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MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS ...

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<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />

Travessia e Melancolia<br />

Patricia da Silva Carmello<br />

Rio de Janeiro, março de 2011.<br />

UFRJ – Faculdade de Letras


<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />

Travessia e Melancolia<br />

Patricia da Silva Carmello<br />

Tese de Doutorado apresentada ao programa<br />

de pós-graduação em Ciência da Literatura da<br />

Faculdade de Letras da Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro como parte dos requisitos<br />

necessários à obtenção do título de Doutor em<br />

Ciência da Literatura (Teoria Literária).<br />

Orientador: Professora Dra. Vera Lins.<br />

Rio de Janeiro, março de 2011.<br />

UFRJ – Faculdade de Letras


<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia<br />

Patricia da Silva Carmello<br />

Orientadora: Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da<br />

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos<br />

necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria<br />

Literária).<br />

Aprovada por:<br />

________________________________________________________<br />

Presidente, Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />

________________________________________________________<br />

Prof a . Doutora Ana Luiza Martins Costa – Pesquisadora independente<br />

________________________________________________________<br />

Prof a . Doutora Marília Rothier Cardoso – PUCRio<br />

________________________________________________________<br />

Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ<br />

________________________________________________________<br />

Prof a . Doutora Flávia Trôcoli – UFRJ<br />

________________________________________________________<br />

Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ (suplente)<br />

_________________________________________________________<br />

Prof a . Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ (suplente)<br />

Rio de Janeiro<br />

Março de 2011


<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia<br />

Patricia da Silva Carmello<br />

Orientadora: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência<br />

da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro –<br />

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em<br />

Ciência da Literatura (Teoria Literária).<br />

A presente tese tem por objetivo pesquisar as noções de memória e<br />

esquecimento no romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, tomando<br />

como principal orientação a fala de Riobaldo, seu narrador. Partindo das articulações<br />

entre a memória coletiva, a memória individual e a narrativa, encontra-se uma<br />

concepção de memória, no romance, como uma terceira instância, estabelecida sempre<br />

como negatividade, pautada nas concepções de inconsciente e real, de Freud e Lacan; e<br />

na concepção de um tempo-de-agora, ou tempo entrecruzado de Walter Benjamin. A<br />

tensão entre a travessia e a melancolia insere-se tanto nos aspectos históricos e coletivos<br />

da rememoração – no testemunho do narrador sobre a cidade que vem acabar com o<br />

sertão – como nos entraves para atravessar o trauma relacionado a Diadorim. O<br />

processo de rememoração de Riobaldo é concebido como composto de temporalidades<br />

que se sobrepõem, como uma montagem não-linear e não-objetiva, constituída a partir<br />

dos erros e fracassos da memória, que apontam para sua dimensão de fantasma, de<br />

ficção e de esquecimento.<br />

Palavras-chave: memória, esquecimento, negatividade, inconsciente.<br />

Rio de Janeiro<br />

Março de 2011


RESUMÉ<br />

La présente thèse a pour but d’examiner les représentations de la mémoire et de<br />

l’oubli dans le roman Diadorim (Grande Sertão: veredas, en portugais), de João<br />

Guimarães Rosa, axées sur le discours de Riobaldo, son narrateur. L’analyse des<br />

articulations entre la mémoire collective, la mémoire individuelle et le récit, appuyée<br />

par les concepts de Freud et Lacan sur l’inconscient et le réel et par celui de Walter<br />

Benjamin sur le “temps de maintenant” (jetztzeit), nous a permis de dégager du texte<br />

une conception de mémoire comme une troisième instance, toujours établie comme<br />

négativité. La tension entre la traversée et la mélancolie s’insère soit dans les aspects<br />

historiques et collectifs de l’acte de se souvenir – le témoignage du narrateur sur la ville<br />

qui vient mettre fin à la campagne semi-aride du Brésil (sertão) –, soit dans les<br />

obstacles pour traverser le trauma lié à Diadorim. Nous envisageons le processus de<br />

remémoration chez Riobaldo comme des temporalités qui se superposent de façon non-<br />

linéaire et non-objective. Celles-ci se constituent à partir des erreurs et de l’échec du<br />

souvenir, évocant ainsi sa dimension du fantôme, fictionnel et rattachée à l’oubli.<br />

Mots-clés: mémoire, oubli, négativité, inconscient.<br />

Rio de Janeiro<br />

Março de 2011


Carmello, Patricia da Silva.<br />

Memória e Esquecimento no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa:<br />

Travessia e Melancolia/ Patricia da Silva Carmello. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011.<br />

xi, 232f<br />

Orientadora: Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras<br />

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2011.<br />

Referências Bibliográficas: f. 220-232<br />

1. João Guimarães Rosa. 2. Grande Sertão: Veredas. 3. Memória e esquecimento. 4.<br />

Inconsciente 5. Montagem. I. Lins, Vera Lúcia de Oliveira. II. Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro, Programa de Ciência da Literatura. III. Memória e Esquecimento<br />

no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa – travessia e melancolia.


SUMÁRIO<br />

Introdução........................................................................................................................15<br />

I. <strong>MEMÓRIA</strong> E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS <strong>MEMÓRIA</strong>S.................20<br />

- Duas formas de memória e um mundo misturado................................................20<br />

-Tempos modernos, recordação e romance............................................................27<br />

-Um sujeito com pouco caroço..............................................................................35<br />

-O contador de estórias...........................................................................................43<br />

- O senhor sabe: um narrador em extinção............................................................49<br />

- Memória coletiva, uma memória “feliz”?............................................................59<br />

II. DESENHO E DESGRAÇA: <strong>SERTÃO</strong> EM RUÍNAS................................................69<br />

- Sertão, paisagem subjetiva..................................................................................70<br />

- Retrato negativo..................................................................................................84<br />

- Raízes e resíduos do Brasil.................................................................................88<br />

- Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos..........................................95<br />

- Mundo misturado, mundo à revelia....................................................................99<br />

- Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha................................109<br />

- Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?.............................................115<br />

- Um outro cortejo...............................................................................................120<br />

III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E <strong>ESQUECIMENTO</strong>...........................................127<br />

- Vida inquieta, inquietante estranheza.................................................................127<br />

- A selvagem desgraça, ainda...............................................................................132<br />

- Dor em Aberto....................................................................................................137<br />

- Travessia de minha vida.....................................................................................143<br />

- Dos fracassos da memória ao esquecimento.....................................................151<br />

- Depois após: divisão do tempo e do sujeito.......................................................155<br />

- Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado.......................................160<br />

- Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio....................................164


IV. OFICINA ABERTA: PALAVRA, IMAGEM E <strong>ESQUECIMENTO</strong>.......................174<br />

- Os Nomes da Memória.......................................................................................174<br />

- As terceiras memórias ou Uma História do Coração........................................184<br />

- Imagens do esquecimento..................................................................................197<br />

- Montagem, jogo, dansa......................................................................................202<br />

CONCLUSÃO: RESTOS – DO <strong>SERTÃO</strong> – A CONCLUIR.......................................214<br />

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................220


INTRODUÇÃO<br />

Sertão é, de fato, palavra gasta em nossos estudos literários atuais; faz lembrar a<br />

célebre conferência-ensaio de Paul Valéry “Poesia e Pensamento Abstrato” 1 , onde o<br />

poeta e ensaísta compara as palavras ao dinheiro, esse papel sujo, passado de mão em<br />

mão, essa palavra que passou por tantos olhos, “tantas bocas e tantas frases, tantos usos<br />

e abusos...” 2 – É o que parece apontar o imenso volume de teses, dissertações e<br />

publicações sobre Grande Sertão: veredas 3 (1956), de João Guimarães Rosa, numa<br />

intensa produção que persiste, apesar de passados mais de 50 anos de sua publicação,<br />

em incontáveis abordagens, desde estudos baseados na botânica, até a filosofia oriental,<br />

passando pela psicanálise e a filosofia do direito 4 .<br />

Pois, ao circular assim, na mão de tantos, o sertão arrisca-se, tal como este<br />

papel, dinheiro gasto pelo valor de troca, a provocar o esquecimento de sua dimensão<br />

poética, aquela que nos faz recordar, aquela que provoca simultaneamente o sonho e o<br />

despertar, que nos faz retomar as origens da palavra e buscar renovados sentidos da<br />

linguagem em nossa própria experiência, reinscrevendo assim a própria experiência no<br />

passado, no presente e no futuro.<br />

E, no entanto, como afirma Valéry em relação a qualquer palavra, bastou o gesto<br />

de deter-me sobre ela, como na imagem do poeta; bastou uma pausa, um<br />

questionamento da própria repetição dos sentidos consensuais, no início mesmo deste<br />

processo de escrita, para que o abismo se apresentasse e colocasse em xeque os<br />

significados estabelecidos. Bastou uma espera, uma respiração, para que o silêncio se<br />

apresentasse – e foi o que ocorreu com esta pesquisa sobre o sertão, que acabou se<br />

1<br />

VALÉRY, P. (1999) p.195.<br />

2<br />

Idem.<br />

3<br />

ROSA, J.G. (2001). A partir de agora, será citado com as iniciais ou como Grande Sertão, a fim de<br />

evitar excesso de notas.<br />

4 Cf. SCRIPTA (1998).


tornando uma viagem em busca de sentidos, senão novos, talvez menos pensados e<br />

comunicados, tal como uma procura pelos restos desta palavra e de todas as outras que a<br />

contornam junto ao tema da memória e do esquecimento, segundo a minha imagem,<br />

para me apropriar de uma expressão usada pelo próprio Rosa em entrevista 5 .<br />

A travessia, de saída, parece árdua, trazendo a seguinte questão: como trabalhar<br />

com uma linguagem tão plástica, onde as imagens e as palavras se (re)combinam tão<br />

livremente? É como nos versos de Octavio Paz, “Tudo é porta / tudo é ponte” 6 ; seria<br />

preciso “traduzi-la” em matéria acadêmica? O risco de aplicar uma teoria ao texto era<br />

imediato, era colocar-me entre o escritor e sua amante, a língua, de acordo com a<br />

citação já tornada referência, da mesma entrevista de Rosa ao tradutor alemão 7 . Por isso,<br />

a primeira imagem que me ocorreu, ao pensar a relação entre teoria e texto literário, foi<br />

a da caixa de ferramentas de Michel Foucault. Sim, “é preciso que sirva, é preciso que<br />

funcione” 8 ; mas, servir para quê? Logo percebo que, tratando-se da relação com o texto<br />

literário, não poderia ser uma ferramenta muito rude.<br />

Assim, uma segunda imagem, atribuída por Foucault a Proust, na qual o filósofo<br />

diz ter-se inspirado – ao fazer alusão ao texto como lentes voltadas para fora, – me faz<br />

pensar numa terceira, que consiste na idéia da teoria como chave de leitura; uma<br />

imagem banal, mas que pode produzir um movimento interessante, não de encaixe com<br />

o texto, mas de abrir portas, passagens entre o dentro e o fora, desde o ponto de partida<br />

seja o “teste” das chaves da teoria no texto, e não o oposto, tentando perceber até onde é<br />

possível entrar com cada uma, e de antemão sabendo que nenhuma é capaz de nem de<br />

5<br />

LORENZ. G. (1983).<br />

6<br />

PAZ, O. (1997).<br />

7<br />

Idem.<br />

8<br />

“Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que<br />

sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo<br />

próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não<br />

chegou. (...) É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito<br />

tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam<br />

outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento...” Cf. FOUCAULT, M. (1979) p.71.


abrir, decifrar definitivamente, tampouco de fechar, de trancar o texto dentro, ou atrás,<br />

de si.<br />

Metáfora que faz da crítica um trabalho de mediação, de abrir passagens,<br />

articulações não apenas no interior do texto, mas entre os diferentes campos de saber,<br />

com a(s) história(s) de fora. E, por que não afirmar, ao invés de um lugar de puro ciúme<br />

(ou inveja) da relação amorosa entre autor e língua; produzir ou assumir o lugar da<br />

crítica como amante do texto literário (a gente só critica aquilo que ama, diria Freud),<br />

um lugar em que a crítica seja capaz de buscar relações fecundas entre o texto e a teoria:<br />

gerar pensamento, apontar novas e pouco pensadas relações, outras histórias e palavras,<br />

já que a sua leitura nos deixa “fecundados por esta fala e suas sementes” 9 , como quer<br />

Márcio Seligmann-Silva, num dos estudos mais recentes sobre o Grande Sertão.<br />

Mas, ao percorrer assim estas imagens, já nos inserimos nos temas da memória e<br />

do esquecimento, realizando um movimento de alternância, de ir e vir, entre a teoria e o<br />

texto, que trazem, por sua vez, outras imagens para ilustrar as relações entre texto e<br />

teoria, este trabalho crítico, como a do pêndulo de Valéry e o carretel freudiano...<br />

Deixemos um pouco estas duas últimas metáforas – sem dúvida melhores que a da<br />

chave – em suspenso, para iniciar este percurso apenas com a perspectiva de encontrar<br />

uma paisagem fértil, pois como o próprio autor quis: “A língua e eu somos um casal de<br />

amantes que juntos procriam apaixonadamente” 10 .<br />

Considerando a idéia das lentes voltadas para fora, o sertão que me interessa<br />

pesquisar não é qualquer um, mas a paisagem feita de memória e esquecimento no<br />

Grande Sertão, através de seu narrador-personagem Riobaldo – testemunha<br />

estrategicamente situada em um momento de choque entre o avanço da cidade sobre o<br />

sertão, entre a lei da bala e a lei do governo. Testemunho que traz, ainda, a melancolia e<br />

9 SELIGMANN - SILVA, M. (2009) p.145.<br />

10 LORENZ, G. (1983) p.83.


o lamento relacionado a outro choque, de um amor perdido no passado, que parece não<br />

passar; e que constitui o texto como trabalho de luto, travessia. Desta forma, o objetivo<br />

mais amplo desta tese consiste em seguir a rememoração, através da fala do narrador<br />

Riobaldo, a fim de pensar como são elaboradas no texto as noções de memória e<br />

esquecimento; buscando através de diferentes concepções da filosofia, da psicanálise e<br />

da teoria da arte, instrumentos de análise desta questão na obra.<br />

Uma primeira abordagem do tema se situa na discussão entre uma concepção<br />

de memória individual, ligada à forma do romance moderno; e a memória coletiva<br />

ligada à narrativa épica. Ou seja: como analisar, no GSV, o duplo aspecto de uma<br />

memória construída a partir da tradição oral, da figura do narrador benjaminiano; e,<br />

simultaneamente, a memória da vida de Riobaldo, sua travessia particular ao lembrar e<br />

esquecer Diadorim? A partir da crítica de Davi Arrigucci, da articulação de Walter<br />

Benjamin entre a memória e as formas narrativas, bem como da noção de memória<br />

coletiva de Maurice Halbwachs; tento pensar, portanto, em que medida suas<br />

contribuições são interessantes, e quais os impasses que se colocam nesta formulação de<br />

uma duplicidade da memória.<br />

A concepção de uma memória constituída também pelo coletivo, pela tradição<br />

transmitida de geração em geração, pelos casos de caipira; traz como desdobramento a<br />

questão dos referentes históricos, da presença de uma memória do sertão e do país, mas,<br />

fundamentalmente, de uma paisagem (noção elaborada por Michel Collot) construída<br />

através da memória do narrador. Paisagem subjetiva, que se abre, por sua vez, ao<br />

horizonte como inconsciente, linha limite do não-saber, do deslembrado; e também à<br />

concepção de Benjamin da história como ruína, expressa no olhar do escritor sobre os<br />

vencidos da história.


No conflito entre o avanço do progresso, o projeto modernizador dos anos 50, e<br />

o universo rural trazido pelos personagens de Rosa, os esquecidos pela história oficial;<br />

cabe pensar o narrador como testemunha desta tensão entre as memórias do sertão e o<br />

esquecimento trazido pela cidade, num processo que avança, impondo-se, não apenas<br />

com violência, mas como violência recalcada, na forma do apagamento dos rastros do<br />

próprio embate. Trata-se, enfim, de procurar respostas para uma afirmação colocada por<br />

Ettore Finazzi-Agrò – a travessia não apaga a melancolia 11 – deixada por Riobaldo,<br />

quando afirma e ao mesmo tempo indaga: “cidade acaba com o sertão. Acaba?” 12<br />

Mas, a rememoração de Riobaldo é também centrada no trauma da revelação<br />

ligada ao sexo e à morte de Diadorim; acontecimento que, situado no final do texto,<br />

ressignifica o início da história a partir do fim, levando-me a pesquisar as noções de<br />

tempo, de um tempo entrecruzado ou tempo-de-agora em Benjamin, e a noção de a<br />

posteriori (nachträglichkeit) em Freud e Lacan. E, junto ao só-depois da significação,<br />

cabe pesquisar como se articula, no texto de Rosa, a questão do nome e da nomeação,<br />

como algo que faz referência a uma dimensão não-instrumental da linguagem; e como<br />

esta dimensão nomeadora, vista principalmente através da teoria benjaminiana sobre a<br />

linguagem, se articula com o tempo e a memória.<br />

Até que ponto é possível ir com a rememoração? Riobaldo indaga sobre um<br />

limite que pode ser pensado como ponto de origem enigmático, também apontado nos<br />

diversos fundos, ocos e ermos do sertão: “Será que tem um ponto certo, dele a gente<br />

não podendo mais voltar pra trás?” 13 Por outro lado, até onde é possível esquecer o<br />

trauma? Dupla questão que se repete, a seu modo, em cada processo de análise, em cada<br />

travessia discursiva. Questão, ainda, política, central nos debates em torno das<br />

memórias históricas, surgidos a partir das catástrofes do século XX, das diferentes<br />

11<br />

FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142.<br />

12<br />

Idem, p.183.<br />

13<br />

ROSA, J.G. (2001) p.305.


guerras entre memórias em diferentes partes do mundo; pois a discussão sobre o<br />

esquecimento – seja como reação, recalque contrário ao retirar do esquecimento um<br />

passado vencido; seja como resultado de um processo de elaboração das memórias já<br />

apaziguadas, que colocam em xeque o lema: para que não se esqueça jamais – o tema<br />

do esquecimento ressurge, invariavelmente, quando realmente se insere o debate sobre<br />

as memórias oprimidas.<br />

E, finalmente, questão de arte, formulada na dupla vertente: a partir da<br />

psicanálise, em que medida as teorias escolhidas sobre o tempo e a memória podem<br />

lançar luzes ao texto literário – mas, também, num sentido inverso – seguindo o<br />

pensamento do historiador da arte Didi-Huberman, até onde a obra de arte pode dizer<br />

sobre a memória e o esquecimento, o que tem a nos ensinar ou, em que medida, as<br />

imagens artísticas podem ser comparadas às imagens da memória?<br />

O foco dado à palavra de Riobaldo se justifica na medida em que a rememoração<br />

de Riobaldo, sua descrição da paisagem do sertão, seus questionamentos, seu<br />

testemunho do sertão constituem o texto do princípio ao fim; como afirma Rosenfield:<br />

“Na percepção de Riobaldo (da qual o texto nunca se distancia)...” 14 .<br />

Em relação à crítica específica de Guimarães Rosa, creio seguir uma trilha de<br />

estudos nos quais as contribuições teóricas não surgem de antemão, como pressupostos<br />

a que o romance viria se aplicar ou sobrepor. Ao contrário, nestes ensaios, a teoria –<br />

incluindo a psicanálise, a filosofia ou a teoria literária – é utilizada a partir de uma<br />

proximidade com o texto. O que os caracterizaria seria precisamente a construção de um<br />

saber articulado à forma do texto, a partir de um aspecto ainda pouco pensado da obra<br />

literária.<br />

14 ROSENFIELD, K. (1993) p.84.


Além da crítica escolhida ser plural, ou seja, proceder de vários campos de<br />

estudos distintos; os principais teóricos escolhidos se situam todos “no cruzamento de<br />

todos os caminhos” 15 , como apontou Michel Löwy sobre Walter Benjamin, numa<br />

referência justamente à noção de caráter destrutivo no segundo. Tanto Benjamin, como<br />

Freud, Lacan, e Rosa não se recusaram a pensar a memória pela via do esquecimento,<br />

da negatividade. Todos pulam e dançam sobre as pranchas, para evocar novamente a<br />

imagem de Valéry – mergulham nesse abismo, e suas palavras resistem, de algum<br />

modo, ao tempo e aos usos.<br />

Uma última observação, sobre a redação deste trabalho, é que utilizo a primeira<br />

pessoa alternando-a entre o singular e o plural, inspirada na justificativa de Paul<br />

Ricoeur 16 em seu livro. Ou seja, quando acredito afirmar algo já desenvolvido por outro<br />

autor, utilizo o plural, e quando suponho formular algo não explicitado em outro autor<br />

ou texto, uso o singular ou a forma impessoal.<br />

15 Cf. LÖWY, M. (1989). Segundo Benjamin: “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis<br />

precisamente por que vê caminhos por toda a parte. (...) Já que vê caminhos por toda parte, está sempre<br />

na encruzilhada.” Cf.BENJAMIN, B. (1989) p.237.<br />

16 RICOEUR, P. (2007).


I. <strong>MEMÓRIA</strong> E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS <strong>MEMÓRIA</strong>S...<br />

São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo<br />

recruzado.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Duas formas de memória e um mundo misturado<br />

No denso tecido de memórias do Grande Sertão: veredas 17 , em meio a<br />

diferentes camadas do tempo, diversas formas da memória e do esquecimento, um<br />

primeiro fio de análise se dá no eixo entre o que, a princípio, se pode situar entre uma<br />

memória individual e uma memória coletiva. A primeira seria formada, sobretudo, pelas<br />

recordações de Riobaldo sobre os tempos de jagunço e seu amor por Diadorim,<br />

contadas enquanto experiência singularizada. Mas, além disso, há um conjunto<br />

composto por uma infinidade de pequenos casos ou estórias sobre a vida no sertão que,<br />

entrelaçados, formariam uma rede ou trama de sabedoria relacionada a um passado<br />

tradicional, e que pode ser considerado como uma memória coletiva. O texto do Grande<br />

Sertão é constituído do início ao fim pelo relato das memórias de Riobaldo – narrador-<br />

personagem, ex-jagunço, e agora fazendeiro, a um visitante de fora – ali têm lugar,<br />

dentre outras, estas duas faces da memória.<br />

Se, por um lado, estas definições se encontram plausíveis no texto; por outro,<br />

não servem para serem lidas como verdades estabelecidas e estáticas, mas oferecem<br />

tentativas de compreensão de como estas noções se movem e percorrem a obra rosiana.<br />

Pois, como se verá mais adiante, na poética de Rosa: “Tudo é e não é” 18 , fórmula<br />

17 ROSA, J.G. (2001).<br />

18 Idem, ibidem, p.27.


síntese de uma escritura que ao concentrar ao máximo a contradição 19 , desloca as<br />

imagens paralisadas colocando tudo em movimento constante.<br />

A noção de uma memória individual no romance pode ser entendida como o<br />

relato do percurso da vida de Riobaldo: os acontecimentos de sua jornada particular,<br />

bem como seus questionamentos subjetivos sobre a vida, a morte, a justiça, a verdade, a<br />

existência do Demo ou não; mostrando-se distinta de um saber ligado à coletividade,<br />

nos moldes de uma tradição oral e arcaica, que, por sua vez, surge em diferentes e<br />

pequenas histórias sobre muitos personagens do sertão. Entretanto, como procurei<br />

mostrar em estudo anterior 20 , a escrita de Rosa possui pouca afinidade com a concepção<br />

de indivíduo, apresentando uma subjetividade freqüentemente fragmentada, descentrada<br />

e atravessada por uma voz coletiva que participa efetivamente em sua configuração. E,<br />

como se verá no GSV, mesmo quando se trata de uma memória de si, Riobaldo não é<br />

único nem idêntico a si próprio, desdobrando-se em diversos outros personagens: o<br />

menino, o professor, o jagunço Tatarana, o chefe Urutú-Branco, o fazendeiro na<br />

velhice...<br />

Da mesma forma, os estudos do sociólogo francês Halbwachs 21 – o primeiro a<br />

tratar do termo memória coletiva, nos anos 20 22 – poderão adquirir um sentido bem<br />

específico neste estudo, e mesmo no atual debate sobre a memória, que seria o de<br />

possibilitar um contraponto à concepção de uma memória individual fechada, trazendo à<br />

cena o questionamento sempre político sobre o papel das memórias coletivas nas<br />

sociedades de ontem e hoje; em que pesem as ponderações de que a memória coletiva<br />

parte ainda de quadros de pensamento um tanto estáticos, que nos levariam a reproduzir<br />

19 Refiro-me à noção de imagem na acepção dada por Walter Benjamin, de uma imagem como colagem<br />

dos restos da história, que contém em si em grau máximo a contradição entre os opostos, capaz de liberar<br />

o movimento, e que pode, por sua vez comparar-se com a noção de imagem poética em Octávio Paz. Cf.<br />

capítulo 4 desta tese; PAZ, O. (1972).<br />

20 Cf. CARMELLO, P. (2004).<br />

21 HALBWACHS, M. (1990).<br />

22 Cf. WEINRICH, H. (2001), p.168.


antigas oposições entre coletivo e individual, real e ficção, interior e exterior, imagem e<br />

lembrança, etc. Sob este aspecto, o conceito pouco acrescentaria aos estudos literários;<br />

porém, conforme veremos, através de várias formulações que a envolvem, a memória<br />

coletiva pode representar uma contribuição bastante interessante aos estudos sobre<br />

memória e literatura.<br />

A distinção entre as duas formas de memória será pensada, pois, principalmente<br />

a partir da análise do Grande Sertão feita por Arrigucci 23 , que diz respeito a uma<br />

mescla de formas narrativas associada à existência de um mundo misturado no romance.<br />

O autor não usa o termo memória, mas está abordando o tema quando propõe que uma<br />

mistura entre as formas narrativas épica, ligada à coletividade, e a forma individualizada<br />

do romance, no plano formal, acompanharia a questão do mundo misturado,<br />

considerado pelo crítico como um tema central dentro também da esfera semântica do<br />

texto.<br />

Walter Benjamin é quem estabelece uma correlação mais explícita entre as<br />

formas narrativas e as diferentes “modalidades” da recordação. Segundo ele,<br />

Mnemosyne, a deusa grega da reminiscência, seria a musa da poesia épica. A<br />

reminiscência seria a responsável pela transmissão da tradição de geração para geração,<br />

formando um campo de “indiferenciação criadora” 24 entre as várias formas épicas.<br />

Este campo épico indiferenciado, na forma mais antiga da epopéia, consistiria na origem<br />

tanto do romance como da narrativa épica.<br />

De acordo com Benjamin, a partir do surgimento, no cerne da epopéia, de uma<br />

diferenciação entre o romance e a narrativa épica, a reminiscência daria lugar, de um<br />

lado, à rememoração, como musa do romance; e, do outro, à memória enquanto musa<br />

da narrativa épica. Sobre a diferença entre rememoração e memória, ele afirma: “A<br />

23 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.7-29.<br />

24 Idem p.211.


primeira é consagrada a ‘um’ herói, ‘uma’ peregrinação, ‘um’ combate; a segunda, a<br />

‘muitos’ fatos difusos.” 25 Portanto, enquanto a rememoração ganha contornos do<br />

individual, a memória adquire o relevo coletivo. Esta contraposição será utilizada,<br />

porém, apenas como um caminho para pensar como esta duplicidade da memória se<br />

apresenta no texto de Rosa; pois, conforme veremos mais adiante, outros autores farão<br />

outras distinções entre os termos memória e rememoração, com diferentes sentidos, que<br />

servirão muito mais para pensar o tema do que estabelecer definições rígidas.<br />

Quanto ao mundo misturado, esta seria uma noção central no GSV, e estaria<br />

relacionada simultaneamente às indagações subjetivas do narrador Riobaldo, e a<br />

questões coletivas a respeito de determinadas contradições e particularidades históricas<br />

presentes na formação da cultura brasileira, às quais o texto faz referência, embora seja<br />

uma construção que não se estabelece de maneira nenhuma sob a forma de registro ou<br />

retrato da realidade:<br />

...Essa mistura do mundo que o livro exemplifica sobejamente, em<br />

variadíssimos aspectos e planos, coloca também uma questão decisiva,<br />

que é a mistura das formas narrativas utilizada para representar a<br />

realidade de que nos fala. (ARRIGUCCI JR., 1994, p.10).<br />

Mas o que seria, antes de tudo, este mundo misturado? E como esta idéia se<br />

articula com a questão da memória no texto? A citação aparece na fala de Riobaldo<br />

como uma constatação e uma queixa. Riobaldo, ex-jagunço, fazendeiro, conta sua(s)<br />

história(s) a um visitante e, num primeiro momento, parece esperar que a narração (ou o<br />

ouvinte) ordene uma complexidade que não compreende, que consiste principalmente<br />

na presença de um Mal que perpassa tudo o que há, e que impede a distinção em relação<br />

a um agir ético:<br />

25 Idem, ibidem.


...Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de<br />

que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do<br />

outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria<br />

longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que<br />

posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtaz<br />

a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo<br />

é muito misturado... (ROSA, J.G., 2001, p.237).<br />

O que é importante frisar, aqui, é que tal mistura consiste numa percepção e<br />

numa angústia de um jagunço que é também instruído nas letras – os outros<br />

companheiros do bando, por exemplo, não compartilham dela. Logo, é um sujeito<br />

dividido que percebe a contradição do mundo, numa superposição de contradições que<br />

amplia a complexidade da questão e antecipa as relações com outras contradições<br />

ligadas às raízes da cultura brasileira, apontadas pelo autor no mesmo ensaio.<br />

Pois, se este mundo misturado foi efetivamente dividido, no sentido de uma<br />

interdição que possibilite uma construção ou elaboração simbólica – ou permanece uma<br />

sucessão de contradições repetitivas, uma miscelânea paralisada no tempo, sem aceder a<br />

um registro que permita a comunicação, a troca, o movimento entre os contrários – será<br />

justamente outra indagação a ser considerada. Antes disso, será preciso situar melhor a<br />

noção de mistura no texto, pois dela partem muitas considerações relevantes sobre a<br />

obra rosiana.<br />

Em primeiro lugar, a mistura do mundo dita por Riobaldo se manifesta, no plano<br />

formal, numa linguagem misturada, uma profusão de línguas utilizadas por Guimarães<br />

Rosa, na qual se encontram:<br />

O falar regional do Norte de Minas, certamente muito estilizado, de<br />

combinação com latinismos; arcaísmos tomados ao português<br />

medieval – esse “magnífico idioma já quase esquecido: o antigo<br />

português dos sábios e poetas daquela época dos escolásticos da Idade<br />

Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra”, indianismos;<br />

neologismos; termos aproveitados e adaptados de múltiplos idiomas<br />

(do inglês, do alemão, do francês, do árabe etc.); vocábulos cultos e<br />

raros, bebidos nos clássicos portugueses; elementos da linguagem das<br />

ciências, e sabe-se lá de que fontes mais. (ARRIGUCCI JR, D., 1994,<br />

p.13).


Desta mescla se constitui a linguagem em Guimarães Rosa, uma mistura de<br />

tempos e nacionalidades, falas populares e cultas, arcaicas e modernas; num incrível<br />

trabalho de reinvenção realizado pelo escritor, que teria entre seus principais efeitos<br />

uma densidade, uma opacidade que se opõe aos significados mais usuais da palavra,<br />

levando o leitor a participar da busca por novos e inusitados sentidos, num processo de<br />

reescrita da língua que integra diferentes formações da cultura brasileira. O inovador na<br />

tese de Arrigucci é que esta linguagem misturada acompanharia, no plano formal,<br />

outras misturas a que se refere o romance, entre as quais uma mescla própria da cultura,<br />

com a qual de algum modo se relaciona o universo de Rosa, um universo rural, arcaico,<br />

que testemunha o choque com o projeto de modernização do país próprio dos anos 50,<br />

contexto vigente no período de elaboração do livro, publicado em 1956.<br />

Em relação às formas narrativas, o crítico afirma que a mistura do mundo se<br />

expressa entre uma narrativa épica e o romance; a primeira sendo ligada ao mundo<br />

mítico e heróico das batalhas e das histórias dos chefes dos bandos de jagunços,<br />

composta por muitas estórias breves, um mar de estórias difusas sobre diversos<br />

personagens, que se juntam num todo relativo ao sertão e ao coletivo:<br />

O fundo arcaico – de cujo oco mais profundo no sertão, reino de uma<br />

mitologia ctônica, parece ter saído o Hermógenes, é também o da<br />

cercania do mito. Dali brota a aventura dos heróis romanescos, dos<br />

grandes chefes jagunços: narrativa propriamente épica, que acaba por<br />

se definir como história de uma busca de vingança, incitada pela<br />

paixão amorosa: amor e morte em estreita liga numa demanda<br />

aventurosa puxada pelo fio (...) de Diadorim. (ARRIGUCCI JR.,<br />

1994, p. 17).<br />

A este mundo épico – chamado por Arrigucci de romanesco por referir-se aos<br />

romances medievais de cavalaria – se acrescenta a história mais longa e supostamente<br />

única da vida de Riobaldo, formada pelas recordações de sua trajetória particular, de<br />

professor a chefe do bando de jagunços, seu amor por Diadorim, suas reflexões e


indagações sobre a vida e a morte; e que consistiria na forma do romance moderno<br />

propriamente dito:<br />

...Mas sobre essa estória romanesca, em que age o jagunço Riobaldo –<br />

o cerzidor, o Tatarana, o Urutú-Branco – Riobaldo-Narrador constrói<br />

a tentativa de esclarecimento do sentido de sua vida, o relato de sua<br />

experiência individual, singularizada a partir de um encontro único e<br />

enigmático com o Menino, que será Diadorim – marco de sua<br />

travessia pessoal e ponto de interrogação que lhe coloca questões que<br />

não pode responder. (ARRIGUCCI JR., D., 1994, p. 17).<br />

O que importa ser pensado a respeito desta dialética entre a forma épica e o<br />

romance seria: “Como o romance – forma da épica moderna – se desenrola da mistura<br />

das formas épicas tradicionais, com as quais aparentemente nada tem a ver” 26 , pois a<br />

noção central do artigo é justamente a de que o romance ou a história individual se<br />

constitui ou se desenreda, diria Rosa, a partir da vertente épica, ou das estórias menores<br />

e coletivas, bem como as conseqüências desta constatação 27 .<br />

Willi Bolle segue por conceituação semelhante quando situa os “casos de<br />

caipira” 28 , ou seja, as diferentes histórias menores do cotidiano do sertão, do lado da<br />

micro-história e das pequenas veredas; em contraste com os grandes feitos da história<br />

oficial, o Grande Sertão: “As ‘veredas’ ou ‘passagens’ do Grande Sertão configuram<br />

uma história do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia, em contraposição aos<br />

feitos da historiografia monumental...” 29 Embasada em abordagem mais histórica, o<br />

que interessa nesta proposição, por ora, é a constatação de uma duplicidade narrativa<br />

26 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.20.<br />

27 Sem dúvida, esta discussão relaciona-se com a noção de épica negativa conceituada por Adorno,<br />

segundo a qual haveria um retorno nos romances modernos, da subjetividade, em direção às formas préindividuais<br />

que refletiriam, entre outros aspectos, um contexto de tensão entre a impossibilidade e a<br />

exigência de narrar, em meio à barbárie: “De fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a<br />

subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário,<br />

assemelham-se a epopéias negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si<br />

mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu endossar o<br />

mundo pleno de sentido.” Cf. ADOR<strong>NO</strong>, T. (2003) p.62.<br />

28 Cf. ROSA, J.G.(1985) p.93.<br />

29 BOLLE, W. (1994-1995) p.84.


entre uma história maior, atravessada por outras menores, exatamente como na imagem<br />

proposta pelo crítico, a de um sertão entrecortado ou interceptado por pequenos “cursos<br />

d’água” 30 que participam na sua formação.<br />

Visto assim, como imagem dialética, o Grande Sertão: veredas 31 faz pensar se,<br />

no que concerne ao tema da memória, o mesmo estaria em jogo, quer dizer: de que<br />

forma se conjugam a dimensão de memória mais ampla, ligada a uma vida coletiva do<br />

sertão, e a rememoração individualizada de Riobaldo? Em que medida as lembranças<br />

coletivas podem ser pensadas como contrapontos críticos da recordação individual? Até<br />

que ponto elas seriam responsáveis por rupturas no contar seguido do narrador? Estas<br />

seriam algumas indagações sobre esta encruzilhada de tempos e memórias que é o texto<br />

rosiano, sem perder de vista o contexto histórico desta escrita.<br />

Apenas uma observação se faz necessária, a fim de não estabelecer um desvio<br />

em relação ao norte apontado pela ficção, pois se trata de algo incontornável que se<br />

evidencia em comum nos comentários de Arrigucci mencionados nas páginas<br />

anteriores. O que aparece nos dois trechos como motivação – tanto para a recordação ou<br />

narração individual como para a coletiva – é a presença enigmática de Diadorim. Figura<br />

igualmente misturada, desde sua aparência em relação ao sexo, ambíguo entre homem e<br />

mulher; até seu desejo, dividido entre o amor por Riobaldo ou a vingança da guerra, o<br />

personagem de Diadorim surge como enigma da busca ao passado realizada por<br />

Riobaldo ou como marco inicial de sua trajetória. Por ora, é o que precisa ser<br />

remarcado, pois será retomado com maior cuidado no decorrer desta análise.<br />

Ainda sobre a duplicidade de memórias em jogo, é preciso considerar<br />

atentamente esta mistura em relação à figura do narrador, igualmente desdobrada entre<br />

o narrador do romance e o contador de estórias, num texto composto integralmente pela<br />

30 Idem, p.85.<br />

31 ROSA, J.G. (2001). Afim de evitar excesso de cit a ções da mesma obra, utilizarei as siglas GSV , ou simplesmente Grande Sertão para me referir ao<br />

romance de Rosa.


narrativa de memórias deste narrador, “um texto escrito que encena uma situação de<br />

fala” 32 , constituindo-se numa “fala escrita” 33 , como bem apontou Susana Lages, no<br />

qual a questão do esquecimento também deve ser levada em consideração.<br />

Tempos modernos, recordação e romance<br />

La nature n’est q’un dictionaire (...) Tout l’univers<br />

visible n’est qu’un magasin d’images et signes.<br />

CHARLES<br />

BAUDELAIRE<br />

Sem dúvida, Riobaldo representa bem o herói problemático definido por<br />

Lukács 34 como o elemento divisor de águas entre o romance moderno europeu e as<br />

formas narrativas épicas que o antecederam. Esta noção só pode ser compreendida,<br />

contudo, se situada em relação em relação à importância adquirida pela memória para o<br />

sujeito na Modernidade, e às diferentes maneiras de conceber o tempo nas sociedades<br />

modernas e nas sociedades consideradas tradicionais. E, embora não se possa<br />

estabelecer uma correlação cronológica exata entre uma Modernidade científica ou<br />

histórica e a Modernidade literária, o advento de uma literatura ou de um romance<br />

moderno europeu é associado por diversos autores 35 ao contexto – mais ou menos –<br />

concomitante de transformações sociais e históricas trazidas com os tempos modernos.<br />

Um primeiro aspecto que a passagem de um narrador tradicional ao sujeito<br />

problemático do romance evidencia é o de que a imagem ou maneira de perceber o<br />

tempo não é universal e a-histórica, mas relaciona-se, embora de maneira não linear ou<br />

causal, ao contexto histórico que envolve as diferentes sociedades, assim como as<br />

diversas subjetividades nelas constituídas. De acordo com o poeta e ensaísta Octávio<br />

Paz 36 , enquanto para os povos antigos a marca do tempo é a regularidade da repetição,<br />

32 LAGES, S. (2002) p.74.<br />

33 Idem, ibidem.<br />

34 LUKÁCS, G. (n/c) p.87-93.<br />

35 Conferir, por exemplo, FOUCAULT, M. (1975), BENJAMIN, W. (1986), e PAZ, O. (1984).<br />

36 PAZ, O. (1984) p.27.


perpetuada através do ritual e repassada de geração a geração; para a Modernidade, o<br />

traço que se impõe é a busca pela ruptura e pela novidade de um futuro distinto do que<br />

passou.<br />

De acordo com Paz, para os antigos, o modelo tanto do presente como do futuro<br />

seria um passado referido ao mito, e a própria vida se constituiria no encontro com este<br />

passado arquetípico, através de rituais que presentificam o passado através da tradição.<br />

A temporalidade anterior à Modernidade encerraria um curioso paradoxo, já que:<br />

“embora seja tempo, é também a negação do tempo” 37 , pois permanece como princípio<br />

imemorial, original, de um tempo reconciliado consigo mesmo, reatualizado sempre<br />

através dos ritos coletivos. Trata-se de uma visão do tempo imóvel ou cíclica, análoga<br />

ao curso das estações da natureza e ao modo de produção rural e artesanal, pois tanto o<br />

passado deve retornar, como o futuro pode ser entrevisto no presente por meio de<br />

profecias ou da própria noção de ritual, que reapresenta o futuro. O que importa é que o<br />

futuro não é facilmente alterado pelo homem; e ele se relaciona com este porvir como<br />

algo pré-estabelecido a ser presentificado; porém, um futuro extremamente interligado<br />

ao passado e ao presente.<br />

Se a Modernidade é relacionada historicamente por Paz a uma série de<br />

transformações ocorridas em sua maioria por volta do século XVIII, como o surgimento<br />

do Renascimento, a Reforma, a colonização das Américas, a emergência do capitalismo<br />

e da burguesia; enquanto conceito, destaca-se os ideais do progresso, ciência, liberdade,<br />

democracia etc. 38 Mas, sobretudo, a idéia de crítica ou de ruptura: “o tempo moderno é<br />

o tempo da cisão e da negação de si mesmo, o tempo da crítica.” 39 Ruptura do elo<br />

circular que permitia a perpetuação do tempo, estabelecendo-se em seu lugar, duas<br />

37 PAZ, O. (1984) p.26.<br />

38 Idem, (1993) p.34-35.<br />

39 Idem, (1974) p.189.


imagens complementares do tempo, uma concepção linear e uma idéia de<br />

transformação.<br />

Para os modernos, o tempo será o portador da mudança, e o futuro, o tempo que<br />

trará a novidade, estabelecendo-se numa seqüência cronológica na qual se distinguem<br />

presente, passado e futuro. Tal imagem do tempo está intimamente relacionada ao<br />

contexto europeu do ritmo acelerado das cidades, da vida burguesa e do modo de<br />

produção industrial do capitalismo emergente, traços característicos da era moderna,<br />

onde têm lugar as idéias de progresso, evolução e prosperidade.<br />

Entretanto, as mesmas transformações, sustentadas por um pensamento lógico e<br />

pela razão ocidental, que parecem fornecer esta coesão linear ao tempo, a partir da<br />

Modernidade serão responsáveis pela falta de uma unidade de sentido do tempo,<br />

unidade anteriormente assegurada, como aponta Foucault, por um outro sistema de<br />

pensamento, chamado analógico ou uma ordem da mímesis, que fazia coincidir as<br />

palavras e as coisas:<br />

... Mas, assim como os sinais naturais estão ligados ao que indicam<br />

pela profunda relação de semelhança, assim também o discurso dos<br />

antigos é feito à imagem do que ele enuncia; se tem para nós o valor<br />

de um signo precioso, é porque, do fundo de seu ser, e pela luz que<br />

não cessou de atravessá-lo desde seu nascimento, está ajustado às<br />

próprias coisas, forma seu espelho e sua emulação; ele é, para a<br />

verdade eterna, o que os sinais são para os segredos da natureza (desta<br />

palavra, ele é o sinal a decifrar); tem, com as coisas que desvela, uma<br />

afinidade sem idade. (FOUCAULT, M., 1999, p.50).<br />

Separado desta antiga rede, o sujeito moderno recorrerá à memória, como<br />

outrora a um oráculo, capaz de lhe dizer quem ele foi, quem ele é e como deve proceder.<br />

Com a Modernidade, o sujeito passa a tentar apropriar-se de seu passado, visando<br />

construir a partir dele a sua história individual e seus projetos de vida particulares.<br />

Levado a crer na importância da vida individual e, sobretudo, na capacidade individual<br />

de construir projetos futuros, o sujeito moderno é mesmo um sujeito em busca do tempo


perdido 40 , como no título da série de Proust, neste sentido, bastante representativa de<br />

seu tempo.<br />

É somente com a era moderna que se introduz de maneira efetiva a idéia –<br />

embora sempre malograda – de liberdade de escolha do sujeito diante de seu futuro,<br />

quando tanto o futuro quanto o passado adquirem estatuto de conquistas individuais.<br />

Somente para o sujeito moderno o tempo faz diferença, pois está relacionado à noção de<br />

um sujeito capaz de construir projetos futuros, à idéia de que o futuro não é mais uma<br />

reprodução do passado ou das gerações passadas. Em suma, a noção de um sujeito<br />

desgarrado da antiga trama de semelhanças e da tradição, capaz de inventar a si mesmo,<br />

é uma novidade trazida pelos tempos modernos:<br />

As noções de liberdade, autonomia, interioridade, etc., que compõem<br />

o perfil deste personagem moderno, são moldadas no contexto de uma<br />

determinada forma de vivenciar o tempo e de um modo muito peculiar<br />

de rememorar e valorizar as lembranças e reminiscências. (BEZERRA<br />

JÚNIOR, B., 1982, p.115).<br />

Assim, a memória individual adquire importância em detrimento da memória<br />

coletiva, outrora constituída pelo conjunto de crenças e tradições sociais das sociedades<br />

tradicionais, e passa a consistir num “arquivo da individualidade” 41 , no sentido de uma<br />

reserva de verdade que encerra a promessa de unidade e sentido à experiência do<br />

sujeito. A noção de arquivo não será entendida aqui, portanto, como registro objetivo de<br />

lembranças, correlato de uma realidade objetiva; mas, sim, na vertente em que a<br />

rememoração é um lugar de construção de uma verdade subjetiva.<br />

Como veremos, a teoria freudiana da memória desenvolve-se bem mais na<br />

direção de um afastamento da idéia clássica de arquivo do que a sua ratificação,<br />

propondo algo radicalmente distinto em seu lugar. E, se em Benjamin e, finalmente, em<br />

Rosa, pode-se pensar num trabalho de recordação subjetivo ou de recriação através da<br />

40 PROUST, M. (2002).<br />

41 BEZERRA JÚNIOR, B. (1982) p.115.


arte, este trabalho seria a antítese da noção de arquivo, pois difere da noção tradicional<br />

de documento (a não ser que se pense o documento como rascunho, esboço, ensaio que<br />

encerra a idéia de criação), construindo-se a partir dos restos da experiência que é<br />

transmitida de uma geração a outra, através de uma subjetivação desta experiência, dos<br />

erros, falhas, lacunas e lapsos, enfim do esquecimento. A memória possui entre as<br />

características comuns, na obra destes autores, a falta de um elo entre uma recordação e<br />

outra, a insuficiência ou excesso inerente a toda rememoração e associação, o que faz<br />

com que o sentido da recordação se pulverize e escape sempre, bem como a concepção<br />

de que o próprio registro se desloca no tempo, sendo desde o princípio formado a partir<br />

de resíduos, ruínas, restos do real, o que aproxima também a memória da ficção, da<br />

narrativa, ou ainda do sonho.<br />

Desde o advento da Modernidade, portanto, o sujeito será marcado pela angústia<br />

permanente em relação ao tempo que passa e o coloca diante do sem-sentido da<br />

existência. A partir desta promessa de construção de sua história particular, o sujeito se<br />

identifica(ria) como portador de uma história singular e pode(ria) traçar planos futuros:<br />

na Modernidade, em certo sentido, a memória passa a ser a grande responsável pela<br />

forma como o sujeito concebe o seu estar no mundo. Neste contexto, é que Lukács<br />

define como traço característico do romance moderno o sujeito desadaptado a seu<br />

tempo, num mundo contingente:<br />

O processo assim explicitado como forma interior do romance é a<br />

marcha para si do indivíduo problemático, o movimento progressivo<br />

que – a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea<br />

puramente existente e privada de significação para o indivíduo – o<br />

leva a um claro conhecimento de si. Uma vez conquistado este<br />

conhecimento de si, parece-lhe que o ideal assim descoberto se insere<br />

como sentido da vida na imanência desta... (LUKÁCS, G., n/c, p.90).<br />

Cisão do sentido que provoca uma luta contra o tempo, outrora reconciliado<br />

consigo mesmo, na narrativa épica: “a totalidade da acção do romance não passa de


um combate contra as forças do tempo” 42 E faz com que o sentido da vida seja inserido<br />

no tempo de uma vida individual, o tempo do romance, e buscado na recordação, por<br />

isso a memória adquire este valor, ao mesmo tempo ampliado ao infinito, e desde<br />

sempre fracassado, pois o esquecimento também se dará a perceber, seja através do<br />

caráter inapreensível do tempo que passa, seja através da precariedade de tradução da<br />

recordação num valor de verdade que explique ou apreenda a vida como um todo.<br />

A inclusão do sentido da vida na memória particular do sujeito estaria no cerne<br />

da idéia de uma reminiscência criadora, exposta na Teoria do Romance 43 de Lukács, e<br />

associada justamente à densidade adquirida pela memória no romance, em contraste<br />

com o drama e a epopéia:<br />

...Que o drama ignora a noção do tempo, que qualquer drama está<br />

submetido à regra bem entendida das três unidades, significando a<br />

unidade do tempo uma libertação do fluxo temporal (...) Sem dúvida,<br />

a epopeia parece conhecer a duração; pensemos nos dez anos da<br />

“Ilíada” e nos dez anos da “Odisséia”, mas não mais do que no drama,<br />

esse tempo não tem verdadeira realidade, efectiva duração; não toca<br />

nem os homens nem os destinos; não possui nenhuma mobilidade<br />

própria e a sua única função é exprimir de maneira chocante a<br />

grandeza de uma empresa ou de uma tensão... (LUKÁCS, G., s/d,<br />

p.141).<br />

Pois o romance expressaria esta ruptura com o tempo imóvel do drama e da<br />

epopéia, e inauguraria uma nova relação com o tempo vinculada à concepção de<br />

transformação, mudança, novidade:<br />

42 LUKÁCS, G. (n/c) p.143.<br />

43 Idem, p.149.<br />

...No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e<br />

temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais<br />

íntimo, a totalidade da acção não passa de um combate contra as<br />

forças do tempo... (LUKÁCS, G., s/d, p.143).


