MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NO GRANDE SERTÃO: VEREDAS ...
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<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />
Travessia e Melancolia<br />
Patricia da Silva Carmello<br />
Rio de Janeiro, março de 2011.<br />
UFRJ – Faculdade de Letras
<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA:<br />
Travessia e Melancolia<br />
Patricia da Silva Carmello<br />
Tese de Doutorado apresentada ao programa<br />
de pós-graduação em Ciência da Literatura da<br />
Faculdade de Letras da Universidade Federal<br />
do Rio de Janeiro como parte dos requisitos<br />
necessários à obtenção do título de Doutor em<br />
Ciência da Literatura (Teoria Literária).<br />
Orientador: Professora Dra. Vera Lins.<br />
Rio de Janeiro, março de 2011.<br />
UFRJ – Faculdade de Letras
<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia<br />
Patricia da Silva Carmello<br />
Orientadora: Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da<br />
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos<br />
necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria<br />
Literária).<br />
Aprovada por:<br />
________________________________________________________<br />
Presidente, Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />
________________________________________________________<br />
Prof a . Doutora Ana Luiza Martins Costa – Pesquisadora independente<br />
________________________________________________________<br />
Prof a . Doutora Marília Rothier Cardoso – PUCRio<br />
________________________________________________________<br />
Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ<br />
________________________________________________________<br />
Prof a . Doutora Flávia Trôcoli – UFRJ<br />
________________________________________________________<br />
Prof. Doutor Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ (suplente)<br />
_________________________________________________________<br />
Prof a . Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ (suplente)<br />
Rio de Janeiro<br />
Março de 2011
<strong>MEMÓRIA</strong> E <strong>ESQUECIMENTO</strong> <strong>NO</strong> <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>,<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – Travessia e Melancolia<br />
Patricia da Silva Carmello<br />
Orientadora: Profª Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência<br />
da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro –<br />
UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em<br />
Ciência da Literatura (Teoria Literária).<br />
A presente tese tem por objetivo pesquisar as noções de memória e<br />
esquecimento no romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, tomando<br />
como principal orientação a fala de Riobaldo, seu narrador. Partindo das articulações<br />
entre a memória coletiva, a memória individual e a narrativa, encontra-se uma<br />
concepção de memória, no romance, como uma terceira instância, estabelecida sempre<br />
como negatividade, pautada nas concepções de inconsciente e real, de Freud e Lacan; e<br />
na concepção de um tempo-de-agora, ou tempo entrecruzado de Walter Benjamin. A<br />
tensão entre a travessia e a melancolia insere-se tanto nos aspectos históricos e coletivos<br />
da rememoração – no testemunho do narrador sobre a cidade que vem acabar com o<br />
sertão – como nos entraves para atravessar o trauma relacionado a Diadorim. O<br />
processo de rememoração de Riobaldo é concebido como composto de temporalidades<br />
que se sobrepõem, como uma montagem não-linear e não-objetiva, constituída a partir<br />
dos erros e fracassos da memória, que apontam para sua dimensão de fantasma, de<br />
ficção e de esquecimento.<br />
Palavras-chave: memória, esquecimento, negatividade, inconsciente.<br />
Rio de Janeiro<br />
Março de 2011
RESUMÉ<br />
La présente thèse a pour but d’examiner les représentations de la mémoire et de<br />
l’oubli dans le roman Diadorim (Grande Sertão: veredas, en portugais), de João<br />
Guimarães Rosa, axées sur le discours de Riobaldo, son narrateur. L’analyse des<br />
articulations entre la mémoire collective, la mémoire individuelle et le récit, appuyée<br />
par les concepts de Freud et Lacan sur l’inconscient et le réel et par celui de Walter<br />
Benjamin sur le “temps de maintenant” (jetztzeit), nous a permis de dégager du texte<br />
une conception de mémoire comme une troisième instance, toujours établie comme<br />
négativité. La tension entre la traversée et la mélancolie s’insère soit dans les aspects<br />
historiques et collectifs de l’acte de se souvenir – le témoignage du narrateur sur la ville<br />
qui vient mettre fin à la campagne semi-aride du Brésil (sertão) –, soit dans les<br />
obstacles pour traverser le trauma lié à Diadorim. Nous envisageons le processus de<br />
remémoration chez Riobaldo comme des temporalités qui se superposent de façon non-<br />
linéaire et non-objective. Celles-ci se constituent à partir des erreurs et de l’échec du<br />
souvenir, évocant ainsi sa dimension du fantôme, fictionnel et rattachée à l’oubli.<br />
Mots-clés: mémoire, oubli, négativité, inconscient.<br />
Rio de Janeiro<br />
Março de 2011
Carmello, Patricia da Silva.<br />
Memória e Esquecimento no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa:<br />
Travessia e Melancolia/ Patricia da Silva Carmello. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011.<br />
xi, 232f<br />
Orientadora: Vera Lúcia de Oliveira Lins<br />
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras<br />
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2011.<br />
Referências Bibliográficas: f. 220-232<br />
1. João Guimarães Rosa. 2. Grande Sertão: Veredas. 3. Memória e esquecimento. 4.<br />
Inconsciente 5. Montagem. I. Lins, Vera Lúcia de Oliveira. II. Universidade Federal<br />
do Rio de Janeiro, Programa de Ciência da Literatura. III. Memória e Esquecimento<br />
no Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa – travessia e melancolia.
SUMÁRIO<br />
Introdução........................................................................................................................15<br />
I. <strong>MEMÓRIA</strong> E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS <strong>MEMÓRIA</strong>S.................20<br />
- Duas formas de memória e um mundo misturado................................................20<br />
-Tempos modernos, recordação e romance............................................................27<br />
-Um sujeito com pouco caroço..............................................................................35<br />
-O contador de estórias...........................................................................................43<br />
- O senhor sabe: um narrador em extinção............................................................49<br />
- Memória coletiva, uma memória “feliz”?............................................................59<br />
II. DESENHO E DESGRAÇA: <strong>SERTÃO</strong> EM RUÍNAS................................................69<br />
- Sertão, paisagem subjetiva..................................................................................70<br />
- Retrato negativo..................................................................................................84<br />
- Raízes e resíduos do Brasil.................................................................................88<br />
- Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos..........................................95<br />
- Mundo misturado, mundo à revelia....................................................................99<br />
- Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha................................109<br />
- Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?.............................................115<br />
- Um outro cortejo...............................................................................................120<br />
III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E <strong>ESQUECIMENTO</strong>...........................................127<br />
- Vida inquieta, inquietante estranheza.................................................................127<br />
- A selvagem desgraça, ainda...............................................................................132<br />
- Dor em Aberto....................................................................................................137<br />
- Travessia de minha vida.....................................................................................143<br />
- Dos fracassos da memória ao esquecimento.....................................................151<br />
- Depois após: divisão do tempo e do sujeito.......................................................155<br />
- Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado.......................................160<br />
- Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio....................................164
IV. OFICINA ABERTA: PALAVRA, IMAGEM E <strong>ESQUECIMENTO</strong>.......................174<br />
- Os Nomes da Memória.......................................................................................174<br />
- As terceiras memórias ou Uma História do Coração........................................184<br />
- Imagens do esquecimento..................................................................................197<br />
- Montagem, jogo, dansa......................................................................................202<br />
CONCLUSÃO: RESTOS – DO <strong>SERTÃO</strong> – A CONCLUIR.......................................214<br />
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................220
INTRODUÇÃO<br />
Sertão é, de fato, palavra gasta em nossos estudos literários atuais; faz lembrar a<br />
célebre conferência-ensaio de Paul Valéry “Poesia e Pensamento Abstrato” 1 , onde o<br />
poeta e ensaísta compara as palavras ao dinheiro, esse papel sujo, passado de mão em<br />
mão, essa palavra que passou por tantos olhos, “tantas bocas e tantas frases, tantos usos<br />
e abusos...” 2 – É o que parece apontar o imenso volume de teses, dissertações e<br />
publicações sobre Grande Sertão: veredas 3 (1956), de João Guimarães Rosa, numa<br />
intensa produção que persiste, apesar de passados mais de 50 anos de sua publicação,<br />
em incontáveis abordagens, desde estudos baseados na botânica, até a filosofia oriental,<br />
passando pela psicanálise e a filosofia do direito 4 .<br />
Pois, ao circular assim, na mão de tantos, o sertão arrisca-se, tal como este<br />
papel, dinheiro gasto pelo valor de troca, a provocar o esquecimento de sua dimensão<br />
poética, aquela que nos faz recordar, aquela que provoca simultaneamente o sonho e o<br />
despertar, que nos faz retomar as origens da palavra e buscar renovados sentidos da<br />
linguagem em nossa própria experiência, reinscrevendo assim a própria experiência no<br />
passado, no presente e no futuro.<br />
E, no entanto, como afirma Valéry em relação a qualquer palavra, bastou o gesto<br />
de deter-me sobre ela, como na imagem do poeta; bastou uma pausa, um<br />
questionamento da própria repetição dos sentidos consensuais, no início mesmo deste<br />
processo de escrita, para que o abismo se apresentasse e colocasse em xeque os<br />
significados estabelecidos. Bastou uma espera, uma respiração, para que o silêncio se<br />
apresentasse – e foi o que ocorreu com esta pesquisa sobre o sertão, que acabou se<br />
1<br />
VALÉRY, P. (1999) p.195.<br />
2<br />
Idem.<br />
3<br />
ROSA, J.G. (2001). A partir de agora, será citado com as iniciais ou como Grande Sertão, a fim de<br />
