s sectores: e1 llama<strong>do</strong><br />

"federalista", que hace referencia por encima de to<strong>do</strong> a iniciativas surgi<strong>da</strong>s de medios<br />

côtiers, y e1 nuevo nacionalismo merina.<br />

No cabe hablar de fenómeno nuevo a1 aludir a una cierta "sensibili<strong>da</strong>dperiférica"<br />

côtier; descafeina<strong>da</strong> e incluso alguien diría que "folklórica", pocos la calificarían de<br />

nacionalismo8 hasta la manifestación pública de1 "federalismo", a partir de 1991. E1<br />

adjetivo podría parecer más apropia<strong>do</strong> para e1 nuevo nacionalismo merina,<br />

formalmente ausente de la arena malgache desde e1 final de las últimas resistencias<br />

a1 ataque colonial (a cabal10 entre 10s siglos XIX y XX). Su presencia se vuelve a<br />

evidenciar a partir aproxima<strong>da</strong>mente de 1992, con la aparición de una serie de<br />

asociaciones y de medios de expresión pública, entre 10s que destaca el semanario<br />

Feon'izy Merinn ("La Voz de 10s Merina"), aunque sea quizás en Intemet <strong>do</strong>nde su<br />

presencia resulte más notoria? Con to<strong>do</strong>, conviene precisar y matizar la ruptura que<br />

representaria e1 nuevo nacionalismo merina.<br />

Las bases de1 nuevo nacionalismo merina ya eran mone<strong>da</strong> corriente entre 10s<br />

intelectuales malgaches, a1 menos desde Ia colonización. Lo que resulta nove<strong>do</strong>so ha<br />

si<strong>do</strong> que e1 "etnonacionalismo" merina -tal como 10 denominan algunos autores para<br />

distinguirlo- haya renuncia<strong>do</strong> ala estrategia <strong>do</strong>minante de las élites merina durante<br />

to<strong>do</strong> e1 siglo XX. Ésta consistia en proyectar e1 nacionalismo merina (naci<strong>do</strong> en e1<br />

'Loç merina,arieinarios delnorte de Ias TierrasAitaç centrales, formaneieruuo éhUcomásnimeroso<br />

rlc Ia is1.i (certa dr.l33', LI? I:, I>ol>laciiin) y ,,I qt~c ctx~c~ntn inioyJr podcr pi,litico, r'coiiú~.n, c idc.>!6gi;o<br />

'TAL v?, >ti inniiifr.st.iciiin iii.tii~iciuii.il iiii< cor,picii;i, y I>icii limita<strong>da</strong>, siri.i el 1'AUEj.M (Parcii~ de<br />

10s Deçhere<strong>da</strong><strong>do</strong>s de Ma<strong>da</strong>eaçcar). .. formación favoreci<strong>da</strong> uór 10s franceses tras la insiirrección de 1947,<br />

<strong>do</strong>nde se cocería una parte de Ia élite de Ia I República, en absoluto federalista, y que, pesea tener uncôfier<br />

a1 frente, nunca pu<strong>do</strong> prescindir de una mayoría merina enel aparato estatal.<br />

' En cansonancia con Ia posición hegemónica de Ias élites merina, e1 nuevo nacionalismo merina se<br />

ha <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de unas plataformas de expresión (Internet, diarios) prácticamente inaccesibles -y muy<br />

probablemente poco efectivas- para otras hipotéticas identi<strong>da</strong>des etnonacionalistas de Ia isla.<br />

,, .


siglo XIXcon la expansiónde 10s reyes y reinas de Antananarivo) sobre elnacionalismo<br />

mnlngrisy, (surgi<strong>do</strong> contra e1 colonialismo), hasta confundirlos. En otras palabras, 10s<br />

merina se postulaban como 10s más malgaches de 10s malgaches, modelo y garantía<br />

de una identi<strong>da</strong>d común. Los etnonacionalistas merina ach~ales apenas muestran<br />

interés alguno en esta identi<strong>da</strong>d común -a1 contrario, con 10 que asumen explícitamente<br />

Ia voluntad diferencialista de algunos colectivos côtiers.<br />

La <strong>do</strong>ctrina etnonacionalista se asienta sobre unos pilares1° bien conoci<strong>do</strong>s fuera<br />

incluso de su círculo de adeptos. E1 eje rector de la identi<strong>da</strong>d seria una muesha<br />

actualiza<strong>da</strong> dela clásica conexión unívoca y excluyente entre raza, lengua y cultura.<br />

Para denominar este complejo han recurri<strong>do</strong> a1 término Nusantara", de du<strong>do</strong>sa<br />

aplicabili<strong>da</strong>d histórica y que haría referencia a Ia cuna cultural de 10s pueblos que<br />

hablan un subppo de lenguas de Ia familia austronesia, concentra<strong>da</strong>s en e1 sudeste<br />

asiático (sobre to<strong>do</strong> en In<strong>do</strong>nesia, aunque la familia se extiende tambiénpor Oceanía;<br />

hay que recor<strong>da</strong>r que, por 10 que se sabe, Ia lengua más cercana a1 malgache es e1<br />

manjaan, de Bomeo). Ma<strong>da</strong>gascar constituiría e1 limite occidental de 10s asentamientos<br />

nusantarianos, singular en e1 contexto africanob2 mientras que 10s merina serían 10s<br />

descendientes más puros de 10s pioneros que arribaron a Ia isla durante Ia primera<br />

mitad de1 I Milenio. Los caracteres raciales, preserva<strong>do</strong>s por una en<strong>do</strong>gamia favoreci<strong>da</strong><br />

por Ia reclusión relativa de las Tierras Altas <strong>do</strong>nde viven 10s merina, coincidirían con<br />

un supuesto patrón común de Ias "poblaciones nusantarianas". Lengua y raza<br />

conllevarían una cultura básica que apenas habría varia<strong>do</strong> desde Ia llega<strong>da</strong> de 10s<br />

primeros coloniza<strong>do</strong>res. Da<strong>da</strong> su superiori<strong>da</strong>d, variantes más o menos fieles o<br />

degenera<strong>da</strong>s de esta cultura, claramente distinta de la de 10s pueblos africanos; se<br />

habría impuesto entre e1 resto de grupos éhicos de Ma<strong>da</strong>gascar, en proporción en<br />

buena medi<strong>da</strong> inversa a1 gra<strong>do</strong> de mestizaje (fun<strong>da</strong>mentalmente de orígenes africanos)<br />

que éstos presentasen.<br />

Pese alas previsiones de ciertos autores, to<strong>do</strong> parece indicar que 10s federalistas<br />

carecen de un discurso semejante, entre otras cosas por su heterogenei<strong>da</strong>d. Por 10<br />

general, recurren instrumentalmente a 10 que podríamos Ilamar identificaciones<br />

tradicionales @ien distintas de1 academicismo, bueno o malo, de Ia teoría nusan-<br />

tariana), que comentaré más adelante; en cualquier caso, no se han desarrolla<strong>do</strong> de<br />

manera consistente ehonacionalismos específicos de grupos no merina, a1 menos en<br />

e1 senti<strong>do</strong> "moderno" que confieren 10s autores a1 concepto. Hay que notar además<br />

'O La identificacián de estas pilares se inspira parcialmente en e1 esquema de Dominique Dumont,<br />

aunque e1 segun<strong>do</strong> no aparece en este autor y aunque la interpretación es distinta.<br />

" "Archidélaeo", en malavo. En tanto aue nombre urouio es una invención a partir de1 uso de1<br />

. -<br />

yoruba; en su extremo oriental, Ia enpansión alcanzaria a 10s incaç.


que e1 racismo explícito de 10s etnonacionalistas merina no se detiene en la frontera<br />

étnica merina acepta<strong>da</strong> por 10s demás grupos (que se suelen referir a 10s merina con<br />

términos como niizbnninndro, es decir, antiguas apelaciones de 10s súbditos de 10s reyes<br />

de Antananarivo). E1 nuevo nacionalismo, hacién<strong>do</strong>se eco de divisiones tradicionals,<br />

defiende que 10s auténticos merina, 10s "puros", serían 10s merina fotsy, 10s "blancos",<br />

compuestos a su vez por hovn y nndrinizn, es decir, simplifican<strong>do</strong>, "libres" y "nobles".<br />

E1 resto de Ia población, 10s mninty, "negros", quizás más de1 50% de1 "censo merina",<br />

serían descendientes de esclavos, procedentes sobre to<strong>do</strong> de África, dependientes de<br />

10s grupos fotsy y só10 muy parcialmente depositarios de1 potencial rn~ina'~. En<br />

general, 10s etnonacionalistas se consideran más cercanos de 10s h~vn'~ betsileo (eínia<br />

siiua<strong>da</strong> inmediatamente a1 sur de Imerina, Ia tierra de 10s merina) que de 10s mniizty<br />

merina, <strong>da</strong><strong>do</strong> que afirmancompartirun origen-y hasta cierto puntoun futuro- común.<br />

La creencia en ese potencial diferencia<strong>do</strong> integra e1 acerbo merina almenos desde<br />

e1 siglo XIX y ha si<strong>do</strong> canta<strong>do</strong> en tonali<strong>da</strong>des weberianasI5 por prospectores colo~ales,<br />

administra<strong>do</strong>res o accidentaliza<strong>do</strong>s de Ias Tierras Altas. Prea<strong>da</strong><strong>da</strong>pta<strong>do</strong>s a la<br />

moderni<strong>da</strong>d, 10s merina asumieron e1 cristianismo, Ia alfabetización o la etiqueta<br />

victoriana antes de la conquista colonial. Se convirtieron en la vanguardia modemi-<br />

za<strong>do</strong>ra de la isla, 10 que <strong>da</strong> lugar a nuevas para<strong>do</strong>jas en e1 discurso etnonacionalista<br />

(y en general en 10s discursos de identi<strong>da</strong>d merina). La primera: 10s más malgaches<br />

también son 10s más occidentaliza<strong>do</strong>s. La segun<strong>da</strong>: la aparición misma de1 etnona-<br />

cionalismo supone la expresión de una amargura que remite a otros muchos victi-<br />

mismos nacionalistas. Los merina piensan que no só10 no se ha reconoci<strong>do</strong> su papel<br />

de locomotora de1 progreso en Ia isla, sino que 10s bloqueos políticos de la mayor<br />

parte de 10s grupos côtiers (que han tendi<strong>do</strong> a acaparar lapresidencia de laRepública,<br />

por ejemplo), cuan<strong>do</strong> no su mera presencia, actúan como una rémora sobre e1 potencial<br />

merina, hundien<strong>do</strong> a éstos en e1 mismo pozo de1 subdesarrollo a1 que la generali<strong>da</strong>d<br />

de 10s côtiers estarían condena<strong>do</strong>s por su propia naturaleza. Como es natural, la visión<br />

federalista es casi opuesta: para ellos, ia hegemonia merina -con ias explotaciones a<br />

Ias que <strong>da</strong>ría lugar- es una de las causas fun<strong>da</strong>mentales de1 "retraso" de 10s grupos<br />

côtiers.<br />

Los etnonacionalistas merina también seíialan a un responsable eminente de esta<br />

capaci<strong>da</strong>d de 10s côtiers para cortocircuitar e1 proyecto merina: la acción colonial y<br />

"Tal como ienala Andrianamaro, es significativo que Ias escasas movilizaciones políticas de sectores<br />

mninfy en cali<strong>da</strong>d de tales se Iiayan alinea<strong>do</strong> a menu<strong>do</strong> con iniciativas considera<strong>da</strong>s como no merina o<br />

incluso côtier (e1 caso más claro es su integración en e1 PADESM). Los ehionacionalistas merina no han<br />

deja<strong>do</strong> de liacerlo notar.<br />

'"Entre 10s bebilea, Ia palabra hova designa a 10s "nobles".<br />

'' Estoy preparan<strong>do</strong> un articulo sobre e1 weberianismo en e1 desarrolio malgaches para e1 Jotirna<br />

d'Étirdcs Rirrnles.


neocolonial de Francia. La acusación, sorprendentemente cercana a las tesis de un<br />

Mam<strong>da</strong>ni, atribuye a 10s franceses la creación de un esta<strong>do</strong> multirracial que desvirtuaría<br />

e1 lega<strong>do</strong> de la const~cciónpolítica merina durante e1 siglo XIX. La substitución<br />

de Ia identi<strong>da</strong>d merina (balo e1 <strong>do</strong>minio de 10s reyes de Antananarivo) por una<br />

identi<strong>da</strong>d malgache no habría podi<strong>do</strong> generar ni una socie<strong>da</strong>d civil panisleíia ni,<br />

consecuentemente, una concepción común de1 bienestar público. La politique de rnces<br />

francesa, su "divide y vencerás" antinacionalista, habría impedi<strong>do</strong> que 10s merina<br />

actuaran como vector moderniza<strong>do</strong>r para e1 resto de grupos de Ia isla, que carecerían<br />

-por razones a Ia vez culturales y raciales- de Ia capaci<strong>da</strong>d tanto para modernizarse<br />

por símismos, como para ser moderniza<strong>do</strong>s directamente por agentes extrainsulares,<br />

a1 menos conun ritmo que les permitiera sacar provecho de la globalización, en lugar<br />

de ser fatalmente desbor<strong>da</strong><strong>do</strong>s y margina<strong>do</strong>s por ella.<br />

E1 punto de vista de 10s sectores federalistas es aún más difuso que en otros<br />

aspectos de1 debate. Aunque tienden a reivindicar algunos de 10s mecanismos<br />

supuestamente puestos en marcha por la politique de rnces, en general, parecen pensar<br />

que la herencia colonial ha favoreci<strong>do</strong> e1 unitarismo y, <strong>da</strong><strong>do</strong> que e1 principal<br />

contingente de "socios autóctonos'' de 10s coloniza<strong>do</strong>res se extraía de1 medio merina<br />

(aun a regaíiadientes), se inclinan por condenar tanto la herencia colonial como la<br />

política poscolonial de Francia. Incluso e1 perío<strong>do</strong> de la I República (es habitual<br />

escuchar entre 10s merina que entonces man<strong>da</strong>ban 10s côtiers) se considera como una<br />

oportuni<strong>da</strong>d falli<strong>da</strong>, <strong>da</strong><strong>do</strong> e1 centralismo estruchiral de1 esta<strong>do</strong>, apenas modifica<strong>do</strong><br />

tras la independencia y perpetua<strong>do</strong> enla época de Ratsiraka (otro côiier); 10s proyectos<br />

de descentraliación y Ias provincias autónomas de la 111 República tampoco habrían<br />

Ilega<strong>do</strong> a materializarse de manera efectiva. Tal vez 10 más revela<strong>do</strong>r sea que, lejos de<br />

Ias invocaciones a Ias tradiciones ancestrales, 10s mecanismos políticos que dicen<br />

promover no dejan de provenir de modelos occidentales<br />

~Solución? Da<strong>do</strong> que, irremisiblemente articula<strong>da</strong> en e1 sistema-mun<strong>do</strong>, Ma<strong>da</strong>gascar<br />

no puede sacudirse completamente e1 lega<strong>do</strong> colonial, 10s etnonacionalistas<br />

sugieren seguir sus reglas de1 juego, pero cambiar la parti<strong>da</strong>. Renuncian<strong>do</strong>, a1 menos<br />

temporalmente, a Ias ambiciones panisleíias de1 expansionismo merina de1 siglo XIX'6,<br />

proponen una autonomía merina plena, 10 cual coincide parcialmente con las aspiraciones<br />

de 10s federalistas, aunque 10s etnonacionalistas merina vacían de to<strong>do</strong> conteni<strong>do</strong><br />

práctico a1 cascarón común de un hipotético esta<strong>do</strong> federal. Los límites<br />

territoriales y 10s detalles organizativos de1 esta<strong>do</strong> merina estánpor establecer, aunque,<br />

tal como dejó patente la crisis de 2002, la actual provincia de Antananarivo se antoja<br />

insuficiente, si no sele garantiza una sali<strong>da</strong> a1 mar (por no hablar de1 problema de Ia<br />

'"e dice que e1 testamento politico de Andrianampoinimerina, unifica<strong>do</strong>r de Imerina muerto en<br />

1810, se resumia en una frase comunica<strong>da</strong> persanalmente a çu hijo y heredero, Ra<strong>da</strong>ma I: "E1 &te de mi<br />

arrozal es e1 mar". Ra<strong>da</strong>ma, muerto en 1828, Uegó a conquistar cerca de 10s 2/3 de Ia &Ia.


RAZA. LENGUA Y CULTURA. ACTUALIZACIONES. MALGACHES<br />

:.. . ... . .. . ... . .. . .. .. . ... . .... . .. . ... . . .... . .. .. . ... . .. . .. . ... .. . .. . .. . .... . .... . .. . . .. . ... . .. . ..... . .. . . . ... . .. . .. . ... . .. . .. . ... . .. . .. . ...... . .... . .. . ... . .... .., ,.... . .. .<br />

. . .. ..... . . . . . . . , , . i 95<br />

importante población merina que habita en otras provincias). En cualquier caso, e1<br />

proyecto es excluyente (e1 esta<strong>do</strong> merina sería só10 de, por y para 10s merina) y se<br />

acompafia de una insistencia -de obvios visos racistas- en la "re~uperación'"~ de una<br />

en<strong>do</strong>gamia estricta. E1 marco obliga<strong>do</strong> de esta en<strong>do</strong>gamia sería la e'mia, aunque para<br />

hacerla efectiva se debería reforzar la en<strong>do</strong>gamia estamental y "clánica"; e1 papel de<br />

10s wminty aparece a veces de forma borrosa, pero en cualquier caso se les excluye<br />

como fuente de1 dinamismo merina preserva<strong>do</strong> por las prácticas en<strong>do</strong>gámicas.<br />

En medio de grandes diferencias -por ejemplo, respecto a la preponderancia de<br />

la en<strong>do</strong>gamia-, existen coincidencias con e1 federalismo, pero son poco efectivas. Esto<br />

ha si<strong>do</strong> fácil de comprobar en las crisis de la transición democrática (1991-92,2001-<br />

2002), cuan<strong>do</strong> 10s diferentes intentos de instauración de un sistema federal apenas<br />

tuvieron eco en e1 medio merina, inclui<strong>do</strong>s 10s círculos etnonacionalistas. En reali<strong>da</strong>d,<br />

e'monacionalistas y federalistas tienden a ignorarse como opciones políticas reales.<br />

Para ahon<strong>da</strong>r en esa falta de coordinación, 10 primero es acercarse a Ias respuestas<br />

antirracistas.<br />

La respuesta antirracista. De la "trampa liberal"<br />

Como es de esperar, desde dentro y desde fuera de la socie<strong>da</strong>d malgache han<br />

llega<strong>do</strong> respuestas condenatorias a1 exclusionismo tácito, potencial o incluso expreso<br />

delas versiones más radicales de la "alternativa federal". El gradiente de radicalismo<br />

-sobre to<strong>do</strong> cuan<strong>do</strong> se trata de pasar de1 discurso ala acción- es muy amplio, tanto<br />

entre 10s federalista como entre 10s etnonacionalistas, y diversos indica<strong>do</strong>res (análisis<br />

electorales, sondeos sociológicos ...) sugieren que las posturas extremas son muy<br />

minoritarias. Sin embargo, un análisis meramente numérico de posicionamientos bien<br />

defini<strong>do</strong>s y asumi<strong>do</strong>s explícitamente puede resultar muy enganoso en una socie<strong>da</strong>d<br />

como la malgache, <strong>do</strong>nde 10s consensos y Ias unanimi<strong>da</strong>des llama<strong>da</strong>s kadicionales<br />

(knbnry, versión local de la pnlaltre africana) pueden ser desencadena<strong>do</strong>s por unas<br />

pocas opiniones influyentes18. El hecho mismo que, en una socie<strong>da</strong>d tanamante dela<br />

etiqueta como la merina, 10s etnonacionalistasse hayanatrevi<strong>do</strong> a alzar suvoz, incluso<br />

contra sus mayores, es tan significativo como las violencias, puntuales pero no<br />

menospreciables, de1 movimiento federalista.<br />

La respuesta a1 racismo ha si<strong>do</strong> inevitablemente de carácter universaliza<strong>do</strong>r,<br />

desbor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> con mncho e1 tema que la suscita. Luego, no es de extrafiar que haya<br />

prima<strong>do</strong> entre 10s mnlgnchissnnts foráneos y, a1 menos a nivel formal, entre 10s<br />

académicos y políticos malgaches (merina en su mayoría); a1 fin y a1 cabo, en mayor<br />

'' De hecho. diferentes estudios han revela<strong>do</strong> altos índices de en<strong>do</strong>eamia - en 10s colectivos meiina,<br />

incluso urbanas, auiiqric zs iin rmipo de Iraùajo aùierto.<br />

" Prof~mdizo rn csla cucslión cn un arliculi, dc inniinentc publicnci


o menor gra<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s ellos son representantes locales -locales, unos por nacimiento y<br />

enculturación, otros por vocación y contrato- de un ideal de civilización universal.<br />

Ahora bien, unos y otros han trata<strong>do</strong> de casar e1 universalismo con la conservación<br />

de una identi<strong>da</strong>d malgache distinta; dicho de otro mo<strong>do</strong>, han queri<strong>do</strong> armonizar una<br />

perspectiva "negacionista" con una "revaloracionista". Este esfuerzo ha provoca<strong>do</strong><br />

revaloraciones selectivas, contradicciones y confusiones revela<strong>do</strong>ras.<br />

Sin du<strong>da</strong>, Ia primera estrategia antirracista consiste en un ataque furibun<strong>do</strong> a1<br />

pilar central de1 etnonacionalisino merina, Ia ecuación raza-lengua-cultura. Por encirna<br />

de to<strong>do</strong> se recalca la naturaleza compuesta de Ias poblaciones malgaches y, en menor<br />

medi<strong>da</strong>, Ia compleji<strong>da</strong>d histórica de1 <strong>do</strong>blamiento dela isla. Con e110 se reconoce en<br />

particular la presencia africana en e1 patrimonio genético de la isla -y de to<strong>da</strong>s sus<br />

poblaciones, incluyen<strong>do</strong> a 10s merina y sus ehonacionalista-, pero se hace de un<br />

mo<strong>do</strong> general, sin apenas intentar cuantificarla o distinguiria de otros aportes.lg E1<br />

"enigma más bello de1 mun<strong>do</strong>" (como algún investiga<strong>do</strong>r arrebata<strong>do</strong> ha califica<strong>do</strong> a1<br />

nffnire de1 origen de 10s malgaches) se soluciona con poco más que repetir ese lema<br />

tan en boga de "to<strong>do</strong>s somos mestizos". Volveré sobre Ia cuestión de1 mestizaje, pero<br />

baste sefialar que e1 mie<strong>do</strong> a que Ia ruptura de Ia ecuación a nivel de la isla se repro-<br />

duzca en escalas fragmentarias -sakalava, mahafale, antandroy o merina- Ileva a evitar<br />

cualquier análisis que preten<strong>da</strong> descomponer esa heterogenei<strong>da</strong>d en "bloques"<br />

estudiables en símismos. Con tal fim, y conun pmrito antibiologista clásico, se opone<br />

la diversi<strong>da</strong>d física a Ia uni<strong>da</strong>d cultural.<br />

La inmensamayoría de 10s universalizantes que atacanelracismoenla isla parten<br />

de Ia idea de que Ia cultura malgache, en tanto que constmcto histórico, es fun<strong>da</strong>-<br />

mentalmente unitaria, aunque cristalice en distintos momentos en variantes locales,<br />

que, de to<strong>da</strong>s formas, se solapan y son siempre reversibles. Algo pareci<strong>do</strong> ocurriría<br />

con la lengua: pese a que algunos autores sefialan que las diferencias entre Ias variantes<br />

dialectales de1 malgache son de1 rango de Ias existentes entre las lenguas romances,<br />

suelen insistir en que su confinamiento insular, provoca un continuo trasvase de<br />

influencias que convierte a1 malgache en una uni<strong>da</strong>d linguística dinámica. Semejante<br />

enfoque podría desembocar en una peligrosa convergencia práctica con la posición<br />

de 10s etnonacionalistas merina (y numerosos "proto-etnonacionalistas" antes que<br />

ellos), quemantienen Ia uni<strong>da</strong>d cultural enla isla desde hace casi <strong>do</strong>smilaííos. Póngase<br />

por caso, durante Ias transiciones democráticas, numerosos observa<strong>do</strong>res han<br />

aposta<strong>do</strong> por un potencial malgache que coincidiría a grandes rasgos con Ia visión<br />

"Unos pacos eshrdios,entre 10s afios40 y 60, tratarondedemostrar e1 <strong>do</strong>minio asiático (nuçmtariano,<br />

para 10s etnonacionalistas) de1 genama de Ias poblaciones islefiaç, pero 10 hicieron tan poco<br />

convincentemente como anteriormente 10 había hecho e1 análisis fenotípico de algunos de 10s investiga<strong>do</strong>ieç<br />

coloniales (como e1 propio Alhed Grandidier, padre de la "academia" en Ma<strong>da</strong>gascar y que, entre obs,<br />

había registra<strong>do</strong> actitudes con visos racistas en e1 perío<strong>do</strong> precolonial).


neoweberiana que 10s etnonacionalistas atribuyen ala sola cultura merina; ése es e1<br />

segun<strong>do</strong> pilar de su posición, acompaiia<strong>do</strong> de efectos tales como e1 victimismo. Por<br />

mucho que sus caminos fuesen distintos, 10s universaliza<strong>do</strong>res podrían acabar<br />

abogan<strong>do</strong> por medi<strong>da</strong>s y diseÍios sociales muy similares a 10s postula<strong>do</strong>s por 10s<br />

etnonacionalistas. En nombre de valores supuestamente universales como las liber-<br />

tades y derechos individuales -supuestamente implícitos en e1 susodicho potencial<br />

malgache-, se podría acabar negan<strong>do</strong> las iniciativas de porciones importantes dela<br />

población, y probablemente de aquéllas más aleja<strong>da</strong>s de 10s poderes fácticos: la<br />

exclusión saldría por la puerta y entraría por la ventana.<br />

Para conjurar este riesgo, aunque no siempre de forma consciente, 10s univer-<br />

saliia<strong>do</strong>res optan por negar la existencia de un patrón malgache puro materializa<strong>do</strong><br />

en e1 devenir de alguno de sus supuestos grupos étnicos. A1 mismo tiempo, tratan de<br />

poner éstos en entredicho o, a1 menos, vaciarlos de conteni<strong>do</strong>. Es decir, ni 10s merina<br />

ni ningún otro grupo podría reclamar una mayor o más profun<strong>da</strong> malgachitud. La<br />

empresa es harto complica<strong>da</strong> y, a mi parecer, condena<strong>da</strong> a1 fracaso. Comentarla<br />

superaría con mucho las ambiciones de esta presentación, pero se pueden aportar<br />

algunas acotaciones que creo sugerentes. çiuno no quiere entrar en e1 mismo discurso<br />

esencialista que dice criticar, es forzoso acompaiiar la más o menos caótica compa-<br />

ración de variopintos marca<strong>do</strong>res culturales, con e1 estudio de su cristalización en<br />

relaciones de poderhistóricas. Dicho de otra forma, poco importa que las comuni<strong>da</strong>des<br />

de la isla hayan intercambia<strong>do</strong> multidireccionalmente información si, finalmente, un<br />

grupo consigue imponer en gran medi<strong>da</strong> su propia síntesis (siempre debi<strong>da</strong> a algunas<br />

facciones y no a to<strong>do</strong> e1 presunto grupo). Anadie se le escapa que dicho grupo seria<br />

la etnia merina. Luego, es importante analizar si 10s merina han consegui<strong>do</strong> copar la<br />

cultura malgache a consecuencia de acaparar e1 poder.<br />

La posición de 10s universaliia<strong>do</strong>res es níti<strong>da</strong>: e1 fnnjaknna, e1 esta<strong>do</strong> que arranca<br />

de la expansión merina decimonónica y se articula con las experiencias colonial y<br />

neocolo~al no es en si mismo un asunto merina. Aunque 10s merina sem mayoritarios<br />

en e1 fnnjakníia, éste aglutina a individuos y sectores no merina. Aunque enel fanjnkoiin<br />

intervengan lógicas clientelares que uno podría denominar étnicas, la concepción<br />

completa de1 fnnjnknna, indispensable para su supervivencia, transciende dichas<br />

lógicas; esta trascendencia se vería acentua<strong>da</strong> además con la a<strong>do</strong>pción de Ia democracia.<br />