É no romance, ainda, segundo Lukács 44 , que o sujeito ganha estatuto de<br />

intérprete do mundo, pois, com a separação entre o sujeito e o mundo, característica do<br />

sujeito problemático, é o mundo que passa a existir somente na medida em que<br />

configura um mundo subjetivo para alguém. É então que o passado toma vulto de algo a<br />

ser buscado e interpretado, e que a reminiscência adquire seu valor de criação:<br />

Eis o que confere à memória o seu caráter essencialmente épico. No<br />

drama – e na epopeia – o passado não existe ou é inteiramente actual.<br />

Visto que esses dois gêneros ignoram o escoamento do tempo, não<br />

existe para eles nenhuma diferença qualitativa entre a experiência<br />

vivida do passado e a do presente; o tempo não possui nenhum poder<br />

de metamorfose; não há nada com que ele possa reforçar ou<br />

enfraquecer a significação. (LUKÁCS, G., n/c, p.148).<br />

Walter Benjamin refere-se a este texto de Lukács, dando-lhe nova luz quando<br />

estabelece correlações mais explícitas entre a narrativa épica, o romance, a memória e a<br />

subjetividade moderna. Para Benjamin, a reminiscência criadora surge justamente<br />

como sinal de uma articulação entre os tempos, pois diz respeito a um espaço de criação<br />

possível ao sujeito na Modernidade a partir da memória, ou ao valor atribuído então à<br />

memória. Primeiramente, a reminiscência é definida como o fundo comum do qual se<br />

separaram a memória, ligada à narrativa épica, e a rememoração advinda com o<br />

romance:<br />

...Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao<br />

lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da<br />

poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na<br />

reminiscência. (BENJAMIN, W., 1986d, p. 211).<br />

No entanto, a noção de uma reminiscência criadora é apresentada também como<br />

advinda a partir do romance, fornecendo à rememoração individual um potencial criador<br />

que interliga passado, presente, e futuro – pois se articula com a apreensão do sentido da<br />

vida, embora inalcançável – que é então recolocado na história privada do sujeito do<br />

44 Idem, p.77-93.


omance. No que diz respeito à subjetividade, a reminiscência se estabelece como um<br />

terceiro termo entre a exterioridade e o interior do sujeito, numa perspectiva que busca<br />

preservar um caráter místico e enigmático da memória, ao designar uma dimensão<br />

transcendente e inexprimível, se instaurando a partir da luta contra o tempo:<br />

... Desse combate,... emergem as experiências temporais<br />

autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no<br />

romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e<br />

o transforma... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da<br />

interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a<br />

sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na<br />

reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão<br />

divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto,<br />

inexprimível. (LUKÁCS, G. apud BENJAMIN, W., 1986d, p.212).<br />

Tanto o original de Lukács quanto o texto de Benjamin parecem ressaltar o<br />

potencial criativo da rememoração a partir do romance, seja a partir de uma luta<br />

decorrente da inadaptação do indivíduo ao mundo moderno como um todo, ou em seu<br />

caráter mais místico, da constatação da inapreensibilidade do sentido da vida. O que<br />

importaria na reminiscência criadora seria o valor de verdade para o sujeito que é<br />

depositado na rememoração; que substitui a moral da história, própria da narrativa<br />

épica, pela questão do sentido da vida 45 , e faz com que cada narrador de romance, desde<br />

o seu surgimento, empreenda, à sua maneira, uma viagem em busca do tempo perdido.<br />

Um sujeito com pouco caroço<br />

A partir do exposto, pode-se dizer que o narrador do GSV representa, sem<br />

dúvida também o indivíduo problemático lukacsiano, este ser deslocado em seu meio,<br />

professor que se torna jagunço, inadaptado à realidade que o cerca: “O senhor saiba: eu<br />

toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.<br />

45 Cf. BENJAMIN, W. 1986 p. 212.


Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita<br />

coisa.” 46 Diferente dos demais, liberto para filosofar sobre uma vida sem sentido<br />

aparente, ou desgarrado da tradição expressa na crença dos outros jagunços das quais<br />

desconfia, desprovido de quase todo recurso, Riobaldo é este sujeito com pouco caroço,<br />

que procura na recordação um sentido que justifique ao mesmo tempo o passado e o<br />

presente:<br />

... O senhor sabe?: não acerto no contar porque estou remexendo o<br />

vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de<br />

feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia,<br />

achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que<br />

não houve. Às vezes não é fácil... (ROSA, J.G., 2001, p. 192).<br />

Através da busca ao passado, Riobaldo espera encontrar um sentido oculto, o<br />

rumozinho forte das coisas, ou a “lei, escondida vivível, mas não achável” 47 que ordene<br />

o mundo misturado e demarque os pastos, isto é, separe o bem e o mal; pois, como ele<br />

mesmo afirma, precisa que “o bom seja bom e o rúim ruim” 48 : “Mas esse norteado,<br />

tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doidera<br />

que é.” 49 Encontrar uma norma transcendente que explique o sentido da vida e aponte<br />

“o caminho certo da gente” 50 , seria, assim, um primeiro sentido para a rememoração do<br />

personagem. Para a psicanálise, coincide com o seu sentido manifesto, aquele que o<br />

sujeito pode enunciar desde o início, e é anterior a outros sentidos revelados por um<br />

trabalho de interpretação ou análise 51 ; e que, aqui, podem ser pensados através da<br />

46 ROSA, J.G. (2001) p. 31.<br />

47 ROSA, J.G. (2001) p.500.<br />

48 Idem, p.237.<br />

49 Idem, p.500.<br />

50 Idem, p. 110.<br />

51 O par conteúdo manifesto - conteúdo latente não será tomado aqui no sentido de um desvelamento de<br />

conteúdo Inconsciente que estaria por trás do discurso aparente, mas antes na acepção de algo que não foi<br />

ainda objeto de análise, quer pelo próprio narrador, quer por uma leitura mais atenta, e é comunicado num<br />

primeiro momento, ao qual se sucedem outros significados, ditos somente a partir do trabalho de<br />

rememoração ou de interpretação. Cf. Freud, S. (1987a), p. 170 e 336-337.


narrativa de Riobaldo, a partir de seu próprio trabalho de rememoração, de elaboração<br />

junto a este senhor que o escuta.<br />

A recordação de sua vida Riobaldo conta para o único personagem que não<br />

possui um nome, um desconhecido que se hospeda de passagem em sua fazenda, a<br />

quem o ex-jagunço se dirige como o senhor, e com quem insiste durante toda a<br />

narrativa para que, além de escutá-lo, ora concorde com ele, ora lhe explique a “norma<br />

do caminho certo” 52 , lhe forneça as respostas às suas inúmeras interrogações: “E,<br />

mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do<br />

demônio. Será não? Será?” 53 Ou então: “Somenos, não ache que religião afraca.<br />

Senhor ache o contrário.” 54<br />

A escrita da história transforma, assim, a recordação em narração, ou a imagem<br />

em palavra, pois o texto de suas memórias contadas é o texto do romance. Aqui, é<br />

importante destacar que esta rememoração da vida do personagem, que surge desde o<br />

início misturada e atravessada por memórias coletivas, ao se constituir como trajetória<br />

subjetiva, assume a forma de um questionamento que se desloca, no qual a<br />

rememoração deságua - para retomar uma metáfora presente no texto rosiano em<br />

inúmeras expressões relacionadas ao rio, referentes a uma travessia, – numa indagação<br />

maior, sobre a “a matéria vertente”:<br />

... Eu sei que isso que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado.<br />

Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu<br />

queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é<br />

uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.<br />

(ROSA, J.G. 2001 p. 116).<br />

A rememoração de Riobaldo adquire, desta forma, uma dimensão transcendente,<br />

o que talvez leve a crítica de Rosa, Kathrin Rosenfield, numa definição muito próxima à<br />

52 ROSA, J.G. (2001) p. 500.<br />

53 ROSA, J.G. (2001) p. 26.<br />

54 Idem, p. 39.


já exposta distinção entre memória e rememoração de Benjamin 55 , possivelmente<br />

inspirada na fala de Riobaldo acima, afirmar que a fala do narrador rosiano trataria de<br />

memória, e não de uma rememoração individual:<br />

... ele não visa rememorar sua vida como sendo delimitada pelas<br />

determinações geográficas (do sertanejo) e sociais (do jagunço). O que<br />

está em jogo é a memória – busca de uma verdade universalmente<br />

válida que transcenda os fatos particulares da vivência singular.<br />

(ROSENFIELD, K., 1993, p.12).<br />

Porém, se retornamos às formulações lukácsianas e benjaminianas sobre a<br />

reminiscência criadora e o romance, veremos que a própria noção de reminiscência<br />

criadora contempla este alcance universal e transcendente ao indivíduo; daí a opção por,<br />

ao invés de uma fixar os termos em questão, dar preferência à idéia que eles produzem<br />

no e sobre o texto. Em outras palavras, mesmo na Modernidade, seria ilusório imaginar<br />

que a criação de sentido para a existência possa ocorrer apenas no plano individual, ou<br />

de um indivíduo autônomo, pois dela participa, de algum modo, a cultura e a<br />

coletividade. Segundo Kehl: “É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção<br />

de discursos sobre ‘o que a vida é’ ou ‘o que a vida deve ser’.” 56 Independente do<br />

termo utilizado, portanto, o que importa demonstrar é que o narrador rosiano recusa-se a<br />

permanecer no terreno da vivência puramente individual, e tampouco no das<br />

determinações coletivas, pois aspira efetivamente encontrar na recordação, e na<br />

narração, algo de outra ordem, além do visível, do objetivo ou do factual.<br />

A aspiração por uma verdade do passado – tal como manifesta o personagem –<br />

entretanto, mostra-se mal-sucedida: esta relação será marcada por diversos impasses e<br />

fracassos, se comparada à relação com tempo mítico para as sociedades arcaicas. Seja<br />

55 Cf. p.22 deste trabalho.<br />

56 KEHL, M.R. (2002) p.10.


porque o passado lhe escapa: “Tempos foram!” 57 , exclama Riobaldo, numa idéia<br />

bastante afim à concepção das teses benjaminianas sobre a história: “a verdadeira<br />

imagem do passado nos escapa veloz” 58 . Seja porque esta busca se sujeita a falhas,<br />

erros, ao desejo do que lembrar e como lembrar, bem como à impossibilidade, ou limite<br />

da rememoração, o esquecimento, evocando as idéias de ruína, de Inconsciente, de<br />

pulsão de morte e de real presentes em Freud e Lacan. Em todas elas, está presente a<br />

marca Modernidade através da ruptura, separação entre sujeito e tempo, palavra e coisa,<br />

memória e história, que também se impõem ao narrador-personagem Riobaldo.<br />

É preciso destacar ainda outro traço do romance moderno de Lukács presente no<br />

texto rosiano: a recordação do narrador, que coincide com o texto, “apóia-se numa<br />

única corrente de vida” 59 , o que se aqui se traduz por tomar o tempo de uma vida.<br />

Desde a origem – “órfão de conhecença” 60 de pai, às boas lembranças de sua mãe, na<br />

Vila Alegres, entre a Serra das Maravilhas e a Serra dos Alegres – até a juventude,<br />

quando dois acontecimentos se mostram bem marcados na memória: o primeiro<br />

encontro com Diadorim, na travessia do São Francisco; e a morte de sua mãe, a Bigrí,<br />

que ele diz ter mudado a sua vida “para uma segunda parte” 61 .<br />

Da fazenda de Selorico Mendes, seu padrinho, ao Curralinho, onde aprende a ler<br />

e tem suas primeiras namoradas “por nomes de flores” 62 , Rosa’uarda, e Miosótis, à<br />

fuga, ao ouvir dizer ser o padrinho, seu pai, quando se torna professor e conhece Zé<br />

Bebelo, que o leva para os “tempos loucos” 63 de jagunço. Do abandono dos planos de<br />

Zé Bebelo à outra fuga para o grupo de Joca Ramiro, onde se dá o reencontro com<br />

Diadorim. E, de jagunço, chefe do bando, até a velhice como fazendeiro, herdeiro das<br />

57 ROSA, J.G. Op. Cit., p.41.<br />

58 BENJAMIN, W. (1986e) p. 224.<br />

59 LUKÁCS, Op. Cit., p.146.<br />

60 ROSA, J.G. Op. Cit. p.57.<br />

61 Idem, p.127.<br />

62 Idem, p.130.<br />

63 ROSA, J.G. (2001) p.36.


terras de Selorico Mendes e marido de Otalícia: em poucas palavras, o tempo da<br />

narração é o intervalo que compreende a vida de Riobaldo, ele narra o que viu ou viveu,<br />

embora, como veremos adiante, tampouco a vida não encerra completamente a narrativa<br />

numa identidade única ou numa seqüência linear.<br />

O fim da vida coincide com o início do romance, é na velhice que o narrador<br />

recebe a visita de um forasteiro para quem conta suas histórias. Mais uma vez, há aqui a<br />

concepção de que o sentido da vida – e do romance – estaria encerrado nesta trajetória,<br />

que mesmo atravessada por muitas outras histórias, consiste num espaço bem<br />

delimitado, o que o diferencia de uma “A Odisséia”, de Homero, mencionada também<br />

por Lukács como exemplo mais conhecido de narrativa épica 64 , onde, como se disse,<br />

trata-se prioritariamente de muitos fatos e personagens difusos...<br />

Constatação da irreversibilidade do tempo, angústia diante da ausência de<br />

sentido da vida para um sujeito diante da morte, sujeito inadaptado a um mundo<br />

contingente, e ainda a reflexividade, isto é, a capacidade de se colocar questões a partir<br />

do que vê e vivencia, e filosofar sobre tais questões; recriação do mundo através da<br />

rememoração: as marcas da conceituação lukacsiana para o romance moderno estão<br />

todas presentes nas páginas do GSV. Entretanto, como já foi dito, a figura do narrador<br />

enreda, além desta, outras estórias, que fazem com que o livro não se encaixe<br />

completamente nesta definição. Pois, trata-se de uma rememoração atravessada,<br />

constituída, do início ao fim, por uma narrativa de estórias do sertão e fragmentos de<br />

saberes que, juntos, podem, neste contexto, ser considerados como memória coletiva, e<br />

cuja função merece ser melhor apreciada.<br />

A ênfase em apontar no texto cada aspecto do romance lukácsiano se fez<br />

necessária, no entanto, para nos situarmos em relação a uma certa divisão da crítica<br />

64 Cf. LUKÁCS, G. Op. cit., p.141.


atual de Rosa, entre, de um lado, os adeptos de uma leitura mítica, arcaica; e, do outro,<br />

os que vêem no texto de Rosa apenas uma evocação do mito, do oral, do arcaico, da<br />

memória coletiva, no qual a oralidade compareceria apenas como efeito do trabalho<br />

com a escrita, no qual a recordação individual sobrepujaria todos os aspectos<br />

coletivos 65 . Se concordamos, por um lado, com Susana Lages, quando afirma que o<br />

autor está efetivamente inserido na Modernidade, pois não se trata de uma fala pura,<br />

mas de um texto escrito que “mimetiza um discurso oral” 66 , uma situação de fala, e que<br />

o regresso a um tempo mítico ou “a oralidade é uma marca do texto, não sua causa,<br />

nele se inscreve, não o prescreve nem o determina” 67 .<br />

Concordamos ainda mais, quando, ao invés de destacar somente uma primazia<br />

do moderno sobre o passado, afirma o caráter de “tensão fundamental” 68 entre estes<br />

elementos nos textos de Rosa, cujo interesse maior, neste momento, seria o eixo entre a<br />

memória coletiva e arcaica dos múltiplos casos sertanejos e a memória da vida de<br />

Riobaldo.<br />

O crítico Finazzi-Agrò parece redimensionar a mesma temática, fornecendo-lhe<br />

outro alcance, quando propõe para o GSV o termo Obra-Mundo, uma definição de<br />

Franco Moretti para certos textos que não se enquadram muito bem em qualquer<br />

categorização literária – ou ainda, o termo épica-moderna, cujo paradoxo dos próprios<br />

termos faz com que o conceito contenha uma “definição que não define” 69 , mas indica,<br />

expõe, deixa em aberto, e mais do que isto, ressalta o conflito inerente à própria obra.<br />

De qualquer modo, não se pode negar que os traços de uma memória coletiva e um<br />

passado arcaico estão lá, no texto, fulgurando, como diria Foucault 70 , e que a narração<br />

65 LAGES, S. (2002) p.73-79.<br />

66 Idem, p.73.<br />

67 Idem, ibidem.<br />

68 Idem, ibidem, p.74.<br />

69 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.32.<br />

70 FOUCAULT, M. (1999).


ou recordação que o texto encerra envolve os dois aspectos misturados, que de alguma<br />

forma se vincularão ao mundo misturado, como propõe Arrigucci:<br />

...Riobaldo formula questões que vão muito além do saber que<br />

caracteriza o homem de bom conselho que é o narrador tradicional,<br />

cuja sabedoria prática se funda em larga medida na experiência<br />

comunitária. Na verdade, as interrogações que formula sobre o sentido<br />

de sua experiência configuram pelo sentido da vida típica do romance<br />

burguês, voltado para os significados da experiência individual no<br />

espaço moderno e do trabalho e da cidade. (ARRIGUCCI JR., 1994,<br />

p.19).<br />

Cabe a ressalva de que os termos coletivo e individual revelam-se pouco<br />

apropriados, se retirados do contexto em que foram utilizados, no ensaio de Arrigucci,<br />

para descreverem a memória no GSV, porque, justamente, só produzem esta reflexão<br />

quando articulados, enquanto categorias indissociáveis. É também provável que as<br />

teorias da memória benjaminianas e psicanalíticas ofereçam outras alternativas para esta<br />

oposição ou, ao menos, recoloquem o problema em outros termos. Antes, porém, é<br />

preciso tentar pensar, nisso que vai se desenhando como um “giro da memória” 71 ,<br />

como é que a história do sujeito problemático, urbano e moderno, se desenreda, então,<br />

do contador de causos, caipira; e que outros narradores podem ser considerados ali, o<br />

que teriam a lembrar, ou a esquecer?<br />

O contador de estórias<br />

O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Voltemos ao início. Na primeira página do romance, quando Riobaldo começa a<br />

falar ao visitante, nesta fala que toma o livro todo; o que primeiro ele conta é a estória<br />

do bezerro com feições humanas e demoníacas ao mesmo tempo, cuja forma híbrida já<br />

antecipa a dúvida subseqüente:<br />

71 ROSA, J.G. (2001), p. 138.


˗ Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem<br />

não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do<br />

córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em<br />

minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um<br />

bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara<br />

de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por<br />

defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito<br />

pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo<br />

prascóvio. Mataram. Dono dele não sei quem for. Vieram emprestar<br />

minhas armas, cedi... (ROSA, J.G., 2001, p.23).<br />

Nas páginas seguintes, o que se lê é uma série de causos, pequenas estórias<br />

sobre o sertão, que evocam uma sabedoria e uma memória coletiva e fazem alusão às<br />

narrativas de tradição oral; mas, sobretudo, cujo conteúdo diz respeito à presença de um<br />

Mal aparentemente sem limites, gratuito, que escapa à lógica da razão 72 . Iniciam-se com<br />

dois casos bem menores, do Aristides, que escutava a voz do “capiroto” 73 , e do Jisé<br />

Simpilício, “que tem um capeta em casa” 74 , aos quais se seguem as estórias de<br />

“endemoninhamento” 75 contadas por um seminarista, e uma sucessão de nomes do<br />

diabo, que Riobaldo lamenta não poder esquecer 76 ; enumeração que termina com a<br />

primeira menção a si mesmo no texto, quando o ex-jagunço associa o seu próprio<br />

“gosto de especular idéia” 77 com a rememoração, a velhice e o ócio para, logo em<br />

seguida, colocar a pergunta que é sustentada até o final: “o Diabo existe e não<br />

existe?” 78<br />

Inúmeros outros exemplos, como o da mandioca mansa, que “pode de repente<br />

virar azangada” 79 , e esta por sua vez, pode-se reverter na boa, ou a definição da<br />

natureza do ser jagunço, “entrante do demônio” 80 , ou ainda a presença do demo na<br />

natureza, em animais como a cobra, o porco, o gavião e o corvo, e até na forma de<br />

72 Cf. ROSENFIELD, K. (1993) e (2006). Ver também cap. 4 deste trabalho.<br />

73 ROSA, J.G. (2001), p.24.<br />

74 Idem, ibidem.<br />

75 ROSA, J.G. (2001) p.25.<br />

76 Idem, p.26.<br />

77 Idem, ibidem.<br />

78 Idem, ibidem .<br />

79 Idem, p.27.<br />

80 Idem, p.26.


determinadas pedras 81 , apontam a existência do demo “misturado em tudo” 82 , numa<br />

onipresença da qual nem Deus escapa, já que, “por mais auxiliar, Deus espalha, no<br />

meio, um pingado de pimenta...” 83 O Mal é associado, portanto, a uma ambigüidade na<br />

origem dos seres – “a gente viemos do inferno – nós todos” – e da linguagem, a um<br />

fundo inominável, gerador de confusão, ao “um sem fim” 84 , “o raso” 85 . A negatividade<br />

de algo do qual só se conhecem os efeitos é sintetizada numa das descrições para o<br />

demo:<br />

O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe<br />

mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para<br />

haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de<br />

tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. (ROSA, J.G.,<br />

2001, p.76).<br />

A dúvida sobre a existência ou não do demo perpassa o livro todo, e é<br />

freqüentemente formulada pelo personagem da seguinte forma: se há diabo sozinho ou<br />

“vige dentro do homem, os crespos do homem.” 86 Em outras palavras, Riobaldo se<br />

pergunta se o Mal consiste em algo objetivo que causaria confusão, ou se o Mal é<br />

apenas a própria dificuldade humana em discerní-lo do bem. Questão tida como<br />

essencial, pois dela decorre saber se o pacto foi real ou imaginário e, de acordo com o<br />

jagunço, disso dependeria sua salvação ou culpa. E questão subjetiva, pois Riobaldo se<br />

apropria dela, tornando-a coisa sua: “Este caso” (o da consistência do demo), diz ele,<br />

“é de minha certa importância.” 87 O Mal introduz, por assim dizer, as memórias do<br />

narrador, através de primeiras memórias que são basicamente coletivas. O que começa<br />

81 Idem, p.27.<br />

82 Idem, ibidem.<br />

83 Idem, p.33.<br />

84 Idem, p.76.<br />

85 Idem, p.50.<br />

86 Idem, p. 26.<br />

87 Idem, ibidem.


compondo as “horas de todos” 88 , vai se revelando ao longo do texto como “as horas da<br />

gente” 89 , como aquilo que, para o narrador, merece – ou precisa – ser lembrado.<br />

Outras estórias têm lugar neste mesmo início do livro, um pouco maiores,<br />

apontando a mesma lógica de uma pura reversibilidade dos estados benignos e<br />

malignos: o causo do Aleixo, “o homem de maiores ruindades calmas que já se viu” 90<br />

que, após matar alguém, “só por graça rústica” 91 , teve os filhos cegos, e tornou-se<br />

bom; mas Riobaldo se pergunta a razão de tamanho castigo divino se voltar sobre as<br />

crianças. E o do Pedro Pindó e seu filho Valtêi, “gostoso de ruim de dentro do fundo<br />

das espécies de sua natureza” 92 – onde cabe perguntar, antes de tudo, quem, além de<br />

Rosa, poderia descrever com tanta precisão e ironia o gozo sádico?<br />

No caso do menino Valtêi, onde os pais parecem aprender com o filho a<br />

maldade, pois passam a castigá-lo cruel e regularmente, há uma maldade gratuita e<br />

contagiante, comenta Rosenfield, que subverte a lógica do arrependimento cristão<br />

apresentada no exemplo do Aleixo 93 – embora naquele, também o Mal reste irredutível<br />

e incompreensível na forma do castigo. Curiosamente, a infeliz estória do menino evoca<br />

a primeira lembrança de Riobaldo sobre sua própria vida (não a que depois mencionará<br />

como sendo a sua mais antiga recordação, sobre o ódio a um homem, na fazenda onde<br />

vivia com sua mãe), mas a que primeiro surge no texto, e esta é surpreendentemente<br />

uma das poucas a que ele se refere como saudosa e boa; e remonta a seus estudos,<br />

durante a juventude:<br />

88 Idem, p.154.<br />

89 Idem, ibidem.<br />

90 Idem, p.28.<br />

91 Idem, ibidem.<br />

92 Idem, p.29.<br />

93 ROSENFIELD, K. (2006) p.221.<br />

...Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive<br />

mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações,<br />

regra-de-três, até geografia e estudo pátrio (...). Ah, não é por falar:<br />

mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu


merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam.<br />

Tempo saudoso! (ROSA, J.G., 2001, p. 30).<br />

Nas páginas iniciais do livro, pode-se afirmar, então, que este conjunto de<br />

estórias coletivas prevalece, embora funcione como introdução para o questionamento<br />

filosófico e subjetivo do narrador. Pois, como foi dito, a questão do demo e do pacto só<br />

faz sentido se vinculada à sua história de guerra e de amor por Diadorim, e ao<br />

sentimento de culpa que o atormenta. Até então, o personagem só menciona a si mesmo<br />

em passagens bem reduzidas e fragmentadas sobre a velhice, e sobre suas crenças e<br />

opiniões sobre os casos ou, como na lembrança dos tempos escolares, o de uma<br />

memória de si que é evocada a partir de uma memória mais coletiva.<br />

A passagem dos casos à recordação efetiva da vida de Riobaldo vem a ser<br />

iniciada, desenredada igualmente a partir de outro causo, o último desta série inicial, o<br />

do arrependimento do jagunço Joé Cazuzo, do qual o narrador dá testemunho, pois o<br />

mesmo fazia parte de seu próprio bando quando desistiu da guerra:<br />

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de<br />

suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – foi em<br />

arraso de tirotêi’, p’ra cima do lugar Serra Nova, distrito de Rio-<br />

Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e<br />

fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte<br />

político, com muitos soldados fardados (...). Agüentamos hora mais<br />

hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo<br />

– homem muito valente – se ajoelhou giro no chão do cerrado,<br />

levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro<br />

claro e urro surdo: − “Eu vi a Virgem Nossa (...).” Ele almou? Nós<br />

desigualamos. Trape por meu cavalo – que achei – pulei em mal<br />

assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado<br />

em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava.(...) Eu<br />

não cabia de estar mais bem encolhido (...). E outra, de fuzil, em<br />

ricochete decerto, esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja:<br />

bala faz o que quer – se enfiou imprensada entre em mim e a aba da<br />

jereba! Tempos loucos... (ROSA, J.G., 2001, p.35-36).<br />

Durante o tiroteio, Riobaldo se vê escondido e com medo da morte. É quando<br />

surge a primeira menção a Diadorim: “Conforme pensei em Diadorim”. 94 A partir desta<br />

94 Idem, p.37.


passagem, pode-se falar numa entrada na recordação da vida do narrador, realizada<br />

numa sucessão desordenada de fatos de sua trajetória, que começa com uma descrição<br />

da paisagem do sertão que lhe foi mostrada por Diadorim, segue pela tentativa frustrada<br />

de travessia do Liso do Sussuarão, pela escolha da vida jagunça, etc. História que vai<br />

sendo sucessivamente entrecortada ao longo de todo o romance por outras lembranças<br />

coletivas, menores, de hábitos, nomes de lugares, provérbios, casos, etc.<br />

Como o caso Maria Mutema, no qual se nota a ordem inversa do caso do menino<br />

Valtêi, pois é a estória menor que surge da narrativa predominante; que, aqui, quase na<br />

metade do livro, já é a da vida de Riobaldo. Trata-se da passagem em que os bandos de<br />

Joca Ramiro e do Hermógenes estão aliados contra o de Zé Bebelo, engajado em seu<br />

projeto de acabar com a jagunçagem no sertão. Riobaldo se vê no lado oposto ao antigo<br />

amigo e, aturdido com a morte de dois jagunços a quem tinha escolhido para lutar na<br />

linha de frente, indaga a si próprio sobre sua possível culpa. Tatarana, apelido que<br />

recebera neste bando, espera um possível ataque do bando dos bebelos e, no meio da<br />

noite, acordado com o Jõe Bexiguento, examina a “vagância de pecados” 95 da vida<br />

jagunça e relembra o que pergunta ao companheiro:<br />

...Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto<br />

arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso,<br />

queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe,<br />

broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente,<br />

nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de<br />

Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. (ROSA, J.G., 2001, p.<br />

236-237).<br />

É então que Jõe conta o caso de Maria Mutema, a mulher que, tendo confessado,<br />

arrependida, assassinar o marido “sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum,<br />

causa nenhuma” 96 , e matar igualmente o padre por desgosto, no confessionário, ao<br />

atribuir-lhe a responsabilidade pelo falso amor, é presa e, não só perdoada pelo povo do<br />

95 Idem, p.236.<br />

96 ROSA, J.G. (2001) p. 241.


lugarejo, mas adquire fama de santa, divulgada pela mesma população que a perdoou.<br />

Maria Mutema configura mais uma versão do Mal; mas, diferentemente dos casos das<br />

primeiras páginas, coloca em questão a possibilidade de esquecimento do passado<br />

através da noção de perdão, um esquecimento através do qual pode se dar a construção<br />

de uma nova história 97 .<br />

Desta forma, vê-se como a questão do Mal se inicia nas memórias coletivas,<br />

adentra a recordação da vida do narrador e retorna sempre, como uma lacuna, espaço<br />

vazio, entre o coletivo e o individual. Desde o princípio, a lembrança mais antiga que o<br />

narrador afirma possuir, é uma lembrança de ódio: “a coisa mais alonjada de minha<br />

primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem<br />

chamado Gramacêdo...” 98 E, durante toda a recordação de sua vida, a questão do Mal<br />

retorna sob a forma da dúvida sobre o pacto e outras estórias, que vão se interpondo (e<br />

compondo) à principal, configurando uma recordação que não cessa de ser evocada, e se<br />

mantém não respondida até a última página, na última referência ao diabo: “O diabo<br />

não há! É o que eu digo, se for... (grifo nosso) Existe é homem humano. Travessia.” 99<br />

O senhor sabe: um narrador em extinção<br />

97 A noção de perdão inclusa nesta pequena história não se confunde com a questão jurídica da<br />

imputabilidade criminal, o texto não menciona a absolvição da personagem. O filósofo Paul Ricoeur fala<br />

em “perdão difícil: nem fácil, nem impossível”, afirmando que o perdão se situa “na margem de<br />

instituições encarregadas da punição”, não se colocando de maneira nenhuma como substituto à lei, ao<br />

contrário, só se apresentando como horizonte diante daquilo que pode ser também julgado. No entanto,<br />

numa referência a Jacques Derrida, Ricoeur afirma que “o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é”,<br />

consistindo num desafio lógico que não pode estar a serviço de nenhuma finalidade. A questão se torna<br />

controversa e relevante sobretudo quando se trata dos chamados crimes contra a humanidade e<br />

genocídios do último século que, por sua vez, colocam uma outra desproporção, entre a culpa e a punição.<br />

Cf. RICOEUR, P.(2007) p.465-466; 474.<br />

98 Idem, p.58.<br />

99 Idem, p.624.


Em “O Narrador” 100 , Benjamin opõe uma narrativa proveniente da cultura oral e<br />

do meio artesão e coletivo ao romance do indivíduo inadaptado, relacionado à<br />

linguagem informacional, jornalística, proveniente dos novos tempos. De acordo com o<br />

filósofo, a narrativa épica se diferencia em tudo do romance moderno; pois, com a<br />

invenção da imprensa e a substituição da produção artesanal pela industrial, passamos a<br />

viver privados de experiência e sobrecarregados de informação, por isso, a linguagem<br />

atual perdeu a densidade narrativa, tornando-se meramente informacional. Ao leitor do<br />

romance tudo seria fornecido, não restando nenhum trabalho para a imaginação,<br />

justamente o que está presente e dá amplitude à narrativa arcaica.<br />

Novamente, é preciso ponderar que, ao falar neste narrador épico, arcaico, tal<br />

como o descreveu Walter Benjamin; estamos nos referindo, como o próprio filósofo<br />

chamou a atenção, a traços de uma figura “que não está de fato presente entre nós, em<br />

sua atualidade viva” 101 . Assim, este narrador rosiano se assemelha àquele que transmite<br />

uma experiência advinda de outras pessoas e outras gerações; seja através de uma<br />

linguagem que mimetiza a linguagem oral dos velhos contadores de estórias, seja pelo<br />

tom conciso, exemplar, pouco explicativo, de uma narrativa que “não se entrega (...)<br />

conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver-se” 102 . Esta<br />

é a forma assumida pela linguagem nos incontáveis casos, estórias ou provérbios do ex-<br />

jagunço: “Couro ruim é que chama ferrão de ponta. (...) O senhor sabe: o perigo que é<br />

viver...” 103<br />

Estas memórias coletivas são comumente introduzidas no texto através da<br />

expressão: “o senhor sabe”, repetida ao longo do livro inteiro, e freqüentemente<br />

acompanhada de uma referência ao sertão, ou de uma forma de provérbio ou aforismo,<br />

100 Idem, p.197-221.<br />

101 BENJAMIN, W. (1986 d ) p.197.<br />

102 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.<br />

103 ROSA, J.G. (2001) p. 35.


e que justamente por pertencer a uma memória coletiva e arcaica, é assinalada como<br />

uma história já sabida e contada que, ao ser recontada pelo narrador, busca despertar<br />

uma recordação no interlocutor-leitor: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é<br />

forte, com as astúcias.” 104 Ou então: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das<br />

coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.” 105<br />

Outro vestígio do narrador benjaminiano no GSV seria o tédio, definido na tese<br />

benjaminiana como condição para a desejada distensão da escuta daquele que possui o<br />

dom de ouvir, e desenvolve o dom de narrar através desta experiência: “o tédio é o<br />

pássaro de ouro que choca os ovos da experiência.” 106 A transmissão desta experiência<br />

para o ouvinte é também vinculada por Benjamin ao modo de produção artesanal, ao<br />

tecer de uma rede:<br />

Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de<br />

tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim,<br />

se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa<br />

rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há<br />

milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.<br />

(BENJAMIN, W. 1986d, p. 205.)<br />

O tédio é assumido pelo próprio Riobaldo, quando, já aposentado, decide contar<br />

suas estórias ao forasteiro, e, no sertão, junto com o tédio encontra-se a imagem de outra<br />

rede, a indígena, mas igualmente associada ao devaneio que permite a rememoração;<br />

fazendo com que, desde o princípio do texto, a memória seja vinculada à imaginação e à<br />

fantasia. Mesma rede onde se deita um tempo estendido, contraposto ao áspero tempo<br />

cronológico, o tempo da ação e da produção (onde moemos todos):<br />

104 Idem, p.35.<br />

105 Idem, p.72.<br />

106 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.<br />

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. (...) Vivi<br />

puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no<br />

asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem<br />

pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto<br />

de especular idéia. (ROSA, J.G., 2001, p.26).


Quanto ao caráter de ensinamento ou conselho prático próprio da narrativa<br />

épica, o que se lê no GSV seria muito mais a forma da sabedoria do que o conteúdo,<br />

pois os provérbios e causos são em sua maior parte contraditórios ou vagos, indefinidos<br />

demais para configurar algo da ordem de um conselho, o que também leva a pensar na<br />

definição de Benjamin para o provérbio, segundo ele, composto de resquícios ou<br />

“ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um<br />

acontecimento” 107 . É o que ocorre com o demo, que primeiro surge na forma da<br />

ambígua interrogação: “existe e não existe?” 108 , e depois não existe por si, mas “vige<br />

dentro do homem, os crespos do homem” 109 , restando sempre como indagação em<br />

aberto, como um passado ainda presente, mas nem um pouco reconciliado como o<br />

tempo das memórias ou narrativas mais tradicionais. Que conselho ou moral se pode<br />

extrair de uma pergunta que é, em si, um paradoxo?<br />

Trata-se de imagens contraditórias, que subvertem o senso comum e levam o<br />

pensamento lógico à exaustão, designando uma experiência inefável, semelhante à<br />

noção de Erfahrung, a Experiência; conceito fundamental que perpassa toda a obra<br />

benjaminiana, e surge justamente relacionado à memória: “a estrutura da memória é<br />

decisiva para a estrutura filosófica da experiência” 110 . A Erfahrung se diferencia da<br />

Erlebnis 111 , a vivência imediata, individual e assistida pela consciência, que seria a<br />

vivência possível após a entrada na Modernidade. A vinculação à tradição é assim<br />

pontuada por Benjamin, juntamente com a referência ao Inconsciente de Freud, pois<br />

esta experiência não se encontra disponível, afluindo, antes, à consciência:<br />

107 BENJAMIN, W. (1986) p.221.<br />

108 ROSA, J.G. (2001) p. 26.<br />

109 Idem, ibidem.<br />

110 BENJAMIN, W. (1989) p.105.<br />

111 Idem, p.46.


...a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na<br />

coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados<br />

na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência<br />

inconscientes, que afluem à memória. (BENJAMIN, W., 1989, p.105).<br />

A Erfahrung é igualmente ligada à narrativa épica e às formas subjetivas das<br />

sociedades tradicionais, tornando-se, após a Modernidade, sobretudo após a guerra de<br />

trincheiras, uma experiência perdida ou incomunicável. A Erfahrung é, ainda, colocada<br />

também, como uma Experiência de caráter alternativo à experiência de choque, outra<br />

noção inspirada no trauma freudiano. Porém, o choque benjaminiano surge numa<br />

dimensão histórica, referido à reação do sujeito à ruína e à catástrofe inerentes ao<br />

progresso científico e à Modernidade 112 .<br />

Deste modo, para a noção de experiência fazer sentido na atualidade, deveria ver<br />

contemplada a relação que estabelece com o passado e com o futuro, através de uma<br />

determinada referência ao passado arcaico ou tradicional que, entretanto, não se<br />

realizará como uma simples transmissão. Segundo a concepção benjaminiana, o passado<br />

“traz consigo um índice misterioso” 113 , compondo-se de nebulosas de sentido opacas à<br />

compreensão imediata. A noção de memória se distingue, portanto, da simples<br />

rememoração ou sucessão fixa de fatos passados no tempo. De acordo com o filósofo, o<br />

passado não está disponível, mas nos escapa a todo instante, só se deixando apreender<br />

num “lampejo”, quando nos apropriamos de uma reminiscência para construir, no<br />

passado, uma nova relação com o presente e com o futuro; nas palavras de Benjamin,<br />

“fazer do passado uma experiência única” 114 .<br />

Este vislumbre ou encontro secreto com o passado, para Benjamin, seria a<br />

relação que o presente estabelece com as gerações passadas, sendo a Experiência<br />

112 Cf. BENJAMIN, W. (1989) p.109.<br />

113 BENJAMIN, W. (1987) p. 222.<br />

114 Idem, p. 222-224.


(Erfahrung) 115 formada por uma fusão entre uma memória individual e outra forma<br />

mais arcaica e coletiva, ligada ao ritual:<br />

...Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em<br />

conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com o<br />

coletivo. Os cultos, com seus cerimoniais, suas festas (que, em parte<br />

alguma da obra de Proust foram mencionados), produziam<br />

reiteradamente a fusão desses dois elementos da memória.<br />

Provocavam a rememoração em determinados momentos e davam-lhe<br />

pretexto de se reproduzir durante toda a vida. As recordações<br />

voluntárias e involuntárias perdem, assim, sua exclusividade múltipla.<br />

(BENJAMIN, W., 1989, p. 107).<br />

É importante assinalar, aqui, este caráter de uma conjunção entre a memória<br />

coletiva e a individual, entre as recordações conscientes e inconscientes, que resulta<br />

numa concepção diferenciada de memória, numa construção bem próxima da busca<br />

efetuada pelo narrador de Guimarães Rosa. Pois, em primeiro lugar, em boa parte dos<br />

enunciados a respeito de um saber coletivo, o narrador rosiano fala do irrepresentável e<br />

do que não se pode comunicar... De fato, a escrita de Rosa não parece pretender<br />

recuperar esta figura do narrador, ausente da sociedade moderna, mas faz alusão a ela,<br />

a insere no texto enquanto figura em extinção.<br />

O que Riobaldo afirma buscar no passado parece situar-se, na esfera, sim, de<br />

uma experiência incomunicável e, talvez por isto ele se revele tantas vezes incapaz de<br />

narrar: “e eu não sou capaz de dar narração” 116 . Do mesmo caráter irrecuperável,<br />

perdido, do passado, viriam as várias expressões que se referem a uma falsa ou mal<br />

contada narrativa, ou o mentir e desmentir que se insere na busca pelo passado: “Ah,<br />

mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso.” 117<br />

“Ou Conto mal? Reconto.” 118<br />

115 BENJAMIN, B. (1989) p. 146 , (vide nota do revisor técnico).<br />

116 Idem, p.221.<br />

117 Idem, p. 200.<br />

118 Idem, p.77.


Outro aspecto a ressaltar é que, embora sejam apresentadas como parte de uma<br />

memória coletiva, de tradição oral, nem sempre as pequenas estórias de Riobaldo são<br />

contadas no tempo passado. Dos casos iniciais, quase todos, à exceção do Aleixo “que<br />

era o homem de ruindades calmas” 119 , e do delegado Jazevedão e seu capanga, “que<br />

tanto um era ruim, como o outro ruim era” 120 , são narrados no tempo presente do<br />

verbo: “Ainda o senhor estude. Agora mesmo, nestes dias, tem (grifo nosso) gente<br />

profanando que o próprio Diabo parou, de passagem, no Andrequicé.” 121<br />

E a predominância do tempo presente fornece tanto a idéia da atualidade de um<br />

passado sempre presente do tempo mítico, o passado que não passa do poeta Octávio<br />

Paz, citado no início deste capítulo, como a da articulação histórica e materialista do<br />

passado benjaminiano; além de uma terceira via de compreensão, a do passado<br />

traumático freudiano, que não passa por não ter sido esquecido. Num outro sentido, o<br />

tempo presente da narração reforçaria o caráter testemunhal 122 almejado pelo narrador<br />

para convencer seu interlocutor (ou, pelo escritor em relação ao leitor), como no caso do<br />

Aristides, que escuta a voz do diabo lhe chamando: “Do demo? Não gloso. Senhor<br />

pergunte aos moradores. (...) Sentença num Aristides – o que existe (grifo nosso) no<br />

buritizal primeiro desta minha mão direita.” 123<br />

O personagem que mais se assemelha à figura benjaminiana do sábio portador<br />

destas memórias coletivas, no GSV, foi, até o momento, pouco comentado pela crítica:<br />

trata-se do compadre Quelemém, a quem Riobaldo recorre após a morte de Diadorim,<br />

tendo sido indicado pelo amigo Zé Bebelo, como alguém “diverso de todo o mundo” 124 ,<br />

capaz de acolher sua dor: “Compadre meu Quelemén me hospedou, deixou meu contar<br />

119 Idem, p.28.<br />

120 Idem, p.34.<br />

121 Idem, p.24.<br />

122 Cf. capítulo 2 desta tese.<br />

123 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 24.<br />

124 Idem, p.623.


minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência –<br />

calma que minha dôr passasse; e que podia esperar muito longo tempo.” 125<br />

Quelemém encarna a ordem tradicional reproduzida socialmente sem nenhuma<br />

crítica; ele reprova, por exemplo, as incertezas de Riobaldo no caso do Aleixo, quando<br />

este questiona a justiça no fato das crianças terem-se tornado cegas: “Que, por certo,<br />

noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados” 126 . A figura é<br />

mencionada, desde o início, como o homem mais experiente, cuja opinião tradicional<br />

sobre os casos é tratada por Riobaldo como algo de muita relevância, mas<br />

simultaneamente, com fina ironia, uma crença insuficiente, como no exemplo do<br />

exorcismo:<br />

...Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os<br />

baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e<br />

com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre<br />

meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis.<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 25).<br />

Riobaldo reconhece esta sabedoria, mas não a aceita de todo: “Compadre meu<br />

Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente<br />

nunca deve aceitar inteiro o alheio” 127 Apelo e recusa à tradição dos quais novamente<br />

temos notícia através das teses sobre a história de Benjamin 128 , onde se encontra<br />

contradição semelhante na relação estabelecida com o passado. Pois, ao mesmo tempo<br />

em que o índice secreto do passado traz um chamado ao qual é preciso saber escutar, a<br />

idéia de um desencontro com a tradição é colocada não somente nas noções já descritas<br />

de um passado que escapa e só se deixa entrever num lampejo, mas na urgência de<br />

“arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” 129 . Isto porque<br />

125 Idem, ibidem.<br />

126 Idem, p.29.<br />

127 Idem, p.39.<br />

128 BENJAMIN, W. (1986e).<br />

129 BENJAMIN, W. (1986) p. 224.


Benjamin enxerga na história oficial, à qual se vincula a tradição, sempre a história dos<br />

vencedores:<br />

...O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a<br />

recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes<br />

dominantes, como seu instrumento.(...) O dom de despertar no<br />

passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do<br />

historiador convencido de que também os mortos não estarão em<br />

segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de<br />

vencer. (BENJAMIN, W., 1986e, p.224-225).<br />

A idéia de um conflito com a tradição ao qual somos chamados a reinventar, a<br />

reescrever, passa, portanto, pela tarefa de despertar no passado as centelhas da<br />

esperança e buscar uma história dos vencidos, ou uma história esquecida, à qual ainda<br />

retornaremos para abordar as noções de ruína, resíduo e trauma no GSV, indissociáveis<br />

desta formulação. Por ora, o que é preciso assinalar nas obras de Benjamin e Rosa é a<br />

difícil relação com este passado tradicional, e a idéia do esforço necessário empreendido<br />

na busca e reconstrução desta história. É como se Riobaldo trouxesse esta memória, mas<br />

não desejasse nem recordá-la inteira, nem perpetuá-la, mas reescrevê-la em outras<br />

bases. Riobaldo relembra 130 , eis uma leitura possível para a freqüência com que o<br />

prefixo re aparece no texto ligado à memória e seus sinônimos: “Relembro<br />

Diadorim.” 131 “Me revejo de tudo.” 132 “Reconto” 133 .<br />

A figura de Quelemém sustenta, entretanto, dois aspectos contraditórios da<br />

memória arcaica: o de um sistema fechado, um conjunto de crenças referidas às<br />

sociedades denominadas fechadas ou tradicionais que se pretendem reproduzir ou<br />

atualizar, como já visto e, por outro lado, o de um fundo ou memória relacionada a um<br />

tempo perdido, irrecuperável, e ao Inconsciente da Erfahrung, ao esquecimento. É o que<br />

Riobaldo afirma, quando ao atribui ao personagem a dimensão da outra coisa, no<br />

130 Idem, p.56.<br />

131 Idem, p.56.<br />

132 Idem, p.77.<br />

133 Idem.


sentido de uma outra memória ou outra verdade sobre o passado, que vem se interpor à<br />

trajetória mais individual do narrador, fazendo-o narrar desemendado, contar falso:<br />

Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em<br />

minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. É<br />

ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei<br />

contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu<br />

Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso<br />

inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa. (ROSA, J.G., 2001,<br />

p. 214).<br />

Logo após avançar, o narrador retorna para o dito, ao que se situa no registro das<br />

palavras, da narração, do discurso, da linguagem: “Agora, neste dia nosso, com o<br />

senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo<br />

aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.” 134 Entretanto, o que vai sendo<br />

narrado aponta gradualmente para a necessidade deste dito constituir-se como um saber<br />

próprio, a partir do saber dos outros. Mas, fundamentalmente, a narrativa inclui a<br />

dimensão de não-saber, a dimensão da outra-coisa, consistindo numa rememoração que<br />

procura aproximar o que é possível nomear deste saber Inconsciente, que se associa ao<br />

esforço de nomear, rememorar (e elaborar) algo que, para o narrador, se impõe como<br />

necessário: “Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.” 135<br />

Percebe-se, portanto, o quanto a escrita de Rosa não elimina a tensão entre estas<br />

diferentes faces da memória; elas estão todas ali, expressas no texto. Entretanto, como<br />

afirmo no início deste capítulo, o texto coloca todas estas contradições em movimento,<br />

num ir e vir entre diferentes recordações e distintas concepções de memória,<br />

sobrepondo tempos, e, sobretudo, intercalando memória e esquecimento, ao falar<br />

igualmente de uma memória relacionada a este fundo inominável de onde brota o<br />

sentido de todas as coisas, ao que se coloca na ordem do irrepresentável...<br />

134 Idem, p.214.<br />

135 Idem, p.189.


A respeito da memória coletiva, cabe ainda indagar, com maior detalhe, o que<br />

estaria em jogo na origem deste conceito, e qual a sua pertinência atual nos estudos<br />

sobre a memória?<br />

Memória coletiva, uma memória “feliz”?<br />

São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças,<br />

que já não sei em qual camada da memória eu estava agora.<br />

CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO<br />

A ênfase de Benjamin sobre a tese de que da memória coletiva só conhecemos<br />

os vestígios, embora não tão marcada no texto de Halbwachs, está presente sob o item<br />

“Sobrevivência dos grupos desaparecidos” 136 , que talvez constitua o maior ponto de<br />

contato entre os dois autores. Pois, enquanto Benjamin parece procurar um termo<br />

transcendente, além da memória coletiva e a individual; para o sociólogo francês, é a<br />

memória individual que se alimenta de “correntes de pensamentos coletivos<br />

convergentes” 137 , constituindo-se no cruzamento entre as ligações que o sujeito<br />

estabelece com os diferentes grupos.<br />

Para Halbwachs, o sujeito é único no ponto de seu enredamento da trama social,<br />

daí advém a impressão de que suas lembranças são puramente pessoais, mas elas se<br />

devem sempre a algum grupo; o que faz com que, quanto maior a complexidade social,<br />

maior a sensação de parecerem desvinculadas de qualquer coletivo e portanto supostas<br />

como individuais:<br />

136 HALBWACHS, H. (1990) p.126.<br />

137 Idem, p.46.<br />

... É uma mudança de lugar, de profissão, de família, que não rompe<br />

ainda inteiramente os liames que nos amarram a nossos antigos<br />

grupos. Ora, acontece que em caso semelhante as influências sociais<br />

se fazem mais complexas, porque mais numerosas, mais<br />

entrecruzadas. (...) Essas lembranças nos parecem puramente pessoais,<br />

e tais como nós sozinhos as reconhecemos e somos capazes de<br />

reencontrá-las, distinguem-se das outras pela maior complexidade das


condições necessárias para que sejam lembradas; mas isto é apenas<br />

uma diferença de grau. (HALBWACHS, M., 1990, p.48).<br />

A artista e pesquisadora Leila Danziger 138 mapeou bem a discussão atual em<br />

torno da memória coletiva, seus detratores e admiradores, apontando como principal<br />

crítica ao conceito, a alegação de Huyssen, em seu livro, Seduzidos pela Memória:<br />

arquitetura, monumentos, mídia, sobre uma inadequação da noção, apesar de assinalar<br />

uma preocupação crescente com a memória nos cenários políticos e culturais, nos<br />

últimos trinta anos 139 , em torno de uma cultura da memória do holocausto disseminada<br />

por todo o mundo.<br />

A inadequação, para Huyssen, dever-se-ia ao fato das memórias coletivas<br />

estarem expostas à constante fragmentação num mundo em permanente mudança, onde<br />

a aceleração do tempo e a fugacidade das relações com os grupos sociais fazem com<br />

que a própria idéia de pertencimento a um grupo seja colocada em xeque 140 . E, como<br />

argumento a favor, destaca a afirmação do pensador alemão Weinrich de que a memória<br />

coletiva “tornou-se o centro da atual pesquisa sobre a memória” 141 . A pertinência da<br />

memória coletiva na esfera dos estudos literários é destacada por Danziger; mas, quanto<br />

à assertiva de Weinrich, esta validade também pode estar referida ao debate sobre uma<br />

política das memórias coletivas, no cerne da qual se encontra a discussão sobre os<br />

genocídios do século XX, bem como as noções de catástrofe e testemunho.<br />

Ao formular sua teoria, Halbwachs não está tratando, ele mesmo afirma, da<br />

evocação da recordação 142 . Apoiado na sociologia de Durkheim, seus conceitos não<br />

138 DANZIGER, L. (2004).<br />

139 Cf. HUYSSEN, A. (2000) p.9. Cabe notar ainda, sobre este estudo que, apesar de enfatizar o que<br />

chama uma obssessão pela memória, por tudo lembrar, contida na idéia de uma cultura da memória, o<br />

autor destaca a importância das lutas políticas em defesa das memórias ligadas às ditaduras da América<br />

Latina, contrárias às políticas do esquecimento, e ao possível apagamento das memórias locais trazido<br />

pela globalização; e destaca a importância de trabalhos que comparem os traumas históricos à<br />

recuperação das memórias nacionais.<br />

140 Idem, p.19.<br />

141 WEINRICH, H. (2001) p.168.<br />

142 Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.37.


abarcam o desejo ou a fantasia na construção da memória, a não ser enquanto falhas a<br />

serem corrigidas. A mudança no tempo é admitida, mas desde que se mantenha uma<br />

relação com algum grupo, não restando muito espaço para a criação subjetiva, pois<br />

todas as memórias seriam memórias de algum grupo. Sob este aspecto, sua teoria torna-<br />

se, em certa medida, tributária da noção clássica de arquivo já mencionada (sua versão<br />

coletiva?), em suas palavras “o aparelho registrador” 143 da consciência, que vê na<br />

memória uma pura positividade, e tem como preocupação central “a memória feliz” 144 ,<br />

expressão de Ricoeur para se referir a uma tradição que remonta às teorias platônicas<br />

sobre o tema 145 , formuladas sobretudo para responder à indagação do como a memória<br />

funciona, ou seja, de como a lembrança pode ser bem-sucedida.<br />

Pergunta na qual o esquecimento não se coloca enquanto tema a ser<br />

problematizado; o que tampouco anula a complexidade ou a pertinência de sua teoria,<br />

como já foi dito. Pois a definição de memória coletiva apresenta várias aproximações<br />

com as concepções de Benjamin, principalmente quando se refere a um descentramento<br />

do sujeito, contido na síntese de que nossas lembranças “nos são lembradas pelos<br />

outros” 146 , e a noções como a de uma “história viva” 147 que se reconstrói no presente<br />

(embora se trate de uma reconstrução apoiada em outras reconstruções coletivas,<br />

presentes e passadas), bem como a uma multiplicidade das memórias coletivas 148 ,<br />

oriundas de tempos distintos, de traços de diferentes camadas do tempo que se assentam<br />

lado a lado numa lembrança 149 , fazendo da imagem mnemônica sempre uma “imagem<br />

143<br />

Idem, p.51.<br />

144<br />

RICOEUR, P. (2007) p.46.<br />

145<br />

RICOUER, P. (2007).<br />

146<br />

HALBWACHS, M. Op. Cit., p.26<br />

147<br />

Idem, p.67.<br />

148<br />

Idem, p.86.<br />

149<br />

Idem, p.127.


da imagem” 150 . Traços e imagens nos quais, sem dúvida, o autor se aproxima bastante<br />

das concepções de memória desenvolvidas na ficção de Guimarães Rosa.<br />

A fim de conceber melhor seu alcance, a teoria de Halbwachs deve ser lida tendo<br />

em vista o contexto em que nasce, no qual, o próprio autor, assim como Benjamin,<br />

experimentava o múltiplo pertencimento a várias culturas, num mundo ainda totalmente<br />

demarcado pela idéia de Estado-Nação, e a ameaça de desaparecimento das tradições,<br />

não apenas pelo progresso, mas pela tentativa concreta de extermínio da cultura judaica;<br />

que tem como desfecho o fato de que Halbwachs, de forma semelhante à morte de<br />

Benjamin, vem a sucumbir, morto num dos campos nazistas em 1945 151 . E, apesar das<br />

críticas, e da própria afirmação de que “não há na memória vazio absoluto” 152 , seu<br />

texto contém momentos interessantes de aproximação entre o sujeito e o esquecimento,<br />

como um ponto de pura negatividade:<br />

...Por mais estranho e paradoxal que isso possa parecer, as lembranças<br />

que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não concernem a<br />

não ser a nós mesmos, que constituem nosso bem mais exclusivo,<br />

como se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de<br />

escapar também a nós próprios. (HALBWACHS, M., 1990, p. 49).<br />

Há também uma associação entre o subjetivo, aquilo que não pertence a nenhum<br />

grupo, mas se situa entre um e outro, e o resíduo das recordações 153 . As lembranças<br />

mais “individuais” se encontram, portanto, menos disponíveis, pois estariam situadas<br />

nestas passagens ou lacunas entre um grupo e outro, entre as diferentes relações<br />

estabelecidas entre um e outro:<br />

...ainda que possamos passar de um a outro, as relações são tão<br />

reduzidas, tão pouco visíveis, que não temos nem a ocasião nem a<br />

idéia de seguir os apagados caminhos pelos quais se comunicam. Ora,<br />

150 Embora separe os domínios da imagem e da lembrança em territórios distintos, creio que o autor, neste<br />

trecho, não está enfatizando esta distinção, tratando das imagens mnêmicas que compõem a lembrança.<br />

Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.73.<br />

151 Cf. DANZIGER, L. (2004) p.14.<br />

152 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.77.<br />

153 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.45.


