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O estado de faixa litorânea<br />
mais modesta do país tem uma<br />
manifestação artístico-cultural<br />
tão modesta quanto. Mas não no<br />
sentido de recursos e de potencial,<br />
e sim no de humildade. O<br />
<strong>Fandango</strong> paranaense é a tradição<br />
e o folclore em rica profusão<br />
de elementos e originalidade,<br />
porém limitada pela não menos<br />
tradicional fama do paranaense<br />
de não cantar seus feitos. Contudo<br />
as marcas do <strong>Fandango</strong><br />
compassadas no solado de madeira<br />
dos tamancos, continuando<br />
ecoando no oco do assoalho, e<br />
ribombando na cabeça de um<br />
número ascendente de interessados.<br />
Dentre eles, a autora da<br />
presente obra, hoje apaixonada<br />
pelo <strong>Fandango</strong> e eterna entusiasta<br />
os feitos de mestres, dançarinos<br />
e músicos, protagonistas de<br />
uma arte viva, pulsante e legitimamente<br />
paranaense.
<strong>Fandango</strong>,<br />
o bailado de gerações
Heloisa Garrett<br />
<strong>Fandango</strong>,<br />
o bailado de gerações
Produção Editorial<br />
Heloisa Garrett<br />
Capa:<br />
Jean Torres<br />
Fotografia da capa:<br />
Heloisa Garrett<br />
Revisão:<br />
Danielli Artigas<br />
Mário Lopes<br />
Orientadora:<br />
Eliane Basílio<br />
Curitiba<br />
2009
Para meus amados, amigos e<br />
todos aqueles que<br />
se emocionam com a harmonia<br />
da rabeca e da viola e com o<br />
batido dos tamancos.
Sumário<br />
Introdução.............................................................................................11<br />
O <strong>Fandango</strong>..........................................................................................15<br />
Fandangueiros......................................................................................19<br />
Família Pereira......................................................................................23<br />
Mulheres no <strong>Fandango</strong> .........................................................................27<br />
Um jovem Fandangueiro........................................................................31<br />
Fandanguará .......................................................................................37<br />
Associação Mundicuéra........................................................................41<br />
<strong>Fandango</strong> na Escola..............................................................................45<br />
Uma vida ao <strong>Fandango</strong>...........................................................................47<br />
Pesquisa..............................................................................................55<br />
Preservação.........................................................................................59<br />
Subindo a Serra...................................................................................61<br />
Dia de <strong>Fandango</strong>...................................................................................65<br />
Só o começo.......................................................................................71<br />
Anexo I - Contexto Caiçara .......................................................................75<br />
Anexo II - Características Gerais..............................................................77<br />
Posfácio - Modernidade e tradição, a encruzilhada do <strong>Fandango</strong>.................81<br />
Agradecimentos ..................................................................................87<br />
Onde saber mais sobre o <strong>Fandango</strong>, algumas dicas de leitura ....................89<br />
Referências bibliográficas.....................................................................93
Heloisa Garrett
Introdução<br />
De que adianta iniciar um processo de pesquisa de algo que já se conhece,<br />
quando o bom mesmo é ter aquela sensação de insegurança ao entrar em um<br />
ambiente desconhecido?<br />
Foi essa pergunta que me fiz quando tinha que tomar a importante decisão<br />
do que seria o meu objeto de pesquisa durante o meu Trabalho de Conclusão de<br />
Curso. Optei por um caminho desconhecido, enquanto era muito mais fácil apresentar<br />
um projeto de produto dentro de uma das áreas do jornalismo em que já<br />
atuo.<br />
Minha escolha foi a cultura popular. E ela não foi motivada por eu ser uma<br />
pessoa que goste de folclore ou das manifestações que têm origem no povo.<br />
Esta decisão foi motivada pela minha falta de conhecimento dentro dessa temática.<br />
Sabia da importância de conhecer mais sobre as origens da nossa cultura, saber<br />
o que é o folclore do Paraná, saber o que era esse <strong>Fandango</strong> que vez ou outra<br />
ouvia falar.<br />
Involuntariamente, quem me incentivou a escolher o <strong>Fandango</strong> foi uma<br />
amiga produtora cultural, Rejane Nóbrega, que desenvolveu alguns importantes<br />
projetos como congressos e seminários de Cultura Popular na minha cidade e<br />
eu, como assessora de imprensa na época, tive que descobrir na marra o que<br />
era <strong>Fandango</strong>, Boi-de-Mamão, Congada, entre outras danças típicas do nosso<br />
folclore.<br />
Quando comecei a falar que iria desenvolver uma pesquisa sobre o<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
11
<strong>Fandango</strong>, as pessoas com as quais eu convivo ainda achavam que <strong>Fandango</strong><br />
era uma dança gaúcha. Não deixava de ser, mas o <strong>Fandango</strong> a que eu me referia<br />
era o <strong>Fandango</strong> caiçara, característico do litoral paranaense.<br />
Quando comecei o levantamento teórico para entender mais sobre as peculiaridades<br />
do folclore e da cultura popular, fui descobrindo um universo fascinante<br />
que me deixou perplexa na vontade de querer conhecer mais, não só<br />
sobre o <strong>Fandango</strong>, mas sobre as outras manifestações culturais do Paraná, em<br />
estado que tem sua riqueza cultural bastante diversificada com a contribuição de<br />
várias etnias.<br />
Começando a me aprofundar na pesquisa sobre o <strong>Fandango</strong>, tive contato<br />
com muitas pessoas que me ajudaram a encontrar os personagens certos, dispuseram<br />
de tempo para relatar suas experiências, indicaram bibliografia e me<br />
ajudaram a encontrar a direção para a minha pesquisa.<br />
Esta direção me fez chegar a casas humildes no litoral paranaense. Seja<br />
em Paranaguá, Valadares ou Guaraqueçaba, sempre fui recebida com muito<br />
carinho, e quem me avisou antes que os mestres eram machistas se engana redondamente.<br />
Nesses meses de pesquisa encontrei pessoas doces, que, mesmo<br />
cansadas de contar já tantas vezes suas histórias para pesquisadores, não se<br />
incomodaram em gastar do seu tempo comigo.<br />
Aprendi que o <strong>Fandango</strong> não é só música e dança; ele é uma vivência,<br />
uma história que persiste ao tempo, às revoluções históricas, à discriminação e<br />
se mantém viva, cada vez mais viva no coração dos velhos mestres fandangueiros,<br />
e ressurge nos dedos finos e franzinos dos meninos que estão resgatando a<br />
cultura de seus pais e avós.<br />
O <strong>Fandango</strong> por muito tempo foi o único divertimento no litoral paranaense.<br />
Tanto os livros como os próprios fandangueiros relatam que a origem dessa<br />
manifestação artística e cultural é ligada à agricultura, ao trabalho no campo.<br />
Uma das formas de bailar <strong>Fandango</strong> era o mutirão. As famílias caiçaras sobreviviam<br />
da troca de produtos, e muitas vezes o pagamento para o dia de trabalho<br />
era uma noite com mesa farta, animada pelo batido dos tamancos e pelo som<br />
das rabecas e violas.<br />
Quando tinha um batizado ou um casamento, o que eles iam fazer? Um<br />
<strong>Fandango</strong>. Quando não tinha nada, o que eles iam fazer? Um <strong>Fandango</strong>. Se não<br />
tinha serviço, cada uma das pessoas trazia alguma coisa: uns traziam arroz outros<br />
traziam feijão, banana; surgiam assim vários motivos para promover um<br />
baile de <strong>Fandango</strong>. Oportunidade para comemorar não faltava, e essa festa<br />
além de envolver música e dança, congregava pessoas que cultivavam a vivência<br />
na comunidade.<br />
12 Heloisa Garrett
Depois de conturbados momentos históricos e do surgimento do rádio,<br />
que acabou tomando um pouco do espaço destinado ao <strong>Fandango</strong>, ele foi ficando<br />
mais tímido.<br />
Mas quem disse que <strong>Fandango</strong> é dança de velho? O <strong>Fandango</strong> é jovem,<br />
conhecê-lo é respeitar nossas origens, e mesmo que você só conheça o litoral<br />
paranaense por passar alguns dias de verão naquelas praias, é importante que<br />
conheça um pouco da história e dos valores desse povo tão rico que são os<br />
caiçaras. Para isso convido você a conhecer um pouco mais dessa riqueza da<br />
nossa cultura popular que é o <strong>Fandango</strong>.<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
13
14 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
O <strong>Fandango</strong><br />
Muito se discute sobre a origem do <strong>Fandango</strong>, mas eu peço licença e<br />
começo este livro-reportagem afirmando que a sua origem não está nas danças<br />
trazidas pelos colonizadores europeus, mas sim na cultura de um povo caiçara<br />
que encontrou nas marcas de uma dança uma forma de diversão, de celebração.<br />
Não se pode tirar deles o mérito da origem do <strong>Fandango</strong>.<br />
O <strong>Fandango</strong> está presente em várias regiões do território brasileiro, desde<br />
o Rio Grande do Sul, até regiões de São Paulo e Mato Grosso do Sul,<br />
adentrando também as terras dos nossos países, como a Argentina e o Paraguai.<br />
Fator que não pode nos limitar a dizer que a cultura popular está submetida a<br />
uma marcação de terra, a cultura adquire sua forma, seus traços, graças aos<br />
personagens que dela fazem parte. E, neste livro-reportagem, quero me ater aos<br />
personagens caiçaras que fazem do <strong>Fandango</strong> a sua cultura, a sua história e a<br />
certeza de que a sua origem não ficará esquecida.<br />
Mesmo que o <strong>Fandango</strong> tenha se originado na Península Ibérica e chegado<br />
ao território paranaense graças aos portugueses que vieram explorar essas terras<br />
e suas riquezas naturais, ela certamente ganhou características peculiares no<br />
nosso litoral porque nossos índios já tinham a sua cultura, a sua forma de celebrar<br />
a felicidade. Mas se foi assim, podemos dizer que as violas e rabecas das<br />
ilhas paranaenses deram a esta popular manifestação um ritmo marcado pela<br />
alegria caiçara.<br />
Para o historiador Inami Custódio Pinto, o <strong>Fandango</strong> pode ser considera-<br />
15
da como a mais legítima manifestação cultural popular do Paraná. Para ele, o<br />
<strong>Fandango</strong> se constitui como um grande conjunto de danças regionais, chamadas<br />
de marcas. Já em outros estados, encontra-se uma ou outra denominação. Ele<br />
destaca ainda que o <strong>Fandango</strong> é uma dança típica dos caboclos e pescadores,<br />
habitantes da faixa litorânea do Paraná.<br />
No litoral paranaense o <strong>Fandango</strong> sempre esteve atrelado ao cultivo da<br />
terra, à forma de viver dos caiçaras. Ele era bailado para comemorar a lavoura,<br />
para comemorar o dia de trabalho. Não seria justo depois de um intenso dia de<br />
batente coletivo cada um simplesmente ir para sua casa, então o patrão pagava<br />
a labuta com uma farta mesa de café com biju e uma boa batida de <strong>Fandango</strong>.<br />
Uma dança sendo usada como moeda.<br />
Tudo é motivo para dançar <strong>Fandango</strong>. Seja a comemoração do trabalho,<br />
as festas religiosas, casamentos, carnaval... Enfim, o <strong>Fandango</strong> é festa. Os<br />
mutirões de <strong>Fandango</strong> hoje são mais raros, mas nem por isso deixaram de acontecer.<br />
Hoje os clubes de bailes, as festas comunitárias, além da formação de<br />
grupos artísticos são, as maneiras usadas para manter o <strong>Fandango</strong> vivo no cotidiano<br />
caiçara.<br />
E quem está acostumado com a rotina corrida da cidade grande, pode até<br />
cometer um grave engano ao chegar em terras caiçaras e pensar o que fazem<br />
esses homens a passos vagarosos pelas ruas, o que têm tanto a conversar pela<br />
rua em horas de sol a pino. Mas como eles mesmos dizem: ganhar dinheiro para<br />
quê se para viver já temos fartura de comida e o <strong>Fandango</strong>, que é a melhor<br />
diversão?<br />
São valores diferentes, valores que refletem na qualidade de vida de pessoas<br />
de 70, 80 anos que não se queixam de dores nas pernas ou da solidão<br />
deixada pelos filhos que saem de casa. São jovens que viveram muitas décadas<br />
e esperam ansiosos o próximo baile, não importando quanto terão que andar, ou<br />
quantas horas viajarão de barco até chegar aonde se possa ouvir a batida dos<br />
tamancos e o som da viola entrosado com a rabeca.<br />
A maestria do <strong>Fandango</strong> está no seu conjunto. Instrumentos musicais,<br />
melodias, versos, o giro das saias e o batido dos tamancos fazem parte da complexa<br />
estrutura do <strong>Fandango</strong>. Um compassado de coreografias e músicas que<br />
têm características próprias em cada localidade, em cada grupo.<br />
Dentro da formação instrumental, o <strong>Fandango</strong> é formado por, no mínimo,<br />
um tocador de rabeca, um tocador de adufo e dois tocadores de viola. Mas<br />
claro que esta formação pode sofrer variações de grupo para grupo, de ocasião<br />
para ocasião e outros instrumentos de percussão podem ser incorporados como<br />
o machete, pandeiros e surdos. O que mais chama a atenção no <strong>Fandango</strong> são<br />
16 Heloisa Garrett
as características específicas de cada região, uma forma musical única de um<br />
grupo, bailados e valsados exclusivos.<br />
O que deixa o <strong>Fandango</strong> ainda mais original é que todos os instrumentos<br />
usados são de fabricação artesanal, com técnicas rústicas que foram passadas<br />
de geração para geração, usando madeiras típicas da região litorânea como a<br />
caixeta. A viola do <strong>Fandango</strong> tem algumas características semelhantes à viola<br />
nordestina, mas a grande variação está no número de cordas. A rabeca encanta<br />
primeiramente pelas suas belas curvas que mostram a beleza de um instrumento<br />
que tem como função enfeitar o <strong>Fandango</strong>, não só pela riqueza do seu som, mas<br />
também pela forma que a madeira toma nas mãos dos artesões caiçaras. Para<br />
acompanhar o ritmo, existe o adufo , um ancestral do pandeiro. São todos instrumentos<br />
rústicos, que carregam uma beleza particular.<br />
Já as danças podem ser divididas em batidas ou rufadas, que exigem do<br />
dançador conhecimento prévio das coreografias em virtude de sua complexidade<br />
e variações; valsadas ou bailadas, em que os pares dançam juntos pelo salão<br />
e têm coreografias mais simples. Um entrosamento entre versos, melodias, o<br />
rodado das saias das mulheres e o sincronizado batido ou rufar dos tamancos<br />
dos homens. Para o descanso dos bailarinos, durante o baile as marcas valsadas<br />
são intercaladas ao bailado e às batidas. O tablado ou o chão de madeira onde<br />
o <strong>Fandango</strong> é dançado às vezes chega a intimidar o som da rabeca, das violas e<br />
do adufo.<br />
As marcas batidas cansam os fandangueiros. Feitos de madeira e couro,<br />
os tamancos são pesados e em poucos minutos as camisas dos batedores ficam<br />
encharcadas de suor. O melhor batedor é aquele que, com mais força, bate o<br />
tamanco no chão, que, embora seja de madeira-de-lei, chega a partir e, às vezes,<br />
a rachar as tábuas do assoalho. Um batedor de Matinhos chegou a receber<br />
o apelido de Machadinho, e ficou conhecido em todo o litoral pela força com<br />
que batia seus tamancos.<br />
O uso de tamancos no <strong>Fandango</strong> teve origem quando a dança era usada<br />
para descascar arroz, o que os caiçaras chamavam de fazer gambá: os participantes<br />
do ritual sapateavam sobre os grãos até que a casca se soltasse, fazendo<br />
esse processo num bailado em roda que viria a evoluir para o <strong>Fandango</strong> tal qual<br />
o conhecemos. O <strong>Fandango</strong> é também cheio de costumes: errar uma marca, por<br />
exemplo, é chamado de balaio, e motivo de grande vergonha. Antigamente, as<br />
convenções em relação ao balaio eram tão graves que quem errasse uma marca<br />
era acometido de tanta vergonha que chegava a mudar de localidade.<br />
Apesar da seriedade punitiva e vexatória de se errar uma marca de<br />
<strong>Fandango</strong>, não existe um comando para a coreografia. Antes do início da dança,<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
17
os cavalheiros batem palmas e os tamancos sapateando pela sala sem música a<br />
fim de influenciar as damas, chamá-las para a dança. Apenas sabem quando o<br />
baile vai acabar quando um dos violeiros grita:<br />
- Ô, de casa!<br />
18 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
Fandangueiros<br />
Quando se encontra um mestre fandangueiro você já pode saber que passando<br />
alguns minutos ao lado deles você vai aprender muito. Homens se orgulham<br />
de ter participado dos bailes e batido seus tamancos, ou que ainda se<br />
orgulham por manter viva a tradição do <strong>Fandango</strong> entre os caiçaras.<br />
Encontrar um mestre pode não ser uma tarefa das mais difíceis, basta procurar.<br />
Eles, mesmo cansados de receber pesquisadores que fazem visitas exaustivas<br />
querendo sempre saber a mesma coisa, abrem as portas de suas casas,<br />
acomodam-nos em suas varandas cheias de flores e começam a contar, a relatar<br />
os feitos da infância, da mocidade, tudo isso em nome da vontade de manter<br />
viva a tradição do <strong>Fandango</strong>.<br />
Foi assim que aconteceu com Mestre Romão, um dos mais respeitados<br />
fandangueiros do litoral paranaense. Chego a sua casa em uma tarde chuvosa de<br />
sábado, em agosto de 2009. Ele certamente estava tirando uma cesta, porque<br />
demorou para atender às minhas batidas de palmas. Veio até a varanda, eu me<br />
atrevi em adentrar no quintal. Eu disse que estava fazendo uma reportagem sobre<br />
o <strong>Fandango</strong>, e ele imediatamente pediu que eu me acomodasse em uma das<br />