evitar excesso de notas.<br />
4 Cf. SCRIPTA (1998).
tornando uma viagem em busca de sentidos, senão novos, talvez menos pensados e<br />
comunicados, tal como uma procura pelos restos desta palavra e de todas as outras que a<br />
contornam junto ao tema da memória e do esquecimento, segundo a minha imagem,<br />
para me apropriar de uma expressão usada pelo próprio Rosa em entrevista 5 .<br />
A travessia, de saída, parece árdua, trazendo a seguinte questão: como trabalhar<br />
com uma linguagem tão plástica, onde as imagens e as palavras se (re)combinam tão<br />
livremente? É como nos versos de Octavio Paz, “Tudo é porta / tudo é ponte” 6 ; seria<br />
preciso “traduzi-la” em matéria acadêmica? O risco de aplicar uma teoria ao texto era<br />
imediato, era colocar-me entre o escritor e sua amante, a língua, de acordo com a<br />
citação já tornada referência, da mesma entrevista de Rosa ao tradutor alemão 7 . Por isso,<br />
a primeira imagem que me ocorreu, ao pensar a relação entre teoria e texto literário, foi<br />
a da caixa de ferramentas de Michel Foucault. Sim, “é preciso que sirva, é preciso que<br />
funcione” 8 ; mas, servir para quê? Logo percebo que, tratando-se da relação com o texto<br />
literário, não poderia ser uma ferramenta muito rude.<br />
Assim, uma segunda imagem, atribuída por Foucault a Proust, na qual o filósofo<br />
diz ter-se inspirado – ao fazer alusão ao texto como lentes voltadas para fora, – me faz<br />
pensar numa terceira, que consiste na idéia da teoria como chave de leitura; uma<br />
imagem banal, mas que pode produzir um movimento interessante, não de encaixe com<br />
o texto, mas de abrir portas, passagens entre o dentro e o fora, desde o ponto de partida<br />
seja o “teste” das chaves da teoria no texto, e não o oposto, tentando perceber até onde é<br />
possível entrar com cada uma, e de antemão sabendo que nenhuma é capaz de nem de<br />
5<br />
LORENZ. G. (1983).<br />
6<br />
PAZ, O. (1997).<br />
7<br />
Idem.<br />
8<br />
“Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que<br />
sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo<br />
próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não<br />
chegou. (...) É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito<br />
tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam<br />
outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento...” Cf. FOUCAULT, M. (1979) p.71.
abrir, decifrar definitivamente, tampouco de fechar, de trancar o texto dentro, ou atrás,<br />
de si.<br />
Metáfora que faz da crítica um trabalho de mediação, de abrir passagens,<br />
articulações não apenas no interior do texto, mas entre os diferentes campos de saber,<br />
com a(s) história(s) de fora. E, por que não afirmar, ao invés de um lugar de puro ciúme<br />
(ou inveja) da relação amorosa entre autor e língua; produzir ou assumir o lugar da<br />
crítica como amante do texto literário (a gente só critica aquilo que ama, diria Freud),<br />
um lugar em que a crítica seja capaz de buscar relações fecundas entre o texto e a teoria:<br />
gerar pensamento, apontar novas e pouco pensadas relações, outras histórias e palavras,<br />
já que a sua leitura nos deixa “fecundados por esta fala e suas sementes” 9 , como quer<br />
Márcio Seligmann-Silva, num dos estudos mais recentes sobre o Grande Sertão.<br />
Mas, ao percorrer assim estas imagens, já nos inserimos nos temas da memória e<br />
do esquecimento, realizando um movimento de alternância, de ir e vir, entre a teoria e o<br />
texto, que trazem, por sua vez, outras imagens para ilustrar as relações entre texto e<br />
teoria, este trabalho crítico, como a do pêndulo de Valéry e o carretel freudiano...<br />
Deixemos um pouco estas duas últimas metáforas – sem dúvida melhores que a da<br />
chave – em suspenso, para iniciar este percurso apenas com a perspectiva de encontrar<br />
uma paisagem fértil, pois como o próprio autor quis: “A língua e eu somos um casal de<br />
amantes que juntos procriam apaixonadamente” 10 .<br />
Considerando a idéia das lentes voltadas para fora, o sertão que me interessa<br />
pesquisar não é qualquer um, mas a paisagem feita de memória e esquecimento no<br />
Grande Sertão, através de seu narrador-personagem Riobaldo – testemunha<br />
estrategicamente situada em um momento de choque entre o avanço da cidade sobre o<br />
sertão, entre a lei da bala e a lei do governo. Testemunho que traz, ainda, a melancolia e<br />
9 SELIGMANN - SILVA, M. (2009) p.145.<br />
10 LORENZ, G. (1983) p.83.
o lamento relacionado a outro choque, de um amor perdido no passado, que parece não<br />
passar; e que constitui o texto como trabalho de luto, travessia. Desta forma, o objetivo<br />
mais amplo desta tese consiste em seguir a rememoração, através da fala do narrador<br />
Riobaldo, a fim de pensar como são elaboradas no texto as noções de memória e<br />
esquecimento; buscando através de diferentes concepções da filosofia, da psicanálise e<br />
da teoria da arte, instrumentos de análise desta questão na obra.<br />
Uma primeira abordagem do tema se situa na discussão entre uma concepção<br />
de memória individual, ligada à forma do romance moderno; e a memória coletiva<br />
ligada à narrativa épica. Ou seja: como analisar, no GSV, o duplo aspecto de uma<br />
memória construída a partir da tradição oral, da figura do narrador benjaminiano; e,<br />
simultaneamente, a memória da vida de Riobaldo, sua travessia particular ao lembrar e<br />
esquecer Diadorim? A partir da crítica de Davi Arrigucci, da articulação de Walter<br />
Benjamin entre a memória e as formas narrativas, bem como da noção de memória<br />
coletiva de Maurice Halbwachs; tento pensar, portanto, em que medida suas<br />
contribuições são interessantes, e quais os impasses que se colocam nesta formulação de<br />
uma duplicidade da memória.<br />
A concepção de uma memória constituída também pelo coletivo, pela tradição<br />
transmitida de geração em geração, pelos casos de caipira; traz como desdobramento a<br />
questão dos referentes históricos, da presença de uma memória do sertão e do país, mas,<br />
fundamentalmente, de uma paisagem (noção elaborada por Michel Collot) construída<br />
através da memória do narrador. Paisagem subjetiva, que se abre, por sua vez, ao<br />
horizonte como inconsciente, linha limite do não-saber, do deslembrado; e também à<br />
concepção de Benjamin da história como ruína, expressa no olhar do escritor sobre os<br />
vencidos da história.
No conflito entre o avanço do progresso, o projeto modernizador dos anos 50, e<br />
o universo rural trazido pelos personagens de Rosa, os esquecidos pela história oficial;<br />
cabe pensar o narrador como testemunha desta tensão entre as memórias do sertão e o<br />
esquecimento trazido pela cidade, num processo que avança, impondo-se, não apenas<br />
com violência, mas como violência recalcada, na forma do apagamento dos rastros do<br />
próprio embate. Trata-se, enfim, de procurar respostas para uma afirmação colocada por<br />
Ettore Finazzi-Agrò – a travessia não apaga a melancolia 11 – deixada por Riobaldo,<br />
quando afirma e ao mesmo tempo indaga: “cidade acaba com o sertão. Acaba?” 12<br />
Mas, a rememoração de Riobaldo é também centrada no trauma da revelação<br />
ligada ao sexo e à morte de Diadorim; acontecimento que, situado no final do texto,<br />
ressignifica o início da história a partir do fim, levando-me a pesquisar as noções de<br />
tempo, de um tempo entrecruzado ou tempo-de-agora em Benjamin, e a noção de a<br />
posteriori (nachträglichkeit) em Freud e Lacan. E, junto ao só-depois da significação,<br />
cabe pesquisar como se articula, no texto de Rosa, a questão do nome e da nomeação,<br />
como algo que faz referência a uma dimensão não-instrumental da linguagem; e como<br />
esta dimensão nomeadora, vista principalmente através da teoria benjaminiana sobre a<br />
linguagem, se articula com o tempo e a memória.<br />
Até que ponto é possível ir com a rememoração? Riobaldo indaga sobre um<br />
limite que pode ser pensado como ponto de origem enigmático, também apontado nos<br />
diversos fundos, ocos e ermos do sertão: “Será que tem um ponto certo, dele a gente<br />
não podendo mais voltar pra trás?” 13 Por outro lado, até onde é possível esquecer o<br />
trauma? Dupla questão que se repete, a seu modo, em cada processo de análise, em cada<br />
travessia discursiva. Questão, ainda, política, central nos debates em torno das<br />
memórias históricas, surgidos a partir das catástrofes do século XX, das diferentes<br />
11<br />
FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142.<br />
12<br />
Idem, p.183.<br />
13<br />
ROSA, J.G. (2001) p.305.