Por tanto, contentarse con hablar de hegemonía merina para describir las<br />

relaciones de poder en e1 Ma<strong>da</strong>gascar independiente falsearía la situacióu, a1 esconder<br />

Ias soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des interétnicas entre "notables", que tendrían mucho que ver con e1<br />

análisis de clase social o de competencia económica. Los estudios que confluyen en<br />

esta perspectiva sonmuy diversos. Seiialaré <strong>do</strong>s. Françoise Raison-Jourdedemuestra<br />

brillantemente como la expansión merina de1 siglo XIX no só10 se llevó a cabo a<br />

expensas de 10s grupos no merina, sino también, y tal vez en mayor medi<strong>da</strong>, a costa<br />

de la marginación económica, social y política de una mayoría de la propia población


merina (y que se componía únicamente de inninty). Francois Roubaud, menos convin-<br />

centemente, pretende negar la existencia de un "voto étnico" a1 analizar 10s resulta<strong>do</strong>s<br />

electórales de las últimas elecciones presidenciales.<br />

Para comprender esta argumentación universaliza<strong>do</strong>ra "positiva" y sus impli-<br />

caciones, es útil abor<strong>da</strong>r Ia respuesta que <strong>da</strong> a las acusaciones que 10s etnonacionalistas<br />

vierten sobre Ia intervención francesa en la isla. Se trata de una respuesta pondera<strong>da</strong>,<br />

que reconoce 10s intereses inconfesables y 10s traumatismos de1 colonialismo, pero,<br />

en e1 fon<strong>do</strong>, no só10 absolutoria, sino defensora dela necesi<strong>da</strong>d y la obligación moral<br />

continua<strong>da</strong>s de esa intervención, aunque sus formas deban cambiar (pasan<strong>do</strong> de Ia<br />

tutela ala cooperación, en su acepción más interactiva e igualitaria). En primer lugar,<br />

aun aceptan<strong>do</strong> la existencia de la politiqire de rnces (que recientemente ha mereci<strong>do</strong><br />

varias revisiones para poder analizar las raíces de1 fenómeno federalista y, en general,<br />

de1 etnicismo en la isla), 10s universaliza<strong>do</strong>res apuntan con acierto que la orientación<br />

unitarista de1 esta<strong>do</strong> francés pre<strong>do</strong>minó con mucho, asentán<strong>do</strong>se a su vez en una<br />

concepción unitaria de la cultura isleiia y en e1 seiiuelo de1 asirnilacionismo final ala<br />

ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nía francesa para to<strong>do</strong>s 10s malgaches. Aquí parecería que 10s universaliza-<br />

<strong>do</strong>res se acercan a Ia crítica de 10s federalistas, que ven una confmui<strong>da</strong>d entre l'étnt<br />

colonial y e1 fnnjnknnn independiente. Pero este acercamiento es más bien aparente.<br />

Muchos universaliza<strong>do</strong>res están dispuestos admitir e1 sempiterno y perverso aplaza-<br />

miento de Ia cita<strong>da</strong> asimilación por parte de las autori<strong>da</strong>des coloniales, así como las<br />

posibles "a<strong>da</strong>ptaciones" de esta dinámica tras la independencia. No obstante, no se<br />

trataría más que de inercias de1 ejercicio de cualquier poder, aminorables y condena<strong>da</strong>s<br />

a palidecer ante la introducción de1 ideal de ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nía, con sus valores universales<br />

independientes de lanacionali<strong>da</strong>d enjuego, y que se considera un activo irrenunciable<br />

de la colonización francesa.<br />

Desde esta perspectiva, Francia actuó y achía como un vector más o menos<br />

azaroso de una civilización universal que es e1 producto benéfico de la evolución<br />

humana planetaria. La argumentación a<strong>do</strong>pta e1 esquema globaliza<strong>do</strong>, en e1 cual e1<br />

esta<strong>do</strong>-nación es e1 vínculo privilegia<strong>do</strong> entre e1 individuo y e1 género humano. E1<br />

esta<strong>do</strong> democrático, indisolublemente liga<strong>do</strong> a la nación en tanto que socie<strong>da</strong>d civil<br />

que controla y determina a dicho esta<strong>do</strong>. E1 previsible -y deseable- recurso de1 esta<strong>do</strong>nación<br />

mnlngnsy a patrones cuya experiencia puede beneficiarle se dirige hacia e1<br />

modelo francés por razones de coyuntura histórica. Esa misma coyunturali<strong>da</strong>d explica<br />

que, <strong>da</strong><strong>da</strong> su evolución en e1 siglo XIX, la socie<strong>da</strong>d merina, y más concretamente la<br />

8,<br />

burguesía merina", constituya la cabeza de puente autóctona de esa civilización<br />

universal. Esa posición no es excluyente ni indefini<strong>da</strong>. Por una parte, la integración<br />

de no merina en e1 fnnjnknnn y su acceso a Ia culhira occidental ha si<strong>do</strong> progresiva<br />

desde e1 principio (no existe causa esencialista alguna, léase racial) que Ia imposibilite.<br />

Por otra parte, <strong>da</strong><strong>do</strong> e1 <strong>do</strong>ble registro -occidental y malgache- de 10s individuos y<br />

sectores merina más activos en la isla, su misma ubicui<strong>da</strong>d 10s convierte en agentes


universaliza<strong>do</strong>res involuntarios, imposibilitan<strong>do</strong> cualquier "monopolio" étnico de<br />

la moderni<strong>da</strong>d y de sus ventajas (vincula<strong>da</strong>s a Ia ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nía y 10s derechos uni-<br />

versales).<br />

Si es ver<strong>da</strong>d que no siempre se expresa con e1 mismo entusiasmo, semejante<br />

optimismo parece digno de elogio, enparticular enunasocie<strong>da</strong>d con un grave déficit<br />

de desarrollo como es la malgache. Pero, sin du<strong>da</strong>, e1 principal problema que suscita<br />

no es un supuestamente ingenuo exceso de confianza, sino e1 falseamiento de las<br />

relaciones de poder eu la isla y e1 consiguiente oscurecirniento de algunos procesos<br />

con futuro, a1 menos a medio plazo. Para empezar, la apuesta por una socie<strong>da</strong>d civil<br />

naci<strong>da</strong> de la construcción nacional conlleva un determina<strong>do</strong> sesgo merina (faccioso<br />

internamente) a1 igual que e1 lega<strong>do</strong> colonial implicam sesgo francés. No es evidente<br />

que e1 primero se pue<strong>da</strong> tolerar en aras a su vinculación con una "mini-globali<strong>da</strong>á"<br />

malgache en presunto paralelo de Ia asociación de la culiura francesa con la civilización<br />

global. Y no 10 es, entre otras cosas, porque 10s equilibrios de fuerzas de merina y de<br />

franceses en sus respectivos contextos, malgache y global, son muy distintos. Só10<br />

por este hecho habría que replantearse m discurso universaliza<strong>do</strong>r, cuya contundencia<br />

crece de su componente antirracista, pasaporte privilegia<strong>do</strong>s para cualquier meusaje<br />

social en e1 siglo XXI, hasta e1 punto de poder10 hacer inmune a las críticas.<br />

Es indicativo que e1 mensaje federalista parezca generar mayor alarmismo entre<br />

10s universaliza<strong>do</strong>res que e1 discurso de 10s etnonacionalistas merina, pesea la mayor<br />

coherencia racista y exclusionista de éste. içoherencia, que dicho sea de paso, hace<br />

que 10s discursos antirracistas esgrimi<strong>do</strong>s frente a1 federalismo se construyan en buena<br />

medi<strong>da</strong> como réplicas alas proposiciones de1 etnonacionalismo merina! Las voces de<br />

sensibili<strong>da</strong>d "periférica", críticas con e1 unitarismo pero no forzosamente integra<strong>da</strong>s<br />

en e1 movimiento federalista, raramente se expresan en e1 "ágora" y su silencio se<br />

hace más Ilamativo en 10s momentos de crisis como Ia de1 2002, por mie<strong>do</strong> a ser<br />

til<strong>da</strong><strong>da</strong>s de no civiliza<strong>da</strong>s, por modera<strong>do</strong>s y accidentaliza<strong>do</strong>s que sean siis emisores.<br />

Probablemente, 10 que justifica esta para<strong>do</strong>ja sea un contraste de trasfon<strong>do</strong>s sociales.<br />

E1 trasfon<strong>do</strong> de 10s etnonacionalistas y e1 de 10s universaliza<strong>do</strong>res es la mima socie<strong>da</strong>d<br />

urbana y ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>na -no exclusivamente merina, pero con una alta presencia esta-<br />

dística de éstos. Aun a riesgo de simplificar las cosas, los segun<strong>do</strong>s pueden tipificar a<br />

10s primeros como una especie local de "fascistas", 10 que les equipararía a 10s<br />

lepenistas en Francia, tal vez juzga<strong>do</strong>s como rivales o indeseables por 10s demócratas,<br />

pero sin que eso 10s convierta en "otros" en un senti<strong>do</strong> radical, sin que de alguna<br />

manera dejen de ser "uno de 10s nuestros" (en última instancia "redimibles").<br />

Y viceversa. La exclusión absoluta só10 puede nacer de la autodefinición étnica,<br />

pero ésta en símismano la produce. Habría que pensar, pues, que Ia etnici<strong>da</strong>d evoca<strong>da</strong><br />

por 10s federalistas no obedece a 10s mismos parámetros que la de efnonacionalistas<br />

y universalistas. Es cierto que 10s federalistas son occidentaliza<strong>do</strong>s, que comparten e1


menciona<strong>do</strong> trasfon<strong>do</strong> ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>no, pero su trasfon<strong>do</strong> social concreto, sus ancestros y<br />

familiares, frementemente sus lugares de infancia remiten a Iinckgroundç de un tipo<br />

diferente. Si 10s etnonacionalistas son candi<strong>da</strong>tos a fascistas, 10s federalistas 10 son a<br />

tribalistas, con to<strong>do</strong>s 10s terrores atávicos que despierta la idea jentre 10s propios<br />

implica<strong>do</strong>s y entre 10s observa<strong>do</strong>res! Los universalistas no pueden evitar e1 temor a<br />

que e1 federalismo pue<strong>da</strong> abrir la puerta a la "otre<strong>da</strong>d" absoluta, tal vez a su pesar,<br />

con seguri<strong>da</strong>d no en tanto que esencia, sino en cali<strong>da</strong>d de construcción social, pero<br />

en to<strong>do</strong> caso con efectos imprevisibles y amenaza<strong>do</strong>res. E1 etnonacionalismo no les<br />

infunde la misma ansie<strong>da</strong>d, aunque algo de to<strong>do</strong> e110 se puede detectar en e1 seno de<br />

Ia socie<strong>da</strong>d merina. Es su historia la que ha atenua<strong>do</strong> o invisibiliza<strong>do</strong> esa duali<strong>da</strong>d,<br />

esa historia concreta y plural que eluden tanto universalistas como etnonacionalistas<br />

y federalistas.<br />

Identi<strong>da</strong>d y historia en Ma<strong>da</strong>gascar<br />

Por un capricho linguístico (y no conozco ninguna alambica<strong>da</strong> teoría etimológica<br />

que explique convincentemente la homonimia con e1 castellano), e1 concepto de<br />

"ancestro" se expresa con la palabra malgache rnznnn, rnzn en diversas variantes lin-<br />

guísticas dela isla. En consonancia, e1 territorio humaniza<strong>do</strong> se denomina tnnindrnzniin,<br />

literalmente "tierra de 10s ancestros". Esta expresión puede referirse tanto a 10s terrenos<br />

de una familia, como a las tierras comunes de 10 que llamaríamos clan í$raznnnnn o<br />

simplemente rnznnn) o a1 territorio nacional, evocan<strong>do</strong> la "patria" de las lenguas<br />

romances. E1 conteni<strong>do</strong> y alcance concretos de la expresión depende de 10s interlo-<br />

cutores involucra<strong>do</strong>s en ca<strong>da</strong> siiuación de uso. Lo más interesante es que estos usos<br />

remiten a una cierta indiferenciación de 10s criterios espaciales y de filiación y, 10 que<br />

resulta tal vez más decisivo, que tanto e1 territorio como e1 individuo se conciben<br />

siempre en un contexto colectivo, <strong>da</strong><strong>do</strong> que 10s rnznnn nunca son exclusivos de una<br />

persona.<br />

Como es de suponer, 10s razann y sus respectivos tnnindrnzann han i<strong>do</strong> evolu-<br />

cionan<strong>do</strong> históricamente. Han experimenta<strong>do</strong> procesos de expansión y extinción, de<br />

fisión y fusión, se han dilui<strong>do</strong> en otros grupos o se han articula<strong>do</strong> para conformar<br />

uni<strong>da</strong>des mayores sin perder su personali<strong>da</strong>d. En cualquier caso, la primera referencia<br />

identitaria colectiva viene <strong>da</strong><strong>da</strong> en Ma<strong>da</strong>gascar por 10s raznna rastreables por la<br />

memoria local, apelan<strong>do</strong> a estructuras que 10s antropólogos han traduci<strong>do</strong> como<br />

"linaje" y "clan". La otra gran referencia colectiva, la que 10s mismos antropólogos<br />

denominan "etnia" o "grupo étnico", carece de significante autóctono inequívoco<br />

para designarla, pero sí de un referente diferencia<strong>do</strong>r: es e1 fombn, la costumbre, (o e1<br />

didindrnznna o lilindrnzn, la "ley de 10s antepasa<strong>do</strong>s"). Aunque aplicable en círculos<br />

más restringi<strong>do</strong>s, la línea máxima referencia<strong>da</strong> por e1 fombn suele coincidir con 10 que<br />

llamamos "einia"; en ocasiones esa delimitación responde a una unificación política<br />

en un momento histórico, por breve que fuese, mientras que otras veces indica un


estilo de vi<strong>da</strong> diferencia<strong>do</strong> en e1 tiempo. Históricamente no existía una palabra para<br />

unir a to<strong>da</strong> Ia población de la isla. E1 uso de la palabrafherennnn para expresar Ia idea<br />

de "nación", referi<strong>da</strong> prácticamente siernpre a1 conjunto malgache, es reciente;<br />

arrancan<strong>do</strong> como mucho enel siglo XIX, se generaliza conla independencia. Tampoco<br />

existía un fotnlinn'ny ninlngnsy considera<strong>do</strong> como tal, y cuan<strong>do</strong> se hace referencia a é1<br />

siempre es en oposición a un to<strong>da</strong>vía más vago fombnn'ny unznhn, "costumbre de 10s<br />

extranjeros": antes de Ia colonización, ni uni<strong>da</strong>d política ni estilo de vi<strong>da</strong> painsleiío<br />

netamente diferencia<strong>do</strong>.<br />

2No tiene, pues, senti<strong>do</strong> hablar de uni<strong>da</strong>d cultural malgache? Sí 10 tiene, pero<br />

só10 en tanto que continulim histórico, es decir, en tanto que marco de intercambio<br />

privilegia<strong>do</strong> entre las poblaciones de la isla (privilegio altamente favoreci<strong>do</strong> por la<br />

insulari<strong>da</strong>d). To<strong>do</strong> hace pensar que Ias hablas austronesias que se convertirían en Ia<br />

lengua malgache se conservaron a1 ser vehicula<strong>da</strong>s como lengtln frnncn entre<br />

comuni<strong>da</strong>des heterogéneas estableci<strong>da</strong> en la isla. El proceso sería coetáneo e imbrica<strong>do</strong><br />

con Ia bantuización y con la inclusión de Ma<strong>da</strong>gascar en e1 complejo circuito comercial<br />

de1 índico occidental". En este escenario, las reinvindicaciones de pureza aduci<strong>da</strong>s<br />

por 10s etnonacionalista (y, mucho menos claramente, por 10s federalista) son poco<br />

explicativas. Pero tampoco 10 es e1 mestizaje generaliza<strong>do</strong> de 10s universalistas. En<br />

primer lugar, Ia identificación como "mestizo" exige la preexistencia de "puros", 10<br />

que no deja de provocar una contradicción que no es un simple juego sofista. En<br />

segun<strong>do</strong> lugar, una vez acepta<strong>do</strong> e1 carácter compuesto de to<strong>do</strong> grupo humano,<br />

conviene analizar las continui<strong>da</strong>des que presentan Ias combinaciones existentes, su<br />

durabili<strong>da</strong>d, por mucho que no sea una permanencia estática ni incontamina<strong>da</strong>; e1<br />

canto a1 mestizaje en sí mismo no aporta na<strong>da</strong> a este análisis.<br />

En Ma<strong>da</strong>gascar, se pueden distinguir trayectorias sakalava, bestimisaraka,<br />

mahafale o merina; y se pueden distinguir hasta Ia actuali<strong>da</strong>d. Los términosno ofrecen<br />

significa<strong>do</strong>s inmutables y también implican otras trayectorias internas, no siempre<br />

armoniosas (familias, clanes, género, estamentos ...) ni siempre circunscritas a1<br />

supuesto limes éinico (parentesco ficticio, religión ...). Pero esa plurali<strong>da</strong>dno niegani<br />

la legitimi<strong>da</strong>d ni la pertinencia analítica de Ias categorías éinicas. La definición interna<br />

de esas categorías recurre en ocasiones a líneas de fractura que se puedeninterpretar<br />

como raciales: 10s mainty entre 10s merina, 10s mnkon entre 10s sakalava ... Ahora bien,<br />

estas distrnciones se enmarcan en un proceso de integración / exclusiónmucho más<br />

amplio, que incluye muchos otros factores: e1 reconocimiento de una dependencia<br />

pasa<strong>da</strong> (como la esclavitud) o Ia falta de lazos con 10s espíritus locales pesan más que<br />

cualquier supuesto "biologismo autóctono". Sólo se puede igualar e1 genealogismo<br />

" Traté este tema de 10s orígenes malgaches en una panencia presenta<strong>da</strong> en un congreço celebra<strong>do</strong><br />

en Dakar, en 1996, alrede<strong>do</strong>r de Ia noción de uni<strong>da</strong>d cultural africana. Ahora lie vuelto a ese trabajo para<br />

poder publicar10 actualiza<strong>do</strong> en Ma<strong>da</strong>gascar.


de1 sistema de rnznnn en Ma<strong>da</strong>gascar con un biologismo racista si se prescinde de<br />

observar cómo ha funciona<strong>do</strong> históricamente. Esa mira<strong>da</strong> revela un importante<br />

dinamismo en las categorizaciones, remitien<strong>do</strong> a esas magníficas síntesis de 10 que<br />

nosotros Ilamamos "social" y "natural" que operan en Ias socie<strong>da</strong>des con inclinaciones<br />

holistas. También e1 racismo supuestamente <strong>do</strong>minante en la oposición merina / côtiei.<br />

es to<strong>da</strong>vía más reciente que Ia propia oposición (S. XIX); por 10 general, esta división<br />

se ha entendi<strong>do</strong> en clave política (negociable y reversible), no biológica. Las tendencias<br />

a Ia fijación biológica-racista se sincronizan con Ia liberación individual atribui<strong>da</strong> a Ia<br />

colonización y su lega<strong>do</strong>. Da que pensar.<br />

En e1 fon<strong>do</strong>, la negación de la ecuación raza-lengua-cultura es mucho más<br />

compleja de 10 que 10s universalistas pretenden y en absoluto se adecua a su famosa<br />

contraposición de diversi<strong>da</strong>d física y uni<strong>da</strong>d cultural. O a1 menos, hay que explicar<br />

qué se entiende por dicha uni<strong>da</strong>d: jes que alguien pretende que estudian<strong>do</strong> a fon<strong>do</strong><br />

Ia socie<strong>da</strong>d delsegrià (unacomarca en e1 su<strong>do</strong>este de Catalunya, a suvez enelnoreste<br />

de Espana, que ocupa e1 su<strong>do</strong>este de Europa) podremos entender 10 que ocurre en un<br />

pueblo de las Ardenas? jo que, a1 proclamar Ia humani<strong>da</strong>d de sus respectivos<br />

habitantes, podemos hacer caso omiso de Ias formas de actuación colectiva de unos y<br />

otros, formas que se han construi<strong>do</strong> históricamente y no en un gabinete de disefio<br />

social, que implican a personas concretas y no só10 a ideas? jDemagogia? Quizás,<br />

aunque no sé muy bien a quien adulo. Un colega malgache me confió que "aunque<br />

Ma<strong>da</strong>gascar sea físicamente una isla, socialmente es un ar~hipiélago"~'. Y socialmente<br />

quiere decir culturalmente y políticamente y.. .<br />

La casi coincidencia de etnonacionalistas y universalistas en apostar por un<br />

potencial malgache-merina es sugerente. La similitud en la descripción de dicho<br />

potencial, su aceptación por ban<strong>do</strong>s aparentemente separa<strong>do</strong>s por e1 anatema racista<br />

responde a que dicho potencial se mide con e1 rasero de1 progreso occidental. Algo<br />

pareci<strong>do</strong> podría ocurrir con 10s federalistas. AI fin y a1 cabo, 10s modelos que evocan<br />

tambiénsonoccidentales y democráticos, y las balizas territoriales conlas que cuartean<br />

su esta<strong>do</strong> federal son Ias fronteras de losfnritnny, herederos directos de Ias "provincias"<br />

coloniales, de escasa coherencia étnica, con Ia excepción matizable de1 fnritnny de<br />

Antananarivo, significativamente considera<strong>do</strong> como un "feu<strong>do</strong> merina"". E1 problema<br />

no es, pues, e1 discurso, opinable pero también homologable en Ia orto<strong>do</strong>xia<br />

politológica global. Fero tampoco 10 es e1 racismo más o menos implícito que puede<br />

acabar infectan<strong>do</strong> dicho discurso: to<strong>do</strong>s 10s nacionalismos han teni<strong>do</strong> dicho compaiíero<br />

de equipaje en algún momento y ésa se ha proba<strong>do</strong> una tara grave pero corregible<br />

(algo de esta comprensión hay en algunas críticas universalistas a1 etnonacionalismo).<br />

" Comunicación personal de Manassé Esaavelomandroça.<br />

Esta excepción relativa merece çin du<strong>da</strong> una atención detalla<strong>da</strong> que yo aqui no pue<strong>do</strong> ofrecerle.


iDónde reside entonces e1 problema de1 federalismo, susceptible según sus críticos<br />

de invocar 10s fantasmas de1 tribalismo?<br />

Quizás e1 problema no resi<strong>da</strong> en lugar alguno, sino que tenga que ver con e1<br />

auditorio que reciba dicho mensaje. Cuan<strong>do</strong> éste resuena en Ia arena política<br />

"nacional", con sus instituciones y asambleas, no deja de ser una opción más, negociable,<br />

aprecia<strong>da</strong> o denosta<strong>da</strong> por Ias diferentes facciones, pero comprensible y, en<br />

principio, legítima23. Ahora bien, Ia <strong>do</strong>ctrina federalista que se podría escuchar en Ia<br />

Asamblea Nacional, también se dejaría oír ante otras audiencias. Y Ia repulsa a sus<br />

hipotéticos efectos se centra precisamente en la reacción que pue<strong>da</strong> provocar entre<br />

esas audiencias. Simplifican<strong>do</strong>, <strong>da</strong> Ia impresión como si 10s efectos de1 racismo entre<br />

10s merina se juzgaran a priori menos desestructurantes que 10s efectos de1 racismo<br />

côtier, en sus distintas varie<strong>da</strong>des. Se trata de saber cómo se puede reapropiar (y<br />

traducir) e1 discurso federalista esa "mayoría silenciosa" a Ia que tanto aluden 10s<br />

medios de comunicación en vísperas de to<strong>do</strong> proceso electoral, esa población rural,<br />

más omnipresente y supuestamente "más rural" fiiera de Imerina, aunque también<br />

podríamos considerar "mu<strong>da</strong>s" a 10s deshere<strong>da</strong><strong>do</strong>s urbanos, incluyen<strong>do</strong> a grandes<br />

contingentes mninty.<br />

Si jcomo parece obliga<strong>do</strong>! se descarta Ia argumentación biologista para explicar<br />

Ias sombrías expectativas deposita<strong>da</strong>s sobre estas audiencias provincianas, hay que<br />

ir a parar a su historia y ésta es muy alecciona<strong>do</strong>ra. No hay que engaíiarse: Ia asimila-<br />

ción de mensajes universalistas se ve extraordinariamente facilita<strong>da</strong> por una encultu-<br />

ración, o aculturación, occidentaliza<strong>do</strong>res, ya que Occidente pone e1 código y en buena<br />

medi<strong>da</strong> e1 conteni<strong>do</strong> de 10s supuestos universales. La occidentalización precolonial<br />

merina durante e1 siglo XIX no tiene comparación en Ia isla, con Ia excepción más<br />

bien forza<strong>da</strong> de 10s betsileo, vecinos sureiios de 10s merina en las Tierras Altas (no en<br />

vano entre 10s <strong>do</strong>s continúan suman<strong>do</strong> Ia mayoría de 10s cristianos y una gran parte<br />

de 10s alfabetiza<strong>do</strong>s de Ia isla). De ahí e1 mie<strong>do</strong> a que un mensaje como e1 federal, aun<br />

emiti<strong>do</strong> por elementos occidentaliza<strong>do</strong>s, se viese fatalmente traduci<strong>do</strong> en claves que<br />

pudieran reavivar formas de soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des tradicionales jerarquiza<strong>da</strong>s, condena<strong>da</strong>s<br />

por e1 colonialismo y sus secuelas. Esas soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des yrescindirían de1 bien comúna<br />

escala isleiia y no asumirían Ia defensa de 10s derechos y libertades universales.<br />

La inquietud parece injustifica<strong>da</strong> ya que Ia "mayoría silenciosa" acude a votar<br />

en una proporción apreciable y 10 suele hacer sin estridencias revolucionarias,<br />

criestióndelas uiolcncias oeroeka<strong>da</strong>s , , oorlos fcdcraiktas es comoleia . ,, vlahe hata<strong>do</strong>oarcialmente<br />

cii otro lugar. F.iicuilcluier c,is~, h&) que matiiar IA i>iagiitod ~i~l?nci~,~n g?~\~ral m\.v ionlrolxl~,<br />

COii nlgunai ?*cepcioncs, sobre railu en 13 rcgión dc Ansiriiri:iii;i sxiidi<strong>da</strong> por Ias i~iafias dcil \.;iinilli L.<br />

inçkumentaliza<strong>da</strong> -cuan<strong>da</strong> no pmduci<strong>da</strong> directamente- por facciones locales con grandes intereses e1 10s<br />

sucesivos regímenes ratsirakktas (Ratsiraka, presidente 1975-1992.1997-2001).


aparentemente "a favor de1 viento", es decir, de1 mismo candi<strong>da</strong>to impulsa<strong>do</strong> por Ias<br />

masas urbanas. Este resulta<strong>do</strong> pone en du<strong>da</strong> lapresunción de una fácil manipulación<br />

de Ias poblaciones locales por las argiimentaciones federalistas, con o sin infiltraciones<br />

ratsirakistas. También hace más sospechosa Ia demonización de1 federalismo, ipor<br />

no hablar de la escasísima confianza en la democracia que demuestra! No hay poca<br />

carga de "culturalismo" malentendi<strong>do</strong> en esta desconfianza supuestamente univer-<br />

salista que parece esconder intereses inconfesables. Por una parte, se pretende eliminar<br />

una alternativa política que podría llegar a ser legítima (y aquí estamos ante una<br />

estrategia de élites facciosas). Pero, por otra parte, ese acoso a1 federalismo permite<br />

desviar "honorablemente" Ia ver<strong>da</strong>dera meta: e1 "control" de Ia limita<strong>da</strong> participación<br />

de esa mayoría silenciosa ya no en e1 proceso electoral, sino en la "vi<strong>da</strong> civil". En e1<br />

actual contexto democrático (y en las elecciones-plebiscito anteriores), esa mayoría<br />

silenciosa otorga legitimi<strong>da</strong>d a cambio de ... casi na<strong>da</strong>. Interesa ese "casi".<br />

Es evidente que e1 esta<strong>do</strong> prácticamente no puede ofrecer na<strong>da</strong> a las población<br />

es locales, exceptuan<strong>do</strong> una articulación potencial -siempre personaliza<strong>da</strong>- y, sobre<br />

to<strong>do</strong>, su ausencia -que permite una cierta autonomía local-. Esta línea puede alejarse<br />

de1 tema central de Ia ponencia, así que baste con indicar que la mayor parte de 10s<br />

malgaches, inclui<strong>do</strong>s 10s académicos, mantiene que esas supuestamente temi<strong>da</strong>s<br />

soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des étnicas y clánicas están y siempre han esta<strong>do</strong> activas; no son "fósiles<br />

culturales", se enlazan con otros ámbitos de la isla je implican anumerosos individuos<br />

más que "aceptablemente" occidentaliza<strong>do</strong>s! Es cierto que en estos últimos ambientes,<br />

esa presencia se vive a menu<strong>do</strong> un tanto discretamente, en priva<strong>do</strong> sin ser10 propia-<br />

mente. Economistas y antropólogos Ias han situa<strong>do</strong> en una cierta "esfera informal",<br />

que, en general ha si<strong>do</strong> considera<strong>da</strong> como marginal o subsidiaria, sobre to<strong>do</strong> en e1<br />

análisis político y cuan<strong>do</strong> se refiere a grupos con poca presencia en e1 esta<strong>do</strong>. Só10 un<br />

puna<strong>do</strong>de mnlgnchisnnts (enmo<strong>do</strong> algunos sospechosos de velei<strong>da</strong>des reaccionarias)<br />

convierte Ias menciona<strong>da</strong>s soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des en Ia espina<strong>da</strong> de1 archipiélago mnlngnsy. E1<br />

peligro de1 federalismo no residiría en que pudiera reavivar dichas soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>des,<br />

sino en que pudiese conferirles mayor autonomía y estimular nuevas relaciones con<br />

e1 mun<strong>do</strong> formal, tal vez incluso que Ias pudiera hacer saltar a la arena política.<br />

E1 antirracismo es un componente más de un discurso universalista que, negan<strong>do</strong><br />

explícitamente Ia legitimi<strong>da</strong>d e incluso Ia existencia de las identi<strong>da</strong>des diferencia<strong>da</strong>s<br />

en la isla, 10 que hace en reali<strong>da</strong>d es contribuir a mantener un pluralismo "invisible".<br />

Naturalmente, entre 10s "visibles", occidentalua<strong>do</strong>s, gente de1 fnnjnknnn, se pueden<br />

observar desigual<strong>da</strong>des: probablemente nadie ha saca<strong>do</strong> más provecho en este campo<br />

que Ias élites merina, pese a su victimismo (e1 federalismo responderia a una muy<br />

vaga estrategia que podría apuntarhacia unaumento de Ia entra<strong>da</strong> de élites periféricas<br />

en Ia visibili<strong>da</strong>d). Pero esta juego visible / invisible no es una simple historia de<br />

marginación; tal vez ni siquiera es principnlmente una historia de marginación.