cadeiras da varanda. Ali mesmo ele começou a falar sobre a origem do <strong>Fandango</strong>,<br />
controversa como sempre, antes mesmo que eu desarmasse o guarda-chuva.<br />
O discurso dava a impressão de estar decorado, de tantas vezes que já<br />
contou as mesmas histórias. Elas surgem com tanta facilidade que as minhas<br />
indagações, considerações e vontade de saber mais parecem não importar; ele<br />
quer mesmo é contar seus feitos e não responder perguntas.<br />
19
Uns dizem que vieram dos Açorianos colonizadores, outros dizem que vieram<br />
de São Paulo, uns afirmam que vieram de Cananeia primeiro, outros juram<br />
que subiu diretamente do Rio Grande do Sul, então ninguém sabe bem a origem<br />
certa. Eu sei que aqui em Paranaguá veio pelo cargueiro dos açorianos em<br />
1755. Ele chegou a Paranaguá num navio daqueles que levavam escravos. Então,<br />
nesse navio vieram os portugueses e os espanhóis, que trouxeram o <strong>Fandango</strong>,<br />
que ficou na Ilha da Cutinga. Depois de um certo tempo, os espanhóis sentiram<br />
saudades da terra deles e começaram a fazer serenata e, quando foi dez e meia<br />
da noite, os índios entraram no meio e começaram a dançar <strong>Fandango</strong> na Ratada<br />
(região do litoral paranaense). Dali em diante, começou a espalhar-se pelas regiões<br />
do Paraná inteiro.<br />
O relato de Mestre Romão, mesmo que ensaiado, conta ainda que quando<br />
aconteceu a Primeira Guerra Mundial, acabaram com o <strong>Fandango</strong>, porque os<br />
jovens eram chamados para defender a pátria e, em vez de defender a nação,<br />
corriam para o mato para se esconder. Isso chama a atenção do exército e<br />
todas as luzes acessas nas matas do litoral era vistoriadas, assim o <strong>Fandango</strong> foi<br />
reprimido.<br />
“O quartel general mandava os fiscais procurarem em que parte os soldados<br />
caiçaras estavam e trazê-los vivos ou mortos, aí então iam nos sítios perguntar<br />
do pessoal e diziam que não sabiam onde eles estavam, aí convocavam a<br />
mãe e o pai dos soldados para vir para Paranaguá encontrar os filhos que estavam<br />
escondidos”, afirmou Mestre Romão.<br />
“Depois veio a Segunda Guerra Mundial, a revolução dos estados e tudo<br />
isso foi acabando com o <strong>Fandango</strong>. Depois que terminou a guerra, ninguém<br />
podia dançar o <strong>Fandango</strong> ou ficar de luz acesa porque os guardas prendiam<br />
quem estivesse de luz acesa. Depois que terminou o <strong>Fandango</strong>, veio a religião<br />
dos pentecostais, uma das primeiras religiões, e os pentecostais chegavam nos<br />
sítios e perguntavam para os moradores, qual é sua religião?, - eu sou católico;<br />
qual tua atividade?, - eu danço <strong>Fandango</strong>; e começaram e colocar medo neles<br />
falando que dançar <strong>Fandango</strong> é pecado e quando morressem não se salvariam e<br />
o pessoal começou ficar com medo. Depois os filhos saíam do sítio, iam pra<br />
cidade, ficavam no quartel e, quando acabou a revolução, os filhos permaneciam<br />
no quartel e não voltavam mais para casa, porque lá tinham ajuda de custo,<br />
e o pai e a mãe ficavam com saudades e iam para a cidade ficar junto com os<br />
filhos, e com isso foi desaparecendo o <strong>Fandango</strong>, o povo caiçara foi se diluindo”,<br />
relatou Mestre Romão.<br />
Segundo seu relato, em 1964 apareceu um professor para ajudar a resgatar<br />
o <strong>Fandango</strong>: Inami Custódio Pinto, que depois veio a se tornar seu compa-<br />
20 Heloisa Garrett
dre. Nessa ocasião foram convidados 12 casais para ensaiar e dançar o <strong>Fandango</strong>,<br />
e, depois de 12 ensaios, fizeram a primeira apresentação no Colégio Estadual<br />
do Paraná, em Curitiba, depois no Palácio do Governo, no Canal 12, Canal 4 e<br />
Canal 6.<br />
“Começamos a divertir o pessoal, em todo o Paraná, e começamos a resgatar<br />
o <strong>Fandango</strong>”, lembra, orgulhoso.<br />
Depois dessa aula de história, Mestre Romão me contou como começou<br />
no <strong>Fandango</strong>. Suas primeiras batidas foram aos oito anos de idade, porque seu<br />
avô era cortador de mandioca e só vivia de plantação, da lavoura, e tinha uma<br />
família grande de quatorze filhos: doze filhas mulheres e dois filhos homens, então<br />
só com os filhos dele já formavam um grupo de <strong>Fandango</strong>.<br />
Eles faziam de dois a três festivais por ano para poder sustentar a família,<br />
então convidavam o pessoal das ilhas, os lavradores e os moradores com os<br />
quais sustentavam amizade. No sábado se precisassem ir às casas eles iam.<br />
Davam o café da manhã, quando eram onze horas iam almoçar, descansavam<br />
um pouco e, depois de uma hora, iam para a roça novamente. Quando terminavam<br />
a empreitada, retornavam. Aqueles que moravam longe ficavam na casa do<br />
<strong>Fandango</strong>, quem morava perto ia para casa. Depois voltava e começavam a<br />
dançar o <strong>Fandango</strong> por volta das oito da noite. Iam das oito às nove da manhã<br />
do outro dia, depois faziam a domingueira das três da tarde até a meia-noite e só<br />
depois disso é que iam embora.<br />
Ao longo de sua vida, Mestre Romão já formou 13 grupos de <strong>Fandango</strong>,<br />
sempre trabalhando com jovens de 13 a 16 anos. Ele se orgulha pelos grupos<br />
terem sempre sido formados por jovens, meninos que aprenderam a como bater<br />
os tamancos e meninas que, enfeitadas com suas saias rodadas, se envolvem no<br />
bailado. Além dos grupos na Ilha de Valadares, ele também formou grupos em<br />
Blumenau, um grupo em Curitiba, além de outros em Medianeira, Maringá e<br />
Foz do Iguaçu.<br />
“Eu vou resgatando o <strong>Fandango</strong> com o pessoal mais novo que gosta da<br />
dança, porque são filhos de fandangueiros, só vai no <strong>Fandango</strong> quem é filho de<br />
fandangueiro. Acho que o <strong>Fandango</strong> pode ser que acabe um dia, porque aqui<br />
tem dois grupos de idosos de 60 a 70 anos, o mais novo é o meu de 13 a 14<br />
anos”, conta ele, ressaltando a realidade dos grupos da Ilha de Valadares.<br />
Mestre Romão relata que seu grupo hoje é organizado pela Prefeitura de<br />
Paranaguá, que quer trabalhar com o resgate do <strong>Fandango</strong>. Ele dá aulas nas<br />
escolas de Paranaguá e faz oficinas de cultura popular em Curitiba: “Onde convidar<br />
a gente vai, o difícil é a condução porque a gente não tem dinheiro pra<br />
pagar ônibus, alimentação, hospedagem”, lamenta.<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
21
O grande orgulho de Mestre Romão vai além de ver jovens aprendendo o<br />
<strong>Fandango</strong> por gerações: “Eu me criei nesse ambiente. Hoje eu só danço, faço<br />
tamanco e ensino. Dos meus nove filhos, só um dança, agora os netos todos<br />
dançam e minha filha também. Tenho um netinho que tinha sete anos quando se<br />
apresentou pela primeira vez, ele começou no <strong>Fandango</strong> quando tinha apenas<br />
dois anos, temos a foto dele quando foi para Curitiba na Boca Maldita se apresentar.<br />
Depois foi pra Minas Gerais, Brasília e Rio de Janeiro, saímos no bloco<br />
do carnaval representando o <strong>Fandango</strong> e o barreado, fomos para o Rio Grande<br />
do Sul fazer uma exposição de livros no tempo do Olívio Dutra (na época governador<br />
do estado), também levando o barreado e o <strong>Fandango</strong>.<br />
Mestre Romão lamenta que os parnanguaras não deem muito valor para o<br />
<strong>Fandango</strong>: “Quem é de fora acha bonito e tem curiosidade em conhecer, mas o<br />
parnanguara diz que o <strong>Fandango</strong> já era, que é coisa de velho, então eles querem<br />
coisa nova. Alguns até querem dançar o <strong>Fandango</strong>, mas eles querem ganhar<br />
dinheiro com isso, nossa cultura é sem fins lucrativos”, afirma, categórico.<br />
O mestre diz que acha muito importante os projetos de incentivar o <strong>Fandango</strong><br />
dentro das escolas, mas infelizmente eles não têm continuidade: “É importante as<br />
pessoas que vêm fazer pesquisas sobre o <strong>Fandango</strong>, a história viva que estão<br />
dançando. O <strong>Fandango</strong> é uma dança popular, é fácil de aprender e fácil de<br />
explicar e é fácil de dançar, mas hoje em dia todos querem saber de músicas<br />
estrangeiras”. Atualmente, aos 83 anos de idade, Mestre Romão comemora 68<br />
desde que o <strong>Fandango</strong> passou a fazer parte da sua vida, e ele ainda não abandonou<br />
os tamancos.<br />
“Meus filhos não se interessaram muito, mas meus netos e meu bisnetinho<br />
são meu orgulho. Eu nasci aqui na Ilha de Valadares, meus netos moram aqui,<br />
tenho 28 netos e todos eles dançam, tenho 26 bisnetos e vou ter uma tataraneta<br />
agora. E acho que meus netos vão preservar e repassar isso para frente porque<br />
a gente fala sobre isso para eles. E mesmo que o <strong>Fandango</strong> não chegue às<br />
próximas gerações como o bailado que eu aprendi, como a batida que eu dancei,<br />
o importante é que ele supere o tempo e seja lembrado como a cultura do<br />
Paraná”, diz.<br />
22 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
Família Pereira<br />
Uma coisa se sabe a respeito do <strong>Fandango</strong>: o orgulho pela dança e pela<br />
música é tanto que todos querem ser os “inventores” dessa arte. Nilo Pereira é<br />
fandangueiro de Guaraqueçaba, conta que foi sua família que deu origem ao<br />
<strong>Fandango</strong>. Ele é filho de Julino e Alzira França Pereira e tem 12 irmãos: Nicolau,<br />
Martinho, Jovelino, Sebastião, Adriano, Agostinho, Moisés, Leonel, Bernardina,<br />
Brasilina, Carmelina e Laura.<br />
“Pode procurar que a senhora vai encontrar. Foi a família Pereira que<br />
começou com o <strong>Fandango</strong>, meu tataravô era fandangueiro e isso foi passando<br />
de pai para filho, para os netos, para a comunidade. Hoje está quase esquecido,<br />
mas nossa família ainda baila o bom fandango. Eu ainda vivo do <strong>Fandango</strong>”,<br />
afirma Nilo.<br />
Como muitos dos entrevistados que disseram que o <strong>Fandango</strong> teve origem<br />
em suas famílias, Nilo ostenta o mesmo orgulho. A afirmativa não deixa de ser<br />
verdade, porque o que aprendi nesses meses de pesquisa é que a cultura e sua<br />
tradição têm origem onde é vivida, onde é cultivada, e, em cada uma daquelas<br />
modestas casas do litoral paranaense, o <strong>Fandango</strong> orgulha por fazer parte da<br />
rotina das famílias.<br />
Nilo me convidou para sentar em um banco na frente da Casa do <strong>Fandango</strong>,<br />
em Guaraqueçaba, e contou que antigamente o <strong>Fandango</strong> era dançado para<br />
comemorar colheita e o dia de trabalho. Segundo ele, o trabalho de homens e<br />
mulheres na lavoura era pago com <strong>Fandango</strong> e comida: “Quando acabava o<br />
trabalho a gente se reunia e tomava café com biju dançando <strong>Fandango</strong>, era o<br />
23
melhor pagamento. Não tinha dinheiro que recompensasse mais. Se divertir e<br />
estar com as pessoas que a gente gosta, fazendo o que nos orgulha nunca teve<br />
preço”, relata, saudoso.<br />
A família Pereira morava na região do Rio dos Patos, em Guaraqueçaba,<br />
mas teve que deixar o local há alguns anos porque um decreto transformou o<br />
lugar em área de preservação ambiental permanente, não sendo mais permitido<br />
a eles plantar, colher e muito menos comemorar a colheita com <strong>Fandango</strong>, já<br />
que não havia mais o que colher.<br />
Quando deixaram Rio dos Patos, cada um foi procurar seu rumo, alguns<br />
mudaram-se para Paranaguá, outros ficaram em Guaraqueçaba, outros foram<br />
para a Ilha de Superagui e para a Ilha de Valadares. Mas o que ainda une esses<br />
caiçaras é o <strong>Fandango</strong>. Nilo, depois que deixou a vida no campo, começou a<br />
trabalhar com artesanato construindo rabecas que vende para os turistas. Enquanto<br />
me conta, exibe orgulhoso algumas violas e rabecas construídas por ele<br />
próprio e diz que, com a madeira cada vez mais difícil de encontrar, ele está<br />
cobrando uma média de R$ 200,00 por instrumento.<br />
Recentemente, comprou um barracão de baile que também é sua casa.<br />
Além disso, também comemora quando vai com seu grupo fazer apresentações<br />
e recebe um singelo cachê como pagamento.<br />
A Casa do <strong>Fandango</strong>, como é chamado o seu local de baile, é também a<br />
casa de Nilo Pereira e sua família. Foi inaugurada há cinco meses, antes de se<br />
transformar em Casa de <strong>Fandango</strong> ela abrigava um clube tradicional da cidade:<br />
“Tem baile de <strong>Fandango</strong> aos sábados e recebo muita gente, mas esses<br />
frequentadores são as pessoas mais idosas de Guaraqueçaba e turistas”, conta<br />
Nilo, que acha que o <strong>Fandango</strong> ainda tem vida longa. Ele tem seis filhos, mas<br />
desses só as mulheres se interessaram pelo <strong>Fandango</strong>: “Acho muito importante<br />
os jovens se interessarem pelo <strong>Fandango</strong>, porque isso é deles. Meus avós contavam<br />
bastantes histórias e eu não aprendi para repassar aos meus filhos e netos,<br />
e isso acabou se perdendo no tempo”, lamenta.<br />
Para Nilo é fundamental o papel que tem em repassar o que a Família<br />
Pereira viveu no <strong>Fandango</strong>. Só ele tem mais de 40 anos de envolvimento com a<br />
cultura caiçara e o mais gratificante é ir se apresentar e ver o interesse das pessoas<br />
pela música e pela dança, especialmente das crianças: “De poucos anos<br />
para cá o <strong>Fandango</strong> está sendo bem divulgado, muita gente aprendeu, não a<br />
dançar igual a nós, mas aprendeu. Igual a Família Pereira ninguém dança, ninguém<br />
canta e ninguém toca”, garante.<br />
Ele se orgulha em ter levado o <strong>Fandango</strong> da Família Pereira para Brasília e<br />
para o Rio de Janeiro e por inúmeras vezes ter subido a serra para se apresentar<br />
24 Heloisa Garrett
em Curitiba. Só lamenta não poder mais bater aquela batida e tocar sua viola<br />
com aquele vigor de alguns anos atrás, pois um problema de coração está limitando<br />
gradativamente a sua manifestação artística.<br />
A Família Pereira é um grupo completo: faz o instrumento, toca, faz a<br />
música e dança. O Grupo tem atualmente doze integrantes, sendo que desses,<br />
cinco são membros legítimos da família que deu origem ao grupo e os outros<br />
sete são primos mais distantes e amigos que resolveram se unir a família. Eles<br />
formam um dos núcleos de <strong>Fandango</strong> mais sólidos do litoral paranaense. Mesmo<br />
depois dos anos 1990, quando os integrantes da família foram obrigados a<br />
deixar o Rio dos Patos, eles se estabeleceram em outros lugarejos da região e<br />
persistiram se reunindo durante muitos anos para manter as tradições do patriarca<br />
da família: João Bento Franklin Pereira de Assunção.<br />
A primeira apresentação artística do grupo fora da faixa litorânea aconteceu<br />
em 2000, no SESC da Esquina, em Curitiba, na programação do evento<br />
<strong>Fandango</strong> Subindo a Serra: “Depois dessa apresentação ficamos mais animados<br />
e vimos que a tradição da nossa família pode ser mostrada para muita gente.<br />
Muitos de nós não conheciam a cidade grande, e levar a nossa vivência para a<br />
capital foi um orgulho”, conta Nilo que é o organizador do grupo desde antes<br />
mesmo desta apresentação.<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
25
26 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
As mulheres no <strong>Fandango</strong><br />
Antes do início do baile, ou nos intervalos das marcas, geralmente os cavalheiros<br />
batem sapateando pela sala, sem música, por sua própria conta, com fim<br />
de convidar, influenciar e chamar as damas, e, ao mesmo tempo, provocar o<br />
início da dança. As mulheres têm um papel fundamental no <strong>Fandango</strong>, apesar<br />
dos leigos dizerem que esta é uma dança machista. Elas é que são responsáveis<br />
pelo colorido, pelo charme do enredo que forma esta dança típica dos caiçaras.<br />
Os bailados e os valsados são dançados em pares de homens e mulheres,<br />
com ou sem coreografias. As mulheres acompanham a batida dos tamancos<br />
com movimentos circulares, em que vão formando figuras. A mais comum é o<br />
oito no sentido horário. Alguns dizem que a batida dos tamancos é exclusividade<br />
dos homens, mas as mulheres não são impedidas de bater tamancos.<br />
“As mulheres até podem fazer a batida, mas a maioria não gosta porque<br />
esta é uma função que exige força e é muito mais bonito ver a mulher dançando.<br />
Elas são fundamentais no <strong>Fandango</strong>, elas dão o colorido ao baile, a sensualidade<br />
à dança”, diz o fandangueiro Aorélio Domingues. Uma sensualidade muito<br />
sutil e sem nenhum apelo erótico. Uma das maiores características do baile de<br />
<strong>Fandango</strong> é o envolvimento familiar.<br />
Geralmente as mulheres que participam do <strong>Fandango</strong> são chamadas de<br />
folgadeiras, e os homens de folgadores. Além da dança, as mulheres também<br />
fazem seus versos e alguns são passados da mãe para os filhos, herdados de<br />
geração, uma poesia que se une ao ritmo peculiar da música.<br />
27
Menina passa a tonta, com seu vestido godê.<br />
Depois de tonta passada, deixa o mundo correr.<br />
(verso citado por Narcinda Amorim Lopes)<br />
Narcinda Amorim Lopes é uma senhora alegre, vaidosa, que dança<br />
<strong>Fandango</strong> e faz versos. Ela nasceu em 1943 na região do Cerco Grande, em<br />
Guraraqueçaba. Ela participa dos bailes desde os dez anos. Hoje, aos 67, conta<br />
que da sua família é a única que ainda participa.<br />
“Ninguém dos meus filhos se interessou. Eu gosto muito do <strong>Fandango</strong> porque<br />
eu me criei no <strong>Fandango</strong>, meu pai e meu marido eram fandangueiros, sempre<br />
morei aqui. Eu nasci aqui em Guaraqueçaba, e eu gosto porque é um divertimento<br />
alegre, toda a vida foi um divertimento alegre, cheio de vida”, orgulha-se<br />
Narcinda.<br />
O pai de Narcinda fazia baile de <strong>Fandango</strong> em casa, assim como o seu<br />
marido. Agora viúva, ela vai dançar onde souber que tem o som da viola e da<br />
rabeca. Chega a viajar até a Ilha de Superagui em busca de <strong>Fandango</strong>.<br />
“Quando era mais nova eu fazia os versos da Graciosa com o amanhecer<br />
do dia mas agora eu não faço mais, agora só danço, aqui só tem eu e Jurema que<br />
dançamos e mais uma que dança junto comigo”, lamenta.<br />