guerras entre memórias em diferentes partes do mundo; pois a discussão sobre o<br />
esquecimento – seja como reação, recalque contrário ao retirar do esquecimento um<br />
passado vencido; seja como resultado de um processo de elaboração das memórias já<br />
apaziguadas, que colocam em xeque o lema: para que não se esqueça jamais – o tema<br />
do esquecimento ressurge, invariavelmente, quando realmente se insere o debate sobre<br />
as memórias oprimidas.<br />
E, finalmente, questão de arte, formulada na dupla vertente: a partir da<br />
psicanálise, em que medida as teorias escolhidas sobre o tempo e a memória podem<br />
lançar luzes ao texto literário – mas, também, num sentido inverso – seguindo o<br />
pensamento do historiador da arte Didi-Huberman, até onde a obra de arte pode dizer<br />
sobre a memória e o esquecimento, o que tem a nos ensinar ou, em que medida, as<br />
imagens artísticas podem ser comparadas às imagens da memória?<br />
O foco dado à palavra de Riobaldo se justifica na medida em que a rememoração<br />
de Riobaldo, sua descrição da paisagem do sertão, seus questionamentos, seu<br />
testemunho do sertão constituem o texto do princípio ao fim; como afirma Rosenfield:<br />
“Na percepção de Riobaldo (da qual o texto nunca se distancia)...” 14 .<br />
Em relação à crítica específica de Guimarães Rosa, creio seguir uma trilha de<br />
estudos nos quais as contribuições teóricas não surgem de antemão, como pressupostos<br />
a que o romance viria se aplicar ou sobrepor. Ao contrário, nestes ensaios, a teoria –<br />
incluindo a psicanálise, a filosofia ou a teoria literária – é utilizada a partir de uma<br />
proximidade com o texto. O que os caracterizaria seria precisamente a construção de um<br />
saber articulado à forma do texto, a partir de um aspecto ainda pouco pensado da obra<br />
literária.<br />
14 ROSENFIELD, K. (1993) p.84.
Além da crítica escolhida ser plural, ou seja, proceder de vários campos de<br />
estudos distintos; os principais teóricos escolhidos se situam todos “no cruzamento de<br />
todos os caminhos” 15 , como apontou Michel Löwy sobre Walter Benjamin, numa<br />
referência justamente à noção de caráter destrutivo no segundo. Tanto Benjamin, como<br />
Freud, Lacan, e Rosa não se recusaram a pensar a memória pela via do esquecimento,<br />
da negatividade. Todos pulam e dançam sobre as pranchas, para evocar novamente a<br />
imagem de Valéry – mergulham nesse abismo, e suas palavras resistem, de algum<br />
modo, ao tempo e aos usos.<br />
Uma última observação, sobre a redação deste trabalho, é que utilizo a primeira<br />
pessoa alternando-a entre o singular e o plural, inspirada na justificativa de Paul<br />
Ricoeur 16 em seu livro. Ou seja, quando acredito afirmar algo já desenvolvido por outro<br />
autor, utilizo o plural, e quando suponho formular algo não explicitado em outro autor<br />
ou texto, uso o singular ou a forma impessoal.<br />
15 Cf. LÖWY, M. (1989). Segundo Benjamin: “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis<br />
precisamente por que vê caminhos por toda a parte. (...) Já que vê caminhos por toda parte, está sempre<br />
na encruzilhada.” Cf.BENJAMIN, B. (1989) p.237.<br />
16 RICOEUR, P. (2007).
I. <strong>MEMÓRIA</strong> E NARRATIVA: PRIMEIRAS, SEGUNDAS <strong>MEMÓRIA</strong>S...<br />
São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo<br />
recruzado.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Duas formas de memória e um mundo misturado<br />
No denso tecido de memórias do Grande Sertão: veredas 17 , em meio a<br />
diferentes camadas do tempo, diversas formas da memória e do esquecimento, um<br />
primeiro fio de análise se dá no eixo entre o que, a princípio, se pode situar entre uma<br />
memória individual e uma memória coletiva. A primeira seria formada, sobretudo, pelas<br />
recordações de Riobaldo sobre os tempos de jagunço e seu amor por Diadorim,<br />
contadas enquanto experiência singularizada. Mas, além disso, há um conjunto<br />
composto por uma infinidade de pequenos casos ou estórias sobre a vida no sertão que,<br />
entrelaçados, formariam uma rede ou trama de sabedoria relacionada a um passado<br />
tradicional, e que pode ser considerado como uma memória coletiva. O texto do Grande<br />
Sertão é constituído do início ao fim pelo relato das memórias de Riobaldo – narrador-<br />
personagem, ex-jagunço, e agora fazendeiro, a um visitante de fora – ali têm lugar,<br />
dentre outras, estas duas faces da memória.<br />
Se, por um lado, estas definições se encontram plausíveis no texto; por outro,<br />
não servem para serem lidas como verdades estabelecidas e estáticas, mas oferecem<br />
tentativas de compreensão de como estas noções se movem e percorrem a obra rosiana.<br />
Pois, como se verá mais adiante, na poética de Rosa: “Tudo é e não é” 18 , fórmula<br />
17 ROSA, J.G. (2001).<br />
18 Idem, ibidem, p.27.
síntese de uma escritura que ao concentrar ao máximo a contradição 19 , desloca as<br />
imagens paralisadas colocando tudo em movimento constante.<br />
A noção de uma memória individual no romance pode ser entendida como o<br />
relato do percurso da vida de Riobaldo: os acontecimentos de sua jornada particular,<br />
bem como seus questionamentos subjetivos sobre a vida, a morte, a justiça, a verdade, a<br />
existência do Demo ou não; mostrando-se distinta de um saber ligado à coletividade,<br />
nos moldes de uma tradição oral e arcaica, que, por sua vez, surge em diferentes e<br />
pequenas histórias sobre muitos personagens do sertão. Entretanto, como procurei<br />
mostrar em estudo anterior 20 , a escrita de Rosa possui pouca afinidade com a concepção<br />
de indivíduo, apresentando uma subjetividade freqüentemente fragmentada, descentrada<br />
e atravessada por uma voz coletiva que participa efetivamente em sua configuração. E,<br />
como se verá no GSV, mesmo quando se trata de uma memória de si, Riobaldo não é<br />
único nem idêntico a si próprio, desdobrando-se em diversos outros personagens: o<br />
menino, o professor, o jagunço Tatarana, o chefe Urutú-Branco, o fazendeiro na<br />
velhice...<br />
Da mesma forma, os estudos do sociólogo francês Halbwachs 21 – o primeiro a<br />
tratar do termo memória coletiva, nos anos 20 22 – poderão adquirir um sentido bem<br />
específico neste estudo, e mesmo no atual debate sobre a memória, que seria o de<br />
possibilitar um contraponto à concepção de uma memória individual fechada, trazendo à<br />
cena o questionamento sempre político sobre o papel das memórias coletivas nas<br />
sociedades de ontem e hoje; em que pesem as ponderações de que a memória coletiva<br />
parte ainda de quadros de pensamento um tanto estáticos, que nos levariam a reproduzir<br />
19 Refiro-me à noção de imagem na acepção dada por Walter Benjamin, de uma imagem como colagem<br />
dos restos da história, que contém em si em grau máximo a contradição entre os opostos, capaz de liberar<br />
o movimento, e que pode, por sua vez comparar-se com a noção de imagem poética em Octávio Paz. Cf.<br />
capítulo 4 desta tese; PAZ, O. (1972).<br />
20 Cf. CARMELLO, P. (2004).<br />
21 HALBWACHS, M. (1990).<br />
22 Cf. WEINRICH, H. (2001), p.168.
antigas oposições entre coletivo e individual, real e ficção, interior e exterior, imagem e<br />
lembrança, etc. Sob este aspecto, o conceito pouco acrescentaria aos estudos literários;<br />
porém, conforme veremos, através de várias formulações que a envolvem, a memória<br />
coletiva pode representar uma contribuição bastante interessante aos estudos sobre<br />
memória e literatura.<br />
A distinção entre as duas formas de memória será pensada, pois, principalmente<br />
a partir da análise do Grande Sertão feita por Arrigucci 23 , que diz respeito a uma<br />
mescla de formas narrativas associada à existência de um mundo misturado no romance.<br />
O autor não usa o termo memória, mas está abordando o tema quando propõe que uma<br />
mistura entre as formas narrativas épica, ligada à coletividade, e a forma individualizada<br />
do romance, no plano formal, acompanharia a questão do mundo misturado,<br />
considerado pelo crítico como um tema central dentro também da esfera semântica do<br />
texto.<br />
Walter Benjamin é quem estabelece uma correlação mais explícita entre as<br />
formas narrativas e as diferentes “modalidades” da recordação. Segundo ele,<br />
Mnemosyne, a deusa grega da reminiscência, seria a musa da poesia épica. A<br />
reminiscência seria a responsável pela transmissão da tradição de geração para geração,<br />
formando um campo de “indiferenciação criadora” 24 entre as várias formas épicas.<br />
Este campo épico indiferenciado, na forma mais antiga da epopéia, consistiria na origem<br />
tanto do romance como da narrativa épica.<br />
De acordo com Benjamin, a partir do surgimento, no cerne da epopéia, de uma<br />
diferenciação entre o romance e a narrativa épica, a reminiscência daria lugar, de um<br />
lado, à rememoração, como musa do romance; e, do outro, à memória enquanto musa<br />
da narrativa épica. Sobre a diferença entre rememoração e memória, ele afirma: “A<br />
23 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.7-29.<br />
24 Idem p.211.
primeira é consagrada a ‘um’ herói, ‘uma’ peregrinação, ‘um’ combate; a segunda, a<br />
‘muitos’ fatos difusos.” 25 Portanto, enquanto a rememoração ganha contornos do<br />
individual, a memória adquire o relevo coletivo. Esta contraposição será utilizada,<br />
porém, apenas como um caminho para pensar como esta duplicidade da memória se<br />
apresenta no texto de Rosa; pois, conforme veremos mais adiante, outros autores farão<br />
outras distinções entre os termos memória e rememoração, com diferentes sentidos, que<br />
servirão muito mais para pensar o tema do que estabelecer definições rígidas.<br />
Quanto ao mundo misturado, esta seria uma noção central no GSV, e estaria<br />
relacionada simultaneamente às indagações subjetivas do narrador Riobaldo, e a<br />
questões coletivas a respeito de determinadas contradições e particularidades históricas<br />
presentes na formação da cultura brasileira, às quais o texto faz referência, embora seja<br />
uma construção que não se estabelece de maneira nenhuma sob a forma de registro ou<br />
retrato da realidade:<br />
...Essa mistura do mundo que o livro exemplifica sobejamente, em<br />
variadíssimos aspectos e planos, coloca também uma questão decisiva,<br />
que é a mistura das formas narrativas utilizada para representar a<br />
realidade de que nos fala. (ARRIGUCCI JR., 1994, p.10).<br />
Mas o que seria, antes de tudo, este mundo misturado? E como esta idéia se<br />
articula com a questão da memória no texto? A citação aparece na fala de Riobaldo<br />
como uma constatação e uma queixa. Riobaldo, ex-jagunço, fazendeiro, conta sua(s)<br />
história(s) a um visitante e, num primeiro momento, parece esperar que a narração (ou o<br />
ouvinte) ordene uma complexidade que não compreende, que consiste principalmente<br />
na presença de um Mal que perpassa tudo o que há, e que impede a distinção em relação<br />