Desde Ia intensificación de1 contacto con Occidente (especialmente desde e1 siglo<br />

XIX), las diferentes comuni<strong>da</strong>des malgaches han a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> distintas estrategias a1<br />

respecto. Aunque nunca homogéneas ni exclusivas (entre otras cosas para facilitar<br />

alternativas más o menos ocasionales), se pueden distinguir tendencias <strong>do</strong>minantes<br />

entre Ias distintas einias: En alg~inas (tan diferentes como 10s sakalava, 10s tandroy o<br />

10s tafiala), se detecta un distanciamiento sistemático respecto a1 esta<strong>do</strong>. Ese<br />

distanciamiento es parcialmente forza<strong>do</strong>, debi<strong>do</strong> a que Ias élites de Antananarivo y<br />

sus limita<strong>do</strong>s socios en provincias han tendi<strong>do</strong> a acaparar e1 espacio estatal desde 10s<br />

tiempos de Ia colonia (en continui<strong>da</strong>d con su expansionismo decimonónico, en 10<br />

político y en 10 económico); no se trata de una disputa menor, ya que, en e1 modelo<br />

desarrollista postcolonial, se otorga a1 esta<strong>do</strong> e1 rol de motor privilegia<strong>do</strong> en Ia<br />

producción de riqueza (internacionalmente homologable) y en la renovación de1 teji<strong>do</strong><br />

social. No obstante, e1 distanciamiento de1 esta<strong>do</strong> (que se convierte en subsidiario en<br />

las dinámicas sociales de dichas comuni<strong>da</strong>des) también entrafia una opción utilitaria<br />

ante 10 limita<strong>do</strong> de1 "pastel desarrollista": Ia mentira acerca de1 potencial malgachemerina<br />

es que pue<strong>da</strong> generalizar fácilmente entre las poblaciones de la isla e1 bienestar<br />

de Ias socie<strong>da</strong>des de~arrolla<strong>da</strong>s~~. Ante semejante fiasco cotidiano (Ia oferta y las<br />

decepciones son permanentes) no es raro que se deje la puerta abierta a otros<br />

potenciales, que acaban sien<strong>do</strong> 10s más actualia<strong>do</strong>s por la mayor parte de la población.<br />

Pese a las reitera<strong>da</strong>s y evidentes a<strong>da</strong>ptaciones que presentan, dichos potenciales<br />

proyectan estrategias de longiie diirée que podríamos calificar de no maximiza<strong>do</strong>ras<br />

(a diferencia de1 modelo de progreso occidental); esta continui<strong>da</strong>d y sn fuerte referencia<br />

endógena permite denominarias "hadicionales".<br />

La compleji<strong>da</strong>d desvela<strong>da</strong> a partir de1 acercamiento a Ia polémica sobre e1 racismo<br />

en Ma<strong>da</strong>gascar afecta, e ilumina, uno de 10s puntos de1 debate, Ia responsabili<strong>da</strong>d de<br />

la antigua metrópoli. Más allá de 10s múltiples traumas humanos y de laarticulación<br />

perversa en e1 sistema internacional que propició e1 colonialismo, está claro que la<br />

configuración de una gente de1 fnnjnknnn (con sus desequilibrios étnicos y sociales)<br />

contó con Ia connivencia de 10s franceses. En su cali<strong>da</strong>d de vector globaliza<strong>do</strong>r (y<br />

formaliza<strong>do</strong>r) colonial y postcolonial, 10s franceses fueron, y son, 10s grandes a<strong>da</strong>lides<br />

de un nuevo mun<strong>do</strong> formal y de su aparente monopolio de la res p~rblicn. En contra<br />

de un cierto rousseaunismo, Ia homogeneización cultural es una eshategia que puede<br />

" Otra vez se abre un tema "largo". " La imoosibili<strong>da</strong>d de generalizar Ia realización a medio olazo de1<br />

poteiici2l iiialgaclic (es:.is.iiiicnls7 dcb~lil>le pcjc .i1 ophiiiibino forind d: iio piciisi arra:'o cur~igc iiiia<br />

Jd 11s n~o. >ttpuc>t, invialnli AAA ~>~vjrn>ci, 1.2 v,~u~p~caciin clc 133 9r25ta~.1dn:> de<br />

10s esta<strong>do</strong>s africanos conlaç delos iaiseç ricos mesenta oroblemas simila>e;tanto si e1 mod~loes cenhalista<br />

c.,iiiu dcsccntr,,liraclu r, fe,ler;ll Lii ra.10~ 10,


ser discuti<strong>da</strong> (y por tanto defendi<strong>da</strong>), pero siempre en términos de ventajas y<br />

desventajas, no de imperativos categóricos. De 10 contrario, se producen efectos<br />

insospecha<strong>do</strong>s.<br />

Por ejemplo: la abolición por decreto de la esclavitud (una teórica conquista de<br />

Ia acción civiliza<strong>do</strong>ra colonial), asocia<strong>da</strong> a la introducción de una cultura escrita que<br />

se organiza a partir de registros formaliza<strong>do</strong>s y "objetiva<strong>do</strong>s", ha contribui<strong>do</strong> a fijar<br />

e1 estatus de "antiguo esclavo" hasta extremos impensables en Ias socie<strong>da</strong>des<br />

tradicionales. En éstas, y en función de Ias vicisitudes lustóricas, en un intervalo<br />

generacional limita<strong>do</strong>, 10s dependientes podían ser absorbi<strong>do</strong>s por 10s antiguos amos,<br />

a1 igual que 10s extranjeros podían convertirse en tonzpo?ztnlzy, duefios de la tierra.<br />

Esta imposición de unnuevo sistema de integración no se acompaiiaba dela garantia<br />

de accesos equiparables y negociables a 10s recursos y a1 espacio público, sino que,<br />

sobre to<strong>do</strong>, generaba un des<strong>do</strong>blamiento de las relaciones sociales y amenazaba con<br />

introducir elementos extrafios (como e1 racismo biologista) en Ias categorías<br />

tradicionales, siempre vigentes a1 continuar sien<strong>do</strong> útiles. Los efectos son de 10 más<br />

diverso (quienes detentan e1 poder formal sacan provecho, pero 10s demás no se<br />

qiie<strong>da</strong>n quietos) y no está claro que exista una alternativa a1 juego entre visibili<strong>da</strong>d e<br />

invisibili<strong>da</strong>d. En cualquier caso, 10 que siempre resulta contraproducente es ignorar<br />

dicho juego o actuar como si uno de 10s ban<strong>do</strong>s 10 hubiese perdi<strong>do</strong> de antemano, sin<br />

tener pruebas de e110 y sin poner fecha final a la parti<strong>da</strong>. La apelación moral, e1<br />

compromiso con unos valores humanos presuntamente universales en poco afecta a<br />

las consecuencias de semejante cegiera.<br />

Algunas generalizaciones eventuales (y breves)<br />

Uno no puede sino interrogarse sobre por qué e1 relativismo cultural (o e1<br />

n~ulticult~~ralismo, estrechamente uni<strong>do</strong> a las menciona<strong>da</strong>s estrategias "revaloracionistas"),<br />

bajo la acusación mjs o menos vela<strong>da</strong> de racismo, provoca tanto mie<strong>do</strong><br />

cuan<strong>do</strong> tan a menu<strong>do</strong> se refiere a socie<strong>da</strong>des o comuni<strong>da</strong>des margina<strong>da</strong>s o minoritarias.<br />

E1 mie<strong>do</strong> a 10s "pequefios" es siempre un mie<strong>do</strong> culpable. E1 talón de Aquiles<br />

científico de1 culturalismo no es su racismo, sino su inclinación idealista. Sin embargo,<br />

e1 idealismo ha cautiva<strong>do</strong> a pensamientos tan varia<strong>do</strong>s como e1 estructuralismo, Ia<br />

dialéctica (a Ia que tanto han recurri<strong>do</strong> 10s presuntos materialistas marxistas) o la<br />

bioética. No por e110 se 10s ha acusa<strong>do</strong> de racistas. De hecho, e1 debate en torno a1<br />

idealismo pondría en un brete a más de uno de 10s que critican e1 culturalismo.<br />

E1 racismo está incrusta<strong>do</strong> en la expansión occidental que acompafió a la<br />

formación de1 nacionalismo europeo, sobre to<strong>do</strong> durante e1 siglo XIX. La estructuración<br />

coetánea de la ciencia moderna favoreció Ia biologización de1 racismo. Autores<br />

anteriores, inclui<strong>do</strong>s 10s cantores de1 "buen salvaje" como e1 mismísimo Rousseau,<br />

pudieron ser racistas sin que tal calificativo comportase Ias esclavitudes morales y


meto<strong>do</strong>lógicas que se le atribuyen hoy en día. iPor qué? Porque no establecían una<br />

barrera infranqueable entre 10 racial y 10 político, entre 10 natural y 10 cultural. E1<br />

paso de una a otra era una pura coyuntura histórica, indefini<strong>da</strong>mente acelerable en<br />

Ia concepción de Locke sobre la mente como un "gabinete vacío". Ahora, nuestras<br />

concepciones (y nuestra crítica a la noción de raza) son otras, pero en algunos aspectos<br />

Ias consecuencias prácticas se continúan acomo<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a 10s parámetros ilustra<strong>do</strong>s.<br />

Curiosamente, 10s mznnn malgaches, en las antípo<strong>da</strong>s de la moderni<strong>da</strong>d anuncia<strong>da</strong><br />

por Ia Ilustración, manifiestan la misma plastici<strong>da</strong>d. iPor qué entonces e1 alarmismo<br />

antirracista ante discursos como e1 federalismo o, incluso, e1 etnonacionalismo merina,<br />

si 10 más probable es que vayan a ser leí<strong>do</strong>s en la clave elástica de 10s rnzniin?<br />

Apartir de1 ejemplo de Ma<strong>da</strong>gascar, he intenta<strong>do</strong> apuntar algunos de 10s intereses<br />

inconfesables o, simplemente, acalla<strong>do</strong>s que pueden explicar ese alarmismo. Me<br />

gustaría lanzar algunas generalizaciones para su reflexión y contras te. Y per<strong>do</strong>nadme<br />

e1 tono dela perorata, pero la alusión a1 racismo invoca irresistiblemente la noción de<br />

culpa y unono puede evitar e1 jugar conlas herramientas culturales propias. E1 peca<strong>do</strong><br />

de1 colonialismo no fue la invención de las etnias, bajo un sustrato racista, tal como<br />

quiere la prepotencia deconstructista. Más allá de 10 adecua<strong>do</strong> de la denominación,<br />

e1 peca<strong>do</strong> fue reformularlas en términos esencialistas comprensibles para 10s<br />

occidentales para luego negarles cualquier validez política; con ello, negaban la<br />

expresión de 10s coloniza<strong>do</strong>s en 10s términos que éstos <strong>do</strong>minaban. Y esta negación<br />

Ia comparten universalista, instrumentalistas s y anticoloniales de1 más varia<strong>do</strong> pelaje.<br />

E1 moderno modelo occidental de derechos y deberes, cristaliza<strong>do</strong> en la demo-<br />

cracia parlamentaria, parte de la igual<strong>da</strong>d individual. Pero es una falsa igual<strong>da</strong>d. Las<br />

construcciones normativas deriva<strong>da</strong>s están plaga<strong>da</strong>s de false<strong>da</strong>des: ;quién cree en Ia<br />

garantía constitucional a una vivien<strong>da</strong> digna? icómo se justifica Ia exclusión de 10s<br />

no nacionales o de 10s no europeos o de 10s no humanos? iqué decir de las innu-<br />

merables exclusiones fácticas de 10s menos favoreci<strong>do</strong>s económicamente? Se podría<br />

objetar razonablemente que la democracia es un ideal consensua<strong>do</strong>, siempre por afinar<br />

y cuyos mecanismos están sujetos a una perpetua negociación. En tal caso ipor qué<br />

no admitir la concurrencia política de modelos que no parten de una falsa igual<strong>da</strong>d,<br />

sino de una diferencia, en parte real y en parte falsea<strong>da</strong>, pero asumi<strong>da</strong>, jerarquiza<strong>da</strong>?<br />

E1 tan temi<strong>do</strong> culturalismo en e1 discurso político (y e1 racismo es quizás Ia baza más<br />

fuerte de tal temor) no deja de ser reversible por definición. No importa e1 idealismo<br />

fijista con e1 que se formule: si necesita proselitismo es que es móvil.<br />

A1 fin y a1 cabo, las soluciones sociales a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s dependerán en ca<strong>da</strong> momento<br />

dela oferta de ca<strong>da</strong> modelo, una oferta evaluable por parte de las personas concretas.<br />

;Podemos descartar esa evaluación en nombre de la democracia? iDesde luego que<br />

podemos, se está hacien<strong>do</strong>! iPero semejante orientación ha asegura<strong>do</strong> iin mayor<br />

bienestar o una interiorización de1 patrón supuestamente universal? Lo cierto es que


en numerosas socie<strong>da</strong>des africanas, Ias malgaches entre ellas, e1 contacto total con e1<br />

Occidente universaliza<strong>do</strong>r ha arroja<strong>do</strong> unos frutos de 10s que no cabe presumir.<br />

Debería resultar evidente que Ias poblaciones afecta<strong>da</strong>s han teni<strong>do</strong> que recurrir a<br />

otros modelos (no de manera excluyente, pero si sistemática). Si parece un error político<br />

gravísimo ignorarlos o tratar de <strong>do</strong>mesticarlos (véanse algunas iniciativas recientes<br />

por parte de1 Banco Mundial, entre otros), en e1 campo de la ciencia, e1 error es tan<br />

monumental que la palabra peca<strong>do</strong> reaflora, casi sin querer. Quizás una parte de Ia<br />

ver<strong>da</strong>d (ya inevitablemente con minúsculas) esté "aquí dentro", tal como quieren<br />

místicos, filántropos, biologistas o politólogos, pero, sin du<strong>da</strong>, otra parte esta "ahí<br />

fuera". Y para verla, hay que abrir 10s ojos. Veremos fenotipos, estadísticas, diacronías,<br />

incluso ideas (sí, se ven), pero Ias veremos encarna<strong>da</strong>s, materializa<strong>da</strong>s en personas<br />

que las explican y Ias usan en e1 tiempo. Y nuestros propios usos y explicaciones<br />

deberánresponder a esa experiencia, a 10 que discutimos que es, y no alo que sabemos<br />

que debería ser.


IMAGES D'AFRIQUE - IMAGES D'AFRICAINS<br />

COMMENT PARLER DE C ALTÉRITÉ RACIALE DANS LES<br />

ÉTUDES LITTÉRAI RES?*<br />

Introduction<br />

Le point de départ des réflexions suivantes fut la demande de deux collègues,<br />

Manfred Beller et Joep Leerssen, de rédiger deux articles sur les entrées ~Africans<br />

('Negroes', Black peoples),, et et ses variantes<br />

<strong>da</strong>ns le cadre des études littéraires (post-) coloniales s'imposait <strong>do</strong>nc.<br />

Dans l'introduction programmatique («Outline») du manuel précédemment cité,<br />

les deux auteurs présentent leur conception de l' au sens visuel et iconographique<br />

'Cetesçai est ~ubliéen même tem~ç <strong>da</strong>ns ça version aliemande sou le tihe: ,,Afrika-Bilder-Bilder<br />

von Afrika(nr.r/inneii)? - BegrifflicI>c imd mr.thri<strong>do</strong>l~i~ische Ubr.rlcgungen zii ciner verwirreiidin<br />

Gcn~cngcla~r.", in. ,\RSDT/ BFRNTX. 2005, pp 351-370 -Lcs traduclionsdr.~citatio~de 1'allcnianùen<br />

français sont del'auteur f1.R.). - .. Te remercie ~érnõiaue Porra d'avoir bienvoulu corrieer " Ia version francaise<br />

de mon texte.<br />

' Universi<strong>da</strong>de de Bayreuth.


(<strong>do</strong>nc de peintures, dessins, photographies etc.), peut-on pour autant les exclure d'une<br />

analyse de Ia


Les imageç <strong>do</strong>minantes de I'Afrique sont transmises srutoutpar les mass média, Ies<br />

manuels scolakes, les fih, leç cantacts humainç, Ia publicité, Ies littératiires pour enfants<br />

et poiir la jeruieçse, les littérahtrcs pour adiiltes, Ics magazines de voyage et les brindes<br />

dessinées. Les récits de voyage historiqueç et Ia littérat~ue de fiction coloniale continiient<br />

de reprodture les images de I'Afrique. (ARKDT, 2001, p.35).<br />

Dans le volume édité par Susan Amdt, le dénominateur commun deces «images»<br />

d'Afrique, qui sont d'origine et d'appartenance différentes est leur eracisme>> et les<br />

eflets fatals qu'il a sur l'attih~de et les comportements de ceux quisubissent l'influence<br />

de ces ximages*.<br />

Dans un te1 contexte, est attaché, dès le début, au terme d'«image., rme composante<br />

de critique idéologique ou discursive; i1 opère une déformation ou la création<br />

d'une fausse image (mirnge) que le critique <strong>do</strong>it révéler et 'traduire' <strong>da</strong>ns sa vraie<br />

signification.<br />

Images l Mirages<br />

Cela nous amène aux origines 'scientifiques' de l'


ilsse en Frnnce ntr XVllle siècle d'Albert Lortholary, L'lmnge de Ia Russie dnizs ln uie<br />

iiztellecttiellefrn~~çnise (1839-1856) de Michel Ca<strong>do</strong>t, L'Iiiinge de Ia Frnnce <strong>do</strong>ns ln consciente<br />

nnglnise (1848-1900) de Sylvaine Maran<strong>do</strong>n, ou Imnges dtr Portrrgnl dnns les lettreç<br />

frnizçnises (1700-1755) de Daniel-Henri Pageaux. Aux concepts d'cimagesn ou de<br />

«miragesn peuvent se substituer des termes apparentés tels que ceux de wision*, de<br />

«mythe» ou de


Sometimes you see imageç. Anotlier time you tlunk you see one image, a total im-<br />

age. Sometimes you become aware tliat there mustbe sometliing deeper thãn whatpoliti-<br />

cinns or newçmen wadd like to see as an authentic imge. Whatever çingle úriage may<br />

emerge of Africa muçt continue to çiiift. Thiç iç not a continent lying in çtate. Oiu Iieroes<br />

alsa rise and fall. We also liave oiu political <strong>do</strong>wnç, political execritioners, political spivs,<br />

grafters in higli places, as every other continent has. We are a vibrant people too.<br />

(MPHAHLELE, 1974, p.19)<br />

La lutte politique pour l'égalité des droits et l'indépen<strong>da</strong>nce politique est aussi<br />

une lutte autour des images, vraies et fausses, images qui bougent, images qui<br />

présentent des héros ou des clowns, des bourreauxet des imposteurs, des trafiquants<br />

et des fainéants. Certaines phrases, chez Mphahlele, sont à lire comme autant d'échos<br />

de poèmes de la Négriiude, rappellent des vers de Senghor ou de Césaire: «We are<br />

poor; we <strong>do</strong> not manufacture; we <strong>do</strong> not process our raw materials.~ (Ibid.); et d'échos<br />

d'un passé colonial plus éloigné encore: «You're çtill my burden, I can hear them<br />

chuck1e.n (Ibid.) L'analyse de l'image de l'Afrique et des Africains <strong>da</strong>ns The Africnn<br />

Inznge se présente, dès le début, comme déconsh.uctiond'une image héritéed'unpassé<br />

colonial et comme tentative de lui substituer une image nouvelle qui tienne compte<br />

de l'évolution historique récente.<br />

I1 en est de même des études littéraires et historiques sur l'image de l'Afrique et<br />

des Africains, sur Ia littérature coloniale et ses images (au sens concret), qui sont<br />

publiés depuis les années 1960. Celles-ci se présentent comme des contributions à la<br />

décolonisation mentale: elles sont déconstructivistes <strong>da</strong>ns leurs analyses du<br />

fonctionnement et des mécanismes ayant contribué à faire accepter et établir, auprès<br />

du public européen, un consensus national sur le bien-fondé et la Iégitimité du<br />

colonialisme. On constate néanmoins une différence significative entre les travaux<br />

des historiens d'un côté, et des critiques et historiens de la littérature de l'autre. Ainsi,<br />

les deux volumes de l'historien américain Philip D. Curtin publiés sous le titre The<br />

Imnge ofAfricn. British Idens nnd Action, 1780-1850, trouvent leur origine <strong>da</strong>ns le constat<br />

que l'opinion publique «occidentale», <strong>da</strong>ns les années 1950, n'était pas encore préparée<br />

à voir ni à accepter l'indépen<strong>da</strong>nce politique des États d'Afrique, que l'image du<br />

continent africain, surtout <strong>da</strong>ns les pays ayant un passé colonial, continuait de<br />

s'orienter selon une conception qui faisait toujours Ia distinction entre colonisateurs<br />

et colonisés, conquérants et conquis, et le décalage de pouvoir qui en découlait et qui<br />

remontait loin <strong>da</strong>ns le passé. Pour Curtin, c'est surtout Ia période allant de 1780 à<br />

1850 qui fut constiiutive pour l'image de l'Afrique depuis le XIXe siècle. I1 s'agirait<br />

d'une image rarement présentée et formulée de façon explicite, mais quifaisait plutôt<br />

partie d'un savoir d'arrière-fond voire inconscient. Contrairement à ce qui se fait<br />

<strong>da</strong>i- les études littéraires, l'historien américain établit un rapport étroit entre cette<br />

image de 1'Afrique et l'augmentation continuelle du savoir sur le «<strong>da</strong>rkcontiment>>,<br />

les découvertes de nouvelles contrées et Ia croissance régulière des connaissances<br />

<strong>da</strong>ns tous les <strong>do</strong>maines, et qui contribuèrent à modifier les idées sur l'ensemble du<br />

contiient avant qu'elles n'entrent <strong>da</strong>ns les formes populaires de la connaissance et<br />

du savoir.