é sobre tais caminhos, sobre tais sendas ocultas (grifo nosso), que<br />

reencontramos as lembranças que nos dizem respeito...<br />

(HALBWACHS, M., 1990, p.50).<br />

Todavia, nota-se a ausência de uma leitura que inclua o desejo ou a<br />

subjetividade como determinante na escolhas dos grupos com os quais o sujeito se<br />

identifica, num texto que a observação acurada de Ricouer aponta ser narrado em boa<br />

parte na primeira pessoa 154 ; o que, por sua vez, nos leva a questionar se o subjetivo não<br />

seria de todo negado ali, mas apenas não seria o foco de seu questionamento. Cabe,<br />

ainda, assinalar que o texto é elaborado nos anos 20, sendo mais ou menos<br />

contemporâneo da filosofia de Benjamin, mas publicado somente nos anos 50, levando<br />

a pensar também, que, guardadas as distâncias efetivas do contexto entre-guerras<br />

europeu para os anos dourados no Brasil, tanto Halbwachs como Benjamin assinalam<br />

com suas obras teóricas, algo que Guimarães Rosa parece realizar na ficção. Pois<br />

Riobaldo representa, sem dúvida, um narrador-testemunha 155 de um mundo em<br />

extinção, alguém que tenta narrar em meio a um cenário de choque entre um conjunto<br />

de saberes ligados à cultura tradicional e ao controverso processo de modernização<br />

brasileiro.<br />

Assim, embora enquanto conceito as memórias coletivas não expliquem a<br />

escolha do sujeito em relação à sua inserção nos grupos, não respondam à pergunta<br />

(deixada em aberto) que Riobaldo se coloca a si mesmo e aos outros companheiros<br />

sobre a motivação para terem entrado para o bando de jagunços – “eu não tinha nascido<br />

para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se<br />

sarrafa?” 156 – elas se encontram no texto. Riobaldo evoca memórias coletivas<br />

atribuíveis aos diferentes coletivos com os quais o personagem se relaciona: as<br />

memórias dos jagunços a respeito dos grandes chefes de bandos do sertão, como a<br />

154 RICOEUR, P. (2007) p.406.<br />

155 Cf. Cap. 2 desta tese.<br />

156 ROSA, J.G. (2001) p.83.


história da vida de Medeiro Vaz, ex-dono de terras, que largou tudo o que possuía para<br />

entrar na guerra, desde que a violência e os desmandos tornaram “impossível qualquer<br />

sossego” 157 na região. Ou a fama de coragem de Joãozinho Bem-Bem: “Esse que já<br />

tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante<br />

fama” 158 .<br />

Além dos já mencionados casos sobre o Mal, as lembranças dos nomes de<br />

lugares, de plantas, de animais, por exemplo, transmitidos pela linguagem oral, e todo o<br />

conjunto de hábitos antigos consistiriam em memórias coletivas dos sertanejos em<br />

geral. O discurso político sobre o coronelismo, o progresso, o governo e os políticos,<br />

com o qual Riobaldo tem contato através do projeto de Zé Bebelo de guerra contra a<br />

jagunçagem: “nesse nosso norte não vai se mais ter um qualquer chefe encomendar<br />

para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo<br />

destruírem, do civilizado e legal!” 159 E o discurso ligado à reflexão dos homens letrados<br />

das classes médias das cidades, que leva o Professor a tomar gosto pelas altas<br />

idéias” 160 , todos estes seriam apenas alguns exemplos de grupos sociais em jogo no<br />

texto, que alimentariam a memória e o discurso de Riobaldo, situado no cruzamento de<br />

todos as coletividades nas quais teve alguma inserção.<br />

Desta forma, se estas outras estórias, numa primeira leitura, poderiam ser<br />

associadas somente às memórias coletivas que se contrapõem à individual, no decorrer<br />

do texto vão se incorporando a um sentido mais profundo: pois, ao confrontarem esta<br />

memória individual, apontam para um vazio – a mesma lacuna, por pouco, não de todo<br />

banida da obra de Halbwachs e de todas as leituras mais positivas da memória? – que no<br />

157 Idem, p.60.<br />

158 Idem, p.146.<br />

159 Idem, ibidem.<br />

160 Idem, p.30.


GSV retorna sempre, como o demo, do qual Riobaldo não glosa 161 , ou o fundo<br />

originário infernal, misturado em tudo e com seus vários nomes: “ocos” 162 , “fundos<br />

fundos” 163 , “ermos” 164 , etc.<br />

Na medida em que a narração e o trabalho de memória avançam, o que Riobaldo<br />

faz questão de reafirmar é a sua não-adequação a todos aqueles grupos sociais: “Sempre<br />

fui assim: descabido, desamarrado” 165 . O seu interesse no passado tampouco se coloca<br />

numa individualidade estrita, que ele recusa: “De tudo não falo. Não tenciono relatar<br />

ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que?” 166 , e menos ainda se<br />

refere à ordem coletiva das determinações sociais objetivas, factuais. O que o texto<br />

revela sobre este desejo de recontar o passado é que, na proporção em que a lembrança<br />

escapa, esse obscuro objeto da recordação vai sendo deslocado – ora é a matéria<br />

vertente, ora são as coisas importantes que se situam em outro lugar – e redefinido num<br />

plano de ausência e negatividade, que não suprime o esquecimento, mas ao contrário,<br />

faz dele um mote, num movimento que se alterna entre a multiplicidade e a recriação de<br />

sentidos da rememoração, ao vazio do esquecimento e a interrogação do enigma.<br />

Através do narrador Riobaldo, que parece proceder com a memória da mesma<br />

forma que busca conhecer o mundo, pelo seu avesso, pelas suas entranhas, o escritor<br />

contradiz as suposições de base da maior parte das teorias tradicionais sobre a memória,<br />

que afirmam que esta só existe a partir da narração, assim como a história necessita de<br />

uma escrita da história, e a imagem, da palavra para se fazer linguagem. Por todo o<br />

romance, a tentativa de recontar o passado se acrescenta ao esforço de recompô-lo<br />

segundo a “natureza” desordenada, fragmentada das lembranças, segundo a ordem<br />

161 Entre outros sinônimos para o termo glosar, Houaiss lista: criticar, suprimir, eliminar, rejeitar, mas<br />

também “desenvolver (um mote) em versos”. Cf. HOUAISS, A. (2009).<br />

162 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 400.<br />

163 Idem, p. 398.<br />

164 Idem, p.50.<br />

165 Idem, p.163.<br />

166 Idem, p.232.


muito peculiar do rememorar, o que coloca em jogo não uma relação de simples<br />

subordinação, mas uma tensão entre a narrativa e a memória. É o que se nota justamente<br />

numa passagem que fala também da importância dos velhos, e por extensão, da<br />

memória para um país:<br />

Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por<br />

disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor<br />

quase tudo. Não crio receio. (...) E meus feitos já revogaram,<br />

prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta<br />

empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deogratias;<br />

e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem<br />

andava falando: – “A pátria não pode nada contra a velhice...”<br />

Discordo. A pátria é dos velhos, mais. (...) Não. Eu estou contando<br />

assim porque é o meu jeito de contar. (...) O que vale, são outras<br />

coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,<br />

cada um com seu signo e sentimento... (ROSA, J.G., 2001, p.114-<br />

115).<br />

Mais uma vez, há aqui a associação entre uma memória do sujeito, do jeito<br />

próprio de cada um contar, e a herança dos velhos, que define então a memória<br />

subjetiva como indissociável das memórias coletivas de outras gerações. No que tange à<br />

relação entre narrativa e memória, a tentativa de unir a palavra (narrativa) à imagem<br />

(lembrança) aproxima o autor da outra lógica da poesia, a mesma que Foucault afirma<br />

ter sido inaugurada com a entrada na Modernidade e todas as transformações que a<br />

acompanharam, quando, diante da cisão entre a ordem das palavras e a das coisas,<br />

diante do fracasso da representação e da ausência de sentido do mundo, o homem é<br />

colocado na posição de intérprete, a decifrar seus signos 167 .<br />

Para demarcar a ruptura que teve lugar no pensamento ocidental a partir da<br />

Modernidade, Foucault compara os dois personagens desviantes emergentes desta<br />

separação, que serão o louco e o poeta: ambos tratarão a palavra na sua opacidade de<br />

coisa. Porém, enquanto o louco, “para quem todos os signos se assemelham e todas as<br />

167 Cf. FOUCAULT, M. (1999).


semelhanças valem como signos” 168 se verá enredado e perdido numa trama de<br />

linguagem “cuja semelhança não para de proliferar” 169 – o poeta,“sob a linguagem<br />

dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra<br />

linguagem”(...) da semelhança.” 170 Situado na extremidade oposta de uma mesma<br />

posição marginal, o poeta será chamado a recriar o mundo segundo uma nova ordem<br />

que, no entanto, como se vê no que concerne às concepções de memória em jogo no<br />

Grande Sertão, constitui uma escritura poética que – ao mesmo tempo – assinala e<br />

contraria esta fissura.<br />

168 FOUCAULT, M. Op. Cit., p.65.<br />

169 Idem, p.66.<br />

170 Idem, ibidem.


II. DESENHO, DESGRAÇA: <strong>SERTÃO</strong> EM RUÍNAS<br />

A memória é uma vasta ferida.<br />

CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO<br />

No primeiro capítulo, tentei demonstrar que o estranho método de procura pelo<br />

passado efetuado pelo narrador Riobaldo parece consistir em definir o passado e a<br />

rememoração pelo seu negativo. Ou seja, através de determinado conteúdo que não<br />

interessa ser recordado, se recusa uma determinada concepção de memória. De acordo<br />

com a busca de Riobaldo, as lembranças ansiadas pelo narrador negam, sucessivamente,<br />

alguns determinantes quando estes são tomados como exclusivos no processo do<br />

rememorar: não são consideradas como realmente importantes as lembranças<br />

pertencentes ao passado individual linear e ordenado (o individual), a das horas de<br />

todos (o coletivo), e a da vida de sertanejo (o social).<br />

Outras vezes, é o conteúdo da recordação que, por um motivo ou outro 171 , é<br />

descrito como não merecedor de lembrança, como se dá com a violência excessiva<br />

presente nas lembranças de guerra do ex-jagunço: “Que isso merece que se conte?(...)<br />

Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não<br />

seja.” 172 Ou, ainda, por serem coisas sem nome, demasiado fragmentadas: “Daí, os<br />

pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar<br />

narração” 173 . Ou, por fim, as recordações são recusadas simplesmente porque Riobaldo<br />

nega o desejo de contar: “Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual” 174 .<br />

Contudo, da mesma forma que as memórias coletivas, recusadas pelo narrador<br />

quando associadas somente às horas de todos – mas legíveis no texto desde que<br />

171 As questões a respeito da violência e do que pode ser nomeado ou não no processo de rememoração<br />

serão discutidas respectivamente mais adiante e no último capítulo desta tese. Por ora, é importante<br />

apenas frisar que as lembranças de guerra não são somente evitadas por ligarem-se ao recalcado e ao<br />

traumático para o personagem, mas também menosprezadas em favor de uma certa ética ou política da<br />

narração e da memória.<br />

172 ROSA, J.G. (2001) p. 245.<br />

173 Idem, p.221.<br />

174 Idem, p.125.


caracterizadas como herdadas de outras gerações, como memórias vivas, reconstruídas<br />

pelo sujeito – várias referências diretas e indiretas a elementos da geografia, da cultura e<br />

da história do Brasil podem ser identificadas na obra do escritor, cujo principal efeito<br />

não será de um realismo ou de um regionalismo strictu senso, mas o de promover um<br />

(re)pensar das relações entre ficção e memória, memória e história, e ficção e realidade.<br />

É interessante ver como isto se dá no texto, em que tipo de referência se pode falar e<br />

que relações elas colocam em questão, a começar pela paisagem, este sertão<br />

exaustivamente divulgado pelo autor e pela crítica.<br />

Sertão, paisagem subjetiva<br />

Abro a paisagem.<br />

...o sertão aceita todos os nomes...<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

A palavra sertão é, de fato, repetida incontáveis vezes por todo o texto, e assume<br />

uma infinidade de sentidos e leituras, daí as múltiplas propostas de interpretações a<br />

respeito do significado deste sertão de Rosa. Algumas tentativas, inclusive, são mais<br />

contundentes no intuito de definir (na acepção literal do termo, definitivamente) o que<br />

seria o sertão. Sobre a árdua tarefa da crítica, o pensador italiano Giorgio Agamben tem<br />

algo a acrescentar quando a situa entre a razão e a poesia, entre o “gozo do que não<br />

pode ser possuído e a possessão do que não pode gozar” 175 , afirmando que sua<br />

tentativa deve ser procurar não reencontrar seu objeto, mas “assegurar as condições de<br />

sua inacessibilidade” 176 , preservar a negatividade, a inapreensibilidade do objeto como<br />

seu bem mais precioso. Torna-se fundamental, portanto, resguardar que o sertão assume<br />

175 “(...la critique oppose) la jouissance de ce qui ne peut être possédé et la possession de ce dont on ne<br />

peut jouir.” Tradução minha, todas as traduções não mencionadas são de minha autoria. Cf. AGAMBEN,<br />

G. (1994) p.11.<br />

176 “...assurer les conditions de son inaccessibilité.” Idem, p.9.


inúmeros sentidos, distintos e inacabados, em diferentes passagens do texto. A dúvida<br />

se abre desde a primeira menção à palavra, situada nas páginas iniciais do romance:<br />

...Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,<br />

instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor<br />

tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é<br />

por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras<br />

altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo,<br />

então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se<br />

divulga: é onde os pastos carecem de fechos (...). O gerais corre em<br />

volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer<br />

aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão<br />

está em toda a parte. (ROSA, J.G., 2001, p.23-24).<br />

Se, no mapa brasileiro, a mais recente definição da Região Semi-Árida do<br />

Nordeste corresponde a uma área que se estende do norte de Minas Gerais ao Piauí 177 ;<br />

no dicionário, que revela seu uso mais corrente, os sinônimos para o termo sertão,<br />

“região agreste”, “terreno coberto de mato, afastado do litoral”, “toda região pouco<br />

povoada do interior” e “zona mais seca que a caatinga” 178 , não fornecem uma<br />

localização espacial precisa. E – embora o texto do GSV faça várias alusões a lugares<br />

geográficos existentes no mapa brasileiro na região em torno do norte de Minas Gerais,<br />

como o rio São Francisco, a cidades como Januária, e aos estados de Minas Gerais, à<br />

fronteira com Goiás e Bahia – o sertão de Rosa está muito além de um espaço objetivo,<br />

pois ele se insere no diálogo onde Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e<br />

transmitir o que é o sertão para o senhor que escuta. Diz respeito, portanto, a uma<br />

experiência do narrador, a uma memória subjetiva. Memória sujeita a falhas e afetos<br />

daquele que narra, à qual Willi Bolle chamou de mapa mental, ou geografia ficcional<br />

para distinguir de uma geografia física ou objetiva:<br />

O narrador retira pedaços do sertão real e os recompõe livremente – de<br />

maneira análoga aos mapas mentais, que nascem da memória afetiva,<br />

177 A última definição data de 2005. Cf. IBGE, página eletrônica da internet (s/d).<br />

178 HOUAISS, A. (2009).


e lembranças encobridoras, de pedaços de sonhos e fantasias, medos e<br />

desejos. (BOLLE, W., 2004, p.71).<br />

Este mapa, constituído não somente de locais geográficos, mas de “‘passagens’<br />

da vida” 179 , seria o registro não apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se<br />

pelo sertão, de acordo ainda com a indagação de Willi Bolle (em clara alusão às<br />

palavras de abertura de Walter Benjamin em “Infância em Berlim por volta de 1900” 180 ,<br />

um texto onde Benjamin fala basicamente sobre a memória): “qual é o mapa geográfico<br />

capaz de representar não a origem, mas o perder-se no sertão?” 181 Perder-se inclui<br />

suportar o vazio e o esquecimento. Diversas vezes, o bando se perde, e o leitor é levado<br />

pela sensação de que os lugares, assim como os nomes, se movem no texto.<br />

Às descrições de lugares objetivos são interpostos, assim, outros locais sem<br />

registro no mapa oficial, como o Liso do Sussuarão, que é comparado a um inferno, “o<br />

miôlo mal do sertão” 182 , uma das imagens do Mal e de um centro insondável no<br />

romance, situado além da própria representação. Neste sentido, a indefinição ou<br />

imprecisão da paisagem segue a mesma lógica da narração e do processo de<br />

rememoração: uma lógica fragmentada, desordenada, na qual distintas camadas do<br />

tempo e do espaço se sobrepõem.<br />

Cabe notar como a escrita vai além da subjetividade do narrador e faz um apelo<br />

à participação do leitor, ao utilizar-se de expressões indeterminadas como: “pão ou<br />

pães, é questão de opiniães...” 183 ; abre lacunas e negações de sentido no texto, como<br />

propõe Wolfgang Iser 184 , e insere vazios de significação, aos quais o leitor é chamado –<br />

ou não – a preencher com a sua subjetividade, a atribuir-lhes um sentido particular, a<br />

179 BOLLE, W. ( 1994-95 ) p.88.<br />

180 “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. Entretanto, perder-se numa cidade, como<br />

alguém se perde numa floresta, requer instrução.” Cf. BENJAMIN, W. (2009) p.73.<br />

181 BOLLE, W. (1994-95) p.88.<br />

182 ROSA, J.G. (2001) p. 65.<br />

183 ROSA, J.G. (2001) p. 24.<br />

184 Iser propõe diferentes níveis de negatividade no texto, desde o nível mais formal das lacunas, a uma<br />

negatividade que se relaciona com o inominável, e se coloca como um núcleo irredutível à significação.<br />

Cf. ISER, W. (1999), p.28-33; SCHUAB, G. (1999).


partir de um horizonte maior já dado pelo autor... Desta forma, o texto de Rosa convoca<br />

e provoca o leitor, negando qualquer consenso, sequer a respeito da localização do<br />

sertão visto que, desde a primeira referência, menciona a polêmica em torno da<br />

geografia do local: “Uns querem que não seja” 185 .<br />

Instaurada a dúvida, inúmeras variações de sentido surgem ao longo da história,<br />

sendo o mais freqüente o uso do sertão no lugar de um saber que pode ser extraído a<br />

partir da memória coletiva, como por exemplo: “sertão é onde manda quem é forte,<br />

com as astúcias” 186 . Sentido que pode, ainda, atrelar-se mais ao modo de ser ou à<br />

“forma de pensamento” 187 , como quer Willi Bolle, do que à localização física, abolida<br />

com a interiorização desse espaço: “Sertão: é dentro da gente” 188 . Ou, diante da<br />

dificuldade de nomeação deste lugar, ele aparece como pura indefinição, um isto que<br />

aponta para um mais além (ou aquém) do espaço, do tempo e da compreensão: “O<br />

senhor tolere, isto é o sertão” 189 , como demonstrou Finazzi-Agrò no livro dedicado ao<br />

que o autor considera uma demanda ou apelo dos confins na obra de Rosa 190 , no qual<br />

assinala justamente o caráter de infinitude deste sertão: “O sertão é do tamanho do<br />

mundo” 191 . O espaço assume uma extensão infinita que atinge, no limite, a absoluta<br />

ausência de espaço: “O sertão é sem lugar” 192 . E culmina numa ausência de palavras<br />

para descrevê-lo, que se torna uma pura indicação: “o sertão: o senhor sabe” 193 .<br />

O termo paisagem tem origem na Europa do século XVI, inicialmente vinculado<br />

à pintura e, mais tarde, a um estilo de jardim orientado pela busca de um retorno à<br />

185 ROSA, J.G. (2001) p. 23.<br />

186 Idem, p.35.<br />

187 B OLLE, W. (2004) p. 82.<br />

188 ROSA, J.G. (2001) p. 325.<br />

189 ROSA, J.G. (2001) p.23.<br />

190 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).<br />

191 ROSA, J.G. (2001) p. 89.<br />

192 Idem, p.370.<br />

193 Idem, p.406.


natureza 194 , referindo-se tanto a uma certa imagem do mundo, desde o início concebida<br />

a partir de um determinado modo de olhar; como à idéia de uma organização, de um<br />

conjunto. Na literatura, a paisagem vai progressivamente desvencilhar-se de um lugar<br />

físico, e ser expressa como um espaço indissociável entre o subjetivo e objetivo 195 .<br />

Atualmente, o termo incorporou-se a diversos outros meios, admitindo-se a<br />

possibilidade paisagens musicais, literárias, geográficas, históricas, entre outras, o que<br />

tornou o conceito transdisciplinar. Nas palavras do pesquisador francês Michel Collot, a<br />

paisagem se constitui numa “encruzilhada onde se encontram elementos vindos da<br />

natureza e a cultura, a geografia e a história, o interior e o exterior, o indivíduo e a<br />

coletividade, do real e do simbólico.” 196 Como na língua portuguesa, a palavra deriva<br />

de país, e o sufixo age acrescenta a idéia de uma apreensão ou forma que permite tomá-<br />

lo como um conjunto.<br />

Desde a origem, o conceito estaria intrinsecamente ligado à subjetividade, pois a<br />

paisagem não diz respeito ao retrato objetivo, mas, conforme Collot, a “um ponto de<br />

vista” 197 , a um certo olhar que inclui não apenas a visão como sentido (lembremos do<br />

aroma e sabor da madeleine, ligada a uma imagem do passado que, uma vez<br />

reencontrados, despertam a memória involuntária e recriam a partir dela toda a<br />

paisagem de recordações em Proust 198 ). Como propõe Merleau-Ponty, a construção de<br />

194 O jardim inglês estará também na origem do termo romântico e, segundo Antonio Candido, Rousseau,<br />

no séc.XVIII, pode ser considerado um precursor do Romantismo ao vincular a idéia de um “sentimento<br />

da natureza, a meditação e o movimento do corpo nos Devaneios do Passeante Solitário”. Cf.<br />

CANDIDO, A.(1993) p.261. A noção de uma paisagem subjetiva em movimento, como tento mostrar,<br />

estará no cerne do romance de Rosa.<br />

195 COLLOT, M. (1997) p.7.<br />

196 “Le paysage est un carrefour où se rencontrent des éléments venus de la nature et la culture, de la<br />

géographie et de l’historie, de l’intérieur et l’extérieur, de l’individu et de la collectivité, du réel et du<br />

symbolique.” Cf. COLLOT, M. (1997) p.5, tradução minha.<br />

197 Cf. COLLOT, M. (1997) p.13.<br />

198 “Procurar? Não apenas: criar.(...) Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim deve ser<br />

a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim.” Cf. PROUST, M.<br />

(2002) p.49.


uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos que se dá através do corpo como<br />

um todo e que, a partir do sensível, chega a atingir o invisível. 199<br />

Recentemente, a noção de paisagem vem sendo formulada por Collot através da<br />

fenomenologia de autores como Husserl e Merleau-Ponty, que buscam explicar como se<br />

dá a percepção deste conjunto, acrescentando ao conceito a idéia de uma junção entre o<br />

mundo sensível e sua apreensão, na bela expressão do teórico alemão Erwin Strauss,<br />

“um sentido dos sentidos” 200 . Isto significa que a paisagem apreendida pelos sentidos<br />

seria, de antemão, em certa medida organizada pelo simbólico, excluindo-se a<br />

possibilidade de uma pura percepção associada aos sentidos e totalmente desvinculada<br />

de seu registro psíquico.<br />

Em outro artigo intitulado “Du sens de L’espace à l’espace du sens”, Collot<br />

propõe haver uma intuição da continuidade entre o espaço verbal e o espaço<br />

extralingüístico 201 , intuição própria aos poetas e ao pensamento poético, inserindo-se no<br />

centro da problemática sobre a ruptura e proximidade entre a linguagem e o mundo<br />

discutida em diferentes formulações sobre a poesia na Modernidade, para ficar apenas<br />

com autores anteriormente mencionados 202 , desde Michel Foucault, em As Palavras e<br />

as Coisas, a Paul Valéry e Octavio Paz, que expõe a tensão não somente em seu<br />

trabalho crítico, mas em sua poética, como se lê em “Carta a Léon Felipe”, de 1967:<br />

...A escrita poética<br />

é apagar o escrito<br />

Escrever<br />

sobre o escrito<br />

o não escrito<br />

199 MERLEAU - PONTY, M. Apud. COLLOT, M. (1997) p.199.<br />

200 “un sens des sens” Apud COLLOT, M. (1997) p.200.<br />

201 “Cette intuition d’une continuité entre l’espace verbal et espace extra-linguistique me semble une<br />

contance de la refléxion poétique contemporaine.” Cf. COLLOT, M. (1987) p.99.<br />

202 Cf. FOUCAULT, M. (1999), VALÉRY, P. (1999) e PAZ, O. (1972). Os autores diferem quanto ao<br />

maior ou menor teor de aproximação e de ruptura entre a linguagem e o mundo que a poesia inscreve na<br />

Modernidade, sendo que, enquanto o primeiro, diferentemente de Collot, parece privilegiar o aspecto da<br />

cisão em suas análises; os dois últimos, poetas-críticos, tendem a considerar a questão como um conflito<br />

exposto pela própria poesia, como no poema citado acima. Ver também cap. 4 deste trabalho.


Representar a comédia sem desenlace<br />

Je ne puis parler d’une absence de sens<br />

sinon lui donnant un sens qu’elle n’a pas<br />

(...) O poeta<br />

Tu o dizes em tua carta<br />

é o que pergunta<br />

aquele que desenha a pergunta<br />

sobre o fosso<br />

e ao desenhá-la<br />

a apaga<br />

A poesia<br />

É a ruptura instantânea<br />

Instantaneamente cicatrizada<br />

Aberta de novo<br />

(...)Alguns querem mudar o mundo<br />

outros lê-lo<br />

Nós queremos falar com ele...<br />

(PAZ, O., 1997, p.387-388) 203 .<br />

A novidade da teoria sobre a paisagem estaria na forma de recolocar e explorar a<br />

questão a partir do eixo entre a linguagem e o espaço, de supor este espaço<br />

extralingüístico como um além do signo, uma abertura em contrapartida ao fechamento<br />

do universo dos signos defendido por determinadas abordagens de um estruturalismo<br />

que não apontam para nenhuma exterioridade às palavras 204 . A imagem poética ou<br />

literária constitui, de acordo com esta concepção da paisagem, o meio privilegiado de<br />

demonstrar este solo comum entre o mundo percebido e o simbólico: no poema de Paz,<br />

a pergunta é desenhada num verso e apagada em seguida; a ruptura se abre e cicatriza,<br />

mas não fecha, e o poema é estruturado numa disposição visual onde cada verso,<br />

203 “...La escritura poética/ es borrar lo escrito/ Escribir/ sobre lo escrito/ lo no escrito/ Representar la<br />

comedia sin desenlace/ (...)/ La escritura poética es/ aprender a leer/ el hueco de la escritura/ em la<br />

escritura/ (...)/ El poeta/ lo dices em tu carta/ es el pregunton/ el que dibuja la pregunta/ sobre el hoyo/ y<br />

al dibujarla/ la borra/ La poesia/ es la ruptura instantânea/ instantáneamente cicatrizada/ abierta de<br />

novo/ (...)/ Algunos quieren cambiar el mundo/ otros leerlo/ nosotros queremos hablar com él... Cf. PAZ,<br />

O. (1997) p.387-388. Tradução de Cláudio Willer. Cf. WILLER, C. (2001), página eletrônica.<br />

204 Cf. COLLOT, M. (1989) p.5-6. O autor menciona na introdução do livro assumir um distanciamento<br />

dos estudos literários da década de 70, que segundo ele censuravam qualquer alusão a elementos extratextuais,<br />

por considerá-los suspeitos de reconduzir a uma ilusão referencial ou lírica.


iniciado à margem do anterior, cria um ritmo que acompanha este movimento, numa<br />

alternância entre o ir e vir, a proximidade e a distância.<br />

Seguindo esta proposição, a imagem poética consistiria na tentativa de expressão<br />

de uma “paisagem de uma experiência” 205 , que coloca em jogo a idéia de uma<br />

“estrutura do horizonte” 206 , horizonte que vem a ser o da escrita poética, da busca de<br />

uma fala com o mundo realizada pela poesia e pelos poetas. Neste sentido, pode-se<br />

afirmar que a estrutura do horizonte da poesia rompe com as disjunções tradicionais<br />

entre “coisa ouvida” e “coisa pensante” ou entre espaço e linguagem 207 .<br />

O horizonte assinala a dupla face da experiência perceptiva: o sentido, como foi<br />

dito, que a define igualmente como uma experiência simbólica, já contida (mas não<br />

determinada) numa simples apreensão de qualquer cena, diz Collot, na qual desde<br />

sempre haveria uma série de relações entre os objetos que são igualmente percebidas e<br />

fazem parte deste mundo simbólico, da linguagem 208 . E, de outro lado, uma ausência,<br />

concebida por Lacan como própria ao registro do real, do que se apresenta como um<br />

inassimilável na experiência do sujeito 209 , que aqui demarca uma linha de um invisível<br />

absoluto ao qual a poética contemporânea não cessa evocar 210 , na sua insistência em<br />

reenviar continuamente a novos sentidos, novos horizontes de sentidos:<br />

ela não é a seus olhos (dos poetas) um limite provisório que se permite<br />

cruzar para descobrir o que segue à paisagem, mas sim a fronteira de<br />

um outro mundo destinado a permanecer desconhecido. (COLLOT,<br />

M., 1989, p.104). 211<br />

Graças a este caráter de invisibilidade radical, acrescenta o teórico francês, esta<br />

linha pode servir de metáfora a diversos domínios da experiência do invisível, dentre os<br />

205 COLLOT, M. (1997) p. 201.<br />

206 Idem, (1987) p.99.<br />

207 Idem, ibidem.<br />

208 Idem, p.100-101.<br />

209 Cf. LACAN, J. (2008b) p.60.<br />

210 COLLOT, M. (1989) p.103.<br />

211 “elle n’est pas a leurs yeux une limite provisoire que l’on peut franchir pour découvrir la suite du<br />

paysage, mais bien la frontière d’un outre monde destiné à demeurer inconnu.” Idem, p.104.


quais se destaca a da profundidade do passado 212 , que tanto para a fenomenologia como<br />

para a psicanálise (da mesma forma, também, no índice secreto do passado<br />

benjaminiano) contém um horizonte, uma espessura:<br />

...Husserl mostrou como cada momento que vem modificar aquele que<br />

o precedeu: o fenômeno da retenção não significa a conservação pura<br />

e simples da imagem do passado mas, ao contrário, a sua contínua<br />

transformação. (COLLOT, M., 1989, p.56). 213<br />

A idéia de um passado vivo, que possui um porvir, de que as lembranças se<br />

remexem, no dizer de Riobaldo, e que nos reenvia continuamente a novos horizontes –<br />

tal como a busca riobaldiana pelo passado e a redefinição de memória que a acompanha<br />

– leva à constatação de que há no passado uma dimensão escondida, irredutível à<br />

rememoração, a que Collot nomeia como “a versão negativa da estrutura do horizonte<br />

do passado” 214 .<br />

Eis, segundo Collot, um dos pontos de interlocução entre a compreensão<br />

fenomenológica do horizonte da paisagem e a teoria psicanalítica, que permite que o<br />

Inconsciente seja comparado a um horizonte: a definição mesma de Freud, que demarca<br />

simultaneamente a “parte obscura, impenetrável de nossa personalidade” 215 ,<br />

inacessível à consciência e a origem de onde provêm os sentidos que podem se tornar<br />

conscientes. A noção de imagem se situa no centro deste paradoxo, reaproximando<br />

horizonte e Inconsciente, pois o autor nos lembra duas idéias freudianas que<br />

estabelecem a continuidade entre mundo sensível e linguagem, entre sentir e pensar, ou<br />

entre imagem e palavra, exposta acima.<br />

212 “C’est porquoi l’horizont peut servirde métaphore à tous ces seuils d’invisibilité absolue auxquels se<br />

heurte la conscience dans les divers domains de l’experience: tache aveugle du corps, mystère insondable<br />

de L’Être, profondeur du passé, indetermination de l’avenir, transcendance d’autrui”. Cf. COLLOT, M.<br />

(1989) p.104.<br />

213 “Husserl a montré comment chaque moment qui vient modifie ceux qui l’ont précédé: le phénomène<br />

de la rétention ne signifie pas la conservation pure et simple de l’image du passe, mais au contraire sa<br />

continuelle transformation.” Cf. COLLOT, M. (1989) p.56.<br />

214 Idem, p.59.<br />

215 Citado por COLLOT, M., (1989) p.113.


A primeira seria a concepção de inconsciente como formado fundamentalmente<br />

por representações-coisa, diversamente dos sistemas consciente e subconsciente, onde<br />

se encontrariam as representações-palavra 216 . A noção de imagem que a representação-<br />

coisa contém se abriria por si mesma a esta multiplicidade de significações que<br />

transformam o inconsciente neste horizonte de sentido indefinido. Na mesma linha de<br />

pensamento, a noção de traços mnêmicos, para Freud ligada a resíduos de experiências<br />

do mundo sensível, que formarão parte do Inconsciente, igualmente articula a apreensão<br />

do mundo pelos sentidos à memória, redefinindo, vale dizer, a experiência dos sentidos<br />

e a memória como diversos de um registro objetivo do mundo e da representação<br />

tradicional, distintos da idéia clássica de arquivo 217 , e fundamentando a noção de<br />

paisagem como uma experiência relacionada à memória, situada sempre entre estes dois<br />

registros, a percepção e a memória (ou o sentir e o pensar) tradicionalmente colocados<br />

como excludentes.<br />

Nesta perspectiva, a paisagem do sertão vai sendo construída como este lugar<br />

impreciso, em sucessivas definições que não definem, onde um horizonte de sentido<br />

leva a outro; formada subjetivamente por fragmentos, desejos, lembranças, mas também<br />

por uma ausência, pelos vazios e lacunas que permanecem abertos: “Lugar sertão se<br />

divulga: é onde os pastos carecem de fechos” 218 . Sob a mesma ótica, este Grande<br />

Sertão se associa, ainda, à paisagem de “Os Cimos” 219 que marca o desmedido momento<br />

que parece transbordar de um processo de subjetivação, onde o Menino tem de se<br />

confrontar com uma seqüência de ausências e presenças, iniciadas em “As Margens da<br />

216 (Respectivamente Dingvorstellung e Wortvorstellung). Utilizo a tradução de Luiz Alfredo Garcia-<br />

Roza, que suprime a preposição “de” para evitar confusões entre os representantes psíquicos e a noção<br />

tradicional de representação. Cf. GARCIA-ROZA, L. (1991).<br />

217 Cf. Capítulo 3 desta tese.<br />

218 ROSA, J.G. (2001) p.24.<br />

219 ROSA, J.G. (1988).


Alegria” 220 : aparecimento, morte – reaparecimento de outro peru, feroz – surgimento<br />

intermitente da alegria, com a luz do vaga-lume.<br />

Hiância que continua neste segundo conto, durante o trabalho do pássaro:<br />

ausência da mãe doente, idas e vindas de outro pássaro, o tucano, volta para a mãe,<br />

sarada, perda do macaquinho jogado fora, perdido “no sem-fundo escuro do mundo” 221<br />

e encontro do chapéu do bonequinho que compõe, em seqüência, um verdadeiro poema<br />

sobre o fort-da freudiano 222 , nesse jogo de ausência e presença que reencena o trauma e<br />

possibilita uma elaboração subjetiva: “feito o desenglobar-se de uma nebulosa” 223 . Ir e<br />

vir como o movimento do macaquinho – o equivalente ao carretel do menino observado<br />

por Freud – que é suposto passear lá, “na outra parte, aonde as pessoas e coisas<br />

sempre iam e voltavam” 224 , e que traz para o Menino a miragem da completude<br />

original:<br />

Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o<br />

Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do<br />

terreirinho das altas árvores... e no jipe aos bons solavancos... e em<br />

toda-a-parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia...<br />

donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo,<br />

ainda muito mais vivo, entoante e existente – parado que não se<br />

acabava – do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos<br />

altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aquilo. Só tudo... (ROSA,<br />

J.G., 1988, p.159-160).<br />

No entanto, a paisagem dos cimos, da plenitude da origem, é a que resta<br />

desmedida, a não caber na representação ou linguagem tradicionais: “paisagem e tudo,<br />

fora das molduras” 225 . A beleza da escrita de Rosa é justamente conseguir falar deste<br />

descabimento através da sua poética, produzir este efeito de apontar o intangível através<br />

220 Idem.<br />

221 Idem, p.159.<br />

222 FREUD, S. (1976).<br />

223 ROSA, J.G. (1988) p.159.<br />

224 Idem, ibidem.<br />

225 ROSA, J.G. (1988) p.159.


das palavras 226 . O caráter desmedido, de resto e de origem ao mesmo tempo, fica mais<br />

claro com a comparação com a “nenhuma parte” da “Terceira-Margem do Rio” e com<br />

o lá de “Lá, nas Campinas” 227 , dois contos de Rosa nos quais o espaço já foi apontado<br />

como metáfora do Inconsciente.<br />

Ambos falam deste local como origem. No primeiro conto, trata-se do local de<br />

exílio do pai, que parte numa canoa, rio afora, num terceiro espaço, intermediário entre<br />

as duas margens: “naqueles espaços do rio, de meio a meio” 228 . “Ele não tinha ido a<br />

nenhuma parte” 229 . O adjetivo nenhum figura como expressão deste impossível lugar<br />

paterno ao qual o filho, inconformado com a perda, tenta, em vão, ocupar, substituir o<br />

lugar do pai naquela canoa 230 . Segundo Perrone-Moisés:<br />

De modo recorrente, quando o escritor se refere a esse “lugar”<br />

psíquico onde agem a memória e o desejo, ele o qualifica como<br />

“nenhum”, e usa, como metáfora, o outro lado de uma paisagem<br />

montanhosa. (PERRONE-MOISÉS, L., 2002, p.210).<br />

Já em “Lá, nas Campinas”, este lá é associado à terra perdida da infância que o<br />

personagem Drijimiro tenta reencontrar na recordação: “Vinha-lhe a lembrança – do<br />

último íntimo, o mim de fundo” 231 e da qual resta a frase: “Frase única, ficara-lhe, de<br />

no nenhum lugar antigamente: Lá, nas campinas” 232 . Novamente, surge o termo<br />

nenhum, pontuando a negatividade dos lugares que a mesma autora qualificou de<br />

“nenhures” 233 , a partir da formulação de Lacan de que ao Inconsciente, “o nome de todo<br />

lugar convém tanto quanto o de nenhum lugar” 234 , e que consistem em lugares apenas<br />

226<br />

Neste aspecto, vale a transcrição de Leyla Perrone-Moisés, quando afirma que “enquanto os<br />

psicanalistas sabem muito, os poetas sabem tudo”. PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.279.<br />

227<br />

Respectivamente em ROSA, J.G. (1988), (1985).<br />

228<br />

Idem, ibidem.<br />

229 ROSA, J.G. (1985)<br />

p.33.<br />

230<br />

Para uma análise de ambos os contos sob a perspectiva das relações entre esta topologia do<br />

inconsciente e a melancolia, ver o capítulo 3 deste trabalho.<br />

231<br />

ROSA, J.G. (1985) p.97.<br />

232<br />

Idem, ibidem.<br />

233<br />

PERRONE-MOISÉS, L. (2002) p.210.<br />

234<br />

LACAN, J. Apud. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.111.


no sentido de uma representação metafórica do Inconsciente, nunca em termos de<br />

localização cerebral 235 .<br />

No conto, onde o personagem, tendo passado “por incertas famílias e mãos; o<br />

que era comum quando vêm esses pobres” 236 , repete a vida toda esse resíduo de sua<br />

obscura origem como um refrão, este lá é comparado pela mesma autora ao “Wo Es<br />

War” de Freud, relido por Lacan como “Lá onde era”, o lugar a partir de onde um<br />

sujeito pôde advir:<br />

... A rememoração (...) é um problema do sujeito, que necessita voltar<br />

para “lá, onde era”, segundo a famosa formulação de Freud: “Wo Es<br />

war, soll Ich werden”, que Lacan traduz e examina como “Là où<br />

c’était, le sujet doit advenir” (Lá onde era, o sujeito deve vir a ser)...<br />

(PERRONE-MOISÉS, L., 2000, p.275).<br />

Além do enunciado cifrado, o personagem guardava na memória fragmentos de<br />

lugares: “Largo rasgado de um quintal, o chão amarelo de oca, olhos d’água jorrando<br />

de barrancos” 237 e nenhuma lembrança de pessoas. Nota-se, portanto, que esta<br />

paisagem rosiana envolve um espaço intrincado entre o objetivo e o subjetivo; mas,<br />

sobretudo, evoca um local de origem que não se confunde com o passado cronológico.<br />

Como salienta Perrone-Moisés, a partir da leitura de Lacan da teoria freudiana; lá<br />

concerne não apenas à história familiar e edipiana de uma vida e, sim, ao impossível<br />

lugar de origem a que todos tentamos alcançar: “à origem ontológica de que todos os<br />

homens são órfãos, não por terem perdido uma completude anterior, mas por serem<br />

constitutivamente incompletos.” 238 Este lá será pensado, portanto, como nenhum,<br />

ausência, enigma constituinte do humano, como centro a partir do qual um isso – da<br />

mesma forma que o sertão: é isto de Rosa, esbarra na impossibilidade de definição, pois<br />

235 Idem, p.211.<br />

236 Idem, p.98.<br />

237 ROSA, J.G. (1985) p.97.<br />

238 PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.273.


não consiste objetivamente numa positividade, sendo apenas possível apontá-lo, isso, ou<br />

lá, de onde eu vim... – pôde dar lugar a um sujeito, e que pressupõe, conforme já<br />

começamos a perceber, outras temporalidades envolvidas.<br />

Uma vez considerados alguns aspectos da topologia deste cenário rosiano, resta<br />

indagar como, no GSV, as diversas referências ao tempo histórico (apresentadas no<br />

início do capítulo) participam da configuração ou do desenho deste mapa subjetivo; ou<br />

talvez, como o tempo se conjuga ao espaço, e que formas do tempo se colocam em<br />

cena. Enfim, tendo em vista a marcante proximidade que o texto estabelece entre estes<br />

inomináveis e a memória, cabe perguntar que outras concepções podem lançar luzes<br />

sobre as sombras deste rememorar rosiano?<br />

Retrato negativo<br />

Sempre no gerais, é à pobreza, é à tristeza. Uma tristeza que até alegra.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Em Português, o termo paisagem surge alguns anos após o seu aparecimento na<br />

Europa, mas a idéia de construção de uma paisagem nacional somente chegará ao Brasil<br />

com os viajantes do início do século XIX, acolhida por uma classe dominante ávida em<br />

fornecer substrato cultural a um Estado recém-independente 239 . De acordo com Flora<br />

Sussekind, a obra de Guimarães Rosa, ao lado de escritores como Machado de Assis, se<br />

insere num momento da produção literária nacional em que, já tendo “retratado” a<br />

geografia e a história do país, o narrador rompe com a perpectiva fixa, e introduz a<br />

ambigüidade em relação ao que é narrado, transformando-se, ele próprio, em<br />

paisagem. 240<br />

239 Cf. BOLLE, W. (2004) p. 49.<br />

240 SUSSEKIND, F. Apud. BOLLE, W. (2004) p.49-54.


Willi Bolle considera o Grande Sertão como parte da série retratos do Brasil,<br />

um gênero derivado do livro homônimo de Paulo Prado, de 1928 241 , que teria início<br />

com Os Sertões 242 , de Euclides da Cunha, e estaria ao lado de obras como Casa-Grande<br />

e Senzala 243, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil 244 , de Sérgio Buarque de Holanda,<br />

cujos autores são todos considerados legítimos pensadores do Brasil, e suas obras<br />

bastante reveladoras da cultura brasileira. No que concerne ao GSV, este retrato não<br />

pode ser tomado como registro objetivo; e sim, como nos induz a pensar Bolle, em<br />

artigo onde distingue o ponto de vista do narrador-personagem rosiano, situado a partir<br />

da memória de um jagunço, do interior, e do plano mais baixo do sertão,“ao nível da<br />

estrada e do rio” 245 , em contraste com o olhar de “sobrevôo” 246 do observador que<br />

pretende uma visão geral, do alto, exterior aos acontecimentos, representado por<br />

Euclides da Cunha em Os Sertões. Em contrapartida, o retrato de Rosa do país pode ser<br />

visto como o negativo ou contraponto de sua época, a partir do olhar crítico do escritor<br />

sobre um determinado contexto histórico do Brasil.<br />

Além das já demonstradas noções de infinitude e de negatividade, podem ser<br />

considerados, então, como traços da paisagem no GSV, primeiramente (em ordem<br />

aleatória): a idéia do mundo misturado, que como se verá, guarda ressonâncias com<br />

aspectos históricos. Mas, num primeiro momento, é preciso observar como esta noção<br />

toma conta do espaço, reunindo, ao mesmo tempo, um cenário de um inferno próximo e<br />

uma imagem do paraíso, construída pelo universo do sonho, onde o amor deixou seus<br />

rastros numa natureza exuberante, para que o sujeito possa emergir como intérprete. É o<br />

que o narrador tenta comunicar a seu hóspede:<br />

241 Apud. BOLLE, W. (2004) p.23-24.<br />

242 Idem, p.35.<br />

243 Apud BOLLE W. (2004) p.24.<br />

244 HOLANDA, S.B. (1995).<br />

245 BOLLE, W. (1994-1995) p.85.<br />

246 Idem, ibidem.


Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num<br />

afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre<br />

preta na Serra do Tatú – já ouviu o senhor gargaragem de onça? (...)<br />

Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi<br />

Diadorim...(...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de<br />

campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a<br />

escova, amarelinhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).<br />

Contraponto ao horror da guerra e todo o Mal inerente à vida do sertão, esta<br />

paisagem idílica só se torna visível através do amor por Diadorim, que o faz sonhar um<br />

sertão, para além da lógica tradicional, insuficiente para compreender aquela realidade:<br />

Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não<br />

sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje<br />

fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas<br />

quisquilhas da natureza. (ROSA, J.G., 2001, p. 45).<br />

Junto a esta, outra linha do desenho deste sertão se move entre a ruína, a miséria<br />

absoluta dos catrumanos, a violência extrema que esculpe os corpos à faca, presente na<br />

imagem do jagunço sem orelha, ou dos hermógenes cortando os próprios dentes no<br />

acampamento. No extremo oposto, as imagens irônicas sobre o progresso futuro,<br />

expressas em sua maior parte no projeto e anseios de Zé Bebelo: de pontes, de fábricas e<br />

escolas que virão “remediando a saúde, preenchendo a pobreza” 247 , riscam um espaço<br />

onde ainda convivem diferentes contradições e ambigüidades próprias à história e<br />

cultura do país.<br />

A presença de uma pura plasticidade ou reversibilidade das coisas e seres, que<br />

Rosenfield conceitua como princípio relacionado à questão do Mal e da versão e<br />

reversão do nada em tudo 248 , cujo lema: “tudo é e não é” 249 insere-se também no<br />

espaço através da sentença: “sertão: tudo certo, tudo incerto” 250 . Aqui, o primeiro<br />

aspecto que chama a atenção, e através do qual a descrição do espaço se conjuga ao<br />

tempo, é que a paisagem, construída a partir da memória, vai sendo descrita de acordo<br />

247 Idem, p.147.<br />

248 ROSENFIELD,K. (1993); (2006).<br />

249 ROSA, J.G. Op. Cit., p.27.<br />

250 Idem, p.172.


com o deslocamento do narrador e, em boa parte do texto, esse movimento coincide<br />

com a errância, entre ataques e fugas, do bando de jagunços: é neste “desfile” que os<br />

lugares e personagens encontrados pelo caminho vão descrevendo o sertão, por isso<br />

também a paisagem é sempre movente, sempre outra, como o desejo de Riobaldo:<br />

“Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!...” 251<br />

Trata-se, ainda, de uma geografia onde não apenas os lugares, por fazerem parte<br />

do passado, da memória, igualmente se remexem: “Sertão é isto: o senhor empurra<br />

para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.” 252 Mas, de uma<br />

dimensão na qual a mobilidade dos sentidos do sertão, das infinitas descrições que não<br />

descrevem (tais como as definições que não definem, de Finazzi-Agrò 253 ), apontam<br />

algo, reenviando sempre a outros sentidos. Ao apresentar um espaço primordial, um<br />

não-espaço, um não-lugar, o texto nos traz de volta o horizonte do inconsciente de<br />

Freud, que guarda outra semelhança com este curioso espaço do sertão: os<br />

representantes da pulsão que compõem o Inconsciente, segundo Freud, são igualmente<br />

“isentos de contradição mútua” 254 , ligando-se e religando-se com liberdade, daí a<br />

versão e reversão do Mal em bem, do nada em tudo, e a já comentada angústia do<br />

narrador em relação a este mundo tão misturado.<br />

Entretanto, esse não-espaço se inscreve como uma falta da própria origem, que<br />

não é apenas referida a uma vida, mas à origem do país; a partir da leitura da história<br />

como fracasso e ruína, e de sua inserção nesta paisagem, o escritor inverte a tentativa da<br />

historiografia de encontrar na geografia o sentido da história (aquela que naturaliza a<br />

pobreza, explicando-a de acordo com características geográficas da região) 255 , ou até<br />

251 Idem, p.407. Para uma associação entre a paisagem da memória e as anotações de viagem do escritor,<br />

cf. capítulo 4 desta tese.<br />

252 Idem, p.302.<br />

253 Cf. p.42 desta tese.<br />

254 FREUD, S. (1988a) p.191.<br />

255 Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.77-79.


mesmo a pretensão de definir uma origem da nossa história, pois o que mais se<br />

evidencia neste trabalho de rememoração é que ele promove um deslocamento<br />

permanente desta suposta origem, reescrevendo outras histórias a partir do mapa<br />

subjetivo da memória, o que significa o mesmo que apontar que o que falta é a própria<br />

origem, na medida em que ela é sempre outra.<br />

Ao começar sua história literalmente pela morte, que não é apenas de Diadorim,<br />

mas a destruição, vinda de muitos lados, a violência, a doença, a miséria, o choque do<br />

progresso, a cidade que vem acabar com o sertão; Guimarães Rosa também ultrapassa a<br />

definição de metáfora inerente à paisagem, pois a concebe como uma metáfora<br />

perpassada pela história, pela ação do tempo, uma alegoria de um determinado<br />

momento histórico, construída através da memória deste narrador-testemunha.<br />

Raízes e resíduos do país<br />

Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína.<br />

LÉVI-STRAUSS<br />

Mas, começar a história pela morte revela uma outra afinidade com a concepção<br />

benjaminiana da história, que enxerga no processo e na escrita da história uma dimensão<br />

trágica, de catástrofe e ruína, onde a história conhecida é a história dos vencedores: “os<br />

que num momento dado dominam são os herdeiros dos que venceram antes.” 256 A<br />

imagem benjaminiana para esta vitória não poupa materialismo: “Todos os que até hoje<br />

venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os<br />

corpos dos que estão prostrados no chão.” 257 A história que se constrói a partir da<br />

morte dos vencidos é movida pelo progresso, é o que mostra a imagem do anjo da<br />

história, o Angelus Novus, inspirado no quadro de Paul Klee, que, segundo Benjamin,<br />

256 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.<br />

257 Idem, ibidem.


ao ser atingido pela tempestade chamada progresso, é impelido para o futuro, mas volta<br />

seu olhar para o passado, onde vê somente uma catástrofe e ruínas:<br />

... Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.<br />

O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o<br />

passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma<br />

catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as<br />

dispersa a nossos pés... (BENJAMIN, W., 1986e, p.226).<br />

Este olhar voltado para o passado pressupõe certa desconsideração com o tempo<br />

cronológico, mas significa algo bem mais complexo do que uma suposta ausência de<br />

referência ao contexto histórico 258 , tanto em Benjamin como no enredo rosiano. Como<br />

já se começou a demonstrar, a história para Benjamin se desenrola em camadas ou<br />

superposições de tempos, distintas do tempo sucessivo e linear: “A história é objeto de<br />

uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por<br />

aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit).” 259 A noção de um tempo-de-agora,<br />

comparável ao kairos 260 , tempo oposto a Chronos, chamado pelos gregos momento<br />

certo, momento oportuno; aqui, se refere à idéia do potencial revolucionário do passado,<br />

pois a revolução é comparada ao “salto do tigre em direção ao passado” 261 , onde cada<br />

momento guarda consigo um passado, um presente e um futuro interligados, e o salto<br />

consiste em avançar até a origem, recuperar do esquecimento um passado vencido e<br />

interromper a marcha da catástrofe e do progresso:“Porque todo minuto poderia ser<br />

uma origem” 262 .<br />

258<br />

Ver também “Le Maintenant de la Possibilité de la Connaissance”, in: BENJAMIN, W. (2003) p.451-<br />

452.<br />

259<br />

BENJAMIN, W. (1986e).<br />

260<br />

LÖWY, M. (2005) p.119.<br />

261<br />

BENJAMIN, W. (1986e) p.120.<br />

262<br />

Trata-se do conto “O Mau Humor de Wotan”, publicado em 1948, onde encontram-se vestígios<br />

autobiográficos da estadia de Rosa como cônsul-adjunto na Alemanha durante a Segunda Guerra. Aqui, a<br />

idéia da possível origem a cada instante relaciona-se com os fatos que culminaram na morte do amigo do<br />

narrador no conto, “o menos belicoso dos homens”, o alemão Hans-Helmut Heubel, amigo de Rosa em<br />

Hamburgo, enviado para a guerra sem treinamento algum. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.5. Sobre os aspectos<br />

biográficos, conferir o artigo da antropóloga e crítica Ana Luisa Martins Costa e o ensaio e documentário<br />

ainda inédito de Adriana Jacobsen. COSTA, A. L. M. “Veredas de Viator”. In: GALVÃO, W.N.;<br />

COSTA, A.L.M. (2006). JACOBSEN, A.; VILELA, S. “Outro Sertão”. Idem.