a um agir ético:<br />
25 Idem, ibidem.
...Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de<br />
que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do<br />
outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria<br />
longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que<br />
posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtaz<br />
a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que, este mundo<br />
é muito misturado... (ROSA, J.G., 2001, p.237).<br />
O que é importante frisar, aqui, é que tal mistura consiste numa percepção e<br />
numa angústia de um jagunço que é também instruído nas letras – os outros<br />
companheiros do bando, por exemplo, não compartilham dela. Logo, é um sujeito<br />
dividido que percebe a contradição do mundo, numa superposição de contradições que<br />
amplia a complexidade da questão e antecipa as relações com outras contradições<br />
ligadas às raízes da cultura brasileira, apontadas pelo autor no mesmo ensaio.<br />
Pois, se este mundo misturado foi efetivamente dividido, no sentido de uma<br />
interdição que possibilite uma construção ou elaboração simbólica – ou permanece uma<br />
sucessão de contradições repetitivas, uma miscelânea paralisada no tempo, sem aceder a<br />
um registro que permita a comunicação, a troca, o movimento entre os contrários – será<br />
justamente outra indagação a ser considerada. Antes disso, será preciso situar melhor a<br />
noção de mistura no texto, pois dela partem muitas considerações relevantes sobre a<br />
obra rosiana.<br />
Em primeiro lugar, a mistura do mundo dita por Riobaldo se manifesta, no plano<br />
formal, numa linguagem misturada, uma profusão de línguas utilizadas por Guimarães<br />
Rosa, na qual se encontram:<br />
O falar regional do Norte de Minas, certamente muito estilizado, de<br />
combinação com latinismos; arcaísmos tomados ao português<br />
medieval – esse “magnífico idioma já quase esquecido: o antigo<br />
português dos sábios e poetas daquela época dos escolásticos da Idade<br />
Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra”, indianismos;<br />
neologismos; termos aproveitados e adaptados de múltiplos idiomas<br />
(do inglês, do alemão, do francês, do árabe etc.); vocábulos cultos e<br />
raros, bebidos nos clássicos portugueses; elementos da linguagem das<br />
ciências, e sabe-se lá de que fontes mais. (ARRIGUCCI JR, D., 1994,<br />
p.13).
Desta mescla se constitui a linguagem em Guimarães Rosa, uma mistura de<br />
tempos e nacionalidades, falas populares e cultas, arcaicas e modernas; num incrível<br />
trabalho de reinvenção realizado pelo escritor, que teria entre seus principais efeitos<br />
uma densidade, uma opacidade que se opõe aos significados mais usuais da palavra,<br />
levando o leitor a participar da busca por novos e inusitados sentidos, num processo de<br />
reescrita da língua que integra diferentes formações da cultura brasileira. O inovador na<br />
tese de Arrigucci é que esta linguagem misturada acompanharia, no plano formal,<br />
outras misturas a que se refere o romance, entre as quais uma mescla própria da cultura,<br />
com a qual de algum modo se relaciona o universo de Rosa, um universo rural, arcaico,<br />
que testemunha o choque com o projeto de modernização do país próprio dos anos 50,<br />
contexto vigente no período de elaboração do livro, publicado em 1956.<br />
Em relação às formas narrativas, o crítico afirma que a mistura do mundo se<br />
expressa entre uma narrativa épica e o romance; a primeira sendo ligada ao mundo<br />
mítico e heróico das batalhas e das histórias dos chefes dos bandos de jagunços,<br />
composta por muitas estórias breves, um mar de estórias difusas sobre diversos<br />
personagens, que se juntam num todo relativo ao sertão e ao coletivo:<br />
O fundo arcaico – de cujo oco mais profundo no sertão, reino de uma<br />
mitologia ctônica, parece ter saído o Hermógenes, é também o da<br />
cercania do mito. Dali brota a aventura dos heróis romanescos, dos<br />
grandes chefes jagunços: narrativa propriamente épica, que acaba por<br />
se definir como história de uma busca de vingança, incitada pela<br />
paixão amorosa: amor e morte em estreita liga numa demanda<br />
aventurosa puxada pelo fio (...) de Diadorim. (ARRIGUCCI JR.,<br />
1994, p. 17).<br />
A este mundo épico – chamado por Arrigucci de romanesco por referir-se aos<br />
romances medievais de cavalaria – se acrescenta a história mais longa e supostamente<br />
única da vida de Riobaldo, formada pelas recordações de sua trajetória particular, de<br />
professor a chefe do bando de jagunços, seu amor por Diadorim, suas reflexões e
indagações sobre a vida e a morte; e que consistiria na forma do romance moderno<br />
propriamente dito:<br />
...Mas sobre essa estória romanesca, em que age o jagunço Riobaldo –<br />
o cerzidor, o Tatarana, o Urutú-Branco – Riobaldo-Narrador constrói<br />
a tentativa de esclarecimento do sentido de sua vida, o relato de sua<br />
experiência individual, singularizada a partir de um encontro único e<br />
enigmático com o Menino, que será Diadorim – marco de sua<br />
travessia pessoal e ponto de interrogação que lhe coloca questões que<br />
não pode responder. (ARRIGUCCI JR., D., 1994, p. 17).<br />
O que importa ser pensado a respeito desta dialética entre a forma épica e o<br />
romance seria: “Como o romance – forma da épica moderna – se desenrola da mistura<br />
das formas épicas tradicionais, com as quais aparentemente nada tem a ver” 26 , pois a<br />
noção central do artigo é justamente a de que o romance ou a história individual se<br />
constitui ou se desenreda, diria Rosa, a partir da vertente épica, ou das estórias menores<br />
e coletivas, bem como as conseqüências desta constatação 27 .<br />
Willi Bolle segue por conceituação semelhante quando situa os “casos de<br />
caipira” 28 , ou seja, as diferentes histórias menores do cotidiano do sertão, do lado da<br />
micro-história e das pequenas veredas; em contraste com os grandes feitos da história<br />
oficial, o Grande Sertão: “As ‘veredas’ ou ‘passagens’ do Grande Sertão configuram<br />
uma história do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia, em contraposição aos<br />
feitos da historiografia monumental...” 29 Embasada em abordagem mais histórica, o<br />
que interessa nesta proposição, por ora, é a constatação de uma duplicidade narrativa<br />
26 ARRIGUCCI JR., D. (1994) p.20.<br />
27 Sem dúvida, esta discussão relaciona-se com a noção de épica negativa conceituada por Adorno,<br />
segundo a qual haveria um retorno nos romances modernos, da subjetividade, em direção às formas préindividuais<br />
que refletiriam, entre outros aspectos, um contexto de tensão entre a impossibilidade e a<br />
exigência de narrar, em meio à barbárie: “De fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a<br />
subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário,<br />
assemelham-se a epopéias negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si<br />
mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu endossar o<br />
mundo pleno de sentido.” Cf. ADOR<strong>NO</strong>, T. (2003) p.62.<br />
28 Cf. ROSA, J.G.(1985) p.93.<br />
29 BOLLE, W. (1994-1995) p.84.
entre uma história maior, atravessada por outras menores, exatamente como na imagem<br />
proposta pelo crítico, a de um sertão entrecortado ou interceptado por pequenos “cursos<br />
d’água” 30 que participam na sua formação.<br />
Visto assim, como imagem dialética, o Grande Sertão: veredas 31 faz pensar se,<br />
no que concerne ao tema da memória, o mesmo estaria em jogo, quer dizer: de que<br />
forma se conjugam a dimensão de memória mais ampla, ligada a uma vida coletiva do<br />
sertão, e a rememoração individualizada de Riobaldo? Em que medida as lembranças<br />
coletivas podem ser pensadas como contrapontos críticos da recordação individual? Até<br />
que ponto elas seriam responsáveis por rupturas no contar seguido do narrador? Estas<br />
seriam algumas indagações sobre esta encruzilhada de tempos e memórias que é o texto<br />
rosiano, sem perder de vista o contexto histórico desta escrita.<br />
Apenas uma observação se faz necessária, a fim de não estabelecer um desvio<br />
em relação ao norte apontado pela ficção, pois se trata de algo incontornável que se<br />
evidencia em comum nos comentários de Arrigucci mencionados nas páginas<br />
anteriores. O que aparece nos dois trechos como motivação – tanto para a recordação ou<br />
narração individual como para a coletiva – é a presença enigmática de Diadorim. Figura<br />
igualmente misturada, desde sua aparência em relação ao sexo, ambíguo entre homem e<br />
mulher; até seu desejo, dividido entre o amor por Riobaldo ou a vingança da guerra, o<br />
personagem de Diadorim surge como enigma da busca ao passado realizada por<br />
Riobaldo ou como marco inicial de sua trajetória. Por ora, é o que precisa ser<br />
remarcado, pois será retomado com maior cuidado no decorrer desta análise.<br />
Ainda sobre a duplicidade de memórias em jogo, é preciso considerar<br />
atentamente esta mistura em relação à figura do narrador, igualmente desdobrada entre<br />
o narrador do romance e o contador de estórias, num texto composto integralmente pela<br />
30 Idem, p.85.<br />
31 ROSA, J.G. (2001). Afim de evitar excesso de cit a ções da mesma obra, utilizarei as siglas GSV , ou simplesmente Grande Sertão para me referir ao<br />
romance de Rosa.