Dans l'introduction à son livre Die Entdeckrtng des schwnrzetz Afrikntzers [La<br />

découverte de l'Africain noir], l'historien suisse Urs Bitterli essaie également de définir<br />

sa place <strong>da</strong>ns Ia snccession des interprétations historiques des rapports entre l'Europe<br />

et le monde d'outre-mer qui, pour lui, sont marquées par des «discussions animéesn<br />

qui anraient <strong>do</strong>nné des résultats frnctueux <strong>da</strong>ns les études sur l'époque impérialiste<br />

et le processus de décolonisation; cepen<strong>da</strong>nt, i1 ne faudrait pas tomber, selon lui,<br />

«<strong>da</strong>ns les pièges de l'auto-accusation ni de la légitimation, mais arriver à une<br />

appréciation équitable des phénomènes>> (BITTERLI, 1980, p.7). En limitant ses<br />

recherches <strong>da</strong>ns l'espace, <strong>da</strong>ns le temps et par rapport au matériel pris en compte<br />

(des <strong>do</strong>cuments écrits seulement), toute l'attention de l'historien Bitterli se concentre<br />

- et c'est précisément ce qui distingue sa démarche de celle des étndes littéraires -<br />

sur l'étude de l'«individualitén de chaque auteur et du caractère unique de chaque<br />

situation historique. Ainsi trouve-t-on de nombreux points de contact avec le livre de<br />

Curti. Bien que les questions servant de fil rouge à l'étude de Bitterli, à savoir<br />

woment les Européens se sont positionnés <strong>da</strong>ns leurs rencontres avec les Noirs<br />

africains, comment ceux-ci furent jngés, quelles furent les présuppositions de ces<br />

jngements et les infiuences qui les déterminaientn, ne soient pas très éloignées des<br />

préoccnpations de l'imagologie littéraire, on constate néanmoins que chez Urs Bitterli<br />

(tout comme chez Ph. Curtin), les «images» et les «mythes», à travers des analyses<br />

précises et qui suivent de près les textes, sont d'une plus grande précision, plus riches<br />

en détails et intègrent parfois aussi des éléments qui ne sont pas conformes avec<br />

l'«image. générale (p.ex. sur Ia


Astier Loutfi, <strong>da</strong>ns cette approche 'dialectique' des images d'Afrique par rapport<br />

à leur efficacité propagandiste, rejoint les analyses du critique américain Kenneth<br />

Burke <strong>da</strong>ns ses études sur les romans prétendument anti-guerre; <strong>da</strong>ns un essai sur<br />


d'une d'réface pour Lecteurs Blancs,, et d'une «Introduction» qui ne laissent pas de<br />

<strong>do</strong>ute sur l'engagement anti-raciste de l'auteur. La préface va jusqu'à postuler une<br />

partie de responsabilité de tous les Blancs <strong>da</strong>ns le processus d'assujettissement et<br />

d'asservissement des Noirs. Consciemment ou inconsciemment, chaque Européen<br />

partagerait la foi en la supériorité de la civilisation » blanche, et seulun pas séparerait<br />

le dé<strong>da</strong>in et le mépris résultant de cette attitude de l'assujettissement et de l'esclavage.<br />

Le racisme européen, chez Hoffmann, se présente comme un continuum, qui va de la<br />

Traite à l'oppression et l'exploitation coloniale, de Ia chasse des Nègres fugitifs<br />

(«marrons>>) au système d'Apartheid, du Code Noir aux lois raciales de Nuremberg.<br />

Au chercheur incombe le devoir de détecter et de dénoncer le racisme sous toutes ses<br />

formes, seu1 moyen d'en venir à bout. Dans cette tâche, i1 importe de comprendre<br />

son fonctionnement, sa naissance et sa transmission. Le travail de l'historien dela<br />

littérature ne se distinguerait <strong>do</strong>nc pas fon<strong>da</strong>mentalement de celui de l'histoire<br />

politique et économique, des psychologues et biologistes. Dans Ia division du travail<br />

entre ces disciplines, la tâche plus précise du littéraire consisterait à détecter les images<br />

textuelles racistes transmises à travers les siècles, les formations discursives au service<br />

du racisme, les poncifs et stéréotypes persistants, à mettre en évidence et dénoncer<br />

les vieux 'arguments' et leur rhétorique.<br />

Malgré la distance plus grande <strong>da</strong>ns le temps, l'étude de l'historien béninois<br />

François de Medeiros sur L'Occident et I'Afiiqtle (XIlle-XVesiècle) part, elle aussi, dela<br />

situation postcoloniale actuelle et souligne l'actualité du sujet. La préface de l'lùstorien<br />

français du Moyen Âge, Jacques Le Goff, souligne le caractère novateur de l'étude<br />

<strong>do</strong>nt le mérite principal serait d'avoir dégagé les racines médiévales des préjugés<br />

anti-noirs et d'avoir ainsi <strong>do</strong>nné une orientation nouvelle à ce genre de recherches.<br />

Selon Le Goff, ce fut précisément <strong>da</strong>ns les trois siècles traités par Medeiros, au point<br />

d'intersection entre, d'un côté, les traditions de l'antiquité gréco-romaine et celles du<br />

christianisme des premiers siècles, et, de l'autre côté, la formation d'une consciente<br />

moderne, basée sur l'observation de la nature et les expériences scientifiques, les<br />

premiers contacts réels avec l'Afrique et ses hommes, que le savoir ancien sur le<br />

continent, les idées, concepts et stéréotypes auraient évolué <strong>da</strong>ns le sens d'une<br />

« fusion » vers les espoirs et les attentes des siècles de Ia découverte. L'époque nouvelle<br />

aurait entamé un dialogue et des échanges fructueux entre les vieilles structures et<br />

l'esprit des temps nouveaux.<br />

A travers cette conception et des formules telles que images de l'imaginaire »<br />

(MEDEIROS, 1985, p.5), Jacques Le Goff, à partir de l'étude de Medeiros, nous offre<br />

un modèle selon leque1 les images traditionnelles de l'imaginaire procèderaient à un<br />

échange permanent avec les connaissances nouvelles de Ia réalité et le savoirnouveau,<br />

tout en maintenant en même temps une force d'inertie et une résistance étonnantes<br />

contre tout changement. Les aimages de l'imaginaire,, elles-mêmes sont considérées<br />

comme des actants et des acteurs de l'évolution historique. Ainsi Le Goff décrit-i1 la<br />

couleur «noire>> comrne «personnage principal. <strong>da</strong>ns le processus d'accumulation et<br />

d'agrégation de caractérisiques et d'idées négatives par rapport au Noir et à l'Afrique.


A cause de son symbolisme négatif <strong>da</strong>ns les différents <strong>do</strong>maines de l'esthétique et de<br />

Ia morale, de la religion et de Ia psychologie, ce .


Guerre mondiale (vols. IV, 1-2). L'ambition hautement politique de l'entreprise est<br />

soulignée par la préface au premier volume signée par le directeur de I'UNESCO (au<br />

moment dela publication), le Sénégalais Ama<strong>do</strong>u-Mahtar M'Bow. Come i1 serait<br />

vain, <strong>da</strong>ns le cadre de notre essai, de <strong>do</strong>mer une idée, ne serait-ce qu'approximative,<br />

dela richesse de ces volumes, nous nous limiterons aux aspects «imagologiques)) et à<br />

leur impact sur les études littéraires ultérieures.<br />

Dans i'introd~iction générale à cette entreprise, Burger souligne la place<br />


La signification seconde, métaphorique, d'imagen est toujours présente <strong>da</strong>ns les<br />

images


du grand public par les images - en affirmant que ces images coloniales n'appartiennent<br />

pas exclusivement au passé, mais continuent d'exercer une influence sur le<br />

public c<strong>ontem</strong>porain et prennent de plus en plus de place. 11s craignent que la<br />

population française se trouve sans défense devant cette imagerie et risque d'être<br />

victime de son message caché. Une pé<strong>da</strong>gogie de l'image s'imposerait: cornme le<br />

public d'aujourd'huin'est plus farniliarisé avec le discours colonial, i1 se houve comme<br />

démuni devant le sub-texte des images. I1 incomberait aux historiens de reconstruire<br />

le contexte original de ces images et leur vraie signification, de décoder les messages<br />

voilés et de <strong>do</strong>nner au public les moyens de comprendre leur vraie signification et de<br />

leur résister.<br />

Le problèmemétho<strong>do</strong>logique inhérent à ce programme- ainsi que celuiqui porte<br />

sur les images picturales précédemment évoqué - semble être de déterminer <strong>da</strong>ns<br />

quelle mesure les images de Ia période coloniale et ses c


quiconceme le passé aussibienque le présent et l'avenir denos relations avec 1'Afrique<br />

et le monde non-européen.<br />

En même temps que les volumes des historiens sur l'imagerie (photos,<br />

illustrations) coloniale, les années 1990 voient la publication de quelques livres<br />

somptueusement illustrés sur les peintres de la période coloniale et leurs ceuvres<br />

iconographiques qui firent aiissi l'objet de plusieurs grandes expositions. La<br />

publication la plus remarquable <strong>da</strong>ns notre contexte nous semble être le volume édité<br />

et commenté par Lynne Thomton sur Les Africnnistes Peintres Voyage~~rs 1860-1960,<br />

qui réunit <strong>da</strong>ns son annexe bio-bibliographique des informations sur 122 peintres<br />

<strong>do</strong>nt l'ceuvre a des rapports suivis et réguliers avec YAfrique; les <strong>da</strong>tes des expositions<br />

<strong>do</strong>cumentées de ces peintres vont de 1867 à 1989. Tandis qu'Albert Memmi avait<br />

défendu Ia these selon laquelle le ~~discoursn des peintres ne se distinguait pas<br />

beaucoup de celui des photographes, Lynne Thornton, <strong>da</strong>ns son introduction, établit<br />

une différence nette entre photographes et peintres. Ceux-ci, contrairement aux<br />

photographes, ne se seraient pas intéressés au .


Certes, même avec les meilleures dispositions dumonde, les peintres de l'époque<br />

coloniale ne vivaient pas en dehors de leur époque et ne pouvaient se soustraire<br />

complètement à l'influence de la politique et de Ia propagande coloniale. Iacovleff<br />

était bien conscient de ce dilemme et s'est toujours défendu, <strong>da</strong>ns ses interviews,<br />

contre toute tentative de récupération de Ia part des instantes coloniales; le seu1 fait<br />

qu'il ait illustré avec soin le roman Batoirnln de René Maran devrait suffire à montrer<br />

son esprit critique envers le colonialisme. Iacovleff avait bien compris que la peinture<br />

ethnographique, suivant les traditions du vieil exotisme et de l'orientalisme, avait<br />

ten<strong>da</strong>nce à se plier trop facilement aux exigences du grand public: ~L'ethnographie<br />

enkaine trop facilement l'artiste à livrer une représentation plaisante et platte ...n<br />

(AAVV., Musée, 2004, p.215). Les éditeurs du catalogue de l'exposition de 2004 le<br />

voient néanmoins prisonnier d'un discours colonial global auquel personne ne pouvait<br />

se soustraire, «Un artiste 'colonial' malgré lui!» (ibid., p.213). Malgré une ferme<br />

volonté, en tant que peintre, de rendre justice à i'Autre <strong>da</strong>ns son individualité et sa<br />

dignité humaine, Ia réception de ses images n'aurait été possible que <strong>da</strong>ns le cadre<br />

d'un discours colonial de l'altérité. Le débat reste ouvert.<br />

Répercussions sur les études Iittéraires et historiques<br />

L'attention particulière qu'on a portée, ces deux dernières décennies, aux<br />

~imagesn au sem concret, iconographique, de l'Ahique et des Africains, a modifié en<br />

même temps les analyses des textes de Ia part des historiens et des historiens de Ia<br />

littérature. Les études de Curtin, Bitterli et Medeiros, aussi bien que les analyses<br />

littéraires «imagologiques» de Mercier,Steins, Astier Loutfi et Sadji,neper<strong>da</strong>ient pas<br />

beaucoup en renonçant aux illustrations. En tout cas, Ia partie illustrée restreinte<br />

(quand elle existait) n'était jamais essentielle pour Ia démonskation des thèses de<br />

leurs études. En revanche, les études - littéraires et historiques publiées depuis les<br />

années 1990 présentent toujours une partie importante dl«images». Par exemple<br />

i'étude de Peter Martin, Schwarze Ter@, tdle Mohren - Afriknner in BezulQtsein irnd<br />

Geschicllte der Deutschen, ne présente pas seulement de nombreuses illuskations <strong>da</strong>ns<br />

le texte, mais elle contient aussi un nombre considérable (29) de tables en couleur<br />

hors texte. Cette composante iconographique du livre parait essentielle par rapport à<br />

la méthode d'une ~archéologie historiquen revendiquée par l'auteur: une de ses theses<br />

principales ne pourrait que difficilement être démontrée aukement. I1 s'agit en effet<br />

pour lui de montrerc


: . .. . . ... . . .. . . . . .... . . . . . .. .<br />

IMAGES D'AFRIQUE - IMAGES VAFRICAINS<br />

.. . .. . .. . .... . .. . .. . .. ... . .. . ..... . .... . .. . .... . . ... . .. . ... . .. . .. .. . .. . ..... . .. . .. ... ... ............. .... . .. ... . . . . . .... . . . . . ...... i 123<br />

un nombre d'illustrations important, mais l'analyse de ces illustrations fait partie<br />

intégrante de l'analyse textuelle, les deux codes étant examinés en parallèle. Aiii, le<br />

chapitre VI1 du livre de Gehrmann traite de façon explicite ~L'lconographie des<br />

atrocités congolaises», et présente, en introduction, une réflexion sur « Photographie<br />

et Colonialismen ainsi que des parties consacrées à ~L'album de photos de l'Efat<br />

indépen<strong>da</strong>nt dz~ Congon, ~Les images des victimesn et «Léopold I1 <strong>da</strong>ns les caricatures<br />

c<strong>ontem</strong>porainesn. I1 est évident que si l'auteur n'avait pas pris en compte le matériel<br />

iconographique, i1 aurait manqué une dimension importante pour Ia compréhension<br />

d'un discours auxrépercussions mondiales. Comme le ditjustement Gehrmann, pour<br />

la plus grande partie des Européens, le monde colonial ne se présente pas prioritairement<br />

<strong>da</strong>ns des textes imprimés, mais


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IMAGES D'AFRIQUE - IMAGES D'AFRICAINS<br />

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Austin. Paris : ACR, 1990.


LUANDA LITERÁRIA AVÁRIAS CORES<br />

OTEMA DO RACISMO EM LUANDINOVIEIRA E<br />

UANHENGA XITU'<br />

O racismo é um conceito que apresenta diversas definições e, quan<strong>do</strong> concretiza<strong>do</strong><br />

na prática social, encerra inúmeras formas de se manifestar. Em termos globais, esta<br />

ideologia assente nas diferenças (chama<strong>da</strong>s) rácicas propõe que há socie<strong>da</strong>des<br />

inferiores a outras, que são, assim, desvaloriza<strong>da</strong>s, discrimina<strong>da</strong>s, estereotipa<strong>da</strong>s e<br />

não raro coisificndns. Apelo a este conceito de coisificnçrio, pois parece-me bastante<br />

enquadra<strong>do</strong> no tema <strong>do</strong> racismo, uma vez que serve para legitimar o trabaiho força<strong>do</strong><br />

e escravo. O ser humano outro, porque diferente na cor <strong>da</strong> pele - factor central de<br />

rejeição quan<strong>do</strong> se abor<strong>da</strong> o racismo -, é remeti<strong>do</strong> para uma categoria inferior, é<br />

torna<strong>do</strong> objecto que pode servir, assim, para ser usa<strong>do</strong> para proveito de outrem.<br />

A tónica coloca-se, desta forma, na cor <strong>da</strong> pele e a estratificação social dá-se a<br />

partir dessa evidência, que, em conjunto com outros atributos físicos e intelectuais,<br />

foi genericamente qualifica<strong>da</strong> como rnçn. Tomo este termo, então, não no seu senti<strong>do</strong><br />

biológico - pois não o tem! -, mas enquanto categoria discursiva, que organiza a<br />

manifestação <strong>da</strong>s diferenças fisicamente perceptíveis - em termos de cor <strong>da</strong> pele ou<br />

outras características somáticas - como "marcas simbólicas" distintivas (Hall, 1997:<br />

68).<br />

O racismo é, pois, um instrumento usa<strong>do</strong> para organizar o mun<strong>do</strong> e adquire<br />

particulari<strong>da</strong>des de acor<strong>do</strong> com o contexto no qual é produzi<strong>do</strong>, evoca<strong>do</strong> ou inshu-<br />

mentaliza<strong>do</strong>, como é o caso de universos coloniais, independentemente <strong>da</strong> época ou<br />

<strong>do</strong> espaço em que se perpetuem. Em termos de presenças coloniais europeias em<br />

África, uma característica aponta<strong>da</strong> ao colonialismo enquanto sistema é precisamente<br />

o racismo, que ihe é consubstancial e que visa fun<strong>da</strong>r a imobili<strong>da</strong>de social, a separação<br />

entre pessoas de cores de pele diferentes, com a consequente constituição de elites, e<br />

a justificação de uma empresa edifica<strong>do</strong>ra de povos mais ntrasn<strong>do</strong>s (cf. Memmi, 1973:<br />

103; Balandier, 1971: 7). Não preten<strong>do</strong> recuperar teorização já efectua<strong>da</strong> sobre o sistema<br />

colonial português em África, mormente sobre as relações raciais nele decorrentes,<br />

mas é de referir, em termos concretos e relativos à presença colonial portuguesa em<br />

' Agrade~o<br />

ao Professor Doutor José Carloç Venâncio a leitura crítica deste texto.<br />

'Doutoran<strong>da</strong> <strong>da</strong> Univemi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Beira Interior.


Angola, que se considera que a déca<strong>da</strong> de 50 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> assistiu à degra<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong>s relações raciais e sociais em, por exen~plo, Luan<strong>da</strong>, devi<strong>do</strong> à massiva emigração<br />

branca metropolitana para a então colónia (cf. Clarence-Smith, 1990: 26; Messiant,<br />

1989: 136).<br />

Recuperei esta informação sobre o contexto luandense <strong>do</strong>s anos 1950, já que neste<br />

artigo preten<strong>do</strong> observar algumas vivências <strong>da</strong> Luan<strong>da</strong> colonial <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1940/<br />

1950 apropria<strong>da</strong>s literariamente por Luandino Vieira, no conto "Afronteira <strong>do</strong> asfalto"<br />

(in A Cidnde e n Ifzffincin), e por Uanhenga Xitu, no romance Os Discursos <strong>do</strong> "Mestre"<br />

Tnnzodn, em exclusivo no núcleo narrativo cujos protagonistas são Arlete e Marajá.<br />

Perspectivarei, então, o texto literário como fonte de informação histórica e sociológica<br />

e interpretarei as representações subjectivas de uma reali<strong>da</strong>de e de uma apropriacão<br />

<strong>do</strong> racismo enquanto veículo de categorização e de fracturas entre os mun<strong>do</strong>s aos<br />

quais as personagens pertencem.<br />

"A fronteira <strong>do</strong> asfalto" é um conto <strong>da</strong> colectânea A Cidnde e n I?tjfincin, obra de<br />

estreia de Luandino Vieira, e <strong>da</strong>ta de 1955. Trata-se <strong>da</strong> tematização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> luandense,<br />

que é característica deste autor, ao contrário de Uanhenga Xitu, que elege o mun<strong>do</strong><br />

rural comomatéria literária preferencial. Conhi<strong>do</strong>, tambémn'os Disctrrsos <strong>do</strong> "Mestre"<br />

Tnmodn se encontra a apropriação literária <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Luan<strong>da</strong>. Em termos genológicos,<br />

esta obra distingue-se <strong>da</strong> de Luandino por ser um romance, cuja publica$ío<br />

ocorreu em 1984. É uma obra bastante compósita cujo único elo de ligação entre textos<br />

com temas e personagens díspares é a figura de Tamo<strong>da</strong>, que perpassa to<strong>do</strong> o texto,<br />

<strong>da</strong>í que possa considerá-la como um romance, na medi<strong>da</strong> em que este é um "geme<br />

novateur et subversif car fon<strong>da</strong>mentalement ~dialogiquen et «polyphonique»" (Dirkx,<br />

2000: 139). Neste romance, a intriga que assume um maior destaque é a que tem<br />

Marajá e Arlete como personagens centrais.<br />

Ambos os textos tematizam a Luan<strong>da</strong> <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1940/1950 e se a acção de<br />

"A fronteira <strong>do</strong> asfalto" não tem uma marcação temporal explícita, apenas a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong><br />

escrita presente no final <strong>do</strong> conto (1955; Vieira, 1978: 97), já a accão de OS Disctrrsos<strong>do</strong><br />

"Mestre" Tnmocln se passa em época de guerra (Xitu, s.d.: 62), que será a Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Mundial, como se percebe pelas palavras <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Camargo, que refere a<br />

"quentura <strong>da</strong> guerra <strong>do</strong>s alemães" (Xitu, s.d.: 112).<br />

São estes o espaço e o tempo referi<strong>do</strong>s que encontramos como palco <strong>da</strong>s acções<br />

de Marina e Ricar<strong>do</strong> ("A fronteira de asfalto") e de Arlete e Marajá (Os Discursos <strong>do</strong><br />

,<br />

Mestre" Tnmodn), pares cuja primeira semelhança respeita àquela evidência mais<br />

destaca<strong>da</strong> como base de qualquer teoria racista, a cor <strong>da</strong> pele: Marina e Arlete são<br />

brancas, Ricar<strong>do</strong> e Marajá são negros. Ca<strong>da</strong> um poderia representar o binarismo<br />

coloniza<strong>do</strong>r/coloniza<strong>do</strong> ou explora<strong>do</strong>r/explora<strong>do</strong>, mas eles surgem na sua intencionali<strong>da</strong>de<br />

para desobstruir essas dicotomias e estabelecer (ou tentá-lo) novas lógicas.<br />

De qualquer forma, não deixa de haver na representação literária <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

enquanto macro-sistema no qual eles desenvolvem as suas vivências, numa distinção<br />

entre <strong>do</strong>is pólos, precisamente a socie<strong>da</strong>de coloniza<strong>do</strong>ra e a socie<strong>da</strong>de coloniza<strong>da</strong>,<br />

escrita a branco e a negro3.


Nesta lógica <strong>do</strong>mina<strong>da</strong> pelo facto colonial, Ricar<strong>do</strong> procura a sua catarse ten<strong>do</strong><br />

como veículo as palavras, que lhe permitem extrapolar para a socie<strong>da</strong>de culpa<strong>da</strong> os<br />

preconceitos que o inibem enquanto ser livre e respeita<strong>do</strong>. Ele exterioriza os seus<br />

sentimentos em relação às distâncias que o separam de Marina, como o não aceder à<br />

casa dela ou o facto de não poderem mais ser amigos. Enfim, ele insurge-se contra a<br />

existência de uma clara barreira que lhes é imposta e que os separa de forma<br />

irremediável (Vieira, 1978: 92-93). Para Ricar<strong>do</strong>, as humilhações e as ostracizações<br />

sofri<strong>da</strong>s acabam por marcar o seu percurso de vi<strong>da</strong> e o de tantos outros como ele, aos<br />

quais acaba por <strong>da</strong>r voz. Há, assim, ao longo <strong>do</strong> tempo de crescimento um processo<br />

de interiorização e de sedimentação <strong>da</strong>s diferenças que se constroem como obstáculos<br />

e como marcas de inferiorização social e racial. Nas palavras <strong>do</strong> próprio Ricar<strong>do</strong>,<br />

"isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura " (Vieira, 1978: 93).<br />

Nova insistência neste processo de libertação dá-se quase no fim <strong>da</strong> narrativa,<br />

quan<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong> procura sub-repticiamente Marina no seu quarto, mas a catarse<br />

liberta<strong>do</strong>ra e faculta<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> reflexão <strong>do</strong> leitor não se revela redentora para Ricar<strong>do</strong>.<br />

Ele quer conversar com Marina sobre a ca<strong>da</strong> vez mais senti<strong>da</strong> urgência em deixarem<br />

de ser amigos, acaba por ser visto por um polícia e por fugir. Na fuga, cai e morre,<br />

precisamente na fronteira que separa os mun<strong>do</strong>s, em concreto no la<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

asfalto. É significativo que Ricar<strong>do</strong> perca a vi<strong>da</strong> neste espaço de asfalto edifica<strong>do</strong>r de<br />

uma barreira, uma barreira que fica irremediavelmente conota<strong>da</strong> com morte. As<br />

características que podem apontar-se ao espaço constituí<strong>do</strong> por uma qualquer fronteira<br />

-como a articulação, a travessia, a transgressão, a comunicação, a abertura e o encerra-<br />

mento (cf. Bennington, 1994: 121) - adquirem conotações com campos de negativi<strong>da</strong>de<br />

no texto de Luandino Vieira, concretamente no tipo de espaço que intitula o conto.<br />

"Afronteira de asfalto" é um título por si só bastante expressivo, <strong>da</strong><strong>do</strong>constituir-<br />

-se metáfora <strong>da</strong>s relações humanas e <strong>do</strong>s territórios toma<strong>do</strong>s matéria literáriano conto.<br />

Salvato Trigo considera este espaço materializa<strong>do</strong> em asfalto um "emblemn" que não<br />

admitiria "qualquer infracção ao código de relações que estipulava". Quan<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong><br />

a atravessa, previram-se consequências graves e a atitude dele constituiuum desafio<br />

a uma ordem imposta e simboliza<strong>da</strong> naquele marco de asfalto. Ele "penetrou no<br />

território <strong>do</strong> outro e desrespeitou o sagra<strong>do</strong> que o emblemn figuraliza" (Trigo, 1981:<br />

220. Itálico no original).<br />

Este limite que separa e demarca bem <strong>do</strong>is territórios não é uma fronteira porosa,<br />

de intersecção, não porque não permita os contactos entre os <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s, mas mais<br />

' Uanhenga Xitu, em otttro romance, O Minisfro (1991: 227-245), e nim registo ensaístico, abor<strong>da</strong><br />

problemas teóricos e apresenta casos reais de manifestações de racismo em Angola (antes e após a<br />

independência), com especial incidência na posição <strong>do</strong>s mestiços. Reflecte também sobreasrelaqões intcr-<br />

rácicas e a deçobstrução de preconceitos de uns (negros ou brancos ou mestiços) em relaçzo a outros<br />

(brancos ou negros oumestiços) e dentro <strong>da</strong> próprio grupo denomina<strong>do</strong> rácico, desmontan<strong>do</strong> a inaptidão<br />

<strong>do</strong>s maniqueísmas dentro de um assunto tão polémico e mal resolvi<strong>do</strong>.


porque se constitui enquanto marca de distinção negativa e estabelece<strong>do</strong>ra de pólos<br />

contrários. As próprias habitações <strong>da</strong>s personagens são contrastantes e um bom<br />

exemplo <strong>da</strong>s diferenças existentes entre as duas margens que têm o asfalto como<br />

fiolzteira-barreira. O la<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong> pelo musseque4 marca-se pela negação, pois <strong>do</strong><br />

"outro la<strong>do</strong> <strong>da</strong> rua asfalta<strong>da</strong> não havia passeio. Nem árvores de flores violeta". As<br />

casas são de pau-a-pique e as ruas são de areia (Vieira, 1978: 93. Sublinha<strong>do</strong> meu).<br />

Marina sabia que os quatro irmãos de Ricar<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmiam num quarto com a dimensão<br />

<strong>do</strong> seu (Vieira, 1978: 94). Revê-se nestes exemplos literários a síntese <strong>da</strong> relação entre<br />

a demarcação territorial e social empreendi<strong>da</strong> pela colonização, cujo reflexo se encontra<br />

nas características <strong>do</strong> musseque enquanto lugar de vivência. Os espaços demarcam a<br />

oposição <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s personagens. A marca <strong>do</strong> asfalto separa o que está em co-<br />

presença, o que está frente a frente, o musseque e uma parte <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de branca.<br />

Os mun<strong>do</strong>s deles são tão próximos fisicamente e com tantas distâncias simbólicas,<br />

muito mais fortes <strong>do</strong> que a proximi<strong>da</strong>de física. É assim que esta topografia literária<br />

se transforma em espaço de significação antropológica, pois cria e, de mo<strong>do</strong> mais<br />

acentua<strong>do</strong>, reproduz sistematicamente as relações sociais nele experimenta<strong>da</strong>s (cf.<br />

Gonçalves, 1997: 80).<br />

Ao longo <strong>da</strong>s páginas <strong>do</strong> conto de Luandino Vieira, há a apresentação de vários<br />

contrastes entre os <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s. Por exemplo, a luz <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de asfalto -mesmo as<br />

luzes <strong>da</strong>s janelas quan<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong> morre - e a escuridão <strong>do</strong> musseque. Em Luan<strong>da</strong>,<br />

"les ruptures spatiales correspondent à des ruptures économiques, sociales et raciales<br />

qui sont à leur origine et en sont, en même temps, les produits" (Torres, 1989: 98).<br />

Aquela fronteira afirma-se precisamente como riiptrira, recuperan<strong>do</strong> o termo usa<strong>do</strong><br />

de forma tão eloquente por AdelinoTorres na citação anterior, facto que é confirma<strong>do</strong><br />

pelo destino de Ricar<strong>do</strong>.<br />

Em termos de simbolizações espaciais, podem convocar-se os conceitos de centro<br />

e de periferia. No caso agora analisa<strong>do</strong>, o musseque constitui um território periférico<br />

em relação a um centro conota<strong>do</strong> com um estatuto social e racial considera<strong>do</strong> superior.<br />

Quanto mais afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> centro e, consequentemente, mais próximo de meios ti<strong>do</strong>s<br />

como marginais, mais primitivo se é, no quadro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de colonial. Ain<strong>da</strong> que<br />

vivente no espaço urbano luandense ficciona<strong>do</strong> em Os Discursos <strong>do</strong> "Mestre" Tnnzo<strong>da</strong>,<br />

Marajá não "era rural de musseque", pois vivia no clube na baixa, mas também não<br />

era desse meio social, ao qual apenas acedia pelo seu trabalho. O seu enquadramento<br />

mais específico faz-se "no ambiente <strong>do</strong> mato-campónio, já que nem ao musseque<br />

nem à baixa pertencia" (Xitu, s.d.: 123-124). Não há um espaço defini<strong>do</strong> para conferir<br />

uma identi<strong>da</strong>de a Marajá, o que o torna, então, desenraiza<strong>do</strong>. Acorroborar esta marca<br />

identitária <strong>da</strong> personagem no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de colonial, é ain<strong>da</strong> de salientar que<br />

'Numa possível definisão deste espaco (apesar de o terrnopcrférico se prestar a leihuas que poderão<br />

não corresoonder à reali<strong>da</strong>de).MidielCahenconsidera os musçeaues"ces riuartiers dri~hériauesafncains.<br />

. . .<br />

aiisolsiblr.i~x, misL'rablej, bi~iid2iii.ir.lii~sdz Ia 1,il.e dugoudnm uridiicmeiit, miisrdprr'scntant prcc.pc<br />