Narcinda é integrante do grupo da Família Pereira. E diz que, pra onde ela<br />
for convidada pra dançar <strong>Fandango</strong>, ela vai.<br />
“O pessoal mais novo tem que aprender o bailado, tem que continuar dançando<br />
depois que a gente morrer, porque eu acho importante continuar, porque<br />
é um divertimento para o povo. Lá em Superagui o que vai de turista pra ver o<br />
<strong>Fandango</strong>, eles não querem saber de bailes que o resto da moçada gosta, só de<br />
<strong>Fandango</strong>. Enche de turista pra ver a gente dançar, na verdade são mais as<br />
mulheres que gostam de ver a gente dançar e, quando vou pra lá, eu tento ensinar<br />
as mulheres de lá, mas elas não aprenderam ainda, não existe segredo, mas<br />
elas que não sabem dançar direito”, diverte-se Narcinda ao recordar de sua<br />
viagens.<br />
Ela conta que o mais difícil é a Queromana, porque é uma das músicas<br />
mais complicadas de se aprender, pois exige do dançador técnica e coreografia<br />
ensaiada, graças a sua complexidade e variações. Narcinda conta que aprendeu<br />
há pouco tempo, porque quando era nova, só tinha aprendido a batida, agora já<br />
sabe fazer os círculos corretamente, seguindo o tamanquear do mestre marcador.<br />
Agora é que aprendeu a bailar a Queromana, uma das dança mais tradicionais<br />
do <strong>Fandango</strong>. É dançada aos pares, com duas fileiras opostas que integram o<br />
baile do <strong>Fandango</strong>.<br />
28 Heloisa Garrett
“Quando eu vou dançar, o pessoal tira muita foto de mim, porque eu danço<br />
muito bem, eles vêm até me agradecer”, comenta, feliz.<br />
Alguns leigos que não conhecem a essência do <strong>Fandango</strong> chegam a dizer<br />
que a mulher tem um papel de submissão no <strong>Fandango</strong>, mas todos os entrevistados<br />
foram unânimes em dizer que a mulher é fundamental nessa dança e a ela<br />
é reservado o lado majestoso e delicado do bailado.<br />
Aorélio conta que, quando desenvolvia o projeto <strong>Fandango</strong> na Escola, as<br />
mulheres eram as melhores professoras porque elas conseguiram congregar várias<br />
funções essenciais para o conjunto do <strong>Fandango</strong>.<br />
“Elas conseguem ensinar as notas musicais, os versos, as batidas de tamancos<br />
e os bailados. E a dinâmica e a didática usadas pela mulher para ensinar,<br />
sem dúvida, são diferentes, principalmente quando o trabalho é relacionado às<br />
crianças.<br />
Mestre Romão também destaca o papel essencial das mulheres na cultura<br />
caiçara.<br />
“As mulheres são peças essenciais, porque se não tiver a mulher não tem<br />
<strong>Fandango</strong> tem que ser a mulher e o homem, o homem toca os instrumentos e faz<br />
as marcações com o tamanco e a mulher faz o sarandeio.<br />
Ele conheceu sua esposa no <strong>Fandango</strong> e está casado com ela há 58 anos.<br />
E para Mestre Romão a diferença do <strong>Fandango</strong> de antigamente para o de hoje<br />
é que “os grupos atuais mandam fazer as roupas das mulheres, e antigamente<br />
elas usavam camisa listrada, e saia de tostão e chita, tecidos rústicos que fazem<br />
parte das vestimentas do cotidiano caiçara. E hoje vão às lojas e compram pano<br />
para fazer as saias, fazem cinco trajes, um diferente do outro, os tamancos tem<br />
que mandar fazer porque eles não fazem, antigamente a gente que fazia. As<br />
mulheres de hoje querem usar acessórios no cabelo, e se pintar”, complementa.<br />
José Muniz também fala do papel fundamental da mulher no <strong>Fandango</strong> e<br />
ele incentiva a participação delas com tanto entusiasmo que, dos 20 integrantes<br />
do Grupo Fandanguará, a maioria é mulher. “Quando o homem volta para a<br />
roda, ele tem que ter uma mulher na frente e uma atrás esperando, senão ele não<br />
tem aonde se colocar. Poderia fazer um <strong>Fandango</strong> agora, eu posso tamanquear,<br />
mas eu tenho que ter uma dama na frente e outra atrás. Ao mesmo tempo a gente<br />
sabe que as mulheres, além de estarem fazendo esta marcação de roda”.<br />
Ele fala ainda que os homens só estão em um baile de <strong>Fandango</strong> porque<br />
sabem que têm uma dama para eles tirarem pra dançar, e isso não é uma questão<br />
de atração, é questão da realidade do baile que é feito por pares.<br />
Na pesquisa desenvolvida por Zé Muniz sobre a cultura caiçara, ele constatou<br />
que a mãe tem um papel fundamental, que vai desde o cuidado com as<br />
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
29
crianças até o preparo dos alimentos. Elas sabiam os segredos de temperos e<br />
ele diz que isso não transforma este universo em um cenário machista, mas sim<br />
em uma forma de viver tradicional. Ela é responsável pela beleza do <strong>Fandango</strong>.<br />
30 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>, o bailado de gerações<br />
Um jovem fandangueiro<br />
José Muniz é filho de fandangueiro, e tem sua vida dedicada quase que<br />
integralmente ao <strong>Fandango</strong>. Quando saio para procurá-lo na vila de Guaraqueçaba<br />
encontro um senhor e pergunto:<br />
- O senhor sabe onde mora o José Muniz?<br />
- Sei, sim senhora, eu moro ali em cima, diz o senhor, apontando para a<br />
casa no alto de umas pedras que ladeiam um canal na baía de Guaraqueçaba.<br />
Eu me identifiquei e disse que gostaria de conversar com ele para saber<br />
mais sobre o <strong>Fandango</strong>, já que tinham me dito que ele era um pesquisador do<br />
assunto. O senhor então me disse que não era com ele que tinha que falar, mas<br />
com seu filho, que tinha o mesmo nome. Mas, naquela hora não estava em casa.<br />
Voltei depois de umas duas horas e fui recebida prontamente por Zé Muniz. Um<br />
moço franzino, mas já pai de família, a aparência de menino escondia que ali<br />
estava um responsável pai de família. Ele me atendeu em sua sala de sua casa,<br />
onde mora com os pais e com a mulher e a filha. Uma sala pequena, mas aconchegante<br />
cercada por imagens religiosas e com uma bela viola pendurada na<br />
parede.<br />
Lá, Zé começou a me contar como era o seu envolvimento com o<br />
<strong>Fandango</strong>. Ele cresceu ouvindo seu pai e vizinhos fazendo baile e, ainda menino,<br />
por volta de uns 15 anos, começou a trabalhar com um grupo de teatro que<br />
envolvia a cultura caiçara. De lá para cá não parou mais.<br />
Há dez anos, Zé trabalha com o <strong>Fandango</strong>. Primeiramente foi com o grupo<br />
de bonecos Fâmules de Bonifates, que criou para dar vazão às pesquisas<br />
31
que desenvolvia. O grupo foi fundado em 1999 por adolescentes de<br />
Guaraqueçaba, e os espetáculos produzidos envolviam lendas caiçaras em apresentações<br />
que mixavam teatro e <strong>Fandango</strong>. E neste contexto começou a trabalhar<br />
com o <strong>Fandango</strong>. Ele conta orgulhoso que os meninos que eram crianças<br />
pequenas quando eles fizeram a estréia do grupo, hoje fazem parte do<br />
Fandanguará, um grupo de Fandangando que nasceu dentro do trabalho com<br />
bonecos.<br />
Para Zé Muniz a renovação dos grupos de <strong>Fandango</strong>, onde alguns se<br />
dissolvem e outros surgem, é importante e bastante saudável.<br />
“É necessário que novas pessoas se envolvam, esse movimento é proveitoso<br />
e acaba motivando a comunidade. Esses jovens que vemos hoje no<br />
Fandanguará vão amadurecer sair de Guaraqueçaba em busca de oportunidade<br />
em Paranaguá ou em outras cidades, eles vão lembrar do <strong>Fandango</strong>, mas não<br />
vão mais poder participar ativamente, pelo menos é o que acontece com a grande<br />
maioria. Enquanto isso, novos jovens vão entrar nesse processo e formar<br />
novos grupos”, afirma Zé Muniz.<br />
Ele se lembra com saudade das pessoas que passaram pelo grupo nesses<br />
dez anos e foram embora, mas fica feliz em recordar que o que aprenderam no<br />
grupo eles não esqueceram.<br />
“Sempre que podem, eles voltam pra Guaraqueçaba, ou nos encontramos<br />
em apresentações. Alguns até se profissionalizaram em áreas que podem<br />
trabalhar com o <strong>Fandango</strong>, como um ex-membro, Leandro Dieguiz Gonçalves<br />
que hoje é turismólogo, e Eduardo Shotten, produtor do grupo que se formou<br />
em artes cênicas e continua trabalhando com arte popular.<br />
Uma das grandes preocupações de Zé Muniz é com a essência do<br />
<strong>Fandango</strong>.<br />
“Não basta só surgirem grupos para bater tamancos e tocar viola e rabeca.<br />
É essencial que os integrantes dos novos grupos conheçam a essência do<br />
<strong>Fandango</strong> e respeitem os mais velhos”, alerta Zé Muniz.<br />
Dentro de seus dez anos de trabalho, Zé sempre prezou pela realização<br />
de pesquisas com fandangueiros, para proporcionar aos jovens da comunidade<br />
a condição de trabalhar com o instrumento e ensinar a respeitar a cultura popular<br />
caiçara.<br />
“O <strong>Fandango</strong> pode ser uma forma de divertimento, como realmente é,<br />
mas nunca pode ser encarado como uma brincadeira. Ele merece respeito, assim<br />
como os mestres que nos transmitem conhecimento. Um exemplo disso<br />
acontece com vocês, pesquisadores, que vêm aqui para pesquisar e chega um<br />
ponto que para vocês é muito mais fácil vir conversar com um jovem do que<br />
32 Heloisa Garrett
com uma pessoa de mais idade. Isso é errado porque tiram deles (os mais velhos)<br />
a oportunidade de transmitir o conhecimento adquirido por décadas.<br />
Zé desenvolveu um trabalho de pesquisa muito vasto nos últimos anos, que<br />
classifica como pesquisa de vivência.<br />
“No decorrer desse tempo me encontrei com um fandangueiro ali, outro<br />
aqui, que conta uma coisa nova, ou até mesmo reconta uma história várias vezes.<br />
Então é um material que no momento eu considero como um ponto bem<br />
bom de ser publicado. Muitas características, muitas peculiaridades a mais, é<br />
uma coisa que não tem fim.<br />
Ele conta que começou essa pesquisa sobre <strong>Fandango</strong> exatamente há 13<br />
anos. Com 15 anos ele ganhou de seu pai uma viola e começou a frequentar os<br />
bailes.<br />
“Você vai conhecendo as pessoas. Comecei a trabalhar com o <strong>Fandango</strong><br />
somente com papai que era violeiro. Depois fui abrangendo grandes mestres<br />
que foram contribuindo, como o Seu Anísio, que hoje está em Paranaguá, e aos<br />
poucos fui aprendendo”, explica Zé Muniz.<br />
Seu Anísio morava do lado de sua casa e sempre ia dar uma oficina. Zé<br />
fazia questão de pagar, afinal ele estava transmitindo seu conhecimento e, como<br />
todo professor, merecia ser recompensado por seus ensinamentos.<br />
“Nós não tínhamos dinheiro pra nada, reunimos apenas R$ 15 e perguntamos<br />
se ele podia nos ensinar, e Seu Anísio nos deu três dias de oficina. Então<br />
você vai criando uma amizade, construindo um vínculo, como com o Seu Anísio.<br />
Você vai conhecendo outras pessoas, o Nildo, o Nilo e o Eraldo. Hoje em dia a<br />
gente já é bem conhecido, os fandangueiros das ilhas, de Paranaguá, porque<br />
você já construiu uma história, um trabalho”, conclui.<br />
Durante a conversa com Zé ele me falou de algumas peculiaridades de<br />
Guaraqueçaba, como a forma que as famílias se relacionam, as dificuldades que<br />
os moradores enfrentam quando se trata do desenvolvimento econômico e a<br />
falta de perspectivas dos jovens da comunidade, que acabam saindo da cidade<br />
em busca de oportunidades. Ele me conta que durante sua pesquisa identificou<br />
pessoas que saíram de Guaraqueçaba, mas antiveram suas raízes.<br />
“Claro que não me interessa muito saber se tem um fandangueiro em<br />
Morretes, ou em Cananéia, litoral Sul de São Paulo. Interessa pelo sistema da<br />
pesquisa e trabalho, mas a minha pesquisa é direcionada ao <strong>Fandango</strong> e me<br />
interessa que seja ligado aqui com Guaraqueçaba, independentemente que esteja<br />
morando aqui ou lá”, ressalta.<br />
Zé Muniz disse ainda que não adianta querer pesquisar a origem do<br />
<strong>Fandango</strong>, porque o que se encontra são várias vertentes.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
33
“Teve um pesquisador que chegou e falou para o Arionildo que o <strong>Fandango</strong><br />
é lá da Espanha. Claro que você não vai dizer que o <strong>Fandango</strong> é da Espanha<br />
para um caiçara, porque ele nunca saiu do cantinho dele. Para ele a raiz do<br />
<strong>Fandango</strong> é ali com a família dele, porque quando ele nasceu, os bisavós já<br />
faziam aquilo, então não tem nem porque ficar querendo encontrar a origem.<br />
Tem pesquisador que diz que o <strong>Fandango</strong> veio em 1750 para o Paraná, como é<br />
que você vai saber isso, acabou criando uma certa característica que são bem<br />
próprias daqui. Até existe o <strong>Fandango</strong> gaúcho, pernambucano que não tem nada<br />
a ver com o que a gente faz aqui”, salienta.<br />
Zé Muniz contou sobre algumas peculiaridades, e me alertou que, conforme<br />
o lugar que eu fosse desenvolver a pesquisa e as entrevistas, poderiam se<br />
ofender se eu os chamasse de caiçaras.<br />
“Na Ilha de Valadares, se você chama alguns moradores de caiçaras eles<br />
ficam muito ofendidos, isso porque em alguns lugares eles valorizam essa nomenclatura,<br />
e em outros eles se envergonham. Isso veio de fora, tanto a denominação<br />
quanto a descaracterização vieram de fora, mesma coisa que aconteceu<br />
com o <strong>Fandango</strong>”, alerta José Muniz.<br />
Ele conta que, com o passar do tempo, o <strong>Fandango</strong> foi considerado coisa<br />
de vagabundo, de vadio, era considerado bagunça, e as pessoas que faziam<br />
<strong>Fandango</strong> passaram a ter vergonha, inclusive constrangimento de ser caiçara.<br />
“Quando vem toda uma questão das pessoas que têm um grande poder<br />
aquisitivo de comprar terreno a custo baixo, vão fazer o quê? Descaracterizar a<br />
imagem do caiçara, caiçara é um vagabundo, por questões que eles têm costumes<br />
dos índios, que ele vai trabalhar e tirar o essencial para comer, não gosta de<br />
trabalhar muito, isso acarreta que o caiçara sinta vergonha de se auto-denominar<br />
como caiçara e se considerar assim”, justifica.<br />
Muitos dos moradores do litoral se orgulham de ser caiçaras, e está em<br />
andamento uma reestruturação do projeto pedagógico da região das ilhas.<br />
“Agora, a grande discussão é a respeito disso: vamos levar para os livros o<br />
termo caiçara ou não? Porque algumas pessoas têm vergonha disso, mas por<br />
quê? Tudo por causa de uma questão criada de fora para dentro, que veio<br />
mesmo no sentido de descaracterizar, mas assim, o termo ‘bugre’ é muito pouco<br />
usado, você escutava isso bem antigamente com algumas versões. Quando você<br />
vai para alguma cidade fora do eixo do <strong>Fandango</strong> levar a dança, as pessoas<br />
acham que o <strong>Fandango</strong> é uma dança gaúcha, mas isso é culpa de todo o sistema<br />
do estado que não está nem aí. Esse é o problema, quem vai querer colocar em<br />
um livro didático que é da cultura caiçara?”, indaga.<br />
Zé conta que o <strong>Fandango</strong> já ocupou muito tempo de sua vida. Aos 27<br />
34 Heloisa Garrett
anos, o jovem diz que quer deixar um pouco o trabalho à frente do grupo<br />
Fandanguará e, com todo o material de pesquisa da cultura caiçara que tem nas<br />
mãos, quer desenvolver algum trabalho relacionado à história. Ele é bolsista da<br />
Universidade Sem Fronteira e tem licenciatura em História.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
35
36 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Fandanguará<br />
O Grupo Fandanguará, termo resultante entre a palavra <strong>Fandango</strong> e<br />
Guaraqueçaba, e a Associação dos Fandangueiros dividem o mesmo espaço,<br />
uma casa cedida pelo IBAMA no centro de Guaraqueçaba, mas que é alvo<br />
constante de disputas políticas. E mesmo fazendo parte de uma Associação, não<br />
tem recursos para manter as portas abertas, e o apoio é só das famílias que, não<br />
podendo ajudar financeiramente, incentivam os jovens meninos a continuarem<br />
nos rumos do <strong>Fandango</strong>.<br />
A casa é, na verdade, um barracão sem manutenção, colorido pela arte<br />
dos meninos que integram o grupo. Eles são os responsáveis pelas confecções<br />
das vestimentas para as apresentações e se orgulham em me mostrar todos os<br />
cartazes das apresentações que já fizeram, e também figuras que servem de<br />
adereço para as paredes descascadas pelo tempo.<br />
Rodrigo Cardoso conta que quando recebem cachê por alguma apresentação<br />
usam o dinheiro para a manutenção dos adereços, para pagar contas<br />
como água e luz.<br />
“Nossa sede está aberta porque somos teimosos. Mesmo sem apoio, insistimos<br />
em ter nosso local de encontro, nosso local para ensaio”, relata José<br />
Muniz, um dos idealizadores do grupo. Sem apoio de ninguém, de nenhum órgão<br />
governamental, ele se pergunta o que eventuais patrocinadores poderiam<br />
querer em troca, caso colaborassem financeiramente.<br />
“Não sei se esse apoio iria realmente ajudar. Quem ajuda quer sempre<br />
algo em troca e eu, pessoalmente, prefiro que os meninos cresçam nas dificulda-<br />
37
des. Sobre valorização, estamos aqui há dez anos batalhando, só não enxerga<br />
nosso trabalho quem não quer ver”, declara José.<br />
A falta de suporte financeiro é também importante para a motivação dos<br />
integrantes do grupo.<br />
“Se eles recebessem um cachê para participar, a motivação deles certamente<br />
seria outra. Eles poderiam estar vindo participar do <strong>Fandango</strong> porque<br />
estavam querendo dinheiro, mas não eles vêm porque querem aprender, eles<br />
vêm porque querem tocar, querem dançar, querem bater seus tamancos”, comemora<br />
Muniz.<br />
O envolvimento dos jovens com a cultura popular no litoral paranaense<br />
não tem como objetivo afastar esses meninos e meninas da criminalidade e do<br />
contato com as drogas, mas acaba sendo uma conseqüência, já que dedicando<br />
tempo livre à prática do <strong>Fandango</strong> e ao cultivo de valores familiares, acabam<br />
involuntariamente afastando-se desse submundo que está presente nos mais diversos<br />
lugares.<br />
“Hoje, o jovem que vem pro <strong>Fandango</strong> é o jovem que vai pra rave, ele<br />
vivem em mundos paralelos. Não podemos manter tudo como era antigamente,<br />
porque aí sim o <strong>Fandango</strong> vai acabar, temos que acompanhar essa mutação dos<br />