narrativa de memórias deste narrador, “um texto escrito que encena uma situação de<br />
fala” 32 , constituindo-se numa “fala escrita” 33 , como bem apontou Susana Lages, no<br />
qual a questão do esquecimento também deve ser levada em consideração.<br />
Tempos modernos, recordação e romance<br />
La nature n’est q’un dictionaire (...) Tout l’univers<br />
visible n’est qu’un magasin d’images et signes.<br />
CHARLES<br />
BAUDELAIRE<br />
Sem dúvida, Riobaldo representa bem o herói problemático definido por<br />
Lukács 34 como o elemento divisor de águas entre o romance moderno europeu e as<br />
formas narrativas épicas que o antecederam. Esta noção só pode ser compreendida,<br />
contudo, se situada em relação em relação à importância adquirida pela memória para o<br />
sujeito na Modernidade, e às diferentes maneiras de conceber o tempo nas sociedades<br />
modernas e nas sociedades consideradas tradicionais. E, embora não se possa<br />
estabelecer uma correlação cronológica exata entre uma Modernidade científica ou<br />
histórica e a Modernidade literária, o advento de uma literatura ou de um romance<br />
moderno europeu é associado por diversos autores 35 ao contexto – mais ou menos –<br />
concomitante de transformações sociais e históricas trazidas com os tempos modernos.<br />
Um primeiro aspecto que a passagem de um narrador tradicional ao sujeito<br />
problemático do romance evidencia é o de que a imagem ou maneira de perceber o<br />
tempo não é universal e a-histórica, mas relaciona-se, embora de maneira não linear ou<br />
causal, ao contexto histórico que envolve as diferentes sociedades, assim como as<br />
diversas subjetividades nelas constituídas. De acordo com o poeta e ensaísta Octávio<br />
Paz 36 , enquanto para os povos antigos a marca do tempo é a regularidade da repetição,<br />
32 LAGES, S. (2002) p.74.<br />
33 Idem, ibidem.<br />
34 LUKÁCS, G. (n/c) p.87-93.<br />
35 Conferir, por exemplo, FOUCAULT, M. (1975), BENJAMIN, W. (1986), e PAZ, O. (1984).<br />
36 PAZ, O. (1984) p.27.
perpetuada através do ritual e repassada de geração a geração; para a Modernidade, o<br />
traço que se impõe é a busca pela ruptura e pela novidade de um futuro distinto do que<br />
passou.<br />
De acordo com Paz, para os antigos, o modelo tanto do presente como do futuro<br />
seria um passado referido ao mito, e a própria vida se constituiria no encontro com este<br />
passado arquetípico, através de rituais que presentificam o passado através da tradição.<br />
A temporalidade anterior à Modernidade encerraria um curioso paradoxo, já que:<br />
“embora seja tempo, é também a negação do tempo” 37 , pois permanece como princípio<br />
imemorial, original, de um tempo reconciliado consigo mesmo, reatualizado sempre<br />
através dos ritos coletivos. Trata-se de uma visão do tempo imóvel ou cíclica, análoga<br />
ao curso das estações da natureza e ao modo de produção rural e artesanal, pois tanto o<br />
passado deve retornar, como o futuro pode ser entrevisto no presente por meio de<br />
profecias ou da própria noção de ritual, que reapresenta o futuro. O que importa é que o<br />
futuro não é facilmente alterado pelo homem; e ele se relaciona com este porvir como<br />
algo pré-estabelecido a ser presentificado; porém, um futuro extremamente interligado<br />
ao passado e ao presente.<br />
Se a Modernidade é relacionada historicamente por Paz a uma série de<br />
transformações ocorridas em sua maioria por volta do século XVIII, como o surgimento<br />
do Renascimento, a Reforma, a colonização das Américas, a emergência do capitalismo<br />
e da burguesia; enquanto conceito, destaca-se os ideais do progresso, ciência, liberdade,<br />
democracia etc. 38 Mas, sobretudo, a idéia de crítica ou de ruptura: “o tempo moderno é<br />
o tempo da cisão e da negação de si mesmo, o tempo da crítica.” 39 Ruptura do elo<br />
circular que permitia a perpetuação do tempo, estabelecendo-se em seu lugar, duas<br />
37 PAZ, O. (1984) p.26.<br />
38 Idem, (1993) p.34-35.<br />
39 Idem, (1974) p.189.
imagens complementares do tempo, uma concepção linear e uma idéia de<br />
transformação.<br />
Para os modernos, o tempo será o portador da mudança, e o futuro, o tempo que<br />
trará a novidade, estabelecendo-se numa seqüência cronológica na qual se distinguem<br />
presente, passado e futuro. Tal imagem do tempo está intimamente relacionada ao<br />
contexto europeu do ritmo acelerado das cidades, da vida burguesa e do modo de<br />
produção industrial do capitalismo emergente, traços característicos da era moderna,<br />
onde têm lugar as idéias de progresso, evolução e prosperidade.<br />
Entretanto, as mesmas transformações, sustentadas por um pensamento lógico e<br />
pela razão ocidental, que parecem fornecer esta coesão linear ao tempo, a partir da<br />
Modernidade serão responsáveis pela falta de uma unidade de sentido do tempo,<br />
unidade anteriormente assegurada, como aponta Foucault, por um outro sistema de<br />
pensamento, chamado analógico ou uma ordem da mímesis, que fazia coincidir as<br />
palavras e as coisas:<br />
... Mas, assim como os sinais naturais estão ligados ao que indicam<br />
pela profunda relação de semelhança, assim também o discurso dos<br />
antigos é feito à imagem do que ele enuncia; se tem para nós o valor<br />
de um signo precioso, é porque, do fundo de seu ser, e pela luz que<br />
não cessou de atravessá-lo desde seu nascimento, está ajustado às<br />
próprias coisas, forma seu espelho e sua emulação; ele é, para a<br />
verdade eterna, o que os sinais são para os segredos da natureza (desta<br />
palavra, ele é o sinal a decifrar); tem, com as coisas que desvela, uma<br />
afinidade sem idade. (FOUCAULT, M., 1999, p.50).<br />
Separado desta antiga rede, o sujeito moderno recorrerá à memória, como<br />
outrora a um oráculo, capaz de lhe dizer quem ele foi, quem ele é e como deve proceder.<br />
Com a Modernidade, o sujeito passa a tentar apropriar-se de seu passado, visando<br />
construir a partir dele a sua história individual e seus projetos de vida particulares.<br />
Levado a crer na importância da vida individual e, sobretudo, na capacidade individual<br />
de construir projetos futuros, o sujeito moderno é mesmo um sujeito em busca do tempo
perdido 40 , como no título da série de Proust, neste sentido, bastante representativa de<br />
seu tempo.<br />
É somente com a era moderna que se introduz de maneira efetiva a idéia –<br />
embora sempre malograda – de liberdade de escolha do sujeito diante de seu futuro,<br />
quando tanto o futuro quanto o passado adquirem estatuto de conquistas individuais.<br />
Somente para o sujeito moderno o tempo faz diferença, pois está relacionado à noção de<br />
um sujeito capaz de construir projetos futuros, à idéia de que o futuro não é mais uma<br />
reprodução do passado ou das gerações passadas. Em suma, a noção de um sujeito<br />
desgarrado da antiga trama de semelhanças e da tradição, capaz de inventar a si mesmo,<br />
é uma novidade trazida pelos tempos modernos:<br />
As noções de liberdade, autonomia, interioridade, etc., que compõem<br />
o perfil deste personagem moderno, são moldadas no contexto de uma<br />
determinada forma de vivenciar o tempo e de um modo muito peculiar<br />
de rememorar e valorizar as lembranças e reminiscências. (BEZERRA<br />
JÚNIOR, B., 1982, p.115).<br />
Assim, a memória individual adquire importância em detrimento da memória<br />
coletiva, outrora constituída pelo conjunto de crenças e tradições sociais das sociedades<br />
tradicionais, e passa a consistir num “arquivo da individualidade” 41 , no sentido de uma<br />
reserva de verdade que encerra a promessa de unidade e sentido à experiência do<br />
sujeito. A noção de arquivo não será entendida aqui, portanto, como registro objetivo de<br />
lembranças, correlato de uma realidade objetiva; mas, sim, na vertente em que a<br />
rememoração é um lugar de construção de uma verdade subjetiva.<br />
Como veremos, a teoria freudiana da memória desenvolve-se bem mais na<br />
direção de um afastamento da idéia clássica de arquivo do que a sua ratificação,<br />
propondo algo radicalmente distinto em seu lugar. E, se em Benjamin e, finalmente, em<br />
Rosa, pode-se pensar num trabalho de recordação subjetivo ou de recriação através da<br />