Considerando-se esta outra dimensão do tempo, oposta ao tempo cronológico, é<br />

preciso ver um pouco mais detalhadamente como se caracteriza este olhar para o<br />

passado no romance de Rosa; em outras palavras, como a história pode ser pensada na<br />

escrita rosiana? Embora enredadas na ficção, as referências históricas do GSV estão no<br />

texto: a de guerras antigas, passadas nas eras de 1879 263 ; e a menção, situada no tempo<br />

da vida jagunça, à passagem da Coluna Prestes pela região 264 que, conforme se sabe,<br />

cruzou o interior do país entre os anos de 1925 e 1927. O que leva a crer que, se a<br />

juventude do narrador é datada na década de vinte, a velhice, no presente da narrativa,<br />

pode situar-se em torno dos anos cinqüenta, coincidindo também com a época em que o<br />

texto é elaborado, levando-se em conta que o livro foi publicado em 1956.<br />

Ora, em plenos anos cinqüenta – marcados pelo projeto desenvolvimentista da<br />

era Juscelino Kubitscheck, pelo lema cinqüenta anos em cinco, que encontrou seu<br />

clímax na construção de Brasília, pelo intenso crescimento das cidades – é curioso como<br />

o olhar do artista se volta para os esquecidos da história; e quem seriam eles? Toda a<br />

sua obra é construída por personagens rurais, de um Brasil interior e arcaico, habitantes<br />

de pequenos vilarejos, fazendas, taperas isoladas no meio do mato ou ribeirinhas. São<br />

loucos, como em “Sorôco, sua mãe, sua filha” 265 , estranhos, como em “A Menina de<br />

Lá” 266 , e mais uma série de peões, mestiços, jagunços, bandidos, prostitutas; em poucas<br />

palavras, são figuras do desterro e do desamparo, como Miguilim 267 , que termina a saga<br />

de infeliz infância sendo levado pelo moço, para morar na cidade... São representantes<br />

dos que ficaram mantidos à margem da história, e que o GSV reúne num universo<br />

único, como restos, resíduos a quem o Brasil modernizado não concedeu lugar<br />

263 ROSA, J. G. (2001) p. 128.<br />

264 Idem, p.114.<br />

265 ROSA, J.G. (1988).<br />

266 Idem, ibidem.<br />

267 Idem, (2001b).


apropriado 268 ; transformados, agora, na ficção, em protagonistas principais da outra<br />

estória.<br />

Inúmeras passagens dão nota do olhar sensível do narrador diante do “estatuto<br />

de misérias e enfermidades” 269 , não apenas da vida jagunça, mas dos sertanejos tão<br />

sofridos que vão sendo encontrados pelo caminho do bando, como a fila de doentes que<br />

vinham pedir milagre: “lázaros de lepra, aleijados, por horríveis formas, feridentos, os<br />

cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:<br />

criaturas que fediam” 270 . Pobreza que atinge desde os moradores, contrastados em<br />

honestidade em relação aos jagunços: “pai de família faminta. Coisas sem<br />

continuação” 271 ; aos jagunços rivais, presos pelos companheiros de Riobaldo: “Senti<br />

pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se<br />

via que não tinham esperança nenhuma decente.” 272 Uma condição em que à<br />

destituição se alia à tristeza: “Jagunço é homem já meio desistido por si” 273 .<br />

Supor que esta paisagem é composta por referentes da história do país,<br />

entretanto, não reenvia a nenhuma idéia de memória como registro fiel dos fatos: “Pois<br />

o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua<br />

rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.” 274 O passado não é o vivido,<br />

diz Benjamin 275 , mas tampouco esta rememoração se esgota na lembrança. Pois lá, na<br />

origem, no fundo, como tento demonstrar, o que se insinua no texto de Rosa é o<br />

esquecimento, e não apenas da noite que desfaz o dia, como pondera Benjamin sobre o<br />

apagamento da lembrança, o trabalho do esquecimento, que substitui o trabalho da<br />

memória e é mencionado a partir da obra de Proust: “Ou seria melhor falar no trabalho<br />

268 STARLING, H. (1999) p.16.<br />

269 ROSA, J.G. (2001) p. 75.<br />

270 Idem, ibidem.<br />

271 Idem, p.88.<br />

272 Idem, p.150.<br />

273 Idem, p.67.<br />

274 BENJAMIN, W. (1986) p. 37.<br />

275 Idem, p.37.


do esquecimento?” 276 Mas o esquecimento como suposto ponto de origem de toda<br />

memória, como o mesmo autor leva a pensar quando situa a imagem involuntária no<br />

mundo das correspondências, numa “camada especial, a mais profunda (...) na qual os<br />

momentos da reminiscência (...) não mais isoladamente, com imagens, mas informes,<br />

não visuais, indefinidos e densos, anunciam-nos um todo” 277 .<br />

Sendo assim, é preciso destacar a forma como aparecem, no GSV, as referências<br />

à história do país; não como fatos isolados, mas como fragmentos, sempre atrelados à<br />

subjetividade de alguém que recorda: o ano de 1979 consta da lembrança de Selorico<br />

Mendes sobre a invasão de Januária e Cariranha, e a passagem da coluna Prestes é<br />

evocada através do testemunho do narrador que, a respeito do acontecimento histórico,<br />

conta o que dele pode restar: “Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,<br />

encontra balas cravadas” 278 . Aqui, o que prevalece não está na ordem de uma pretensa<br />

objetividade do fato em si, mas sim neste olhar crítico diante de um contexto específico,<br />

que surge na ficção através das recordações do narrador e de outros personagens, como<br />

resíduos, pedaços de um Brasil, dissolvidos entre lacunas e elementos da fantasia; como<br />

o narrador descreve, melhor do que ninguém, quando se afirma incapaz de narração:<br />

“retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago...” 279 .<br />

Cabe pensar de que forma estes fragmentos funcionam como índices de uma<br />

tentativa de reescrever nossa história e origem numa linguagem que, como se verá,<br />

aponta o tempo inteiro para o seu mais além, para uma ausência ou esquecimento. A<br />

visão do escritor sobre seu tempo traz o questionamento benjaminiano sobre o passado,<br />

uma reescrita que pressupõe “escovar a história a contrapelo” 280 , apontada pelo<br />

filósofo como tarefa do historiador materialista, distinta do historicista (aquele que vê<br />

276 Idem, ibidem.<br />

277 Idem, p.49.<br />

278 ROSA, J.G. (2001) p. 66.<br />

279 Idem, p.221.<br />

280 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.


na história uma cadeia linear de fatos), pois evita estabelecer uma relação de empatia<br />

com os vencedores da história, e busca, através deste passado esquecido e vencido,<br />

“despertar no passado as centelhas da esperança” 281 .<br />

Segundo o capítulo “Memória e Libertação”, de Jeanne Marie Gagnebin, a<br />

respeito da vida e obra de Benjamin: “O historiador materialista (...) pretende fazer<br />

emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu<br />

apelo por um futuro diferente” 282 . A tarefa do historiador envolve, deste modo, uma<br />

temporalidade que conjuga os três tempos, onde o passado traz uma ligação com o<br />

presente e o futuro, visto pela mesma autora como o futuro do passado, daquilo que<br />

teria podido acontecer, ou que requer retirar do esquecimento: “aquilo que teria podido<br />

fazer da nossa história uma outra história” 283 . Ao revolver a fundo a história do país,<br />

trazendo de volta nossos conflitos esquecidos entre o campo e a cidade, a lei urbana e o<br />

costume do sertão, Guimarães Rosa compartilha da visão apontada pela mesma autora<br />

como sendo comum a Benjamin, Freud e Proust (embora cada um a desenvolva a seu<br />

modo): “da mesma convicção de que o passado comporta elementos inacabados; e,<br />

além disso, que aguardam uma vida posterior, e que somos nós os encarregados de<br />

fazê-los reviver” 284 .<br />

Certamente, as imagens inequívocas do cortejo triunfal da história no romance<br />

de Rosa se encontram na marcha das cidades, do progresso, e na máquina do governo<br />

que avançam sobre o sertão: “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade<br />

acaba com o sertão. Acaba?” 285 Conflito que o escritor reformula através desta<br />

construção formal igualmente repetida no texto, na qual à afirmação segue-se a sua<br />

interrogação não respondida, e que produz como efeito um corte ou uma suspensão no<br />

281 Idem, p. 224.<br />

282<br />

GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71.<br />

283<br />

Idem, p.60.<br />

284 GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71.<br />

285 ROSA, J.G. (2001) p.183.


discurso do avanço do progresso 286 , colocando em relevo a dialética e o movimento<br />

inerente ao processo de choque entre a cidade e o campo, ao conflito armado entre a lei<br />

do governo e a lei do sertão, à guerra entre soldados e jagunços, e expondo o ponto de<br />

vista dos últimos em relação aos primeiros:<br />

Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em<br />

máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o<br />

pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonçável na<br />

capital do Estado? (ROSA, J.G., 2001, p. 319).<br />

Através deste olhar crítico do narrador, lê-se um misto de sonho e ironia em<br />

relação ao processo de modernização vigente na época, pois Riobaldo também sonha<br />

com a cidadania de uma cidade mais justa que o sertão: “eu tinha raiva surda das<br />

grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva – porque eu não era delas,<br />

produzido” 287 . São imagens de uma promessa que não chegará ao sertão, de trens que<br />

não virão e do contraste entre a falta de pontes e a cidade na qual o senhor vive: “no<br />

carro de bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe<br />

resolve. Até hoje é assim...” 288<br />

Afinal, para Riobaldo, o “progresso moderno” 289 é uma “ilusãozinha” 290 que<br />

não resolve, mas seria até “bom, se fosse verdade” 291 . Se cada época guarda um<br />

segredo, como soube dizer Benjamin 292 , o autor constrói, na ficção, a reescrita da<br />

história, revelando, pelo avesso, alguns segredos perdidos pelo discurso<br />

desenvolvimentista do período, que – diferentemente da origem em si mesma, tratada<br />

por Rosa como enigma – podem ser revelados: a violência nos embates entre o campo e<br />

286 Leyla Perrone-Moisés fala na suspensão do discurso do narrador no sentido do corte lacaniano, que<br />

aponta para a ausência de sentido, a possibilidade de criação novos sentidos, no final do conto “Lá, nas<br />

Campinas”, citando Rosa: “...Mas não acho as palavras.” Cf: PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.278.<br />

287 ROSA, J.G. (2001) p. 533.<br />

288 Idem, p. 118.<br />

289 Idem, p.140.<br />

290 Idem, ibidem.<br />

291 Idem, ibidem.<br />

292 BENJAMIN, W. (1986a) p. 40.


a cidade, entre o arcaico e o moderno, a marcha de um crescimento desigual, e a<br />

ausência de diálogo entre os personagens do interior e a máquina distante do governo.<br />

Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos<br />

O grande sertão é a forte arma. Deus é um<br />

gatilho?<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Ao se abordar a forma como a violência surge articulada à memória no GSV, as<br />

primeiras questões que sobressaem se situam dentro da recusa de Riobaldo em narrar a<br />

guerra, diversas vezes repetida ao longo de sua fala. Afinal, trata-se do recalcado, que<br />

ele não deseja rememorar, ou de algo que, comparado com outros acontecimentos de<br />

sua vida, não é digno de ser narrado? A princípio, pode-se dizer que toda a memória<br />

sobre a violência e a guerra é traumática; ou o seu oposto, a guerra tornou-se trivial, e<br />

tudo que se refere a ela não passa de “tontos movimentos” 293 ? Além disso, como<br />

considerar as lembranças de guerra, tendo em vista as elaborações já iniciadas entre<br />

memória e história, realidade e ficção, já que é em torno da violência que giram as<br />

referências mais próximas à história do país, as Lembranças do Brasil 294 , como quer o<br />

título do livro de Heloísa Starling?<br />

Como sempre, o próprio narrador fornece algumas trilhas de compreensão, no<br />

momento em que confessa, durante uma inexplicada viagem de Diadorim, sua angústia<br />

diante da ausência do outro, chamando-a de “mordido e remordido sofrimento” 295 , no<br />

qual o “remordido” dá a dimensão de algo que – mesmo no presente da narrativa – não<br />

pode ser esquecido facilmente, algo relacionado ao trauma e à melancolia. Contraposto<br />

293 ROSA, J.G. (2001) p. 245.<br />

294 STARLING, H. (1999).<br />

295 ROSA, J.G. (2001) p.245.


àquele, é o “sofrimento legal padecido” 296 , que Riobaldo atribui, na mesma passagem,<br />

às guerras, diminuídas em relevância quando comparadas ao sentimento por Diadorim.<br />

Leyla Perrone-Moisés parece tratar da mesma diferença, quando associa outra<br />

oposição riobaldiana entre a “saudade da idéia e saudade do coração” 297 ; separando, de<br />

um lado, as lembranças conscientes, a saudade das alegrias e do companheirismo entre<br />

os jagunços, e do outro, a melancolia sentida em relação a Diadorim:<br />

Não resta dúvida de que a saudade maior de Riobaldo, como a de<br />

Drijimiro, é ‘saudade de coração’, não aquela que se cultiva como<br />

lembrança, mas aquela que dói sem remédio. (PERRONE-MOISÉS,<br />

L., 2000, p. 266).<br />

A autora se vale aqui da distinção feita por Lacan entre a memória consciente, e<br />

o inconsciente como fundamento do processo de rememoração, comparado ao chamar o<br />

sujeito de volta para casa, no inconsciente:<br />

... A rememoração não é a reminiscência platônica, não é o retorno de<br />

uma forma, de uma impressão, de um eidos de beleza e de bem que<br />

nos vem do além, dum verdadeiro supremo. É algo que nos vem das<br />

necessidades da estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos<br />

baixos encontros e de toda turba falante que nos precede, da estrutura<br />

do significante... (LACAN, J., 2008b, p.53).<br />

Diferença que, no romance, lança luzes sobre o que pode permanecer na ordem<br />

da recordação traumática 298 , e o registro das lembranças que, posteriormente, não são<br />

consideradas importantes – seja porque destituídas de valor subjetivo para o narrador:<br />

“isso de guerra é mesmice, mesmagem” 299 ; ou porque, mesmo tendo sido marcadas sob<br />

o signo do trauma, puderam ter o esquecimento (possível) como resultante de um<br />

trabalho de elaboração – lembre-se da fala de Riobaldo a este interlocutor silencioso<br />

como possível metáfora de uma situação de análise. Tal esquecimento significaria<br />

296 Idem, ibidem.<br />

297 Idem, p.43.<br />

298 Pois, como ainda veremos, este lá refere-se a um (des)encontro com o real do trauma, e o retorno diz<br />

respeito ao inconsciente como repetição.<br />

299 ROSA, J.G. (2001) p.319.


também o que permite que se passe de uma recordação a outra, que se produza um<br />

movimento ou um deslizamento de um sentido a outro. Ou, na formulação de Weinrich<br />

inspirada em Freud, trata-se de diferenciar o esquecimento não-apaziguado, vinculado à<br />

resistência do recalque, do esquecimento apaziguado 300 , que passou por um trabalho de<br />

rememoração, onde a arte da memória se aproxima da arte de poder esquecer. Por ora,<br />

demarcar esta diferença é o que basta para deixar, por um momento, a melancolia de<br />

lado, e voltar à violência, já que, certamente, ambas ainda retornarão como subtítulos na<br />

agenda da memória deste Grande Sertão.<br />

A despeito da crítica manifestada pelo narrador repetidamente ao descrever os<br />

detalhes das guerras, equiparadas por ele à dimensão objetiva da vida: “Vida e guerra, é<br />

o que é: esses tontos movimentos” 301 ; as lembranças de guerra efetivamente compõem<br />

seu relato: “o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o<br />

tampante, e o que for – de trinta combates. Tenho lembrança” 302 . E ele não poupa nem<br />

a si mesmo quando se trata de admitir os próprios crimes, incluindo os dois estupros que<br />

cometeu 303 ; desaprovando, contudo, a violência já na época, como demonstra ao<br />

compartilhar o sonho de sertão pacificado de seu amigo Zé Bebelo: “A gente devia<br />

mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio,<br />

saquear na sebaça.” 304<br />

Sobre este ponto, é preciso frisar que, retomando a questão do olhar do escritor<br />

sobre estes personagens, ao inserir na história o ponto de vista dos jagunços, o texto não<br />

incorre numa visão ingênua; tampouco caracterizar o olhar do escritor como sensível<br />

significa propor que ele os transforme em vítimas da violência:<br />

300 WEINRICH, H. (2001) p.191.<br />

301 Idem, p. 245.<br />

302 Idem, ibidem.<br />

303 Idem, p. 189.<br />

304 Idem, p.146.


Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda<br />

abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, (...).<br />

Comprou-se para ele, então, uma boa perna de pau. Mas, assim, talvez<br />

por se ter sacolejado um pouco do juízo, ele nunca mais quer sair de<br />

casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ái,<br />

quem tem dois tem um, que tem um não tem nenhum...” Todo o<br />

mundo ri. E isso é remorso? (ROSA, J.G., 2001, p.233).<br />

No entanto, a discussão sobre o remorso situa-se numa passagem enigmática,<br />

onde Tatarana, nessa que parece ser sua primeira batalha, entra numa espécie de transe e<br />

atira automaticamente: “Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele<br />

atirava. Eu atirava.” 305 Tendo em frente o tempo todo as costas do amigo: “Aí, eu<br />

estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava<br />

ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue!” 306 Os textos seguintes: “Narrei<br />

miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço<br />

Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.” 307 E:<br />

“porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era” 308 , deixam “no ar”<br />

se o seu questionamento envolve, direta ou indiretamente, a morte do companheiro.<br />

Ainda em relação à decisão colocada entre narrar a guerra ou narrar as coisas<br />

importantes; ela parece insinuar, além de uma crítica ao que merece ser contado, uma<br />

diferença, que mais uma vez desvincula a memória da noção de realidade factual, pois o<br />

que fica na memória como trauma pode estar, ou não, relacionado à guerra. É inegável,<br />

contudo, que a violência se articula com a problemática do Mal e, sobretudo, se inscreve<br />

também como trauma, relacionado a algo que se produz como um excesso 309 , que<br />

sempre escapa à representação e à lembrança: “porque o extenso de todo sofrido se<br />

305 Idem, p.230.<br />

306 Idem, ibidem.<br />

307 Idem, p.232.<br />

308 Idem, p.234.<br />

309 Em “Além do Princípio do Prazer”, encontra-se tanto a idéia do excesso como a de uma fixação do<br />

sujeito no trauma, na proposição retomada por Freud, de que: “os histéricos sofrem principalmente de<br />

reminiscências.” Cf. FREUD, S. (1976) p.24.


escapole da memória” 310 , levando o ex-jagunço a duvidar da possibilidade de<br />

esquecimento do que é relacionado ao Mal:<br />

... Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a<br />

alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido<br />

e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas medonhas demais, tem.<br />

Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor<br />

e raiva de ódio... (ROSA, J.G., 2001, p. 37).<br />

A mesma irredutibilidade da dimensão traumática se coloca na primeira batalha<br />

em que Riobaldo, tendo seguido Diadorim ao lado dos hermógenes, se vê contrariado<br />

pelo não só pelo dever de matar: “Eu ia matar gente humana” 311 , como por ter como<br />

alvo o amigo Zé Bebelo: “Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu<br />

nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo...” 312<br />

Oscilante entre o autoquestionamento sobre a sua responsabilidade: “Quantos não iam<br />

morrer por minha mão?” 313 E a ausência de culpa: “Eu não tinha nada com aquilo,<br />

próprio, eu não estava só obedecendo?” 314 O improvável esquecimento se inscreve na<br />

frase repetida – muitas vezes – durante a mesma passagem: “Ah, digo ao senhor: dessa<br />

noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim.<br />

Matar, matar, quê que importava? Dessa noite esquecer não posso” 315 .<br />

Mundo misturado, mundo à revelia<br />

[o projeto de Brasília] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou<br />

dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio<br />

sinal da cruz.<br />

LÚCIO COSTA<br />

Apresentados, deste modo, alguns dos eixos de reflexão que envolvem a<br />

temática da violência, que atravessa o texto por inteiro, podemos nos acercar melhor do<br />

310 ROSA, J.G. (2001) p. 418.<br />

311 Idem, p.223.<br />

312 Idem, ibidem.<br />

313 Idem, p.224.<br />

314 Idem, ibidem.<br />

315 Idem, p.225.


lugar que ocupa, entre o traumático e o banal, a ficção e a história, e ainda entre o que<br />

deve ser lembrado ou esquecido. O crítico José Miguel Wisnik aponta, na raiz da<br />

violência que perpassa a obra de Rosa, uma especificidade da cultura brasileira<br />

circunscrita em torno de uma dupla ou (dobra) da ausência da lei, e que se refere, não<br />

somente ao acaso e à insuficiência na origem de toda lei; mas à ausência de uma lei que<br />

“não faz sentido na formação ancestral brasileira” 316 e que merece ser pensada,<br />

portanto, em sua singularidade.<br />

No rastro das formulações das idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz 317 , e das<br />

contradições abordadas em Raízes do Brasil 318 , haveria algo em nossa história que se<br />

repete e permanece como um enigma, “entre a violência e a retórica” 319 , onde a<br />

tentativa de instauração de uma lei comum, capaz de impor limites à força bruta,<br />

convive lado a lado com a lei do mais forte do sertão: “Sertão. O senhor sabe: sertão é<br />

onde manda quem é forte, com as astúcias” 320 .<br />

O ponto de partida de Wisnik é o conto “Famigerado”, de Primeiras Estórias 321 ,<br />

no qual a violência – diferentemente do GSV – comparece como ameaça não<br />

concretizada, mas onde novamente um jagunço, do sertão, busca junto ao letrado,<br />

homem da cidade, um sentido que lhe esclareça uma palavra ou uma experiência. O<br />

ensaio se concentra na questão desta passagem do sertão à cidade, da ausência de lei do<br />

sertão à lei que falta da cidade brasileira, através dos (des)entendimentos em torno do<br />

sentido da palavra famigerado, que constitui o enredo do conto.<br />

Na pergunta desafiante do jagunço Damázio, que vai da Serra do São Ão até a<br />

cidade, para interrogar o médico, o narrador da história, sobre o sentido da palavra<br />

316 WISNIK, J.G. (2002) p.184.<br />

317 SCHWARZ, R. (1977).<br />

318 HOLANDA, S. B. (1995).<br />

319 WISNIK, J.G. (2002) p.184.<br />

320 ROSA, J.G. (2001) p. 35.<br />

321 ROSA, J.G. (1988).


famigerado, dirigida ao jagunço por um insensato moço do governo, se assinalam, com<br />

humor, as “armas desiguais” 322 de um e outro: “um homem cuja linguagem é a da faca<br />

e a da bala está suspenso pelo fio sutilíssimo de uma palavra, podendo no entanto, e a<br />

qualquer momento, cair matando” 323 . Estabelecida a tríade entre o jagunço, o homem<br />

culto e o moço do governo, o que ali se delineia é o lugar intermediário do intelectual e<br />

das idéias em nossa história, entre o poder da bala e o poder político, lugar que poderia<br />

ser de mediação de um acordo comum, que fornecesse o solo simbólico de uma lei, por<br />

sua vez, capaz de assegurar limites à ausência de limites.<br />

O duelo é lido à luz do primeiro e do último conto do livro, “As Margens da<br />

Alegria” 324 e “Os Cimos” 325 , nos quais, excepcionalmente, o cenário rural privilegiado<br />

por Rosa se inverte, e o personagem principal, o Menino, viaja para o: “lugar onde se<br />

construía a grande cidade” 326 , numa referência à construção de Brasília, inaugurada em<br />

1960, dois anos antes da publicação dos contos. Desta forma, o diálogo se inscreve num<br />

cenário situado no centro do conflito, com todas as contradições que envolveram o<br />

projeto de construção, símbolo de um programa modernizador que leva a cidade ao<br />

centro do interior do país e faz dela a sede do poder político.<br />

A escolha do campo como cenário privilegiado dos escritos de Rosa também<br />

revela um local onde historicamente, no Brasil, desde Canudos, desenvolveram-se<br />

conflitos violentos, envolvendo populações numerosas, o que contraria nossa auto-<br />

imagem de “um caráter pacífico e ordeiro” 327 . Assim, a temática daqueles contos<br />

persiste no GSV e, para Wisnik, consiste numa melancolia relacionada a uma passagem<br />

322<br />

WISNIK, J.M. (2002) p.177.<br />

323<br />

Idem, p.181.<br />

324<br />

ROSA, J.G. (1988).<br />

325<br />

Idem.<br />

326<br />

Idem, p. 7.<br />

327<br />

GRYNZPAN, M. (2002) p. 154.


traumática do arcaico ao moderno em nossa história, a algo de não-simbolizado aí, que<br />

daria origem a um mundo misturado:<br />

Mas o que se decanta nesses contos é mais um trabalho de luto, nem<br />

apologético nem saudosista, onde a saudade é mais funda e inclui o<br />

futuro – o desígnio irresolvido que persiste na mudança. A questão<br />

aqui não é a passagem sucessiva do arcaico ao moderno, mas a<br />

persistência de um no outro... (WISNIK, J.M., 2001, p.179).<br />

Melancolia – é preciso dizer – assim como no GSV, “à qual não se<br />

entregam” 328 os personagens, e que não exclui a experiência da alegria, embora<br />

apareça à margem, ou intermitente, como a luz do vagalume no final do conto, como<br />

afirma o crítico. Em “Famigerado”, Rosa trata com humor a ambigüidade de sentido da<br />

palavra, presente na origem de toda significação, tal como formulada por Freud 329 .<br />

Ambigüidade que, contudo, associada a outras ambigüidades do contexto histórico<br />

brasileiro, permanece como duplicidade não resolvida. Pois a palavra, desprendida da<br />

experiência desde nossas origens, desliza, frágil, ao longo de uma cadeia de<br />

associações: “fasmisgerado... faz-me gerado... falmisgerado... familhas-gerado...” 330<br />

A solução encontrada pelo homem culto é ignorar o contexto em que o termo foi<br />

utilizado, e apelar para um sentido primeiramente neutro:<br />

“– Famigerado é inóxio, é ‘célebre’, ‘notório’, ‘notável’...<br />

– ‘Vosmecê mal não veja em minha grosseria no não entender. Mais<br />

me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome<br />

de ofensa?’<br />

– Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros<br />

usos... (ROSA, J.G. 1988, p.16).<br />

328 WISNIK, J.M. (1997) p.179. Cf. Capítulo 4 desta tese, sobre a felicidade do texto.<br />

329 Freud investiga a relação do Inconsciente com a linguagem, através do princípio da não-contradição e<br />

do estudo de palavras ambíguas da língua egípcia, e analisa como o uso de uma palavra pode derivar no<br />

sentido oposto ao original, o que Rosa percebe ocorrer com famigerado, em português. Mais tarde, Freud<br />

irá propor o mesmo em relação ao termo Unheimlich (o Estranho). Cf. FREUD, S. (1970) e (1988b).<br />

330 ROSA, J.G. (1988) p. 15.


Ao passar, porém, da neutralidade ao elogio, “–Famigerado? Bem. É:<br />

‘importante’, que merece louvor, respeito...” 331 , o homem culto reitera esse (literal)<br />

estado de coisas, no qual a palavra passa a valer como ornamento: destituída de sentido<br />

prático 332 , a inteligência se torna “decorativa” 333 , e a eloqüência diz o que o mais forte<br />

deseja ouvir... Saída na forma de uma formação de compromisso, encontrada pela<br />

inteligência em nosso passado histórico que, a fim de conciliar duas exigências opostas<br />

(aqui, sair com vida do episódio e esclarecer o homem simples, dizer a verdade),<br />

mantém no recalque, no esquecimento, a violência implícita na situação, numa esepécie<br />

de paródia à história de nossas idéias fora do lugar 334 .<br />

Nos contos que evocam Brasília, esta não-mediação simbólica, da linguagem, é<br />

percebida pelo olhar do Menino, entre o mundo da natureza e a chegada da civilização:<br />

entre a “incessante alegria” 335 , o transbordamento da natureza, na “paisagem de muita<br />

largura” 336 concentrada na visão do peru; e a descoberta do Mal encarnado “no mundo<br />

maquinal, no hostil espaço” 337 do campo de obras do aeroporto: “entre o<br />

contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.” 338<br />

331 Idem, p. 16.<br />

332 Trata-se da importação das idéias européias iluministas aplicadas a uma realidade incongruente com<br />

sua origem, como a idéia de liberdade à sociedade escravista e rural da época. Cf. SCHWARZ, R. (1977).<br />

333 HOLANDA, S.B. (1995) p.84.<br />

334 Implícita nesta formulação está também o conceito elaborado por Lacan de Foraclusão do Nome-do-<br />

Pai, da instância da lei, própria da estrutura psicótica, e que (simplificadamente) faz com que a palavra, ao<br />

não se inscrever simbolicamente, retorne do real na forma de delírios e alucinações, etc., levando, para a<br />

psicose, a que a palavra seja tratada como coisa, o que se verifica, por exemplo, na certeza irredutível,<br />

opaca, das construções delirantes. Cf. LACAN, J. (2008). Algo próximo do que estes estudos<br />

sociológicos apontam: na formação da cultura brasileira, o valor da palavra é deslocado para o ornamento,<br />

o enfeite; o que o pensamento hesitante de Damázio, parece indicar, como mostra Wisnik, ao final do<br />

conto, cogitando numa extradição da autoridade, encarnada no moço do Governo: “Sei lá, às vezes o<br />

melhor mesmo, pra esse moço do Governo era ir-se embora, sei não...” Cf. ROSA, J.G. (1988) p.17.<br />

E, ainda, a respeito da formação de compromisso efetuada pelas idéias em nossa cultura, Sérgio<br />

Buarque de Holanda mostra como a cordialidade irá se desenvolver como traço de caráter nacional desde<br />

os engenhos de açúcar... Tendo, na origem, o caldo onde se misturaram a herança ibérica e africana,<br />

diante da escravidão. Nesta ótica, a cordialidade admite a violência para não sucumbir a ela, ocultando-a.<br />

Cf. HOLANDA, S.B. (1995) p.61.<br />

335 ROSA, J.G. (1988) p.9.<br />

336 Idem, ibidem.<br />

337 Idem, p.10.<br />

338 Idem, ibidem.


Haveria, portanto, na origem da formação social brasileira, em nossa história,<br />

uma “falha simbólica” ou ausência de um corte simbólico que, através da linguagem,<br />

operasse uma distinção na experiência, e que, ao não se efetivar, retorna como violência<br />

em ato, não simbolizada, o que nos levaria a confundir a lei e o crime, a polícia e o<br />

bandido, o público e o privado, que passam a ser vivenciados como o mesmo, fazendo<br />

com que, ainda hoje, a lei da cidade se aproxime, mais do que nunca, da lei da selva...<br />

Em “As margens da Alegria” 339 , a violência desta passagem, não simbolizada no<br />

coletivo, irá ser vivida subjetivamente pelo Menino (como pontua Wisnik), como “o<br />

inaudito choque” 340 , um trauma, na medida em que comporta algo da ordem de um<br />

excesso, em que o fator surpresa é preponderante e que envolve uma ruptura 341 , uma<br />

divisão que é aqui relacionada à experiência do corte da árvore:<br />

...Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma<br />

lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver?<br />

Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da<br />

área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na<br />

boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore,<br />

de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre:<br />

ruh...sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela.<br />

Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito<br />

choque – o pulso da pancada. O Menino fez ascas. Olhou o céu –<br />

atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. (ROSA, J.G.,<br />

1988, p.10-11)<br />

No GSV, a ausência da lei é ressentida por Riobaldo como algo que, passando<br />

por uma autoridade política, poderia demarcar uma divisão, um limite capaz de<br />

assegurar que o demo, signo da mistura do mundo, não existe:<br />

...Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios,<br />

políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção –<br />

proclamar por uma vez, artes assembléias. Que não tem diabo<br />

nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! (...) Por que o governo<br />

não cuida?! (ROSA, J.G., 2001, p. 31).<br />

339 Idem, ibidem.<br />

340 Idem, p.11.<br />

341 A noção de trauma envolve outros aspectos, principalmente a partir de Lacan, mas, por ora, estes são<br />

os aspectos necessários a destacar. Cf. FREUD, S. (1976) p.47.


A lei do mais forte do sertão aparece resumida na acusação de Ricardão durante<br />

o julgamento de Zé Bebelo: “Lei de jagunço é o momento” 342 ,“é a misericórdia de<br />

uma boa bala” 343 . O “costume velho de lei” 344 , ditado pelo coronelismo, fruto de um<br />

conjunto de alianças políticas entre os grandes fazendeiros e os chefes de bandos,<br />

consiste na lição de Selorico Mendes ao jovem afilhado:<br />

–“Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo<br />

política e potentes chefias (...) Mas, adiante, por aí arriba, ainda<br />

fazendeiro graúdo se reina mandador – todos donos de agregados<br />

valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada!...”<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 127-128).<br />

O que o fazendeiro ensina é que, neste mundo à revelia, onde a norma já nasce<br />

invertida, os jagunços são “ordeiros” 345 , responsáveis pela manutenção de um certo<br />

equilíbrio neste intrincado sistema, movendo-se entre mandados e mandantes, fazendo a<br />

lei que não há, ajudando a prender e dando julgamento segundo uma autoridade<br />

essencialmente pessoal. Por exemplo, o caso dos irmãos que se unem para matar o pai,<br />

que, antes, havia mandado um matar o outro. Presos pelos jagunços, os dois têm o<br />

perdão como veredicto do então chefe Zé Bebelo, com a condição de terem a boiada<br />

desapropriada pelos jagunços. 346<br />

As mesmas contradições se mostram no projeto de Zé Bebelo de acabar com a<br />

jagunçagem: “Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado<br />

fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a<br />

saúde de todos, preenchendo a pobreza.” 347 A ironia de pretender a paz através da<br />

342 ROSA, J.G. Op. Cit., p.284.<br />

343 Idem, ibidem.<br />

344 Idem, p.276.<br />

345 Idem, p.128.<br />

346 Idem, p.92. Há, nem tanto neste julgamento menor, mas sim no de Zé Bebelo – onde se esboça um<br />

fórum coletivo, no qual vários chefes dão acusação, e o réu é ouvido antes da sentença – toda uma<br />

discussão em torno da lei do sertão, a lei da cidade e do governo, e a justiça; que aponta para a construção<br />

de uma lei realmente intermediária entre os envolvidos, que escapa ao objetivo deste trabalho, mas que<br />

não deixo de ressaltar, a fim de apontar possíveis linhas posteriores de pesquisa.<br />

347 Idem, p.146.


guerra, do extermínio dos jagunços com o apoio do governo – à semelhança da Guerra<br />

de Canudos – se nota no grito de Bebelo após cada vitória num combate: “Viva a lei!<br />

Viva a lei...!” 348<br />

Ao conceber formalmente o romance, projetando o desenho deste sertão como<br />

uma conversa – onde o jagunço fala e o senhor escuta – Guimarães Rosa traz de volta<br />

não apenas o diálogo que faltou em Canudos 349 , mas o simbólico como mediação<br />

ausente na origem de nossa cultura, numa imagem alegórica que coloca estes opostos<br />

em movimento, em interlocução:<br />

Na conversa entre o narrador sertanejo, o velho fazendeiro e exjagunço<br />

Riobaldo e seu visitante, um jovem doutor da cidade, são<br />

tematizados as diferenças, os conflitos e os choques culturais, mas<br />

também as interações, os diálogos e o trabalho de mediação. (BOLLE,<br />

W., 2004, p 39-40).<br />

Neste diálogo, é interessante observar que o termo doutor (ou Seu), comumente<br />

utilizado no Brasil pelas populações menos instruídas como forma de tratamento a uma<br />

pessoa culta, numa situação formal, não aparece no diálogo com o visitante. Além disso,<br />

o tratamento senhor, empregado do início ao fim do romance, não seria usual em nossa<br />

língua num diálogo tão extenso. Na verdade, a forma de tratamento senhor é<br />

praticamente restrita, no país, a situações formais, utilizada por populações com nível<br />

considerável de instrução.<br />

Sob este ângulo, além da dialética entre o jagunço e o letrado, de Walnice<br />

Nogueira Galvão 350 , a partir da leitura de Raízes do Brasil, e do “Famigerado” de<br />

Wisnik – que ao final aponta justamente para a escravidão como a nossa violência mais<br />

348 Idem, p.93.<br />

349 “Só faltou uma conversa.” É com a frase do morador João de Régis sobre a falta de diálogo entre as<br />

autoridades e a população do Arraial de Canudos, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897 – que culminou<br />

no massacre dos sertanejos e na destruição das 5.200 casas por parte do exército brasileiro, após três<br />

expedições derrotadas – que Willi Bolle inicia o seu estudo sobre o Grande Sertão. Cf. BOLLE, W.<br />

(2004) p.17.<br />

350 GALVÃO, W. N. Op. Cit.


íntima e recalcada, nosso passado esquecido – este senhor também pode ser pensado<br />

como designando, em contraste com o jagunço, escravo, o ancestral sinhô, o senhor de<br />

engenho e posses, patriarca desta lavoura arcaica, na dupla conotação do termo, tanto<br />

mítica como rudimentar 351 . Veja-se a forma como, lá pelas tantas, Riobaldo assume o<br />

lugar dos catrumanos, prováveis descendentes de ex-escravos escondidos pelo sertão, e<br />

se dirige ao senhor, como se verá adiante, na estranha língua falada por eles: “Tudo<br />

isto, para o senhor, meussenhor, não faz razão, nem adianta.” 352<br />

Ao revolver desta maneira o fundo de nossa constituição como país, em nossas<br />

miragens das origens, o texto desloca tanto as fantasias ligadas a concepções<br />

idealizadas sobre a origem e a natureza, como as ilusões de Modernidade atreladas à<br />

idéia de um país do futuro. Neste sentido, é que se pode afirmar que o GSV promove<br />

uma lembrança dos “sonhos coletivos” 353 do país, através destes resíduos da história.<br />

Mas, também, inclui o despertar, como algo que torna possível “recordar aquilo que é<br />

mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance” 354 rearticulando o passado em sua<br />

relação com o presente e o futuro.<br />

Portanto, se, por um lado, a crítica atual a uma cultura da memória nos leva a<br />

pensar no engodo de uma super-memória – tal como antecipa Funes, o memorioso 355 ,<br />

personagem de Jorge Luis Borges – o texto crítico de Rosa se faz presente na discussão<br />

em torno da memória coletiva no Brasil (onde a ruína veio antes da construção) e na<br />

América Latina, onde uma política do esquecimento das ditaduras ainda se exerce num<br />

jogo de forças distinto do contexto globalizado, trazendo a necessidade de um discurso<br />

351<br />

Sobre os métodos rústicos utilizados na lavoura brasileira desde a colonização, cf. HOLANDA, S. B.<br />

(1994) p.49. E a respeito da dialética senhor-escravo no GSV à luz de Casa-Grande & Senzala, cf.<br />

BOLLE, W. (2004) p.281-306.<br />

352<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />

353<br />

BOLLE, W. (1994-1995) p.92.<br />

354<br />

BENJAMIN, W. (2007) p. 434. Ainda no texto das “Passagens”, Benjamin propõe o despertar como<br />

um processo: “que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações”, associando-o à<br />

rememoração. Cf. BENJAMIN, W. (2007) p.433.<br />

355<br />

Cf. BORGES, J.L. (2007).


próprio, contrário ao apagamento dos rastros, ou o retirar do esquecimento, ainda em<br />

primeiro plano. Esta associação entre o esquecimento produzido pelo recalque e a<br />

memória histórica se encontra já no próprio Freud:<br />

...É universalmente reconhecido que, no tocante à origem das<br />

tradições e da história legendária de um povo, é preciso levar em<br />

conta esse tipo de motivo, cuja meta é apagar da memória tudo o que<br />

talvez seja penoso para o sentimento nacional. (FREUD, S., 1987b,<br />

p.137).<br />

Sob este viés, o texto de Rosa, situado no entrecruzamento entre o mundo<br />

misturado, o mundo à revelia e ainda o imundo de loucura dos desmandos percebidos<br />

por Medeiro Vaz 356 , se insere na atualidade ao despertar determinadas verdades<br />

adormecidas, por banais que nos pareçam, como: “quem controla o passado, controla o<br />

futuro” 357 . E outras, na verdade nem um pouco fáceis, mas que nos parecem igualmente<br />

íntimas – como a idéia de Marx de que a história se repete: “a primeira vez como<br />

tragédia (na violência da ausência de lei do sertão), e a segunda como farsa” 358 (na lei<br />

da selva, hoje, nas cidades, onde caberia perguntar, se as aparentes antinomias entre a<br />

lei do governo e a lei da bala, por exemplo, não se estabelecem mais do que nunca,<br />

como inseparáveis...).<br />

356 ROSA, J.G. (2001) p. 60.<br />

357 Frase de Orwell em 1984, constante como epígrafe do livro O que Resta da Ditadura, de Edson Teles<br />

e Vladimir Saflate. Cf. TELES, E.; SAFATLE, V. (2010).<br />

358 MARX, K. (s/d).


Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha 359<br />

E passados muitos e muitos anos, uma vez consumada a fuzilaria do tempo,<br />

ainda assim de alguma forma eu seria um rosto sobrevivente...<br />

CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO.<br />

Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA.<br />

Diferentemente da forma o senhor sabe, introdutória de boa parte da memória de<br />

origem coletiva que visa transmitir ao visitante – o que já contém certa ironia, pois é o<br />

jagunço que ensina o senhor sobre sua experiência no sertão: “O senhor sabe? Já<br />

tenteou sofrido o ar que é saudade?” 360 – quando se trata de dar testemunho através da<br />

recordação do que restou do sertão 361 , a frase que Riobaldo repete inúmeras vezes é o<br />

senhor vá: “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá: Alguma coisa ainda encontra.” 362<br />

Neste ponto, já se observam algumas características que nos permitem falar em<br />

testemunho, embora ele se diferencie do que convencionou-se a chamar literatura de<br />

testemunho, surgida das narrativas dos sobreviventes sobre as catástrofes do século XX,<br />

sobretudo a partir de Auschwitz 363 . Pois, aqui, será considerado o testemunho do<br />

359<br />

O termo, sugerido por Susana Kampff Lages a partir do texto apresentado na qualificação desta tese,<br />

em agosto de 2009, é conceituado originalmente pelo crítico e teórico norte-americano Norman Friedman<br />

(1955) em “O Ponto de Vista da Ficção”, como uma categoria de narrador, levando-se em conta quem<br />

narra, como narra, o lugar do narrador, a distância em relação ao texto e ao leitor. Ali, o narradortestemunha<br />

(I as witness): “é um personagem em seu próprio direito dentro da história, mais ou menos<br />

envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na<br />

primeira pessoa (...). Podemos notar aqui que as cenas são apresentadas de modo direto, como a<br />

testemunha os vê.” Isto quer dizer que o narrador insere o leitor diretamente dentro da cena. Cf.<br />

FRIEDMAN, N. (2002) p. 175-176. Note-se, contudo, que, como sempre, o narrador rosiano não se<br />

encaixa muito bem numa única categoria, sobrepondo outras tipologias do próprio Friedman, como a de<br />

narrador-protagonista. Em segundo lugar, esta categoria literária de testemunha não envolve o caráter do<br />

testemunho como intrinsecamente relacionado às catástrofes históricas, que vem a articulá-lo à chamada<br />

literatura de testemunho, e constitui exatamente o centro da presente abordagem de Riobaldo como<br />

narrador-testemunha.<br />

360<br />

ROSA, J.G. Op. Cit., p. 43.<br />

361<br />

Neste sentido, Márcio Seligmann-Silva concebe o testemunho como uma modalidade de memória. Cf.<br />

SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.73.<br />

362<br />

ROSA, J.G. Op. Cit., p. 47.<br />

363<br />

Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2003a) p.388.


narrador, ou o narrador como testemunha, tratando-se, portanto, também, de uma<br />

construção fictícia. 364<br />

Como já se começou a delinear, o narrador Riobaldo possui traços pertinentes<br />

aos dois termos em latim para designar o testemunho: testis e superstes 365 . De acordo<br />

com o termo superstes, aquele que sobreviveu a uma catástrofe, o narrador é testemunha<br />

como ex-jagunço, sobrevivente da história do progresso que marcha sobre o sertão, do<br />

sertão em extinção, em ruínas. Sobretudo se pensamos na matança dos jagunços como<br />

metáfora do extermínio em Canudos, sugerida no momento mesmo em que o bando é<br />

pego pelos soldados do governo: “Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o<br />

senhor.” 366 Neste sentido, o testemunho traz uma lacuna, como diz Agamben 367 , ou<br />

“uma tentativa de apresentar uma experiência que resiste a essa apresentação” 368 , que<br />

se sobressái, por exemplo, nos inúmeros questionamentos de Riobaldo sobre a<br />

possibilidade de narração, como na tentativa de contar sobre a travessia do Liso do<br />

Sussuarão: “Como vou achar ordem para dizer ao senhor do martírio...?” 369<br />

Através do imperativo o senhor vá – incitação para conferir diretamente o que o<br />

a fala não pode comunicar – se mostra a referência à precariedade da representação da<br />

experiência pela linguagem, a algo que sempre resta, e que articula o testemunho à<br />

noção de trauma e de real da psicanálise 370 . Mas é com a morte de Diadorim, “a<br />

364<br />

O objetivo de traçar associações entre o testemunho de Riobaldo e elementos da discussão atual sobre<br />

o tema seria mais o de apontar linhas de pesquisa futuras do que aprofundar uma teoria em torno de uma<br />

questão tão complexa que, por si, já configuraria tema único para uma tese. Abordagens da noção de<br />

testemunho na obra de Rosa vêm sendo realizadas recentemente pela crítica, aparecendo nos seguintes<br />

artigos: SELIGMANN-SILVA (2009); CARDOSO, M. R. (2008).<br />

365<br />

SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />

366<br />

ROSA, J.G. Op. Cit., p. 317.<br />

367<br />

AGAMBEN, G. (2008) p.42.<br />

368<br />

SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />

369<br />

ROSA, J.G., (2001) p. 66.<br />

370<br />

A noção de catástrofe é marcada em Benjamin pela noção de trauma freudiano. Cf. BENJAMIN, W.<br />

(1989). Ambas situam-se na ordem do que não pode ser lembrado nem totalmente esquecido, mas<br />

permanece como um excesso, retornando como sintoma; e desde as teses benjaminianas sobre a história,<br />

há também uma outra leitura do excesso na catástrofe, que se refere à perpetuação da barbárie, do<br />

“inimigo que não tem cessado de vencer”. Cf. BENJAMIN, W. (1986e) p.225.


selvagem desgraça” 371 que se encontra mais claramente a dimensão do testemunho<br />

como tentativa de elaboração do trauma, onde a memória encontra o esquecimento,<br />

visto que a fala de Riobaldo, sempre endereçada a um outro, este senhor que o escuta,<br />

reproduz uma situação de análise, na qual o dispositivo da enunciação “é a<br />

oportunidade de construção de uma narrativa” 372 , sendo o texto comparável “a uma<br />

vereda por onde o mal pode fluir” 373 , onde o lembrar busca paradoxalmente o<br />

esquecimento: ao mesmo tempo reúne e apresenta a impossibilidade de reunir os<br />

pedaços. Isto porque: “Só no branco do esquecimento a imagem pode ser deitada” 374 ,<br />

e não apenas no sentido do esquecimento necessário a uma tentativa de reconstrução da<br />

sua história, mas inversamente, como ainda veremos, porque a narrativa testemunhal de<br />

Riobaldo indica o esquecimento, o silêncio e o vazio como dimensões essenciais do<br />

próprio rememorar, da palavra e da significação 375 .<br />

Em latim, para o testemunho há também o termo testis, que se refere à<br />

testemunha como terceiro, aquele que pode restabelecer a verdade objetiva ou jurídica,<br />

que, no romance, se mostra em fatos que Riobaldo menciona, como o de uma forca<br />

construída para matarem os prisioneiros, por falta de cadeia na região, da qual o<br />

narrador assegura: “eu vi” 376 . Porém, como pontua Seligmann-Silva, no relato de<br />

Riobaldo, as duas vertentes do testemunho mostram-se indissociadas: as coisas que vi<br />

371<br />

ROSA, J.G. Op. Cit., p.173.<br />

372<br />

SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.196.<br />

373<br />

Idem, ibidem.<br />

374<br />

Idem, p.137.<br />

375<br />

Cf. caps. 3 e 4 desta tese. Ainda sobre a existência de uma lacuna ou vazio próprio do testemunho,<br />

Agamben baseia-se no estruturalismo do lingüista Benveniste para explicá-lo do ponto de vista da perda<br />

ou dessubjetivação inerente a todo ato de fala. Resumidamente, o ato de fala comportaria ao mesmo<br />

tempo uma apropriação e uma desapropriação ou perda do sujeito na língua (onde o testemunho torna-se<br />

o lugar por excelência de um estranhamento, de uma não-coincidência, entre o ser vivo e o ser falante),<br />

postulando haver no lugar de um sujeito do testemunho, antes: “um processo ou um campo de forças<br />

percorrido sem cessar por correntes de subjetivação de dessubjetivação”. Em outras palavras, o<br />

testemunho seria também o resto deste encontro mal-sucedido, se estabelecendo num não-lugar<br />

intermediário: “o resto de Auschwitz – as testemunhas – não são nem os mortos, nem os sobreviventes,<br />

nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p. 124; 162.<br />

376<br />

ROSA, J.G. Op. Cit., p.90.


não se separam das coisas que vivi 377 , pois quando testemunha: “vi a morte com muitas<br />

caras” 378 , no meio da batalha da Fazenda dos Tucanos, desconfiado da traição de Zé<br />

Bebelo, o sentido da morte se abisma nas muitas mortes que presenciou, proporcionou,<br />

ou às quais sobreviveu: sozinho, no meio da travessia.<br />

O que restou do sertão, segundo a memória do narrador, são fragmentos da<br />

natureza – mais ou menos aprazíveis – como a cor do céu, “esse é céu azul-vivoso, igual<br />

um ovo de macuco” 379 ; ou o trovão: “Na Serra do Cafundó, ouvir trovão de lá, e<br />

retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode até ser que chore, de medo mau em ilusão,<br />

como quando foi menino.” 380 Mas a natureza, como já se disse, foi marcada na<br />

recordação do narrador por Diadorim, daí a indissociabilidade entre o ver e o viver de<br />

seu testemunho. Também restaram figuras do sertão cotidiano, como vaqueiros,<br />

misturados, do mesmo modo, a crenças e fantasias, ou as “bizarrices” 381 que ele<br />

imagina que interessariam ao forasteiro, e que assinalam tanto o aspecto novamente<br />

subjetivo do relato; como, no nível histórico, a invasão da cidade sobre o campo, que só<br />

consegue enxergá-lo como exótico, fantasioso:<br />

...O senhor vá. (...) Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do<br />

Urucúia – aonde tanto boi berra... (...) cavalo deles conversa cochicho<br />

– que se diz – para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem<br />

mais ninguém mais perto, capaz de escutar. Creio e não creio. (ROSA,<br />

J.G., 2001, p. 47).<br />

Sobram, ainda, as diferentes imagens do Mal, como os brejos entre os rios<br />

Carinhanha e Piratinga: “Dali, para cá, o senhor vem (...) Por lá, sucuri geme. Cada<br />

surucuiú do grosso (...) Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de<br />

mula, arranca ferradura por ferradura.” 382 E – depositário de toda a memória<br />

377 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />

378 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 374.<br />

379 Idem, p.42.<br />

380 Idem, p.43.<br />

381 Idem, p. 42.<br />

382 Idem, p.47.


coletiva, incluindo hábitos, crenças, estórias dos sertanejos – resta o compadre<br />

Quelemén, indicando a figura do narrador, da narrativa, e da transmissão desta memória<br />

como modalidade de resistência ao apagamento deste universo:<br />

Compadre meu Quelemén é um homem fora de projetos. O<br />

senhor vá lá (grifo nosso), na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A<br />

estrela – d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo de<br />

cana. (...) Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – e é ele mesmo, já<br />

risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cúia de<br />

garapa e dá a ele lembranças minhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 74).<br />

Outro elemento presente é o caráter fictício do testemunho 383 , evidenciado no<br />

trecho anterior sobre o cochicho dos cavalos, que prossegue numa passagem em que o<br />

narrador começa alertando o visitante (e, com ele, o leitor) sobre a mentira dos outros.<br />

Mas, então, é o seu próprio discurso que se reveste de ambigüidade; fazendo com que,<br />

ali, já não se saiba bem em quem acreditar, principalmente ao considerar-se a lembrança<br />

que o narrador recusa como falsa, estranhamente relacionada a um subterrâneo onde<br />

outrora se torturavam escravos:<br />

...E agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a<br />

fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por<br />

debaixo dela, socavado no antro do chão – lá judiaram com escravos e<br />

pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo:<br />

eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e<br />

armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve<br />

de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira,<br />

dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de<br />

rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas,<br />

depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o<br />

mundo carece disso. Eu acho, que. (ROSA, J.G., 2001, p. 90).<br />

Na medida em que o narrador se depara com a ruína do sertão, o incentivo a<br />

desbravar este espaço se reverte no seu contrário não vá, e é por acreditar que não<br />

restou mais nada que ele desencoraja a viagem do explorador:<br />

383 O teórico aproxima neste artigo o testemunho da ficção, citando Derrida, para afirmar que o<br />

testemunho só existe diante da possibilidade, ao menos, da mentira e da ficção. Cf. SELIGMAN-SILVA,<br />

M. (2009) p.144.


Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de<br />

territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus<br />

motivos. Agora – digo por mim – O senhor vem, veio tarde. (...)<br />

Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.41-42).<br />

Dentre o que foi destruído pela história e restou apenas como fragmento no<br />

discurso, narrativa testemunhal, está a grandeza de chefes como Medeiro Vaz: “raça de<br />

homem que o senhor mais não vê, eu ainda vi” 384 . Além dela, o jaguncismo é extinto;<br />

alguns costumes dos vaqueiros cedem lugar a outros, como as roupas de couro; e até o<br />

gado, domesticado, alude à entrada do progresso e da cidade sobre o sertão:<br />

... Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi<br />

jagunço, por aí, pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam<br />

de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje<br />

de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando<br />

menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de<br />

curraleiro e de crioulo... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).<br />

Riobaldo guarda a lembrança e, lamenta melancolicamente o apagamento desta<br />

memória através dos nomes de seus lugares da infância, que são alterados pelo mesmo<br />

processo:<br />

Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá<br />

ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão<br />

alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro<br />

Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-<br />

Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? (ROSA, J.G.,<br />

2001, p.58).<br />

E a Guararavacã do Guacuí, o lugar onde, em meio ao silêncio, ele, já crescido,<br />

admite que além de mandar a morte, também pôde mandar o amor:<br />

384 Idem, p.60-61.<br />

A Guararavacã do Guacuí: o senhor tome nota deste nome. Mas, não<br />

tem mais, não encontra – de derradeiro, ali se chama é Caixeirópolis; e<br />

dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não dava. (...) Agora, o<br />

mundo quer ficar sem sertão... (Grifo nosso). (ROSA, J.G., 2001, p.<br />

305).