jovens e encontrar formas para que ele ache que o <strong>Fandango</strong> é interessante.<br />
Temos que envolvê-los”, explica Aorélio Domingues, da Associação Mundicuéra.<br />
Uma das grandes histórias do Fandanguará é de Emanuel Gonçalves: ele<br />
não sabia que o avó era fandangueiro e, depois que começou a se envolver no<br />
grupo e a tocar, descobriu que seu avô foi um dos maiores tocadores de viola.<br />
Emanuel investiu na compra de sua primeira viola, conseguiu juntar R$100 para<br />
realizar seu sonho e hoje é um dos principais membros do grupo.<br />
E, como juventude não tem idade, Seu Antonio, que há 30 anos não tocava<br />
sua viola, foi influenciado pelos jovens do Fandanguará a voltar a tocar em<br />
2008. Reaprendeu as notas, afinou sua viola e hoje toca nos ensaios com os<br />
meninos do Grupo Fandanguará.<br />
Outra história emocionante dos meninos que fazem parte do Fandanguará<br />
é a de Gustavo Souza, ele divide seu tempo entre os estudos e a paixão pelo<br />
<strong>Fandango</strong>:<br />
“Meu avô morava no Costão, em Guaraqueçaba, e sempre que eu ia lá<br />
ele me deixava brincar com a sua viola. Eu era o único neto que ele deixava<br />
tocar no instrumento e era o seu sonho me ver tocando.<br />
A primeira vez que Gustavo tocou uma viola foi aos 11 anos de idade.<br />
Agora, aos 18, ele comemora ter realizado o sonho de seu avô Francisco, mes-<br />
38 Heloisa Garrett
mo que ele não tenha vivido para o ver tocar. Gustavo guarda a velha viola<br />
quebrada de seu avó como uma relíquia e se sente orgulhoso por se o único<br />
membro da família que se envolveu com o <strong>Fandango</strong>, depois do avó.<br />
Apesar de muitos dos livros que pesquisei afirmarem que o <strong>Fandango</strong><br />
estava desaparecendo, pude constatar na minha pesquisa de campo que ele está<br />
longe de acabar, e isso graças aos jovens que estão cada vez mais entusiasmados<br />
em manter viva essa herança de seus pais e avós. Orgulhando-se de suas<br />
raízes.<br />
O Grupo Fandanguará é um dos exemplos de persistência de meninos do<br />
litoral paranaense que superam as críticas de alguns amigos que dizem que<br />
<strong>Fandango</strong> é coisa de velho. São meninos e meninas comprometidos em levar a<br />
arte caiçara para todo o Paraná. Robson Santos coordena o Fandanguará e diz<br />
que o que mais motiva os meninos é que eles vêem nas músicas e na dança uma<br />
forma de divertimento e também de preservação da identidade cultural da localidade.<br />
“Eles vêm aqui por livre e espontânea vontade. Quando um vê a sede<br />
aberta começam a entrar, quando vemos o barracão está cheio. Vemos que eles<br />
querem fazer esse trabalho, eles querem cada vez mais aprender sobre o<br />
<strong>Fandango</strong>, isso sem querer nada em troca. Eles se dedicam pela oportunidade<br />
de estar entre amigos e buscamos trabalhar para que saibam a responsabilidade<br />
da cultura que representam”, explica Robson, orgulhoso.<br />
Quando cheguei à sede eram três jovens contando seus relatos. Em pouco<br />
mais de uma hora, o barracão ficou cheio e eles não se acanharam em buscar<br />
lugar no chão para participar da conversa. Sentiram-se bastante a vontade para<br />
falar do que gostam e, para fechar com chave de ouro a minha visita, me emocionaram<br />
tocando <strong>Fandango</strong>, dedilhando as cordas da viola e as meninas, ainda<br />
um pouco acanhadas, preferiram deixar o bailado para outro dia.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
39
40 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Associação Mundicuera<br />
“Mandicuera é o sumo extraído da mandioca no processo de produção da<br />
farinha. Extrato este que dá nome à união de diferentes grupos que representam<br />
a cultura caiçara do Paraná, mais especificamente de Paranaguá. É nesse caldo<br />
que vêm sendo geridos, desde 2003, projetos e idéias de fomento à produção<br />
da cultura popular local e de articulação comunitária.” Este trecho foi retirado<br />
do texto do site da Associação Mundicuéra, dando conta de qual é a definição<br />
da entidade. Mas acho pouco para descrever um trabalho tão importante para a<br />
preservação do <strong>Fandango</strong> no Paraná.<br />
Antes de ser uma Associação, a Mundicuera era um grupo de cultura popular<br />
que ficou conhecido por cruzar o Brasil, passando por 15 estados da<br />
Federação levando apresentações de <strong>Fandango</strong>, Boi-de-mamão e Romaria do<br />
Divino, para que os brasileiros conhecessem as manifestações da cultura popular<br />
no Paraná em uma caravana organizada pelo SESC Nacional.<br />
Já conhecia parte do trabalho dos “mundicuéras”, mas decidi enfrentar<br />
um sábado chuvoso para ir pessoalmente conhecer a riqueza do trabalho de<br />
pessoas que dedicam suas vidas para a preservação da cultura, fazendo disso<br />
um meio de realização pessoal e também um ambiente de trabalho.<br />
Depois de cruzar a ponte que liga a cidade de Paranaguá à Ilha de Valadares,<br />
caminhar alguns quilômetros por suas ruas calçadas, não dá a impressão de que<br />
se está em uma ilha, mas sim em uma vila, um bairro popular. As belas paisagens<br />
da mata atlântica deram lugar a um verdadeiro loteamento, com casas cercadas<br />
e carros que trafegam pelas ruas ignorando a preservação ambiental.<br />
41
Este reduto de fandangueiros poderia estar melhor preservado, mas a falta<br />
de políticas públicas não só contribui para a ausência de preservação do meio<br />
ambiente, mas também para a ausência de ações de preservação histórica e<br />
cultural. Mas ainda bem que homens de coragem e boa vontade não ficam à<br />
espera de ações governamentais.<br />
Eloir Paulo Ribeiro de Jesus, mais conhecido como Poro, é caiçara, já saiu<br />
de Paranaguá e morou em Curitiba, mas há alguns anos retornou à Ilha de<br />
Valadares e, por uma pechincha, comprou uma área ao lado da casa do amigo<br />
Aorélio Domingues. Foi lá que decidiu fazer a sua moradia e, juntos, os dois<br />
amigos investiram na fundação da Associação Mundicuera. O dinheiro que usou<br />
para a compra do terreno foi justamente o cachê que recebeu participando da<br />
caravana de cultura popular provida pelo SESC Nacional.<br />
Depois de cruzar a ilha, por um estreito caminho arenoso, abre-se um<br />
colorido entre as árvores. O cinza do dia chuvoso dá lugar a uma casa de madeira<br />
colorida como são coloridas as cores da cultura popular no Brasil: é a sede<br />
da Associação Mundicuéra, fundada em 2004.<br />
Entrando na casa, as paredes estão estampadas de recortes de jornal,<br />
cartazes antigos de apresentações culturais e publicações nas quais a Mundicuéra<br />
já foi personagem. Isso orgulha seus membros, porque o reconhecimento em se<br />
trabalhar com cultura é o maior pagamento, já que os recursos financeiros nunca<br />
chegam, mas a alegria em relatar os lugares onde estiveram levando o <strong>Fandango</strong>,<br />
ou de contar como os meninos da comunidade estão se interessando pela cultura<br />
da região, é sem dúvida o maior pagamento.<br />
Com chão de madeira perfeito para o batido dos tamancos e um tablado<br />
para as apresentações, a casa, apesar de pequena, é adequada e confortável<br />
para os encontros. A sensação que se tem dentro dela é a de que há aconchego,<br />
além da sensação de que ali se pratica o bem e de que as pessoas têm a liberdade<br />
de trabalhar no envolvimento comunitário.<br />
Agora além de ser um espaço cultural já consolidado, a Associação<br />
Mundicuéra recebeu a aprovação do Ministério da Cultura para ser transformada<br />
em um ponto de cultura, recebendo computadores e conexão à internet,<br />
sendo mais um atrativo para chamar a comunidade para dentro do ambiente.<br />
A renda da Associação consiste na liberação de recursos em projetos de<br />
leis de incentivo. Aorélio e sua esposa, Daniela Domingues, trabalham juntos<br />
nesse processo: ela com a sensibilidade em saber que projeto ser inscrito em um<br />
determinado edital, e ele com a articulação e implementação dos projetos. Um<br />
desses projetos foi recentemente aprovado, sendo que os integrantes da Associação<br />
estão trabalhando em sua realização na oficina instalada nos fundos da<br />
42 Heloisa Garrett
sede. Quarenta rabecas serão confeccionadas e usadas na primeira Orquestra<br />
Brasileira de Rabecas.<br />
Algumas pessoas, entre elas os próprios fandangueiros, criticam a<br />
Mundicuéra e dizem que estão tornando o <strong>Fandango</strong> comercial, como na construção<br />
em escala das rabecas, por exemplo.<br />
“Vocês estão destruindo a rabeca usando verniz, dizem. Mas, na verdade,<br />
nós usamos verniz porque temos verniz pra passar para a conservação do instrumento<br />
e eu garanto que se a maioria tivesse também ia envernizar suas rabecas.<br />
Dê uma máquina lixadeira pro seu Leonildo pra “vê” se ele não faz mais rápido<br />
uma rabeca, o problema é que ele não tem nem luz. A diferença é que nós<br />
conseguimos fazer a rabeca de uma forma mais profissional”, defende Aorélio.<br />
Um dos projetos da Associação é o “Rabecando <strong>–</strong> a conservação através<br />
do repasse”, que tem como objetivo conservar a sonoridade caiçara. O projeto<br />
foi aprovado no Edital de Culturas Populares do Ministério da Cultura. Neste<br />
projeto foram promovidas oficinas entre julho de 2006 e fevereiro de 2007, que<br />
ensinaram aos jovens da Ilha de Valadares e Paranaguá as técnicas para a construção<br />
de rabecas, violas, adufo e depois de prontos os instrumentos os participantes<br />
foram incentivados a aprender tocá-los. Sempre preocupados com a<br />
preservação do meio ambiente, a madeira usada para a confecção dos instrumentos<br />
foi doada pelo IBAMA.<br />
Um dos cuidados da Associação é para não espetacularizar o <strong>Fandango</strong>:<br />
“Sim, temos os shows, mas a maior parte do nosso trabalho é fazer com<br />
que o <strong>Fandango</strong> seja conhecido pela sua essência, preservando a sua raiz e não<br />
só promover apresentações para que o <strong>Fandango</strong> seja conhecido como uma<br />
dança, mas para que seja entendido e desperte a vontade nos jovens para que<br />
mantenham essa cultura, conta Poro.<br />
Como o foco da Associação é o trabalho com os jovens, eles usam a<br />
linguagem que lhes é própria.<br />
“Hoje, a linguagem dos jovens é o computador, então nós temos os computadores<br />
para que eles venham aqui e acessem a internet, mas também mostramos<br />
que podemos gravar e mixar as batidas do <strong>Fandango</strong> no computador, conta<br />
Aorélio.<br />
Ele diz ainda que produz filmes com versões para o youtube dentro das<br />
oficinas de comunicação que desenvolvem, tudo para despertar nos jovens o<br />
envolvimento com o tema da cultura caiçara.<br />
“Estamos desenvolvendo a cultura local com uma nova linguagem. Essas<br />
novelas que fazemos para internet, por exemplo, são lendas que os próprios<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
43
fandangueiros contavam”, explica Poro.<br />
Uma dessas novelas faz uma divertida sátira com os pesquisadores que<br />
chegam ao litoral para pesquisar sobre o <strong>Fandango</strong>. Eles usam dois tipos mais<br />
caricatos, um estudante de artes e outro de antropologia, e falam da ignorância<br />
deles com o tema, o que é comum entre quem vai pesquisar, mesmo que já tenha<br />
buscando referências bibliográficas sobre o tema, só entende o que realmente o<br />
que é <strong>Fandango</strong> conversando com os fandangueiros.<br />
Outra intenção da Associação é unir as famílias, usando a cultura popular<br />
como pretexto.<br />
“Queremos que os jovens que muitas vezes não sentam para conversar<br />
com seus avós, e nem sabem que eles foram importantes fandangueiros, descubram<br />
que sua família tem tradição e venham com seus avós, com seus pais<br />
dançar <strong>Fandango</strong>”, confessa Poro.<br />
44 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
<strong>Fandango</strong> na escola<br />
Introduzir o <strong>Fandango</strong> na sala de aula foi uma tentativa não muito sucedida<br />
de alguns governos. Uma das últimas iniciativas foi a de um projeto elaborado<br />
pela Associação Mundicuera, que contou com o apoio da Secretaria de Estado<br />
de Educação do Paraná. O projeto consistia em um material de apoio para que<br />
os alunos e professores tivessem acesso à manifestação folclórica típica do litoral<br />
paranaense.<br />
O projeto “<strong>Fandango</strong> na escola” tinha uma cartilha ilustrada que trazia a<br />
origem do <strong>Fandango</strong>, uma história com um personagem em um material gráfico<br />
bem elaborado para motivar os alunos. Além disso, os professores recebiam um<br />
CD e um DVD com instruções e músicas de um típico baile de <strong>Fandango</strong>, e as<br />
escolas da rede estadual de ensino do litoral paranaense recebiam um kit com<br />
um tablado móvel e 40 pares de tamanco.<br />
Aorélio Domingues, um dos coordenadores do trabalho, diz que o projeto<br />
foi muito bem montado, mas a falha estava na capacitação dos professores, que<br />
não foram preparados para trabalhar com o <strong>Fandango</strong> nas escolas. A estrutura<br />
do sistema de ensino, que não previa o acompanhamento do projeto, consistiu<br />
em outro fator determinante para o insucesso do projeto.<br />
A proposta tinha como público os alunos de 5° e 6° série do Ensino Fundamental<br />
que estavam inseridos em escolas do litoral paranaense. Foi lançado<br />
em 2008 em uma parceria entre a Associação Mundicuéra, a Secretaria de<br />
Estado de Educação do Paraná e o Núcleo Regional de Educação de Paranaguá,<br />
que envolvia oito cidades e as ilhas. A fase experimental do projeto aconteceu<br />
45
em 2006 com a capacitação dos professores e a produção do material didático.<br />
Entre as ações desse projeto, estava a capacitação dos professores, para<br />
que se aproximassem da cultura caiçara e do <strong>Fandango</strong>; e a realização de atividades<br />
envolvendo música, dança e história em encontros semanais. Outra ação<br />
foi o encontro com os grupos que participam do projeto, oportunizando a troca<br />
de conhecimentos e relatos das iniciativas ocorridas em cada escola.<br />
“Passado algum tempo, encontrei em Curitiba um menino que tinha a cartilha<br />
que eu mesmo não tinha, e sempre me pergunto: o que as escolas fizeram com<br />
os tamancos e com os tablados, e com as próprias apostilas. Uma pena este<br />
trabalho não ter dado certo porque era uma forma dos jovens conhecerem a<br />
cultura caiçara, lamenta Aorélio.<br />
Mas com oficinas de <strong>Fandango</strong>, patrocinadas pela Secretaria de Estado<br />
de Cultura do Paraná, Aorélio Domingues continua inserindo o <strong>Fandango</strong> no<br />
contexto escolar. Não com a função de doutrinar as crianças de que este é o<br />
instrumento do folclore paranaense, mas sim mostrando que o <strong>Fandango</strong> é caiçara.<br />
Mesmo não se identificando com o restante do Paraná ele deve ser conhecido e<br />
respeitado.<br />
“Quando vou fazer uma oficina eu chego e digo: ‘Olha, esse aqui é o folclore<br />
que é paranaense e vocês vão aprender isso e saber que também faz parte<br />
da cultura de vocês’. Mas aí as crianças, principalmente da região Oeste e Sudoeste,<br />
me dizem: ‘Aqui no CTG (Centro de Tradições Gaúchas) nós também<br />
dançamos o <strong>Fandango</strong>, mas é diferente’, então eu explico que o <strong>Fandango</strong> tem<br />
variações e explico quais as características que diferenciam a música e a dança<br />
caiçara, pois em outras regiões do estado o que predomina é o <strong>Fandango</strong> gaú-<br />
cho”, comenta Aorélio.<br />
46 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Uma vida ao <strong>Fandango</strong><br />
Sem dúvida ele merecia uma obra à parte. Um livro que fosse dedicado a<br />
contar a sua trajetória em busca da valorização e da conservação da cultura<br />
paranaense. Mas aqui vou me ater a relatar um pouco sobre a sua pesquisa<br />
sobre este tema. Foram mais de 50 anos dedicados ao <strong>Fandango</strong>, décadas de<br />
trabalho árduo que hoje, aos 79 anos, ele adora relembrar, orgulhando-se da<br />
contribuição que prestou à cultura do Paraná.<br />
Por tudo que ouvi falar sobre ele, e pelo respeito que o meio acadêmico<br />
tem em relação a sua pessoa, achei que seria muito difícil chegar até ele. Mas<br />
não, ele me recebeu no corredor do seu prédio, com uma simpatia única e o<br />
brilho nos seus olhos mostrava que aquela conversa com certeza ia render muito.<br />
Antes mesmo de eu me acomodar naquela sala com móveis antigos e repleta<br />
de livros, ele me disse: “Fico muito feliz quando vejo que os jovens se interessam<br />
pelo meu trabalho, pelo que eu já fiz. Minhas filhas não aguentam mais me ouvir<br />
contar sobre minhas pesquisas, sobre a minha relação com o <strong>Fandango</strong>, fico<br />
muito feliz quando tenho alguém disposto a me ouvir”.<br />
Dito isso, Inami Custódio Pinto, professor e pesquisador curitibano, pioneiro<br />
e desbravador na busca pelo conhecimento sobre a cultura popular<br />
paranaense, começou a me dar uma aula particular sobre o <strong>Fandango</strong>.<br />
Ele é considerado pioneiro no estudo das raízes culturais do Paraná. Graças<br />
ao conhecimento adquirido no decorrer da sua vida acadêmica e a sua capacidade<br />
profissional, ele conquistou reconhecimento nacional e internacional.<br />
Por muitos anos trabalhou na elaboração do Catálogo Etnográfico Brasileiro no<br />
Museu Paranaense. No Museu da Imagem e do Som foi responsável pela organização<br />
da Divisão de Folclore e pesquisas históricas, sendo ele um dos primeiros<br />
pesquisadores a gravar em áudio e vídeo apresentações de <strong>Fandango</strong>. Além<br />
disso, ministrou aulas de folclore na Faculdade de Educação Musical do Paraná<br />
47
e na Faculdade de Artes do Paraná.<br />
Antes de iniciar seu relato, me perguntou se o gravador já estava pronto.<br />
Iniciou então seu consistente relato.<br />
“Não importa de onde veio, em que parte do mundo se dançava algo<br />
parecido, essa é uma discussão tola. Como se dança no Paraná não se dança<br />
em lugar nenhum e muito menos importa de quem recebemos, se foi dos espanhóis<br />
ou dos portugueses. O homem do Paraná é o dono do <strong>Fandango</strong>, do<br />
<strong>Fandango</strong> caiçara que só se encontra aqui”, afirmou com contundência.<br />
Para o professor Inami não tem coisa mais linda do que o <strong>Fandango</strong>.<br />