12 moilil'dc Ia paprilatian lu.ind.iisc ,i Ia fin dc Ia pr'riride c~ilunial~" (Calizii, 196.): 203,


Marajá pertence à categoria jurídica de indígena. No "sistema de indigenato",<br />

integrante <strong>da</strong> política colonial <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, c<strong>ontem</strong>plava-se a divisão <strong>da</strong> população<br />

através <strong>da</strong> discriminação social e política, distinguin<strong>do</strong> os indígenas (também<br />

designa<strong>do</strong>s por "nativos", que eram to<strong>do</strong>s os africanos negros e mestiços "não civili-<br />

za<strong>do</strong>s") <strong>do</strong>s civiliza<strong>do</strong>s, que eram os brancos, negros e mestiços assimila<strong>do</strong>s. Este<br />

sistema, vigente no tempo de acção <strong>do</strong>s textos literários em análise, foi revoga<strong>do</strong> em<br />

1961 por acção de Adriano Moreira, então Ministro <strong>do</strong> Ultramar (Bender, 1980: 216,<br />

302).<br />

Voltan<strong>do</strong> a Marajá e de mo<strong>do</strong> a continuar a análise <strong>da</strong> relação entre o espaço e a<br />

concretização de formas de racismo, é em Luan<strong>da</strong> que se disputa o campeonato de<br />

ténis e de pingue-pongue, sem outra precisão espacial, mas com um lugar demarca<strong>do</strong><br />

para "os peões-de-pé-descalço". A estas duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des apenas acede urna elite e<br />

o factor cor <strong>da</strong> pele é imperioso. Considera-se o futebol como o "esporte <strong>da</strong>smassasna<br />

Áfricamodema" (Ranger, 1997: 246), ao contrário deste campeonato de ténis e pingue-<br />

pongue, que só admitia "gente <strong>da</strong> High Life, <strong>da</strong> alta", "altas individuali<strong>da</strong>des"<br />

nacionais e estrangeiras, para além de estu<strong>da</strong>ntes <strong>do</strong> Liceu Salva<strong>do</strong>r Correia, pois "o<br />

ténis era só para brancos, e um ou outro mulato <strong>do</strong> Sportingi é que podia entrar no<br />

campeonato regional: na<strong>da</strong> de pretos e pior quan<strong>do</strong> comparticipassem estrangeiros<br />

como britânicos, sul-africanos e belgas!". Neste senti<strong>do</strong>, acaba por ser para<strong>do</strong>xal que<br />

o indígena Marajá seja instrutor de ténis, <strong>da</strong><strong>do</strong> quenão se siiuanos trâmites <strong>da</strong> prática<br />

deste desporto na época. Ele é o instrutor a quem Arlete abraça após derrotar a<br />

adversária sul-africana (enten<strong>da</strong>-se branca) no "lugar <strong>do</strong>s peões-de-pé-descalço", para<br />

desagra<strong>do</strong> de muitos (Xitu, s.d.: 82-85). A linguagem universal <strong>do</strong> desporto e <strong>da</strong> paz<br />

coloca-se a par <strong>da</strong> efectivação particular <strong>da</strong> injustiça no campeonato angolano com<br />

uma presença sul-africana, metáfora <strong>do</strong> sistema de apnrtheid vivi<strong>do</strong> nesse pais. Este<br />

episódio é eluci<strong>da</strong>tivo <strong>da</strong> já referi<strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s relações sociais sofri<strong>da</strong>s em<br />

Luan<strong>da</strong> no perío<strong>do</strong> no qual a acção de Os Discursos <strong>do</strong> "Mestre" Tamo<strong>da</strong> se desenrola,<br />

notan<strong>do</strong>-se um afastamento bastante significativo entre pessoas com origens sociais,<br />

geográficas e raciais distintas.<br />

Para além <strong>do</strong> distintivo factor <strong>da</strong> cor <strong>da</strong> pele, Marajá e Arlete distinguem-se em<br />

termos sociais e o episódio agora transcrito é disso exemplo, no qual o desporto acaba<br />

por ser não um factor de união, mas de acentuação de assimetrias. Já Ricar<strong>do</strong> e Marina<br />

são esiu<strong>da</strong>ntes e colegas <strong>da</strong> mesma escola, ou seja, estão numa situação similar. Neste<br />

caso, a escola aproxima os <strong>do</strong>is amigos, mas a condição social e a cor <strong>da</strong> pele distin-<br />

guem-nos. A escolari<strong>da</strong>de, a profissão, o acesso facilita<strong>do</strong> a estas condições também<br />

estabelecem a superiori<strong>da</strong>de branca e instituem-se enquanto variáveis sociais que<br />

influenciavam o reconhecimento ou não por parte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

'O ii~rr3durcxplica que' scr<strong>do</strong>S~i~rtingni


Com a vivência de tantas dicotomias e injustiças,"Afronteira de asfalto" institui-<br />

se como um conto de in<strong>da</strong>gações, com uma ambiência dramática e numa cadência<br />

bastante rima<strong>da</strong>. As reflexões e as dúvi<strong>da</strong>s prendem-se também com a distância<br />

entre a infância e o tempo presente e fazem-se pela voz de Marina: "Porque é que ela<br />

não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Porque é que agora era<br />

diferente?" (Vieira, 1978: 94). A infância é o tempo de rememoração e de evocacão<br />

neste processo que Ricar<strong>do</strong> usa para fazer valer a sua posição e a incompreensão <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> presente. As palavras <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r são bastante apelativas e sintetizam esta<br />

distância entre o antes e o agora: "E lembrava-se <strong>do</strong> tempo em que não havia perguntas,<br />

respostas, explicações. Quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> não havia a fronteira de asfalto" (Vieira, 1978:<br />

93). O tempo <strong>da</strong> infância é o tempo <strong>da</strong>s utopias concretiza<strong>da</strong>s, o tempo no qual não<br />

existe esta barreira metaforiza<strong>da</strong> na fronteira de asfalto.<br />

A infância pode ser a representação de um tempo contestatário, um tempo de<br />

fantasia, de brincadeira e de negação <strong>da</strong>s imposições adultas, que, no caso <strong>do</strong> conto<br />

de Luandino Vieira, se prendem com a discriminacão pela cor <strong>da</strong> pele. É um perío<strong>do</strong><br />

no qual se encontram diluí<strong>da</strong>s as diferenças, mas que, passa<strong>da</strong> a sua fronteira, estas<br />

impõem-se como estigmas de uma convivência salutar como o fora outrora. José Carlos<br />

Venãncio considera que em A Ci<strong>da</strong>de e n Infdncin e em Quinnxixe, de Amal<strong>do</strong> Santos, a<br />

infância "é vista como um tempo de igual<strong>da</strong>de não só porque a inocência <strong>do</strong>s anos o<br />

permitia,mas também porque o colonialismo e o sistema económico que o sustentava<br />

ain<strong>da</strong> não se haviam feito sentir com to<strong>da</strong> a sua pleniiude em Luan<strong>da</strong>" (1996: 94).<br />

Contu<strong>do</strong>, no caso concreto <strong>do</strong> conto em análise, esta fase <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não deixa de<br />

comportar uma marca negativa que é lembra<strong>da</strong> por Ricar<strong>do</strong>: ele era o filho <strong>da</strong> lavadeira<br />

que servia para distrair a "menina Nina <strong>do</strong>s caracóis louros" (Vieira, 1978: 93).<br />

Quan<strong>do</strong> se ultrapassam determina<strong>da</strong>s fronteiras, acontece o inespera<strong>do</strong>. De<br />

acor<strong>do</strong> com o exposto, outro tipo de fronteiras estabeleci<strong>do</strong> nas obras agora em esh<strong>do</strong><br />

são a infância e as relações profissionais.<br />

Ultrapassa<strong>da</strong> a infância de Marina e Ricar<strong>do</strong>, a amizade é abruptamente interrom-<br />

pi<strong>da</strong>, primeiro, pelo desejo que eles se afastem e, depois, pela morte de Ricar<strong>do</strong>.<br />

Ultrapassa<strong>da</strong>s a infância, a relação profissional e a amizade de Arlete e Marajá, dá-se<br />

a concretização física <strong>do</strong> seu relacionamento, que acontece na "sala <strong>da</strong>s taças" <strong>do</strong><br />

clube que o pai dela dirige e onde ele trabalha, "num <strong>do</strong>mingo, à tarde", o primeiro<br />

dia <strong>da</strong> semana, que inicia um novo ciclo e que inaugura um tempo e um espaqo<br />

íntimos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is. Este acontecimento ocorre após terem caça<strong>do</strong> uma barata branca<br />

(Xitu, s.d.: 85-87), que serve para Arlete "saber se ela é igual à barata preta na sua<br />

constiiuição física e comportamento" (Xitu, s.d.: 102), o que faz deste animal uma<br />

metáfora <strong>da</strong> busca <strong>da</strong>s igual<strong>da</strong>des <strong>do</strong>s seres humanos ou, então, uma parábola <strong>da</strong><br />

desconstmção <strong>do</strong> preconceito racista que paira sobre eles. Com a descoberta <strong>do</strong><br />

incidente, dá-se uma série de peripécias que culmina com a ideia de se realizar um<br />

casamento fictício entre Arlete e Marajá, que seria, para o casal Pinto, um "~rirne"~,<br />

para outros pais, "infelici<strong>da</strong>de" certa e, paraDona Laura, um motivo de grande alegria,<br />

por ser "uma bomba" (Xitu, s.d.: 125), pelo que ela começou a preparar o "afilha<strong>do</strong>"<br />

para a cerimónia (Xitu, s.d.: 134-135).


LUANDA LITERÁRIA A VARIAS CORES - O TEMA DO RACISMO EM LUANDINO VIEIRA E UANHENGA XIIU<br />

: ............................................................................................................................... "<br />

No que respeita a este casal, é o narra<strong>do</strong>r que enfatiza sempre a impossibili<strong>da</strong>de<br />

de uma relação entre eles, pois adverte que os casamentos inter-rácicos eram raros e<br />

que "a questão <strong>da</strong> raça era muito viva", levan<strong>do</strong> a "vexames na vi<strong>da</strong> profissional e<br />

social" de quem os praticava e a consequentes discriminações. Especificamente entre<br />

estas duas personagens havia "grandes barreiras" decorrentes não só <strong>da</strong> cor <strong>da</strong> pele,<br />

mas também de vivências sociais, familiares e educacionais (Xitu, s.d.: 124). Arlete é<br />

branca, ou, melhor, mestiça7, e Marajá é indígena e negro, um indígena conforma<strong>do</strong><br />

(Xitu, s.d.: 118), o que inviabiliza uma luta pela ascensão social.<br />

Em termos sintéticos <strong>do</strong> que pode observar-se na forma como se desenvolvem<br />

as relações entre os <strong>do</strong>is pares de personagens, recorro à combinação <strong>da</strong>s duas lógicas<br />

com que Michel Wieviorka caracteriza o racismo. Este implica uma lógica inigualitária<br />

-pois "corresponde a um princípio de inferiorização <strong>do</strong> grupo segrega<strong>do</strong>" - e outra<br />

diferencialista -já que tem subjacente "uma vontade de rejeição, de colocação à<br />

distância, de exclusão e, nas situações mais extremas, de expulsão, quan<strong>do</strong> não de<br />

destruição" (1995: 12-13).Assim, e pelo que já foi observa<strong>do</strong>, as distâncias consagra<strong>da</strong>s<br />

entre as personagens medem-se por três ordens de factores. Os <strong>do</strong>is primeiros, a cor<br />

<strong>da</strong> pele e o tipo de relações sociais que se estabelecem entre elas, já foram analisa<strong>do</strong>s.<br />

Um terceiro factor será enforma<strong>do</strong> pelas hetero-identificações, ou seja, pelas opiniões<br />

que as personagens secundárias veiculam sobre a proximi<strong>da</strong>de entre Marina e Ricar<strong>do</strong><br />

e Arlete e Marajá.<br />

A distância entre as personagens, então, também é mensurável pelas consi-<br />

derações que as restantes personagens secundárias sobre elas tecem, em processos<br />

de construção de identi<strong>da</strong>des. Com estes processos, visa-se afastar Marina de Ricar<strong>do</strong><br />

e Arlete de Marajá e consoli<strong>da</strong>r a separação como permanecente; visa-se, afinal, manter<br />

uma ordem social (assente na lógica colonial), que se veria ameaça<strong>da</strong> com relações<br />

mais estreitas entre pessoas com diferentes cores de pele. A temática <strong>do</strong> racismo<br />

entronca então em questões não só de identi<strong>da</strong>de, mas também de relações de poder,<br />

com o exercício <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de colonial e a sua produção de diferenciações e de práticas<br />

discriminatórias (cf. Bhabha, 1995: 111).<br />

6Emconversa coma <strong>do</strong>utor Camargo, um braçileiro"<strong>do</strong>utor em filosofia, sociologia, umanh-opólogo,<br />

einólogo e professor de direito", o pai de Arlete mostra a sua indignação não pela per<strong>da</strong> <strong>da</strong> virgin<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

filha, mas parqueisso "se deu com umrapaz preto, um servente <strong>do</strong> clube, sem qualquer possibili<strong>da</strong>de de<br />

vir a ser pessoa". A resposta de Camargo faz-se sob o signo <strong>da</strong> miçcigenaçáo (que náo énegativa, antes<br />

natuml) e <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de um negro ser "um futuro homem" (Xitu, s.d.: 112-113. Siibiinl~a<strong>do</strong> meu),<br />

sentença <strong>da</strong><strong>da</strong> por iuna personagem que, pelas diversas formações e pelo teor <strong>da</strong> sua mensagem, tem iim<br />

propósito de autori<strong>da</strong>de conciliatória na abra. Note-se, de qualquer forma, a polarizagão não humano/<br />

possibili<strong>da</strong>de de ser humano, umadicotomia deextremaviolênciaque éexemplo<strong>da</strong> temática<strong>da</strong> coisficnçio<br />

que aliei ao racismo no início deste artigo.<br />

'Arlete não era brnncn, já que era "a mais escura <strong>do</strong>s irmáos, como quem diz, notava-se ter sangue<br />

negro, uma cabrita clara, não tanto como os seusmanas,que passavamniti<strong>da</strong>mentepor brancos". Afamilia<br />

de Arlete condençava várias regiões <strong>do</strong> então império português: a bisavó era negra piineeiise casa<strong>da</strong><br />

com um xoês. cuia filha (avó de Arlete) nascera em Cabo Verde e casara com um vortuguès;Dona . .. Amélia<br />

iiasccra em Muq.imbi.quc co scnh~ir Pinto em SioT~inl, ten<strong>do</strong> Arlctc c alguiù irmios nnsciioem Angola<br />

. .' hsini. a bclr.zn <strong>da</strong> ju\wm "rr'l>rcseiilnva qiias* que o aiitigd ImpL'rio Coloiitd i'urtiigiiCi" (Xini, 3.d: 9?.<br />

i 133


Nos textos literários em análise, os leitores deparam-se com uma socie<strong>da</strong>de<br />

desequilibra<strong>da</strong>, porque desumaniza<strong>da</strong> ou que se desumanizou de tanto elaborar<br />

processos de coiçil;cnçio. As palavras <strong>da</strong>s restantes personagens brancas e negras sobre<br />

as relações entre os <strong>do</strong>is pares são disso um exemplo. De mo<strong>do</strong> a corroborar esta<br />

afirmação, atente-se na mãe (branca) de Marina e em Josefa, a governanta (negra) <strong>da</strong><br />

família Pinto.<br />

Se, durante a infância, Ricar<strong>do</strong>, o filho <strong>da</strong> lavadeira, é para a mãe de Marina,<br />

"um pretinho muito limpo e educa<strong>do</strong>" (Vieira, 1978: 92. Note-se a ironia <strong>do</strong> emprego<br />

<strong>do</strong> diminutivo), nesta fase já não é benéfico que sejam amigos. Como ela lembra à<br />

filha, "um preto é um preto ... As minhas amigas to<strong>da</strong>s falam <strong>da</strong> minha negligência<br />

na tua educação. Que te deixei.. . Bem sabes que não é por mim!". Num crescen<strong>do</strong> de<br />

ponderações com base nesta discriminação, a mãe pede-lhe que deixem de ser amigos<br />

(Vieira, 1978: 95). Por sua vez, Josefa reflecte longamente sobre a impossibili<strong>da</strong>de de<br />

uma relação entre Marajá e Arlete e sobre as diferenças entre as familias <strong>do</strong>s <strong>do</strong>iss,<br />

mostran<strong>do</strong> um quadro de alienação mental, de vergonhn dn cor (Xitu, s.d.: 127-131).<br />

Avisáo maniqueísta de Josefa e a sua construção de um mun<strong>do</strong> a branco e preto<br />

imacula<strong>do</strong>s encontra como reflexo oposto, passe o aparente para<strong>do</strong>xo, um <strong>do</strong>s eixos<br />

centrais <strong>do</strong> conto de Luandino: o tema geral <strong>da</strong> cor9. Como há a constituição de campos<br />

opositivos entre os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>da</strong> fronteira <strong>do</strong> asfalto, sejam físicos ou humanos, há<br />

também diferenças no que toca à presença <strong>da</strong>s cores.<br />

São notórios o violeta <strong>da</strong>s flores; o azul <strong>do</strong>s olhos de Marina; o amarelo <strong>da</strong> casa<br />

de Ricar<strong>do</strong>, <strong>da</strong>s tranças de Marina, <strong>do</strong> seu próprio grito ven<strong>do</strong> o amigo morto; o cor-<br />

de-rosa <strong>da</strong>s paredes <strong>do</strong> quarto de Marina e a sua posterior escuridão; o caqui <strong>do</strong><br />

polícia; o vermelho <strong>do</strong>s laços de Marina, <strong>da</strong> terra <strong>do</strong> musseque, <strong>do</strong> sangue de Ricar<strong>do</strong><br />

inanima<strong>do</strong> no chão; a brancura <strong>da</strong> neve e <strong>da</strong> cor <strong>da</strong> pele <strong>da</strong> menina; a negrura <strong>do</strong>s<br />

"sapatos pretos" de Marina, <strong>da</strong> carapinha de Ricar<strong>do</strong>, <strong>da</strong> sua pele ou a escuridão<br />

"<strong>da</strong>s casas de zinco e <strong>da</strong>s mulembas". Com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> noite, fica uma cor síntese:<br />

"A lua punha uma cor crua em tu<strong>do</strong>" (Vieira, 1978: 91-97. Sublinha<strong>do</strong> meu).<br />

BJ~~efa,<br />

como se percebenas suas caractedsticasaolongo de Os Discirrsos <strong>do</strong> "Mcsfre"Tnmodn, constitui-<br />

-se por um processo a que Memmi designa como mistificnpio, pois a<strong>do</strong>ptou a ideologia <strong>do</strong>minante <strong>do</strong><br />

coloniza<strong>do</strong>r para se compor enquanto actante social e personagem (1973: 117). Atente-se, por exemplo,<br />

nas seguintes palavras, num discursa conçtd<strong>do</strong> sobre lupóteses hihiras e com base numa ditali<strong>da</strong>de<br />

antinómica realiza<strong>da</strong> por uma coloniza<strong>da</strong>: "Vieram <strong>do</strong> mato, <strong>da</strong>s matutos, a apresentarem-se na casa<strong>do</strong>s<br />

consogros. Sentam-se na meça, não sabem comer com garfo, nemcom colher, pegam com as mãos o peke,<br />

a carne e o arroz, o molho a cair-lhes entre os de<strong>do</strong>s para a toalha bor<strong>da</strong><strong>da</strong> e branca como a neve; as<br />

comi<strong>da</strong>s a cairem [sic] no tapete; a pedirem mais vinho, bêba<strong>da</strong>s e a quererem <strong>da</strong>nçar a <strong>da</strong>nça delas <strong>do</strong><br />

mato. <strong>do</strong>s gentios, numa casa cheia de tapetes de Iiwo e de espelhos a que uma delas ao querer abracar a<br />

sua própria imagembateu coma cabeça e partiu0 espelho allieia" (Xitu, s.d.: 130). O discurso de Josefa, tal<br />

como o discurso colonial, caracteriza-se pela sua ambivalência que produz a diferenga em excesso sob<br />

Conçhuçõeç metonímicas e de semelhança (Bbabha, 1995: 86-90).<br />

Salvata Trigo, numa obra dedica<strong>da</strong> ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s textos literários de Luandino Vieira, considera<br />

que a cor é "um mofino literário em C. I. [A Cidndr e n Infincin]" (Trigo, 1981: 211. Itálico no original).


Mas percebe-se que há cores presentes em ambos os la<strong>do</strong>s, como que se aproximan<strong>do</strong>,<br />

demonstração de que o mun<strong>do</strong> é a várias cores, que não escolhem onde viver<br />

e não se compartimentam. Esta, a par <strong>do</strong> valor <strong>da</strong> amizade, será a mensagem mais<br />

positiva que nos é trazi<strong>da</strong> por Luandino Vieira no seu conto, apesar <strong>da</strong> mácula que<br />

constitui a morte de Ricar<strong>do</strong>.<br />

A resolução <strong>da</strong>s diferenças que passam pelo binómio branco/negro, neste caso,<br />

é trágica, ao contrário <strong>do</strong> que se passa n'Os Disclrwos <strong>do</strong> "Mestre" Tnmodn. Como "as<br />

ficções literárias incorporam uma reali<strong>da</strong>de identificável, submeti<strong>da</strong> embora a uma<br />

remodelação imprevisível" (Iser, 2001: 102), atente-se na imprevisibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />

casamento que resolve a relação de Arlete e Marajá.<br />

O Carnaval que permite a simulação <strong>do</strong> casamento de Arlete e Marajáserá uma<br />

leitura de utopia e de resolução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> renl nesta obra de Uanhenga Xitu. Ocasamento<br />

ficciona<strong>do</strong> imita a vi<strong>da</strong> e é, assim, a única forma de concretização <strong>da</strong> utopia n'Os<br />

Disctlrsos <strong>do</strong> "Mestre" Tnnzodn, até devi<strong>do</strong> ao facto de o Carnaval estar enraiza<strong>do</strong> "num<br />

mun<strong>do</strong> encanta<strong>do</strong> de colheitas milagrosas e plenitude utópica" (Emerson, 2003: 58)<br />

ou de ser uma "representação simbólica (...) <strong>da</strong> utopia, a imagem de um esta<strong>do</strong> futuro"<br />

(Connerton, 1999: 58). Contu<strong>do</strong>, no caso deste romance, este futuro não anula a<br />

concretização, isto é, não se constitui serizpre como futuro. Analisan<strong>do</strong> com pormenor<br />

este casamento de Marajá e Arlete, que se realiza no tempo de passagem para o<br />

primeiro dia <strong>do</strong> Carnaval, afere-se que simboliza o início de um ciclo marca<strong>do</strong> pela<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> hierarquização social, pelo surgimento <strong>da</strong>s vozes que antes não seriam<br />

escuta<strong>da</strong>s (DaMatta, 1987: 119), enfim, pela instih~ição <strong>do</strong> jogo que faz <strong>do</strong> Carnaval<br />

"o mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> metáfora" (DaMatta, 1997: 63). A preparacão deste rito, ou desta<br />

"representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social" (Connerton, 1999: 57), envolve to<strong>do</strong> o rigor de<br />

uma festa de casamento, de mo<strong>do</strong> a que o processo imitativo fosse o mais próximo<br />

<strong>do</strong> realx0 possível, fosse verosímil, já que englobaria a simulação <strong>da</strong>s várias etapas de<br />

um casamento (Xitu, s.d.: 147-157). As semeihanças com a composição carnavalesca<br />

encontram-se, assim, nas máscaras/papéis desempenha<strong>do</strong>s pelos actantes, que<br />

correspondem a "personagens, gestos e roupas características" (DaMatta, 1997: 29), e<br />

no desfile que mostra à ci<strong>da</strong>de um casamento marginal, como, também, são marginais<br />

os heróis <strong>do</strong> carnaval (DaMatta, 1997: 263). O casamento de Arlete e Marajá tem o<br />

objectivo de impressionar a socie<strong>da</strong>de colonial, como é evidente na reacção à chega<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong> cortejo à Ilha de Luan<strong>da</strong>, já com o noivo, entre manifestações de alegria, de um<br />

la<strong>do</strong>, e de espanto, <strong>do</strong> outro, por "ver o negro abraça<strong>do</strong> com a branca" (Xihi, s.d.: 152-<br />

153).<br />

Recuperan<strong>do</strong> o tópico <strong>do</strong> espaço e <strong>da</strong> metaforização <strong>da</strong>s relações raciais que ele<br />

constitui, no recinto <strong>da</strong> festa <strong>do</strong> casamento, é visível a afirmação de Frantz Fanon de<br />

que O mun<strong>do</strong> colonial é "compartimenta<strong>do</strong>, maniqueísta, móvel" (s.d.: 26), pela<br />

"Este real é, em primeiro lugar, a reali<strong>da</strong>de que "una obra literaria consiruye (...) al tiempo que Ia<br />

describe simultAneamente" (Harçhaw, 1997: 130).


demarcação de grupos sociais (Xitu, s.d.: 163) e pela distância social entre os noivos,<br />

que, no fun<strong>do</strong>, tenta ser nivela<strong>da</strong> pelo Carnaval. O sal<strong>do</strong> que duas personagens<br />

inomina<strong>da</strong>s fazem deste teatro respeita aos pais de Arlete, com uma extensão à<br />

socie<strong>da</strong>de colonial angolana, onde o preconceito é <strong>do</strong>minante, sen<strong>do</strong> este casamento<br />

considera<strong>do</strong> uma "boa parti<strong>da</strong>" ou "uma cátedra a to<strong>do</strong>s os presentes, sobretu<strong>do</strong> aos<br />

não-me-toques" (Xitu, s.d.: 169), à burguesia colonial luandense e às suas relações<br />

com os indígenas. O Camaval é um rito calen<strong>da</strong>riza<strong>do</strong> e o casamento de Arlete e<br />

Marajá é a concretização de uma imprevisibili<strong>da</strong>de numa <strong>da</strong>ta precisa e consagra<strong>da</strong><br />

que se distancia de uma ordem institucionaliza<strong>da</strong>, por ser Carnaval, por ser livre,<br />

mas onde acaba por se sentir uma dinâmica própria <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de colonial luandense,<br />

que é o motivo <strong>da</strong> utopia com que caracterizei inicialmente este episódio. Como se<br />

interroga Amal<strong>do</strong> Santos, "mas, não se alimentarão também as utopias, hora a hora,<br />

dia a dia, de tantas coisas frágeis e efémeras que ligam os homens à vi<strong>da</strong> de to<strong>do</strong>s os<br />

seres e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de?" (2002: 112).<br />

A construção de uma nação a-racial (cf. Venâncio, 2002: 33) faz-se ao longo <strong>da</strong>s<br />

páginas de vários textos de Uanhenga Xitu (com destaque para o romance agora em<br />

causa e para Mi~ngo, Os Solireviuentes dn Mdquinn Colonial Depóem.. .), cuja manifestação<br />

de utopia entronca neste exemplo <strong>do</strong> Carnaval <strong>da</strong> vitória <strong>da</strong> amizade de Arlete e<br />

Marajá. Porém, a morte deRicar<strong>do</strong> não deixa deser uma evidência <strong>do</strong> poder castra<strong>do</strong>r<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de colonial, que não deixa entrever a utopia, que não deixa de consignar a<br />

utopia enquanto tal e não enquanto concretização a ser.<br />

As personagens <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s literários de Uanhenga Xitu e de Luandino Vieira<br />

representam agentes de elaboração de factos sociais e são, por isso, "simultaneamente,<br />

estruturantes e estrutura<strong>do</strong>s, símbolos e funções" (Gonçalves, 1997: 30). Neste senti<strong>do</strong>,<br />

observaram-se categorias que estão presentes nestas particulares tematizações <strong>da</strong>s<br />

relações inter-rácicas nos textos escolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s autores, nos quais a discriminação<br />

assenta especialmente em questões dérmicas, que acabam por arrastar outras formas<br />

de discrimimação, que dizem respeito, por exemplo, ao acesso a determina<strong>do</strong>s espaGos.<br />

Uanhenga Xitu descreve de um mo<strong>do</strong> bastante explícito o que representa o<br />

fenómeno <strong>do</strong> racismo, e passo a citar: "O fenómeno racismo não é estático. Ele a<strong>da</strong>ptase<br />

às circunstâncias, ao meio, aos fins políticos, económicos, sociais. É manipula<strong>do</strong><br />

para se atingirem os mais varia<strong>do</strong>s objectivos, sejam eles nobres ou obscuros. É uma<br />

arma que alguns utilizam <strong>da</strong>s mais diversas maneiras e até para simples deleite"<br />

(Xitu, 1991: 228).<br />

Na manipulação e invocação <strong>da</strong>s diferenças dérmicas através <strong>da</strong>s páginas de"A<br />

fronteira de asfalto" e Os Discursos <strong>do</strong> "Mestre" Tnniodn, as consequências <strong>da</strong> tramgressão<br />

<strong>da</strong>s fronteiras instituí<strong>da</strong>s são a morte e o casamento carnavaliza<strong>do</strong>. O que<br />

será, então, o racismo nestes <strong>do</strong>is textos? Acaba por ser o que institui a fronteira, ou<br />

seja, o racismo é, em si, e essencialmente, a fronteira artificial, a margem de ruptura<br />

<strong>da</strong> harmonia. Em suma, e invocan<strong>do</strong> uma afirmação de Michel Wieviorka (2002: 73),<br />

O racismo, em qualquer circunstância, nunca deixa de ser uma violência simbólicn.