Note-se que, no mesmo testemunho do sobrevivente à morte que lhe rondou por<br />

todo lado, que aponta para o inenarrável de sua experiência, podemos ler, no sentido<br />

daquele que viu o mundo querer ficar sem sertão, o depoimento de Riobaldo que atesta<br />

a catástrofe, retirando do esquecimento tanto a paisagem da memória, como o próprio<br />

processo de apagamento deste universo.<br />

Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?<br />

Sofriam a esperança de não morrer.<br />

GUIMARÃES ROSA<br />

O episódio do menino peludo, confundido com um macaco, morto, assado e<br />

comido pelos homens do bando durante a primeira travessia do Liso do Sussuarão; e o<br />

encontro com os catrumanos e o povo do Sucruiú constituem o ápice do quadro de<br />

horrores que Riobaldo testemunha, onde a pobreza atinge a dimensão de catástrofe, que<br />

ele assinala após deixar para trás o povoado do Sucruí, e a visão dos catrumanos:<br />

“Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo.” 385<br />

O encontro com os catrumanos é antecipado da seguinte forma pelo narrador:<br />

“Porque está chegando a hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas” 386 .<br />

Ocorre quando o bando, já chefiado por Zé Bebelo, tendo conseguido cavalos em<br />

Currais-do-Padre, deve pegar munição no local chamado Virgem-Mãe mas, por irônico<br />

engano, é levado para a Virgem-da-Lage, e se perde na “estrada de muitos<br />

cotovelos” 387 , onde não há sinal de ninguém durante três dias de viagem: “nós<br />

estávamos em fundos fundos” 388 . Então, são interceptados pelos catrumanos, que tentam<br />

impedir a passagem até o arraial do Sucruiú, assolado pela varíola.<br />

385 Idem, p.408.<br />

386 Idem, p.397.<br />

387 Idem, ibidem.<br />

388 Idem, 398.


Descritos como um povo reperdido: “Do fundo do sertão” 389 , na mesma fala<br />

que antecede sua aparição, são equiparados ao próprio sertão: “De repente, por si,<br />

quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o<br />

próprio, mesmo” 390 . São vistos, portanto, como produzidos por um sertão sujo,<br />

estranho, repugnante:<br />

Para o nosso juízo, eles eram dôidos. Como é que, desvalimento de<br />

gente assim, podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram.<br />

Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem<br />

salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os<br />

catrumanos daquelas brenhas. (ROSA, J.G., 2001, p. 400).<br />

Comparáveis a criaturas, vivendo como os mais primitivos dentre os sertanejos,<br />

à parte de um Brasil que manda lembranças, como bem se observa no recado de Zé<br />

Bebelo – em nova referência aos que são mantidos à margem da história do país:<br />

– “O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido<br />

de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”<br />

– “Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça...”<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 403).<br />

Os catrumanos habitam um limiar de difícil compreensão, no qual a humanidade<br />

dos jagunços, através da voz de Riobaldo, é questionada, da mesma forma como seus<br />

vizinhos, o povo do Sucruiú, doentes e identificados a seres humanos apenas por suas<br />

casas: “coisa humana” 391 :<br />

Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e<br />

as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de<br />

miséria, quase que não possuíam o respeito das roupas de vestir.<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.399).<br />

Embora o caráter documental estrito não constitua o foco desta análise, devido<br />

às impressionantes semelhanças que ultrapassam a homofonia entre os catrumanos e os<br />

muçulmanos dos campos de extermínio nazistas, e também pelo conhecido hábito de<br />

389 Idem, p.406.<br />

390 Idem, p.397.<br />

391 Idem, p.408.


Rosa de coletar e reutilizar palavras pouco conhecidas, como nomes de plantas, animais,<br />

descrição física de lugares, etc., cabe conjeturar sobre esta sombria inspiração para o<br />

termo catrumano, que em português constitui um regionalismo, sinônimo de caipira, e<br />

cuja etimologia – quadrúmano – já aponta um primeiro traço em comum, a condição de<br />

destituição de humanidade à qual ambos são impostos.<br />

Até o momento, não se sabe se o escritor teve acesso ao termo muçulmano, um<br />

jargão dos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial.<br />

Entretanto, no conto “A Velha” – que é considerado um dos que contém elementos de<br />

um diário ainda inédito do escritor, conhecido como Diário de Hamburgo 392 , escrito em<br />

parte em alemão, parte em português, entre 1938 e 1942, quando o escritor esteve como<br />

cônsul adjunto na Alemanha – Rosa narra, em meio ao “espírito de catástrofe, em<br />

tempo tão ingeneroso” 393 de uma Alemanha pré-guerra, um dos atendimentos à<br />

multidão de judeus que procurava o consulado brasileiro na tentativa de sair do país<br />

(“Vê-los, vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rouco, raivoso.” 394 ); no qual lhe<br />

foram descritos em detalhes as “hitlerocidades, as trágicas técnicas, o ódio abismático,<br />

os judeus trateados” 395 dos campos nazistas, tornando plausível a intencionalidade<br />

desta associação, além da evidente semelhança encontrada no texto.<br />

O fato é que os catrumanos encarnam, no texto, a alteridade de uma condição<br />

ainda mais vil e abjeta que a dos sertanejos e jagunços já tão sofridos na mesma<br />

392 Os outros contos, todos publicados em Ave Palavra, seriam: “o Mau Humor de Wotan”, “A Senhora<br />

dos Segredos”, e “Homem, Intentada Viagem”, e trazem como cenário a Alemanha durante a Segunda<br />

Guerra. Cf. ROSA, J.G. (1970). Conforme destacou a pesquisadora Eneida Maria de Souza, uma das<br />

organizadoras da edição do diário, em todos eles há material do Diário de Hamburgo. Cf. SOUZA, E.<br />

(2008). Segundo Reinaldo Marques, outro dos organizadores da edição ainda não publicada do diário, no<br />

excelente ensaio “Grafias de Coisas, Grafias de Vidas”, uma espécie de genealogia da trajetória do<br />

documento, o diário contém uma diversidade de registros, entre os quais registros de palavras em várias<br />

línguas, listas de livros na estante, de temperos da cozinha alemã, roteiros de viagem, relatos de visita ao<br />

zoológico, descrições de paisagens, do clima, e colagens, onde têm destaque notícias da guerra, em<br />

recortes do jornal do Partido Nazista. Cf. MARQUES, R. (2009).<br />

393 ROSA, J.G. (1970) p.110.<br />

394 Idem, p.108.<br />

395 Idem, ibidem.


proporção em que os muçulmanos, os prisioneiros judeus que não resistiram aos campos<br />

de extermínio nazistas, conforme o livro de Agamben nos lembra 396 . Segundo o relato<br />

dos sobreviventes, dentre os quais tem destaque o de Primo Levi, o termo designava<br />

tanto um quadro clínico de desnutrição intensa, quanto uma condição, para uns,<br />

marcada pela perda da dignidade, para outros da consciência, ou ainda da capacidade de<br />

resistir às inumanas condições.<br />

Em que pese a precariedade de definições para o que se considerava impensável,<br />

o que importa é que, nos campos, eles eram facilmente identificáveis como a imensa<br />

maioria que sucumbia rapidamente, produzidos pelo experimento do campo, num<br />

estado aparente de um puro sobreviver; um “semiviver” 397 nas palavras de Rosa, ao qual<br />

se sucedia uma morte rápida. Sobrevivência na qual o limite entre a vida e a morte,<br />

entre o humano e o inumano, põe em xeque a própria idéia de estabelecer um limite:<br />

“Para Levi, o muçulmano é, antes, o lugar de um experimento, em que a própria moral,<br />

a própria humanidade são postas em questão” 398 .<br />

Situados num limite do que o humano pôde suportar, representando o pior do<br />

pior, por isso mesmo ambos desencadeiam reações de repulsa, tanto por parte dos<br />

jagunços, como dos prisioneiros dos campos. Da íntima semelhança com este alter, que<br />

a qualquer momento pode passar a ser o mesmo, da indesejada e a todo tempo recalcada<br />

equivalência, adviria a inquietante estranheza, conforme ensina Freud em “O<br />

Estranho” 399 . A repulsa é confirmada por um dos sobreviventes citados por Agamben:<br />

O estágio do muçulmano era o terror dos internados, pois nenhum<br />

deles sabia quando tocaria também ele o destino de muçulmano,<br />

396 Cf. AGAMBEN, G. (2008).<br />

397 Em “A Velha”. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.109.<br />

398 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.70.<br />

399 FREUD, S. (1988b). Ainda sobre as tentativas de encobrir esta condição, em Agamben: “Por isso, a<br />

preocupação mais insistente do deportado consistia em esconder as suas enfermidades e as suas<br />

prostrações, em ocultar incessantemente o muçulmano que ele sentia aflorar em si mesmo por todos os<br />

lados.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p.59.


candidato certo para as câmaras de gás ou para qualquer outro tipo de<br />

morte. (LANGBEIN, H. Apud. AGAMBEN, G., 2008, p.59).<br />

Também para Riobaldo, os catrumanos eram difíceis de serem olhados: “Ossos<br />

e queixos” 400 ; ou de se fazerem entender, falando uma língua igualmente estranha,<br />

onomatopaica, cheia de “s”: “Ossenhor utúrge, mestre...” 401 . Despertavam o riso dos<br />

jagunços, mas Riobaldo expressa por eles, além da estranheza que perpassa todo o<br />

encontro, um misto de pena e medo:<br />

...Aqueles catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia<br />

deixar de pensar neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado<br />

sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar<br />

minhas armas, as coisas e minhas roupas. (...) Draste eu duvidava<br />

deles. Duvidava dos fojos do mundo... (ROSA, J.G., 2001, p. 405).<br />

Equiparam-se, uma vez mais, muçulmanos e catrumanos, em sua posição central<br />

no campo: de um lado, aquele que “viu a Górgona” 402 , a cabeça de serpentes da<br />

medusa, que produzia a morte, e “chegou ao fundo” 403 , testemunhando a<br />

impossibilidade de ver e testemunhar, ocupando o lugar, de acordo com Primo Levi, de<br />

testemunhas integrais 404 . De outro, produzidos pelo “fundo do sertão”, os catrumanos<br />

representam a “multidão sem rosto e sem especificidade” 405 , a quem o narrador-<br />

testemunha tenta dar rosto e voz.<br />

400 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 401.<br />

401 Idem, ibidem.<br />

402 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.61.<br />

403 Idem, ibidem.<br />

404 Idem, p.67.<br />

405 PENNA, J. C. (2005) p.46.


Um outro cortejo<br />

O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.<br />

WALTER BENJAMIN<br />

Quando eu morrer<br />

cansado de guerra<br />

morro de bem com a minha terra:<br />

cana, caqui:<br />

inhame abóbora<br />

onde só vento se semeava outrora<br />

Amplidão, nação, sertão sem fim<br />

Ó Manuel, Miguilim<br />

Vamos embora.<br />

CHICO BUARQUE DE HOLANDA, Assentamento.<br />

Se a narrativa nasce da morte e opõe à historiografia uma outra história, nesta<br />

reescrita têm lugar os esquecidos da história. Contudo, além do cortejo triunfal dos<br />

vencedores da história, Benjamin aponta na obra do escritor russo Leskov – tomado<br />

como modelo de uma narrativa que coloca o tempo em movimento, na transmissão da<br />

memória e tradição do narrador ao ouvinte, um retorno ao passado, mas uma recriação<br />

da memória no presente e uma retransmissão às gerações futuras – a existência de um<br />

cortejo dos justos, definidos como figuras ligadas ao mundo arcaico, à redenção, e ao<br />

maternal, que representariam a “sabedoria, a bondade e o consolo do mundo” 406 ,<br />

corporificando-se como porta-vozes das criaturas mais abjetas e insignificantes.<br />

A idéia do justo, nesta perspectiva, vem enfatizar o potencial da narrativa na<br />

recriação da memória e na oposição à marcha dos vencedores da história, na medida em<br />

que, se há em jogo uma política do apagamento dos rastros de determinada memória,<br />

esta pode ressurgir, como resíduo, fragmento, em nova composição narrativa. Mesmo<br />

considerando que, atualmente, só se possa falar na figura do narrador ou da narrativa<br />

como aquele que comparece como ausente, em extinção: pois é deste outro lado – deste<br />

fim que coincide com a origem – que se pode testemunhar a barbárie:<br />

406 BENJAMIN, W. (1986d) p. 216.


O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se<br />

desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na<br />

qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo, ou como<br />

retardatária miserável. (BENJAMIN, W., 1986d, p.210).<br />

Um dos justos citados em Leskov é hermafrodita e assexuado, fazendo pensar<br />

em Diadorim, que, apesar de movido pelo ódio e pela vingança, demonstra compaixão<br />

pelos oprimidos, como na travessia de volta do Liso do Sussuarão, onde protege a mãe<br />

do menino morto e assado pelos jagunços. As figuras femininas são, por todo o texto,<br />

comparáveis à mãe de Riobaldo que, tendo criado seu filho solteira, é lembrada por ele<br />

como alguém que concentrou uma dupla função, de um amor maternal compreensivo e<br />

de uma autoridade que lhe colocou limites 407 : “A bondade especial de minha mãe tinha<br />

sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no<br />

punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias.” 408 As mulheres representam,<br />

para Riobaldo, ora uma mediação ao desmedido da guerra sem fim dos homens do<br />

sertão, ora uma saída ou diferença em relação ao universo do ódio, que ele enxerga no<br />

erotismo da prostituta Nhorinhá: “A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá<br />

puta e bela” 409 .<br />

Outra versão feminina de uma generosidade superior pode ser identificada na<br />

cartomante Ana Duzuza, que oscila entre a figura do justo, “naquele sertão essa dispôs<br />

de muita virtude” 410 ; e a mais abjeta das criaturas: “Raspava a rapadura com a quicé,<br />

ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco,<br />

rechupando, lambendo. A gente engrossava nôjo, salivava.” 411 A cartomante é salva<br />

407 ROSENFIELD, K. (2006) p.264-273.<br />

408 ROSA, J.G. (2001) p.57.<br />

409 Idem, p. 327.<br />

410 Idem, p. 49.<br />

411 Idem, p.53.


por Riobaldo precisamente quando ele alega ser seu filho, contrapondo-se ao desejo de<br />

matar de Diadorim 412 .<br />

Além da feminilidade, o que torna interessante esta leitura benjaminiana é que a<br />

figura do justo não consiste num personagem propriamente dito, mas pode deslizar<br />

numa cadeia que vai do justo “até os abismos do inanimado” 413 . Pois, “como ninguém<br />

está à altura desse papel, ele passa de uns para outros.” 414 Sendo assim, se no “topo”<br />

da hierarquia está Riobaldo, no extremo oposto estão os catrumanos, situados no “ponto<br />

em que, para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade” 415 .<br />

Riobaldo, que termina a história como o pacificador do sertão, assume sua face de justo<br />

nos momentos em que, apesar de jagunço, demonstra sua empatia pelos oprimidos: “E<br />

eu tinha receio que me achassem de coração mole, (...) que tinha pena de toda cria de<br />

Jesus”. 416 Da mesma forma, ao deixar o povoado do Sucruiú, ele fala em salvação,<br />

sonhando em sair dali levando todos consigo (todos, menos o Hermógenes, remarque-<br />

se): desde Diadorim e Zé Bebelo, até os catrumanos e o povo doente do arraial<br />

vizinho 417 .<br />

A noção de alegoria, para Benjamin associada como método do drama barroco<br />

alemão 418 , abre diversas perspectivas à imagem do justo na escrita de Rosa. A palavra<br />

alemã Trauerspiel (traduzida por drama barroco) traz em si o conflito entre luto<br />

412<br />

Uma coincidência biográfica não pode deixar de ser mencionada: no período em que Guimarães Rosa<br />

e sua esposa Aracy trabalharam juntos no consulado brasileiro em Hamburgo, expediram centenas de<br />

vistos a judeus que fugiam da perseguição alemã. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa teve, inclusive, seu<br />

nome gravado no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, obtendo o título dos “Justos<br />

entre as Nações”, que homenageia os não-judeus que ajudaram a salvar judeus durante o holocausto.<br />

413<br />

BENJAMIN, W. (1986d) p. 217.<br />

414<br />

Idem, p.218.<br />

415<br />

Idem, p.219.<br />

416<br />

Idem, p.186.<br />

417<br />

Benjamin associa a idéia do justo a um princípio religioso grego, a apocatastasis, que designa a<br />

salvação de todas as almas ao Paraíso, embora em seu texto se acrescente uma conotação política, onde a<br />

salvação é pensada através da narrativa, da figura mesmo do narrador: “Salvos, como nos contos de<br />

fadas”. Cf. BENJAMIN, W. (1986d) p.216.<br />

418<br />

Cf. BENJAMIN, W. (1984).


(Trauer) e jogo (Spiel) 419 , consistindo na arte de dizer uma coisa através de outra, revela<br />

que o sentido está perdido, mas engendra a possibilidade de novos sentidos a partir da<br />

morte e da perda. Assim é composto o texto do GSV: com os restos de tudo que sobrou<br />

da história oficial, as ruínas e resíduos da história, o artista construiria um outro sertão.<br />

A grande diferença entre o símbolo e a alegoria é a temporalidade, pois –<br />

diferentemente do símbolo, que pressupõe relação atemporal e imediata entre a imagem<br />

e o conceito – a alegoria contém em si a temporalidade histórica, a dialética, o<br />

movimento. Por tratar-se de uma substituição, pode ser pensada como uma metáfora ou<br />

imagem perpassada de ruína e morte, pois o que está desde sempre perdido é o referente<br />

ou o objeto, tornando a relação com o referente sempre mediada pela linguagem 420 . A<br />

alegoria se refere à impossibilidade de reunir os pedaços, e ao mesmo tempo a esta<br />

colagem ou mosaico.<br />

A partir desta concepção de alegoria como concernente à dialética, vai se<br />

tornando claro, também, que a imagem alegórica mais próxima deste cortejo dos justos,<br />

oposto ao cortejo triunfal do progresso, é a do próprio bando de jagunços, em sua<br />

errância sem fim pelo sertão, em busca de justiça, deparando-se pelo caminho com os<br />

outros desvalidos da história... Principalmente no último bando, quando, à frente do<br />

cortejo e ao lado do chefe Urutú Branco são postos um cego (Borromeu) e uma criança<br />

(o pretinho Guirigó). Imagem dialética e poética que une, na figura do jagunço de uma<br />

terra-sem-lei, o justo e o justiceiro, o pedido por justiça e o ato, quase sempre violento,<br />

do fazer justiça com as próprias mãos, reunindo também no mesmo bando os jagunços e<br />

os mais frágeis representantes da população.<br />

O cortejo tem lugar num sertão onde, como afirmou Heloísa Starling 421 , desde<br />

Medeiro Vaz, o rei dos gerais – que se despojou de todos os bens, família, casa, tudo<br />

419 GAGNEBIN, J.M. (1994) p.45.<br />

420 Cf. BENJAMIN, W. (1986g).<br />

421 STARLING, H. (1999).


que o prendia a uma identidade particular – todos os chefes repetem, em vão, a mesma<br />

tentativa de refundar uma lei a partir do nada, (como em Canudos, fundar uma outra<br />

sociedade) e todos fracassam no “sonho de um só” 422 . Os bandos seguem seu cortejo<br />

num sertão destituído de tudo, compondo uma alegoria, pais-agem onde desfilam, lado-<br />

a-lado, a ruína e o progresso.<br />

Neste deslocamento incessante, se movem os dois extremos da história do país, a<br />

barbárie e a redenção. É o que ocorre, por exemplo, no julgamento de Zé Bebelo pelos<br />

jagunços, quando cada um dos envolvidos toma a palavra para refletir sobre o crime, a<br />

culpa e a justiça, e cuja sentença final se define pelo seu exílio do sertão, destoando do<br />

costume local de simplesmente matar os inimigos. Ali, tem lugar um dos momentos<br />

intermediários entre a lei da bala e a lei do governo, onde ambas se deslocam, e o que<br />

se insinua é a possibilidade de construção de uma lei outra, terceira em relação ao<br />

conflito originário.<br />

Através destes múltiplos desdobramentos de imagens, dá-se a perceber o<br />

potencial da narrativa, da linguagem; que pode advir da morte e retornar a ela, mas<br />

engendra a vida em sua proliferação de sentidos, fazendo vislumbrar, a partir dos<br />

resíduos, uma outra vida possível. Aqui, uma palavra se destaca, novamente seguindo<br />

Benjamin: o entrecruzamento. Pois, se o tecido da memória é infinito, e o texto se<br />

constrói como o que tece o rememorar através da trama da narrativa, a eternidade a que<br />

se refere à memória involuntária de Proust, localiza-se numa camada mais profunda que<br />

a memória, que, para Benjamin, não é a do tempo infinito, idealista e mítico, mas a do<br />

tempo-de-agora, tempo entrecruzado, por vezes chamado tempo imemorial 423 .<br />

Esta encruzilhada dos tempos, tempo-de-agora ou tempo imemorial, isso que<br />

Benjamin aponta em Proust – e nós lemos, aqui, agora, no tempo-sobre-tempo de “Os<br />

422 Idem, p.63.<br />

423 Cf. BENJAMIN, W. (1986a) p.40; cap.4 desta tese.


Cimos” 424 – é também demonstrado como capaz de ser entrevisto na pintura, é o que<br />

Benjamin afirma numa aparentemente singela nota de rodapé sobre a presença do olhar<br />

diante da multidão das cidades recém-crescidas na Europa, no impressionismo de<br />

Monet 425 . Porém, ressalte-se, se o tempo entrecruzado é definido a partir do salto do<br />

tigre em direção ao passado, como aquilo que pode apontar algo simples na origem,<br />

revela também o seu caráter imemorial, que igualmente não será o da origem<br />

cronológica, pois lá, a lembrança encontra-se como enigma, impossível de ser<br />

recuperada por confundir-se com a própria origem.<br />

Deste modo, o trabalho da memória e do esquecimento tecidos no texto<br />

constituem algo que passa por, mas também ultrapassa a melancolia. Retomando o<br />

primeiro e o último conto de Primeiras Estórias 426 ; se, no primeiro, trata-se de uma<br />

alegria às margens (melancolia das coisas, mas alegria da vontade, diz Wisnik 427 ), em<br />

“Os Cimos” justamente se trata do inverso afastamento da melancolia contida no<br />

primeiro, que percebemos como o impulso de felicidade do rememorar (ensaio de<br />

Benjamin sobre Proust) 428 .<br />

A rememoração e a narrativa envolvem, portanto, algo que Benjamin não cessa<br />

de repetir e Guimarães Rosa não se detém em realizar, chegando até a falar sobre isso<br />

em entrevistas, onde novamente aparece a imagem do infinito (“a travessia para a<br />

424 ROSA, J.G. (1988).<br />

425 O que parece se inscrever em primeiro plano no texto “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” é a<br />

experiência de choque diante da multidão emergente das cidades européias no séc. XIX, como um dos<br />

temas que fundam sua poesia como eminentemente moderna. Contudo, nesta nota, Benjamin nos brinda<br />

com nada menos do que este exemplo de como a obra de arte pode expressar imagens visuais não<br />

exatamente sobre estas distintas sobreposições do tempo, mas do olhar sobre elas, um olhar que<br />

materializa o novo tempo das cidades e que se superpõe à experiência pré-industrial anterior a ela. Pois o<br />

filosofo “lê” o tumulto das manchas de tinta da pintura como “reflexo das experiências tornadas<br />

familiares aos olhos dos habitantes das grandes cidades. Um quadro como a Catedral de Chartres, de<br />

Monet, que parece um formigueiro de pedras, poderia ilustrar esta suposição”. Cf. BENJAMIN, W.<br />

(1989) p.123.<br />

426 ROSA, J.G. (1988).<br />

427 WISNIK, J.M. (2002) p.181.<br />

428 BENJAMIN, W. (1986a) p.38-39.


solidão que equivale ao infinito” 429 , infinito da felicidade), e que podemos situar nesta<br />

imagem da travessia, que também pode ser a travessia do fantasma, pensada tanto na<br />

dimensão do trabalho da rememoração, no atravessamento do trauma, como no processo<br />

da escrita: uma travessia da palavra.<br />

429 LORENZ, G. (1983) p.73.


Escute meu coração, pegue no meu pulso.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA


III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E <strong>ESQUECIMENTO</strong><br />

Vida inquieta, inquietante estranheza<br />

...Mas escrever a vida é outra história.<br />

Inacabamento.<br />

PAUL RICOUER<br />

“A vida não fica quieta” 430 diz o narrador do conto “Antiperipléia”, um bem-<br />

humorado guia de cegos – mas poderia perfeitamente ser uma frase de Riobaldo, tal o<br />

volume e a intensidade de sua fala quando decide contar suas memórias a seu hóspede,<br />

na fazenda São Gregório, herdada por ele do padrinho Selorico Mendes. Na visita que<br />

era para durar, no mínimo três dias, conforme ele pede ao senhor, não se sabe ao certo<br />

qual a duração do estranho diálogo.<br />

O que chama a atenção nas mais de seiscentas páginas escritas sem uma única<br />

pausa, em parágrafos sucessivos, sem nenhum capítulo ou qualquer outra divisão formal<br />

que interrompa o texto, é este efeito de um jorro da memória, comparável ao furor com<br />

que Benjamin descreve a obra de Proust em seu ensaio sobre o escritor, sobretudo<br />

quando o pensador assinala, neste excesso, a discrepância entre a vida e a poesia,<br />

definindo, ali, o texto como tecido da rememoração 431 .<br />

Entretanto, conforme vimos, se o narrador fala a partir da morte, esta também<br />

engendra a vida como aquilo faz falar e que gera a narrativa; pulsão nomeada por<br />

Seligmann-Silva (à maneira de Benjamin e Freud) em “Narrar o Trauma”, como a<br />

“pulsão testemunhal” 432 . No ensaio, o autor compara a narrativa testemunhal à cena<br />

psicanalítica, destacando o potencial do testemunho de, ao dirigir-se a um outro,<br />

estabelecer novas associações e temporalidades, em que pese o aspecto da<br />

430 ROSA, J.G. (1985) p.19.<br />

431 BENJAMIN, W. (1986a) p. 49.<br />

432 SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.70.


irredutibilidade do trauma 433 . Em “Sobre a Escova e a Dúvida”, um dos quatro prefácios<br />

de Tutaméia, Guimarães Rosa dá testemunho sobre a origem da obra como uma força<br />

estranha ao próprio autor:<br />

... Quanto ao <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>, forte coisa e comprida<br />

demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido<br />

– por forças ou correntes muito estranhas. (ROSA, J.G., 1985, p.175).<br />

Sem dúvida, muita estranheza perpassa o texto. Especificamente, o que<br />

caracteriza a rememoração de Riobaldo como distinta de qualquer outra narrativa de<br />

memórias é, a princípio, a sua forma de um diálogo, onde só um fala. Mas, o que vem a<br />

ser uma fala? “O que distingue uma fala de uma gravação de linguagem?” 434 , pergunta<br />

e emenda Lacan: “Falar é antes de mais nada falar a outros”. A estrutura do texto,<br />

construída na forma da mensagem (que, contudo, é diferente de comunicação)<br />

endereçada a este alguém de fora, um outro que escuta, silencioso, permite a<br />

comparação do texto com uma situação de análise:<br />

...Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das<br />

coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo<br />

mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho<br />

assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo<br />

proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o<br />

que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais<br />

de si. Para isso é que o muito se fala? (ROSA, J.G., 2001, p.55).<br />

A alteridade deste desconhecido em relação a esta fala-narração é bem marcada,<br />

ele é o único personagem sem nome da história, a quem Riobaldo chama de senhor, o<br />

que já proporcionou interpretações desta figura como sendo a do próprio escritor, por<br />

sua estampa culta e viajante, e até mesmo o próprio leitor, devido às incessantes<br />

incitações do narrador para que ele participe na produção dos sentidos da narração,<br />

433 (Sobre a narrativa): “Conquistar essa nova dimensão equivale a sair da posição do sobrevivente para<br />

voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral...” Cf.<br />

SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.69.<br />

434 LACAN, J. (2008) p.48.


espondendo às suas indagações e aos vazios de sentido textuais: “O senhor pense, o<br />

senhor ache. O senhor ponha enredo” 435 . Entretanto, assim como em Freud, a<br />

estranheza parece advir muito mais da sua continuidade com uma condição de<br />

intimidade, do “amigo-estranho” do que a um caráter de pura exterioridade 436 :<br />

inquietante familiaridade, como corrige João Camillo Penna 437 , é o que faz desta fala<br />

um falar consigo mesmo.<br />

Através da definição de Schelling, o Estranho é associado por Freud a um ao que<br />

retorna do recalcado: “Unheimlich é o nome de tudo o que deveria ter permanecido...<br />

secreto e oculto mas veio à luz” 438 . De fato, a narrativa de Riobaldo reenvia a todo<br />

tempo ao campo do inconsciente, à procura por narrar uma memória não-sabida: “Me<br />

lembrei do não-saber” 439 . Não-saber que vai se constituindo a partir da suposição de<br />

saber a este Outro, reafirmada o texto inteiro na forma de: o senhor sabe. Ao contar sua<br />

história, o narrador endereça, transfere a seu ouvinte-leitor esta sua verdade não-sabida:<br />

“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do eu, a minha<br />

verdade.” 440 Sua fala faz apelo a este saber inconsciente – de acordo com Lacan, a esse<br />

algo “que fala no sujeito, além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não sabe, e diz<br />

sobre isso mais do que crê” 441 – como se estivesse numa situação de análise: “Conto ao<br />

435 ROSA, J.G. (2001) p.325.<br />

436 O argumento de Freud é o de que o significado da palavra heimlich “se desenvolve na direção da<br />

ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich”. Das várias matizes de sentido<br />

de heimlich: familiar, doméstico, íntimo, secreto, oculto, inquietante, estranho (pouco usado); haveria<br />

um ponto em que o íntimo, secreto e oculto deriva para levemente assustador, inquietante, e se torna<br />

unheimlich. FREUD, S. (1988b) p.244. De acordo com Luiz Hanns, entretanto, o termo estranho em<br />

português possui um sentido de exterioridade, alteridade (sinônimo de forasteiro), inexistente em alemão,<br />

o que não nos impede de constatá-lo como um dos sentidos presentes no texto, o que o aproxima da<br />

figura do psicanalista. Cf. HANNS, L. (1996) p.234.<br />

437 PENNA, J.C. (2003) p.96.<br />

438 FREUD, S. (1988b) p. 243.<br />

439 ROSA, J.G. (2001) p.303.<br />

440 Idem, p.616.<br />

441 LACAN, J. (2008) p.54.


senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não<br />

sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba” 442 .<br />

Por isso, pode-se considerar a presumida motivação da rememoração ligada à<br />

carência de que o bom seja apartado do ruim como situada no plano do discurso<br />

manifesto, pedido endereçado ao analista-senhor para que responda e resolva. Mas, ao<br />

pedido e à pergunta se sobrepõe algo, numa latência, que impulsiona a narrativa e a<br />

memória em direção às coisas obscuras, o que o próprio narrador também percebe com<br />

o tempo: “Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver<br />

essas águas, o lume da lua...” 443 Vê-se, então, que a recordação se move menos no<br />

sentido de um esclarecimento – embora Riobaldo resista, a princípio, – o rememorar e o<br />

contar se deslocam em direção ao sombrio – o estranho – das coisas.<br />

E como num processo de análise, se esta fala traz demanda de respostas e<br />

soluções, também formula um desejo em aberto, dos pastos que carecem de fechos;<br />

Riobaldo, parafraseando o título de Vladimir Safatle 444 , tem paixão pelo negativo, gosta<br />

do que não compreende: o sertão está além do seu entendimento, ele tenta aprender com<br />

Quelemén a recordar a sobre-coisa, e com Diadorim, a sua neblina – a personificação<br />

da obscuridade – admite desejar o impossível:<br />

Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos<br />

dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até<br />

que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me<br />

adoecido, tão impossível. (ROSA, J.G., 2001, p. 62).<br />

Em outras palavras, há o pedido de “quero todos os pastos demarcados” 445 ,<br />

endereçado ao senhor através das várias perguntas: “Mas não diga que o senhor,<br />

442 ROSA, J.G. (2001) p.245.<br />

443 Idem, p. 325.<br />

444 SAFATLE, V. (2006).<br />

445 ROSA, J.G. (2001) p.237.


assiado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço!” 446 , há o apelo<br />

pela norma dum caminho certo que desfaça a mistura do mundo:<br />

Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma<br />

só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que<br />

sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho<br />

certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem –<br />

mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; (...) Mas, esse<br />

norteado tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo<br />

sempre o confuso dessa doidera que é... (ROSA, J.G., 2001, p.500).<br />

No entanto, um pedido mais fundamental se sobrepõe ao primeiro: “Me dê um<br />

silêncio. Eu vou contar” 447 , pedido de escuta do que não está no dito, da palavra como<br />

instrumento, mas no sobredito, pulsão, busca pelas outras palavras: “Escute meu<br />

coração”, pegue no meu pulso” 448 – pedido que comove uma outra busca, relacionada<br />

com o desejo, ainda presente, por Diadorim; mas fundamentalmente com a questão da<br />

ausência, do Mal ou da negatividade sob todas as suas formas, com as lacunas e vazios<br />

deixados para que sejam tecidos, conforme ele provoca: “O senhor fia?(...). O senhor<br />

tece?” 449 “O senhor sente?” 450 . Ou, simplesmente, para que sejam deixados em aberto,<br />

para que se admita o nada, o silêncio como fim, retorno e origem da rememoração e da<br />

criação, da narrativa.<br />

Quanto a saber se houve pacto ou não, se o diabo existe e não existe, a questão é<br />

formulada de início numa dimensão filosófica, relacionada ao gosto por especular idéia,<br />

do Mal que verte e reverte no bem: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem,<br />

446 Idem, p.26.<br />

447 Idem, p. 609.<br />

448 Idem, p.601.<br />

449 Idem, p.201.<br />

450 Idem, p.200. É preciso fazer uma ressalva, aqui, pois mesmo estas perguntas aparentemente<br />

endereçadas ao senhor são construídas de uma forma aberta, insolúvel, e o silêncio do senhor como<br />

resposta também as distanciam de perguntas comuns, apontando para a diferença entre o caráter<br />

artístico do texto e uma situação analítica (embora o silêncio do analista seja justamente uma das<br />

condições fundamentais para se estabeleça uma análise, como veremos), pois o primeiro, ao se<br />

estabelecer em formas elaboradas abertas, plurais, atinge o inconsciente do leitor, provocando a<br />

construção de novas respostas. A esta abertura se deve o alcance universal da obra de arte, uma<br />

distinção importante em relação à forma “fixa” do sintoma neurótico. Sobre isto, cf. PERRONE-<br />

MOISÉS, L. (1990) p.120.


os crespos do homem – ou é o homem arruinado, o homem dos avessos” 451 . No decorrer<br />

do texto, a indagação vai sendo subjetivada, assumindo a forma da culpa diante da<br />

morte de Diadorim: “E o diabo não há! Nenhum. É o que eu tanto digo. Eu não vendi<br />

minha alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada” 452 .<br />

Entretanto, há também em relação à questão do demo um retorno freqüente à<br />

dimensão do Mal como inominável, inapreensível, em meio mesmo à travessia da<br />

questão do pacto (levando-nos a pensar em novas dessubjetivações), o que faz com que<br />

o trabalho da rememoração seja fundado sobre e deslocado para esta negatividade,<br />

afinal as coisas importantes se situam num plano não totalmente redutível à<br />

rememoração, o que a faz desenrolar-se permanentemente em busca do valor das outras<br />

coisas. Ao falar em saudade como motor da busca, portanto, é preciso retomar a<br />

distinção entre a saudade da idéia e a saudade do coração, pois esta saudade não é<br />

somente a nostalgia consciente do que passou, mas algo que concerne ao inconsciente (à<br />

toda parte que coincide com a nenhuma) que move o desejo de rememorar e contar sua<br />

história, como a tristeza sem razão de motivo, pois determinada pelo não-sabido:<br />

“Apertou aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo” 453 .<br />

A selvagem desgraça, ainda.<br />

Aqui a estória se acabou.<br />

Aqui a estória acabada.<br />

Aqui a estória acaba.<br />

Pensar em Diadorim como signo maior da negatividade no enredo é diferente de<br />

dizer que a rememoração é movida pelo desejo ou pelo amor de Riobaldo em relação a<br />

Diadorim, pois o que move ou pulsa é suposto situar-se além ou aquém da<br />

rememoração, da compreensão e da representação, podendo-se indagar se o próprio<br />

caráter de proibição deste amor não funcionaria como motor de um desejo louco para<br />

451 Idem, p.26.<br />

452 Idem, p.500.<br />

453 ROSA, J.G. (2001) p.304.


alguém tão atraído pelo lume da lua como Riobaldo 454 : “às loucas, gostasse de<br />

Diadorim” 455 .<br />

A despeito disso, o amor por Diadorim mantém-se como aquilo que não passa,<br />

marcando toda a rememoração de Riobaldo – desde o primeiro encontro com o menino<br />

Reinaldo, na juventude: “Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como<br />

eu ia poder deslembrar?” 456 ; ao reencontro, quando o jovem Riobaldo decide se juntar<br />

aos jagunços de Medeiro Vaz, e o reconhece como “o que atravessou o rio comigo,<br />

numa bamba canoa, toda a vida” 457 , e cujo caráter de permanência no tempo é<br />

sintetizado poeticamente no sorriso de Reinaldo, tal como o narrador o recorda: “E<br />

como ele sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo” 458 . Deste modo, o<br />

amor por Diadorim no presente da narrativa atravessa o rememorar, manifestando-se<br />

quando o ex-jagunço reconta sua história ao visitante, levando-o a conjugar os verbos<br />

relembrar e amar: “Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não<br />

me ouça.” 459<br />

Por outro lado, na dimensão em que representa o grande mistério para Riobaldo,<br />

em sua esquisitice, em seu gosto pelo silêncio, em seu enigma não revelado, no conflito<br />

que o faz sentir e que ele busca compreender: “Acho que eu tinha de aprender a estar<br />

alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no menino pensava, eu acho<br />

que” 460 , compreender a si próprio – também se pode considerar este um dos<br />

movimentos da rememoração, que se acrescenta às diversas culpas, seja por associar o<br />

amor por outro homem ao demo: “... o amor assim pode vir do demo? (...) Peço não ter<br />

454 Ao diferenciar o objeto do desejo do objeto da pulsão, Lacan fala, deste último exatamente como os<br />

desejos loucos, vazios, como os decorrentes de uma simples proibição. Cf. LACAN, J. (2008b).<br />

455 ROSA, J.G. (2001) p. 55.<br />

456 Idem, p. 120.<br />

457 Idem, p.154.<br />

458 Idem, ibidem.<br />

459 Idem, p.56.<br />

460 Idem, p.126.


esposta; que, senão, minha confusão aumenta” 461 . Ou, por não ter se antecipado ao<br />

acontecimento da morte: “Como foi que não tive um pressentimento?” 462<br />

Entretanto, além desta dimensão de elaboração e do trauma e reconstrução da<br />

história, há outra dimensão da rememoração se refere a um nível concebido por Freud<br />

como “tendências mais primitivas (...) e independentes” do princípio do prazer 463 , que<br />

vêm a caracterizar a pulsão de morte. Em termos lacanianos, tanto formulações como o<br />

não assimilável do trauma 464 , como a do real que retorna sempre ao mesmo lugar 465 ,<br />

apontariam para a pulsão como aquilo que move o rememorar 466 . É o que se vê na<br />

forma do demônio: “E a idéia me retorna” 467 . Retorna como nenhum e com todos os<br />

nomes, por toda a narrativa:<br />

... Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o<br />

tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-encarado,<br />

aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que<br />

minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras<br />

pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa<br />

Senhora da Abadia!... (ROSA, J.G., 2001, p. 317-318).<br />

A morte de Diadorim constitui para Riobaldo uma dupla perda: a morte do amor<br />

evitado no passado, que o faz sufocar “numa estrangulação de dó” 468 e a revelação:<br />

... A dôr não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de<br />

coronha. (...) Diadorim era mulher, como o sol não acende a água do<br />

rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. (ROSA, J.G., 2001,<br />

p.615).<br />

Revelação num tempo posterior, que traz em si a perda do que teria sido<br />

possível somente no passado, acenando-lhe com o impossível de todo: “E a beleza dele<br />

461 Idem, p.155.<br />

462 Idem, p.207.<br />

463 FREUD, S. (1976) p.29.<br />

464 LACAN, J. (2008b) p.60.<br />

465 Idem, p.55.<br />

466 Idem, (2008b).<br />

467 Idem, p.55.<br />

468 Idem, p. 614.


permanecia, só permanecia, tão impossivelmente” 469 . Talvez, nesta dupla perspectiva,<br />

possamos compreender a proposição de Susana Lages segundo a qual a narrativa seria<br />

um resíduo da saudade de Riobaldo por Diadorim, da saudade que não passa e que<br />

fundamenta o texto como um todo:<br />

A dor sentida pela morte de Diadorim expressa-se fisicamente: suor,<br />

febre; Riobaldo adoece, quase “morre de saudade”, de uma saudade<br />

em luta contra a melancolia: vazio improdutivo, repetição, morte.<br />

Riobaldo ultrapassa com “tardança” esse estado melancólico e dirigese<br />

à nova vida com Otalícia, à qual, no entanto, não supre o vazio<br />

deixado pela perda de Diadorim. Ao contar sua história ao Compadre<br />

Quelemén, sua melancolia dissolve-se e a saudade, resíduo, resto de<br />

melancolia, produz a narrativa enquanto ação, vida. (LAGES, S.,<br />

2002, p.111).<br />

A morte de Diadorim é quando origem e fim coincidem. A tripla afirmação<br />

sobre o fim da história na última epígrafe, desdobra os sentidos do fim, da permanência<br />

e da origem, sob os diversos tempos: da estória que se acabou no passado, da estória<br />

acabada ou destruída, no tempo inexorável do particípio passado, e da estória<br />

rememorada ou narrada, que acaba no presente, e continua acabando... Mas,<br />

simultaneamente, recomeça, sob a forma da recordação contada a Quelemén, como<br />

pulsão que o religa à vida, com a narração ao visitante que dá forma ao texto. Note-se,<br />

porém, que tampouco o texto sai inatingido do golpe, quando o narrador –<br />

inesperadamente – se confessa como escritor da estória, e se recusa a narrar a morte,<br />

ameaçando não escrevê-la: “Os olhos dele ficados para a gente ver. (...) Os cabelos<br />

com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é,<br />

não fica sendo! Diadorim...” 470<br />

469 Idem.<br />

470 Idem, p.614.


Aqui, a duplicidade da perda é assinalada novamente através de uma construção<br />

formal que acompanha um tema semântico. A mesma idéia de um duplo trauma, e mais<br />

ainda do trauma que retorna como repetição, atingindo o presente, se nota na forma e no<br />

ritmo deste dia (re)marcado na memória, onde diversas construções e fonemas se<br />

repetem:<br />

...Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. (...). O<br />

senhor mesmo, o senhor pode imaginar um corpo claro e virgem de<br />

moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios<br />

da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio<br />

abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era<br />

um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E<br />

tantos anos já se passaram. (ROSA, J.G., 2001, p. 207).<br />

A selvagem desgraça mostra, ainda, nitidamente, o entrecruzamento entre a<br />

rememoração própria ao romance, ligada à trajetória de uma vida, e a memória coletiva,<br />

associada à narrativa épica 471 : pois é a nele que a questão do Mal, difusa em suas<br />

múltiplas histórias, é tomada como coisa sua para Riobaldo. Isto é, confrontado com o<br />

Mal em sua forma mais aguda, por assim dizer, o jagunço se volta ao passado, tentando<br />

buscar na memória uma resposta particular à questão do demo e do pacto. No mesmo<br />

eixo de discussão, o acontecimento da morte associa o trauma como experiência do<br />

sujeito que perde seu amor à dimensão da catástrofe, na medida em que a revelação da<br />

Mulher envolve em termos dos determinantes coletivos, da violência e pobreza que<br />

compõem – o querer e o poder – de matar dos jagunços.<br />

Ao deparar-se com o real do corpo de mulher de Diadorim, Riobaldo e os<br />

jagunços choram, e ele se abraça com a mulher que a preparava para o enterro, mas esta<br />

mulher aparece aí com letra maiúscula, apontando possivelmente para A Mulher, o<br />

feminino e toda a diferença a que ela pode remeter: “Recaí no marcar do sofrer. Em<br />

real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos<br />

471 Cf. Cap.1 desta tese.


meus jagunços decididos choravam” 472 . A imagem seguinte traz a dor diante da perda<br />

em particular do amor e da castração do feminino no plano coletivo, condensada no<br />

lamento diante do corte nos cabelos de Diadorim:<br />

... Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata...<br />

Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não<br />

sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:<br />

- ‘Meu amor!’<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.615).<br />

Junto ao sofrimento de Riobaldo diante da surpresa da revelação, está o choro<br />

dos decididos jagunços, onde se lê também o lamento de todos por um (im)possível<br />

presente melhorado, pela diferença que o feminino poderia fazer não só na vida de<br />

Riobaldo, mas numa vida onde efetivamente pudesse manifestar-se, ainda viva, como<br />

contraponto à guerra sem fim do sertão.<br />

Dor em aberto<br />

E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta<br />

ferida.<br />

CHICO BUARQUE, Leite Derramado.<br />

Além da melancolia dirigida ao passado histórico, este lamento sertanejo, o<br />

olhar melancólico perpassa também a memória dos amores de Riobaldo, sobretudo a<br />

recordação ligada a Diadorim, seu “amor de ouro” 473 ; o que não significa, entretanto,<br />

em nenhum dos aspectos, propor que a rememoração se esgota na melancolia, nem<br />

sequer pensá-la como traço definitivo estabelecido nestes laços de amor. Pois, aqui,<br />

como lá – lembre-se a imagem dialética do cortejo dos justos – há um enfrentamento<br />

desta dor e deste luto, o que leva Riobaldo, mesmo sem esquecer Diadorim, a seguir em<br />

frente, atravessando no meio da tristeza, podendo amar e casar-se com Otalícia, o<br />

472 ROSA, J.G. (2001) p.616.<br />

473 Idem, p.68.


“amor de prata” 474 , e a situar-se na história – não apenas, mas também – a partir de um<br />

tempo após a perda: “Eu estou depois das tempestades” 475 .<br />

Entretanto, a melancolia – sofrimento que Freud diferencia do luto comum e se<br />

relaciona com um desencadear específico nos processos de enlace e separação do objeto<br />

de amor, “de um amor que não pode ser renunciado” 476 – também perpassa a<br />

rememoração, onde a dor sem remédio, a saudade do coração e o remordido sofrimento<br />

transmitem a mesma idéia de um irredutível lamento diante da perda: “ah, meus<br />

buritizais levados de verdes” 477 . Esta sensação da perda do objeto como uma parte de si<br />

mesmo constitui uma primeira distinção entre a melancolia em relação ao luto,<br />

caracterizado por uma elaboração da perda que possibilita a escolha de outros objetos de<br />

amor.<br />

Por toda a rememoração se encontra uma identificação do sujeito com este<br />

objeto, numa condição especial, tal como a perda descrita por Freud na melancolia: “a<br />

sombra do objeto caiu sobre o sujeito” 478 , que o personagem manifesta no momento<br />

mesmo da morte de Diadorim: “da dôr que me nublou” 479 . Identificação na qual o que<br />

foi perdido mantém-se – ainda no presente da narrativa – em obscuridade, não se<br />

discernindo completamente do sujeito: “mas Diadorim é a minha neblina (grifo<br />

nosso)...” 480 . A ambivalência desta sombra se mostra, ainda, no lamento diante do<br />

tempo e do amor irrecuperável, nas variantes da fórmula: “Ah, naqueles tempos eu não<br />

sabia, hoje é que sei...” 481 . E a culpa, mais um traço apontado como próprio à<br />

melancolia no texto de Freud, como possível conseqüência da ambivalência no próprio<br />

laço com o objeto, que se acirra diante da perda, na qual uma parte do sujeito sofre,<br />

474 Idem, ibidem.<br />

475 Idem, p.611.<br />

476 FREUD, S. (1988 c ) p.256.<br />

477 ROSA, J.G. (2001) p. 614.<br />

478 FREUD, S. (1988c) p. 254.<br />

479 ROSA, J.G. (2001) p. 613.<br />

480 Idem, p.40.<br />

481 Idem, p.62.


culpada: “Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter” 482 .“Agora,<br />

no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir” 483 . E a outra, goza, sadicamente<br />

(diria Lacan) com as auto-recriminações 484 .<br />

Difícil apontar, em Rosa, a estória mais triste, o personagem mais melancólico;<br />

possível, contudo, é comparar as diferentes versões ou ensaios sobre a melancolia ao<br />

longo de sua produção. Assim, a melancolia de Riobaldo pode ser pensada face ao já<br />

mencionado lamentar repetitivo da terra perdida da infância, no conto “Lá, nas<br />

Campinas” 485 , juntamente com o narrador de tristes palavras de “A Terceira margem do<br />

Rio” 486 . Do primeiro conto, cabe apenas ressaltar a associação entre a dimensão da<br />

perda em particular do personagem, insinuada no texto como possível abandono dos<br />

pais, para uma dimensão inconsciente, não apenas como cenário dos desejos edipianos,<br />

da tragédia familiar de cada um, mas também como fundo originário, enigma<br />

constitutivo do sujeito 487 .<br />

Em “A Terceira Margem do Rio”, a forma como o filho se refere aos pais,<br />

durante todo o conto, aproxima afetivamente o leitor, irmanando-o na experiência de<br />

desamparo com o recolhimento do pai a uma canoa, rio afora: “Nosso pai era homem<br />

cumpridor, ordeiro, positivo; (...). Nossa mãe era quem regia” 488 , “Nosso pai não<br />

voltou.” 489 , “Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura...” 490 A forma,<br />

482 Idem, p. 304.<br />

483 Idem, p. 329.<br />

484 Um aspecto pouco pensado pela crítica parece justamente a ambivalência amor-ódio de Riobaldo em<br />

relação à escolha de Diadorim pela guerra (e não pelo amor), sendo o ódio de Diadorim, ao mesmo<br />

tempo, o que atrái e repele Riobaldo, divisão que aumenta diante da revelação de que ela era mulher<br />

somente na morte. Cf. o artigo de Ana Luiza Martins Costa, intitulado “Diadorim, delicado e terrível”,<br />

em: SCRIPTA (1998). Como sugere Freud, na melancolia, as auto-recriminações são recriminações ao<br />

objeto amado... Cf. FREUD, S. (1988c) p.254.<br />

485 ROSA, J.G. (1985) p.97-100.<br />

486 Idem, (1988) p.32-37.<br />

487 Cf. PERRONE-MOISÉS (2000) p.264-279.<br />

488 ROSA, J.G. (1988) p.32 .<br />

489 Idem, p.33.<br />

490 Idem .


utilizada do início ao fim do texto, dá à experiência o tom – ou o ritmo, repetição que<br />

acompanha o lamento melancólico – universal.<br />

A forte ligação afetiva com o pai fica igualmente evidente desde o início, no<br />

pedido do filho para ir junto: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” 491 E a<br />

dificuldade para esquecer, índice de sua melancolia, aparece em suas constatações: “E<br />

esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.” 492 , “A gente teve de se<br />

acostumar com aquilo. Às penas, que, a gente nunca se acostumou, em si, na<br />

verdade” 493 .<br />

Com o passar do tempo, não diminuem, mas aumentam os entraves para<br />

encontrar objetos substitutos deste amor: “Tiro por mim, que, no que queria e no que<br />

não queria, só com nosso pai me achava” 494 . Dificuldades que a família parece tentar<br />

superar; mas ele, não. A irmã se casa, a família se muda para longe; só ele, o filho,<br />

permanece. E o sentimento de culpa: “Sou homem de tristes palavras. De que era que<br />

eu tinha tanta, tanta culpa? (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto...” 495<br />

Culpa cujo ápice se dá com a tentativa de se substituir, tomar o lugar do pai na canoa;<br />

tentativa fracassada, pois identificar-se completamente com o pai seria a morte, com o<br />

que o filho se assombra, fugindo da empreitada, e adoecendo fisicamente com o<br />

impasse:<br />

491 Idem, ibidem.<br />

492 Idem, p.35.<br />

493 Idem, p.34.<br />

494 Idem, ibidem.<br />

495 Idem, p.36.<br />

...E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me<br />

tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele pareceu<br />

vir: da parte de além.<br />

Sofri o grave dos medos, adoeci. ..<br />

(ROSA, J.G., 1988, p.37.)