“Quando tem a mão do paranaense, ele transforma a cultura em uma coisa<br />
linda, por exemplo, em dança dos Balainhaeu conheço oito versões no mundo<br />
todo, a nossa é a mais bonita. Pau de fita tem três versões, nós criamos mais<br />
cinco, dançamos oito e assim por diante. O caboclo paranaense é inteligente, é<br />
de um bom gosto inconfundível.<br />
Como bom professor, Inami adora dar aula sobre o <strong>Fandango</strong>. Recebendo<br />
uma pesquisadora que parece não conhecer muito do assunto, ele explica<br />
tudo sobre o tema, nos mínimos delates.<br />
“As casas de <strong>Fandango</strong> são de madeira sem forro e tem o assoalho separado<br />
do chão a uma distância de um a dois metros, isso para que o som das<br />
tamancadas possa ressoar mais longe. Eles fazem umas cavas de três a quatro<br />
metros de fundura por três metros de diâmetro e enchem de água, e há registros<br />
de dançarem na Ilha de Valadares e escutar as tamancadas em São Francisco<br />
do Sul, Santa Catarina”, explica ele desenhando verbalmente a arquitetura que<br />
compõe o <strong>Fandango</strong>.<br />
Sobre a música ele relata que o conjunto é composto por duas violas,<br />
feitas pelos próprios violeiros. São construídas com madeira caixeta, que é fácil<br />
de trabalhar, não é afetada pelo cupim e eles encordoam as violas com fios que<br />
eram usados para pesca. Então, eles temperam a madeira conforme a cor, amarela<br />
ou branca, e não existe uma regra para a afinação do instrumento.<br />
“Aí é que caracterizam o próprio folclore. Sem conhecimento, eles fazem a<br />
arte deles, não sabem a posição que estão fazendo, não tem noção de compassos,<br />
apenas valorizam os ritmos e fazem essa maravilha que é o nosso <strong>Fandango</strong>”,<br />
orgulha-se.<br />
Inami identificou, durante suas décadas de pesquisa, 50 marcas de<br />
<strong>Fandango</strong> e descobriu 28 ritmos diferentes. Cada ritmo é acompanhado de uma<br />
coreografia específica.<br />
“Eu me interesso pelo <strong>Fandango</strong> desde pequeno, os meus pais moraram<br />
em Paranaguá, entre 1934 a 1939. Então papai acostumava, naquelas noites<br />
48 Heloisa Garrett
claras de lua cheia em Paranaguá, me levar no Miramar, na rua XV. Ali eu avistava<br />
a grande extensão do rio Itiberê e toda a costa leste da Ilha de Valadares, e<br />
ele dizia: ‘Escuta, (ouvíamos então as batidas), isso é <strong>Fandango</strong>’”, e me recordo<br />
que o antigo Carnaval do nosso litoral era feito só com <strong>Fandango</strong>.<br />
Ele conta que, no litoral, nenhuma outra coisa era feita durante os quatro<br />
dias de festa no mês de fevereiro senão bater o <strong>Fandango</strong> e comer o barreado:<br />
“Não posso nem pensar em separar esses dois aspectos da nossa cultura, o<br />
<strong>Fandango</strong> e o barreado”.<br />
A festança começava, na boca da noite de sábado, continuava no domingo,<br />
na segunda, e só parava na quarta-feira de cinzas. Inami conta que só paravam<br />
com a batida dos tamancos e com o som do adufo, da rabeca e das violas<br />
lá por meia-noite da quarta-feira de cinzas, porque existia uma crença popular<br />
de que quem dançasse depois da meia-noite criaria rabo, viraria diabo.<br />
Os caiçaras descobriram um meio de preparar um prato para saciar a<br />
fome desses homens e mulheres festeiros por natureza: “Você imagina, se reuniam<br />
de 50 a 100 casais, eles começam na boca da noite e terminam como o astro<br />
rei a pino, imagina as mulheres cansadas da bateção, cozinhar pra toda essa<br />
tropa. Então eles descobriram um meio, um prato, que é o barreado, não que o<br />
nome seja barreado, mas, no velho e antigo português, barrear quer dizer vedar,<br />
eles descobriram uma maneira de cozinhar. Eles colocavam na panela de barro<br />
os condimentos a base de carne, todos os temperos, toicinho, e começava a<br />
ferver e então vedavam, soldavam a tampa. Faziam pirão de farinha com água<br />
fria e cuidavam para que cada vez que escapasse o vapor eles tampassem.<br />
Depois de dez horas de cozimento, estava pronto o rango, então é fácil de<br />
preparar, relativamente barato, leva dias pra deteriorar e você pode requentar<br />
quantas vezes quiser que não perde o sabor original. Era só misturar com banana<br />
e farinha de mandioca que estava pronta a refeição”.<br />
Quando Inami tinha dez anos foi para Florianópolis morar justamente na<br />
boca do Morro do Céu, localidade de onde saíram todas as manifestações do<br />
rico folclore catarinense. Na época, o Paraná tinha um dos maiores carnavais do<br />
Brasil: “Lá (em Florianópolis) eu comecei a brincar no Boi de Mamão, e o<br />
catarinense é bairrista, e até foi bom conviver com eles porque me gozaram: ‘lá<br />
na tua terra não tem, não?’ <strong>–</strong> zoavam de mim sempre me questionando se a<br />
minha terra não tinha folclore, não tinha diversão.<br />
Durante os carnavais de Paranaguá, Inami conta que faziam frente com os<br />
de Santos, Rio de Janeiro e Salvador, que eram os melhores carnavais do Brasil.<br />
Inclusive os corsos passavam pela rua principal, a rua XV, e debandavam para<br />
a estação Dom Pedro II, onde começou a maior estrada de ferro da engenharia<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
49
paranaense, ligando Paranaguá a Curitiba. Ali foi feita, para manter a tradição,<br />
uma casa de <strong>Fandango</strong> em frente à estação: “Eu me lembro que via passar os<br />
corsos com aquela batalha de serpentina, os carros, não só alegóricos, mas de<br />
demonstração que só em Paranaguá tinha. Por exemplo, vinha uma melancia ela<br />
abria, aparecia mulheres dançando, coisas lindas e só tinha em Paranaguá esses<br />
carros de demonstração, que alegóricos tinha como esses que tem em qualquer<br />
canto, então já vinha a engenharia paranaense e a gente corria pra assistir ao<br />
<strong>Fandango</strong> e assim o <strong>Fandango</strong> amanhecia, a multidão aplaudia” lembra Inami<br />
com saudosismo.<br />
Ele conta que quando chegou em Florianópolis ouviu: “Na sua terra não<br />
tem, não?” Provocado, foi descobrir que eu não era um informante, mas sim um<br />
portador de folclore). Ele começou a ensinar as danças, a memorizar e a dizer<br />
que se lembra do passado como se fosse hoje: “Se em uma escola de samba<br />
não tivesse a ala das baianas, era desclassificada. Então lá no <strong>Fandango</strong> era<br />
obrigatório, porque originou o carnaval no entrudo que se fazia a base de<br />
<strong>Fandango</strong>. Então, o <strong>Fandango</strong> que chamava mais atenção porque estava na raiz<br />
do povo, e aí então eu comecei a ensinar. Foi daí que eu conheci e comecei a<br />
aprender essa desgranha que é o folclore”.<br />
Nessa época, Inami conheceu seu médico, Osvaldo Rodrigues Cabral, um<br />
dos maiores folcloristas do Brasil, de fama internacional, que foi pesquisar o Boi<br />
de Mamão tão famoso. E quão grande não foi a surpresa dele quando viu o seu<br />
cliente Inami como diretor e vaqueiro do Boi de Mamão mais famoso da região,<br />
daí ele começou a acompanhar Inami nas pesquisas: “Tudo isso foi em<br />
Florianópolis, quando comecei a estudar a história do Paraná sobre a civilização,<br />
com 12 ou 13 anos, enquanto eu estava no ginásio (e o ginásio lá era<br />
formidável), no primeiro ano você tinha que falar francês, inglês, alemão, que<br />
antes da guerra não se falava o alemão, depois foi proibido, uma besteira enorme.<br />
Aí então eu comecei a provar que o Paraná era mais rico, e como foi minha<br />
surpresa quando caiu na minha mão a lenda do pinheiro e da gralha azul, de um<br />
grande médico e cientista paranaense: Eurico Branco, mitólogo, escritor, poeta,<br />
conhecido no mundo todo, ele radicou-se no Rio de Janeiro, morreu e os jornais<br />
daqui não deram essa notícia, que ingratidão. Nós estudávamos oficialmente<br />
que a maior riqueza do Paraná era o Ouro Verde, o Ouro branco, o algodão, o<br />
mate, o café, e daí que eu fui saber, através da lenda, que a maior riqueza que<br />
Deus deu ao Paraná foi a madeira, o Pinho. Então, quando eu descobri que a<br />
responsável, a replantadora natural da árvore símbolo do Paraná, era esse bichinho<br />
interessante. Eu compus uma sinfonia, que é minha maneira de externar<br />
face espontânea através da música que é meu elemento. E você veja quanto<br />
tempo se passou: mais de 50 anos que comecei a minha pesquisa. Há quatro<br />
50 Heloisa Garrett
anos que foi pelo balé do Teatro Guaíra, que é um dos maiores do mundo que<br />
uma obra minha ganhou grande repercussão, eles encenaram o balé do Caiado,<br />
eu trouxe uma sinfonia suíte e foi levado e parar, e quantos anos isso era, mas<br />
Graças a Deus conseguimos que é uma história emocionante, pra mim é a mais<br />
emotiva<br />
Inami retornou a Curitiba em 1950, quando começou as pesquisas aqui.<br />
Nessa época já tinha feito todo o levantamento no Rio Grande do Sul e de Santa<br />
Catarina: “Quando cheguei na minha terra, cadê o fandango? Desapareceu, aí<br />
meu antigo professor de piano, folclorista, poeta, musicista, de saudosa memória,<br />
o Viana, ele me disse: ‘que pena, com a Guerra acabou, então as nossas<br />
ilhas são consideradas de segurança nacional e, durante a guerra, foi proibida a<br />
prática do <strong>Fandango</strong>. Inclusive eu me lembro que em Florianópolis nós fazíamos<br />
ensaios de blecaute, caso fossemos bombardeados. Então a chama de um palito<br />
de fósforo era vista a quilômetros de distância, apagavam-se todas as luzes. Por<br />
isso que o fandangueiro é chamado de folgador e a mulher de folgadeira: que só<br />
dançam na folga. E à noite daí foram proibidos de acender lamparinas, e daí foi<br />
essa causa.<br />
Foi Inami um dos maiores responsáveis por ressuscitar o <strong>Fandango</strong>. Ele se<br />
encontrou com Mestre Romão e Manequinho da Viola. Juntos juraram que,<br />
enquanto fossem vivos, nunca iria acabar no Brasil gêneros como o <strong>Fandango</strong> e<br />
a criatividade da época provou que conseguiram atingir esse objetivo. Nesta<br />
época, Inami começou uma verdadeira luta para ressuscitar aquilo que nunca<br />
saiu de sua memória. Ele e Mestre Romão não podiam imaginar que o <strong>Fandango</strong><br />
subiria a Serra, mas subiu: “Dançamos no Palácio do Governo, no Monumento<br />
do Teatro Guaíra Cultural, e corremos o mundo. Artistas hoje eruditos, ex-alunos<br />
meus, eu fui professor na Faculdade de Artes e estão hoje valorizando,<br />
todos os conjuntos, corais, bandas, estão aproveitando essa maravilha, depois é<br />
coisa feita do povo, como muitos gostam, até coisa de caboclo, mas, bem aproveitado,<br />
você quer ver uma coisa: nós temos marcas de <strong>Fandango</strong> gravado<br />
Filarmônica de Washington, na Alemanha, em Bremen, como tem várias peças<br />
soltas pelo mundo. É aquela velha história, você pega uma miss Universo desarruma<br />
o cabelo, tira a maquiagem, põe o chinelo e um vestido de chita, você<br />
encontra ela à meia noite, você sai correndo; agora pega uma caboclinha, dê um<br />
banho de civilização, e você acha que ela é a miss universo. Assim é com o<br />
<strong>Fandango</strong>, o valor que as pessoas dão para ele quando sai da casa do<br />
fandangueiro e é apresentado na orquestra é outro, infelizmente”.<br />
Inami começou sua pesquisa em 1950 e prosseguiu estudando o <strong>Fandango</strong><br />
e a cultura popular paranaense até 1994: “Mas ainda continuo, de um jeito ou de<br />
outro, transmitindo o que aprendi ao longo desses anos. Já formei vários grupos,<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
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levei por todo o Brasil. Veja, fui para Bélgica, Alemanha, Holanda, França e<br />
Itália. Quando essas etnias chegaram, essas formações de clubes já eram daqui,<br />
que nós recebemos dos lusitanos, dos africanos. Eles só vieram para acrescentar<br />
na nossa cultura, por exemplo, até a voz, nós não temos o som cultural do<br />
português, então eles não contribuíram em nada. Não podemos dizer isso”.<br />
Ele defende que o <strong>Fandango</strong> é uma manifestação cultural que só se encontra<br />
no Paraná: “Claro que o folclore é só no local, quantas vezes descaracterizei<br />
a crendice do folclore, trazendo os grupos para Curitiba. Eles chegavam aqui e<br />
tinha gente tão maldosa, que, em vez de olhar os tamanquinhos batendo no<br />
chão, olhavam o desdentado do caiçara e riam, caçoavam. Agora, só sai de lá<br />
bem vestido, então são essas coisinhas que tem que considerar”.<br />
Ele lamenta que muitas pessoas se aproximaram do <strong>Fandango</strong> e fizeram a<br />
arte por dinheiro, por necessidade, e deturparam o real sentido: “Já vi pessoas<br />
dançando o nosso <strong>Fandango</strong> com trajes gauchescos. Pegavam os grupos para<br />
representar o folclore, usaram as músicas do meu disco e descaracterizaram o<br />
trabalho. Você tem que fazer uma coisa comercial, infelizmente, a isso eles dão<br />
dinheiro que não sei como eles fazem, em vez de mandar o Romão para o<br />
Festival Internacional, foi um outro grupo representar o Paraná na Europa, tocaram<br />
uma música só de <strong>Fandango</strong> que vieram me buscar”.<br />
O perigo da descaracterização de quando o <strong>Fandango</strong> sai da comunidade<br />
é motivo de alerta pra Inami: “Quando pessoas desprovidas de técnica, isso é,<br />
folclore e é só no local, saiu de lá, inclusive trazendo a televisão, eles dançavam<br />
de costas olhando para a câmera achando que só apareciam de cara só Agora,<br />
por exemplo, eu fiz um show, Inami em Garibe, tinha acordeão, bateria, baixo,<br />
violão, tocamos lá maravilhosamente bem, e com o som ao gosto da plateia,<br />
então você veja, quando é legítimo, é local, agora, como o folclore tanto local<br />
quanto o regional e universal, cada um sabe o seu lugar”.<br />
Inami tem duas filhas e elas puxaram pelo pai, continuam o seu trabalho.<br />
Uma delas é formada em música. Ele lamenta ter deixado um acervo, mas lamenta<br />
que as gravadoras não se interessaram: “Até conversei com um jornalista,<br />
nunca me esqueço, o principal objetivo era levar cultura ao povo, infelizmente a<br />
imprensa é comercial. A cultura não dá Ibope, não dá voto e muito menos dinheiro.<br />
Só os malucos como a gente que tem olhos para a cultura, mas a única<br />
maneira de você demonstrar o amor que deveríamos ter pelos nossos antepassados<br />
é que trouxe o nosso misticismo, a única maneira, infelizmente. Você vê<br />
eles com sangue, suor e lágrimas, desbravaram a selva, comeram o pão que o<br />
diabo amassou, para nos dar, queira ou não queira, a melhor noção do nosso<br />
entendimento a melhor prova de uma versatilidade tremenda, pena que falta<br />
cultura. Meu primo Bento dizia para o meu avô Tadeu: ‘eu quero ser isso, quero<br />
52 Heloisa Garrett
ser aquilo’, e ele (o avô) dizia: ‘filho não pense em dinheiro, o Brasil precisa de<br />
cultura, talvez não reconheça, mas você planta uma sementinha, ela vai se transformar<br />
em uma árvore, talvez você não chegue a colher esse fruto, mas alguém<br />
vai colher’, e o Bento: ‘não, Inami, continue, passe fome, mas continue porque<br />
nós precisamos disso, o dia que nós vermos a cultura com o nosso povo, deixaremos<br />
de ser o país do futuro pra ser a maior nação do mundo.<br />
Da sua pesquisa dentre 50 anos, ele não colheu nada financeiramente, só<br />
tirou recursos do seu próprio bolso para manter seu trabalho. Como professor,<br />
sempre ganhou pouco, mas a riqueza dentro do seu coração e do seu intelecto<br />
não são pagas com dinheiro algum<br />
Saio do seu apartamento um tanto confusa, com tanta informação recebida.<br />
Mas a certeza é de que esta tarde foi certamente uma das mais importantes<br />
de toda a minha vida. Encontrar uma pessoa formidável, com tanto conhecimento,<br />
reconhecida por muitos, mas ao mesmo tempo tão solitária, nas frias paredes<br />
de seu apartamento. O orgulho de fazer parte da história do Paraná enche seu<br />
coração, que se complementa com a alegria de ter alguém para conversar durante<br />
algumas horas. Ao mesmo tempo que seus olhos ficam marejados ao pensar<br />
no que será do <strong>Fandango</strong>, ou mesmo da sua pesquisa se não existir uma<br />
política de incentivo à preservação da história e da cultura dos paranaenses.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
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54 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Pesquisa<br />
Apesar de ser tema de muitas pesquisas científicas, o <strong>Fandango</strong> ainda é um<br />
assunto que não tem tanta visibilidade para o público, uma consequência da<br />
escassez de bibliografia sobre a cultura caiçara. O material existente, na maioria<br />
das vezes, não apresenta profundidade do tema e chega a ser contraditório.<br />
Nos últimos anos a pesquisa em torno desse tema aumentou significativamente,<br />
mas, apesar do leque de possibilidades de abordagem que o <strong>Fandango</strong> proporciona,<br />
poucos materiais foram publicados.<br />
“O que a comunidade mais reclama é que os pesquisadores vêm, tiram de<br />
nós o nosso conhecimento, a vivência dos fandangueiros mais velhos e depois<br />
nunca mais voltam para dar sequer uma satisfação, para sequer agradecer se<br />
fomos úteis ou não para o seu trabalho. Eles tiram de nós o conhecimento, fazem<br />
suas pesquisas e nós ficamos aqui esperando o retorno, mas nem uma cópia do<br />
resultado da pesquisa recebemos”, lamenta José Muniz, jovem pesquisador da<br />
cultura caiçara. Ele é formado em história e mora em Guaraqueçaba, onde é<br />
fundador de grupos de cultura popular como o Fandanguará e o Fâmulos de<br />
Bonifrates. Ele mantém uma biblioteca não só com o resultado de suas pesquisas<br />
acadêmicas, mas também com o resultado de pesquisas de outras pessoas<br />
que passaram por Guaraqueçaba e lembraram de reconhecer a receptividade<br />
da comunidade local.<br />
O acervo que “Zé” guarda na Casa do <strong>Fandango</strong> de Guaraqueçaba é<br />
vasto e enche uma estante. Além de pesquisas de sua autoria que se orgulha em<br />
mostrar e falar da pretensão de publicá-las em formato de livro, ele ainda pede<br />
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sempre para que os pesquisadores que vêm a Guaraqueçaba retornem com o<br />
resultado da pesquisa para consulta da comunidade.<br />
“É o mínimo que podemos pedir, um retorno da nossa contribuição para o<br />