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A «RAÇA» OU A ILUSÃO DE UMA IDENTIDADE<br />

DEFINITIVA<br />

Citan<strong>do</strong> a cosmogonia local, Luc de Heusch, ao se referir à instauração <strong>da</strong> realeza<br />

sagra<strong>da</strong> no espaço luba-lun<strong>da</strong>, menciona a existência de homens vermelhos, que<br />

representavam uma ordem entretanto bani<strong>da</strong>, e outros de cor preta que simbolizavam<br />

a forma de poder que se impusera.' Alinguagem metafórica deste texto africano précolonial<br />

denota desde logo a ausência <strong>da</strong> objectivação racionalista, portanto, <strong>da</strong><br />

vontade de precisão subjacente às taxonomias <strong>da</strong> .


sensoriais e mentais que regem o olhar, visto ele se inserir rotun<strong>da</strong>mente na esfera<br />

sociocultural que entrega a ca<strong>da</strong> um os materiais que lhe facultam a construção <strong>da</strong><br />

imagem e <strong>da</strong> qualificação condizente. Nessa sequênciase põe o para<strong>do</strong>xo de a mesma<br />

pessoa se arriscar a ser «negra» nos E.U.A., «branca» no Brasil, e «de cor , - quer<br />

dizer mestiça -na República <strong>da</strong> África <strong>do</strong> Sul. Estas rupturas estão na continui<strong>da</strong>de<br />

de um acto classificatório que recorre antes a critérios de um fun<strong>do</strong> relaciona1 e<br />

simbólico, lega<strong>do</strong> pela história e pela cultura aos membros de to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de, <strong>do</strong><br />

que a marca<strong>do</strong>res biológicos que, embora não ignora<strong>do</strong>s, se reduzem mais <strong>do</strong> que se<br />

admite a indícios sujeitos a leitura subjectiva.<br />

Quan<strong>do</strong> o funcionário angolense, Manoel Alves de Castro Francina pertencen<strong>do</strong><br />

aos serviços judiciais <strong>da</strong> administração colonial de Angola, chegou em Junho de 1846<br />

i guarnição de Ambaca notou que os "ambaquences", a fim de fugirem ao chama<strong>do</strong><br />

"carreto", ou seja o trabalho obrigatório de carrega<strong>do</strong>res, assumiam o "titulo de<br />

brancos ". E, para arrematar a descricão de um fenómeno que se ihe afigurava deveras<br />

extravagante e recean<strong>do</strong>, porventura, que o leitor o desse por inverosímel, Francina<br />

lembrou <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> século XVII que declaravam que"os pretos <strong>do</strong> interior em<br />

usan<strong>do</strong> sapatos querem ser considera<strong>do</strong>s como brancos. São conheci<strong>do</strong>s por<br />

camundeles E o atónito luandense prosseguia explican<strong>do</strong> que «achei neste distrito<br />

uma porcão de homens chama<strong>do</strong>s meirinhos, alcaides e porteiros ....q ue» (não eram<br />

mais)


ver<strong>da</strong>de, se tratava <strong>do</strong>, ao tempo, muito temi<strong>do</strong> e não menos afama<strong>do</strong>, traficante de<br />

escravos angolano, José António Alves, ci<strong>da</strong>dão português, oriun<strong>do</strong> de uma família<br />

angolense <strong>do</strong> Don<strong>do</strong> que, aos olhos <strong>da</strong>s gentes <strong>da</strong> terra com quem negociava pelas<br />

ban<strong>da</strong>s <strong>do</strong> alto Zambeze era sem nenhuma hesitação um «branco português».<br />

Não importa aqui prolongar os episódios que servem de ponto de parti<strong>da</strong> destes<br />

apontamentos e, sim, discorrer um pouco sobre o efeito de estranhação quenos causam<br />

<strong>hoje</strong> as atitudes pré-modernas <strong>do</strong>s africanos evoca<strong>do</strong>^.^ Interessa, ademais, in<strong>da</strong>gar<br />

se, por mais bizarras que nos pareçam tais condutas no presente, não reflictam elas,<br />

apesar de tu<strong>do</strong>, um pensar africano autónomo que a colonização recente desbaratou.<br />

E, ain<strong>da</strong> por cima, vale a pena sublinhar que, ao contrário <strong>do</strong> que os perigosos<br />

equívocos <strong>do</strong> senso comum crêem, essas posturas aparentemente abstrusas se situam<br />

bem mais perto que as suas <strong>da</strong> visão que a ciência actual de ponta defende acerca <strong>da</strong>s<br />

pretensas «raças,, humanas. Efectivamente, depois de analisar os pareceres que a<br />

biologia ou a paleoantropologia mais avança<strong>da</strong>s lhe ofereciam, Colette Guillaumin<br />

conclui sem rodeios e com fina ironia que as ditas .>, ver<br />

ain<strong>da</strong> APPIAH, K. Anthony «Rnce, Culfitre, Ideniify : Mis~inderslood Connecfions c< In K. Anthony APPIAH<br />

- -


* * *<br />

Desta feita, de uma pena<strong>da</strong>, se reduz to<strong>da</strong> a espessura substancialista acumula<strong>da</strong><br />

por uma noção, forte <strong>da</strong> sua presumi<strong>da</strong> «evidência, a um colossal e intolerável malentendi<strong>do</strong>.<br />

Sem cerimónia ou pie<strong>da</strong>de, se abala uma certeza <strong>do</strong> campo prático que<br />

inúmeras vivências <strong>do</strong> dia-a-dia acreditam compravar e que, no âmbito teórico, uma<br />

profusão de ideologias e de imaginários - <strong>do</strong> Romantismo e <strong>do</strong> Darwinismo Social<br />

ao Pan-Africanismo e à pletora <strong>do</strong>s nacionalismos particulares e às suas manifestações<br />

literárias, artísticas e <strong>do</strong>utrinárias - consagram e celebram pelo mun<strong>do</strong> afora. Mas,<br />

é óbvio que essa categoria e as representações de identi<strong>da</strong>de e de alteri<strong>da</strong>de que ela<br />

alimenta, por dúbias que possam ser, persistem em se aguentar, porque entretanto<br />

elas emanam especialmenente de um senso comum que, obnubila<strong>do</strong> pela . <strong>da</strong><br />

exteriori<strong>da</strong>de física, confirma o atraso culturaln (cultural lag), aponta<strong>do</strong> por Ogbum,<br />

<strong>do</strong>s seus propaga<strong>do</strong>res que ignoram as revelações <strong>do</strong> saber mais elabora<strong>do</strong>. E, aquém<br />

e além de deficiências institucionais designa<strong>da</strong>mente <strong>do</strong> ensino, o hiato se arrasta,<br />

porque as demonstrações <strong>do</strong> alega<strong>do</strong> senso comum fogem à ameasa de desestabili-<br />

zação que o confronto franco com a alteri<strong>da</strong>de envolve e que o esclarecimento<br />

implica<strong>do</strong> na apropriação <strong>do</strong>s desenvolvimentos <strong>da</strong> reflexão filosófica e científica,<br />

que com eles coexistem, seguramente aumenta. Então, como instrumento de inteligi-<br />

bili<strong>da</strong>de de uma razão prática obediente à lei <strong>do</strong> menor esforço, essa pseu<strong>do</strong>noção<br />

biológica - a «raça» - teima, a pretexto <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s fenótipos, em fabricar<br />

diferenças várias que a abor<strong>da</strong>gem desleixa<strong>da</strong> cristaliza nas ideias fixas e redutoras<br />

de si e de outrem que engor<strong>da</strong>m o cliché e a linguagem estereotipa<strong>da</strong> constituintes<br />

<strong>do</strong> preconceito e <strong>da</strong>s narrativas que ele engendra. Na sua quali<strong>da</strong>de de pré-conceito<br />

ou de pré-juízo assentes sobretu<strong>do</strong> em intuição e raciocínio descritivo, tais discursos<br />

convergin<strong>do</strong> no mito, nomea<strong>da</strong>mente nacional ou racial, traduzem uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de conhecimento comportan<strong>do</strong> referências e valores condicionantes de atitudes e de<br />

comportamentos que o notório peso emocional, senão a <strong>do</strong>se de narcisismo particular<br />

ou colectivo que não raro o preenche, consoli<strong>da</strong>m à revelia <strong>do</strong>s ditames <strong>da</strong> razão<br />

analítica e experimental.<br />

Como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> acidenta<strong>do</strong> processo de objectivação e de racionalização <strong>da</strong>s<br />

múltiplas expressões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que a moderni<strong>da</strong>de introduziu entre os homens -em<br />

África <strong>da</strong> maneira mais brutal pelo colonialismo -, a «raça" participa entretanto <strong>da</strong><br />

produção <strong>da</strong> nossa identi<strong>da</strong>de pessoal e, muito frequentemente, até colectiva. A<br />

primeira se exibe pelo corpo e se expressa pela subjectivi<strong>da</strong>de que, ao reconhecê-lo<br />

como sinal e ao afirmá-lo transfigura<strong>do</strong> em consciência de si a despeito de mu<strong>da</strong>nças<br />

no tempo, garante a conservação <strong>do</strong> indivíduo enquanto enti<strong>da</strong>de singular. Agora, a<br />

colectiva, grupal ou por exemplo nacional, se caracteriza por perfis sociais e culturais<br />

específicos que inscrevem o indíviduo como componente <strong>da</strong>s configurações variáveis<br />

And Amy GUTMANN Color Conscior


A iRAÇA. OU A ILUSÃO DE UMA IDEMIDADE DEFINITIVA<br />

.. . .. . . ... . .. . ..... . .. . . . .... . .. .. . .... . .. . .. . . . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .... . .. . .. .. . ... . ... . . .. . ... . .. ..... . . .. . . .. . ... . ... . .. . . . .. . .. . .... , e que o dão enquanto parte de uma cultura ou de uma socie<strong>da</strong>de determina<strong>da</strong>s e <strong>do</strong>s<br />

demais subsistemas que nelas se integram. Se, no senso estrito, identi<strong>da</strong>de faz de<br />

alguém fulano ou sicrano, no lato, ela o toma por parente de uma familia, angolano<br />

ou moçambicano, católico ou protestante, adulto ou criança.<br />

O professor congolês (Icinshasa) V. Y. Mudimbe afirma que, desde o século XV, a<br />

ideia de África vem na Europa, associa<strong>da</strong> à obtenção de novos conhecimentos <strong>da</strong><br />

geografia e <strong>da</strong>s ciências complementares de que seriam de ressaltar a botânica e a<br />

zoologia. Porém, no atinente aos homens até lá desconheci<strong>do</strong>s, o autor destaca<br />

igualmente que esse alargamento de horizontes se entremeia com noçóes tais que<br />

"primitivismo" e "selvajaria" que depressa turvam o olhar europeu sobre as alteri<strong>da</strong>des<br />

que ora transitam <strong>do</strong>s vagos contornos de uma fantasia de toque teratológico<br />

para objectos concretos <strong>da</strong> observação directa. Ao europeu, esse confronto, em<br />

particular com os negros, provoca uma abundância de impressões que prontamente<br />

descambam para um amplo campo semântico onde pre<strong>do</strong>minam os predica<strong>do</strong>s<br />

negativos. E estes estipulam, desde então, para os africanos um paradigma de<br />

diferença que segue imbuí<strong>da</strong> de uma dimensão moral e estética de inferiori<strong>da</strong>de que<br />

não mais é que a representação de um duplo de si recalcad~.~ Contu<strong>do</strong>, será sobre<br />

esta visáo ambígua <strong>do</strong> próprio e <strong>do</strong> outro que os europeus ce<strong>do</strong> fabricarão to<strong>da</strong> uma<br />

literatura que, malgra<strong>do</strong> o intento de tornar a África inteligível, a embacia pelo seu<br />

eurocentrismo desenfrea<strong>do</strong>.<br />

Antes <strong>do</strong> advento <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem crítica e profana <strong>do</strong> Iluminismo à reali<strong>da</strong>de, a<br />

compreensão teológica <strong>do</strong> homem, basea<strong>da</strong> na visão agostiniana <strong>da</strong> dicotomia <strong>da</strong><br />

alma e <strong>do</strong> corpo, fazen<strong>do</strong> deste um circunstancial e assaz pobre invólucro <strong>da</strong>quela a<br />

quem cumpre valorizar, permite que onegro se salve através <strong>da</strong> a<strong>do</strong>pção<strong>da</strong> fé «certa».<br />

A apreciar pelas palavras <strong>do</strong> cronista cristão-novo que viveu a maior porção <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> em Angola, António de Ca<strong>do</strong>rnega, isso ocorreria certamente com o alto dignitário<br />

<strong>do</strong> Reino de N'Dongo e tan<strong>da</strong>la, capitão-mor <strong>da</strong> «guerra preta», Dom António<br />

Dias Musungo a Anga, que "era hum valente homem ain<strong>da</strong> que de côres pretas ",<br />

aliás, "preto só em côres, que o mais tu<strong>do</strong> tinha de bran~o."'~ Conquanto, para o<br />

imaginário europeu coevo, a pele negra deste militar traísse algo que se relacionava<br />

com o mal, a primazia <strong>da</strong> alma e a «limpeza», que a sua cristianização infligiu à<br />

«bruteza» de nascença, garantiram obviamente um confortável posto no céu <strong>do</strong>s<br />

brancos a uma individuali<strong>da</strong>de que Beatrix Heintze denuncia como um riquissimo<br />

MUDIMBE, V.Y. Tlie Iden Of Africn Indiana UMversity Press Bloomington and lndiãnapolis /<br />

James Currey, Lan<strong>do</strong>n. 1994. Pp.xi-xii.<br />

'°CADORNEGA,António de Oliveira deHistónaGera1DasGuerrasAneoianas 1680Tomo I. Anotn<strong>do</strong><br />

e corrigi<strong>do</strong> por José Mniins Delga<strong>do</strong> Agência Geral Da Ultramar. Lisboa 1972.-~p.134, 182-185. A *guerra<br />

pretar era uma tropa africana auxiliar <strong>do</strong> exército colonial português.<br />

i 143


negociante de escravos?' Haven<strong>do</strong> abraça<strong>do</strong> a religião católica e maneiras portuguesas,<br />

que incluíam a roupagem, a língua e a escrita, e ten<strong>do</strong> um filho e um neto sacer<strong>do</strong>tes<br />

e as filhas ccaza<strong>da</strong>s com pessoas autoriza<strong>da</strong>s,,, este nobre angolano niti<strong>da</strong>mente se<br />

metamorfoseara em um «branco>,, para os africanos que se mantinhamna sua culhtra<br />

tradi~ional?~ E, para espanto e irritação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is forasteiros de olhar já tol<strong>da</strong><strong>do</strong> pela<br />

cristalização alienante <strong>do</strong> conceito racial, os «meirinhoss ou os aalcaidesn encontra<strong>do</strong>s<br />

por Francina e os informantes nativos de Cameron e, a seu jeito, o famigera<strong>do</strong> José<br />

António Alves, na<strong>da</strong> mais fizeram que optar pela atribuição de uma clara identi<strong>da</strong>de<br />

estatutária, para eles muito mais relevante que a decidi<strong>da</strong> pela melanina.<br />

Ao invés de Ca<strong>do</strong>rnega que privilegia a alma - comum a to<strong>do</strong>s os humanos -,<br />

cerca de 100 anos mais tarde, o carioca Elias A. <strong>da</strong> Silva Corrêa acha que o preto e o<br />

branco se opõem por uma natureza que os aparta inexoravelmente. Este oficial vê o<br />

negro sob o ponto de vista rígi<strong>do</strong> de uma difusa biologia que convém ao pragrnatismo<br />

<strong>do</strong> defensor de uma economia escravista cujo entendimento <strong>do</strong>s homens está<br />

embruteci<strong>do</strong> pela rude duali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de colonial brasileira <strong>do</strong>s fins <strong>do</strong> século<br />

XVIII que quase só sabe encarar o africano na sua quali<strong>da</strong>de de corpo a empregar<br />

como força de trabalho ou como objecto sexualJ3 Enquanto para o primeiro cronista,<br />

a sua moral cristã, de notória cepa aristotélica, admite o escravo como um fenómeno<br />

«natural,, - desde que ele seja «pagão» o que equivale a ente inferior - mas também<br />

se mostra pronto a aceitar a sua possível redenção, para o segun<strong>do</strong>, a identificação<br />

de negro com trabalha<strong>do</strong>r cativo representa já um facto consuma<strong>do</strong> pela sedimentação<br />

<strong>do</strong> hábito. A sensibili<strong>da</strong>de de Silva Corrêa parece pressentir no reconhecimento <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> espiritual <strong>do</strong> africano um prenúncio intolerável de igual<strong>da</strong>de e, por consequência,<br />

de <strong>da</strong>no aos imperativos laborais que unicamente requerem o seu físico. Por isso, a<br />

alma <strong>do</strong> preto é escorraça<strong>da</strong> ou aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> para os recônditos obscuros <strong>da</strong> magia e<br />

<strong>do</strong> carnaval que, sen<strong>do</strong> a inversão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, até lhe autoriza durante alguns dia a<br />

sua presença.<br />

No entanto, apesar <strong>da</strong>s sobrecargas de «primitivismon e de aselvajaria>,, que a<br />

crueza <strong>da</strong> animalização e <strong>da</strong> coisificação - gera<strong>da</strong>s pelo tráfico e pela escravaiuraconsagrou,<br />

a racialização <strong>da</strong> representação humana imposta pela ciência modema<br />

ocidental, junta à hierarquização fixa <strong>da</strong>s araçasm que ela acarretou, agravaram sob<br />

diversos aspectos a posição <strong>do</strong> negro no dealbar <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>deJ4 Face a esse tipo<br />

" HEINTZE, Bestdx Strcdien Zrir Geschiclttc Angolns Int 16. Und 17. Jakrkrindert. Ein Lesebmh<br />

RUDIGER KOPPE VERLAG. KOLN 1996. ~.222.<br />

Apropi,sii!ng..r i,t<br />

rdprése>~intio>is I'rdirids Innt.is 1s GoK EJitioiis Ksrlliali. Paris 1985.<br />

" CADORNÉGA, Ant&io de 0Cveira de (1972) Op.cit.p.184.<br />

SILVA CORR~A, Elias Alexandre (1937) Op.cit.p.198.<br />

" Neste passo, quero diferenqar <strong>do</strong>is fenómenaç que, conquanto tenham a «raça» como seu<br />

componente maior, se diçünguem enh si. Apoian<strong>do</strong>-me sobre Tzvetan To<strong>do</strong>rov, separa o racismo <strong>do</strong><br />

racialismo :o primeiro implica um comportamento impregna<strong>do</strong>, em geral, de ódio ou de desprezo para<br />

com o «outro» e a segun<strong>do</strong> consiste nas ideologias concernentes à «raça. e is suas presum'veis


de deterioração, que se exprimiu na recente <strong>do</strong>minação colonial, a abolição <strong>da</strong><br />

escravatura e a introdução <strong>do</strong> trabalho assalaria<strong>do</strong> dito livre apenas significaram<br />

uma melhoria muito relativa que se sal<strong>do</strong>u por um cruel recrudescimento <strong>do</strong> racismo.<br />

Assim, se escancara um fosso intransponível que separa a atitude de um Ca<strong>do</strong>mega<br />

que admirava Dom António Dias Musungo e de quem fora amigo, <strong>da</strong> postura<br />

inflexível de Oliveira Martins que pensa que «...abun<strong>da</strong>m os <strong>do</strong>cumentos que nos<br />

mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo <strong>do</strong><br />

antropóide e bem pouco digno <strong>do</strong> nome de homem». l5 Perante esta evolução, como<br />

não se referir a uma peculiar forma de degra<strong>da</strong>ção de imagem, quan<strong>do</strong> comparamos<br />

uma percepção discriminatória, contu<strong>do</strong> não reifica<strong>da</strong>, e que promete ao outro<br />

salvação com aquela que, engloban<strong>do</strong> em si to<strong>do</strong>s estereótipos e preconceitos <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong>, os racionaliza em categorias de desigual<strong>da</strong>de que crê imutáveis, mas que<br />

visam sobretu<strong>do</strong> legitimar uma subaltemização <strong>do</strong> preto que se quer perenemente<br />

diminuí<strong>do</strong> à condição de fonte de energia à disposição <strong>do</strong> branco?<br />

Se a inclusão <strong>da</strong> cor, enquanto elemento constituinte subjectivo e, por isso,<br />

impreciso <strong>da</strong> representação de si e de outrem, corresponde a um gesto antigo, a sua<br />

aglutimação no conceito hipostasia<strong>do</strong> de .


culturais que a espontânea fluidez <strong>da</strong> interaccção estabelecia. Outra coisa não dizem<br />

sociólogos modernos, como François Bayart ao criticar a «ilusão <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>de~n?~<br />

Inspira<strong>do</strong> em Foucault e em alusão à epígrafe grava<strong>da</strong> por Eric Hobsbawm e<br />

Terence Ranger <strong>da</strong> ninvenção <strong>da</strong> tradição », Mudimbe, em obra que provocou bra<strong>do</strong><br />

no meio <strong>do</strong>s africanistas e de círculos afectos ao continente negro, fala <strong>da</strong> ninvenção<br />

de África» realiza<strong>da</strong> pelos europeus e recapitula<strong>da</strong> ingenuamente pelos próprios<br />

africano^?^ O brilhante estudioso congolês sustenta que o aparelho conceptual, através<br />

<strong>do</strong> qual se persiste em perceber e representar a África, não só lhe foi outorga<strong>do</strong>, em<br />

seu detrimento, abusiva e violentamente pela Europa, como também prejudica muitos<br />

<strong>do</strong>s seus interesses vitais. Mudimbe argumenta que o discurso sobre as reali<strong>da</strong>des<br />

africanas se gerou inicialmentenas «margens <strong>do</strong>s contextos africanosa, o que àparti<strong>da</strong><br />

amputou e iuquinou o seu alcance, depois, tanto aos seus eixos, quanto a sua linguagem<br />

têm si<strong>do</strong> limita<strong>do</strong>s pela autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua exteriori<strong>da</strong>de., o que lhe retira consistência<br />

e confere um cariz bastante artifici~so.'~ Não obstante os pesadumes dessa<br />

distorção, já nos anos trinta <strong>do</strong> século XX se tomou visível no Ocidente uma tími<strong>da</strong><br />

mu<strong>da</strong>nca de tom face ao negro e às suas obras, porém, apenas no decurso <strong>do</strong>s decénios<br />

de 50 e em especial de 60 e 70 se operou nas ciências sociais produzi<strong>da</strong>s em suas<br />

escolas uma alteração de paradigrna de percepção e de representação que as armasse<br />

de uma perspectiva mais apta a vê-los de um ângulo mais justo e dignifi~ante.'~<br />

No entanto, por desgraça, esta revolução epistemológica resta submeti<strong>da</strong> a<br />

constrangimentos vários que, não poupan<strong>do</strong> sequer os interessa<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> não os<br />

deformam e por vezes até à caricatura, estorvam ou impedem a divulgação <strong>do</strong>s seus<br />

ensinamentos para além de uma minoria. De to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s, como resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

delica<strong>da</strong> relação entre o próprio e o alheio, o africano moderno, não consegue dizerse<br />

sem recurso a instrumentos, in<strong>do</strong> <strong>da</strong> linguagem ao pensamento, que até se<br />

integra<strong>do</strong>s em formas de expressão rotula<strong>da</strong>s de «africanas., não deixam de conter<br />

uma inconfortável desproporção de alteri<strong>da</strong>de que torna to<strong>da</strong>via mais árduo o<br />

achainento de vias que logrem equacionar e solucionar a multidão de problemas que<br />

o afligem.<br />

Estes comentários, que poderão soar desproposita<strong>do</strong>s, não transbor<strong>da</strong>m de jeito<br />

nenhum para fora <strong>do</strong> quadro desta comunicação porque no contexto <strong>da</strong>


A .RRCA. OU A ILUSÃO DE UMA IDEMIDADE DEFINITIVA<br />

: . .. . ... . .... . .. . .. . ..... . .. , .... , .. , ... , .. , . , .. . ..... . .. . .... . ... . .... . ... . .. . ... . .... . ... . ... . .. . . .. . .... . .. . ... . ... . .. , .. , .. , ... . .. .. . ........ . .. . .... . .<<br />

i 147<br />

pelos africanos e, demasia<strong>da</strong>s vezes, <strong>da</strong><strong>da</strong> como manifestação prohm<strong>da</strong> <strong>do</strong> seu ser,<br />

se transformou em ingrediente indispensável <strong>do</strong> seu discurso ti<strong>do</strong> por mais<br />

~genuínon.~~ Como consequência, a imprescindível e premente empresa de retoma<strong>da</strong><br />

de si, enquanto reconquista de autonomia material e imaterial, surge posterga<strong>da</strong><br />

para um futuro incerto e, em seu lugar, se levanta aqui e acolá um culto <strong>do</strong>negro que,<br />

em descabi<strong>do</strong> e exagera<strong>do</strong> ritual compensatório e narcisista, alude para capaci<strong>da</strong>des<br />

superiores e invoca esperanças messiânicas. O desvario e a incongruência <strong>do</strong> gesto<br />

metonímico residem na absolutiiação de um traço corporal alega<strong>da</strong>mente porta<strong>do</strong>r<br />

de diferença que, assumin<strong>do</strong> foros de enti<strong>da</strong>de ontológica, engole a ampla gama de<br />

riquezas espirituais de to<strong>da</strong> uma humani<strong>da</strong>de africana e a empobrece. Contu<strong>do</strong>, o<br />

excessivo desta acqão deixa transparecer o insuportável mal-estar consigo e com<br />

outrem que o colonialismo implantou e a dificul<strong>da</strong>de de se recolocar sobre os próprios<br />

pés e uma ordem injusta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> preservam muito para lá <strong>do</strong> razoável.<br />

Se as Américas, nomea<strong>da</strong>mente as suas elites euro-americanas e, sobretu<strong>do</strong>, os<br />

europeus haviam cedi<strong>do</strong>, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> passagem <strong>do</strong> Antigo para o Novo Regime e<br />

mais tarde, ao fascínio e à demência de nacionalismos, que o paradigma mental <strong>da</strong><br />

época racialiiara para além de qualquer sensatez, os milhões de caí<strong>do</strong>s, que as guerras<br />

etribaisn ocorri<strong>da</strong>s em particular na Europa causaram, demonstram igualmente um<br />

enorme embaraço consigo e com os vizinhos que um culto nacional delirante antes<br />

exacerbou que resolveu. Assim, até nos países de origem, os tempos modernos e a<br />

racionali<strong>da</strong>de que apregoam nascem coxos, estropea<strong>do</strong>s por um jogo entre razão e<br />

desrazão, <strong>do</strong> qual a


Guar<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a África na memória, se pode com alguma ousadia deduzir <strong>da</strong>s<br />

palavras <strong>da</strong> grande pensa<strong>do</strong>ra política, que qualquer abusiva veneração de si,<br />

enquanto mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de discurso e de acção racial ou étnica exclusiva, se arrisca à<br />

esterili<strong>da</strong>de solipsista e à recusa cega <strong>da</strong> mesmi<strong>da</strong>de no irmão e no próximo. Então,<br />

anula<strong>do</strong> o diálogo que define a fluidez sempre negocia<strong>da</strong> de identi<strong>da</strong>de e alteri<strong>da</strong>de,<br />

logo se corre o perigo de reactivar aquela latente lógica <strong>do</strong> horror cujas sementes o<br />

imperialismo largou por onde esteve e, não se quebran<strong>do</strong> tal circulari<strong>da</strong>de fatídica,<br />

vítima e carrasco se intercambiam em interminável ciran<strong>da</strong> de morte ...