O final do conto reafirma a tristeza e o desejo de habitar este lugar, a terceira<br />

margem do rio: “Mas então que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem<br />

também, numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e eu rio<br />

abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.” 496 Faz pensar, também, na universalidade da<br />

condição subjetiva e a impossibilidade de uma identificação total com a figura paterna,<br />

ou ainda o limite de acesso a este local, fundo originário de onde brotaria a<br />

subjetividade... Neste sentido, a partir da idéia de Perrone-Moisés a respeito de uma<br />

orfandade particular contraposta a uma falta constituinte na origem da subjetividade<br />

como universal, é interessante pensar como Rosa reúne ambas as vertentes do<br />

inconsciente numa única imagem poética de uma terceira-margem comum a todos, na<br />

qual nosso pai e nossa mãe nos tornam irmãos de uma mesma orfandade, de uma<br />

origem desconhecida e de uma busca de retorno a este lá onde era.<br />

No entanto, há na rememoração de Riobaldo um movimento diferente dos outros<br />

dois contos. É que, apesar da travessia particular do primeiro e da tentativa do segundo,<br />

ambos terminam com a morte – objetiva, de Drijimiro, num caso; e o apelo de morte do<br />

filho, no outro – indicando a morte como único retorno possível a esta origem. No<br />

Grande Sertão, talvez pela forma com que é endereçado ao Outro, talvez por tratar-se<br />

de uma elaboração posterior do autor para um tema ensaiado nos contos; a narrativa se<br />

põe num movimento, num ir e vir, onde o real: “não está na saída nem na chegada: ele<br />

dispõe para a gente é no meio da travessia” 497 , onde a “mãe morte” 498 se espalha por<br />

toda a história; mas a travessia pode, sim, deslocar aquele impossível, a dor em aberto,<br />

sem suprimi-lo, mas na direção de uma possível alegria.<br />

Mais uma vez, estamos diante da imagem poética que, se na dimensão coletiva<br />

situava-se no cortejo dos justos em direção a uma outra justiça; aqui, encontra-se em<br />

496 Idem, ibidem.<br />

497 ROSA, J.G. (2001) p. 80.<br />

498 Idem, p.371.


uma imagem do movimento: a travessia, tristonha, porém, não apenas entrecruzada pela<br />

alegria: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais,<br />

no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!” 499 . Alegria<br />

construída durante: “Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre<br />

caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões” 500 . “Minha tristeza é uma volta<br />

em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da<br />

tristeza...” 501 .<br />

E, finalmente, alegria como o que permite a passagem: “O vau do mundo é a<br />

alegria” 502 . De acordo com o dicionário, vau significa tanto o local raso de um rio que<br />

pode ser atravessado a pé ou a cavalo, por onde os peões passam com o gado durante<br />

as cheias; como ocasião favorável, oportunidade 503 .<br />

Travessia de minha vida<br />

Mas o mor o infernal a gente também media.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

A imagem da travessia reaparece várias vezes ao longo do texto: desde a<br />

travessia do São Francisco, no primeiro encontro com Diadorim, quando o atravessar à<br />

canoa o rio imenso, ao lado do menino Reinaldo, “... o que até hoje, minha vida, avistei,<br />

de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia” 504 , é associado pelo jovem Riobaldo ao<br />

enfrentamento do medo, através da coragem que o fascina no outro, que marca a<br />

abertura de um caminho próprio, ao começo de um tempo: “Foi um fato que se deu, um<br />

dia, se abriu. O primeiro.” 505 Até a Guararavacã do Guacuí, lugar onde Riobaldo<br />

499 Idem, p.334.<br />

500 Idem, p. 323.<br />

501 Idem, p.168-169.<br />

502 Idem, p. 321.<br />

503 Cf. Houaiss, A. (2009).<br />

504 Idem, p. 122.<br />

505 Idem, p.116.


descobre o “amor mesmo amor, mal encoberto em amizade” 506 , onde ele menciona<br />

novamente a “Travessia de minha vida” 507 , confirmando ser a travessia reconstruída na<br />

rememoração, enigmaticamente marcada e remarcada por Diadorim.<br />

Entretanto, a construção deste caminho como travessia de sua própria vida<br />

requer um confronto com a solidão, com a qual Riobaldo se depara nos vários<br />

momentos em que tenta convencer o amigo a trocar a guerra por uma vida juntos, e o<br />

encontra irrevogável, revendo-se diante da escolha pela vida jagunça – “eu achava que<br />

não tinha nascido para aquilo” 508 – ao lado de um amor muitas vezes visto como<br />

impossível: “Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de sozinha travessia” 509 .<br />

A travessia da rememoração de Riobaldo se apresenta na dupla vertente entre o<br />

lembrar, recordar, recompor, “remembrar” 510 “as passagens emendadas” 511 da vida, e<br />

o esquecimento, na medida em que a triste travessia é esquecer Diadorim:<br />

... Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me<br />

dava entrante uma tristeza no geral, um prazo de cansado. Mas eu não<br />

meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia,<br />

pois então era preciso... (ROSA, J.G., 2001, p. 248).<br />

No trabalho de luto que se sobrepõe à melancolia de Riobaldo, e que compõe a<br />

rememoração, iniciada a partir da morte de Diadorim, o mais difícil e doloroso é este<br />

retomar cada lembrança, cada fragmento de memória que promove um reencontro com<br />

o objeto perdido, ter de rever para ressignificar, dar novos sentidos no sentido do<br />

desligamento. Em outras palavras, o sofrimento não é simplesmente perder, mas<br />

reencontrar, sabendo que foi perdido, como afirma o psicanalista Juan David Nasio:<br />

...Admito-a, mas não situo a dor como diretamente resultante da<br />

separação. Não; penso, ao contrário, que a dor surge no momento em<br />

506 Idem.<br />

507 Idem, p.305.<br />

508 Idem, p.82.<br />

509 Idem, p.200.<br />

510 Em “Nenhum, Nenhuma”. Cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.<br />

511 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 235.


que há um superinvestimento da representação do objeto amado e<br />

atualmente perdido. O que dói no trabalho de luto não é tanto a<br />

ausência do ente querido, mas o encontro, o investimento e o<br />

superinvestimento da representação psíquica que temos do ser amado<br />

e perdido. Em seu texto, Freud fala em ligação e desligamento das<br />

representações do objeto perdido; creio, exatamente que a dor se<br />

produz quando localizamos e delimitamos mais de perto (...) o objeto<br />

perdido...(NASIO, J.D., 1991, p.101).<br />

Lembrar e esquecer Diadorim constitui, portanto, dimensão importante da<br />

rememoração: “Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivendo o que me faltava.<br />

Tão mixas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e do reperdido” 512 .<br />

Neste trabalho de elaboração 513 , onde o tempo não é linear, mas narrado conforme a<br />

rememoração, aos saltos, sobretempos, falhas, lacunas, num processo movido entre a<br />

lembrança e o esquecimento, entre a melancolia e a alegria, “entre a paz e a<br />

angústia” 514 : “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica<br />

demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!” 515 .<br />

As duas travessias do Liso do Sussuarão, a primeira interrompida, no início; e<br />

outra concluída, quase no fim do romance, mostram-se emblemáticas do processo que<br />

Lacan chamará a travessia do fantasma, noção bastante complexa e recorrente em todo<br />

seu pensamento 516 que, aqui, interessa na acepção da fantasia construída pelo sujeito<br />

512<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />

513<br />

Segundo Luiz Hanns, o termo utilizado por Freud, durcharbeitein (verbo) ou durcharbeitung<br />

(substantivo), expressa a idéia de “trabalhar-se através (durch) de alguma tarefa” ou “percorrer uma<br />

tarefa do início ao fim”, sem pretensão de triunfar ou conquistar, o que difere um pouco da tradução em<br />

português elaboração, que pode dar a idéia de um processo de aperfeiçoamento, digestão ou assimilação,<br />

que se distancia do uso em Freud e Lacan, e que destacamos, aqui, em Rosa como travessia, pois o luto<br />

seria muito mais atravessado, do que digerido ou eliminado. A noção, encontrada por toda a obra<br />

freudiana, possui esta conotação no texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, como elaboração das chamadas<br />

resistências, daquilo que se repete num processo de análise, como constituinte do próprio processo e,<br />

numa primeira acepção, algo cujo enfrentamento permite que o processo de análise prossiga: “Esta<br />

elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma<br />

prova de resistência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores<br />

mudanças...” Cf. FREUD, S. (1987c), p. 171; HANNS, L. (1996) p.198-204.<br />

514<br />

Em “Nenhum, Nenhuma”, cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.<br />

515<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 329.<br />

516<br />

A noção de fantasia como fator determinante na memória é percebida por Freud a partir da clínica, e<br />

pode ser situada teoricamente, na medida em que ele abandona a concepção de sedução como origem da<br />

histeria, declarando a Fliess (Carta 69 - 1897): “não acredito mais em minha ‘neurótica’”. Cf. FREUD,<br />

S. (1988d) p.309. A constatação de que não era de uma realidade objetiva que falavam suas pacientes a<br />

respeito da sedução paterna, e sim da fantasia inconsciente, marca uma reviravolta em sua teoria e


como um trauma ligado à sua origem, que faz fronteira com o real, pois o fantasma<br />

encerra uma opacidade própria ao real, uma “entrada para o real” 517 , na medida em<br />

que o fantasma é o que pode “fornecer ao sujeito uma experiência da ordem da não-<br />

identidade e do descentramento próprio ao Real” 518 .<br />

O Liso do Sussuarão, descrito por Riobaldo como deserto intransponível: “pra<br />

lá, pra lá, nos ermos” 519 (note-se novamente o lá), um vazio, um oco cheio de nada,<br />

traz todas as marcas de seu fantasma pessoal e inconsciente: “que o Liso do Sussuarão<br />

não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, um escampo dos<br />

infernos”(...) “Não era possível!” 520 . Atravessar o Liso, desta forma, constitui metáfora<br />

da travessia do fantasma, ou do confronto com o inominável, também apresentado na<br />

cena do pacto, confronto com o demo, sobre o qual – curiosamente – Riobaldo se<br />

questiona: “Atravessei meus fantasmas?” 521<br />

Não cabe tentar desvendar a travessia do Liso nem o pacto, pontos cegos,<br />

umbigos da idéia 522 no enredo, veja-se a caracterização das Veredas Mortas, local do<br />

pacto, como fundo imemorial: “aquele chão gostaria de comer o senhor; e ele cheira a<br />

clínica. A partir deste momento, a fantasia adquire lugar preponderante na constituição da lembrança,<br />

dando lugar a uma concepção de memória ligada à lembrança como construção do sujeito, diferenciada<br />

de uma realidade objetiva. Cf. FREUD, S. (1975).<br />

A visão de Lacan, por sua vez, interessa por partir do fantasma como aquilo que não apenas se repete<br />

numa análise durante seu percurso, sentido já exposto no texto acima, mas no desenvolvimento dado por<br />

Freud posteriormente, quando Freud o percebe como algo que resta, um irredutível, mesmo ao final de<br />

qualquer processo de análise, o que Lacan atesta como ligado ao trauma: “Nossa experiência nos põe<br />

então um problema, que se atém a que (...) vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a<br />

nós. O trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto desvelado”. Cf. LACAN, J. (2008b)<br />

p.60.<br />

517 LACAN, J., Apud SAFATLE, V. (2006) p.206. A idéia, aqui, é do fantasma como cena criada a partir<br />

dos primeiros objetos perdidos (ou cedidos, como lembra Safatle em seu livro, assim chamados por<br />

Lacan), que dizem respeito portanto a este encontro não-idêntico e não totalmente assimilável com o<br />

real, o que pressupõe, por sua vez, que o fantasma não seja totalmente submetido à estrutura<br />

fantasmática, que ele comporta algo da não-identidade do real exposta acima, que se relaciona à pulsão<br />

e à repetição.<br />

518 SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />

519 ROSA, J.G. (2001) p. 50.<br />

520 Idem, p. 50.<br />

521 Idem, p.499.<br />

522 Idem, p. 579.


outroras... Uma encruzilhada, e pois!” 523 Por outro lado, vale, sim, destacar alguns<br />

pontos demarcados na memória de Riobaldo, que entrecruzam, até certa medida, a<br />

questão do pacto e da travessia, com o amor por Diadorim e a questão do medo que, por<br />

sua vez, perpassam – diferentemente – a rememoração.<br />

Ao conhecer Diadorim, o que primeiro chama a atenção é que Riobaldo<br />

encontra-se desvalido, destituído, pedindo esmola a mando de sua mãe. Após a travessia<br />

do São Francisco ao lado do Menino, imediatamente após o Reinaldo mencionar a<br />

coragem que herdou do pai, (que mais tarde será reconhecida por Riobaldo como um<br />

“mandado de ódio” 524 ): “Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito<br />

diferente” 525 . É então que Riobaldo (que então não conhecia o próprio pai), não sem<br />

interrogar-se a si mesmo, identifica-se com esta fala e, ao rememorar, elege o<br />

enfrentamento de seu medo como marco inicial de sua travessia: “E eu não tinha medo<br />

mais. Eu? (...) eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável” 526 .<br />

Apesar disto, o medo é uma constante pelo sertão e pelo discurso de Riobaldo,<br />

fazendo-se medo do demo. Se, pouco antes do pacto, o medo retorna, e ele se diz<br />

enjoado daquela realidade, ao encontrar os fazendeiros da região, sem um chefe<br />

confiável, desconfiado de Zé Bebelo, sozinho, questionando sobre o sentido de<br />

permanecer jagunço, sem ter realizado o amor por Diadorim: “Eu queria minha vida<br />

própria, por meu querer governada. A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal,<br />

por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho” 527 . Após o<br />

pacto, ao passar de jagunço a chefe do bando, ele se refere àquele sofrimento como<br />

queixas antigas, demarcando uma mudança de posição não apenas de estatuto social,<br />

mas subjetivo.<br />

523 Idem, p. 417.<br />

524 Idem, p.444.<br />

525 Idem, p.125.<br />

526 Idem, ibidem.<br />

527 Idem, p.370.


Outro marco importante: anterior ao pacto com o demo, houve o pacto sempre<br />

reafirmado com Diadorim, de lutarem juntos, e de vingança pela morte de seu pai, Joca<br />

Ramiro, matando o Hermógenes. É quando este pacto, de certo modo, se vê ameaçado<br />

pelo contexto acima, que Riobaldo tenta o pacto com o demo. Mas a questão da vida<br />

desgovernada permanece, pois agora quem ameaça mandar é o demo. Como chefe,<br />

Riobaldo se vê leve, voltado para a ação, mas vulnerável ao Mal, perdendo o controle<br />

no encontro com o fazendeiro seo Ornelas e o lázaro. Diante desta conjuntura, outro<br />

ponto remarcado aqui é a intervenção de analista do compadre Quelemén, ao afirmar<br />

que o caso do delegado Hilário, contado pelo seo Ornelas, cuja moral da história era –<br />

“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém ”528 –<br />

tinha muito a ver com a história de Riobaldo:<br />

... Mas só porque o compadre meu Quelemén deduziu que os fatos<br />

daquela éra faziam significado de muita importância em minha vida<br />

verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, que com<br />

a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí narro. O senhor me<br />

releve e suponha. (ROSA, J.G., 2001, p. 477).<br />

Todas estas passagens associam o atravessar do fantasma ao discernimento dos<br />

aspectos imaginários, projetados tanto na figura do Hermógenes, temido e enfrentado,<br />

como na de Diadorim, admirado e desejado, bem como a de Medeiro Vaz e Zé Bebelo<br />

(que Riobaldo menciona ao fazendeiro Ornelas, logo ao se apresentar), todos,<br />

caracterizados como pequenos outros em quem Riobaldo se espelha na busca por si<br />

mesmo. Não por acaso, voltado para o tempo de jagunço anterior ao pacto e à travessia,<br />

ele indaga: “Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda<br />

esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia” 529 .<br />

Atravessar o fantasma, portanto, como o deserto do Liso, requer coragem: “O<br />

sertão tem medo de tudo. Mas hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que ele<br />

528 ROSA, J.G. (2001) p. 476.<br />

529 Idem, p. 407.


é bondade adiante.” 530 “O que ela [a vida] quer da gente é coragem” 531 . Coragem,<br />

segundo a leitura lacaniana, de deslocar-se do trauma à fantasia 532 , isto é, de confrontar-<br />

se com a dimensão fantasmática do trauma, questionando-a em seu estatuto de ordem<br />

imaginária, criação do sujeito, o que novamente distancia a memória da objetividade, ao<br />

aproximá-la da fantasia. Algo que é entrevisto no questionamento de Riobaldo sobre o<br />

Hermógenes, associado, como Diadorim, à neblina e ao fantasma:<br />

... Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes!<br />

Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por<br />

estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire<br />

veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um<br />

destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim,<br />

mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era<br />

que era o realce meu – ? – eu carecendo de derrubar a dobradura dele,<br />

para remedir minha grandeza façanha!...” (ROSA, J.G., 2001, p. 556).<br />

Igualmente interessante é constatar como a coragem e o mover-se, o dar um<br />

passo adiante, pode tornar o que parece impossível em possível, conforme as falas do<br />

Urutú Branco antes da travessia: “O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se<br />

sentia no poder de fazer” 533 . E após o suposto pacto: “Eu caminhei para diante. Em, ô<br />

gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível” 534 . Evoca, portanto, uma<br />

outra experiência, experiência de encontro com o real, que – se não torna tudo, como<br />

imagina Riobaldo, possível – faz com que algo se desloque (como a percepção de um<br />

deserto nem tão terrível assim, mais adiante) juntamente com a própria travessia,<br />

530 Idem, p. 329.<br />

531 Idem, p. 334.<br />

532 O que é importante apontar nesta noção, para esta análise, é, segundo Lacan, a correlação entre aquilo<br />

que se repete como trauma, com a fantasia, que funciona como uma espécie de tela, cena, para o real: “O<br />

lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela<br />

que dissimula algo de absolutamente primeiro”. Cf. LACAN, J. (2008) p.64. Outra observação<br />

importante diz respeito ao aspecto imaginário de Diadorim, como um dos aspectos, não o único, pois já<br />

associei este amor como objeto da pulsão, do estranho em Diadorim. Diadorim pode ser considerado<br />

ligado ao fantasma de Riobaldo, pois o mesmo objeto pode aparecer ao sujeito ligado à dimensão da<br />

pulsão, do real, à dimensão simbólica ou ainda imaginária. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />

533 Idem, p. 61.<br />

534 Idem, p. 451.


fazendo lembrar a afirmação de Collot 535 , de um encontro com o real que a poesia e os<br />

poetas não cessam de evocar, e que esta abordagem do fantasma como atravessável<br />

também acentua 536 .<br />

A travessia faz com que – lá, de dentro do deserto – e só depois, Riobaldo<br />

redimensione a impossibilidade em atravessá-lo: “O que era – que o raso não era tão<br />

terrível?” 537 Dali, ele pode ver “um feio mundo, por si, exagerado” 538 , e surpreender-se<br />

com a existência de vida naquele estranho local; com os insetos, aranhas, abelhas: “No<br />

que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas” 539 . Uma jornada<br />

que pressupõe arte, cujo movimento é freqüentemente associado à dança: “Mas o<br />

demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que<br />

chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio” 540 .<br />

A travessia ressurge, ainda, na última página do romance, quando Riobaldo põe<br />

fim à sua fala para o senhor que o escuta, na forma da inconclusa resposta à questão do<br />

demo, como travessia do homem humano, à qual se segue o símbolo (∞), imagem<br />

existente desde gravuras rupestres, utilizada no tarô como equilíbrio entre os opostos,<br />

nomeada pela letra grega leminiscata, como o símbolo matemático do infinito, já<br />

apontado por Ettore Finazzi-Agrò 541 .<br />

Em perspectiva, o símbolo pode ser visto como a curva, tira ou Banda de<br />

Moebius, na forma comparável a de um anel torcido, onde o seu lado direito coincide<br />

com o avesso, e que constitui justamente um dos modelos topológicos utilizados por<br />

535 Cf. Cap.2.<br />

536 Esta perspectiva se opõe à leitura exclusivamente estruturalista do real como impossível, para pensálo<br />

como experiência do real, experiência de confronto com a não-identidade, o descentramento, o<br />

desconhecido, o inominável, distinta do imaginário e da apreensão simbólica. Encontro esta ênfase na<br />

leitura de Lacan de Vladimir Safatle e em algumas formulações de M.D. Magno, por exemplo, que<br />

considero, por este motivo, bastante próximas da literatura de Rosa.<br />

537 ROSA, J.G. (2001) p. 524.<br />

538 Idem, ibidem.<br />

539 Idem, ibidem.<br />

540 Idem, p. 325.<br />

541 Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.29.


Lacan para falar da memória e da subjetividade 542 , intrinsecamente relacionado à noção<br />

de a posteriori, (Nachträglichkeit, em Freud), aprés-coup da significação, ou<br />

simplesmente só-depois (tradução originalmente proposta por M.D. Magno). O a<br />

posteriori diz respeito aos efeitos da significação, construídos só-depois, a esta volta ou<br />

dobra do tempo sobre si mesma, presente na forma do romance, cujo fim está inserido<br />

desde o início, na dupla face onde o sujeito simultaneamente narra e é narrado, e a volta<br />

atrás coincide com o passo adiante 543 , dobra do tempo que Riobaldo associa inúmeras<br />

vezes a Diadorim como trauma:<br />

... Às voltas e revoltas, eu pelejava contra o meu socorro. Hoje, eu sei;<br />

pois sei, por que. (...) Só que andava às tortas, num lavarinto. Tarde<br />

foi que entendi mais do que meus olhos, depois das horrorosas<br />

peripécias, que o senhor vai me ouvir. Só depois (grifo nosso), quando<br />

tudo encurtou... (ROSA, J.G., 2001, p.517).<br />

Dos fracassos da memória ao esquecimento<br />

Mas tampouco nada se parece se parece menos com a Balbec real do que<br />

aquela com que muitas vezes sonhei...<br />

MARCEL PROUST<br />

Somente a partir de uma expectativa de uma memória bem-sucedida, de uma<br />

positividade total da lembrança, pode-se falar em fracasso na recordação 544 , é preciso<br />

frisar. Entretanto, de acordo com a psicanálise, nos pontos em que a memória falha,<br />

542 Lacan usa o termo transfinito (do matemático Georg Cantor) para distanciar-se do caráter totalizante<br />

do infinito, ao referir-se ao que ultrapassa o finito. Cf. LACAN, J. (2003); (2008). Entretanto, conforme<br />

já mencionamos, o tema do infinito era uma idéia cara a Rosa, sem que, a nosso ver, em sua obra, isso<br />

constitua objetivamente uma definição, surgindo muito mais como abertura, como também parece propor<br />

a análise de Finazzi-Agrò. Mas o infinito pode ser lido também, numa acepção literal e diversa, como o<br />

não-finito da finalidade sem fim do objeto poético, cujo excesso de sentidos se opõe ao fechamento ou<br />

finitude da lógica do mercado. Cf. LINS, V. (2005) p.7.<br />

543 “... a verdade, implícita na fala do narrador, é alcançada graças a uma volta atrás”. 543 Cf. FINAZZI-<br />

AGRÒ, E. (2001) p.43. Cabe ressaltar de que a verdade será tomada nesta abordagem como verdade<br />

parcial, subjetiva, construída nesta fala endereçada do narrador ao senhor-leitor.<br />

544 Em “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, de 1898, um dos seus textos iniciais, Freud busca<br />

compreender os processos psíquicos em jogo nos lapsos de memória, utilizando-se de exemplos<br />

autobiográficos a respeito do esquecimento de nomes, e de como estes “equívocos” podem ser<br />

determinados pelo inconsciente. No texto freudiano, lado a lado com a proposta de uma psicanálise que<br />

visa corrigir os recalques, resgatar as lembranças perdidas através da recordação, como lembra Coimbra,<br />

aparecem expressões como: um “inacessível à memória” e “lacunas da memória”, além da expressão<br />

referida ao fracasso, que acenam para uma outra visada sobre o tema. Cf. FREUD, S. (1994a);<br />

COIMBRA, J.C. (1997) p.120.


erra, desvia, é que se insinua a noção de algo que resta não-totalmente recoberto pela<br />

rememoração ou pela reminiscência criadora, isto é, pela noção de uma reconstrução de<br />

uma história através do rememorar. Neste sentido, um aspecto já apontado no processo<br />

de rememoração de Riobaldo é o de que a temporalidade não é linear: “Em desde<br />

aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés<br />

nem cabeça, por falta de sisudez e alegria” 545 .<br />

Desta forma, a memória não se apresenta de uma só vez, nem segue uma única<br />

direção do tempo. De acordo com Freud, “ela se desdobra em vários tempos” 546 . Isto<br />

significa que não há uma seqüência ou seta única do tempo, na direção passado-<br />

presente-futuro, ao contrário, os tempos podem coabitar ou fundir-se num mesmo<br />

tempo, e o passado é determinado pelo presente, nas voltas que o texto dá, rompendo<br />

com a cronologia, em mais uma analogia com o inconsciente freudiano, cujos processos<br />

são descritos como intemporais, ou seja, não são ordenados cronologicamente 547 . A<br />

referência ao tempo seria dada posteriormente, pelo consciente, o que faz com que a<br />

rememoração se assemelhe a um jogo onde as cartas se embaralham para Riobaldo:<br />

“Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?” 548 O relato de<br />

suas memórias é composto de múltiplas camadas do tempo, de diferentes saltos no<br />

tempo, onde o narrador interpõe recordações, num ir e vir da elaboração, do tecer a<br />

história.<br />

A noção de lembranças encobridoras diz respeito às formas pelas quais o<br />

inconsciente pode encobrir, condensando, sobrepondo ou deslocando a recordação 549 .<br />

545 ROSA, J.G. (2001) p.260-261.<br />

546 FREUD, S. (1988e), p. 281.<br />

547 Idem, (1988a) p.214.<br />

548 ROSA, J.G. (2001) p.198.<br />

549 FREUD, S. (1994b). O que é importante frisar em torno do conceito é a distinção entre memória e<br />

experiência, ou o abandono da concepção de memória ligada aos fatos verídicos, à realidade objetiva, em<br />

prol de uma memória ligada à verdade do sujeito, em outras palavras uma memória determinada pelo<br />

inconsciente. Novamente, há a afirmação de que a memória é constituída pela fantasia através de resíduos<br />

do passado.


No linguajar de Riobaldo, os lapsos e as lembranças encobridoras seriam as peças que a<br />

memória nos prega, os descaminhos por onde os labirintos da memória nos fazem errar.<br />

É assim que o narrador confunde nomes, como o da encruzilhada onde ocorre o suposto<br />

pacto, no princípio denominadas Veredas Mortas, que – ao final da narrativa, após a<br />

perda de Diadorim, tendo adoecido gravemente e, de certo modo, tendo escolhido<br />

continuar a viver – Riobaldo descobre chamarem-se, na verdade, Veredas Altas,<br />

demonstrando, além disso, uma associação dos nomes dos lugares de acordo com o<br />

sentido que adquirem na memória do personagem 550 .<br />

Durante a rememoração de Riobaldo, é freqüente a constatação do narrador de<br />

que tanto o passado lhe escapa – permanecendo como enigma ou mistério – bem como a<br />

de que ele não se esgota nesta tentativa de recuperação, produzindo sempre um resíduo.<br />

Ao deslocamento do narrador pelo espaço, se acrescenta esta errância das recordações,<br />

dos nomes, dos equívocos, num redemoinho (cuja imagem de uma espiral do tempo é<br />

também a do a posteriori freudiano, no qual, do presente, ele ressignifica o passado, e o<br />

que deste retorna como resto não-recuperado, incide novamente sobre o presente e o<br />

futuro, numa volta adiante...), e cujo excesso nos leva a subverter a noção de fracasso,<br />

para a concepção de que a memória toda ela é constituída por estas peças, pela<br />

fantasia 551 . E de que toda lembrança seria encobridora, desvinculando-se da noção de<br />

experiência ou verdade, para uma verdade construída pelo sujeito 552 .<br />

Pois, só depois, vários anos depois, quando o passado volta uma segunda vez, e<br />

ele reconta sua história ao visitante silencioso, Riobaldo assinala o caráter fantasmático,<br />

ilusório, de suas lembranças: “mocidade é tarefa pra mais tarde se desmentir” 553 . E<br />

com ele, a constatação de que todo o trabalho de rememoração coloca em xeque a<br />

550 Cf. capítulo 4.<br />

551 Como se vê no decorrer da trajetória freudiana, por exemplo em “Construções em Análise”, de 1920,<br />

e principalmente em toda a obra lacaniana. cf. FREUD, S. (1975).<br />

552 Cf. FREUD, S. (1975).<br />

553 ROSA, J.G. (2001) p.39.


ecuperação do tempo perdido, pois a lembrança se torna deslembrança: “lembro,<br />

deslembro” 554 .<br />

O que todos estes índices do “fracasso” da memória apontam seria, sobretudo,<br />

para um esquecimento não-incorporado na lembrança, que Riobaldo afirma quando se<br />

diz incapaz “de dar narração” 555 : “o que sinto, e esforço em dizer não consigo...” 556<br />

Esta diferença entre o esquecimento como simples apagamento da lembrança e uma<br />

dimensão constituinte do esquecimento talvez possa ser entrevista nas expressões do<br />

autor deslembro e não-memória, abordadas no próximo capítulo. Por ora, é importante<br />

apenas frisar que este esquecimento como ponto de enigma da origem seria também o<br />

que separa esta concepção de memória da noção de arquivo clássica 557 .<br />

Depois após: divisão do tempo e do sujeito<br />

Aí era um tempo no tempo.<br />

J. G. ROSA.<br />

“Aqui eu podia pôr ponto” 558 : a frase é dita por Riobaldo no meio do livro. Ali,<br />

tem lugar uma espécie de balanço da história contada, na qual ressurge a idéia de que<br />

tudo já teria sido dito na primeira metade. E é com frases curtas, numa alteração<br />

554 Idem, ibidem, p.42.<br />

555 ROSA, J.G. (2001) p.221.<br />

556 Idem, p. 305.<br />

557 Cf. FREUD, S. (1994a); DERRIDA, J. (2001); BIRMAN, J. (2008); BENJAMIN, W. (1986a).<br />

Para uma aproximação com uma discussão mais sistemática sobre a questão do arquivo, que<br />

escapa ao projeto desta tese, deixo apenas algumas indicações que, a meu ver, distanciam a teoria<br />

freudiana da memória da noção de arquivo clássica: a primeira, já comentada no primeiro capítulo seria<br />

a noção de resíduo, pois difere da idéia de memória como registro fiel da realidade, armazenamento. A<br />

ela, acrescento a perspectiva deste esquecimento constituinte da memória, ligado ao inominável ao<br />

imponderável da origem, e não apenas como apagamento da memória necessário à capacidade de novos<br />

armazenamentos, como também ressalta Birman sobre a crítica de Derrida à teoria freudiana. A estes<br />

dois aspectos somem-se, entre outras, a comparação freudiana do trabalho de análise à escavações,<br />

ruínas, das camadas do tempo; a idéia da memória como fantasia, construção, no processo de análise,<br />

que Freud expressa como se o analista pudesse emprestar um passado ao analisando, e finalmente a<br />

idéia de que a beleza das coisas é que elas passam, em “Sobre a Transitoriedade” ; que, somados,<br />

constituem fortes argumentos para uma diferenciação entre a teoria freudiana e a concepção positivista<br />

de arquivo como registro de lembranças estável, centrado, organizado e linear. Cf. FREUD, S. (1975);<br />

(1988f); BIRMAN, J. (2008); DERRIDA, J. (2001).<br />

558 ROSA, J.G. (2001) p. 324.


sensível do ritmo anterior, em ritmo de dansa (como ele escreve), que o narrador abre<br />

seu saquinho de relíquias, e retira seus fragmentos, retorcendo e interrogando seu<br />

passado nas cinco páginas seguintes a este ponto enigmático:<br />

... Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (...) Tenho saquinho<br />

de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser...<br />

... Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus<br />

gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... (...) O São<br />

Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha mãe, fez<br />

uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar<br />

arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou,<br />

depois de queimar sua casa-de-fazenda. (...) Zé Bebelo me alumiou.<br />

Zé Bebelo ia e voltava... Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir,<br />

toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso assim, é na paridade.<br />

O diabo na rua... (ROSA, J.G., 2001, p. 325-326-328).<br />

Condensada num único parágrafo que toma quase quatro destas cinco páginas,<br />

no mesmo balanço, a rememoração vai e vem, deslizando por fatos e personagens de<br />

sua vida, sem obedecer a nenhuma cronologia, onde o que se destaca é este anúncio do<br />

fim ainda no meio, sinalizando que os tempos da história estariam todos contidos no<br />

entrecruzamento do texto anterior, mas só percebidos neste instante em que o narrador<br />

vai e volta do passado, nesta curva do tempo. Não por acaso, a imagem do redemoinho<br />

é insinuada aqui (o diabo na rua...), na forma de uma espiral que nos reenvia a esta<br />

noção traçada e retraçada por Freud e Lacan, de um tempo desdobrado, ou só-depois da<br />

significação.<br />

A noção de a posteriori ou só-depois da significação articula tempo e memória,<br />

pois, ao supor uma significação dada ao trauma num tempo posterior ao evento<br />

recordado 559 , Freud estabelece um tempo desdobrado para a significação, onde só-<br />

depois o sujeito confere um sentido traumático a uma lembrança. O que se coloca em<br />

cena, portanto, além do distanciamento entre a memória e o acontecimento, entre a<br />

559 É difícil estabelecer uma data exata para os conceitos, numa obra que foi permanentemente revisada<br />

pelo seu autor, mas pode-se pensar na “Carta 69” de Freud a seu amigo Fliess, como um marco, uma<br />

reviravolta no pensamento que, ao deslocar a noção de sedução para a idéia de um trauma psíquico,<br />

situa na lembrança, e portanto só-depois, no presente da rememoração, o sentido traumático da<br />

recordação. Cf. FREUD, S. (1988d); COIMBRA, J. C. (1997).


memória e a realidade objetiva – já que não é o evento em si que se torna motivo do<br />

trauma, mas sim a forma como ele é lembrado por alguém: “Eu me lembro das coisas,<br />

antes delas acontecerem...” 560 – é esta noção de um tempo dividido em dois, que<br />

Riobaldo, além de possivelmente inspirar a tradução de M.D. Magno 561 (como se viu,<br />

só-depois é uma fala do jagunço), nos oferece através de outra expressão desdobrada,<br />

igualmente ligada ao trauma:“Bem que eu conheci Otalícia foi tempos depois; depois se<br />

deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após.”(Grifo<br />

nosso) 562 .<br />

O a posteriori consiste, em seu aspecto mais conhecido, naquilo que confere à<br />

rememoração a forma de uma ressignificação da história, que possibilita ao sujeito uma<br />

construção de sua história:<br />

... Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir<br />

relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa<br />

assim se ata, a gente sente mais o que o corpo a próprio é: coração<br />

bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. (ROSA, J.G.,<br />

2001, p. 154).<br />

Entretanto, o outro aspecto já insinuado do só-depois diz respeito ao jamais 563 ,<br />

ao irrecuperável do tempo perdido. A divisão do tempo coloca em jogo uma divisão do<br />

sujeito que leva o narrador a uma incessante interrogação sobre si mesmo diante da<br />

dobra do tempo: “Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só<br />

obedecendo? Pois, não era?” 564 Como tentei mostrar, esta divisão se acompanha de<br />

uma construção formal específica: “Ah, digo ao senhor: dessa noite não esqueço.<br />

560<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 47. A frase é retomada por Chico Buarque em seu último romance, Leite<br />

Derramado, que desenvolve, através das memórias de um narrador centenário e senil, idéias bastantes<br />

próximas sobre o tempo e a memória. Cf. BUARQUE, C. (2009).<br />

561<br />

O estudo de Magno sobre Rosa veio a constituir sua tese de doutorado no curso de Letras pela UFRJ.<br />

Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985).<br />

562<br />

Idem, p. 173.<br />

563<br />

Sobre estes dois aspectos do a posteriori, ver o capítulo da dissertação de mestrado em Teoria<br />

Psicanalítica da UFRJ, intitulado “O Só-Depois e o Jamais”, em FLANZER, S.N. (1998).<br />

564<br />

Idem, p.223.


Posso?” 565 Onde a reiteração das perguntas desfazem, desafiam a afirmação anterior,<br />

sendo dirigidas tanto ao um passado esquecido da história, “cidade acaba com o sertão.<br />

Acaba?” 566 ; como à sua experiência particular: “dessa noite não esqueço. Posso?” 567 .<br />

Ambas dizem respeito a uma suspensão do tempo, a um passado que não passa,<br />

seja na forma do sertão que permanece, seja na lembrança traumática da primeira noite<br />

de guerra. Cisão do sujeito que se interroga, e divisão do tempo; pois, nesta indagação,<br />

o passado é interrogado a partir do presente 568 . Na tentativa de passagem de um tempo a<br />

outro, algo não coincide, algo de refratário que se produz como resto não-integrado à<br />

história, resíduo que vem a ser uma das definições de real em Lacan, e que persiste<br />

impulsionando o próprio rememorar 569 , o mesmo real que roda e põe diante, e que se<br />

articula como repetição, movendo o rememorar em nova volta (daí a forma da espiral do<br />

tempo), na qual, contudo, o narrador não se vê mais identificado a si mesmo: “O senhor<br />

tolere e releve estas minhas palavras de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia,<br />

sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais” 570 .<br />

A dimensão de resto se nota, ainda, na indagação sempre reformulada e nunca<br />

completamente respondida, promovido sobretudo pelo silêncio do interlocutor:<br />

... E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era traição. Era? Hoje eu<br />

sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros.<br />

Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era.<br />

Agora, depois mais do tudo que houve, não foi? (ROSA, J.G., 2001, p.<br />

215).<br />

A divisão ou dobra do tempo coloca em questão uma idéia de memória que não<br />

se resume na ressignificação do passado, mas aponta para algo que insiste como um<br />

565<br />

Idem, p.225.<br />

566<br />

Idem, p.183.<br />

567<br />

Idem, p.225.<br />

568<br />

Para uma análise específica sobre este duplo aspecto do trauma na obra de Ruth Klüger, cf.<br />

TRÔCOLI, F. (2010).<br />

569<br />

Cf. LACAN, J. (2008b). E: “Que no intervalo deste passado que ele já é no que se projeta, um buraco<br />

se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui o que basta, para suspendê-lo<br />

da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno.” Cf. LACAN, J. (1996) p.57.<br />

570<br />

Idem, p. 204.


vazio; que, a cada vez, resta como não-realizado, não-recuperado, que impulsiona a<br />

rememoração. É, portanto, a partir da noção deste tempo desdobrado que a<br />

rememoração estabelece uma relação com o esquecimento, na medida em que a própria<br />

rememoração insiste numa recuperação da lembrança jamais integralmente bem-<br />

sucedida:<br />

... Eu atravesso as coisas e não vejo – e no meio da travessia não vejo!<br />

– só estava entretido era na idéia dos lugares de saída e de chegada.<br />

Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas<br />

vai dar noutra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso<br />

do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.51.).<br />

A noção de um esquecimento constituinte é pensada por Freud e Lacan através<br />

das diversas formulações que apontam, todas, para o inconsciente: o umbigo do sonho,<br />

a pulsão e o real como concepções-limite entre a representação e uma exterioridade. Em<br />

relação à rememoração, o inconsciente é definido como aquele lá onde era que se<br />

insinua através da repetição, mas na forma de um além, uma ausência ou hiância 571 ,<br />

suposto, só depois, como ponto de origem, enigma que em última instância se confunde<br />

com o próprio sujeito. Sujeito que se constitui não apenas dividido e descentrado, mas<br />

fundado sobre este esquecimento que assegura um limite à regressão infinita da<br />

rememoração: “sou do deslembrado” 572 .<br />

Ponto final e inaugural que não escapa ao questionamento de Riobaldo, quando<br />

se lembra da Guararavacã do Guacuí, o lugar onde seu amor se revela: “Será que tem<br />

um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar pra trás?” 573 E ponto<br />

enigmático – ao qual a cena do pacto alude (lembre-se do registro das Veredas Mortas,<br />

local do pacto: “Ali eu tive limite certo” 574 ) – levando-o a afirmá-lo também, quando se<br />

571 LACAN, J.(2008) p.59.<br />

572 ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />

573 ROSA, J.G. (2001) p.305<br />

574 Idem, p.418.


questiona por que não matou o Hermógenes antes, quando esteve comandado por ele,<br />

tendo-o a seu lado: “Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para<br />

trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para<br />

diante...” 575<br />

Se o a posteriori envolve uma superposição de tempos, onde a rememoração é<br />

determinada pelo desejo presente, um retorno que não é ao passado cronológico, mas ao<br />

“que é mais inicial e autêntico em mim” 576 ; também acena para o futuro, para Lacan, o<br />

tempo verbal do futuro anterior 577 , que corresponderia em língua portuguesa, ao futuro<br />

do presente composto, o tempo do que terá sido. Pois lá seria simultaneamente o local<br />

do porvir, no qual o retorno: “Não é um passo atrás, na descoberta de uma origem,<br />

mas, insisto, um retorno adiante, uma entrada mais adiante no país natal, em suma, o<br />

retorno do recalcado” 578 .<br />

Riobaldo tem sua versão sobre a pulsão como força constante 579 , que faz com<br />

que o passado retorne num passo à frente: “Os dias que são passados vão indo em fila<br />

para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os<br />

cavalos se arraçôam” 580 . O retorno do sertão faz com que o trabalho da rememoração<br />

caminhe novamente: “Mas o senhor vá avante (...) eu queria decifrar as coisas que são<br />

importantes” 581 . Imagem semelhante à dos cavalos se vê no que move o desejo de<br />

realização do pacto: “Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras<br />

do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios” 582 .<br />

575 Idem, p.229-230.<br />

576 NASIO, J.D. (1991) p.105.<br />

577 “Isto poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade<br />

que tem no seu presente o futuro anterior”. Cf. LACAN, J. (1996) p.57.<br />

578 Idem, (1988) p.28.<br />

579 “A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem<br />

noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante.” Cf.<br />

LACAN, J. (2008) p.163.<br />

580 ROSA, J.G. (2001), p.327.<br />

581 Idem, p.116.<br />

582 Idem, p.419.


Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado<br />

O espelho, são muitos (...)<br />

Mas que espelho?<br />

J.G.ROSA<br />

Ao desdobrar-se junto com o tempo, Riobaldo se depara com a inevitável<br />

experiência do descentramento: pois, ao afirmar: “No passado, eu, digo e sei, sou<br />

assim” 583 , já não sabe mais quem é, dividido entre o que lembra e o que é levado pela<br />

lembrança: “A lembrança dela me fantasiou (...)” 584 , “Noite lembrada em mim” 585 ; o<br />

que faz com que, a determinada altura, ele tenha se reconhecido num “eu senhor de<br />

certeza nenhuma” 586 . É interessante observar uma fusão, na forma eu-senhor, imagem<br />

dialética e poética – em outras palavras, a construção de um terceiro – entre o narrador<br />

que quer saber e o senhor que sabe, mas imediatamente, não sabe mais...<br />

Pois “a travessia é a travessia do espelho” 587 , das identificações imaginárias,<br />

cujo percurso é a produção de uma outra cena, onde o narrador pode olhar de fora para<br />

o espelhamento, e perceber a dissimetria, a diferença (que Riobaldo percebe depois, em<br />

Diadorim, Maria Deodorina) entre dois reflexos, e produzir um texto, imagem, obra,<br />

que ocupa o lugar do espelho, lugar de enigma que nos olha desde um ponto abissal, nos<br />

interroga, nos abre “a um vazio que nos olha, que nos concerne e, em certo sentido, nos<br />

constitui” 588 .<br />

A experiência de desencontro consigo mesmo, de um eu excêntrico a si é uma<br />

constante em Guimarães Rosa, e novamente parece que, a partir dos motivos presentes<br />

583 Idem, p.156.<br />

584 Idem, p.57.<br />

585 Idem, p.585.<br />

586 Idem, p.370.<br />

587 De acordo com Magno, numa referência a Lewis Carrol, atravessar o liso é atravessar o liso do<br />

espelho. O chiste refere-se à mudança na relação especular, bidimensional com o outro, para situar-se<br />

num lugar terceiro, mais aberto à dessemelhança. Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p.55.<br />

588 Sobre o espelho: Idem, p.190; sobre o que nos olha na imagem: DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.31.


nas interrogações de contos, como em “O Espelho”: “Você chegou a existir?” 589 , à já<br />

mencionada pergunta final do narrador no conto de sugestivo título “Nenhum,<br />

Nenhuma”: “eu; eu?” 590 ; Riobaldo leva ao extremo estas indagações, atravessando-as,<br />

indo e vindo com suas identificações, deixando-se atravessar pela incerteza, sem<br />

dissolver-se por completo, mas – tampouco – deixar de se reconhecer no Outro: “o<br />

sertão me produz, depois me engoliu, me cuspiu...” 591<br />

Desta forma, se o narrador confirma a divisão do sujeito que pensa onde não<br />

é 592 , não parece paralisar-se na oposição entre o ou pensa ou é. E traz – comparável,<br />

mas não idêntico a Hamlet – nossas contradições em aberto; pois, como ainda se verá, a<br />

pergunta se o diabo existe e não existe? resta sem resposta até o fim, permanecendo<br />

como a nossa questão: to be or not to be, versão brasileira; onde a inconclusão consiste<br />

muito mais numa “escolha poética” 593 (em decidir ser ‘e’ não ser, ao invés de paralisar<br />

na dúvida entre ser ‘ou’ não ser) do que numa suposta “‘natureza ‘duvidosa’ da<br />

identidade brasileira” 594 :<br />

589<br />

Não me estenderei no comentário sobre este conto já exaustivamente analisado à luz da psicanálise,<br />

apenas observo o mesmo endereçamento da questão, nele formulada através da identidade, a um senhor<br />

culto, apontando uma noção de sujeito que vem necessariamente do Outro, presente no primeiro<br />

parágrafo do texto: “O senhor, por exemplo, que estuda e lê, suponho nem tenha idéia do que seja na<br />

verdade – um espelho?” – O conto termina com a pergunta direta ao leitor, através de nova provocação:<br />

“Você chegou a existir? Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de que vivemos<br />

em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora,<br />

sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto.” ROSA, J.G. (1988) p.65; 72.<br />

590<br />

Idem, p.54.<br />

591<br />

ROSA, J.G. (2001) p.601.<br />

592<br />

No item “Do sujeito da certeza”, Lacan destaca a oposição entre o sujeito freudiano e o cógito<br />

cartesiano, definindo o inconsciente como “nem ser, nem não ser”, mas como não-realizado, como o<br />

representante de algo que não está lá, constituindo um sujeito que pensa onde não é, e também menciona<br />

Hamlet, sujeito imerso na dúvida entre ser ou não ser. Cf. LACAN, J. (2008) p.36-41.<br />

593<br />

Todas as vezes em que me refiro à escolha poética em deixar as perguntas em aberto, trata-se da fala<br />

de Didi-Huberman, segundo a qual “a suspensão da conclusão é uma questão de ritmo”, “não reponder é<br />

uma decisão poética” do artista que assim decidiu (“il a bien décidé”), que acena também para a ética e a<br />

responsabilidade de toda escolha. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009/2010). Em outras palavras, o<br />

indecidível não está dado de antemão, não constitui uma ‘natureza em si’; diferença que, pensada no<br />

contexto do olhar crítico do escritor sobre a nossa história, talvez se traduza na escolha entre um elogio<br />

de uma indecisão perpétua, ou da suspensão que nos reapresenta a contradição, de uma dialética que se<br />

abre para uma terceira possibilidade.<br />

594<br />

Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.143. Tomo emprestada a expressão utilizada pelo pesquisador,<br />

embora saiba que sua perspectiva é histórica, para ilustrar uma abordagem existente da ambigüidade<br />

brasileira enquanto identidade, natureza a-histórica; numa palavra, um destino, ao qual a decisão de ser<br />

e não ser se contrapõe.


...A suspeita prévia, mais uma vez, é que a solução do dilema nacional<br />

– assim como a questão da existência ou inexistência do Diabo –<br />

esteja dobrada na pergunta, ou seja, que a verdade de uma nação que<br />

não é “una” (...) consiste justamente na sua inconsistência e<br />

indefinição, ou melhor, no seu conter de modo problemático e<br />

interrogativo, tudo aquilo que a pode abolir: “O Brasil existe e não<br />

existe?” (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p. 102).<br />

Na entrevista de 1965 a Günter Lorenz, Rosa afirma a brasilidade justamente<br />

como algo de originário, mas, noutro de seus muitos paradoxos, “a língua de algo<br />

indizível.(...) talvez um sentir-pensar” 595 , fornecendo como um dos exemplos de<br />

brasilidade, após o exasperado apelo do entrevistador alemão; exatamente a crença no<br />

diabo, o que só vem reforçar a leitura da questão, aqui, como pergunta que nos devolve,<br />

poeticamente, a forma do nó, o fascínio e o horror de ser e não ser 596 presentes em<br />

nossas contradições irresolvidas (apesar de certa disjunção entre esta leitura e a<br />

declaração final do escritor de uma possível superação completa da questão):<br />

... Um terceiro exemplo: segundo nossa interpretação brasileira, não<br />

muito cristã, mas muito crédula, o diabo é uma realidade no mundo.<br />

Está oculto na essência das coisas, e faz ali suas brincadeiras. A<br />

ciência existe para expulsar o diabo. O homem sofre sempre o<br />

desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode assim<br />

liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem<br />

falsidades. Também isto é brasilidade. (In: LORENZ, G., 1983, p.62).<br />

Considerando as implicações desta pergunta paradoxal, juntamente com a noção<br />

de um sujeito dividido e descentrado, não se pode argumentar que a rememoração da<br />

vida do jagunço unifica a história, conferindo-lhe uma identidade íntegra – pois vida,<br />

diz ele, “a vida não é entendível” 597 : “Vida” é noção que a gente completa seguida<br />

assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia” 598 . E Diadorim ensina que:<br />

595 LORENZ, G. (1983) p.92.<br />

596 Ver também a noção de imagem poética em Octavio Paz, justamente como o que condensa os opostos<br />

em uma única unidade, rompendo com a lógica pré-socrática de Parmênides o ser é – o não ser não é.<br />

Em: PAZ, O. (1972) p.37.<br />

597 ROSA, J.G. (2001) p.156.<br />

598 Idem, p.414.


“A vida nem é da gente...” 599 , insinuando a impossibilidade de dissociar inteiramente<br />

esta destituição da vida de seus enlaces sociais, já que há um confronto explícito entre o<br />

fazendeiro, “sujeito da terra definitivo” 600 , e o jagunço, “homem provisório” 601 , que<br />

articula a destituição do jagunço também às condições impostas por aquele sertão.<br />

Entretanto, o percurso da rememoração põe em cena uma destituição que não se<br />

restringe à esfera social, pois, em que pese a fronteira fluída entre os termos eu e outro<br />

(fluidez acentuada por toda a obra de Rosa e para a qual o próprio conceito de<br />

destituição subjetiva irá apontar), trata-se, na destituição, de uma espécie de<br />

esquecimento de si, comparável, como a lemos, ao gesto fundador de Medeiro Vaz:<br />

... Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande<br />

fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os<br />

desmandos dos jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito<br />

carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer<br />

sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e<br />

se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar,<br />

reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em<br />

terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só<br />

nascimento (...). No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na<br />

distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de seu pai, avô, bisavô (...)<br />

Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com<br />

cacho d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos<br />

campos, e saíu por esse mundo em roda, para impor a justiça...(ROSA,<br />

J.G., 2001, p.60).<br />

Cansado da violência, deste imundo de loucura; num único gesto, Medeiro Vaz<br />

reconhece seu dever, sua condição de assujeitamento, e destitui-se dela, despojando-se<br />

de todos os vestígios de sua vida anterior, instituindo um nada, um marco inicial que,<br />

por sua vez, dará origem à nova subjetivação, relacionada à era dos medeiros-vazes.<br />

599 Idem, p.171.<br />

600 Idem, p. 429.<br />

601 Idem, ibidem.


Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio<br />

Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das<br />

beiradas mal nem vejo...<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Se o curso da vida de Riobaldo não unifica completamente a história, não é<br />

somente porque, conforme visto no primeiro capítulo, as memórias coletivas<br />

atravessam, compondo a narrativa e dificultando o seu enquadre como um relato de<br />

memórias puramente individual. Mas também, porque, ao falar de si, tampouco se trata<br />

de um único Riobaldo: na rememoração de sua vida, o narrador se desdobra em vários<br />

eus, discerníveis através de seus vários nomes: o menino, o professor, o jagunço<br />

Tatarana, o cerzidor, o chefe Urutú Branco e o fazendeiro aposentado.<br />

Do ranger de sua rede, ele conta as suas memórias entrecruzadas pelas memórias<br />

dos outros, os casos de caipira, sem que nenhuma delas – assim como nenhuma de suas<br />

identidades, isoladamente – se estabeleça como definitiva, ou responda definitivamente<br />

aos seus questionamentos; e além disto, é capaz de filosofar sobre:<br />

... De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada<br />

vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa.<br />

Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.115).<br />

A constatação leva imediatamente ao questionamento de Agamben em sua<br />

investigação sobre o testemunho 602 : diante destes vários eus, considerando a noção de<br />

um narrador-testemunha; quem narra, quem é o sujeito da narrativa? De que começos<br />

ou limites Riobaldo fala, quando assinala determinados pontos que parecem marcar a<br />

passagem de uma identidade a outra, com termos como: uma transformação pesável, ou<br />

o primeiro dia da travessia do São Francisco 603 ? Ou: “Tudo agora reluzia com<br />

602 Cf. AGAMBEN, G. (2008).<br />

603 “Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.” Cf. ROSA, J.G. (2001) p. 116.


clareza” 604 , e “de meus íntimos esvaziado” 605 após o pacto. Ou, ainda: “Desmim de<br />

mim mesmo” 606 , diante da morte próxima de Diadorim?<br />

Duas noções lacanianas bastante úteis para pensar a questão são as de retificação<br />

e destituição subjetiva. Enquanto a retificação subjetiva concerne a uma re-significação<br />

do passado através do trabalho da rememoração, ao apelo à construção de um saber<br />

sobre si mesmo através do rememorar; a destituição subjetiva refere-se a um conceito<br />

pensado inicialmente por Lacan a partir da experiência do término do processo de<br />

análise – associado, portanto, à travessia do fantasma – quando o sujeito “se reconhece<br />

na opacidade de um objeto pulsional que o constitui ao mesmo tempo que lhe<br />

escapa” 607 (cf. o caso de Medeiro Vaz), opacidade relacionada à uma queda do sujeito<br />

suposto saber e à noção de algo que resta, não mais vinculado ao imaginário, mas com o<br />

real.<br />

A destituição diz respeito a um momento em que o sujeito, reconhecendo que<br />

sempre haverá um resto impossível de nomear, um inacessível à palavra, pertencente ao<br />

registro do real, pode atravessar o seu fantasma, o que provoca uma “queda” deste<br />

sujeito (“o faz tombar de seu fantasma”) 608 , ao mesmo tempo assegurando-lhe a<br />

possibilidade de seguir em frente com o testemunho de um novo saber, o da sua própria<br />

análise, e mais aberto à experiência do real. Em termos mais próximos à memória,<br />

haveria um confronto com a impossibilidade de recuperar o tempo perdido e uma<br />

abertura ao esquecimento constituinte. A idéia de que o fantasma desvela seu aspecto<br />

real faz, ainda, com que ele se represente como algo de “informe, de impessoal, de<br />

opaco” 609 , de desumano.<br />

604 ROSA, J.G. (2001) p. 440.<br />

605 Idem, p.439.<br />

606 Idem, p. 610.<br />

607 SAFATLE, V. (2006) p.216.<br />

608 LACAN, J. (s/d) p.36.<br />

609 SAFATLE,V. (2006) p.219.


Neste sentido, é interessante comparar a destituição de Riobaldo na imagem do<br />

rio, seu desejo de pensar como o rio anda, com a transmutação em onça do narrador de<br />