40 PROUST, M. (2002).<br />
41 BEZERRA JÚNIOR, B. (1982) p.115.
arte, este trabalho seria a antítese da noção de arquivo, pois difere da noção tradicional<br />
de documento (a não ser que se pense o documento como rascunho, esboço, ensaio que<br />
encerra a idéia de criação), construindo-se a partir dos restos da experiência que é<br />
transmitida de uma geração a outra, através de uma subjetivação desta experiência, dos<br />
erros, falhas, lacunas e lapsos, enfim do esquecimento. A memória possui entre as<br />
características comuns, na obra destes autores, a falta de um elo entre uma recordação e<br />
outra, a insuficiência ou excesso inerente a toda rememoração e associação, o que faz<br />
com que o sentido da recordação se pulverize e escape sempre, bem como a concepção<br />
de que o próprio registro se desloca no tempo, sendo desde o princípio formado a partir<br />
de resíduos, ruínas, restos do real, o que aproxima também a memória da ficção, da<br />
narrativa, ou ainda do sonho.<br />
Desde o advento da Modernidade, portanto, o sujeito será marcado pela angústia<br />
permanente em relação ao tempo que passa e o coloca diante do sem-sentido da<br />
existência. A partir desta promessa de construção de sua história particular, o sujeito se<br />
identifica(ria) como portador de uma história singular e pode(ria) traçar planos futuros:<br />
na Modernidade, em certo sentido, a memória passa a ser a grande responsável pela<br />
forma como o sujeito concebe o seu estar no mundo. Neste contexto, é que Lukács<br />
define como traço característico do romance moderno o sujeito desadaptado a seu<br />
tempo, num mundo contingente:<br />
O processo assim explicitado como forma interior do romance é a<br />
marcha para si do indivíduo problemático, o movimento progressivo<br />
que – a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea<br />
puramente existente e privada de significação para o indivíduo – o<br />
leva a um claro conhecimento de si. Uma vez conquistado este<br />
conhecimento de si, parece-lhe que o ideal assim descoberto se insere<br />
como sentido da vida na imanência desta... (LUKÁCS, G., n/c, p.90).<br />
Cisão do sentido que provoca uma luta contra o tempo, outrora reconciliado<br />
consigo mesmo, na narrativa épica: “a totalidade da acção do romance não passa de
um combate contra as forças do tempo” 42 E faz com que o sentido da vida seja inserido<br />
no tempo de uma vida individual, o tempo do romance, e buscado na recordação, por<br />
isso a memória adquire este valor, ao mesmo tempo ampliado ao infinito, e desde<br />
sempre fracassado, pois o esquecimento também se dará a perceber, seja através do<br />
caráter inapreensível do tempo que passa, seja através da precariedade de tradução da<br />
recordação num valor de verdade que explique ou apreenda a vida como um todo.<br />
A inclusão do sentido da vida na memória particular do sujeito estaria no cerne<br />
da idéia de uma reminiscência criadora, exposta na Teoria do Romance 43 de Lukács, e<br />
associada justamente à densidade adquirida pela memória no romance, em contraste<br />
com o drama e a epopéia:<br />
...Que o drama ignora a noção do tempo, que qualquer drama está<br />
submetido à regra bem entendida das três unidades, significando a<br />
unidade do tempo uma libertação do fluxo temporal (...) Sem dúvida,<br />
a epopeia parece conhecer a duração; pensemos nos dez anos da<br />
“Ilíada” e nos dez anos da “Odisséia”, mas não mais do que no drama,<br />
esse tempo não tem verdadeira realidade, efectiva duração; não toca<br />
nem os homens nem os destinos; não possui nenhuma mobilidade<br />
própria e a sua única função é exprimir de maneira chocante a<br />
grandeza de uma empresa ou de uma tensão... (LUKÁCS, G., s/d,<br />
p.141).<br />
Pois o romance expressaria esta ruptura com o tempo imóvel do drama e da<br />
epopéia, e inauguraria uma nova relação com o tempo vinculada à concepção de<br />
transformação, mudança, novidade:<br />
42 LUKÁCS, G. (n/c) p.143.<br />
43 Idem, p.149.<br />
...No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e<br />
temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais<br />
íntimo, a totalidade da acção não passa de um combate contra as<br />
forças do tempo... (LUKÁCS, G., s/d, p.143).
É no romance, ainda, segundo Lukács 44 , que o sujeito ganha estatuto de<br />
intérprete do mundo, pois, com a separação entre o sujeito e o mundo, característica do<br />
sujeito problemático, é o mundo que passa a existir somente na medida em que<br />
configura um mundo subjetivo para alguém. É então que o passado toma vulto de algo a<br />
ser buscado e interpretado, e que a reminiscência adquire seu valor de criação:<br />
Eis o que confere à memória o seu caráter essencialmente épico. No<br />
drama – e na epopeia – o passado não existe ou é inteiramente actual.<br />
Visto que esses dois gêneros ignoram o escoamento do tempo, não<br />
existe para eles nenhuma diferença qualitativa entre a experiência<br />
vivida do passado e a do presente; o tempo não possui nenhum poder<br />
de metamorfose; não há nada com que ele possa reforçar ou<br />
enfraquecer a significação. (LUKÁCS, G., n/c, p.148).<br />
Walter Benjamin refere-se a este texto de Lukács, dando-lhe nova luz quando<br />
estabelece correlações mais explícitas entre a narrativa épica, o romance, a memória e a<br />
subjetividade moderna. Para Benjamin, a reminiscência criadora surge justamente<br />
como sinal de uma articulação entre os tempos, pois diz respeito a um espaço de criação<br />
possível ao sujeito na Modernidade a partir da memória, ou ao valor atribuído então à<br />
memória. Primeiramente, a reminiscência é definida como o fundo comum do qual se<br />
separaram a memória, ligada à narrativa épica, e a rememoração advinda com o<br />
romance:<br />
...Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao<br />
lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da<br />
poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na<br />
reminiscência. (BENJAMIN, W., 1986d, p. 211).<br />
No entanto, a noção de uma reminiscência criadora é apresentada também como<br />
advinda a partir do romance, fornecendo à rememoração individual um potencial criador<br />
que interliga passado, presente, e futuro – pois se articula com a apreensão do sentido da<br />
vida, embora inalcançável – que é então recolocado na história privada do sujeito do<br />
44 Idem, p.77-93.
omance. No que diz respeito à subjetividade, a reminiscência se estabelece como um<br />
terceiro termo entre a exterioridade e o interior do sujeito, numa perspectiva que busca<br />
preservar um caráter místico e enigmático da memória, ao designar uma dimensão<br />
transcendente e inexprimível, se instaurando a partir da luta contra o tempo:<br />
... Desse combate,... emergem as experiências temporais<br />
autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no<br />
romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e<br />
o transforma... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da<br />
interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a<br />
sua vida... na corrente vital do seu passado, resumida na<br />
reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão<br />
divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto,<br />
inexprimível. (LUKÁCS, G. apud BENJAMIN, W., 1986d, p.212).<br />
Tanto o original de Lukács quanto o texto de Benjamin parecem ressaltar o<br />
potencial criativo da rememoração a partir do romance, seja a partir de uma luta<br />
decorrente da inadaptação do indivíduo ao mundo moderno como um todo, ou em seu<br />
caráter mais místico, da constatação da inapreensibilidade do sentido da vida. O que<br />
importaria na reminiscência criadora seria o valor de verdade para o sujeito que é<br />
depositado na rememoração; que substitui a moral da história, própria da narrativa<br />
épica, pela questão do sentido da vida 45 , e faz com que cada narrador de romance, desde<br />
o seu surgimento, empreenda, à sua maneira, uma viagem em busca do tempo perdido.<br />
Um sujeito com pouco caroço<br />
A partir do exposto, pode-se dizer que o narrador do GSV representa, sem<br />
dúvida também o indivíduo problemático lukacsiano, este ser deslocado em seu meio,<br />
professor que se torna jagunço, inadaptado à realidade que o cerca: “O senhor saiba: eu<br />
toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.<br />
45 Cf. BENJAMIN, W. 1986 p. 212.
Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita<br />
coisa.” 46 Diferente dos demais, liberto para filosofar sobre uma vida sem sentido<br />
aparente, ou desgarrado da tradição expressa na crença dos outros jagunços das quais<br />
desconfia, desprovido de quase todo recurso, Riobaldo é este sujeito com pouco caroço,<br />
que procura na recordação um sentido que justifique ao mesmo tempo o passado e o<br />
presente:<br />
... O senhor sabe?: não acerto no contar porque estou remexendo o<br />
vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de<br />
feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia,<br />
achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que<br />
não houve. Às vezes não é fácil... (ROSA, J.G., 2001, p. 192).<br />
Através da busca ao passado, Riobaldo espera encontrar um sentido oculto, o<br />
rumozinho forte das coisas, ou a “lei, escondida vivível, mas não achável” 47 que ordene<br />
o mundo misturado e demarque os pastos, isto é, separe o bem e o mal; pois, como ele<br />
mesmo afirma, precisa que “o bom seja bom e o rúim ruim” 48 : “Mas esse norteado,<br />
tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doidera<br />
que é.” 49 Encontrar uma norma transcendente que explique o sentido da vida e aponte<br />
“o caminho certo da gente” 50 , seria, assim, um primeiro sentido para a rememoração do<br />
personagem. Para a psicanálise, coincide com o seu sentido manifesto, aquele que o<br />
sujeito pode enunciar desde o início, e é anterior a outros sentidos revelados por um<br />
trabalho de interpretação ou análise 51 ; e que, aqui, podem ser pensados através da<br />
46 ROSA, J.G. (2001) p. 31.<br />
47 ROSA, J.G. (2001) p.500.<br />
48 Idem, p.237.<br />
49 Idem, p.500.<br />
50 Idem, p. 110.<br />
51 O par conteúdo manifesto - conteúdo latente não será tomado aqui no sentido de um desvelamento de<br />
conteúdo Inconsciente que estaria por trás do discurso aparente, mas antes na acepção de algo que não foi<br />
ainda objeto de análise, quer pelo próprio narrador, quer por uma leitura mais atenta, e é comunicado num<br />
primeiro momento, ao qual se sucedem outros significados, ditos somente a partir do trabalho de<br />
rememoração ou de interpretação. Cf. Freud, S. (1987a), p. 170 e 336-337.