A PROBLEMÁTICA SOCIAL DOS MESTIÇOS EM ÁFRICA<br />

A sua comparação com a situação asiática*<br />

1. A problemática <strong>da</strong> mestiçagem transformou-se, nos últimos anos, num <strong>do</strong>s<br />

temas centrais <strong>da</strong>s ciências sociais e humanas2. Tornou-se, quan<strong>do</strong> entendi<strong>da</strong> numa<br />

acepção cultural e numa dimensão que é mais metafórica <strong>do</strong> que substantiva, num<br />

<strong>do</strong>s recursos teóricos de que se servem cientistas <strong>da</strong>s ciências sociais e humanas para<br />

explicar as grandes transformações sociais decorrentes <strong>do</strong> actual processo de<br />

globalização. Refiro-me especificamente às migrações emmassa em direcção aos países<br />

mais desenvolvi<strong>do</strong>s, às desterritorializações culturais que acontecemno encalço dessas<br />

migrações, às varia<strong>da</strong>s situações de multiculturali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>í decorrentes ou<br />

simplesmente aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s, assim como às novas lógicas de exclusão social igualmente<br />

surgi<strong>da</strong>s com a vigência dessa nova conjuntura. Desempenha, enquanto tal,<br />

funções paradigmáticas que, por sua vez, são contradita<strong>da</strong>s por assun~ões que relevam<br />

a sobreposição de culturas na explicação de tais fenómenos e o multiculturalismo<br />

(por vezes leva<strong>do</strong> ao extremo) na resolução <strong>do</strong>s problemas sociais <strong>da</strong>queles decorrentes.<br />

Porém, a assunção <strong>da</strong> mestiçagem cultural enquanto paradigma não se fun<strong>da</strong>menta<br />

apenas no pressuposto de um entendimento social alarga<strong>do</strong>, se não mundial,<br />

por via de um cruzamento generaliza<strong>do</strong> de pessoas, valores e culturas. Há um outro<br />

factor a desempenhar um papel de relevo nessa fun<strong>da</strong>mentação. Ele chama-se ciência.<br />

Refiro-me concretamente ao avanço <strong>da</strong> ciência, mormente <strong>da</strong> engenharia genética,<br />

que levou à desmistificação <strong>do</strong>s antigos preconceitos racistas, her<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> chama<strong>da</strong><br />

racialização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Referir <strong>hoje</strong> alguém pela cor <strong>da</strong> pele jánão tem forçosamente<br />

' Esic tntu,.igura~d.iyt.idu, foiiiiiiinIineiitr.piiblica<strong>do</strong> iias.>rr.is~lu IICoM.lriio lnc?rn~cioii.il~oùrc<br />

Zlc;iiaiiorr.s Culriiriis - sL'culos X\' ;i XViIi, qiie te\ L. Iiigir na cidxlc iIc Lagos (Algarv?. no Cciitr~ de<br />

FstticlosGilFanesCf. I


uma carga negativa ou positiva, conquanto, desse facto, não possamos inferir a<br />

ausência de racismo, fenómeno que subsiste quer na sua versão mais clássica, quer<br />

nas versões mais subtis, invocan<strong>do</strong>-se a diferenciação cultural como factor de<br />

distanciamento (Wieviorka 2002). O que preten<strong>do</strong> relevar, com tal assunção, é a<br />

diferençaenke apercepção actual <strong>do</strong> racismo e a que foi vivi<strong>da</strong>no passa<strong>do</strong>, particular-<br />

mente no último quartel <strong>do</strong> século XIX e na primeira metade <strong>do</strong> século XX, altura em<br />

que o mesmo emergiu como termo/conceito (Heckrnann 1992: 146-7; Fredrickson<br />

2002: 19) e em que, decorrentemente, se assistiu, entre oukas aberrações, ao holocausto<br />

<strong>do</strong>s judeus às mãos <strong>do</strong>s nazis. O abuso <strong>do</strong> conceito de raça neste perío<strong>do</strong>3 levou a<br />

que, após a 2." Guerra Mundial, tenha o mesmo perdi<strong>do</strong> em virtuali<strong>da</strong>de, evita<strong>do</strong><br />

pelo mun<strong>do</strong> académico e por círculos intelectuais (sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> conota<strong>do</strong>s com<br />

a esquer<strong>da</strong> política), quer pela sua imprecisão científica4, quer pelo passa<strong>do</strong> sombrio<br />

que acarretava. Era, no fim, uma forma de o Ocidente, <strong>da</strong> Europa, ou mais precisa-<br />

mente, de o homem branco se redimir de um passa<strong>do</strong> colonial e de uma prática racista<br />

que havia redun<strong>da</strong><strong>do</strong> no holocausto acima aludi<strong>do</strong>. Doravante, o fenómeno rafa,<br />

enquanto factor de diferenciação ou clivagem5, será tendencialmente ignora<strong>do</strong>, ou<br />

então, no caso de intelechiais ou cientistas mais próximos <strong>do</strong> marxismo, entendi<strong>do</strong><br />

como qualquer coisa destina<strong>da</strong> a desaparecer com o fim <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des de classes,<br />

pelo que, assim sen<strong>do</strong>, pouco se justificava falar nela.<br />

Foi neste ambiente que se deram as independências no chama<strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong>.<br />

Em África, o território-alvo desta reflexão, tal condicionalismo ideológico, submerso<br />

pela postura pan-africanista6, redun<strong>do</strong>u na máxima de que o único grupo humano<br />

com legitimi<strong>da</strong>de para a posse <strong>do</strong> território e <strong>do</strong>s seus recursos naturais seriam os<br />

negros. Na tradição francófona, o continente a sul <strong>do</strong> Saara (e <strong>hoje</strong> provavelmente<br />

com a exclusão implícita <strong>da</strong> África Austral) ain<strong>da</strong> é designa<strong>do</strong> por África Negra.<br />

Neste propósito ideológico, a um grupo humano, kuto <strong>da</strong> secular presença europeia<br />

'De referir ain<strong>da</strong> que a mestiçagem foi condena<strong>da</strong> pelos denomina<strong>do</strong>s racialiçtas, ou seja, pelos que<br />

protagonizaram as chama<strong>da</strong>s teorias científicas <strong>da</strong> raça, parque nela viam um processo de degeneraqão.<br />

Vários foram os cientistas ou, talvez melhor, pçeu<strong>do</strong>-cientistas, que assim se manifestaram. Gobineau,<br />

ti<strong>do</strong> como o pai dessas tais teorias, foi, nas palavras de Lévi-Slrausç (1970: 232), um deles. Jon A. Mjocn,<br />

autor de Harmonic nnd disharmonic race crossing, foi, seguin<strong>do</strong> Juan Comas (1970: 19), outro <strong>do</strong>s que<br />

condenaram a mestiçagem. Muitos outros poderiam ser adiciona<strong>do</strong>s a esta lista.<br />

i Vejam-se, por exemplo, as conclusões <strong>da</strong>s diferentes encontros patrocina<strong>do</strong>s pela UNESCO em<br />

1949,1951,1964 e 1966. Cf. a esse respeito Juan Comas et "1. (1970).<br />

j Tá nos anos 70 <strong>do</strong> século oasça<strong>do</strong>, auan<strong>do</strong> a imimacão de africanos, caribenhos e asiáticos para as<br />

nas grandes centros urbanos eindu5hialiw<strong>do</strong>s dessas&e;mas inetrópoles. %b a hegemonia <strong>do</strong> paradigma<br />

culturalista que então se vivia, em vez de raça - conceito que acaba sempre por lembrar um e~aizamento<br />

biológica e de má memória - introduziu-se o conceito de ehiia, mais conota<strong>do</strong> com vivências culhuais<strong>do</strong><br />

que com makizes biológicas, não obstante ser, por essa mesma razão, mais impreciso.<br />

Esta poshxa <strong>do</strong>s pan-africanistas é, ela própria, uma herança <strong>da</strong> conceito de raqa <strong>do</strong> século XSX e,<br />

comequentemente, <strong>da</strong> racialização que então çe fez <strong>do</strong> continente. Cf. a este respeito Appiah (1997: 38 e<br />

Seg?..) e Venãncio (2000: 19 e segs.).


no continente, é-lhe, enquanto tal, sonega<strong>da</strong> a participação no futuro <strong>da</strong> África liberta.<br />

Refiro-me aos mestiços7.<br />

2. Um olhar histórico sobre a situação social <strong>do</strong>s mestiços de origem europeia na<br />

África subsaariana leva-me a concluir que a sua formação e o subsequente estatuto<br />

social se processaram segun<strong>do</strong> três conjunturas determina<strong>da</strong>s: a <strong>do</strong> colonialismo<br />

arcaico, a <strong>do</strong> colonialismo moderno e a <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> pós-colonial.<br />

Durante o colonialismo arcaico, coincidin<strong>do</strong> com a vigência, em termos de história<br />

europeia, <strong>do</strong> mercantilismo ou capitalismo comercial, poucos foram os espaços<br />

directamente coloniza<strong>do</strong>s pelos europeus. Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Serra<br />

Leoa, a "Colónia de Angola" (a ci<strong>da</strong>de de Luan<strong>da</strong> e hinterland), o "Reino de Benguela<br />

(a ci<strong>da</strong>de de Benguela e lzinterlnnd), a colónia <strong>do</strong> Cabo, a ilha de Moçambique, a Libéria,<br />

conquanto constituí<strong>da</strong> sob os auspícios <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, foram <strong>do</strong>s poucos espaços<br />

onde a presenfa colonial europeia (ou americana, no caso <strong>da</strong> Libéria) se fez sentir<br />

efectivamente. Acrescentem-se a estas situações, patentea<strong>da</strong>s por uma relação colonial<br />

mais ou menos efectiva, outras, igualmente decorrentes <strong>da</strong> presença europeia na costa,<br />

mas que não resultaram em qualquer tipo de ocupação e de <strong>do</strong>minação política<br />

explícita. Refiro-me às muitas feitorias comerciais europeias, umas de teor mais formal,<br />

outras nem por isso, mas cuja existência, em qualquer <strong>da</strong>s circunstâncias, dependeu<br />

<strong>da</strong> vontade <strong>do</strong>s poderes tradicionais instituí<strong>do</strong>s. A hegemonia política <strong>do</strong>s Jolof e o<br />

império <strong>do</strong> Mali, na Senegâmbia, os reinos de Alla<strong>da</strong> e Daomé (actual Benin), Gengy<br />

(actual Togo) e Ashanti (actual Gana) são algumas <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des políticas que se<br />

articularam com os interesses <strong>do</strong>s europeus, permitin<strong>do</strong> que estes se estabelecessem<br />

comercialmente nos seus respectivos litorais. Do contacto humano <strong>da</strong>í resultante<br />

emergiram várias formas de miscigenação, umas apenas culturais, outras igualmente<br />

biológicas (Guyot 2002; Silveira 2004).<br />

A mestiçagem ocorri<strong>da</strong> nesta conjuntura, anterior a racialização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

tendeu a diluir-se nas socie<strong>da</strong>des locais, sobreviven<strong>do</strong> apenas em termos linguística-<br />

culturais sob a forma <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s crioulos. Quer tal dizer que, em termosbiológicos,<br />

'Terá si<strong>do</strong> na Conferência de Cotonou (1956/1957) que se generalizou a ideia de queos mestisos (de<br />

origem europeia, leia-se) não teriam fumo em Africa, ao que parece, ideia constante <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

potências coloniais face às indeoendênciaç aue se avizinhavam. Cf. N'Diave (1992). De qualauer mo<strong>do</strong>,<br />

2 . . . A<br />

vale referir que o estatuto social <strong>do</strong>s mestigoç de origem europeia era partilha<strong>do</strong> pelos mestiços <strong>do</strong>utras<br />

origem e matrizes, que, no seu conjunto, constituem o que Jean Franco& Bayart (1999), invocan<strong>do</strong> a tese<br />

primordialista, designa par minorias <strong>do</strong>minantes alógenas, referin<strong>do</strong>-se, começsa expressão, aquelesque,<br />

assumin<strong>do</strong> eçtatutosprivilegia<strong>da</strong>çnaççocie<strong>da</strong>des africanas,são ou foram estigmatiza<strong>do</strong>s pelanão pertença<br />

à terra, pela sua característica náo autóctone. Neste grupo incluiuo mesmo autocpara alérn<strong>do</strong>smestiços<br />

referi<strong>do</strong>s, as minorias crioulas, a aristocracia árabe que controlou o sultanato <strong>do</strong> Zanzibar, assim como as<br />

minorias asiáticas presentes em países <strong>da</strong> África oriental.<br />

A tese primardialita invoca<strong>da</strong> tem a ver com as situaçãeç em que a identi<strong>da</strong>de colectiva retira de<br />

uma pressuposta partilha <strong>do</strong> mesmo sangue, <strong>do</strong> mesmo solo e <strong>da</strong> mesma língua a sua afirmaçáo como<br />

grupo unifica<strong>do</strong> e distinta. 0s sentimentos de pertensa e de diferenciagáo que, assim, se desenvolvem<br />

acabam, quan<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>s ao extremo, por cegar os 51ipos que deles partilham. Cf. a este propósito Rex<br />

(1988: 48 e se@.) e Appadurai (2004: 186 e çegç.).


é, em muitas <strong>da</strong>s situações, praticamente impossível detectar, a olho nu, a mestiçagem<br />

biológica. Será este, entre outros, o caso <strong>da</strong> Serra Leoa, ex-colónia britânica, com os<br />

krioç, <strong>da</strong> Libéria, <strong>do</strong> Togo [com os saros (provenientes <strong>da</strong> Serra Leoa) e com os<br />

"brasileiros"] de São Tomé e Príncipe, na África lusófona, e provavelmente o <strong>da</strong> região<br />

de Casamance, no sul <strong>do</strong> Senegal.<br />

A par destas reali<strong>da</strong>des, existem outras em que os mestiços assumem, quer em<br />

termos numéricos, quer em termos de estatuto social, um lugar mais visível e mais<br />

preponderante na socie<strong>da</strong>de em que se integram. Fazem parte deste grupo países<br />

como Cabo Verde e Angola, conquanto aqui a mestiçagem não seja extensível a to<strong>do</strong><br />

o país, como, de certa forma, acontece em Cabo Verde. Esta particulari<strong>da</strong>de tem, aliás,<br />

suscita<strong>do</strong> alguma controvérsia a propósito <strong>da</strong> aplicação <strong>do</strong> termo crioulo e seus<br />

deriva<strong>do</strong>s (socie<strong>da</strong>de e comuni<strong>da</strong>de crioula) à socie<strong>da</strong>de angolana. Presos ao modelo<br />

cabo-verdiano, onde, para além <strong>da</strong> mestiçagem generaliza<strong>da</strong>, uma língua crioula<br />

viabiliza a uni<strong>da</strong>de cultural <strong>do</strong> arquipélago, alguns investiga<strong>do</strong>res têm contesta<strong>do</strong> a<br />

proposta de um intelectual angolano, já faleci<strong>do</strong>, Mário António (1968), no senti<strong>do</strong><br />

de tornar extensível, "ao menos ao longo <strong>do</strong>s séculos XVII, XVIII e XIX" (p. 17), a<br />

Luan<strong>da</strong> (assim como a ouhas ci<strong>da</strong>des fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos portugueses naÁfrica ocidental)<br />

a designação de crioulo. Sem querer entrar nesta polémica por mim suficientemente<br />

participa<strong>da</strong> noutros lugares (1996b), apraz-me, de momento, realçar o facto de que os<br />

mestiços em Angola, os cabo-verdianos (e eventualmente outros mestiços) na Guiné-<br />

Bissau ou ain<strong>da</strong> os crioulos <strong>da</strong> Serra Leoa e os <strong>da</strong> Libéria, em situação de minoria na<br />

socie<strong>da</strong>de envolvente, acabam por constituir gmpos de stntus, conceito devi<strong>do</strong> a Max<br />

Weber, na sua primeira formulação, e a Wallerstein (1972), na sua contextuaiiiação<br />

africana. Trata-se de um conceito que define agrupamentos sociais, cuja coesão é<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente devi<strong>da</strong> a critérios de honra e prestígio, i.e., critérios de ordem<br />

social e cultural. Diferentemente <strong>do</strong> conceito de elite, o de stntus abarca no seu seio<br />

elementos que não pertencem ao topo <strong>da</strong> hierarquia social, não queren<strong>do</strong> isto dizer<br />

que não possam ser facilmente guin<strong>da</strong><strong>do</strong>s para esse topo com a aju<strong>da</strong> <strong>do</strong>s que, sen<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> seu stntus, ocupam aíposições relevantes (Venâncio 1996b: 28). No caso angolano,<br />

a identificação simbólica deste grupo passará, entre outros ritos, pelo uso <strong>da</strong> língua<br />

portuguesa (cf. nota de ro<strong>da</strong>pé n."8), configuran<strong>do</strong> uma situação que,nasua essência,<br />

não é diferente <strong>da</strong> <strong>do</strong>s crioulos <strong>da</strong> Serra Leoa, descritos por Cohen (1981). Estes, não<br />

obstante terem (ou terem ti<strong>do</strong>) o krio como língua materna, tu<strong>do</strong> fazem (ou faziam; a<br />

investigação empírica <strong>da</strong>ta de 1970) para <strong>do</strong>minarem perfeitamente o inglês. "In<br />

pre<strong>do</strong>minantly Creole schools, children are punished when they <strong>do</strong> not speak in<br />

English, and in many professional Creole homes parents insist that their children<br />

speak English" (Cohen 1981: 57).<br />

O <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> português em Luan<strong>da</strong> (e, por derivação, em Angola), enquanto<br />

critério de diferenciação social, é <strong>hoje</strong>, contu<strong>do</strong>, partilha<strong>do</strong> por outros grupos que<br />

formam as elites culturais e políticas luandenses, como o comprovam varia<strong>do</strong>s excertos<br />

<strong>da</strong> literatura angolanas e os resulta<strong>do</strong>s de um projecto sobre a "Origem étnica,<br />

competência em língua portuguesa e consciência política em L~an<strong>da</strong>"~, por mim


coordena<strong>do</strong> e com investigação de terreno a incidir no ano de 1996. Entre os entre-<br />

vista<strong>do</strong>s, membros <strong>do</strong> que se poderá considerar como classe média, 95,0% declararam<br />

falar português em casa, o que, em si, denota o estatuto <strong>do</strong> português não só como<br />

primeira língua ou língua materna, mas também como o idioma preferencial para a<br />

ascensão social.<br />

2.1. A problemática <strong>da</strong> mestiçagem em Angola, a mestiçagem e a criouli<strong>da</strong>de<br />

cabo-verdiana, a criouli<strong>da</strong>de são-tomense, os cabo-verdianos na Guiné-Bissau e a<br />

existência aí de um crioulo deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> português, assim como o crioulo de Casamance,<br />

igualmente deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> português, são fenómenos que encontram explicação<br />

quer na conjuniura histórica em que os contactos se deram, quer na natureza<strong>da</strong> relação<br />

colonial imposta pelos portugueses. A falta de braços para a manutenção de um tão<br />

vasto império, a posição social e a postura ética <strong>do</strong>s que se aventuraram, assim como<br />

as estratégias de inserção social que localmente desenvolveram, culminaram em<br />

processos de mestiçagem e consequentes crioulizações, que <strong>hoje</strong>, salvaguar<strong>da</strong><strong>do</strong>s pela<br />

distância <strong>do</strong> olhar e sem querer comungar de forma acrítica os princípios <strong>do</strong> lusotropicali~mo'~,<br />

não podemos deixar de considerar como estratégias razoavelmente<br />

eficientes para a prossec~ição <strong>do</strong>s objectivos a que se propunham: a sobrevivência em<br />

terras inóspitas e a realização <strong>do</strong>s negócios almeja<strong>do</strong>s.<br />

O apogeu deste processona costa ocidental africana deu-se, em termosde história<br />

portuguesa, durante a vigência <strong>do</strong> que alguns historia<strong>do</strong>res designam por I1 Império<br />

(que vai mais ou menos de fins <strong>do</strong> século XVI à independência <strong>do</strong> Brasil, em 1822),<br />

centra<strong>do</strong>no Atlântico e marca<strong>do</strong>-pelo menos até Pombal-por uma certa fragili<strong>da</strong>de<br />

de Lisboa, enquanto capital política e administrativa <strong>do</strong> império. Em termosde história<br />

europeia, coincide com o perío<strong>do</strong> mercantilista (sécs. XVI-XVIII) ou, talvez mais<br />

explicitamente, com o perío<strong>do</strong> que antecedeu o capitalismo industrial e a colonização<br />

moderna de África, processos que vieram marcar um <strong>do</strong>s primeiros e principais<br />

momentos <strong>do</strong> que <strong>hoje</strong> designamos por globalização, fenómeno que, por natureza,<br />

não é propício a formação de tais nichos humanos e linguísticas. Foi, assim, que, ora<br />

a revelia <strong>do</strong> poder central de Lisboa, ora gozan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s circunstâncias hiitóricas <strong>do</strong><br />

mercantilismo, se formaram as socie<strong>da</strong>des cabo-verdiana e são-tomense, assim como<br />

~Hortênçia, tinha de lhe levar num tipo filho de boa gente, filho de família, forma<strong>do</strong>,saubessefalar<br />

bem o portuziiêç, resveitasamente maneira<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>», coeta um Dai ~reocuva<strong>do</strong> çobrea futuro eenro,<br />

nc roilinncc .Mnlo, AIA ~li.\iririn, dc Bo2vrrihir.i Card~so (I'JYV, Porro: Campo <strong>da</strong>s Letras.<br />

' Inscrirri ino C2iitro dc Estu<strong>do</strong>s Soriais n.'PI.US /C CULIGU. 93).<br />

actiial I:iind.i\.io p.7r.i a CiCi>ci, L. a'lecnolugia, e pelo Iiistinitu Cnmüc, ao aùriça <strong>do</strong> Programa I.iisiijni>.<br />

N*lc participaram, como invcshçnilur:~, Alcides Monteiro (Cniverimbo<br />

Nzntuzula íLiiiveisi<strong>da</strong>dcAeastii>lio " I\'etd) eSatr'rci2 Ferreira (MiitistSriu <strong>da</strong> iducac~uiAii~ola1. - .<br />

"Gilberto Freyre, a quem se deve a criaçáo <strong>do</strong> luso-tmpicalismo, realça no seu livminaugual, Cnsa<br />

Grande b Senmln (1." ed. de 1933), três princípios nortea<strong>do</strong>res <strong>da</strong> presenga porkguesa nos trópicos: a<br />

mobili<strong>da</strong>de, a misabili<strong>da</strong>de e a aclùnatabili<strong>da</strong>de.<br />

. ., - . . -


ganharam influência cultural e política, junto <strong>da</strong>s chefias <strong>da</strong> África Ocidental, os<br />

chama<strong>do</strong>s ln~zça~ios. Eram estes con~erciantes portugueses, a quem não terá falta<strong>do</strong><br />

espírito de aventura ou razões bastantes para serem considera<strong>do</strong>s como fugitivos.<br />

Eram provenientes sobretu<strong>do</strong> <strong>da</strong> ilha de Santiago, em Cabo Verde, e seriam inicialmente<br />

brancos. Entre eles muitos seriam judeus e ain<strong>da</strong>, segun<strong>do</strong> Boulègue (1989:<br />

12), outros seriam europeus não portugueses, mas culturalmente assimila<strong>do</strong>s a estes.<br />

A sua presença na costa africana deu origem a comuni<strong>da</strong>des mestiças que, com o<br />

tempo, se foram tornan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais negras, não obstante continuarem a considerar-se<br />

portuguesas. Foram encontra<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des destas em Bezeguiche (na<br />

ilha de Goreia, em frente a Dacar), no Rio Fresco (Rufisque, junto a Dacar) e até em<br />

Tumba (Rotumba), na actual Serra Leoa (Mendy 1994: 110).<br />

Os lança<strong>do</strong>s eram coadjuva<strong>do</strong>s na sua tarefa pelos grumetes, africanos "semidestribaliza<strong>do</strong>s<br />

que se consideravam a si próprios 'cristãos', 'civiliza<strong>do</strong>s' e, portanto,<br />

um nó acima <strong>do</strong>s 'gentios', porque eram frequentemente baptiza<strong>do</strong>s e (eram) capazes<br />

de falar porhiguês ou crioulo" (Mendy 1994: 111). A duali<strong>da</strong>de aqui regista<strong>da</strong> entre<br />

lança<strong>do</strong>s e grumetes encontramo-la também em Angola, personifica<strong>da</strong>, desta feita,<br />

pelos avia<strong>do</strong>s e pelos pumbeiros descalços. Começaram os avia<strong>do</strong>s por ser, após a<br />

proibição <strong>do</strong> comércio no sertão aos brancos (e eventualmente aos mestiços claros"),<br />

sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s e funcionários baixos que, a par <strong>da</strong> sua activi<strong>da</strong>de principal, exerciam o<br />

comércio no interior <strong>da</strong> colónia. Adquiriam normalmente crédito junto de comerciantes<br />

estabeleci<strong>do</strong>s em Luan<strong>da</strong>, a quem vendiam depois os escravos e produtos<br />

como a cera e o marfim, resgata<strong>do</strong>s no interior. Eram neste resgate auxilia<strong>do</strong>s muitas<br />

vezes pelos pumbeiros descalços, negros "com calções", i.e., "semi-destribaliza<strong>do</strong>s"<br />

(ou, talvez melhor, semi-integra<strong>do</strong>s na socie<strong>da</strong>de colonial). Estes, por seu la<strong>do</strong>,<br />

assuniiani niuihs vezes -mesmo após 1758 [ano em que esse comércio foi liberaliza<strong>do</strong><br />

(cf. Venâncio 1996a: 153 e segs.)] -, o papel de intermediários directos entre os<br />

comerciantes de Luan<strong>da</strong> e as chefias africanas, circunstância em que acabavam por<br />

concorrer com os avia<strong>do</strong>s.<br />

Diferentemente <strong>do</strong> que se passou com os lança<strong>do</strong>s, cujas comuni<strong>da</strong>des acabaram<br />

por se diluir nas socie<strong>da</strong>des locais (pelo que em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX poucas ou<br />

nenhumas se identificavam ain<strong>da</strong> como tal), os avia<strong>do</strong>s, protagonistas que foram -<br />

quer na quali<strong>da</strong>de de brancos, quer de mestiços (sobretu<strong>do</strong> enquanto mestiços claros)<br />

-de processos de mestiçagem, inscreveram a sua acção numa socie<strong>da</strong>de colonial cuja<br />

vertente mestiça perdurou até aos nossos dias.<br />

Como acontecera com a presença portuguesa em África, acontecera com as outras<br />

potências coloniais europeias, embora, por vezes, a mestiçagem e a crioulização não<br />

atingissem as dimensões <strong>da</strong>s zonas de influência portuguesa. Os mulatos e as comuni-<br />

" Não é possível identificar com exactidiio na legislação <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> mercantilista e na <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s<br />

mais recentes esta sub-categoria de mcsiiços, que <strong>hoje</strong> seriam designa<strong>do</strong>s por "cabritos" (cruzamento de<br />

branco com negro ou mulato com mulato) ou simplesmente por brancos (no caso <strong>do</strong> cruzamento entre<br />

"cabritos" e brancos).