“Meu Tio, o Iauaretê” 610 . Enquanto no conto, que reproduz a forma do diálogo<br />

silencioso com um visitante, o leitor é lançado desde o início numa espécie de vertigem,<br />

de ameaça, que termina com uma alusão à morte – seja do ‘eu – onça’ pelo moço de<br />

fora, antecipado na fala do selvagem: “Eu vou. Um dia volto mais não” 611 ; seja do<br />

moço, devorado por este âmago, coração selvagem das trevas 612 . Por outro lado, no<br />

GSV, a destituição configura uma corrente, de acordo com a definição de Agamben 613 ,<br />

que não se dá apenas no fim; não custa lembrar que o real se apresenta para a gente é no<br />

meio da travessia. Mas, além disso, para Riobaldo, a corrente é tomada ao pé da letra:<br />

“Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não<br />

quer ir a nenhuma parte, ele só quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo” 614 .<br />

No GSV, a imagem do rio, do tornar-se o rio, surge como efeito das sucessivas<br />

passagens, que pode ser visto, em retrospecto, nas múltiplas subjetivações, por toda a<br />

travessia como um passado que está lá só-depois. Porém, diversamente da saída para o<br />

assassinato, presente em “Meu tio”; Riobaldo mergulha no “reprofundo” 615 , mas não se<br />

afoga. Em contraste com o um dia volto mais não do onceiro, como veremos adiante, as<br />

canções de Siruiz falam justamente de um jogo entre o ir e voltar. E, ainda,<br />

diferentemente da “Terceira Margem do Rio” 616 , tampouco há o imperativo da morte, o<br />

fim do tempo, como condição para descer rio abaixo, para tornar-se o próprio tempo.<br />

610<br />

ROSA, J.G. (1969).<br />

611<br />

Idem, p.142.<br />

612<br />

Conferir a comparação entre o conto, o GSV e o romance de Joseph Conrad. Cf. FINNAZI –AGRÒ,<br />

E. (2001) e cap. 4 deste trabalho.<br />

613<br />

Cf. Cap. 2 desta tese.<br />

614<br />

ROSA, J.G. (2001) p.450. É interessante perceber o paralelo entre questões que Rosa desenvolve em<br />

sua obra, formuladas através da teoria e da clínica psicanalítica: “...como atravessar o fantasma a fim de<br />

disponibilizar ao sujeito a experiência de um real capaz de produzir o descentramento? E, principalmente,<br />

como atravessar o fantasma sem jogar o sujeito, de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?”<br />

Em: SAFATLE, V. (2006) p.205.<br />

615<br />

ROSA, J.G. (2001) p.365.<br />

616 Idem, (1988).


Pois o rio reúne a metáfora de Lete, o rio do esquecimento, mas também a do correr do<br />

tempo, do vir a ser, de Heráclito, no qual um homem não se banha duas vezes:<br />

... Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar – tem uma coisa!:<br />

eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente<br />

duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.603).<br />

Ao invés de dissolver-se completamente no tempo, Riobaldo, que se viu aberto,<br />

dividido pelo tempo, pelo São Francisco, que partiu sua vida em duas partes; ao tornar-<br />

se rio, também é capaz de abrir-se a este tempo e à sua dimensão criadora, visível na<br />

imagem da travessia no final do texto, que evoca este tempo no tempo, do tornar-se<br />

tempo aqui-agora, do rio como aquilo que só-depois, inserido no princípio, acena para<br />

o devir das coisas futuras.<br />

Como ensina Lacan, a destituição tem a ver com a já comentada noção de algo<br />

que resta, produto do só-depois da significação: “Que possam surgir liberdades da<br />

clausura de uma experiência, eis o que tem a ver com a natureza do ‘aprés-coup’ na<br />

significância.” 617 Experiência de deslocamento, abertura, descentramento e estranheza<br />

comparável à obra de arte, daí a possibilidade da leitura de Magno, partilhada por<br />

Susana Lages 618 , do texto como resto, resíduo da travessia.<br />

Neste sentido, é também possível indagar se a famigerada pergunta sobre o<br />

Diabo, fantasma que constitui Riobaldo como sujeito desta busca, que o fascina e<br />

assombra por toda a narrativa – apesar de permanecer em aberto, através do pingado de<br />

pimenta que o escritor introduz com a expressão se for, reinstauradora da dúvida – em<br />

617 LACAN, J. (s.d.) p. 39.<br />

618 Cf. p.135 deste trabalho.


suma, se esta questão-fantasma não é destituída no final do romance, ou seja, de algum<br />

modo, deslocada, dando lugar à imagem da travessia 619 :<br />

...Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não<br />

existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto.<br />

Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe<br />

é homem humano. Travessia. (ROSA, J.G., 2001, p.624).<br />

Na travessia precedida, no fim, como no início do texto, por não e nada 620 , vai<br />

se delineando uma possível resposta à questão de quem narra, do narrador-testemunha,<br />

situado neste limite instável entre um e outro, o que narra e é narrado, pois quando<br />

Agamben afirma que “o sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma<br />

dessubjetivação” 621 , é preciso ler o que ele diz em seguida, que vem a ser a já citada<br />

corrente de subjetivações e dessubjetivações própria ao testemunho, justamente como o<br />

testemunho de Riobaldo, que atravessa o deserto, mas não o habita o tempo todo (como<br />

supõe-se do pai, na terceira margem do rio): Riobaldo traz o rio em seu nome, mas vai<br />

lá e volta, como a letra da canção de Siruiz, o brinquedo do menino de “Os Cimos” 622 e<br />

– evidentemente – como o carretel do neto de Freud.<br />

Se a destituição, a queda do sujeito, dá lugar a esta noção de sujeito de<br />

passagem 623 , à imagem da travessia e à identificação com o rio, é interessante pensar<br />

que, além de ser possível somente em retrospectiva perceber como toda a narrativa traz<br />

esta marca 624 ; há uma provável escolha poética do escritor – tão atento aos jogos<br />

formais com a simetria e a dissimetria, à disposição das palavras no texto e à ordem dos<br />

619<br />

Na leitura de Safatle sobre a destituição subjetiva, o objeto não seria abandonado, dando lugar a um<br />

puro deslizamento significante, mas trata-se de um “deslocamento no interior da significação do objeto”,<br />

que possibilita o “desvelamento do descentramento”, ou experiência do real, que ele nomeia como carne,<br />

termo inspirado em J.P. Sartre, que revelaria a opacidade do objeto, pois Safatle está tratando questão<br />

da destituição do sujeito através do amor. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />

620<br />

Nonada vem a ser a contração de não e nada, sinônimo ainda de tutaméia, ninharia, pouca coisa, e<br />

aparece abrindo e fechando o texto, como sua primeira palavra e uma das últimas, no parágrafo final.<br />

621<br />

AGAMBEN, G. (2008) p.124.<br />

622<br />

ROSA, J.G. (1988).<br />

623<br />

Utilizo a idéia de passagem e travessia também presente em FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).<br />

624<br />

Magno destaca o caráter da letra (∞) como simultaneamente resíduo e fundamento da narrativa do<br />

GSV, que vem em lugar do que a palavra não alcança: “É com esta letra, com este ícone, que Rosa<br />

marca a anca do seu bezerro erroso chamado Grande Sertão: veredas.” Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p.56.


contos nos livros – ao inscrever nonada como a primeira, mas não a sua última palavra,<br />

esta, sim, a travessia, que indica um retorno ao início do livro, à estória contada e escrita<br />

do (re)memorar.<br />

Nas idas e vindas da rememoração de seus outros eus, a noção de sujeito da<br />

narrativa, o narrador-testemunha, portanto, não consiste propriamente numa<br />

objetividade, sendo pensada como lugar 625 , passagem, efeito, de um a Outro, dando<br />

testemunho de suas dessubjetivações e engendrando novas subjetivações, definição que<br />

complementa a já mencionada leitura de Arrigucci de que a narrativa individual se<br />

desenreda da coletiva, pois revela a constituição deste sujeito não apenas a partir destes<br />

outros eus; mas, fundamentalmente, a partir do Outro como campo do não-realizado,<br />

inconsciente, como os campos gerais “cheios de nada” 626 , o mesmo nada capaz de<br />

“virar coisas” 627 .<br />

A rememoração é, portanto, realizada na dupla face destituição-retificação, na<br />

qual ambas respondem pela (im)possibilidade de narrar uma história. Em sua fala para,<br />

Riobaldo pode passar – com a intervenção silenciosa deste senhor que soube escutar o<br />

seu pedido por um silêncio – da repetitiva suposição o senhor sabe, para outras<br />

posições, onde a reserva de saber do senhor insere uma lacuna, na qual o senhor não<br />

sabe – “o senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e<br />

acusa buracões profundos” 628 – “Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luiz-e-silva.<br />

O senhor não sabe, o senhor não vê” 629 – permitindo, assim, a introdução de uma<br />

negação mais radical ainda no interior de seu discurso:<br />

625 MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p. 14.<br />

626 ROSA, J.G. (2001) p. 538.<br />

627 Idem, 296.<br />

628 Idem, p. 357.<br />

629 Idem, p.608.<br />

... Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo,<br />

sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz,


então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as coisas que<br />

formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe<br />

falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém<br />

ainda não sabe (grifo nosso). Só umas raríssimas pessoas – e só essas<br />

poucas veredas, veredazinhas... (ROSA, J.G. Op. Cit., p. 116).<br />

A passagem de o senhor não sabe para ninguém não sabe 630 somente pode ser<br />

realizada graças ao silêncio, ao não saber responder às suas demandas, por parte deste<br />

senhor-escritor-analista, que introduz e possibilita a construção deste silêncio, fazendo<br />

com que, quando Riobaldo lhe proponha: “Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio,<br />

põe no colo” 631 – o silêncio se espraie pela obra e por todos nós, senhores-leitores. Pois<br />

ao pedido por um silêncio se junta o pedido por uma intervenção que ponha ponto final<br />

na rememoração infinda: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.” 632<br />

A partir deste nada absoluto, Riobaldo passa da expectativa de objetividade do<br />

relato, para a criação narrativa:<br />

... E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.<br />

Conto. Reinaldo – ele se chamava...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.155).<br />

E pode, então, ocupar uma outra posição, chamada por Lacan de discurso do<br />

mestre ou do analista, posição de alguém que passou de um lugar expectante para um<br />

lugar onde se reconhece como tendo sido capaz de atravessar e deixar-se atravessar pela<br />

linguagem, pelo ser narrado e pelo vazio, de onde não e nada, ninguém não sabe<br />

(destituição, dessubjetivação) pode dar lugar a algo, lugar de mestria ou autoria<br />

(retificação, nova subjetivação): o senhor saiba; é como ele se refere algumas vezes ao<br />

visitante, agora inversamente colocado na posição de aprendiz, expressão que aparece,<br />

630 Creio ter encontrado a mesma diferença entre estes dois registros na já mencionada distinção de Iser<br />

entre a lacuna e a negatividade radical (cf. Cap.2), na formulação do vazio que é destinado a<br />

permanecer desconhecido, de Collot (cap. 2); ou na formulação lógica pensada por Lacan, que distingue<br />

entre o zero e o nada, entre o que pode ser preenchido e o que já é, em linguagem rosiana, cheio de nada,<br />

centro opaco, que não pode ser preenchido, mas funciona como centro insondável de sustentação da<br />

subjetividade ou de origem da narrativa. Cf. LACAN, J. (s/d).<br />

631 ROSA, J.G. (2001) p. 306.<br />

632 Idem, p. 546.


não por acaso, com maior freqüência após o pacto: “Saiba o senhor – lá como se diz –<br />

no vertiginosamente: avistei meus perigos” 633 . – “Saiba o senhor, eu estava ali, assim,<br />

em padastro de todos” 634 .<br />

Na passagem de um a outro, o que se representa é o sujeito, o sujeito como efeito<br />

ou lugar (tutaméia?), movimento, “montagem surrealista da pulsão” 635 (talvez<br />

coubesse, devido à semelhança entre os ângulos recortados aos cacos e ruínas, e ao<br />

caráter parcial, não-todo de toda imagem, lembrar, também, a composição cubista da<br />

canção popular 636 ). Dividido e descentrado, mas aberto pelo e ao tempo, a quem é<br />

possível tornar, torcer, o exílio, o desterro, a perda; em viagem, dansa, criação – sujeito<br />

sempre outro – no dizer de Riobaldo: “acho que eu não era capaz de ser um só o tempo<br />

todo...” 637<br />

Por tudo isto, é possível concluir que, quando o crítico Finazzi-Agrò afirma que<br />

a travessia não apaga a melancolia, está se referindo à marcha do progresso, e não a esta<br />

travessia do rememorar:<br />

... Mas a travessia, o ir além e para a frente, o ser arrastados, pela<br />

“tempestade do progresso”, rumo ao futuro, não pode nem deve<br />

apagar o olhar melancólico que Guimarães Rosa – como o Ângelus<br />

Novus, como o anjo da história imaginado por Benjamin – teve que a<br />

coragem de dirigir à dimensão assombrosa de que se (e nos) afastou: a<br />

esse passado selvático, disseminado de ruínas, povoado pelos mortos e<br />

pela Morte... (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142).<br />

Pois, se a travessia é a busca da outra coisa, da sobre-coisa e das coisas<br />

importantes, alçadas à dimensão de negatividade, das terceiras memórias, da não-<br />

memória, que se deslocam, alternando-se no texto com os conteúdos positivos da<br />

memória: as lembranças coletivas, as lembranças de guerra, as lembranças de Diadorim,<br />

num ir e vir da memória e das palavras às imagens-sem-nome benjaminianas, ao silêncio<br />

633 Idem, p.366.<br />

634 Idem, p.602.<br />

635 LACAN, J. (2008b).<br />

636 Trata-se da canção chamada Vaca Profana, do compositor Caetano Veloso.<br />

637 Ibidem, p.485.


e ao esquecimento, das lembranças que vão em fila para o sertão; mas retornam, desde<br />

os ocos e ermos, como os cavalos... – seguindo as definições em aberto do mesmo<br />

crítico, cabe tentar reinscrever a questão, parafraseando Riobaldo, na forma das suas<br />

construções inquietantes: A travessia não apaga a melancolia. Apaga?<br />

E, por ser poética e sempre outra a travessia, é possível revertê-la numa imagem que<br />

tensiona e reúne os dois opostos: a travessia da melancolia. Talvez, assim, ela recoloque<br />

o problema do que Rosa realiza de forma única neste livro, considerando a melancolia<br />

em nossas raízes mais íntimas.


IV. OFICINA ABERTA 638 : PALAVRA, IMAGEM E <strong>ESQUECIMENTO</strong><br />

Os Nomes da Memória<br />

...Tudo é porta<br />

tudo é ponte<br />

OCTAVIO PAZ<br />

Findo o sólido. Findo o contínuo e o calmo. Uma certa dança está em toda<br />

parte.<br />

HENRI MICHAUX<br />

...Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

A identificação – ou destituição – de Riobaldo em apenas rio nos traz de volta à<br />

questão do nome, da importância capital do nome e da nomeação das coisas no texto,<br />

antecipada na epígrafe acima. Em termos mais teóricos, a leitura da memória e do<br />

tempo no romance de Rosa – e, principalmente as considerações finais, sobre o ir e vir<br />

das imagens no espelho de Riobaldo, bem como a produção de um resto resistente à<br />

significação, na imagem da letra [∞] – relacionada às noções de Inconsciente e real,<br />

apontam para a idéia de um passado tecido de linguagem, onde diversos índices opacos<br />

do que é não-totalmente recuperado pela lembrança coloca em evidência uma outra<br />

dimensão da linguagem, além do significante, que nos traz de volta às discussões sobre<br />

a criação poética. 639<br />

638 De acordo com o artigo de Ana Luiza Martins Costa, este seria um dos títulos encontrados por Paulo<br />

Ronái numa lista do escritor, junto a outros possíveis títulos para a coletânea Ave, Palavra. Em<br />

GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M. (2006) p.211.<br />

639 Apenas para indicar alguns pontos de discussão, alguns elementos reiteram o quanto estas leituras do<br />

nome estão mais próximas do que parecem com as formulações psicanalíticas apresentadas anteriormente,<br />

vejam-se as afirmações de Lacan em 1972, no momento em que está tentando estabelecer sua teoria numa<br />

linguagem matemática, através da topologia (por ex. a Banda de Moebius); e faz uma espécie de revisão<br />

de seu ensino: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse pela”. E acrescenta: “a<br />

referência pela qual eu situo o inconsciente é justamente aquela que escapa à lingüística (...) eu o disse<br />

em quê: no que a condensação e o deslocamento antecederam a descoberta, com a ajuda de Jakobson, do<br />

efeito de sentido da metáfora e da metomínia.” Cf. LACAN, J. (2003) p.490-491. O que se vê nesta nova<br />

visada lacaniana, portanto, é um privilégio da linguagem sobre a concepção de cadeia significante dada<br />

pela lingüística, no que a linguagem aponta para um além do signo, ou seja, a própria definição de<br />

inconsciente.


O debate, apresentado desde Platão, é reavivado com o surgimento da<br />

lingüística, caracterizando uma discussão à qual: “Toda a filosofia, e toda a literatura<br />

posterior a Platão, terá de lidar de alguma forma” 640 , e remonta à discussão sobre a<br />

origem das línguas e a natureza da linguagem, dividida entre uma teoria baseada na<br />

arbitrariedade do signo, adotada pela lingüística, e uma concepção da origem natural ou<br />

originária da linguagem, pensada a partir do primeiro romantismo alemão 641 ; sendo<br />

exposto da seguinte forma por Susana Lages:<br />

... o conflito entre uma visão cratilista e uma visão que poderíamos<br />

chamar de hermogênea da linguagem, assim como é apresentada por<br />

Platão no Crátilo. O problema da adequação entre nome e coisa<br />

conduzido por Sócrates nesse diálogo constitui o fundamento de<br />

qualquer discussão moderna sobre a linguagem e dá origem a duas<br />

vertentes, nomeadas segundo os interlocutores de Sócrates no diálogo<br />

– Hermógenes e Crátilo. A primeira, ligada ao que hoje chamamos, a<br />

partir de Saussure, arbitrariedade do signo ou da linguagem, ou depois<br />

de Benveniste, de convencionalidade do signo, contraposta a uma<br />

linhagem cratilista, cujo cerne é a idéia de algo que hoje se<br />

convencionou chamar caráter não-arbitrário ou motivado do signo...<br />

(LAGES, S.K., 2002, p. 122-123).<br />

Como assinala Seligmann-Silva, Benveniste não se pronuncia sobre a origem,<br />

por considerá-la uma questão metafísica; simplesmente deixa-a de lado, em favor de<br />

uma concepção da natureza arbitrária do signo 642 . Diferentemente desta, há no primeiro<br />

romantismo alemão (de F.Schlegel e Novalis) uma concepção mágica, ligada a uma<br />

origem divina ou natural, um além do aspecto comunicacional ou instrumental da<br />

língua, e que se formulava através de três momentos fundamentais: o de uma natureza<br />

da linguagem a priori, segundo Novalis: “o tempo no qual pássaros, animais e árvores<br />

falavam” 643 , marcado pela semelhança entre a linguagem e o mundo; a passagem à<br />

queda, que equivale à ruptura com as similitudes, à origem das diferentes línguas, à<br />

640<br />

LAGES, S.K. (2002) p.123.<br />

641<br />

Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (1999).<br />

642<br />

Idem, p.23.<br />

643<br />

Apud. SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.24.


fragmentação desta relação, que resulta numa fragmentação da linguagem e da<br />

apreensão das coisas; e a tentativa de restituição desta linguagem originária, através da<br />

idéia do mundo como livro a ser lido, decifrado e reescrito, numa escrita que se<br />

encarregue da colagem dos cacos, da restituição do poder mágico que ligava as palavras<br />

às coisas, que vem a ser proposta através da escrita poética.<br />

No GSV, ambas as dimensões surgem articuladas à memória e ao esquecimento,<br />

seja através de um deslizamento das imagens do passado, como vimos, entre as diversas<br />

identificações de Riobaldo; ou, na constatação de imagens que escapam, de um núcleo<br />

irredutível à memória e à dimensão instrumental da linguagem, onde os signos são<br />

tomados em sua opacidade. Riobaldo vê nos olhos de Diadorim os olhos de sua mãe, e<br />

se diz transportado pela lembrança a esta similitude originária com o mundo: “Então,<br />

eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante” 644 .<br />

Do mesmo modo, diante da perda dos nomes dos lugares marcados nas<br />

recordações de infância, que são, com o tempo, substituídos por outros, o personagem<br />

lamenta: “é em senhas” 645 . Cabe demarcar novamente o necessário (e impossível, de<br />

todo) deciframento da senha, que revela e esconde seu sentido, na mesma fala em que,<br />

ao ressaltar o caráter sagrado do nome, ele não diz que os nomes se sucedem em<br />

séries...<br />

A importância dos nomes próprios já foi destacada por Ana Maria Machado em<br />

Recado do Nome 646 , onde a autora se pergunta justamente sobre as funções do nome na<br />

obra de Rosa, marcada pela presença de uma dimensão significante, cujo conteúdo se<br />

associa a outro significante no texto (ex: Diadorim, Diá, o diabo); indissociável de uma<br />

função nomeadora, de um “nome que enche os tons” 647 . A crítica partiu principalmente<br />

644 Idem, p. 164.<br />

645 ROSA, J.G. (2001) p. 58.<br />

646 MACHADO, A.M. (2003).<br />

647 Idem, a citação acima, do texto de Rosa, constitui o título do capítulo 4 do livro de A.M. Machado.


a partir da leitura do “Recado do Morro” 648 , onde o nome se transmite através de um<br />

recado que, como pontuou Wisnik 649 , é diferente de mensagem, pois a idéia do recado é<br />

de que o nome porta uma significação não-comunicacional a ser decifrada, algo que se<br />

encontra, também, na descrição do nome de Diadorim: “Diadorim – o nome<br />

perpetual” 650 .<br />

O nome porta uma densidade que se articula à concepção romântica da<br />

linguagem, e que, por sua vez, como ressalta Seligmann-Silva, encerra “nada – ou<br />

muito pouco de metafísico” 651 , pois a noção da linguagem decaída insere<br />

necessariamente uma concepção de linguagem muito próxima da Modernidade, na<br />

medida em que é fundada sobre a ruptura com as coisas e a fragmentação, onde a<br />

palavra divina é dada como perdida. É a esta linguagem que a poesia tentaria restituir,<br />

desvinculando-a do sentido cotidiano, para um sentido criador, de uma linguagem<br />

concebida como pura linguagem:<br />

...Língua elevada à segunda potência (...) língua do som e imagemescrita.<br />

Ela possui mérito poético e não é retórica – subalterna –<br />

quando ela é uma expressão perfeita – eufônica – correta e precisa –<br />

quando ela é como que uma expressão com [e] pela expressão –<br />

quando ela ao menos não aparece como meio – mas é em si mesma<br />

uma produção perfeita da faculdade lingüística superior. (<strong>NO</strong>VALIS,<br />

apud. SELIGMANN-SILVA, M., 1999, p.28).<br />

A importância dada por Guimarães Rosa não apenas aos nomes próprios, mas às<br />

palavras em geral – também encontra raízes na formulação romântica da poesia,<br />

segundo a qual “todas as palavras são elevadas à categoria de nome” 652 – tornando-se<br />

visível no gosto do escritor por coletar palavras, confeccionar listas, nos diários e<br />

cadernetas amplamente utilizados em seu processo criativo. Método que revela uma<br />

648 ROSA, J.G. (2001b).<br />

649 WISNIK, J.M. (1998).<br />

650 ROSA, J.G. (2001) p. 387.<br />

651 SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.26.<br />

652 Idem, p.32.


procura intensa pela palavra precisa; e articula, também, a memória pessoal do escritor a<br />

esta crença no poder mágico do nome, da palavra, da linguagem 653 , pois os nomes<br />

procedem dos registros da experiência subjetiva do escritor, seja no caso da viagem de<br />

1952, pelo sertão, junto com os vaqueiros; ou em suas anotações de viagem como<br />

diplomata pela Europa:<br />

...Quando saio montado num cavalo pela minha Minas Gerais, vou<br />

tomando nota das coisas. O caderno fica impregnado de sangue de<br />

boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada<br />

espécie, tem um vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o<br />

vôo de cada pássaro, a cada momento. Eu não escrevo difícil. EU SEI<br />

O <strong>NO</strong>ME DAS COISAS. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.,<br />

2006, p.196).<br />

Na entrevista a Günter Lorenz, o autor fala da criação de uma linguagem<br />

própria, como um estilo necessário ao escritor e ao homem, criação pautada numa<br />

relação de amor com a língua, expressa na já célebre citação: “A língua e eu somos um<br />

casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente” 654 . Amor pela ida ao sentido<br />

originário das palavras, em uma “utilização de cada palavra como se ela tivesse<br />

acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la ao<br />

seu sentido original” 655 . Na mesma entrevista, a procura pela palavra revela-se como<br />

um método de escrita: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra<br />

ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias” 656 .<br />

O cuidado se revela, no GSV, na escolha dos diferentes nomes para se referir à<br />

memória, que podem parecer neologismos, mas são em sua maior parte termos antigos,<br />

pouco usados, como olvidar (termo antigo, sinônimo de esquecer) e alembrar (antigo,<br />

sinônimo de lembrar). Este último adquire, no texto, o sentido de um lembrado pela<br />

653 A este respeito, ver também o estudo da pesquisadora Marília Rothier Cardoso, onde associa as<br />

anotações de viagem feitas pelo escritor à construção da paisagem no conto inédito e inacabado “O<br />

Imperador”. CARDOSO, M. R. (2008).<br />

654 LORENZ, G. (1983) p.83.<br />

655 Idem, p.81.<br />

656 Idem, p.79.


lembrança: “Alembrado de que no hotel e nas casas de família se usa toalha pequena<br />

de se enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato...” 657 .<br />

Ou então, os nomes são usados numa função incomum, como a flexão do verbo<br />

em substantivo: uns lembrares. O termo deslembrar aparece como sinônimo do esforço<br />

do trabalho do esquecimento: “Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?” 658 ; ou,<br />

de um esquecimento originário, abissal, como em “sou do deslembrado”. Recordar e<br />

recordação (do latim re, de novo; e cordis, coração, voltar ‘com’ ou ‘no’ coração) são<br />

usados em passagens carregadas de afeto, como “o que me agradava era recordar<br />

aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada” 659 , referindo-se<br />

à canção de Siruiz. Associado, por sua vez, à repetição inerente ao processo de<br />

rememoração, surge o prefixo re, como já apontamos: relembrar, relembro, recordei.<br />

Já o termo remembrar, de “Nenhum, nenhuma” 660 , não aparece no texto do<br />

GSV, mas é digno de nota pela dupla sinonímia entre o uso antigo, no sentido de<br />

relembrar, e o atual tornar a unir o que estava separado, que parecem ambos<br />

condensarem-se na rememoração como trabalho de reunião das passagens emendadas<br />

da vida, no emendo e comparo de Riobaldo. E, finalmente, destempo: “Ah-oh-ah, o<br />

destempo de estar sendo debochado se irou em mim”. Segundo o dicionário, significa o<br />

que chega ou está fora do tempo 661 ; mas a palavra alude, num sentido mais amplo, no<br />

texto, ao tempo não-cronológico que irrompe ao longo da rememoração.<br />

Nesta análise, o que a discussão sobre a linguagem traz como questões para a<br />

memória seria algo em torno do seguinte: como o texto de Rosa articula, ou vai além de<br />

uma mera articulação, recriando, fazendo novas perguntas, a partir de uma visão de um<br />

passado que não apenas não responde às questões colocadas pelo narrador, mas de um<br />

657 ROSA, J.G. (2001) p. 354.<br />

658 Idem, p.120.<br />

659 Idem, p.137.<br />

660 Idem, (1988).<br />

661 Idem, p. 144. E, para todos os sinônimos supracitados, cf. HOUAISS (2009).


ememorar que só faz produzir maiores questões: “Vivendo, se aprende; mas o que se<br />

aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” 662 ?<br />

Dito de outro modo, como se entrecruza uma noção de memória em que a<br />

imagem do passado só existe articulada pelo presente num futuro anterior (o tempo do<br />

que terá sido, do a posteriori), com esta idéia de uma dimensão originária e densa da<br />

linguagem? Já vimos como isto se dá através de várias formulações sobre o tempo e<br />

memória, mas e em relação à linguagem, na sua dimensão menos significante e mais<br />

nomeadora, por assim dizer?<br />

Um primeiro ponto em que nome e memória se tocam, no texto, é na<br />

importância do nomear as imagens do passado, situando-se no cerne da luta que não é<br />

somente travada contra um neutro esquecimento, mas uma guerra entre memórias 663 ,<br />

entre as memórias da cidade e do sertão, dos velhos e dos jovens, entre a história oficial<br />

e a estória. Trata-se de dar nome aos anônimos: retirar do esquecimento o nome dos<br />

lugares da infância; dos companheiros vivos e dos mortos nas guerras (enumerados, um<br />

a um, por Riobaldo); de elementos regionais da cultura, como a jacuba (comida de<br />

peões, feita com carne-seca e pirão de leite); ou da natureza, como o pássaro<br />

Manuelzinho-da-Crôa. Entretanto, no nível em que apresenta o inominável, o nome faz<br />

referência a um esquecimento situado além ou aquém do recalque, a um esquecimento<br />

constitutivo ou originário, que se articula por sua vez ao aspecto do não-realizado, e<br />

forma a noção freudiana de inconsciente, juntamente com o recalcado.<br />

Outros pontos inquietantes parecem girar em torno da questão das origens e da<br />

natureza da linguagem em questão. Rosenfield 664 chamou a atenção para a relação entre<br />

o nome Hermógenes e a concepção hermogênea da linguagem (da contingência dos<br />

signos) salientando que Riobaldo percebe o personagem como a encarnação do Mal,<br />

662 Idem, p. 429.<br />

663 Cf. PORTELLA, E. (2003) p.7.<br />

664 ROSENFIELD, K. (2006), cap.1.


epresentante da mistura, do próprio demo. Mas, paradoxalmente, percebemos que o<br />

Hermógenes exerce seu fascínio sobre o personagem. O conflito se manifesta na<br />

angústia de Riobaldo, na sua demanda por uma ordem superior ou anterior às coisas,<br />

que organize a mistura do mundo.<br />

No entanto, na medida em que o jagunço se depara com os sucessivos equívocos<br />

e fracassos que apontam para a ausência de ordem ou fundamento; a aversão ao acaso<br />

parece modificar-se, até o momento em que ele decide confrontar-se com o Mal – e,<br />

num mesmo gesto – pactuando com o demo (o acaso), mas eliminando o Hermógenes (a<br />

personificação do Mal) e todos os de seu bando; pacificando o sertão, mas abrindo-se ao<br />

correr do tempo e ao acaso, o que reabre novamente a questão sobre a natureza do<br />

sentido. No mesmo leque de questões, como já apontado, Riobaldo se pergunta se o Mal<br />

consiste numa objetividade, isto é, se existe demo sozinho; ou, se o Mal é apenas a<br />

contingência, o não-saber, a dificuldade humana em separá-lo do bem, presente na<br />

imagem do demo habitante dos crespos do homem.<br />

Além disso, em relação ao apelo a um retorno às origens, encontrado seja nas<br />

diversas alusões aos fundos sem fundos; no Liso do Sussuarão, como miolo Mal do<br />

sertão, seja na figura do jagunço como habitante originário do sertão; Rosa parece (sem<br />

negá-la), provocar um curto-circuito na aspiração romântica de retorno a uma relação<br />

mimética com a natureza, invertendo a crença numa harmonia originária, ao inserir, lá,<br />

na origem, através da nossa figura mais primitiva, a do indígena, o Mal como<br />

contingência, arbitrariedade, mistura, confusão: “Quem tem mais dose de demo em si é<br />

índio, qualquer raça de bugre” 665 . E acrescenta, estendendo a maldade ao homem em<br />

geral: “A gente viemos do inferno – nós todos” 666 .<br />

665 ROSA, J.G. (2001) p. 38. Neste sentido, como não ler, na questão de Riobaldo sobre o demo, além da<br />

já afirmada versão brasileira do to be or not to be (cap.3 desta tese), uma reescrita do tupy or not tupy, do<br />

Manifesto Antropofágico de 1922? Novamente, é a análise de Finazzi-Agrò quem dá as coordenadas<br />

desta leitura, ao ler no canibalismo do “Meu Tio, o Iauaretê”, uma releitura – ainda menos mistificante e


A imagem da constelação, em Benjamin, à qual a linguagem é comparada,<br />

ilustra bem a duplicidade da linguagem, pois permite uma dupla leitura: numa dimensão<br />

mágica, as estrelas podem significar o destino dos homens; porém, esta leitura é<br />

inseparável da interpretação da dimensão semiótica de sua posição relacional no céu 667 .<br />

Com isto, lança novas luzes à questão, na medida em que os nomes não surgem como<br />

verdades isoladas e anteriores, mas surgem articulados, adquirindo sentido em relação<br />

uns aos outros, no texto.<br />

No ensaio “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”,<br />

Benjamin afirma que “o nome resume em si esta totalidade intensiva da linguagem” 668 ,<br />

que constitui a função nomeadora. Pois o nome não reenvia à coisa em si, mas a esta<br />

capacidade de nomear: “no nome, a linguagem fala. Pode-se definir o nome como<br />

linguagem da linguagem” 669 . O nome é como a imagem do passado que perpassa veloz,<br />

mas, no instante em que o ocorrido se encontra com o agora (imagem dialética), ela se<br />

revela num lampejo, despertando ou salvando o que ficou esquecido pela história 670 . Em<br />

sentido semelhante, vale lembrar a conceituação de recalque, no artigo sobre o<br />

mais radical – da antropofagia de Oswald de Andrade, mas que possui em comum com este a inversão da<br />

tese do indianismo romântico, que localizava no indígena a idéia de pureza vinculada à identidade<br />

nacional. A distância de Rosa da antropofagia seria relativa ao caráter ainda idealizador desta última, ao<br />

“colocar o autóctone na posição de quem, a partir da sua condição radical e liminar, assimila o Outro<br />

europeu comendo seu corpo e corrompendo sua alma,(...) disfarçando o índio de improvável precursor<br />

do comunismo e do surrealismo”; enquanto neste eu-onça não sobraria espaço para uma idealização<br />

identitária fechada, justamente por situar-se nesta zona-limite do representável, da pura destituição. Cf.<br />

FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p. 146.<br />

666 ROSA, J.G. (2001) p. 64.<br />

667 BENJAMIN, W. (1986f).<br />

668 “Le nom résume en lui cette totalité intensive du langage comme essence spirituel de l’homme.”<br />

BENJAMIN, W. (2000) p.148.<br />

669 “... dans le nom, le langage parle. On peut définir le nom comme le langage du langage.” Idem,<br />

ibidem.<br />

670 Como esclarece M. Seligmann, em seu livro sobre Benjamin, as idéias, como mônadas, os fenômenos<br />

originários e a imagem dialética pertencem a uma mesma constelação de conceitos que aproximam a<br />

teoria da linguagem da temporalidade histórica. Há uma semelhança entre o sentido que só é conferido<br />

pelo texto, pela linguagem, com a verdade que só pode ser conhecida no instante, no agora. Cf.<br />

SELIGMANN-SILVA, M.(1999) p.147; BENJAMIN, W. (1984).


inconsciente, como exatamente aquilo que nega à representação-coisa, vinda do<br />

inconsciente, a sua tradução em palavras. 671<br />

A duplicidade da linguagem se articula às concepções de linguagem decaída – a<br />

coisa em si não tem nenhum verbo, diz Benjamin 672 , ela é conhecida pelo verbo<br />

humano: a linguagem – bem como de uma linguagem pura, ou linguagem da<br />

linguagem, pois a restituição a que se refere não é propriamente a do sentido original, já<br />

que o sentido está perdido desde sempre, mas da significação (admitindo-se que o signo<br />

comporta a duplicidade); trata-se, para Benjamin, de “recuperar a faculdade de<br />

nomeação” 673 .<br />

Da mesma forma, o texto de Rosa apresenta ambas as dimensões da linguagem,<br />

mostrando-nos como uma não existe sem a outra. Assim, no aspecto significante dos<br />

nomes da memória, os significados se articulam no interior do texto, ou em relação a<br />

outros textos do autor, por exemplo, na oposição lembrar-deslembrar; ou ainda na<br />

diferença entre deslembrar Diadorim e ser do deslembrado de Riobaldo. Contudo, é no<br />

cruzamento deste registro com a dimensão nomeadora que Ana Maria Machado referiu-<br />

se à função do nome na escrita do autor como uma “constelação de significados” 674 :<br />

... Mas o mais importante é que essa significação nunca é isolada e só<br />

se verifica realmente se o Nome é tomado no conjunto do texto, como<br />

parte de um sistema, em que um elemento só existe por oposição a<br />

outros. (MACHADO, A. M., 2003, p.121).<br />

No que concerne à dimensão mágica do nome no texto, o nomear evoca o<br />

retorno à origem para redimir as palavras esquecidas, e recuperar o ato criador, que lhe<br />

confere o estatuto de sagrado não por uma natureza intrínseca, mas, simplesmente,<br />

671 Cf. FREUD, S. (1988a) p.206.<br />

672 “...parce que la chose en elle-même n’a aucun verbe; crée à partir du verbe de Dieu, elle est connue<br />

dans son nom selon le verbe humain.” Cf. BENJAMIN, W. (2000) p.156.<br />

673 LINS, V. (2005) p.145.<br />

674 MACHADO, A.M. (2003) p.182.


porque, neste ato, o homem se compara a Deus, nomeando aquilo que não tem nome – o<br />

que a declaração do escritor ao Cruzeiro, em 1967, parece confirmar:<br />

Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, nos livros<br />

arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo<br />

salvar. (...) Para determinadas passagens, entretanto, não existem<br />

palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons<br />

que a correspondam. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M.,<br />

2006, p.82).<br />

Talvez, esta citação forneça chaves de leitura para a criação do termo não-<br />

memória, no conto-poema “Evanira”, de Ave, Palavra 675 , expressão criada para nomear<br />

uma memória que a lembrança não alcança, feita de esquecimento, e que tem, como<br />

veremos, muito a esclarecer sobre a memória no Grande Sertão.<br />

As Terceiras Memórias ou Uma História do Coração<br />

Dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no<br />

rabo da palavra.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA.<br />

Afirmar, portanto, que a memória no texto é fundada sobre a negatividade do<br />

esquecimento não significa que não haja produções de sentido em relação ao conteúdo<br />

do que merece ser lembrado, e à própria concepção do rememorar. Pois a memória não<br />

foge à regra rosiana da tensão entre os opostos, do tudo é e não é de Riobaldo, que<br />

engendra sempre uma terceira possibilidade. Assim, cabe ver um pouco mais no detalhe<br />

esta sucessiva busca pelo passado que se desdobra na interrogação filosófica sobre a<br />

própria noção de rememoração.<br />

Em sua negação mais contundente, quando se recusa a narrar as guerras,<br />

caracterizadas como tontos movimentos, o que está em jogo para o narrador é uma<br />

lembrança que pode ser relatada, mas não possui valor. Em outras palavras, trata-se de<br />

675 ROSA, J.G. (1970).


um questionamento ético do que vale a pena ser lembrado, do estatuto ético da<br />

memória:<br />

... Que isso merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor<br />

quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que<br />

é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja.<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 245).<br />

A lembrança sem valor é, assim, interrompida em seus excessos, como na<br />

tentativa frustrada em atravessar o Liso do Sussuarão: “Mas para que contar ao senhor,<br />

no tinte, o mais que se mereceu?” 676 . No repetido questionamento, a linguagem é alçada<br />

à posição de um limite ético, onde o que se percebe é a insuficiência da memória diante<br />

da impossibilidade de comunicar exatamente o que se passou: “Para que conto isto ao<br />

senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?” 677 –<br />

“De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso<br />

de guerra é mesmice...” 678 .<br />

Além de sua função comunicativa, portanto, a dimensão parcial, fragmentada e<br />

negativa da linguagem, que aponta para a impossibilidade de dizer tudo, surge como<br />

mediação para a escolha subjetiva de não narrar, não rememorar o Mal indefinidamente,<br />

impondo um limite, como se vê também na primeira batalha junto ao Hermógenes: “De<br />

tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia<br />

para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho” 679 .<br />

Aqui, dois aspectos chamam a atenção: a associação das memórias de guerra à narração<br />

de uma vida como seqüência linear de fatos objetivos; e a contraposição a estas, de uma<br />

outra instância da memória, das outras coisas que valem a pena serem buscadas, e que<br />

se configuram numa armação subjetiva da memória, onde, através do signo, se juntam o<br />

676 ROSA, J.G. (2001) p. 70.<br />

677 Idem, p. 227.<br />

678 Idem, p. 319.<br />

679 ROSA, J.G. (2001) p. 232.


pensamento e o sentimento, indicando, mais uma vez, que os sentidos da memória se<br />

encontram além da objetividade do relato:<br />

... Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte (...).<br />

O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda<br />

em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com<br />

outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só<br />

sendo as coisas de rasa importância...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.114).<br />

Se esta recusa incessante revela um plano sempre deslocado para mais além,<br />

sempre outro, há efetivamente a construção de sentidos para o rememorar, que se<br />

colocam em oposição aos primeiros: as horas da gente são valorizadas em oposição às<br />

horas de todos, o armar o ponto dum fato em oposição à narração da vida em dobrados<br />

passos; os signos e sentimentos em distinção às guerras e batalhas. No entanto, estas<br />

segundas imagens da memória, colocadas em oposição às primeiras, não possuem<br />

significado definido e estável como os anteriores. Quando nos indagamos sobre o<br />

sentido que podem produzir, vemos que seu sentido se constrói não apenas em oposição<br />

aos primeiros, mas num eixo: horas da gente – armação do ponto dum fato – signos e<br />

sentimentos. Da mesma forma, as outras coisas – a sobrecoisa – as coisas importantes<br />

se ligam numa constelação que produzem sentidos; porém, sentidos mais opacos,<br />

obscuros, e por serem parciais, não-todos, o que eles mais produzem são as novas<br />

perguntas, novos significados criados a cada leitura.<br />

Construídas em aberto, num nível distinto da descrição, do dito, estas imagens<br />

da memória propagam-se numa terceira possibilidade – esta imagem tão cara a Rosa –<br />

revelando o desejo do narrador de contar as outras estórias, que não se configuram<br />

como primeiras, nem segundas, mas como terceiras estórias, por serem projetadas<br />

numa terceira margem da significação. Lá, onde era – nos ocos cheios de nada, onde as<br />

coisas podem vir a ser – ou, o terceiro pensamento, entre a paz e angústia – a imagem<br />

surge como o terceiro elemento benjaminiano de uma memória comparada aos sonhos,


eino em que as imagens, sobredeterminadas pela condensação e pelo deslocamento,<br />

guardam a capacidade de se assemelhar entre si; onde, conforme o verso de Paz, tudo é<br />

porta, tudo é ponte:<br />

... As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a<br />

estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de<br />

roupas, e é ao mesmo tempo “bolsa” e “conteúdo”. E, assim como as<br />

crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o<br />

que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia –, assim também<br />

Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu,<br />

para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem.<br />

(BENJAMIN, W., 1986a, p.39).<br />

Dizendo de outro modo, na rememoração, que inclui a busca das “razões de não<br />

ser” 680 de seu passado, e na filosofia sobre o tempo e a memória de Riobaldo, há<br />

afirmação, mas sobretudo de algo que não está lá. Esta construção fica ainda mais clara<br />

na associação entre as imagens da memória anteriores (horas da gente, coisas<br />

importantes, etc.) com a imagem de uma memória do coração:<br />

Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? (...) Mesmo<br />

o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e<br />

verdadeiramente entendido – porque enquanto coisa assim se ata, a<br />

gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo.<br />

(...) “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as<br />

horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. (ROSA,<br />

J.G., 2001, p.154).<br />

Pois a memória do coração tem a ver – ao mesmo tempo – com o amor por<br />

Diadorim, com as vísceras, com o que pulsa no real do corpo; mas também com o que é<br />

depois entendido e nomeado como horas da gente, numa subjetivação desta<br />

experiência, como recordação – o que volta no coração e marca no corpo:<br />

680 ROSA, J.G. (2001) p. 201.<br />

... Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração<br />

copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que<br />

o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 481).


A imagem do coração reúne todas as coisas: “Coração cresce de todo lado.<br />

Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.<br />

Coração mistura amores. Tudo cabe” 681 . Por isto mesmo, define-se como o menos<br />

conhecido, a parte mais central ou profunda de algo, o âmago e a parte mais íntima de<br />

um ser 682 . “Coração da gente – o escuro, escuros” 683 . Obscuridade que apela para ser<br />

conhecida, nomeada; escutar as memórias de Riobaldo é escutar seu coração: “Escute<br />

meu coração, pegue no meu pulso...” 684<br />

A junção entre o real do corpo e a idéia de um cerne da linguagem encontra<br />

expressão no desejo de Riobaldo de ir até no rabo da palavra. No diálogo com Günter<br />

Lorenz, o escritor associa a tarefa do escritor a um “compromisso do coração” 685 ,<br />

distinto da luta política engajada, como um “credo, uma poética” 686 que equipara<br />

homens e escritores em um “servir à verdade e aos homens” 687 . Compromisso que se<br />

aproxima da “leitura das vísceras” 688 (das semelhanças) benjaminiana, da busca em<br />

liberar a imagem do passado, cuja apreensão “dá-se num relampejar. Ela perpassa<br />

veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada” 689 . Na mesma<br />

entrevista, Guimarães Rosa articula a busca pelo sentido original das palavras à crença<br />

no poder transformador da linguagem: “renovando a língua se pode renovar o<br />

mundo” 690 ; definindo-se como um reacionário da língua: “pois quero voltar cada dia à<br />

origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder dar<br />

681 Idem, p. 204.<br />

682 HOUAISS, A. (2009).<br />

683 ROSA, J.G. (2001) p. p.52.<br />

684 Idem, p.601. Pensando na força poética desta imagem de Rosa, que parte de um exame médico para<br />

abri-la em mil e uma imagens da memória, cabe a pergunta, parafraseando Didi-Huberman, a respeito de<br />

Walter Benjamin: “E como não segui-lo, como não fazer nosso este desejo?” Cf. DIDI-HUBERMAN, G.<br />

(1998) p.178.<br />

685 LORENZ, G. (1983) p.84.<br />

686<br />

Idem, p.74.<br />

687<br />

Idem.<br />

688<br />

BENJAMIN, W. (1986f) p.112.<br />

689<br />

Idem, 110.<br />

690<br />

Idem, p.88.


luz segundo a minha imagem” 691 . Novamente, a ressalva segundo a minha imagem o<br />

distancia da visão de uma verdade objetiva situada na origem, reinserindo as noções de<br />

construção, montagem, fantasia, tanto para a temática da ficção, como para a da<br />

memória.<br />

Vê-se, portanto, que a memória do GSV envolve ir ao coração da linguagem e ao<br />

coração da história: ao encontro daquilo que volta no corpo, no coração, daquilo que faz<br />

com que o pensamento pare, uma mônada, um centro saturado de tensões, para extrair,<br />

emancipar 692 a imagem – o terceiro elemento – esquecida, da história. De maneira bem<br />

próxima, este coração já foi objeto da análise de Finazzi-Agrò, no estudo onde lê o<br />

conto “Meu tio, o Iauaretê” juntamente com o GSV, comparando-os com o Heart of<br />

Darkness, O Coração das Trevas 693 , romance de Joseph Conrad.<br />

A semelhança gira em torno deste centro escuro, originário, de uma “natureza”<br />

selvagem e abominável que exerce seu fascínio imaginário sobre uma civilização que<br />

vai a seu encontro (o crítico emprega a palavra vertigem), e onde a questão da<br />

aniquilação, da morte, se impõe por todos os lados. Em “Meu Tio, o Iauaretê”, este<br />

centro se faz notar em diversos níveis, desde o deserto indefinido habitado pelo<br />

protagonista: “Sou fazendeiro não, sou morador... Eh, também sou morador não. Eu –<br />

tôda a parte” 694 . Sujeito indefinido pelo espaço: “Eu – longe” 695 ; bem como pela<br />

origem, filho de índia com branco; ele se revela um misto de homem e animal: “Eu –<br />

onça” 696 : “onça é meu tio, o jaguaretê” 697 .<br />

691 LORENZ, G (1983) p.84.<br />

692 “Emancipar: do latim manceps/pis, termo jurídico que significa tomar, pegar pela mão, duplo gesto<br />

de reivindicar autoridade e libertar de uma autoridade. As imagens se vendem e se compram, mas a<br />

‘imago’ é inestimável, não se vende, é sua história, sua genealogia (...) emancipar significa assumir a<br />

possibilidade de remontagem do tempo”. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />

693 CONRAD, J. (2010).<br />

694 ROSA, J.G. (1969) p. 126.<br />

695 Idem, p.129.<br />

696 Idem, p.135.<br />

697 Idem, p.137.


Ele, caçador, pago pelo fazendeiro para desonçar o mundo, narra uma<br />

experiência no limite do humano, de con-fusão com o maior predador do território<br />

brasileiro. Sim, segundo o próprio, ele: caça, mata, come a carne e o coração, bebe o<br />

sangue, come a caça, cheira a, fala, entende, trepa (?) com onça; até descobrir-se: “Eu<br />

viro onça. Então eu viro onça mesmo” 698 . Originário deste local inconsciente, de onde<br />

brota a linguagem; ele, mais perto do fundo do que Riobaldo, possui, não somente<br />

vários nomes, mas todos: “Ah, eu tenho todo nome” 699 ; condição que o equipara ao<br />

sem-nome, o Diabo: “ Diabo? Capaz que eu seja...” 700 – “Agora, tenho nome nenhum,<br />

não careço” 701 .<br />

Impossível não ler, também aqui, a perda do nome como destituição, em seus<br />

contornos histórico-sociais: o tornar-se onça como vingança contra a condição imposta<br />

pelo fazendeiro Nhô Nhuão Guede, o homem ruim e rico, de quem ele se queixa<br />

repetidamente: “me botou aqui. Falou: – ‘Mata as onças, tôdas!’ Me deixou aqui<br />

sòzinho, eu nhum, sòzinho de não poder falar nem escutar...” 702 E a solução final,<br />

deixada em suspensão, como mistério, como um segredo do qual não saberemos nunca,<br />

quem mata quem, lá, em nossa origem: o índio, que come o preto e o branco? Ou o<br />

branco, que assassina a tiros aquele que é visto como selvagem? Esta me parece ser a<br />

questão central desenhada no final do conto 703 :<br />

Mecê gostou, ã? Prêto prestava não, ô, ô, ô... Oi: mecê presta,<br />

cê é meu amigo... Oi, deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um<br />

tiquinho em mecê, tiquinho só, encostar minha mão...<br />

Ei, ei, que é que mecê tá fazendo?<br />

698 Idem, p.146.<br />

699 Idem, p.144.<br />

700 Idem.<br />

701 Idem.<br />

702 Idem, p.149.<br />

703 Devo a uma conversa com a professora Marília Rothier Cardoso esta leitura da inconclusão, que difere<br />

da interpretação de Finazzi-Agrò sobre o final da estória, para quem o selvagem é morto a tiros pelo<br />

visitante. Entretanto, o crítico é quem coloca com maior precisão a questão da inconclusão na obra de<br />

Rosa, que suscitou todo este debate.


Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra<br />

outra banda... Mexo não, tô quieto, quieto... Oi: cê quer me matar, ui?<br />

Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me<br />

prender? Oi: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à toa... Ói o<br />

frio... Mecê tá dôido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora!<br />

Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem,<br />

Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa de<br />

prêto? Matei prêto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui,<br />

mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Macuncôzo...<br />

Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...<br />

Hé... Aar-rrã... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci...<br />

Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...<br />

(ROSA, J.G., 1969, p.159).<br />

De acordo com Finazzi-Agrò, enquanto no romance de Conrad trata-se de uma<br />

viagem da memória, para a qual o leitor é preparado e levado, progressivamente, a<br />

penetrar no âmago do horror; no conto de Rosa, o lugar da enunciação ocupado pela<br />

voz narrativa, é como se já estivesse lá e, deste centro obscuro partisse sua narrativa e<br />

sua rememoração, pois a forma do conto também é a do diálogo, onde o protagonista<br />

conta sua vida a um interlocutor, mas numa voz que partiria do próprio abismo:<br />

... em suma, diferentemente do que acontecia em Heart of Darkness,<br />

não há um Marlow contando de um Kurtz, o que preserva, em certa<br />

medida, a perspectiva de uma razão falando de seu contrário – aqui,<br />

não, aqui é o habitador do centro que con-voca, no seu discurso, o<br />

discurso do outro, do civilizado. Anula-se, com isso, o espaço, a<br />

distância, a fronteira tranqüilizadora entre o eu culto e o ele selvagem,<br />

instaurando um novo (e, ao mesmo tempo, voltando a um<br />

antiqüíssimo) sentido do espaço (...) em que também nós, os<br />

interlocutores, os civilizados, corremos o risco de ser engolidos.<br />

(FINAZZI-AGRÒ, E. 2001 p. 136-137).<br />

Há, no conto rosiano, porém, algo não apontado diretamente pelo crítico, que,<br />

por outro lado, o aproxima de minha leitura do GSV, e que consiste no humor inserido<br />

pelo escritor mineiro nesta ameaça insidiosa, onde o discurso do narrador também oscila<br />

entre ameaçar e ser ameaçado; estabelecendo-se num ritmo, comparável aos<br />

movimentos que os felinos fazem com suas presas, parecendo brincar com elas... É que<br />

o texto parece jogar com todas as nossas idealizações, promovendo uma dança dos<br />

lugares entre quem devora e é devorado, deslocando os lugares ocupados pelos


personagens na história. Do contrário, como justificar nosso riso e o desconcerto diante<br />

das repetidas menções do índio ao preto – o ser ausente no diálogo (não fala nem escuta,<br />

mas é falado o tempo todo) entre o índio e o branco, e de quem, aparentemente, não<br />

resta dúvida ter sido aniquilado?<br />

Eh, onça gosta de carne de prêto. Quando tem um prêto numa<br />

comitiva, onça vem acompanhando, seguindo escondida, por<br />

escondidos, atrás, atrás, atrás, ropitando, tendo ôlho nele. Preto rezava,<br />

ficava seguro na gente, tremia todo...<br />

(ROSA, J.G., 1969, p. 151).<br />

Entretanto, se todos os textos mencionados trazem o questionamento até as<br />

raízes da história e da linguagem; a língua onomatopaica do conto rosiano, cheia de<br />

ruídos e palavras indígenas, nos quais o sentido se dissolve no som, confirma a posição<br />

abissal do narrador; que, como já afirmei, difere da posição de Riobaldo no Grande<br />

Sertão. Neste, o narrador não se situa o tempo todo no deserto absoluto, sua<br />

rememoração é entremeada por diversos signos da negatividade. Mas, o atravessar – o<br />

mór infernal a gente media – e o deixar-se atravessar por esta corrente que tudo leva,<br />

tornando-se parte dela, não alude à morte como saída, pois Riobaldo pensa, rememora –<br />

e se move – através do vazio, tanto na acepção do atravessar, como no sentido de fazer<br />

dele seu mote, seu objeto 704 .<br />

Sem pretender atribuir hierarquias de qualquer natureza entre os textos, pode-se<br />

dizer que há traços deste fundo imemorial de que parte o conto, no romance; ou talvez<br />

pudéssemos dizer que, enquanto no conto, o narrador se encontra no presente, lá, no<br />

exílio, à beira do abismo escuro da origem; no romance, há uma idéia de trânsito,<br />

passagem, viagem permanente, que atravessa e evoca este mesmo abismo. Apropriando-<br />

704 Toda esta analogia vai ao encontro das pesquisas de Ana Luisa Martins Costa, segundo as quais o GSV<br />

e Corpo de Baile, escritos quase na mesma época, fariam parte de um mesmo projeto de Guimarães Rosa,<br />

tendo o GSV crescido demais, e se desenvolvido de uma das novelas não publicadas do Corpo de Baile,<br />

possivelmente o “Meu Tio, o Iauaretê”. Cf. GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. (Orgs.) (2006).


me da fala de Didi-Huberman sobre a imagem dialética, é preciso reconhecer que o<br />

coração do sertão funciona como um centro para:<br />

...pensar a oscilação contraditória em seu movimento de diástole e<br />

sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o fluxo e o<br />

refluxo do mar que bate) a partir de seu ponto central, que é seu ponto<br />

de inquietude, de suspensão, de entremeio.<br />

(DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.77).<br />

A radicalidade desta proposta encontra nome, como antecipamos, em<br />

“Evanira” 705 , texto de difícil classificação, cuja abertura por um narrador que nomeia a<br />

um si mesmo enquanto tal, duplicando-se, já introduz a complexidade: “O narrador,<br />

tenta, em ímpetos, narrar o inarrável” 706 . Para Susana Lages, trata-se de um poema<br />

com diálogos e uma narrativa comparável a um roteiro de teatro ou cinema. Em sua<br />

análise, que enfatizou a figura do anjo como mediador entre os tempos e entre os<br />

amantes, destaca-se a idéia relacionada à memória, da saudade como “emblema da<br />

relação amorosa que deve, (...) necessariamente passar por alguma vivência da morte<br />

(...) sob a forma da separação” 707 .<br />

infância,<br />

Perpassado pela figura do Anjo-nôvo e suas asas, que enviam às memórias de<br />

Anjo nôvo. Nós –<br />

E UM SOM CHEIO DE AVENCAS PENDURADAS,<br />

restituindo-me: menino.<br />

(ROSA, J.G., 1970, p.37).<br />

o texto fala deste anjo como a necessária saudade, pensada a partir da história de<br />

dois seres “que imemorialmente se amam” 708 , uma saudade como anterior ao próprio<br />

amor:<br />

705 ROSA, J.G. (1970).<br />

706 ROSA, J.G. (1970) p. 36.<br />

707 LAGES, S. (2002) p.148.<br />

708 ROSA, J.G. (1970) p.36.


...quem não ama e tem saudades<br />

está à espera de alguém, como o não nascido quer o ar, ainda não<br />

respirado. Como a pedra, de asas inùtilmente ansiosa. Como os cães<br />

elevam os ouvidos. Como o temer, sòzinho, ver. Como o não saber.<br />

(ROSA, J.G., 1970, p. 37).<br />

Onde o nosso jardim imemorial, que evocaria a plenitude da origem, é feito de<br />

“florestas e pausas (grifo nosso)” 709 . Mas, da dissolução no amor, experiência que<br />

reúne, “Amo-te (...) Uno-me. Eu, enfim era eu, indispersado” 710 – resta uma saudade,<br />

“sobrada solidão” 711 , que evoca novamente o não-saber da origem: “quem poderia<br />

restituir-me o que, DEPOIS nunca houve, só ausente, (...) no nevoeiro do agora?” 712 . A<br />

saudade em “Evanira” faz menção à memória da origem enquanto perdida, mas<br />

potencialmente criadora: “EVA-NASCENTE, PRIMEVA”:<br />

A saudade é um sonho insone<br />

A saudade é o coração dando sombra.<br />

(ROSA, J.G., 1970, p.39).<br />

Ao evocar a incompletude, o “no meio do caminho desta vida” 713 de Dante, a<br />

saudade funda uma ausência que se constitui como deserto a atravessar “(ou atravesso-<br />

a, como a um não-mar, a um não-lugar – EU, SAARONAUTA ...)” 714 . É quando o<br />

narrador se diz ameaçado pelo evanescer da saudade e do tempo, que põe em risco a<br />

perda do Amor. Aqui, tem lugar esta memória que não a alcança, que traz de novo o não<br />

saber da origem, junto a uma possível releitura do tempo originário romântico; pois,<br />

mesmo antes, nem tudo era falante:<br />

709 Idem, p.37.<br />

710 Idem, p. 37.<br />

711 Idem, p.38.<br />

712 Idem.<br />

713 Idem.<br />

714 Idem, p.39.<br />

NÃO-<strong>MEMÓRIA</strong><br />

NÃO-LEMBRANÇA:<br />

(...) A AUSÊNCIA DOS PÁSSAROS QUE ANTES<br />

VISITAVAM <strong>NO</strong>SSAS MASMORRAS EMPAREDADAS DE<br />

SILÊNCIO.


(ROSA, J.G., 1970, p. 40).<br />

O narrador tem, então, “SAUDADE da saudade” 715 , e fala da importância de<br />

cultivar a saudade e a memória, através de um limite mortal, pois “morre-se de não se<br />

lembrar” 716 , de não ter saudade. Mas é a saudade da saudade que o confronta com a<br />

morte, com a não-memória, com o limite da origem. Se estamos no campo do<br />

inconsciente, não há como fugir do tempo desdobrado, do só-depois que insere a<br />

memória e a saudade como saudade da origem.<br />

Ao atravessar o vazio da saudade, diz o narrador, sobre si mesmo: “o narrador<br />

sabe-se transformado novamente e que passou por uma espécie de morte, propiciatória<br />

e necessária” 717 . Então, este vazio, não-memória, revela-se como mediador e fonte,<br />

como o que move a memória:<br />

SAUDADE: A DONA DE PONTES,<br />

CIDADES E PAISAGENS.<br />

(...)<br />

A<br />

DANÇA LUCIFORME<br />

Deusa.<br />

(ROSA, J.G., 1970, p.43).<br />

O texto termina com um apelo à construção desta saudade e ao silêncio,<br />

acenando para esta não-memória, ou história do coração, do que volta no coração, e do<br />

que move o retorno ao coração da história – que, se envolve uma ida à origem, da<br />

linguagem, seria para recuperar o diabolismo 718 da palavra, sua capacidade de seduzir e<br />

reproduzir, produzindo sempre um sentido a mais, além, que inclui o necessário silêncio<br />

– do mesmo modo que a ida ao passado caracteriza-se como capaz de liberar a imagem,<br />

na miragem da origem, não para fixá-la como registro; mas, ao compará-la, movê-la,<br />

colocando em evidência sua dimensão evanescente, de esquecimento.<br />

715 Idem, p.40.<br />

716 Idem.<br />

717 Idem, p.42.<br />

718 Cf. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.14.


Trata-se, portanto, de um texto revelador em muitos aspectos, entre eles, o da<br />

constatação de que este lá, (onde era) é fundamentalmente ritmo, nota musical, o que é<br />

percebido na extrema semelhança do ritmo do poema, semelhante ao de uma canção,<br />

com aquele do meio do romance, que apontei anteriormente, quando Riobaldo faz<br />

balanço de sua história, colocando tudo, até a si mesmo, em suspensão 719 . É preciso<br />

perceber que é em compasso de dança, onde o ritmo do luto se aproxima do jogo, que<br />

esta imagem, que o nome “não-memória” evoca, é elaborada, do mesmo modo como as<br />

que se seguem.<br />

Imagens do esquecimento<br />

Muita coisa importante falta nome.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />

Os representantes da ausência espalham-se pela recordação de Riobaldo,<br />

constituindo-se em índices da negatividade; ou seja, manifestações de algo que<br />

comparece como ausente, cujos exemplos vão desde o espaço físico, até algumas<br />

figurações humanas e inumanas, insinuando-se através de determinadas construções<br />

formais. No espaço, já foi apontada a presença dos inúmeros “fundos fundos” 720 , ocos e<br />

ermos, cujo maior exemplo seria o deserto do Liso do Sussuarão, o miôlo Mal do<br />

Sertão; mas que se estendem aos pântanos movediços, como o “brejão engolidor” 721 ;<br />

ou abismos como:<br />

... ao Vão-do-Ôco e o Vão-do-Cúio: esses buracões precipícios –<br />

grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas<br />

(...). Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de descer e ir ver,<br />

aindas que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso<br />

escalavrado, entre as moitarias de xaxim. (ROSA, J.G., 2001, p. 520).<br />

719 Devo esta afirmação aos textos e ao curso de Didi-Huberman, à sua formulação de que o que nos olha<br />

na obra provém do ritmo e dos restos, bem como à obra crítica e teórica de José Miguel Wisnik, cujos<br />

textos consultados encontram-se na bibliografia final deste trabalho.<br />

720 ROSA, J.G. (2001) p. 398.<br />

721 Idem, p. 83.


O Diabo representa a figura máxima desta escala, cujo excesso de nomes já<br />

aponta para algo que se manifesta sem, necessariamente, consistir numa identidade:<br />

“Não é, mas finge de ser” 722 .<br />

... Rincha-Mãe, Sangue-D’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-<br />

Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o<br />

Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos<br />

nomes... (ROSA, J.G., 2001, p.26).<br />

O pacto se insere como o grande acontecimento negativo do enredo, onde<br />

Riobaldo invoca o demônio, e obtém como resposta o silêncio. A noite do pacto, repleta<br />

de escuridão, de vento, e de frio – mas também de seres noturnos, grilos, passarinhos,<br />

cobras – fica sendo o grande confronto com o Nada, o Acaso, o unheimlich, o<br />

descentramento do real; verdadeira “experiência da noite sem limite” 723 , onde tudo é<br />

passível de dissolução:<br />

“– Lúcifer, Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengulindo.<br />

Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia<br />

feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que<br />

termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante<br />

mal-acordado dum totalzinho sono.<br />

“– Lúcifer ! Satanaz!...”<br />

Só outro silêncio. O senhor sabe o que é o silêncio é? É a gente<br />

mesmo, demais.<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.438).<br />

O Hermógenes se apresenta como uma personificação do demo, e é interessante<br />

lembrar que ele é vencido por outro personagem que escolhe a guerra ao amor, mas que<br />

se caracteriza, acima de tudo, mais pela ambigüidade do que pelo Mal, que vem a ser<br />

Diadorim: “Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que<br />

cismava profundo” 724 . A esquisitice de Diadorim remete ao silêncio: “Ele gostava de<br />

722 Idem, p. 318.<br />

723 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.99.<br />

724 Idem, p.77.


silêncios” 725 . Diversos aspectos, já mencionados, apontam para o enigma em torno de<br />

Diadorim.<br />

Outros dois personagens destacam-se em seu caráter negativo: um cego, aquele<br />

que não vê, Borromeu é indagado por Riobaldo, que o toma como a personificação do<br />

próprio sertão, numa passagem bastante enigmática: “– Você é o Sertão?” 726 – E o<br />

senhor, que não fala, presença sem nome e silenciosa por todo o romance, que confirma<br />

– através do seu silêncio como propiciador da construção da história – que a<br />

negatividade destacada, aqui, vai muito além do Mal como valor moral, e tampouco<br />

define uma posição niilista, pois o Mal, talvez situado para além da maldade, é visto<br />

como parte de tudo que há, da qual podemos ver somente a manifestação, os efeitos.<br />

Neste sentido, o que denominamos negatividade no GSV possui ressonâncias<br />

com a noção de pulsão, como algo além da representação, exterior ao psíquico, que se<br />

manifesta através da repetição; e que, portanto, em primeiro lugar, não se confunde ou<br />

restringe a uma agressividade submetida à esfera da moral ou do sexual, pois trata-se de<br />

um princípio ou função, “isto é, (...) algo que está presente a cada momento regendo<br />

cada começo” 727 . Além disso, como princípio disjuntivo, a pulsão de morte tampouco<br />

se confunde com niilismo absoluto; ao contrário, de acordo com a leitura lacaniana, o<br />

que está em jogo é uma “vontade de destruição, vontade de recomeçar com novos<br />

custos, vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa” 728 ;<br />

“vontade de criação a partir de nada” 729 , que a inscreve numa positividade, como<br />

potência criadora.<br />

Novamente, encontramos ressonâncias com o pensamento de Walter Benjamin,<br />

quando afirma, sobre o caráter destrutivo: “O caráter destrutivo só conhece um lema:<br />

725 Idem, p. 51.<br />

726 Idem, p. 607.<br />

727 GARCIA-ROSA, L.F. (1990) p.155.<br />

728 LACAN, J. (1988c) p.260.<br />

729 Idem.


criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é<br />

mais forte que todo ódio.” 730 Veja-se, na recordação de Riobaldo, a percepção sobre o<br />

momento do pacto: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorozamente, esta<br />

vida é grande” 731 . E o testemunho do período que sucedeu este encontro com o<br />

nada:“desde por aí, tudo o que vinha por suceder era engraçado e novo, servia para<br />

maiores movimentos” 732 .<br />

Na mesma perspectiva, no prefácio “Aletria e Hermenêutica” 733 , uma espécie de<br />

ensaio em que Guimarães Rosa contrapõe a estória à história, situando a primeira do<br />

lado do humor, da anedota; ele menciona um nada residual, distinto da morte absoluta,<br />

definido como um resto da linguagem, que aponta para algo que não se submete<br />

totalmente a ela mesma: “O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo” 734 .<br />

Em seguida, acrescenta: “Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo” 735 , como<br />

se fosse Riobaldo, a declarar: “Do escurão, tudo é mesmo possível” 736 .<br />

Em relação à linguagem, se a língua rosiana tem como proposta este mergulho,<br />

esta ida ao âmago da própria linguagem, já se falou num lance de dês (entre Deus,<br />

Diabo, Diadorim e seus desdobramentos mórficos, que compõem o texto...), que se<br />

articula como um encontro com a potência do Acaso, da profusão diabólica da<br />

linguagem 737 . De maneira análoga, já se apontou um lance de ‘s’ e ‘f’ associado ao Mal<br />

e ao sem-fim (“oferecer fim, oferecer faca”), que constituem formas pelas quais a<br />

linguagem se afasta da função comunicativa para demarcar a dimensão em que o<br />

sentido se aproxima do som, da materialidade do signo, que aponta para o não-sentido:<br />

730 BENJAMIN, W. (1989) p.236.<br />

731 ROSA, J.G. (2001) p. 438.<br />

732 ROSA, J.G. (2001) p. 445.<br />

733 ROSA, J.G. (1985).<br />

734 Idem, p.10.<br />

735 Idem, p.17.<br />

736 Idem, (2001) p. 220.<br />

737 CAMPOS, A. (1978).


... O fato é que a reflexão sobre o ser da maldade e o fim maligno do<br />

prazer de fazer sofrer e de sofrer desdobram-se de modo sonoro numa<br />

proliferação de “s” e “f” que aparecem maciçamente nas cenas que<br />

descrevem o movimento dilacerante, triturante, moedor e destruidor<br />

da “matéria vertente” – das massas aquáticas, animais ou humanas.<br />

(...) As saudades repetidamente mencionadas pelos jagunços de uma<br />

“boa esfola, com faca cega” aparecem assim como a versão humana<br />

do movimento “surdo e cego” da ondulação aquática (...) ou do Liso<br />

do Sussuarão, “inferno sem fim” que “se emenda com si mesmo”.<br />

(ROSENFIELD, K., 2006, p.229).<br />

Porém – vale dizer novamente – o não-sentido, aqui, é considerado como lugar<br />

de criação dos múltiplos sentidos, e não pura ausência, note-se o exemplo dos<br />

significantes Diadorim delicado, ou Diá, como produtores de significados importantes.<br />

A linguagem onomatopaica aponta, segundo Benjamin, para esta dimensão em que o<br />

som procura assemelhar-se ao sentido, que revela a face da linguagem além do<br />

significante:<br />

... Mas, se a linguagem, como é óbvio para as pessoas perspicazes, não<br />

é um sistema convencional de signos, é imperioso recorrer, no esforço<br />

de aproximar-se da sua essência, a certas idéias contidas nas teorias<br />

onomatopaicas, em sua forma mais crua e mais primitiva.<br />

(BENJAMIN, W., 1986f, p.110).<br />

Além disso, os testemunhos de Riobaldo sobre o pacto (citados na página<br />

precedente) fazem pensar é nesta experiência do vazio como um processo, que só é<br />

“reveladora por ser dialética (...) mostrando o objeto como perda, mas ultrapassando<br />

também a privação em dialética do desejo” 738 . A série de transformações que têm lugar<br />

após o pacto, como a passagem de jagunço a chefe do bando, a mudança de posição de<br />

Riobaldo em relação a Diadorim e o projeto de acabar com a guerra no sertão, apontam,<br />

todas, para o desejo colocado em movimento.<br />

As construções formais negativas se espalham pelo texto, ainda, através dos<br />

paradoxos, que produzem uma exaustão do sentido; das pausas e interrupções rítmicas<br />

da narração; das interrogações sem resposta; e das negações desdobradas, que evocam<br />

738 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.102.


uma dimensão mais primordial da negativa, um além da representação, além (ou aquém)<br />

do recalque 739 ; ora referidas ao sertão: “Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar,<br />

nunca não encontra. (grifo nosso)” 740 . Ora, ao Liso do Sussuarão:“Nas lagoas aonde<br />

nem um de asas não pousa” (grifo nosso) 741 . “Não tem excrementos. Não tem<br />

pássaros.” 742 – “Água não havia, capim não havia” 743 .<br />

Montagem, jogo, dansa<br />

... De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno<br />

dele, e em sonho nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era<br />

a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter<br />

sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada<br />

de Copacabana.<br />

(BUARQUE, CHICO. LEITE DERRAMADO).<br />

Em relação à comparação com o divino feita por Benjamin – do júbilo da<br />

nomeação 744 – que encontramos na paisagem fora das molduras de “Os Cimos” 745 , ou<br />

na afirmação do nome como sagrado, não penso ser forçado compreendê-la mais como<br />

um efeito do que uma crença, pois, como ensina Didi-Huberman, a partir de Freud, a<br />

nomeação da experiência só se dá numa obra de perda, somente diante da morte<br />

iminente, ou entre duas mortes, daquilo que não existiu e um dia deixará de existir; a<br />

experiência da linguagem se dá diante da fenda, entre o ser nomeado e o nomear 746 .<br />

739<br />

Em “A Negativa”, Freud associa, primeiro, a negação ao recalque daquilo que não se admite recordar,<br />

chegando a afirmar que “o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula<br />

negativa.” Mas, ao longo do texto, faz supor um outro nível de negatividade, não necessariamente<br />

submisso ao recalque, pois se apresenta também na psicose; ligado à pulsão de morte, definida, ali, como<br />

uma função, algo destrutivo, disjuntivo, oposto à união estabelecida por Eros, que me parece próximo do<br />

que vemos nas negações desdobradas de Guimarães Rosa. Cf. FREUD, S. (1988g) p.269.<br />

740<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 317.<br />

741<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 47.<br />

742<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 50.<br />

743<br />

ROSA, J.G. (2001) p. 67.<br />

744<br />

Nas palavras de Pierre Fédida, baseado no termo criado pelo poeta Francis Ponge: “Objeu [objetojogo]<br />

é acontecer da palavra num gargalhar de coisa. É júbilo de encontro, exatamente entre coisa e<br />

palavra.” Apud. DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.81.<br />

745<br />

ROSA, J.G. (1988).<br />

746 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.79-85.


Em O que Vemos, o que nos Olha, o historiador da arte afirma que – diante da<br />

imagem, que porta em si uma suspensão, uma tensão dialética entre o visível e o<br />

invisível (ou entre a aura, a distância; e o vestígio, ruína, proximidade), que exige uma<br />

experiência de confronto com o nada, com o vazio que nos olha – duas formas de<br />

denegação do vazio se apresentam: a crença no ver além da imagem, preenchendo seu<br />

vazio com um sentido além dela mesma; ou o cinismo da tautologia, a negação de<br />

qualquer sentido além do visível, expresso na fórmula: você vê o que você vê, que<br />

pretenderia uma pura objetividade da imagem, um sentido que se esgotaria na forma,<br />

sem que ela remetesse a qualquer ausência 747 .<br />

Vale a pena ler mais uma vez parte do texto de Rosa para mostrar o momento<br />

em que a busca riobaldiana da memória se afirma no entremeio, no intervalo entre estas<br />

duas dimensões da imagem, justamente quando rejeita a objetividade das lembranças de<br />

guerra:<br />

... Vida, e guerra, é que é: esses tontos movimentos, só o contrário do<br />

que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo<br />

ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e<br />

parece longe... (ROSA, J.G., 2001, p. 245).<br />

Mas, além disto, é preciso destacar que, quando Didi-Huberman se vale da<br />

noção do fort da freudiano para ilustrar a criação da imagem artística, está equiparando<br />

a criação de imagens artísticas, visuais e literárias, à experiência originária de criação<br />

das imagens psíquicas, à entrada do sujeito na linguagem, na qual a imagem surge como<br />

resto de uma alternância, de um ir e vir, de um jogo entre a presença e a ausência, onde<br />

também o sujeito, ao brincar, ao jogar com isso, se constitui entre o ser deixado e o<br />

deixar. 748 Em última instância, trata-se de equiparar a montagem das imagens na arte à<br />

747 DIDI-HUBERMAN, G. (1998).<br />

748 “... não é de saída que a criança vigia a porta por onde saiu sua mãe, indicando assim que espera re<br />

vê-la ali, mas, anteriormente, é o ponto mesmo em que ela o deixou, o ponto em que ela o abandonou<br />

perto dele, que ele vigia (...) Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe


teoria da construção da memória (do sujeito como montagem surrealista da pulsão),<br />

ambas elaboradas como o jogo do luto ao qual se junta o jogo do prazer – e, aqui,<br />

chega-se ao mesmo ponto crucial ao qual vimos insistindo, de um pensamento que<br />

subverte a noção de memória ao compará-la à ficção:<br />

... as imagens da arte (...) sabem apresentar a dialética desse jogo no<br />

qual soubemos (mas esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar<br />

lugares para essa inquietude. (...) As imagens da arte sabem de certo<br />

modo compacificar esse jogo da criança que se mantinha apenas por<br />

um fio, e com isso sabem lhe dar um estatuto de monumento, algo que<br />

resta, que se transmite, que se compartilha (mesmo no<br />

malentendido)...<br />

(DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.97).<br />

Anteriormente, o próprio Freud já havia comparado o jogo à criação poética em<br />

“Escritores Criativos e Devaneios”, texto de 1908, no qual ele começa assinalando que a<br />

aproximação entre o poeta e o homem comum, entre a poesia e a vida, é feita em geral<br />

pelos próprios escritores. Comum ao brincar e à criação poética estaria a noção de jogo;<br />

relação cuja similitude teria deixado vestígios na língua alemã, nos termos jogo do luto<br />

e jogo do prazer:<br />

A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação<br />

poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel’ [‘peça’] às formas<br />

literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que<br />

podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’<br />

[‘comédia’ e ‘tragédia’...] (FREUD, S., 1988h, p.136).<br />

No texto, se esboça uma continuidade entre o jogo e a fantasia ou devaneio,<br />

sendo os dois últimos considerados substitutos ao jogo infantil. Porém, o mais<br />

importante é que, ao dar forma estética, através das imagens artísticas, às imagens da<br />

fantasia, do inconsciente, recusadas pelo adulto, a escrita poética as apresenta,<br />

conferindo-lhes legibilidade: “A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse<br />

nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos<br />

veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele<br />

nada mais tem a fazer senão o jogo do salto”. Cf. LACAN, J. (2008b) p.66.


demais.” 749 Mas, Freud vai além da analogia, insinuando o apelo da obra de arte ao<br />

inconsciente, à inquietação e à produção de nossas próprias imagens, ou a garantia de<br />

sua reivindicação de expressão: “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à<br />

possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos<br />

próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha” 750 .<br />

Este duplo aspecto da reivindicação à forma e da sua insubordinação, por parte<br />

da imagem, foi repensado – especificamente em relação à poesia – por Paul Valéry, três<br />

décadas mais tarde, na conferência “Poesia e Pensamento Abstrato”, onde aproxima o<br />

estado poético das lembranças dos sonhos:<br />

Entretanto, nossas lembranças de sonhos nos ensinam, através de uma<br />

experiência comum e freqüente, que nossa consciência pode ser<br />

invadida, enchida, inteiramente saturada pela produção de uma<br />

existência, cujos objetos e seres parecem ser os mesmos que os da<br />

véspera; mas seus significados, suas relações e seus meios de variação<br />

e de substituição são completamente diferentes e representam-nos,<br />

sem dúvida, como símbolos e alegorias, as flutuações imediatas de<br />

nossa sensibilidade geral, não controlada pelas sensibilidades de<br />

nossos sentidos especializados. É quase da mesma maneira que o<br />

estado poético se instala, desenvolve-se e, finalmente, desagrega-se<br />

em nós. (VALÉRY, P., 1999, p.197-198).<br />

Para Valéry, assim como a lembrança do sonho evoca as imagens inconscientes,<br />

a imagem poética não se esgota na comunicação, pois “quer viver ainda, mas uma vida<br />

totalmente diferente” 751 ; promovendo, no leitor – simultaneamente – o esquecimento do<br />

sentido usual, instrumental, objetivo; e a rememoração do universo poético. O estado<br />

poético desenvolve-se como as lembranças de sonhos, quer dizer, promove uma<br />

recordação dos nossos sonhos, uma libertação da imagem, que possui o caráter de<br />

resíduo, ou de vestígio da lembrança do sonho.<br />

749 FREUD, S. (1988h) p.142.<br />

750 Ibidem, p.143.<br />

751 VALÉRY, P. (1999) p.200.


A imagem do pêndulo, oscilando “entre a forma e o conteúdo, entre o som e o<br />

sentido, entre o poema e o estado de poesia” 752 , diz respeito ao movimento através do<br />

qual a poesia se faz, entre a voz, o ritmo, a pura forma; de outro lado, o sentido, o<br />

conteúdo, as imagens da rememoração provocadas por aquela forma, que, entretanto<br />

reclamariam, de volta, essa forma, esse ritmo, criando o movimento; que é outra forma<br />

de dizer que a poesia provoca em mim as minhas lembranças. Também neste sentido é<br />

que podemos pensar que a escrita poética rosiana evocaria nossas lembranças subjetivas<br />

e coletivas. Seguindo Valèry, a palavra não é apenas dança, puro movimento, pois<br />

sempre produz algum sentido, mas é possível fazer as palavras dansarem, como Rosa<br />

faz, dançando sobre as pranchas, parando sobre as pontes até que as palavras se<br />

precipitem, gerando novas palavras; de acordo com a tese da experiência do abismo<br />

como criadora.<br />

A noção benjaminiana de alegoria como colagens de restos de imagens 753<br />

igualmente articula a imagem artística com as imagens da memória e da história,<br />

assinalando seu caráter crítico, de despertar; pois o alegorista – comparado ao<br />

cirurgião 754 , que corta, separa e reorganiza os fragmentos, recompondo-os segundo a<br />

sua imagem (quando a dimensão crítica se aproxima da criação da imagem, como o<br />

terceiro elemento desta dialética) – é reconhecido como criador de uma montagem, da<br />

mesma forma que o historiador materialista procede com os cacos da história.<br />

...a imagem do vaso quebrado que deve ser reconstituído a partir de<br />

seus cacos. Comum a ambos os movimentos é a relação de<br />

contigüidade, o estar lado a lado, sem qualquer fusão entre os<br />

elementos. Essa preocupação com um relacionamento não fusional<br />

entre elementos perpassa todo o pensamento e a escrita<br />

benjaminianos, pois nela se encerram duas questões recorrentes e que<br />

definem por excelência uma tarefa crítica: a da mediação, transmissão,<br />

752 Ibidem, p.205.<br />

753 “As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que são as ruínas no reino das coisas”. Cf.<br />

BENJAMIN, W. (1984) p. 200. “Pois a alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e ambas são<br />

por natureza antagonísticas”. Cf. BENJAMIN, W. (1984) p.197.<br />

754 BENJAMIN, W. (1986c) p.186.


comunicação, por um lado, e a da interrupção da cesura, do silêncio,<br />

por outro. (LAGES, S.K., 2002, p.102).<br />

No mesmo sentido, em Benjamin, o começar com pouco, com os restos da<br />

tradição e da barbárie, coincide com o arrancar à tradição ao conformismo – e ambos<br />

colocam em cena a tensão entre a memória, do aproveitamento dos rastros; e o<br />

esquecimento, da renúncia – referindo-se tanto à criação artística como à relação que as<br />

gerações e os sujeitos estabelecem de maneira geral com a história e com a memória dos<br />

antepassados 755 , e acenam para a rememoração como algo distinto da tradição, ou seja,<br />

algo relativo à criação, à memória inventada 756 , que se manifesta como ausência: não-<br />

memória, traduzindo em língua rosiana.<br />

A mesa de montagem se revela, deste modo, como imagem do processo de<br />

rememoração do narrador rosiano que, ao voltar seu olhar ao passado, se depara com os<br />

restos, os resíduos da história:<br />

... Em todos os momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a<br />

vida é cheia de passagens emendadas. Eu na Nhanva, ensinando lição<br />

a ele, ditado e leitura (...). Então, agora, era eu também – Zé Bebelo<br />

vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha<br />

jurado, naquela ocasião, ficava sendo de acabar comigo, com minha<br />

vida. (ROSA, J.G., 2001, p.235).<br />

O trabalho deste luto, ou a travessia da melancolia, se constitui no jogo, nesta<br />

oficina aberta de montagem das passagens emendadas da experiência. “Hoje em dia,<br />

verso isso: emendo e comparo” 757 . É no digo, e desdigo; no conto, e reconto que o<br />

narrador pensa e repensa a história, compara o incomparável do trauma, compondo sua<br />

coleção de relíquias como uma colagem, coleção de cacos, do lixo que sobrou da<br />

história; e o faz em movimento de dansa, nesta alternância entre o ir e vir, entre a<br />

755 Cf. BENJAMIN, W. (1986b) p.<br />

756 “Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar<br />

sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua<br />

beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura realmente<br />

inventada da memória.” DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.114.<br />

757 ROSA, J.G. (2001) p. 173.


proximidade e a distância; o que leva as coisas passadas a se remexerem nos lugares,<br />

fazendo balancê, e dá à rememoração seu caráter móvel, plástico, reversível, abrindo-se<br />

para a reinvenção.<br />

Esta idéia de um movimento constituinte da rememoração, da paisagem<br />

construída nas andanças, por sua vez, é constitutiva do processo mesmo de escrita de<br />

Guimarães Rosa, indo desde o valor das anotações, dos registros colhidos durante as<br />

viagens pelo sertão e pela Europa, que constituem sua matéria prima; ao estranho ritual<br />

de escrita do GSV, revelado a Benedito Nunes, onde o rolar pelo chão se articula como<br />

momento inicial, inquietante, da escrita, ao qual se segue o movimento de ler, reler,<br />

reescrever o texto:<br />

Ando muito, canto, rolo no chão. Depois escrevo e repasso tudo até<br />

oito, nove vezes. Se consigo descobrir coisas novas no escrito, nele já<br />

deparo com as situações antes não pensadas, então começa a segunda<br />

fase do trabalho. A estória terá se produzido como se outro a houvesse<br />

escrito. Daí por diante posso trabalhar noutras direções. (In:<br />

GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. [Orgs.]).<br />

É assim que os motivos presentes nas noções (já mencionadas) do prazer do<br />

movimento (Wisnik), da alegria intermitente (Rosa), do júbilo da nomeação (Fédida) ou<br />

da felicidade do rememorar (Benjamin), convergem para a idéia de dança, montagem,<br />

dança do pensamento, mas pensar num ritmo, numa coreografia; dança, sobretudo,<br />

como ato de conhecimento, onde “o movimento argumentativo dá lugar ao movimento<br />

coreográfico” 758 . Dansa escrita, no romance, sempre com ‘s’, talvez por reenviar ao<br />

som da palavra, à música, e também à origem onomatopaica da língua, conforme a<br />

presença dos ‘s’ na língua dos catrumanos e nos significantes malignos.<br />

Como signo, a dança se articula ao desejo insidioso, “Diadorim, você<br />

dansa? 759 ” À festa: “Mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-<br />

758 Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />

759 ROSA, J.G. (2001) p. 190.


gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado dos pés dansando” 760 . E<br />

ritual, capaz de reunir o bem, o mal, o caos e o diabolismo do acaso: “Você quer<br />

dansação e desordem” 761 . – “Em dansa de demônios, que nem não existem” 762 . No<br />

entanto, o movimento não se detém no caos, não cultua o irracionalismo, mas se<br />

conforma como o que permite ir lá e voltar, dando novos passos em direção ao desejo:<br />

... até que chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio” 763 .<br />

Em direção ao sem-fim da origem, como movimento da rememoração, se vai e se<br />

retorna, no embalo dos versos da canção de Siruiz que, em sua primeira versão, coloca<br />

exatamente em questão a possibilidade do retorno:<br />

Urubú é vila alta<br />

mais idosa do sertão:<br />

padroeira, minha vida –<br />

vim de lá, volto mais não...<br />

Vim de lá, volto mais não?...<br />

(...)<br />

Remanso de rio largo,<br />

viola da solidão:<br />

quando vou p’ra dar batalha,<br />

convido meu coração...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p. 135).<br />

A segunda cantiga, composta pelos jagunços, não por acaso, após a morte de<br />

Siruiz, já descreve uma coreografia completa, um vaivém, cujo desenho seria<br />

popularmente conhecido como ginga, e que põe em jogo uma certa dialética da<br />

malandragem 764 , de uma ida iniciada mas não totalizada, que, contudo, não evita nem se<br />

contrapõe ao mergulho no reprofundo nem o atravessar até o fim. Mas, como, no sertão,<br />

760 Ibidem, p.540.<br />

761 Ibid. p.484.<br />

762 Ibid., p.618.<br />

763 Idem, p. 325.<br />

764 Cf. CANDIDO, A. (1993). Creio estar utilizando o termo mais em seu valor imagético do que<br />

conceitual, pois a dialética da ordem e da desordem, para Candido, na qual insere a comicidade, é vista<br />

como sistema, estrutura que explica tanto o texto como os fatos sociais: “...dialética da ordem e da<br />

desordem, é um princípio válido de generalização, que organiza tanto AB como A’B’, dando-lhes<br />

inteligibilidade.” Cf. p.46. Enquanto, aqui, a dialética da malandragem me parece, é concebida como<br />

forma de pensamento, numa certa linhagem de imagens às quais Candido faz referência quando cita<br />

Macunaíma, por exemplo.


é o próprio corpo que é tornado carretel, lembre-se dos entraves com a mediação<br />

simbólica, já discutidos, e da morte como ameaça onipresente – a atenção é detida no<br />

ponto de onde se é capaz de retornar vivo; o que também nos reenvia à discussão sobre<br />

o humor presente em “Meu Tio, o Iauaretê” 765 :<br />

Olerereêe, bai-<br />

Ana...<br />

Eu ia e não vou mais:<br />

Eu fa-<br />

ço que vou lá dentro, oh baiana,<br />

e volto<br />

do meio p’ra trás...<br />

(ROSA, J.G., 2001, p.193).<br />

Sabe-se que a ginga provém da arte de enganar o inimigo na capoeira, esse misto<br />

de dança e luta dos escravos no Brasil; portanto, uma certa encenação da dança se<br />

acrescenta a este movimento, que se contrapõe, como resistência, à melancolia: “O<br />

correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,<br />

sossega e depois desinquieta” 766 .<br />

Enfim, considerar este processo de rememoração como uma mesa de montagem<br />

a partir da ausência, da alternância, do ritmo, da dialética e do humor, nos leva à<br />

constatação de que as imagens não se subjugam completamente a uma ordem ou<br />

conceito, pois as imagens pedem para serem lidas, traduzidas; mas, por outro lado,<br />

mantém-se “intocadas não só pelos fenômenos, como umas pelas outras” 767 ,<br />

765 ROSA, J.G. (1969). E como não mencionar – já que grande parte desta formulação parece ter origem<br />

na concepção benjaminiana de montagem e direito de escolha das imagens no cinema, em “A Obra de<br />

Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” – um filme que ilustra bem estas idéias, que consiste numa<br />

montagem de imagens já existentes, portanto restos de imagens, do século XX, onde não há diálogos,<br />

apenas nomes e pequenas frases escritas; que vem a ser “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, de<br />

Marcelo Masagão, no qual há uma seqüência impressionante de imagens dos dribles do jogador de<br />

futebol Garrincha, demonstrando seu talento na arte do “faço que vou... e volto”, intercaladas,<br />

comparadas, em ritmo de samba, com uma coreografia de Fred Astaire.<br />

766 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 334.<br />

767 No livro “A Origem do Drama Barroco Alemão”, estou considerando a “idéia” como imagem, nos<br />

itens “A idéia como Configuração” (constelação) e “A Palavra como Idéia”, onde Benjamin trata da<br />

questão nos termos da idéia e da palavra, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet, BENJAMIN, W. (1984)<br />

p. 59. A aproximação foi feita a partir da leitura de Seligmann-Silva, e da concepção de que a imagem


eivindicando novamente seu direito à palavra ou à representação. Embora a linguagem<br />

seja a condição de apreensão das imagens – graças ao duplo caráter de distância,<br />

ausência, que reenvia permanentemente a novas imagens, e de vestígio como ruínas da<br />

história – elas mantém-se insubordinadas, rebeldes ao aprisionamento na linguagem,<br />

exatamente como as imagens da memória, irredutíveis em sua dimensão de origem e<br />

resto, reenviando a novas buscas pelo passado desde sempre perdido.<br />

A rememoração de Riobaldo põe as lembranças como as cartas de um baralho,<br />

que verte e reverte, cuja mudança na ordem apela, criticamente, por uma reconfiguração<br />

do mundo:<br />

... Ao modificar a ordem fazemos com que as imagens tomem uma<br />

posição. Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação<br />

definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma<br />

vez por todas – como um dicionário, um arquivo, ou uma enciclopédia<br />

– mas sim para recolher segmentos, trocos do parcelamento do<br />

mundo, respeitar sua multiplicidade, sua heterogeneidade. E para<br />

outorgar legibilidade às relações postas em evidência.<br />

(DIDI-HUBERMAN, G., 2010, n/c.).<br />

A mesa de montagem leva, portanto, à equiparação entre a composição da<br />

memória e da narrativa, “o contar como montagem de um sutil cosmos de imagens<br />

refratados” 768 , onde a significação sempre parcial do passado, no giro da memória,<br />

depende de uma configuração dos pedaços, de acordo com o ponto de vista, com o<br />

olhar, ou com o momento presente de onde se volta ao passado:<br />

... Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cemdobro<br />

de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – mesmo eu não<br />

acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados<br />

guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do<br />

Hermógenes, por causa. (ROSA, J.G., 2001, p.359).<br />

A rememoração se compara, assim, ao caleidoscópio usado por Baudelaire como<br />

imagem exemplar do olhar do artista e da obra de arte. Mais uma vez, a imagem do<br />

“não se deixa fixar”, sendo percebida num lampejo; ambas já mencionadas. Cf. SELIGMANN-SILVA,<br />

M. (1999); BENJAMIN, W. (1986f).<br />

768 ROSENFIELD, K. (2006) p.205.


espelho, porém multifacetado, fragmentado, cuja forma se move, compondo e se<br />

recompondo, de acordo com o ponto, a posição de onde se olha. Assemelha-se, ainda,<br />

ao sujeito em análise, girando seu ponto de vista em relação à sua história, como o<br />

balanço entre as lembranças e o esquecimento de Riobaldo:<br />

... um espelho tão grande quanto esta multidão, a um caleidoscópio<br />

dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa<br />

a vida múltipla e a graça movente de todos os elementos da vida. É<br />

um eu insaciável de não-eu, que, a cada instante, o devolve e o<br />

exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e<br />

fugidia. (BAUDELAIRE, C., 1976, p.352) 769 .<br />

Neste movimento de avanço e recuo pelo sertão, do qual se compõe a narrativa,<br />

formada como um caleidoscópio de imagens produzidas pela rememoração – em última<br />

instância, o que se produz é um espelho do próprio tempo – sem que, ali, os conflitos<br />

sejam resolvidos, pois “uma imagem não tem nunca uma palavra final” 770 . Talvez por<br />

isto, sua última palavra, travessia; e sua última imagem, a Banda de Moebius,<br />

convidem, façam esta invocação ao tempo. É que, desta oficina da memória, da porta<br />

assim escolhida para permanecer aberta – lá, desde aquele vão, ainda aqui, agora, o<br />

Grande Sertão nos olha, grande espelho das desigualdades – e nos desinquieta, nos<br />

instiga a atravessá-lo, a rever e reescrever nossa história, talvez com outras linhas e<br />

palavras: a não-memorizar e evanascer...<br />

769 “... un mirroir aussi immense que cette foule; à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de<br />

ses mouvements, représente la vie multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est un<br />

moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et l’exprime em images plus vivantes que la vie<br />

elle-même, toujours instable et fugitive”. Cf. BAUDELAIRE, C. (1976) p.352. Ver também a dança do<br />

cristal em Didi- Huberman, cf. DIDI-HUBERMAN (1998), p.118.<br />

770 DIDI-HUBERMAN, G. (2009).


CONCLUSÃO: RESTOS – DO <strong>SERTÃO</strong> – A CONCLUIR<br />

Eis, portanto, minha vez de fazer balanço do próprio trabalho, relendo, uma vez<br />

mais, buscando, nas idéias desenvolvidas, nos resíduos que insistem a nos inquietar, o<br />

lugar comum, na forma da repetição, e os traços diferenciais deste percurso, que<br />

pretendeu discutir, situar, comparar – a partir da fala de Riobaldo – as noções de<br />

memória e esquecimento presentes no texto.<br />

De início, a discussão realizada no primeiro capítulo, acerca das concepções de<br />

memória individual e memória coletiva, envolveu, também, a correlação benjaminiana<br />

entre uma memória própria da narrativa épica, e uma rememoração típica do romance.<br />

Porém, ao ser confrontada com a busca e o desejo de Riobaldo das coisas sempre<br />

outras, instaurador de uma negatividade da memória; a mesma distinção apontou para<br />

uma certa insuficiência destas categorias de memória, na medida em que possibilita uma<br />

leitura dicotômica da memória; ao contrapor, de um lado, a memória individual e, de<br />

outro, a coletiva.<br />

Por outro lado, se vistas como intrinsecamente articuladas, as mesmas categorias<br />

permitiram pensar a memória e o tempo no romance de Rosa em interlocução com as<br />

concepções de tempo e memória psicanalíticas e benjaminianas; na medida em que a<br />

idéia de uma memória do narrador que se desenreda do coletivo se aproxima da<br />

concepção de uma memória subjetiva para a psicanálise, constituída sempre a partir do<br />

Outro. De forma semelhante, a memória de Riobaldo pôde ser considerada, de acordo<br />

com a concepção de Walter Benjamin, numa tensão constante entre os tempos, entre a<br />

tradição e a ruptura, a renúncia e o começar com pouco.<br />

O mesmo ocorreu com o conceito de memória coletiva de Halbwachs, visto que<br />

a memória coletiva permite tanto uma leitura mais fechada, se contraposta à memória


individual; como traz importantes ressonâncias com o texto de Rosa, a partir das noções<br />

de resíduo ou traço de memória, comuns a Benjamin e Freud; mostrando-se<br />

fundamental para pensar a memória no texto, segundo a presente leitura.<br />

No segundo capítulo, a partir das noções de história como ruína e memória<br />

como resíduo, procurei analisar a questão dos referentes espaço-temporais. Aqui, a<br />

preocupação foi indagar como os traços ou restos da história e da memória se articulam,<br />

através de duas noções principais: a paisagem e o narrador-testemunha. Em relação à<br />

primeira, encontrei um caminho na teoria de Michel Collot, que articula a idéia da<br />

construção desta paisagem com a noção de inconsciente freudiano, através da<br />

formulação do inconsciente como um horizonte; uma linha que, ao projetar sempre um<br />

outro plano da paisagem, manifesta-se como ausência, negatividade. Além disto, a<br />

formulação de um narrador-testemunha como sobrevivente e testemunha da barbárie,<br />

possibilitou abordar simultaneamente os aspectos históricos do romance e as dimensões<br />

de lacuna, ficção e fantasia do testemunho.<br />

O incessante deslocamento da rememoração de Riobaldo, do plano da outra<br />

coisa, das coisas importantes, e da sobre-coisa revelou, também, uma verdadeira<br />

filosofia sobre o tempo e a memória. Trouxe, com a recorrência, por todo o texto, dos<br />

fundos, ocos e ermos; a idéia de rememoração como retorno, manifestação do<br />

inconsciente freudiano, de uma ausência só pensada a partir da linguagem que,<br />

entretanto, evoca o seu além ou aquém, na forma do enigma, do esquecimento.<br />

O terceiro capítulo foi dedicado a seguir esta trajetória da memória de Riobaldo<br />

tendo em vista seu movimento desdobrado e dividido entre o narrar e ser narrado, entre<br />

suas diferentes subjetivações e dessubjetivações. A rememoração foi considerada à luz<br />

da noção de tempo do nachträglichkeit freudiano, traduzido como a posteriori ou só-


depois, sintetizado na imagem do redemoinho e da curva de Moebius, pois ambas falam<br />

de um tempo que rearticula o princípio e o fim do romance.<br />

Ao comparar a fala de Riobaldo a uma situação de análise (demonstrando como<br />

preenche algumas de suas condições básicas: associação livre, abstinência do analista e<br />

transferência de saber); entretanto, o tempo todo, mantive a preocupação de preservar o<br />

seu caráter de obra de arte e de escritura, mostrando a montagem desta memória através<br />

de diferentes construções de linguagem que a tornam irredutível a um puro setting<br />

analítico.<br />

No último capítulo, tentei estabelecer relações entre a memória, o esquecimento<br />

e a linguagem, situando a rememoração numa alternância, num ir e vir, entre a<br />

possibilidade, referida à memória; e a resistência do nome, que alude ao esquecimento<br />

como resto ou opacidade não-nomeável; chegando, também, à concepção de memória<br />

como montagem subjetiva, parcial e fragmentada, que a religa à idéia de fantasia e<br />

ficção.<br />

Para retornar ao início deste trabalho – imitando a forma temporal da narrativa –<br />

uma primeira indagação, apresentada na introdução, que ainda pode restar, seria a<br />

questão da existência de um ponto de origem que ponha limite à memória infinita;<br />

pensado como relacionado, no texto, aos fundos, ocos, e ermos; à negatividade do<br />

esquecimento, ao deslembrado, que Riobaldo afirma haver: “Tem um ponto de marca,<br />

que dele não se pode mais voltar para trás...” 771 Teoricamente, poderia, ainda, ser visto<br />

como o ponto de torsão da Banda de Moebius que, como Lacan demonstra, ao girarmos<br />

a banda longitudinalmente, percebe-se como um vazio, aludindo para sua dimensão<br />

fantasmática. Em Benjamin, como foi visto, igualmente há a noção de um fundo<br />

771 Idem, p.229-230.


imemorial, onde a memória encontra o esquecimento, que se constitui simultaneamente<br />

como limite e fonte da rememoração.<br />

Outro aspecto importante se encontra nas possíveis analogias entre os tempos do<br />

futuro anterior (o terá sido) do a posteriori freudiano, e o futuro do passado (o teria<br />

sido) do olhar do historiador-materialista benjaminiano. Ambos se contrapõem à idéia<br />

de um tempo linear, e se referem a um tempo que se sobrepõe em camadas, no qual a<br />

noção de resto ou resíduo está presente como fundamental para a rememoração. E,<br />

finalmente, ambos os tempos se encontram no agora, tanto em Benjamin como em<br />

Freud, o agora é o tempo determinante de onde se volta ao passado, um tempo saturado<br />

de tensões, como o real no meio, de Riobaldo.<br />

Resta, ainda, a questão da ausência e a “saída” elaborada pelo texto diante da<br />

mesma; situada entre a morte, a melancolia, a travessia e o humor. Dito de outro modo,<br />

procurei demonstrar como a ausência seria construída e elaborada de forma<br />

diferenciada, no GSV, em relação a outros textos do escritor. Pois – diferentemente do<br />

apelo a uma espécie de dissolução através da morte e da melancolia, presentes em<br />

alguns contos analisados; ou, ainda, diversamente do caráter predominante de humor,<br />

traço distintivo de Tutaméia 772 – no Grande Sertão, o que vejo destacar-se é a idéia de<br />

movimento, de travessia, que permite ir e vir, dialetizar, colocar em movimento, tanto o<br />

caráter do trauma ligado a Diadorim, como os contornos mais históricos da ausência,<br />

nas formas da falta da lei, da violência, da miséria. Neste caso, movimento que consiste<br />

no modo como o texto remexe, desloca nossas memórias recalcadas sobre a violência e<br />

a escravidão.<br />

Mas, se o humor não é predominante no romance, não se trata da inexistência de<br />

humor; veja-se como Riobaldo, diante da ausência, brinca, ironiza com o nó entre a<br />

772 ROSA, J.G. (1985).


destituição subjetiva e a destituição da condição social de menos-valia; questionando,<br />

simultaneamente, o saber do chefe Zé Bebelo e o do senhor culto e viajado:<br />

– “Pois é Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada, não sou<br />

nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a<br />

coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma<br />

nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada.<br />

De nada... De nada...” (ROSA, J.G., 2001, p. 366).<br />

Portanto, em relação à afirmação inicial de que a travessia não apaga a<br />

melancolia, é como se o texto do GSV, sem contradizê-la, também nos levasse a afirmar<br />

que: apesar da melancolia, atravessamos. A travessia se substitui, reformulando,<br />

colocando em outros termos a pergunta sobre a possibilidade de esquecer o trauma, pois<br />

o texto mostra – feliz e dolorosamente – como é possível, não apenas ser atravessado,<br />

mas atravessá-lo até o fim, e aceitar, paradoxalmente, que algo de irredutível sempre<br />

pode restar.<br />

Outra pergunta elaborada no princípio diz respeito ao modo como a obra de arte<br />

interfere na relação com nossas lembranças, nossa memória, em nossa percepção do<br />

tempo. A obra, memória inventada, afeta nossa memória... Já foi dito como a arte pode<br />

ser lida à luz da psicanálise, mas eu proporia também o inverso como questão: como ler<br />

a psicanálise a partir da obra de arte e da teoria da arte? Algumas indicações creio que<br />

foram dadas no sentido de um encontro com o real, através de autores que trabalham<br />

nesta fronteira entre a arte e a psicanálise, pois todos falam da arte como propiciadora<br />

de uma experiência do real, do parcial, do descentramento, e do esquecimento;<br />

experiência, que, contudo, só vale na medida em que põe em movimento o desejo; em<br />

outros termos, que permite articular uma outra história.


Uma última observação acerca da relação entre teoria e texto foi encontrada em<br />

Didi-Huberman, na noção de uma estética da comparação, do como 773 . Trata-se de uma<br />

outra forma de pensar a teoria, que não exclui a lógica, mas inclui as imagens. Pois,<br />

quando Freud compara a memória ao bloco mágico ou às escavações, às ruínas; ou<br />

quando Lacan compara o inconsciente à linguagem; quando Rosa insere e recria,<br />

adaptando as imagens existentes, do sertão, do país, segundo a sua imagem; sem<br />

dúvida, é de uma outra forma de pensar que se trata, além da lógica.<br />

Uma analogia ou dança como forma de pensamento, que se produz em<br />

movimento, que não exclui a lógica, mas não nega o vazio; nas palavras de Guimarães<br />

Rosa, põe no colo o silêncio. Esta imagem fala desta travessia que se move, deixando-se<br />

embalar pelo silêncio, mas que é também capaz de embalá-lo, de acolher o silêncio, de<br />

uma dialética ou ida e vinda em direção ao silêncio; ou ainda, de uma inserção do vazio<br />

através do movimento, que produz mais movimento, como o pêndulo poético de Valéry.<br />

Findo o trabalho, em que pese o mergulho em todos os ocos e fundos sem fim<br />

deste sertão, seja através das raízes do Brasil profundo, inconsciente; seja através das<br />

apesar das várias faces da memória e do esquecimento, dos diferentes jogos e modos do<br />

rememorar e do esquecer; é importante destacar que este sertão só se pode apontar,<br />

como faz Riobaldo: sertão: é por ali, – jamais colocar um ponto final nesta indicação.<br />

A travessia se fez, e apesar dos restos de melancolia, há o encontro com um<br />

tempo capaz de remexer e deslocar o passado, o presente, e talvez o futuro. Um tempo<br />

do não-realizado, para o qual é necessário montar e remontar, colar e separar, colar de<br />

novo, analisar como se colam e se comparam as imagens; e compará-las de novo, afim<br />

de “recuperar a imago da imagem” 774 e, neste ritmo, também a alegria e o humor do<br />

773 DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />

774 Idem.


encontro com o diabolismo da palavra. Pois o sertão, após nos engolir, nos cuspir do<br />

quente da boca, também nos produz.


... Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.<br />

JOÃO GUIMARÃES ROSA


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