narrativa de Riobaldo, a partir de seu próprio trabalho de rememoração, de elaboração<br />
junto a este senhor que o escuta.<br />
A recordação de sua vida Riobaldo conta para o único personagem que não<br />
possui um nome, um desconhecido que se hospeda de passagem em sua fazenda, a<br />
quem o ex-jagunço se dirige como o senhor, e com quem insiste durante toda a<br />
narrativa para que, além de escutá-lo, ora concorde com ele, ora lhe explique a “norma<br />
do caminho certo” 52 , lhe forneça as respostas às suas inúmeras interrogações: “E,<br />
mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do<br />
demônio. Será não? Será?” 53 Ou então: “Somenos, não ache que religião afraca.<br />
Senhor ache o contrário.” 54<br />
A escrita da história transforma, assim, a recordação em narração, ou a imagem<br />
em palavra, pois o texto de suas memórias contadas é o texto do romance. Aqui, é<br />
importante destacar que esta rememoração da vida do personagem, que surge desde o<br />
início misturada e atravessada por memórias coletivas, ao se constituir como trajetória<br />
subjetiva, assume a forma de um questionamento que se desloca, no qual a<br />
rememoração deságua - para retomar uma metáfora presente no texto rosiano em<br />
inúmeras expressões relacionadas ao rio, referentes a uma travessia, – numa indagação<br />
maior, sobre a “a matéria vertente”:<br />
... Eu sei que isso que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado.<br />
Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu<br />
queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é<br />
uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.<br />
(ROSA, J.G. 2001 p. 116).<br />
A rememoração de Riobaldo adquire, desta forma, uma dimensão transcendente,<br />
o que talvez leve a crítica de Rosa, Kathrin Rosenfield, numa definição muito próxima à<br />
52 ROSA, J.G. (2001) p. 500.<br />
53 ROSA, J.G. (2001) p. 26.<br />
54 Idem, p. 39.
já exposta distinção entre memória e rememoração de Benjamin 55 , possivelmente<br />
inspirada na fala de Riobaldo acima, afirmar que a fala do narrador rosiano trataria de<br />
memória, e não de uma rememoração individual:<br />
... ele não visa rememorar sua vida como sendo delimitada pelas<br />
determinações geográficas (do sertanejo) e sociais (do jagunço). O que<br />
está em jogo é a memória – busca de uma verdade universalmente<br />
válida que transcenda os fatos particulares da vivência singular.<br />
(ROSENFIELD, K., 1993, p.12).<br />
Porém, se retornamos às formulações lukácsianas e benjaminianas sobre a<br />
reminiscência criadora e o romance, veremos que a própria noção de reminiscência<br />
criadora contempla este alcance universal e transcendente ao indivíduo; daí a opção por,<br />
ao invés de uma fixar os termos em questão, dar preferência à idéia que eles produzem<br />
no e sobre o texto. Em outras palavras, mesmo na Modernidade, seria ilusório imaginar<br />
que a criação de sentido para a existência possa ocorrer apenas no plano individual, ou<br />
de um indivíduo autônomo, pois dela participa, de algum modo, a cultura e a<br />
coletividade. Segundo Kehl: “É uma tarefa simbólica, que se dá por meio da produção<br />
de discursos sobre ‘o que a vida é’ ou ‘o que a vida deve ser’.” 56 Independente do<br />
termo utilizado, portanto, o que importa demonstrar é que o narrador rosiano recusa-se a<br />
permanecer no terreno da vivência puramente individual, e tampouco no das<br />
determinações coletivas, pois aspira efetivamente encontrar na recordação, e na<br />
narração, algo de outra ordem, além do visível, do objetivo ou do factual.<br />
A aspiração por uma verdade do passado – tal como manifesta o personagem –<br />
entretanto, mostra-se mal-sucedida: esta relação será marcada por diversos impasses e<br />
fracassos, se comparada à relação com tempo mítico para as sociedades arcaicas. Seja<br />
55 Cf. p.22 deste trabalho.<br />
56 KEHL, M.R. (2002) p.10.
porque o passado lhe escapa: “Tempos foram!” 57 , exclama Riobaldo, numa idéia<br />
bastante afim à concepção das teses benjaminianas sobre a história: “a verdadeira<br />
imagem do passado nos escapa veloz” 58 . Seja porque esta busca se sujeita a falhas,<br />
erros, ao desejo do que lembrar e como lembrar, bem como à impossibilidade, ou limite<br />
da rememoração, o esquecimento, evocando as idéias de ruína, de Inconsciente, de<br />
pulsão de morte e de real presentes em Freud e Lacan. Em todas elas, está presente a<br />
marca Modernidade através da ruptura, separação entre sujeito e tempo, palavra e coisa,<br />
memória e história, que também se impõem ao narrador-personagem Riobaldo.<br />
É preciso destacar ainda outro traço do romance moderno de Lukács presente no<br />
texto rosiano: a recordação do narrador, que coincide com o texto, “apóia-se numa<br />
única corrente de vida” 59 , o que se aqui se traduz por tomar o tempo de uma vida.<br />
Desde a origem – “órfão de conhecença” 60 de pai, às boas lembranças de sua mãe, na<br />
Vila Alegres, entre a Serra das Maravilhas e a Serra dos Alegres – até a juventude,<br />
quando dois acontecimentos se mostram bem marcados na memória: o primeiro<br />
encontro com Diadorim, na travessia do São Francisco; e a morte de sua mãe, a Bigrí,<br />
que ele diz ter mudado a sua vida “para uma segunda parte” 61 .<br />
Da fazenda de Selorico Mendes, seu padrinho, ao Curralinho, onde aprende a ler<br />
e tem suas primeiras namoradas “por nomes de flores” 62 , Rosa’uarda, e Miosótis, à<br />
fuga, ao ouvir dizer ser o padrinho, seu pai, quando se torna professor e conhece Zé<br />
Bebelo, que o leva para os “tempos loucos” 63 de jagunço. Do abandono dos planos de<br />
Zé Bebelo à outra fuga para o grupo de Joca Ramiro, onde se dá o reencontro com<br />
Diadorim. E, de jagunço, chefe do bando, até a velhice como fazendeiro, herdeiro das<br />
57 ROSA, J.G. Op. Cit., p.41.<br />
58 BENJAMIN, W. (1986e) p. 224.<br />
59 LUKÁCS, Op. Cit., p.146.<br />
60 ROSA, J.G. Op. Cit. p.57.<br />
61 Idem, p.127.<br />
62 Idem, p.130.<br />
63 ROSA, J.G. (2001) p.36.
terras de Selorico Mendes e marido de Otalícia: em poucas palavras, o tempo da<br />
narração é o intervalo que compreende a vida de Riobaldo, ele narra o que viu ou viveu,<br />
embora, como veremos adiante, tampouco a vida não encerra completamente a narrativa<br />
numa identidade única ou numa seqüência linear.<br />
O fim da vida coincide com o início do romance, é na velhice que o narrador<br />
recebe a visita de um forasteiro para quem conta suas histórias. Mais uma vez, há aqui a<br />
concepção de que o sentido da vida – e do romance – estaria encerrado nesta trajetória,<br />
que mesmo atravessada por muitas outras histórias, consiste num espaço bem<br />
delimitado, o que o diferencia de uma “A Odisséia”, de Homero, mencionada também<br />
por Lukács como exemplo mais conhecido de narrativa épica 64 , onde, como se disse,<br />
trata-se prioritariamente de muitos fatos e personagens difusos...<br />
Constatação da irreversibilidade do tempo, angústia diante da ausência de<br />
sentido da vida para um sujeito diante da morte, sujeito inadaptado a um mundo<br />
contingente, e ainda a reflexividade, isto é, a capacidade de se colocar questões a partir<br />
do que vê e vivencia, e filosofar sobre tais questões; recriação do mundo através da<br />
rememoração: as marcas da conceituação lukacsiana para o romance moderno estão<br />
todas presentes nas páginas do GSV. Entretanto, como já foi dito, a figura do narrador<br />
enreda, além desta, outras estórias, que fazem com que o livro não se encaixe<br />
completamente nesta definição. Pois, trata-se de uma rememoração atravessada,<br />
constituída, do início ao fim, por uma narrativa de estórias do sertão e fragmentos de<br />
saberes que, juntos, podem, neste contexto, ser considerados como memória coletiva, e<br />
cuja função merece ser melhor apreciada.<br />
A ênfase em apontar no texto cada aspecto do romance lukácsiano se fez<br />
necessária, no entanto, para nos situarmos em relação a uma certa divisão da crítica<br />
64 Cf. LUKÁCS, G. Op. cit., p.141.
atual de Rosa, entre, de um lado, os adeptos de uma leitura mítica, arcaica; e, do outro,<br />
os que vêem no texto de Rosa apenas uma evocação do mito, do oral, do arcaico, da<br />
memória coletiva, no qual a oralidade compareceria apenas como efeito do trabalho<br />
com a escrita, no qual a recordação individual sobrepujaria todos os aspectos<br />
coletivos 65 . Se concordamos, por um lado, com Susana Lages, quando afirma que o<br />
autor está efetivamente inserido na Modernidade, pois não se trata de uma fala pura,<br />
mas de um texto escrito que “mimetiza um discurso oral” 66 , uma situação de fala, e que<br />
o regresso a um tempo mítico ou “a oralidade é uma marca do texto, não sua causa,<br />
nele se inscreve, não o prescreve nem o determina” 67 .<br />
Concordamos ainda mais, quando, ao invés de destacar somente uma primazia<br />
do moderno sobre o passado, afirma o caráter de “tensão fundamental” 68 entre estes<br />
elementos nos textos de Rosa, cujo interesse maior, neste momento, seria o eixo entre a<br />
memória coletiva e arcaica dos múltiplos casos sertanejos e a memória da vida de<br />
Riobaldo.<br />
O crítico Finazzi-Agrò parece redimensionar a mesma temática, fornecendo-lhe<br />
outro alcance, quando propõe para o GSV o termo Obra-Mundo, uma definição de<br />
Franco Moretti para certos textos que não se enquadram muito bem em qualquer<br />
categorização literária – ou ainda, o termo épica-moderna, cujo paradoxo dos próprios<br />
termos faz com que o conceito contenha uma “definição que não define” 69 , mas indica,<br />
expõe, deixa em aberto, e mais do que isto, ressalta o conflito inerente à própria obra.<br />
De qualquer modo, não se pode negar que os traços de uma memória coletiva e um<br />
passado arcaico estão lá, no texto, fulgurando, como diria Foucault 70 , e que a narração<br />