trabalho dessas pessoas. Mas muitos nem sequer voltam a ter contato. Para a<br />
comunidade é muito importante ter esse retorno, pesquisas que voltam em forma<br />
de obras ou textos científicos para o nosso acervo, porque mostra a importância<br />
que todos têm para o cenário acadêmico”, ressalta José.<br />
Os pesquisadores que tomam como objeto de estudo o <strong>Fandango</strong> são<br />
das mais variadas áreas do conhecimento, e a motivação, na maioria das vezes,<br />
reside em conhecer um pouco mais sobre esse universo.<br />
Logo no início da minha pesquisa, encontrei Marcos Torres na véspera de<br />
sua defesa perante a banca do curso de mestrado em história da Universidade<br />
Federal do Paraná. Marcos é graduado, mestre e doutor em geografia, e trabalha<br />
com assessoramento pedagógico. Ele se mostrou bastante empolgado com<br />
o resultado de seu trabalho, mostrando-se também interessado em contribuir<br />
com a minha pesquisa. Ele estudou a paisagem sonora da Ilha de Valadares,<br />
marcada pelo <strong>Fandango</strong>.<br />
“A Ilha de Valadares tem a maior concentração de mestres tocadores do<br />
Estado do Paraná, e estudá-la é fundamental para pensar nos aspectos da geografia<br />
e da cultura da localidade. Durante minha pesquisa, me envolvi com os<br />
mestres e conheci um universo maravilhoso”, conta Marcos. Ele diz que conhecia<br />
um pouco do <strong>Fandango</strong>, um pouco sobre a cultura caiçara, mas não conhecia<br />
Valadares e também não tinha ideia da dimensão do que representava o<br />
<strong>Fandango</strong> para a cultura caiçara. Marcos já tinha defendido sua tese sobre a<br />
paisagem sonora de Curitiba e quando visitou pela primeira vez em 2006 a Ilha<br />
de Valadares decidiu fazer sua pesquisa de mestrado sobre aquela temática.<br />
O trabalho de Marcos buscou desvendar quais elementos compõem o<br />
universo simbólico que envolve a Ilha, usando as percepções e a memória de<br />
cinco fandangueiros. Quem participou da pesquisa foi: Gerônimo dos Santos e<br />
Nemésio Costa, Eugênio dos Santos, Romão Costa e Eloir Paulo Ribeiro de<br />
Jesus. “Fui me envolvendo cada vez mais, a ponto de querer buscar mais respostas<br />
sobre os questionamentos que fazia a respeito dessa cultura”, conta.<br />
Durante sua pesquisa, ele acabou fazendo muitos amigos no cenário caiçara<br />
e trabalhou no mutirão de construção da sede da Associação Mundicuera, e<br />
claro que depois participou do baile a convite dos amigos Aorélio Domingos e<br />
Eloir Paulo Ribeiro de Jesus, o Poro. “Conheci muitas coisas interessantes durante<br />
o período da minha pesquisa, mas também acabei descobrindo coisas que<br />
poderiam não fazer parte do universo caiçara, como a rivalidade entre os gru-<br />
56 Heloisa Garrett
pos, mestres que falavam mal de outros mestres, mas tudo isso só apareceu<br />
depois, a magia do início foi importantíssima para eu mergulhar nas pesquisas<br />
sobre a paisagem sonora da Ilha de Valadares e sua relação com a cultura caiçara.<br />
.Apenas um dos seis mestres que Marcos tinha selecionado para participar<br />
da minha pesquisa se negou a participar, alegando problemas de saúde. Mas<br />
os outros foram bastante receptivos, o atenderam prontamente, o recebendo<br />
em suas casas e mostrando orgulho em transmitir a sua história e a sua origem.<br />
Uma das constatações da pesquisa de Marcos é sobre a dinâmica constante<br />
do processo cultural. “Vejo que as manifestações culturais sofrem mudanças<br />
com o passar do tempo. O <strong>Fandango</strong> feito hoje não é igual ao <strong>Fandango</strong><br />
que era feito na década de 1950 ou 60. É outro <strong>Fandango</strong>! Por exemplo, hoje<br />
não fazem mais mutirões para em seguida o dono da roça oferecer o baile. As<br />
relações econômicas são outras, as relações sociais também, logo, o <strong>Fandango</strong><br />
de hoje é diferente. É diferente também em sua musicalidade, visto que muitos<br />
mestres saíram de seu local de origem para morar em outras localidades, como<br />
na Ilha dos Valadares, onde poucos, ou talvez só o Mestre Romão, nasceu,<br />
cresceu e vive lá até hoje. Lá mora o Mestre Eugênio, o Mestre Nemésio, o<br />
Mestre Gerônimo, o Pedro Pereira, mestres que viviam em outras localidades, e<br />
hoje vivem ali. Cada um fazia um <strong>Fandango</strong> diferente, e hoje tocam juntos. Será<br />
que vai ser o mesmo <strong>Fandango</strong>? Não vai! E é muito comum ouvir, entre eles, o<br />
julgamento de que o que o outro toca não é <strong>Fandango</strong>. É muito engraçado isso,<br />
pois mesmo com esse julgamento, tocam juntos e fazem bailes maravilhosos. E<br />
tem também a nova geração, como o Poro e o Aorélio, engajados com a cultura<br />
caiçara, que aprenderam com os antigos e já estão repassando pra gurizada<br />
nova. Tem também a os meninos que aprendem as danças com o grupo do<br />
Mestre Romão. Logo eles estarão fazendo <strong>Fandango</strong> sozinhos, e com certeza<br />
será diferente”.<br />
Outros pesquisadores também estão desenvolvendo trabalhos sérios sobre<br />
a temática do <strong>Fandango</strong> e da cultura caiçara. Entre esses exemplos está<br />
Daniela Gramani, que tem uma pesquisa bem estruturada sobre os rabequeiros;<br />
Patrícia Martins, que estudou o <strong>Fandango</strong> enquanto prática social; Otávio Zucon,<br />
que desenvolveu um trabalho sobre as lendas do litoral paranaense e as relações<br />
com o imaginário do povo.<br />
“Vemos que os paranaenses estão conseguindo deixar de lado o complexo<br />
de "inferioridade cultural", dos "sem manifestação cultural própria", para buscar<br />
de fato o que existe por aqui. A cultura caiçara, e a cultura paranaense como um<br />
todo, ainda guardam muita coisa para desvendarmos”, comemora Marcos.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
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58 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Preservação<br />
Uma das grandes preocupações de quem trabalha com a cultura popular<br />
paranaense é com a transmissão da arte do <strong>Fandango</strong>. Os mestres estão bastante<br />
idosos, debilitados pelo passar do tempo e, como muitos já morreram,<br />
levaram com eles as marcas, as peculiaridades do batido dos seus tamancos. O<br />
que Aorélio Domingues, produtor cultural e membro da Associação Mundicuera,<br />
defende é que seja feito um trabalho de repasse com os mestres que estão vivos:<br />
“Poderíamos ter escrito muita coisa já, mas não escrevemos; feito registros<br />
preciosos, mas não fizemos. Nós poderíamos reescrever afinações, gravar músicas<br />
para depois podermos trabalhar com elas, perdemos muitas oportunidades.<br />
Mas ainda há tempo”, afirma Aorélio.<br />
Hoje, o acervo de obras publicadas e a disposição para consulta pública<br />
existente em relação à memória do <strong>Fandango</strong> é bastante escasso, e a falta de<br />
políticas públicas de conservação consiste no principal agravante quando o assunto<br />
é preservar a memória da cultura caiçara. Alguns CDs com músicas e<br />
batidas foram gravados, mas estão dispersos, e a falta de recursos estruturais e<br />
financeiros acaba limitando o trabalho das pessoas que tentam promover essa<br />
conservação por meio de um arquivo de som e imagem.<br />
Alguns grupos fizeram importantes produções usando o <strong>Fandango</strong> como<br />
objeto de pesquisa como o Museu Vivo do <strong>Fandango</strong> e o Projeto Tocadores do<br />
Grupo de Arte Olaria, que fizeram uma grande pesquisa em torno do tema, que<br />
resultou em livros para consulta e material de áudio. Uma produção que só foi<br />
viabilizada porque previamente teve aprovação de Leis de Incentivo à Cultura e<br />
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foram financiadas por grandes montantes de recursos, os quais oportunizaram<br />
que uma equipe multidisciplinar pudesse se aprofundar na pesquisa e tivesse<br />
recursos para a publicação.<br />
Esses trabalhos, viabilizados graças às Leis de Incentivo, fez com que muitas<br />
pessoas que moravam nas vilas onde o <strong>Fandango</strong> é uma prática constante se<br />
interessassem mais pela preservação.<br />
“Você passa muitas vezes por uma viela, mas nunca percebe nada de diferente.<br />
Agora, passados muitos anos, você passa é vê um fotógrafo registrando<br />
aquela paisagem, aí você passa a valorizar, a admirar e a respeitar aquela viela”,<br />
é assim que Aorélio explica, a sua maneira, como as pessoas (entre elas os<br />
próprios caiçaras) tendem a valorizar sua cultura.<br />
Com o passar dos anos, a cultura sofre transformações e a diferença de<br />
rotina e de tradição influenciam para que também o <strong>Fandango</strong> sofra mutações.<br />
“Para nós aprendermos, alguém tem que nos ensinar, e quando uma pessoa<br />
ensina a outra já não adquire o mesmo suingue, a mesma jinga a mesma<br />
brincadeira. Muita coisa se perde, mas também muita coisa se acrescenta nesse<br />
processo que é a preservação da cultura, um processo de ganhas e perdas<br />
constantes”, explica Aorélio.<br />
Ele conta que os toques que conhece de viola e de rabeca aprendeu com<br />
seu avô, mas sua formação musical também teve uma importante participação<br />
do Mestre Eugênio dos Santos, um dos mais respeitados fandangueiros do<br />
Paraná, e, a partir desses ensinamentos e convivendo com outros tocadores,<br />
pode desenvolver o seu próprio estilo de fazer <strong>Fandango</strong>. Ninguém jamais vai<br />
tocar no mesmo compasso que os antigos mestres tocavam e nem bater os<br />
tamancos como os velhos fandangueiros batiam, cada um à medida que aprende<br />
insere o seu ritmo, o seu compasso.<br />
60 Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Subindo a Serra<br />
O <strong>Fandango</strong> está subindo a Serra do Mar, e não é somente com os mestres<br />
fandangueiros que vêm fazer apresentações na capital paranaense, ou são<br />
convidados para mostrar a riqueza da cultura caiçara em outras cidades e em<br />
outros estados brasileiros. O <strong>Fandango</strong> está subindo a Serra porque alguns<br />
grupos ligados à cultura popular estão inserindo em seu repertório a sonoridade<br />
dessa riqueza peculiar do folclore paranaense.<br />
Um desses grupos é o Fato que existe desde 1994 e tem seu trabalho<br />
reconhecido por críticos no Brasil e no exterior. Nas comemorações do Ano do<br />
Brasil na França, o grupo foi o responsável por apresentar na Europa a sonoridade<br />
da cultura popular paranaense, a convite da Secretaria de Estado da Cultura<br />
do Paraná.<br />
Ulisses Galetto, mentor e vocalista do grupo, conta que começaram a<br />
trabalhar com elementos do <strong>Fandango</strong> em 1995, quando estavam gravando a<br />
música “A Noite” e o então produtor do grupo na época, Paulo Brandão, sugeriu<br />
que usassem elementos da cultura popular para o arranjo. A tecladista do<br />
grupo, Grace Torres, foi aluna de Inami Custódio Pinto e sugeriu que usassem<br />
elementos do <strong>Fandango</strong>, já que tinha ouvido o professor falar muito sobre a<br />
riqueza cultural e as peculiaridades da música e da dança típicas do litoral<br />
paranaense.<br />
“Nós procuramos o professor Inami que nos ajudou muito apresentando<br />
pessoas e até nos cedendo material de seu acervo pessoal. Foi aí que começou<br />
o namoro do grupo Fato com o <strong>Fandango</strong>”, lembra Ulisses. Ele conta que<br />
passaram a desenvolver uma pesquisa sobre o <strong>Fandango</strong> entre os anos de 1998<br />
e 1999, e, a partir daí, os tamancos foram usados como elementos musicais<br />
pelo grupo.<br />
Em 2000, o Fato promoveu um show usando elementos da cultura regio-<br />
61
nal brasileira. Essa foi também a primeira vez que o Fato fez percussão com os<br />
pés, utilizando tamancos de madeira do <strong>Fandango</strong> paranaense como instrumentos<br />
importantes nos arranjos, provocando novas propostas rítmicas e sonoras.<br />
“Temos uma gratidão enorme com os mestres fandangueiros e com o professor<br />
Inami. Nós somos um grupo de música urbana e não fazemos <strong>Fandango</strong>,<br />
apenas usamos alguns elementos. Fazer <strong>Fandango</strong> fica por conta dos grupos<br />
regionais”, explica Ulisses.<br />
Quando fazem suas apresentações o som dos tamancos muitas vezes surpreende<br />
o público, e Ulisses lamenta que os elementos do <strong>Fandango</strong> sejam tão<br />
pouco conhecidos, até mesmo dos paranaenses. “No próprio meio musical,<br />
muitas pessoas nunca nem ouviram falar em <strong>Fandango</strong> e acabam usando elementos<br />
do Samba e do Maracatu em seus arranjos. O <strong>Fandango</strong> é conhecido<br />
dentro de um ambiente muito restrito no Paraná e, quando o Grupo Fato começou<br />
a trabalhar com esses elementos, lançamos uma novidade na música brasileira,<br />
um elemento que marca a personalidade do Fato. O <strong>Fandango</strong> tem elementos<br />
rítmicos muito ricos, posso até dizer que é um dos mais ricos do cenário<br />
cultural brasileiro, mas quando outros grupos que trabalham com a música popular<br />
e urbana deixam de conhecer este universo todos perdem com isso”, alerta<br />
o músico.<br />
A inovação tornou-se depois característica do grupo, marcando ainda mais<br />
a versatilidade instrumental. Esse show também foi selecionado pelo edital da<br />
Funarte e Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio de Janeiro; sendo apresentado<br />
ainda no Centro Cultural São Paulo e no SESC, pelo projeto Balaio Brasil,<br />
reunindo artistas de todo o país na capital paulista. Dentro do projeto Balaio<br />
Brasil, o grupo foi destaque nacional em virtude da sua relevância artística em<br />
aproveitar as sonoridades do <strong>Fandango</strong> paranaense de forma criativa e inovadora.<br />
No ano de 2003, com o show “Atamancados”, o grupo levou o <strong>Fandango</strong><br />
para temporadas de apresentações em Curitiba e em São Paulo.<br />
Outro grupo que também utiliza elementos característicos do <strong>Fandango</strong><br />
em suas produções é o Viola Quebrada. Em 2001, eles lançaram o CD “Viola<br />
fandangueira, Viola Quebrada e Família Pereira”, que foi um marco na promoção<br />
do ritmo do <strong>Fandango</strong> paranaense. Produzido por Osvaldo Rios e Rogério<br />
Gulin, a gravação contou com a participação de um dos grupos mais tracionais<br />
de fandangueiros: a Família Pereira.<br />
“Registramos a Família Pereira de uma forma que nunca tinha sido registrada,<br />
e como os mestres da família estão bastante velhos, acredito que esta<br />
formação dificilmente volte a fazer um trabalho semelhante”, conta Rogério Gulin,<br />
que defende que deveria ser feita uma nova tiragem do CD. Este trabalho con-<br />
62 Heloisa Garrett
sistiu em um CD duplo, um dos CDs com o grupo Viola Quebrada tocando<br />
<strong>Fandango</strong>, e outro com gravações da própria Família Pereira.<br />
Esta foi a primeira vez que um grupo de <strong>Fandango</strong> fez uma gravação em<br />
estúdio profissional. Gulin acredita que hoje o <strong>Fandango</strong> tem ganhado mais destaque,<br />
tanto no que se refere à promoção quanto à qualidade de produção/<br />
captação. “Quando conheci o <strong>Fandango</strong>, na década de 80, ele estava jogado às<br />
moscas. Hoje, com a criação das Associações de Fandangueiros e a formação<br />
dos grupos vejo que há uma preocupação maior com a sua preservação”, explica.<br />
O grupo Viola Quebrada sempre grava em seus discos marcas de <strong>Fandango</strong>,<br />
adotando a afinação de viola usada pelos fandangueiros e fazendo uma releitura<br />
dos ritmos, como uma forma de promover a arte caiçara.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
63
64 Heloisa Garrett
A viagem à Ilha de Valadares já estava marcada havia um mês, porque eu<br />
sabia que todo primeiro sábado do mês é dia de <strong>Fandango</strong> no Mercado Municipal<br />
de Paranaguá, só não sabia que em um mesmo dia eu ira em três bailes de<br />
<strong>Fandango</strong>.<br />
Quando estava chegando em Valadares, o amigo que me acompanhava<br />
ligou para Aorélio Domingos para saber se poderíamos ir até a Associação<br />
Mundicuera, ele prontamente nos atendeu e foi nos recepcionar na ponte que<br />
liga a Ilha de Valadares à cidade de Paranaguá. Desta vez não bobeamos, e,<br />
mesmo sendo contra a poluição e a degradação ambiental, entramos na ilha de<br />
carro.<br />
Chegando perto da sede da Associação, comecei a ouvir uma música<br />
envolvente e o barulho dos tamancos que silenciava o barulho da chuva que<br />
teimava em cair. A casa colorida estava iluminada, pois a noite já tinha chegado.<br />
Deixamos o carro debaixo das árvores e fomos entrando, ninguém se incomodou<br />
com a nossa presença, os casais continuaram dançando, mulheres girando<br />
suas saias e meninos batendo seus tamancos.<br />
O contrate dos pesados tamancos do <strong>Fandango</strong> com pés descalços, ou<br />
mesmo tênis calçados com os mais diferentes estilos, mostrava que o baile era<br />
de jovens. Jovens adolescentes da comunidade que se reuniram para ensaiar e,<br />
de quebra, participar de mais um capítulo da novela caiçara gravada e dirigida<br />
por Daniela Domingues.<br />
Com suas melhores roupas, Aorelio e Pôro eles tocavam o melhor<br />
<strong>Fandango</strong>, afinal a cultura e a tradição merecem honra e respeito. “Vocês vieram<br />
em um bom dia”, diz Aorélio, mais uma vez sendo receptivo à minha visita, já<br />
comecei a ficar “de casa” dos fandangueiros.<br />
Durante todo o tempo que eu fiz a pesquisa, assisti a algumas apresenta-<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações<br />
Dia de <strong>Fandango</strong><br />
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ções em vídeo e minha imaginação me fazia “ver” como era um baile de <strong>Fandango</strong>.<br />
Mas estar frente a frente com os músicos, ouvindo o som dos instrumentos que<br />
encantam por ser rústicos, ver os casais bailando e o som dos tamancos, mostrando<br />
o compasso e a harmonia desse conjunto é quase que indescritível. Principalmente<br />
para uma pessoa que optou por esse tema pela sua ignorância e que<br />
agora se vê apaixonada, encantada por um contexto envolvente.<br />
Os jovens bailarinos se preocupavam com as marcas. Mostravam respeito<br />
com a harmonia da dança. Ao mesmo tempo em que ensaiavam, eles encaravam<br />
personagens do reais e sabiam que estavam ali para mostrar a cultura caiçara<br />