A PROBLEMATICA SOCIAL DOS MESTICOS EM AFRICA<br />

. ... . ... . .... . .. . .. . . .. . .. . .. . ... . . ... . .. . .... . .. .. . .. . .... . .... . .. .. . ... . .. .<br />

<strong>da</strong>des crioulas de São Luís, no norte <strong>do</strong> Senegal, e <strong>da</strong> ilha de Goreia, são um exemplo<br />

de como tais processos, em África, não se circunscreveram ao mun<strong>do</strong> de colonização<br />

portuguesa, porquanto uma explicaçáo para este último caso possa ser encontra<strong>da</strong><br />

na semelhança, quanto aos méto<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>s colonizações portuguesa e francesa e ain<strong>da</strong><br />

no facto de a primeira colonização (ou apenas presença) europeia nas zonas em causa<br />

ter si<strong>do</strong> a portuguesa.<br />

De mais difícil explicação será o caso <strong>da</strong> Serra Leoa, que é, de qualquer forma,<br />

um caso pontual no que diz respeito a política colonial britânica em África. Em levas<br />

sucessivas, a partir <strong>do</strong> século XVIII, os britânicos desembarcaram em Freetown<br />

(fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1787 e actual capital <strong>do</strong> país), no senti<strong>do</strong> de aí criarem um entreposto<br />

comercial, antigos escravos e "indesejáveis" britânicos (ratoneiros e prostitutas<br />

londrinos) que se terão miscigena<strong>do</strong> com os autóctones e, nessa medi<strong>da</strong>, mesmo que<br />

imperceptivelmente em termos físicos, estarão na origem <strong>do</strong>s actuais krios (cf. Ki-<br />

Zerbo, I, s.d.: 300 e segs.).<br />

3. Se a mestiçagem aconteci<strong>da</strong> na conjunh~ra mercantilista ou de colonialismo<br />

arcaico tendeu, em termos biológicos, a diluir-se nas socie<strong>da</strong>des locais, confundin<strong>do</strong>-<br />

se, por conseguinte, com uma categoria linguística-cultural, o mesmo não se passa<br />

com os mestiços que emergem na conjuntura moderna, com o colonialismo moderno.<br />

Estes desempenham funções diversas nos países de origem e detêm, consequen-<br />

temente, estatutos diferencia<strong>do</strong>s de país para país, de grau para grau de mestiçagem.<br />

Se, por um la<strong>do</strong>, usufruem estatutos sociais melhora<strong>do</strong>s em relação à maioria <strong>da</strong><br />

populaqão negra, por outro, não deixam de ver o seu destino inscrito numa estrutura<br />

social hierárquica, em que o topo era ocupa<strong>do</strong> pelo branco. Vêem-se, por conseguinte,<br />

confronta<strong>do</strong>s com uma lógica de diferenciação social para a qual o papel de inter-<br />

mediários que tradicionalmente ocupavam nem sempre é uma mais-valia areivindicar.<br />

Donde, aliás, se poderá inferir o seu posicionamento contra o colonialismo e a sua<br />

participação nas hostes nacionalistas.<br />

Foi este um caso generaliza<strong>do</strong> na África lusófona, mas não só. Aconteceu um<br />

pouco por to<strong>da</strong> a África sub-saariana, conquanto nem sempre se assistisse aí à iden-<br />

tificação, pelo menos em termos ideológicos, <strong>do</strong>s mestiços com a maioria <strong>da</strong> população<br />

negra, como acontecia na África lusófona. Veja-se, por exemplo, a esse propósito, o<br />

clube de mestiços que existiu na República Centro-Africana antes <strong>da</strong> independência<br />

(N'Diaye 1992).<br />

O papel intermediário desempenha<strong>do</strong> pelo grupo durante o colonialismo arcaico<br />

e O moderno, quer no comércio, quer na administração, continuou a ser desempenha<strong>do</strong><br />

após as independências, conquanto não em relação às metrópoles coloniais, mas sim<br />

em relação às multinacionais e às hegemonias políticas internacionalmente vigentes.<br />

Muitas vezes esse papel intermediário, partilha<strong>do</strong>, de resto, por outras elites, como já<br />

acontecera na conjuntura colonial moderna, tem uma assunção política, conquanto<br />

raramente de primeira linha. É esta a situação espelha<strong>da</strong>, pelo menos durante a<br />

vigência <strong>do</strong> monoparti<strong>da</strong>rismo, pelos mun<strong>do</strong>s políticos angolano e moçambicano.


Noutras situações, esse papel intermediário, não deixan<strong>do</strong> de ser assumi<strong>do</strong>, é-o<br />

num figurino mais individualista, o que se verificou, por exemplo, em Angola,<br />

aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> liberalização económica (Hodges 2002: 65 e segs.), em que a elite póscolonial,<br />

de que fazem parte mestiços, usan<strong>do</strong> a sua posição na nomenclatura estatal,<br />

pode assenl~orar-se de uma parte considerável <strong>da</strong>s antigas empresas estataisi2.<br />

Trajectórias igualmente individualistas, inscritas embora em matrizes diferentes,<br />

verificam-se no Togo (Guyot 2002), onde os mestiços de origem europeia (poden<strong>do</strong><br />

os pais ser ou não oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s ex-metrópoles) se relacionam de maneira diferencia<strong>da</strong><br />

com a socie<strong>da</strong>de togolesa, consoante o facto de serem filhos de mães ou de pais<br />

europeus. Se os primeiros, i.e., os filhos de mães europeias, tendem, por razões que se<br />

prendem com o papel activo <strong>da</strong>s mães na educação <strong>do</strong>s filhos, a identificar-se mais<br />

com a Europa, os segun<strong>do</strong>s, filhos de pais europeus, educa<strong>do</strong>s pelas mães africanas,<br />

tendem, por seu la<strong>do</strong>, a inscrever os seus destinos em África.<br />

4. Pelo exposto, pode-se concluir que, se o posicionamento social <strong>do</strong>s mestiços<br />

de origem europeiana África sub-saariana é privilegia<strong>do</strong>, essa posição, assim como a<br />

natureza <strong>da</strong> própria mestiçagem, variouno decurso de três conjunturas: a <strong>do</strong> colonia-<br />

lismo arcaico, a <strong>do</strong> colonialismo moderno e a <strong>do</strong> pós-colonialismo.<br />

Um entendimento mais cabal <strong>do</strong> fenómeno levar-nos-ia a comparar a experiência<br />

africana, a esse propósito, com a asiática. Para alguns estudiosos destas matérias será,<br />

porventura, a comparação com o mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s Caraíbas a mais plausível. Penso que<br />

não o é pelo simples facto de que neste universo insular estamos em presença de<br />

socie<strong>da</strong>des insulares e de populações que, na sua esmaga<strong>do</strong>ra maioria, são desloca<strong>da</strong>s<br />

ou, talvez melhor, imigrantes. Pelo contrário, a comparação com o mun<strong>do</strong> asiático<br />

tem a vantagem de estarmos em presença de um fenómeno sociológico que, na sua<br />

génese, não é diferente <strong>do</strong> de África, espelhan<strong>do</strong> esta<strong>do</strong>s identitários passíveis de<br />

serem entendi<strong>do</strong>s como primordiais, servin<strong>do</strong>, aliás, nessa condição de suporte a<br />

ambos os nacionalismos.<br />

Como em África, também na Ásia a mestiçagem e os mestiços representam<br />

fenómenos de alogenei<strong>da</strong>de, parautilizar, mais uma vez, a expressão de Jean François<br />

Bayart (1999). Inscrevem-se, por conseguinte, de uma forma específica, no destino<br />

colectivo <strong>do</strong>s países a que pertencem. No contexto asiático, são igualmente visíveis<br />

as três conjunturas de mestiçagem referi<strong>da</strong>s a propósito de África. Os chama<strong>do</strong>s<br />

"portugueses" de Malaca, <strong>do</strong> Sri Lanka, os macaenses, são alguns exemplos <strong>do</strong>s<br />

processos de mestiçagem, to<strong>do</strong>s de origem portuguesa, aconteci<strong>do</strong>s sob a vigência<br />

<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> mercantilista e <strong>do</strong> colonialismo arcaicona Ásia. Os euro-asiáticos de Hong<br />

Kong, os mestiços de Singapura, perfazen<strong>do</strong> um número de cerca de 2% <strong>da</strong> popula$áo<br />

total (<strong>do</strong>s quais muitos são originários de Malaca, i.e., são luso-malaios) inscrevem-<br />

"C1 2 csic rcspeiio o arliso '.Riryir.za iiiu<strong>do</strong>u de ror 0 s nossos milionárioh", piiblica<strong>do</strong> pclui~rnal<br />

A,zgolr3~~sj na sua ediDo de IR dc lanciro de 2C03 Estc arlico - desencadcoii um, pulGmico coni f~rcs<br />

repercussões internacionais que está longe de estar sana<strong>da</strong>.


-se, quanto à origem, posicionamento e destimo, na conjuntura marca<strong>da</strong> pelo colonia-<br />

lismo moderno. Asua situação em perío<strong>do</strong> pós-colonial não é, na essência, diferente<br />

<strong>da</strong> <strong>do</strong>s seus cougéneres africanos, conquanto se posicionem, como tal, de forma mais<br />

afirmativa e formal13 num mun<strong>do</strong> culhiralmente desterritorializa<strong>do</strong> e globaliza<strong>do</strong>.<br />

A diferença mais significativa entre as experiências africana e asiática residirá na<br />

mestiçagem surgi<strong>da</strong> com o colonialismo arcaico. Diferentemente <strong>do</strong>s africanos, os<br />

asiáticos nem sempre granjearam estatutos privilegia<strong>do</strong>s. É esse, por exemplo, o caso<br />

<strong>do</strong>s "portugueses" de Malaca, identifica<strong>do</strong>s como pesca<strong>do</strong>res de camarão, The Shrimp<br />

People, como consta <strong>do</strong> título <strong>do</strong> romance de um <strong>do</strong>s mais conceitua<strong>do</strong>s escritores de<br />

Singapura, Rex Shelley, de origem portuguesa, profissão que é ti<strong>da</strong>, na ver<strong>da</strong>de, como<br />

<strong>da</strong>s mais baixas e desprestigia<strong>da</strong>s na Ásia. Nas conjunturas seguintes, os mestiços<br />

lograram, porém, ascender a estatutos mais privilegia<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> valer, para o efeito,<br />

o seu lugar de interlocutores naturais entre os mun<strong>do</strong>s asiático e europeu.<br />

A situação minoritária, não privilegia<strong>da</strong> em termos sociais, <strong>do</strong>s mestiços <strong>da</strong> pri-<br />

meira geração ou conjuntura deve-se,por um la<strong>do</strong>, ao facto demuitas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />

asiáticas, diferentemente <strong>da</strong>s africanas, patentearem, aquan<strong>do</strong> <strong>do</strong> impacto colonial,<br />

níveis de desenvolvimento que ihes permitiram fazer face aos efeitos desestnihirautes<br />

desse esse mesmo colonialismo, e, por outro, ao facto de as potências europeias que<br />

estiveram na origem de tais processos de mestiçagem, como é o caso de Portugal,<br />

terem perdi<strong>do</strong> protagonismo na conjuntura moderna em favor de uma potência que<br />

entretanto impôs a sua ordem imperial: a Inglaterra.<br />

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RACISMO, NEO-RACISMO E ANACRONISMO<br />

CIENT~FICO<br />

1. A teoria <strong>da</strong>s duas raças (na Europa)<br />

«Crinlrçn nitrdn, qaerin ser brniico pnrn que<br />

os brnncos me ano chn~iinsse~iz scgro.<br />

Hoiire~ii, qircrin scrlregro, pnrn qrir os iiegros<br />

File 115o odinsselit» (Pepeteln, 1993,<br />

Mnyonibe, p. 12).<br />

Alguns <strong>do</strong>s conflitos mais recentes em diferentes populações (Hutus / Tutsi em<br />

África; Sérvios / Bósnios e Croatas na ex-Jugoslavia, etc.) têm leva<strong>do</strong> algtm autores<br />

a tentar uma históriana perspectiva conflitual de populações que se opõem por razões<br />

de origem éhica e basicamente diferenças físicas de matriz racial. É neste senti<strong>do</strong><br />

que M. Kilani (1997) apresenta uma curiosa teoria <strong>da</strong>s «duas raças» desenvolvi<strong>da</strong> ao<br />

longo de gerações na Europa, onde mito e observação científica se casam perfeita-<br />

mente. Talvez a teoria dualista de C. levi-Strauss, segun<strong>do</strong> a qual o nosso cérebro<br />

funciona por oposições binárias, possa <strong>da</strong>r um contributo inestimável para apreciação<br />

de muitas oposições e algumas confrontações.<br />

Em termos de evocação pessoal não posso deixar de testemunhar o espanto <strong>do</strong><br />

director <strong>do</strong> Musée Royal de l'Afrique Centrale (Tervuren, Bruxelas) quan<strong>do</strong>, ao<br />

descrever a minha experiência <strong>do</strong> terreno, expliquei de que forma os trabalha<strong>do</strong>res<br />

Cokwe <strong>da</strong> Diamang (Companhia de Diamantes de Angola) desempenhavam com<br />

brio as suas tarefas, mesmo as mais arrisca<strong>da</strong>s (diria sobretu<strong>do</strong> as mais arrisca<strong>da</strong>s),<br />

como manobrar complica<strong>da</strong>s escava<strong>do</strong>ras na remoção de terras. A surpresa <strong>do</strong> meu<br />

interlocutor era tal que insistiu: «mas eram mesmo Cokwe.? É que <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

honteira, no Katanga (<strong>hoje</strong> Shaba), observava o director, os Cokwe são considera<strong>do</strong>s<br />

incompetentes. Quem executa essas tarefas são os Luba, vistos como um grupo<br />

superior.<br />

'Departamento de Antropologia, Universi<strong>da</strong>de de Coimbra


O raciochio não é muito diferente <strong>do</strong>s conceitos de contaminação étnica (anos<br />

30) e limpeza étnica (anos 90 na ex-Jugoslávia), embora apresente um referencial<br />

diferente: antes era raça agora é a cultura.<br />

Estamos na linha <strong>do</strong> relativismo cultural (ou <strong>do</strong> culturalismo americano) que fez<br />

época como reacção às teorias racistas e se apresenta <strong>hoje</strong> numa perspectiva triunfalista<br />

e isolacionista trazen<strong>do</strong> implícito um relativismo moral e cognitivo que leva, no limite,<br />

ao diferencialismo absoluto, a naturalização <strong>da</strong> xenofobia e, por fim, à própria negação<br />

<strong>da</strong> partilha de uma natureza comum a to<strong>do</strong>s os humanos (ver MARQUES, 2000).<br />

O multiculturalismo (cheio de boas intenções) tem veicula<strong>do</strong> muitos suportes a<br />

estes novos racismos de matriz cultural e às «identi<strong>da</strong>des assassinas>, (MAALOUF,<br />

1999) <strong>do</strong>s nossos dias.<br />

Não falta sequer uma componente ju<strong>da</strong>ico-cristã neste messianismo cultural,<br />

até porquese é indiscutívelque oessencial <strong>da</strong> mensagem cristãé o .cagapé,, desalvacão<br />

para to<strong>do</strong>s, continua a militar a ideia que «os deuses <strong>do</strong>s pagãos são demónios» (ver<br />

PINA - CABRAL, 1992), e esta demonização recria uma espécie de raças culturais<br />

que, não sen<strong>do</strong> superiores nem inferiores (como o racismo clássico pretendia), são<br />

diferentes e por isso privilegia a diferença a tal ponto que a essencializa, produzin<strong>do</strong><br />

constantemente minorias étnicas e reforçan<strong>do</strong> até ao limite a dinâmica <strong>do</strong>s processos<br />

identitários.<br />

Já não é apenas o evitar <strong>da</strong> assimilação em que os grupos minoritários se<br />

«perderiam» nas grandes comuni<strong>da</strong>des, mas a recusa de qualquer forma de partiiha<br />

cultural para preservar nd eternum a identi<strong>da</strong>de cultural.<br />

To<strong>do</strong>s os grupos humanos que sobreviveram até <strong>hoje</strong> evoluí~am no tempo<br />

partilhan<strong>do</strong> genes, características físicas e «artes de sobrevivência^^ (MORGAN, 1877)<br />

e é suposto admitir que se houve linhas puras quer no senti<strong>do</strong> biológico quer no<br />

aspecto cultural, essas lias puras há muito se extinguiram. Interrogan<strong>do</strong>-se sobre a<br />

origem <strong>da</strong> exogamia nas práticas <strong>do</strong> casamento, TYLOR (1889) ensaia uma teoria<br />

sobre os gmpos humanos primordiais que aparecen<strong>do</strong> em diferentes pontos <strong>da</strong> terra<br />

(o registo fóssil actual não contraria, favorece antes a ideia de diferentes ber~os <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de) ter-se-iam confronta<strong>do</strong> com um dilema sempre que novos grupos se<br />

encontraram: «to marry out or be killed out» é a hipótese vigorosa de Tylor em que<br />

mais tarde C. LEVI-STRAUSS, (1946) viria a fun<strong>da</strong>mentar o seu raciocinio para explicar<br />

a proibição <strong>do</strong> incesto como reverso <strong>da</strong> me<strong>da</strong>lha <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de reciproci<strong>da</strong>de e<br />

aliança (ou seja o amarry outn de Tylor). Não é preciso ir muito longe na especulayão<br />

sobre teorias antropológicas para entender que as estratégias de cooperação (via<br />

aliancas matrimoniais, culturais ou outras) são construtivas porque inova<strong>do</strong>ras. A<br />

outra alternativa (~be killed out.) não tem história.


RACISMO, NEO.RACISM0 E ANACRONISMO cIEM~FICO<br />

... . ... . .. . .. . ..... . . .. . . . . .. . .... . ... .. . .. .. . .. .. . . .. . ... . .... . ... . .. . ... . . .. . ... . ..... . .. . ... . ... . .... .. . .... . ... . .. . . .. . .. . ... . ... . .. . .. . .... . ..,, ,. . . .. . ... . .... . .. . :<br />

i 163<br />

É uma evidência no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seres vivos que a super-especialização orgânica<br />

é um caminho sem regresso. As linhas puras não têm futuro. To<strong>da</strong> a dinâmica evolutiva<br />

é de permuta de informação genética (reprodução sexua<strong>da</strong>) e de troca de invenções e<br />

a<strong>da</strong>ptações culturais.<br />

Aglobalização actual está a acelerar o processo, jámuito óbvio em muitas regiões,<br />

de muitos países assumirem ca<strong>da</strong> vez mais que são multiculturais e multiétnicos. Se<br />

os meios modernos de comunicação permitem aos grupos emigra<strong>do</strong>s manter laços<br />

fortes com o país de origem e assim evitar a assimilação ou seja a completaintegração<br />

e total apagamento <strong>do</strong> grupo, e essa é uma preciosa conquista <strong>do</strong> nosso tempo, é por<br />

outro la<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mental que não se favoreçam os mecanismos que levam ao integrismo<br />

activo (por iniciativa <strong>do</strong> grupo minoritário) ou reactivo (como defesa à hostili<strong>da</strong>de<br />

exterior). A antropologia pode e deve desempenhar um papel operante no estu<strong>do</strong><br />

destes grupos com o objectivo declara<strong>do</strong> de facilitar uma integração cooperativa,<br />

sadia, criativa que evite tanto o integrismo isolacionista como a desintegração<br />

assimilacionista.<br />

Se <strong>hoje</strong> ninguém pode aceitar a ideia <strong>da</strong> assimilação «tout courtn que defendia<br />

que um grupo, «porque inferior e minoritário, se integrasse no outro superior e<br />

maioritário*, também é óbvio que os neo-racismos se afirmam no contexto<strong>do</strong>s grupos<br />

não integra<strong>do</strong>s queno limite, estan<strong>do</strong> fora de to<strong>da</strong>s as formas cooperativas,acabariam<br />

por desaparecer.<br />

O equívoconeo-racistanão tem futuro mas pode entretanto fazer muitos estragos,<br />

sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> os reflexos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> semostram activos comono caso <strong>da</strong><br />

invenção de três raças para classificar as actuais populações angolanas.<br />

3. Anacronismo cientqico ou «a raça <strong>do</strong> talvez* (em<br />

Angola)<br />

«Trngo cin isiia o iiicoscilidveleesfe éo JII~II<br />

~itotor. NILIII ir~iiverso de si111 e lifio, brnlico<br />

ou tzegro, eu represetito o tnlvez. Tnlvez é<br />

aio pnrn qrreiii quer ouvir siin c sigizificn<br />

siiit pnrn qriel>i quer ozrvir iiio». (Pepeteln<br />

Mnyoit~be 1993, p. 14).<br />

A facili<strong>da</strong>de com que em pouco tempo se passou de um racismo epidérmico<br />

(ten<strong>do</strong> por essência referencial a oposição <strong>da</strong>s cores branco/negro) ao racismo cultural<br />

(neo-racismo) em que o aparente zelo pela preservação <strong>da</strong>s diferenças culturais <strong>do</strong><br />

outro leva à recusa prática desse mesmo outro, suscita a discussão, umavez mais, <strong>do</strong><br />

que é afinal a raça.


Entre nós o assunto mereceu mesmo um colóquio (Maio de 1996) de que resultou<br />

um pequeno volume com o título: «O que é a raça? Um debate entre Antropologia e<br />

Biologia,, (Lisboa, Espaço Oikos, 1997), em que o contributo <strong>do</strong>s diferentes autores<br />

merece ao menos, uma breve referência.<br />

Verifican<strong>do</strong>-se que as variações dentro de uma mesma população são mais<br />

evidentes <strong>do</strong> que as variações de uma população para outra, é obvio que não tem<br />

senti<strong>do</strong> falar de raças humanas numa perspectiva de Antropologia biológica; <strong>da</strong>í a<br />

afirmação titular no contributo de A. Amorim:


RACISMO, NEORACISMO E ANACRONISMO CIEMIFICO<br />

: , .. . ... . ..... , . ..... , ... , .., . .. . ... . ... . ... . .. . . ... . . . .. . .. . , . .. , .... , ., ... , .. , .... , ... . ... . .. . .... . .. . . .. .. . .. . , .. , .. , .. , ..... , .. , . , . , .. , . ..... . ......... , . . .. . .... . , .<br />

i 165<br />

Quem conhecer, ain<strong>da</strong> que sucintamente, o sinuoso percurso <strong>do</strong> conceito de raça<br />

aplica<strong>do</strong> aos humanos no contexto histórico <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> natureza lidera<strong>do</strong> pelo<br />

grande cientista Lineu (Systema Naturae, 1730), sabe que o fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> méto<strong>do</strong><br />

classificatório transpôs para o manual académico quatro espécies de humanos,<br />

dividi<strong>do</strong>s pelos continentes conheci<strong>do</strong>s, diferencian<strong>do</strong>-as pelo óbvio, a cor <strong>da</strong> pele<br />

(como as raízes fascicula<strong>da</strong>s ou raízes apruma<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s plantas) e assim o género<br />

humano (genero Homo) abarcava quatro espécies distintas: Homo nmericnnus, Homo<br />

europneus, Homo nfricn?zzis e Homo nsintictis.<br />

Já tinha havi<strong>do</strong> muitos indivíduos resultantes de cruzamentos entre estes gmpos<br />

mas ain<strong>da</strong> não estava afina<strong>do</strong> o conceito genético que atribui à mesma espécie<br />

indivíduos que se cruzam entre si e dão descendentes férteis. Se assim fosse, Lineu<br />

teria altera<strong>do</strong> imediatamente a sua classificação reduzin<strong>do</strong> as quatro espécies<br />

propostas a unia só. Isso veio de facto a acontecer mas ficou a matriz deste equívoco<br />

classificatório <strong>da</strong>s quatro espécies que, não o sen<strong>do</strong>, persistiram como quatro raças<br />

(conceito muito mais vago e flexível em que as diferenças comportam a inter-<br />

fecundi<strong>da</strong>de entre as diferentes raças).<br />

Sen<strong>do</strong>, embora, uma classificação erra<strong>da</strong> a de Lineu relativamente ao conceito<br />

de espécie que se veio a estabelecer, a taxonomia proposta teve o mérito de situar o<br />

Homem na natureza, junto de plantas e animais que são o seu meio, ultrapassan<strong>do</strong> a<br />

abstracta e estéril referência medieval <strong>do</strong> nnimnlis rationnlis que não tinha favoreci<strong>do</strong><br />

nenhum avanço sobre o conhecimento objectivo <strong>do</strong> Homem.<br />

A naturalização <strong>do</strong> género Homo poderia ser um passo antecipa<strong>do</strong> para uma<br />

visão de equilíbrio, à época ain<strong>da</strong> possível, entre humanos e meio ambiente. Mas esta<br />

primordial classificação nasce afecta<strong>da</strong>, também ela, por um irreparável peca<strong>do</strong><br />

original, fruto <strong>do</strong> exacerba<strong>do</strong> etnocentrismo <strong>da</strong> época.<br />

Se a cor <strong>da</strong> pele servia perfeitamente de referencial classificatório, como as raizes<br />

e as folhas <strong>da</strong>s plantas e como as escamas <strong>do</strong> répteis, já o património moral atribuí<strong>do</strong><br />

às quatro espécies (que depois são quatro raças) releva <strong>da</strong> pura fantasia etnocêntrica.<br />

Assim o cientista Lineu avança cegamente para uma caracterização <strong>da</strong>s raças que<br />

depois faz <strong>do</strong>utrina:<br />

Homo nrnericnnus: vermelho, obstiia<strong>do</strong> regen<strong>do</strong>-se por costumes<br />

Homo eiiropaeiis : branco, inteligente, regen<strong>do</strong>-se por leis.<br />

Homo nsinticus : amarelo, rude, regen<strong>do</strong>-se por opiniões.<br />

Homo nfricnnus: preto, manhoso, regen<strong>do</strong>-se por caprichos.<br />

Esta mistura <strong>do</strong> óbvio e <strong>do</strong> preconceito vai marcar desde logo a origem <strong>da</strong><br />

Antropologia como disciplina académica e pode-se dizer que só caiu definitivamente<br />

com os crimes <strong>do</strong> nazismo e o horror <strong>do</strong> holocausto.


, .<br />

Prefacio ............................................................................................................................ 7<br />

António Custódio Gonçalves<br />

Conferência Iilntrgtrrnl<br />

Adriano Moreira .............................................................................................................. 13<br />

A persistência <strong>do</strong> Racismo<br />

Comz~nicações<br />

Adelino Torres ............................................................................................................... 23<br />

Racismo, islamismo político e moderni<strong>da</strong>de<br />

José Capela ................................................................................................................... 41<br />

Os colonos em escritos moçambicanos<br />

Joan Manuel Cabezas Lopez ........................................................................................ 55<br />

Racismo y pensamiento moderno: e1 ejemplo de la invención de 10s carnitas<br />

y de 10s subsahaxianas<br />

Manuel Ennes Ferreira ...................................................................................................... 65<br />

Integração económica em África: poder e identi<strong>da</strong>de<br />

Albert Roca ..................................................................................................................... 87<br />

Raza, lengua y cultura. Actualizaciones malgachcs<br />

Janos Riesz ................................................................................................................... 109<br />

Images d'Afrique - images d'africains. Comment parler de l'altérité raciale<br />

<strong>da</strong>ns les études littéraires?<br />

,<br />

AnaLuciaLopes . de Sá ....................................................................................................... 127<br />

Luan<strong>da</strong> literária a várias cores. O tema <strong>do</strong> racismo em Luandino Vieira e<br />

Uanhenga Xitu<br />

Arlin<strong>do</strong> Barbeitos ........................................................................................................... 139<br />

A raça ou a ilusão de uma identi<strong>da</strong>de definitiva<br />

A .<br />

José Carlos Venancio ......................................................................................................... 149<br />

A problemática social <strong>do</strong>s mestiços em África, a sua comparação com a<br />

situação asiática<br />

Manuel Laranjeira Rodrigues Areia ............................................................................... 159<br />

Racismo, neo-racismo e anacronismo científico

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