na rede de computadores (o vídeo seria publicado no Youtube). Alguns mais e<br />
outros menos tímidos, todos deram a sua contribuição naquela noite. Logo que<br />
acabou o ensaio, as conversas paralelas começaram e discutiam onde seria a<br />
diversão naquela noite de sábado, afinal tinham dois bailes de <strong>Fandango</strong>, além<br />
de todas as outras programações fora do universo caiçara. Em poucos minutos<br />
eles se dispersaram e Aorélio, orgulhoso em ter nos recebido no dia certo, diz:<br />
“É isso, esses são nossos meninos, vocês puderam ver hoje do que tanto falamos,<br />
a gurizada arrematando e puxando o baile como os nossos mestres”.<br />
Saímos da Associação Mundicuera surpresos e muito empolgados com o<br />
que vimos. Um envolvimento fantástico dos jovens da comunidade e uma harmonia<br />
que nos mostrou porque o <strong>Fandango</strong> está ganhando cada vez mais defensores<br />
e admiradores.<br />
Tínhamos ainda algumas horas até que os outros dois bailes programados<br />
para a noite começassem, aproveitamos o tempo e fomos procurar mais alguns<br />
mestres fandangueiros. Acabamos chegando em uma casa onde o ensaio de um<br />
grupo de <strong>Fandango</strong> acabava de terminar. Brasílio Santos Ferres é mestre<br />
fandangueiro e faz parte do grupo de Mestre Romão, foi ele quem nos recebeu<br />
para uma entrevista junto a sua simpática família.<br />
Naquele início de noite de sábado eles estavam ensaiando com as crianças.<br />
Os grupos que se reúnem na casa de Valdemar dos Santos são dois. Um de<br />
casais da terceira idade e outro de crianças, geralmente netos desses próprios<br />
casais que integram o primeiro grupo.<br />
Um exemplo de uma das famílias que é envolvida com o grupo é a de<br />
Nadir Vidal da Silva, ela participa do grupo de fandangueiros da terceira idade,<br />
a exemplo de seus pais, que cultivavam o <strong>Fandango</strong>. Seus filhos também<br />
tamanqueavam e agora vê seus netos de oito e três anos participando assiduamente<br />
dos ensaios e das apresentações: “Somamos quatro gerações de<br />
fandangueiros, e isso é um orgulho, ver que nossa família preserva coisas saudáveis,<br />
uma tradição que veio dos nossos antepassados”, comemora Nadir.<br />
66<br />
Heloisa Garrett
Brasílio conta que no seu grupo tem oito músicos que sempre acompanham<br />
as apresentações do Mestre Romão, mas que também fazem música para<br />
as apresentações do grupo da terceira idade que trabalha com o foco do resgate<br />
do <strong>Fandango</strong>, já que a maioria dos integrantes bailava <strong>Fandango</strong> na mocidade e<br />
agora está reaprendendo. Os músicos também acompanham o grupo infantil<br />
que é formado por crianças de sete a doze anos de idade.<br />
Infelizmente não pude saber mais sobre o trabalho dos grupos coordenados<br />
por mestre Brasílio, pois eles terminaram o ensaio cedo porque serão os<br />
responsáveis por tocar o baile do Mercado em Paranaguá, que começaria dentro<br />
de poucas horas.<br />
Quando chegamos ao Mercado de Paranaguá, localizado no centro histórico<br />
da cidade, a beleza do casarão centenário encheu os olhos. O prédio,<br />
pintado de amarelo, tem suas paredes descascadas pelo tempo. Não havia muito<br />
tempo cronológico para admirar o cenário, porque a chuva teimava em incomodar.<br />
São quatro corredores que dão acesso ao centro do mercado, um espaço<br />
não muito grande, cercado por mesas e cadeiras de plástico branco, tendo<br />
ao centro um tablado de madeira.<br />
Momentos antes de o baile começar, o lugar já começava a ficar cheio.<br />
Jovens casais que vêm curtir a noite de festa na cidade, senhoras solteiras que<br />
colocaram a melhor roupa e não se sentiam intimidadas em pedir uma cerveja<br />
para o garçom, crianças e jovens achavam seu lugar nas mesas, e ficavam estrategicamente<br />
posicionados para assistir ao baile.<br />
Os tocadores estavam posicionados e, em poucos minutos, o baile começaria.<br />
Apesar de há poucas horas eu já ter sido surpreendida com a beleza dos<br />
instrumentos, mais uma vez me emocionei com o ritmo, e parecia estar ouvindo<br />
tudo pela primeira vez.<br />
Começou o baile e os oito jovens casais do grupo do Mestre Romão<br />
começaram a dançar. Ele, nada tímido, comandava os passos no centro da roda,<br />
dando a direção para os movimentos, analisando cuidadosamente o ritmo de<br />
cada um dos integrantes. Todos trajavam roupas feitas especialmente para as<br />
apresentações: os meninos vestiam calça mostarda e camisa branca, enquanto<br />
as meninas usavam saia de chita florida e uma delicada camisa. Com cabelos<br />
bem presos e uma delicadeza encantadora, elas reafirmavam o que muitos dos<br />
meus entrevistados falaram sobre a beleza e a majestade da mulher no <strong>Fandango</strong>.<br />
Eram duas marcas dançadas pelo grupo e eles abriam espaço no tablado<br />
para o público. Os próprios membros do grupo saíam convidando a plateia para<br />
bailar. Alguns acompanhavam as músicas com palmas, um envolvimento surpreendente<br />
de todos os que estavam no baile.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 67
Até eu fui chamada para dançar. Um dos integrantes do grupo do Mestre<br />
Romão me surpreendeu enquanto eu anotava informações no papel, me fez interromper<br />
o raciocínio e ir para o tablado. Depois de ficar encantada com o som<br />
da rabeca e da viola, encantada pela beleza das marcas, agora me envolvia<br />
completamente com a dança. Não troquei uma palavra com o menino, mas ele<br />
me conduziu como um cavalheiro e me ensinou em poucos minutos uma dos<br />
bailados do <strong>Fandango</strong>.<br />
Quando a música terminou, ele me conduziu ao meu lugar na mesa. Gentilmente<br />
agradeceu a dança e voltou para o seu par. Envolvida com o baile, eu<br />
pude constatar que muitas vezes durante o baile o tamanquear cala a música, e é<br />
tudo tão envolvente que quem não está de tamanco bate até o chinelo para<br />
acompanhar o ritmo.<br />
Por mim, ficava no Mercado até a última marca, mas não poderíamos<br />
perder a oportunidade de conhecer mais um baile: o baile do Mangue Seco na<br />
Ilha de Valadares.<br />
Retornamos à Ilha de Valadares para um dos bailes mais tradicionais do<br />
litoral paranaense. Algumas características marcantes diferem os dois bailes que<br />
acontecem a poucos quilômetros de distância um do outro. Enquanto o baile do<br />
mercado em Paranaguá tinha um ar mais artístico, o baile do Mangue Seco era<br />
mais popular.<br />
Este novo baile em que adentramos aconteceu em um galpão de alvenaria,<br />
construído ao lado de uma área de mangue, o que sugestivamente deu nome<br />
ao lugar. Quem anima o baile é o grupo Pé de Ouro, que é formado por músicos<br />
de diferentes faixas etárias, senhores de cabelos brancos no adufo e meninos<br />
tocando viola. Uma mescla que comprova mais uma vez que o <strong>Fandango</strong> é o<br />
bailado de gerações.<br />
Ao contrário do baile do Mercado, onde o tablado de madeira é encaixado,<br />
o que mostra que é usado ocasionalmente, no Mangue Seco ele é fixo.<br />
Outro elemento que chama a atenção é a decoração. Todas as mesas estavam<br />
enfeitadas com toalhas coloridas, assim como o teto recebe adereços.<br />
O baile era liderado por homens e mulheres de mais idade. As mulheres<br />
todas têm algumas características em comum: saias rodadas na altura das pernas,<br />
maquiadas e com sandálias de salto, mostrando que para elas a vaidade é<br />
um ponto chave.<br />
Quando o baile começou a ganhar corpo alguns senhores tiraram debaixo<br />
da mesa suas sacolas, trocando os sapatos pelos tamancos e convidando as<br />
damas para bailarem em roda. Em poucos minutos o tablado era tomado por<br />
casais que dançavam de forma sincronizada, mostrando harmonia e, acima de<br />
68<br />
Heloisa Garrett
tudo, alegria em estar se divertindo com o que, para eles, é muito mais que um<br />
divertimento, é história, é tradição.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 69
70<br />
Heloisa Garrett
Só o começo<br />
Já ouvi muitas pessoas dizerem que o Paraná é um estado que busca sua<br />
identidade cultural e era nisso que eu acreditava antes de iniciar esta obra. Não<br />
posso dizer que fiz uma pesquisa a respeito do <strong>Fandango</strong>. Seria bastante humilde<br />
da minha parte se apenas admitisse que tive a oportunidade de conhecer um<br />
pouco mais sobre a cultura caiçara, entender um pouco da diversidade da tradição<br />
popular paranaense e dos elementos que formam o nosso folclore.<br />
O Paraná é um estado que tem uma cultura popular tão intensa em diferentes<br />
vertentes que não consegue enxergar a riqueza que tem graças à diversidade<br />
de sua formação étnica. Falando especificamente no <strong>Fandango</strong>, pode-se afirmar<br />
que uma arte que estava prestes a desaparecer está ressurgindo, ganhando<br />
cada vez mais corpo e espaço graças à persistência dos mestres fandangueiros;<br />
homens que não se cansam de transmitir o conhecimento que adquiriam ao longo<br />
dos anos, e a curiosidade dos jovens caiçaras que não se envergonham em<br />
cultivar as origens de suas famílias, mas sim reúnem amigos, dedicam horas nos<br />
ensaios e o que mais querem é manter viva a tradição de suas famílias.<br />
Quando é dia de baile vemos todos os elementos da pesquisa unidos em<br />
uma mesma poesia, em um mesmo compasso de marcas, na maestria do bater<br />
dos tamancos. Jovens, idosos, famílias que se alegram em manter viva uma tradição<br />
secular. Há poucos meses o que eu via e ouvia é que o <strong>Fandango</strong> estava<br />
ficando esquecido e morrendo junto com os mestres que, debilitados pelo passar<br />
dos anos, levavam consigo a arte dessa tradição. Mas, quando fui a campo,<br />
felizmente me deparei com outra realidade, a realidade de jovens que se orgu-<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 71
lham em tocar viola e rabeca, em dar continuidade à história cultural de suas<br />
famílias.<br />
O meu objetivo aqui foi produzir um material para pesquisa e que se torne<br />
público para que os paranaenses conheçam mais sobre a riqueza cultural do seu<br />
estado, e os brasileiros possam saber que aqui no Paraná somos portadores de<br />
uma manifestação cultural que tem origem, tem história e permeia o tempo. O<br />
<strong>Fandango</strong> bailado por diferentes gerações merece respeito e admiração.<br />
E como diz Mestre Romão: “O <strong>Fandango</strong> não acaba porque está no cora-<br />
ção do nosso povo, as gerações passam, mas o bailado continua”<br />
72<br />
Heloisa Garrett
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 73
74<br />
Heloisa Garrett
Anexo I<br />
Contexto caiçara<br />
O litoral paranaense tem uma das maiores diversidades biológicas e unidades<br />
culturais do Brasil. Paisagens naturais formadas pelas ilhas de Valadares,<br />
das Peças, das Cobras, Superagui, Iguape e do Mel que criam um lindo cenário<br />
decorado com as belezas da Mata Atlântica e surpreendentes áreas de manguezal.<br />
Uma área com tanta diversidade, mas que ganha unidade sob o aspecto cultural.<br />
A mistura de tribos indígenas carijós que habitavam a região e a ocupação<br />
dos europeus que começaram a chegar nas terras paranaenses por volta de<br />
1578, foi responsável por essa diversidade étnica e cultural. Os caiçaras, como<br />
são chamados os moradores da faixa litorânea do Paraná, são descendentes de<br />
índios, sobretudo dos carijós, colonizadores portugueses e escravos negros.<br />
A área que forma o litoral paranaense foi uma das primeiras a serem colonizadas,<br />
pelos portugueses e espanhóis, no início do século XVI. Durante esse<br />
processo de ocupação das terras, os povos indígenas tiveram uma grande contribuição<br />
para o desenvolvimento econômico da região. Essa relação é<br />
exemplificada na obra Museu Vivo do <strong>Fandango</strong>, que promove um apanhado<br />
histórico da cultura litorânea e defende que a contribuição dos povos indígenas<br />
foi essencial para a constituição dos instrumentos usados para a pesca, a caça e<br />
a produção de farinha de mandioca, em todas as ações e na cultura dos primeiros<br />
ocupantes do litoral.<br />
Os caiçaras foram objeto de estudo de muitos pesquisadores que defen-<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 75
diam a diferença entre a cultura caiçara e a cultura cabocla. Paulino de Almeida<br />
(1945) apresenta o modo de vida caiçara nos primeiros anos do século XX,<br />
descrevendo os caiçaras como uma comunidade que sobrevive entre as atividades<br />
agrícola e pesqueira: “Nessa luta terrível, ora para a terra ora para o mar,<br />
consomem toda a energia, julgando-se felizes quando conseguem algumas roças<br />
de mandioca e os apetrechos principais para a pesca” (p.70).<br />
A cooperação entre a comunidade do litoral paranaense sempre foi um<br />
ponto forte da cultura caiçara, e a grande responsável pela prática do <strong>Fandango</strong>.<br />
Os moradores se uniam nas práticas agrárias e para os trabalhos mais pesados,<br />
como a prática do solo para o posterior plantio, faziam o mutirão. Uma ação<br />
que era resultado da ajuda mútua que geralmente acontecia nos fins de semana.<br />
Além do caráter solidário, o mutirão também era uma forma de convívio social.<br />
Com o êxodo rural que teve uma ação forte entre os anos de 1930 e<br />
1950, época em que foram construídas as primeiras estradas de rodagem ligando<br />
o centro do Estado com o litoral, a expectativa de crescimento econômico<br />
fez com que muitas famílias deixassem suas atividades rurais. Outro fator que<br />
contribuiu para a degeneração da cultura caiçara foi à instituição das áreas de<br />
preservação ambiental, que acabou impedindo que muitas famílias continuassem<br />
sobrevivendo das atividades de subsistência. Esta ação governamental que teria<br />
como objetivo conter a especulação imobiliária e proteger a Mata Atlântica acabou<br />
por expulsar os caiçaras de suas terras de origem.<br />
76<br />
Heloisa Garrett
Anexo I<br />
Características gerais<br />
Em cada localidade, o <strong>Fandango</strong> adquire características estéticas diferentes.<br />
No litoral paranaense e no litoral sul paulista ele tem muitas semelhanças em<br />
comum. Existem relatos de historiadores comentando que moradores dessas<br />
localidades saíam de São Paulo para vir até os bailes que aconteciam no Paraná.<br />
Daniela Gramani (2006) diz que o <strong>Fandango</strong> é uma das manifestações da<br />
cultura popular que possui regras estéticas bem definidas, reunindo dança e música,<br />
mas a riqueza da realidade artística dessa cultura está nas características específicas<br />
que adquire em cada localidade.<br />
A palavra <strong>Fandango</strong>, de acordo com Inami Custódio Pinto (2006) é de<br />
origem espanhola e significa “baile ruidoso acompanhado por viola”. O pesquisador<br />
explica em suas obras que o <strong>Fandango</strong> foi trazido ao Brasil pelos colonizadores,<br />
mas modificou-se com o passar do tempo, adquirindo características<br />
próprias no litoral paranaense.<br />
“Não sei de nenhuma outra manifestação que, sob essa denominação,<br />
se pareça com o fandango em ocorrência em toda a faixa litorânea<br />
paranaense, nas ilhas e logo ao pé da serra, em Morretes e Porto de Cima.<br />
Por isso, considero o fandango manifestação paranaense”. (PINTO, 2006,<br />
p. 98)<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 77
Para o autor, o <strong>Fandango</strong> que se manifesta em outros Estados do Brasil<br />
difere do paranaense, visto que se apresenta com outras formas. Como exemplo,<br />
ele cita que o <strong>Fandango</strong> acontece nas regiões Norte e Nordeste, sob a<br />
forma de autos nos quais a música e a dança têm menos importância, pois vale<br />
mais a parte dramatizada, como as cheganças: chegança de mouros, chegança<br />
de marujos, marujada, barca, nau catarineta. Em outros, denominam-se gafieira,<br />
bate-coxas, baile de mistura, e, principalmente no Rio Grande do Sul, trata-se<br />
de um baile comum que inclui vários ritmos: xote, vanerão, rancheira, bugiu, etc.,<br />
e uma ou outra vez dançam em conjunto uma dessas marcas de <strong>Fandango</strong>, que,<br />
embora tenham os mesmos nomes de algumas marcas integradas no <strong>Fandango</strong><br />
paranaense, diferem quase que completamente e têm como características principais<br />
o sapateio, feito com botas de couro, o sarandeio das prendas, e o bater<br />
de palmas, que lembram as danças românticas de Espanha e Portugal.<br />
A pesquisa de Inami Custódio Pinto sobre o fandango teve início no ano de<br />
1952. Entretanto, registros como os realizados pelo projeto Museu Vivo do<br />
<strong>Fandango</strong> mostram que sua tradição, com as mesmas formas registradas no<br />
litoral paranaense, ocorrem também em localidades do litoral do Estado de São<br />
Paulo.<br />
O <strong>Fandango</strong> está ligado diretamente a momentos de confraternização e<br />
alegria. Ele é uma arte coletiva, que envolve a comunidade. Para que um baile<br />
aconteça são necessários no mínimo dois músicos, e três pares para dançar.<br />
No <strong>Fandango</strong> são considerados mestres os músicos mais velhos e experientes,<br />
que dominam não só o instrumento, como também os valores presentes<br />
na cultura. Em um baile e na própria vida em comunidade eles são respeitados<br />
como patriarcas. Cada um tem características e dons peculiares, e são reconhecidos<br />
por isso.<br />
Em um baile ou apresentação artística uma diversidade de modas ou marcas,<br />
como são chamadas pelos fandangueiros as músicas, é apresentada, dançada<br />
e tocada em diferentes ritmos; elas mostram a riqueza da criação artística dos<br />
caiçaras. “Cada uma delas se diferencia das outras pela temática abordada, pela<br />
estrutura rítmica, pela estrutura dos versos e pelos elementos de dança”<br />
(GRAMANI, 2006)<br />
Inami registou mais de 50 marcas de <strong>Fandango</strong> no litoral paranaense:<br />
chamarrita, dandão, tonta, queromana, baila vem, Chico loco, Chico valseado,<br />
caranguejo, dandão, passeado, cana verde, feliz, xarazinho, xará grande, a tonta,<br />
o anu, marinheiro, andorinha... essas são algumas das denominações das<br />
marcas, sendo que algumas recebem diferentes denominações dependendo em<br />
que região do litoral paranaense é tocada e dançada.<br />
78<br />
Heloisa Garrett
“As modas batidas ou rufadas exigem do dançador conhecimento<br />
prévio das coreografias, tal a complexidade e as variações. De um modo<br />
geral, são dançadas em círculo e os homens batem palma e tamanqueiam.<br />
Muitas vezes, uma roda de batido, um dos homens assume o papel de mestre,<br />
mestre de sala, marcador ou puxador, servindo seu tamanqueado de<br />
referência para os demais batedores” (GRAMANI, 2006, p.21)<br />
Na roda é comum encontrar alternância de homens e mulheres, mas também<br />
é comum encontrar pares formados por mulheres, o que nas marcas batidas<br />
não é permitido. Já tamanquear e bater palmas são funções dos homens, as<br />
mulheres também podem bater os tamancos, mas é raro, porque tradicionalmente<br />
este é uma função masculina. Uma das principais características das danças<br />
do <strong>Fandango</strong> são os desenhos coreográficos que os valsados formam.<br />
A riqueza da poética que cerca os versos que formam as músicas do<br />
<strong>Fandango</strong> é singular. Tratando dos mais diversos temas, a estrutura poética sempre<br />
está baseada em situações do cotidiano dos caiçaras, e, principalmente, retratando<br />
elementos da natureza. Dentro da construção das composições, a maioria<br />
das estrofes é formada por quatro versos de rima, e a maioria das marcas apresenta<br />
refrão. Mas os versos também podem ser improvisados, uma habilidade<br />
que causa admiração entre os homens e as mulheres que fazem parte do univer-<br />
so do <strong>Fandango</strong>.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 79
80<br />
Heloisa Garrett
Posfácio<br />
Modernidade e tradição <strong>–</strong> a encruzilhada<br />
do <strong>Fandango</strong><br />
Talvez o ponto nevrálgico sobre o destino do <strong>Fandango</strong>, e mesmo o<br />
epicentro da discussão sobre o que será de seu futuro, resida na força ambígua<br />
que a modernidade e a tecnologia possa oferecer a seus propósitos cultuais. Ela<br />
pode tanto perpetuar a tradição quanto fazê-la sucumbir perante as seduções<br />
dos apetrechos lúdicos presentes na web e na indústria do entretenimento.<br />
Visitando os redutos de prática do <strong>Fandango</strong> em Valadares e Paranaguá,<br />
fica fácil perceber o interesse do público jovem, em especial de crianças, o que<br />
causa certa surpresa, já que no ambiente televisivo e virtual não se encontra<br />
qualquer referência à prática cultural que se canta e dança nestas localidades.<br />
Provavelmente as crianças são as maiores vítimas dos efeitos da mídia de massa,<br />
e o litoral paranaense não está isolado de sua influência. No filme<br />
“Corporation”, uma das depoentes (o documentário faz um apanhado de entrevistas<br />
com estudiosos sobre os efeitos perniciosos das grandes corporações na<br />
economias, sociedades e hábitos de consumo) relata que se pode considerar o<br />
marketing voltado às crianças na atualidade, se comparado aos esforços praticados<br />
em décadas anteriores, como um míssil teleguiado ao lado de um estilingue.<br />
Esse esforço cirurgicamente bem calculado e aplicado está distribuído em todas<br />
as partes do globo, e um país emergente como o Brasil logicamente não está de<br />
fora neste mapeamento. Sendo assim, o fandango paranaense acaba disputando<br />
interesse com personagens de ação japoneses, jogos de última geração e figurinhas<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 81
com hologramas. A presença de tentações virtuais também é grande, Valadares<br />
possui um lan house disputada e já em sua entrada vemos um telão ao lado da<br />
ponte exibindo filmes publicitários armazenados em suporte digital. O que torna<br />
então o <strong>Fandango</strong> uma opção de entretenimento atrativa para crianças e adolescentes?<br />
As suposições são variadas, mas algumas encontram fundamento já em<br />
um breve exercício de raciocínio lógico, conforme segue.<br />
Imitação de modelo: as crianças praticam o mimetismo desde a mais tenra<br />
idade, e percebem em seus progenitores um referencial a ser seguido. Quando<br />
este referencial é multiplicado pela presença de tios, avós e outros familiares,<br />
amplia-se a força de adesão e obtém-se maior cumplicidade e interesse por<br />
parte dos mais novos. Isso somado à ludicidade do tamancar, à alegria da dança<br />
e ao balanço e cor dos trajes, forma uma junção de componentes que por si só<br />
já são suficientemente argumentativos.<br />
Exercício de sociabilidade: analisando a Pirâmide de Maslow (modelo desenvolvido<br />
para hierarquizar as necessidades humanas, começando pelas mais<br />
básicas, como alimentação, e indo às mais elevadas, como auto-realização) veremos<br />
que a aceitação social é um dos itens de maior importância para o bemestar<br />
de um indivíduo. A própria OMS classifica a harmonia social como um dos<br />
fatores que caracterizam a saúde de um indivíduo. Sendo assim, a integração<br />
social promovida pelo <strong>Fandango</strong> é, sem dúvida, um forte apelo à participação<br />
dos mais novos. A dança permite a interação entre sexos, um diálogo corporal<br />
que corresponde a um dos mais antigos rituais de passagem, e isso em praticamente<br />
todas as culturas.<br />
Possibilidade de prática de uma atividade prestigiada: obter destaque e<br />
certo status de celebridade em um ambiente de possibilidades modestas é uma<br />
promessa bastante sedutora. Graças ao <strong>Fandango</strong>, muitos jovens têm o privilégio<br />
de se tornarem merecedores de aplausos e admiração, tanto pela própria<br />
comunidade quanto por visitantes e turistas que chegam ao litoral.<br />
Apoio de órgãos públicos: graças ao incentivo das prefeituras e do governo,<br />
são promovidos bailes de <strong>Fandango</strong> com certa regularidade, o que faz com<br />
que a atividade não se restrinja a uma prática mais doméstica e limitada a quintais<br />
e espaços confinados.<br />
Chance de viajar para outras localidades: muitas vezes, os grupos de<br />
<strong>Fandango</strong> são convidados a participar de eventos culturais em outras cidades e<br />
estados. É uma chance de os praticantes da arte poderem conhecer outras localidades,<br />
pessoas e culturas, desfrutando ainda de certos luxos e mordomias.<br />
Com isso, mesmo os mais novos, que ainda não tem a possibilidade de viajar,<br />
82<br />
Heloisa Garrett
percebem nesta possibilidade um atrativo dos mais convincentes.<br />
Logicamente que o <strong>Fandango</strong> é uma prática divertida e não apenas uma<br />
manifestação cultural e folclórica, mas o fato é que cada vez mais as opções de<br />
entretenimento tem se tornado mais vastas, sedutoras e indiscretas, no sentido<br />
de chamarem a atenção de forma gritante. Em meia hora de navegação na web,<br />
o internauta tem a possibilidade de visitar diversos sites divertidos, conversar<br />
com outras pessoas, ouvir músicas e ver vídeos dos mais diversos temas. Fenômeno<br />
similar ocorre ao se zapear nos canais de TV a cabo. Some-se a isso o<br />
som escandaloso dos ritmos jovens, como funk e hip hop, e teremos uma acervo<br />
de opções extra-fandango com forte apelo para os mais novos. Outro fator<br />
que causa certa surpresa quanto à adesão de jovens ao <strong>Fandango</strong> está no fato<br />
de ser um ritmo nada aliado a sex appeal: ao contrário de outras danças litorâneas,<br />
é uma das poucas que fazem uso de traje longo.<br />
As peculiaridades do <strong>Fandango</strong> exercem uma estranha incompatibilidade<br />
com os ritmos de áreas à beira-mar de nosso país: não há apelos libidinosos, as<br />
roupas apresentam um colorido comportado e cobrem quase a totalidade do<br />
corpo, os adereços são econômicos e a música carece do vigor pulsante e agitado<br />
das canções que embalam as regiões mais quentes do Brasil. Com isso,<br />
podemos afirmar que, por comparação, os jovens se sentiriam pouco atraídos<br />
ou até excluídos do contexto padronizado que engloba os sucessos de música e<br />
dança de norte a sul do país. Por outro lado, lega ao fandango muito mais identidade,<br />
tornando-o uma arte folclórica à parte no cenário nacional.<br />
De acordo com alguns estudos, nem sempre o <strong>Fandango</strong> foi uma dança<br />
bem comportada no vestuário e nas coreografias como o é hoje. Era dançado,<br />
inclusive, em outras localidades do estado que não só a litorânea, como a região<br />
dos Campos Gerais, notoriamente Guarapuava, onde se manifestava com maior<br />
vigor e organização comunitária. Porém, a dança, que tinha origem cabocla e<br />
exercia um cerimonial considerado agressivo (tamancos batendo fortemente no<br />
assoalho e gritos dos fandangueiros dançando em roda) foi discretamente posta<br />
em boicote e até censura por parte de governos mais autoritários, em especial<br />
no período dos chamados “anos de chumbo”. Foi quando o governo promoveu<br />
a apologia a ritmos nordestinos, considerados mais dóceis e comportados, em<br />
detrimento das danças e músicas do sul do país, onde temos também (ou principalmente)<br />
as tradições gauchescas marcadas por simbologias consideradas rebeldes,<br />
seja nas coreografias, seja no vestuário. O passado de resistência do<br />
povo gaúcho e a tentativa de levante de Leonel Brizola para resistência ao golpe<br />
militar no final da era Jango também contribuíram para esta situação<br />
segregacionista pela qual passaram as manifestações artísticas do sul do Brasil<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 83
neste período.<br />
Com isso, podemos perceber que não só a tecnologia e a mídia podem<br />
exercer influência sobre o <strong>Fandango</strong>, mas também a ideologia e os interesses<br />
econômicos e sociais. Há ainda o componente da religiosidade, pois a dança<br />
fandangueira já foi considerada herege, sendo censurada e reprimida em sermão<br />
dominical. A batida contundente do <strong>Fandango</strong> parecia representar uma abominação,<br />
um ritual de apologia subliminar à violência e à invocação das coisas do<br />
mal. A ingenuidade do discurso não é mais flagrada nas igrejas, mas não se sabe<br />
até que ponto ocorre algum desestímulo à prática do <strong>Fandango</strong> em religiões de<br />
conduta mais severa, como os templos evangélicos <strong>–</strong> que, aliás, juntamente com<br />
os bares, são o tipo de “estabelecimento” mais presente na Ilha de Valadares.<br />
Para dar maior alcance à disseminação do ritmo, e também para englobar<br />
uma nova possibilidade musical em seu estilo, o grupo Fato, um dos maiores<br />
expoentes artísticos do Paraná, adotou as marcas, os instrumentos e a tradição<br />
do <strong>Fandango</strong> a partir de seu terceiro disco, intitulado “O Que Lá Tá Que Lá<br />
Teje”. A inventividade foi muito bem recebida pela crítica, e uma das faixas,<br />
justamente chamada de “<strong>Fandango</strong>”, recebeu até uma versão de videoclip dirigido<br />
pela renomada cineasta Heloísa Passos. O vídeo foi veiculado no Brasil e<br />
exterior, sendo exibido em canais de TV a cabo da Europa e Estados Unidos.<br />
Nele, vemos Mestre Romão e outros fandangueiros participando de um baile<br />
que mais lembra uma rave. Até que ponto tal ousadia foi agressiva ou meramente<br />
uma fusão entre tradição e modernidade para tornar a música mais palatável<br />
ao público jovem, fica difícil de medir. Recentemente, comemorando seus 20<br />
anos de história, o grupo Fato fez um show histórico no qual reuniu todos os<br />
colaboradores, integrantes e ex-integrantes que compuseram sua história, mais<br />
uma vez fazendo uso dos elementos percussivos do <strong>Fandango</strong>, dentre eles um<br />
bastante inusitado denominado “tamancália”: uma caixa de madeira que possui<br />
um acessório munido de diversos tamancos que, ao serem acionados, batem<br />
todos simultaneamente fazendo o efeito sonoro de um grupo de dançarinos<br />
sapateando simultaneamente. Tanta inventividade proporcionou ao Fato turnês<br />
a diversas localidades do Brasil e até mesmo para a França divulgando sua<br />
música. A validade da simbiose arrojada proposta pelo grupo por vezes entra<br />
em atrito com as concepções de muitos estudiosos do <strong>Fandango</strong>, mas fica difícil<br />
de negar que seu trabalho consiste no maior marco de repercussão das influências<br />
do ritmo gerado até hoje, isso ao ponto de o Fato ter suas músicas executadas<br />
junto à Orquestra Sinfônica do Paraná, em versão erudita regida pelo<br />
maestro Alessandro Sangiorgio.<br />
Se o futuro do <strong>Fandango</strong> será manter-se tradicional como o executado<br />
em Valadares ou modernizado como o apresentado por diversas partes através<br />
84<br />
Heloisa Garrett
do Fato, fica difícil de se saber. Porém, indiferente ao formato que terá daqui<br />
para a frente, o importante é que seu legado se perpetue pelas próximas gerações,<br />
e que o ritmos seja efetivamente, reconhecido, assimilado e tornado moti-<br />
vo de orgulho para todos os paranaenses.<br />
Mário Lopes<br />
Publicitário, pesquisador e roteirista.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 85
Agradecimentos<br />
Como todos dizem quando escrevem seus agradecimentos, corro o risco<br />
de ser injusta nesse momento. Não posso deixar de agradecer a todos os meus<br />
entrevistados que confiaram em mim, abrindo as portas de suas casas, abrindo<br />
seus corações, falando de suas memórias e de suas expectativas. Quero agradecer<br />
especialmente a minha filha que entendeu as horas que deixamos de brincar<br />
para que eu pudesse me dedicar integralmente a esta pesquisa. Ao meu marido<br />
que não se incomodou ao ver a sala da nossa casa se transformando em uma<br />
sala de estudos, e ainda se dispunha a me acompanhar em muitas das entrevistas,<br />
castigando muito dos nossos fins de semana em família. Agradeço a todos os<br />
meus amigos que não mediram esforços para me ajudar na busca de personagens,<br />
que em especial a Mario Lopes que foi um apoio importante em muitos<br />
momentos. Aos amigos e familiares que me ajudaram nos momentos onde eu<br />
pensava que não daria conta de conciliar a vida pessoal, e profissional a uma<br />
proposta de pesquisa que requer tempo e dedicação. Agradeço a todos aqueles<br />
que sabem o quanto concluir este trabalho é importante para a minha vida, e por<br />
isso foram responsáveis para que eu chegasse até aqui.
88<br />
Heloisa Garrett
Onde encontrar mais sobre o <strong>Fandango</strong>,<br />
algumas dicas de biografia:<br />
Título: Tocadores. Homem, Terra, Música e Cordas<br />
Autores: MARCHI, Lia; SAENGER, Juliana; CORREA, Roberto<br />
Editora: Adalberto Camargo / Studio Adalba<br />
Realização: Olaria Projetos de Arte e Educação.<br />
Cidade/ano: Curitiba, 2002<br />
Título: Museu Vivo do <strong>Fandango</strong><br />
Autores: PIMENTEL, Alexandre, GRAMANI, Daniela e CORRÊA, Joana<br />
(org.)<br />
Editora: Associação Cultural Taubaté<br />
Cidade Ano: Rio de Janeiro, 2006<br />
Título: <strong>Fandango</strong> de Mutirão<br />
Autor(a): BRITO, Maria de Lurdes da Silva (org.)<br />
Direção musical: Rogérioio Gulin<br />
Editora: do autor<br />
Cidade/ano: Curitiba, 2003<br />
Título: Cadernos de Folclore - <strong>Fandango</strong> do Paraná<br />
Autor: AZEVEDO, Fernando Correa de<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 89
Editora: Ministério da Educação e Cultura<br />
Cidade/ano: Rio de Janeiro, 1978<br />
Título: Rabeca, o Som Inesperado<br />
Autores: GRAMANI, José Eduardo (pesquisa) & GRAMANI, Daniella (organização)<br />
Cidade/ano: São Paulo, 2002<br />
Título: A [des]Construção da Música na Cultura Paranaense<br />
Organizador: NETO, Manuoel J. de Souza<br />
Editora: Aos Quatro Ventos<br />
Cidade/ano: Curitiba, 2004<br />
Título: Cultura Caiçara. Resgate de um Povo<br />
Autor(a): BRANCO, Alice<br />
Editora: Ministério da Cultura / Oficina do Livro e Cultura<br />
Cidade/ano: Peruí¬be (SP), 2005<br />
Título: Enciclopéia Caiçaara vol. II - Falares Caiçaras e vol. V - Festas,<br />
mitos e lendas caiçaras<br />
Autor: FORTES FILHO, Paulo (vol. II) e DIEGUES, António Carlos Santanna<br />
(org.)<br />
Editora: HUCITEC : NUPAUB : CEC/USP<br />
Cidade/ano: São Paulo, 2005<br />
Título: Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares<br />
Editora: Instituto Polis/ Ministério da Cultura<br />
Cidade/ano: São Paulo; 2005<br />
Título: Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil<br />
Autor: DIEGUES, António Carlos e REINALDO, S. V. Arruda (org.)<br />
Editora: Ministério do Meio Ambiente / USP<br />
Cidade/ano: Brasília / São Paulo, 2001<br />
90<br />
Heloisa Garrett
Título: Pratos Típicos do Paraná<br />
Coordenador: Renato Augusto Carneiro Jr<br />
Editora: Secretaria de Estado da Cultura<br />
Cidade/ano: Curitiba / Paraná, 2004<br />
Título: Simpósio de Cultura Paranaense. Terra, Cultura e Poder<br />
Autor: Secretaria de Estado da Cultura<br />
Cidade/ano: Curitiba / Paraná, 2003<br />
Título: Festas Populares do Paraná<br />
Coordenador: Renato Augusto Carneiro Jr<br />
Editora: Secretaria de Estado da Cultura<br />
Cidade/ano: Curitiba / Paraná, 2005<br />
Título: Lendas e Contos Populares do Paraná<br />
Coordenador: Renato Augusto Carneiro Jr<br />
Editora: Secretaria de Estado da Cultura<br />
Cidade/ano: Curitiba / Paraná, 2005<br />
Título: Iguape: Princesa do Litoral, Terra do Bom Jesus, Bonita por Natureza<br />
Autor: JUNIOR, Alberto Pereira (organizador)<br />
Editora: Nova América<br />
Cidade/ano: São Paulo, 2005<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 91
92 Heloisa Garrett
Referências Bibliográficas<br />
ALMEIDA, Paulino. Da decadência do litoral paulista. Revista do Arquivo<br />
Municipal, ano X, 2005.<br />
CORREIA, Marly Garcia. O <strong>Fandango</strong> que acompanha o barreado.<br />
Maxigrafica. Curitiba, 2002.<br />
LAUREIRO FERNANDES, J. A contribuição à geografia da Praia de Leste.<br />
Arquivos do Museu Paranaense, Vol. 6. Secretaria de Estado da Cultura<br />
do Paraná, 1947.<br />
PIMENTEL, Alexandre; GRAMANI, Daniella, CORREA, Joana. Museu Vivo<br />
do <strong>Fandango</strong>. Rio de Janeiro, 2006.<br />
PINTO, Inami Custódio. Folclore: Aspectos gerais. IBPEX. Curitiba, 2006.<br />
<strong>Fandango</strong>,o bailado de gerações 93
Heloísa Garrett é estudante<br />
de jornalismo, atuante na área<br />
de assessoria de imprensa, tendo<br />
se tornado pesquisadora do<br />
<strong>Fandango</strong> devido ao semiineditismo<br />
do tema. Hoje, é<br />
apreciadora e divulgadora ativa<br />
desta manifestação cultural sem<br />
similar.