65 LAGES, S. (2002) p.73-79.<br />
66 Idem, p.73.<br />
67 Idem, ibidem.<br />
68 Idem, ibidem, p.74.<br />
69 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.32.<br />
70 FOUCAULT, M. (1999).
ou recordação que o texto encerra envolve os dois aspectos misturados, que de alguma<br />
forma se vincularão ao mundo misturado, como propõe Arrigucci:<br />
...Riobaldo formula questões que vão muito além do saber que<br />
caracteriza o homem de bom conselho que é o narrador tradicional,<br />
cuja sabedoria prática se funda em larga medida na experiência<br />
comunitária. Na verdade, as interrogações que formula sobre o sentido<br />
de sua experiência configuram pelo sentido da vida típica do romance<br />
burguês, voltado para os significados da experiência individual no<br />
espaço moderno e do trabalho e da cidade. (ARRIGUCCI JR., 1994,<br />
p.19).<br />
Cabe a ressalva de que os termos coletivo e individual revelam-se pouco<br />
apropriados, se retirados do contexto em que foram utilizados, no ensaio de Arrigucci,<br />
para descreverem a memória no GSV, porque, justamente, só produzem esta reflexão<br />
quando articulados, enquanto categorias indissociáveis. É também provável que as<br />
teorias da memória benjaminianas e psicanalíticas ofereçam outras alternativas para esta<br />
oposição ou, ao menos, recoloquem o problema em outros termos. Antes, porém, é<br />
preciso tentar pensar, nisso que vai se desenhando como um “giro da memória” 71 ,<br />
como é que a história do sujeito problemático, urbano e moderno, se desenreda, então,<br />
do contador de causos, caipira; e que outros narradores podem ser considerados ali, o<br />
que teriam a lembrar, ou a esquecer?<br />
O contador de estórias<br />
O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Voltemos ao início. Na primeira página do romance, quando Riobaldo começa a<br />
falar ao visitante, nesta fala que toma o livro todo; o que primeiro ele conta é a estória<br />
do bezerro com feições humanas e demoníacas ao mesmo tempo, cuja forma híbrida já<br />
antecipa a dúvida subseqüente:<br />
71 ROSA, J.G. (2001), p. 138.
˗ Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem<br />
não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do<br />
córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em<br />
minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um<br />
bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara<br />
de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por<br />
defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito<br />
pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo<br />
prascóvio. Mataram. Dono dele não sei quem for. Vieram emprestar<br />
minhas armas, cedi... (ROSA, J.G., 2001, p.23).<br />
Nas páginas seguintes, o que se lê é uma série de causos, pequenas estórias<br />
sobre o sertão, que evocam uma sabedoria e uma memória coletiva e fazem alusão às<br />
narrativas de tradição oral; mas, sobretudo, cujo conteúdo diz respeito à presença de um<br />
Mal aparentemente sem limites, gratuito, que escapa à lógica da razão 72 . Iniciam-se com<br />
dois casos bem menores, do Aristides, que escutava a voz do “capiroto” 73 , e do Jisé<br />
Simpilício, “que tem um capeta em casa” 74 , aos quais se seguem as estórias de<br />
“endemoninhamento” 75 contadas por um seminarista, e uma sucessão de nomes do<br />
diabo, que Riobaldo lamenta não poder esquecer 76 ; enumeração que termina com a<br />
primeira menção a si mesmo no texto, quando o ex-jagunço associa o seu próprio<br />
“gosto de especular idéia” 77 com a rememoração, a velhice e o ócio para, logo em<br />
seguida, colocar a pergunta que é sustentada até o final: “o Diabo existe e não<br />
existe?” 78<br />
Inúmeros outros exemplos, como o da mandioca mansa, que “pode de repente<br />
virar azangada” 79 , e esta por sua vez, pode-se reverter na boa, ou a definição da<br />
natureza do ser jagunço, “entrante do demônio” 80 , ou ainda a presença do demo na<br />
natureza, em animais como a cobra, o porco, o gavião e o corvo, e até na forma de<br />
72 Cf. ROSENFIELD, K. (1993) e (2006). Ver também cap. 4 deste trabalho.<br />
73 ROSA, J.G. (2001), p.24.<br />
74 Idem, ibidem.<br />
75 ROSA, J.G. (2001) p.25.<br />
76 Idem, p.26.<br />
77 Idem, ibidem.<br />
78 Idem, ibidem .<br />
79 Idem, p.27.<br />
80 Idem, p.26.
determinadas pedras 81 , apontam a existência do demo “misturado em tudo” 82 , numa<br />
onipresença da qual nem Deus escapa, já que, “por mais auxiliar, Deus espalha, no<br />
meio, um pingado de pimenta...” 83 O Mal é associado, portanto, a uma ambigüidade na<br />
origem dos seres – “a gente viemos do inferno – nós todos” – e da linguagem, a um<br />
fundo inominável, gerador de confusão, ao “um sem fim” 84 , “o raso” 85 . A negatividade<br />
de algo do qual só se conhecem os efeitos é sintetizada numa das descrições para o<br />
demo:<br />
O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe<br />
mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para<br />
haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de<br />
tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. (ROSA, J.G.,<br />
2001, p.76).<br />
A dúvida sobre a existência ou não do demo perpassa o livro todo, e é<br />
freqüentemente formulada pelo personagem da seguinte forma: se há diabo sozinho ou<br />
“vige dentro do homem, os crespos do homem.” 86 Em outras palavras, Riobaldo se<br />
pergunta se o Mal consiste em algo objetivo que causaria confusão, ou se o Mal é<br />
apenas a própria dificuldade humana em discerní-lo do bem. Questão tida como<br />
essencial, pois dela decorre saber se o pacto foi real ou imaginário e, de acordo com o<br />
jagunço, disso dependeria sua salvação ou culpa. E questão subjetiva, pois Riobaldo se<br />
apropria dela, tornando-a coisa sua: “Este caso” (o da consistência do demo), diz ele,<br />
“é de minha certa importância.” 87 O Mal introduz, por assim dizer, as memórias do<br />
narrador, através de primeiras memórias que são basicamente coletivas. O que começa<br />
81 Idem, p.27.<br />
82 Idem, ibidem.<br />
83 Idem, p.33.<br />
84 Idem, p.76.<br />
85 Idem, p.50.<br />
86 Idem, p. 26.<br />
87 Idem, ibidem.
compondo as “horas de todos” 88 , vai se revelando ao longo do texto como “as horas da<br />
gente” 89 , como aquilo que, para o narrador, merece – ou precisa – ser lembrado.<br />
Outras estórias têm lugar neste mesmo início do livro, um pouco maiores,<br />
apontando a mesma lógica de uma pura reversibilidade dos estados benignos e<br />
malignos: o causo do Aleixo, “o homem de maiores ruindades calmas que já se viu” 90<br />
que, após matar alguém, “só por graça rústica” 91 , teve os filhos cegos, e tornou-se<br />
bom; mas Riobaldo se pergunta a razão de tamanho castigo divino se voltar sobre as<br />
crianças. E o do Pedro Pindó e seu filho Valtêi, “gostoso de ruim de dentro do fundo<br />
das espécies de sua natureza” 92 – onde cabe perguntar, antes de tudo, quem, além de<br />
Rosa, poderia descrever com tanta precisão e ironia o gozo sádico?<br />
No caso do menino Valtêi, onde os pais parecem aprender com o filho a<br />
maldade, pois passam a castigá-lo cruel e regularmente, há uma maldade gratuita e<br />
contagiante, comenta Rosenfield, que subverte a lógica do arrependimento cristão<br />
apresentada no exemplo do Aleixo 93 – embora naquele, também o Mal reste irredutível<br />
e incompreensível na forma do castigo. Curiosamente, a infeliz estória do menino evoca<br />
a primeira lembrança de Riobaldo sobre sua própria vida (não a que depois mencionará<br />
como sendo a sua mais antiga recordação, sobre o ódio a um homem, na fazenda onde<br />
vivia com sua mãe), mas a que primeiro surge no texto, e esta é surpreendentemente<br />
uma das poucas a que ele se refere como saudosa e boa; e remonta a seus estudos,<br />
durante a juventude:<br />
88 Idem, p.154.<br />
89 Idem, ibidem.<br />
90 Idem, p.28.<br />
91 Idem, ibidem.<br />
92 Idem, p.29.<br />
93 ROSENFIELD, K. (2006) p.221.<br />
...Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive<br />
mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações,<br />
regra-de-três, até geografia e estudo pátrio (...). Ah, não é por falar:<br />
mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu
merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam.<br />
Tempo saudoso! (ROSA, J.G., 2001, p. 30).<br />
Nas páginas iniciais do livro, pode-se afirmar, então, que este conjunto de<br />
estórias coletivas prevalece, embora funcione como introdução para o questionamento<br />
filosófico e subjetivo do narrador. Pois, como foi dito, a questão do demo e do pacto só<br />
faz sentido se vinculada à sua história de guerra e de amor por Diadorim, e ao<br />
sentimento de culpa que o atormenta. Até então, o personagem só menciona a si mesmo<br />
em passagens bem reduzidas e fragmentadas sobre a velhice, e sobre suas crenças e<br />
opiniões sobre os casos ou, como na lembrança dos tempos escolares, o de uma<br />
memória de si que é evocada a partir de uma memória mais coletiva.<br />
A passagem dos casos à recordação efetiva da vida de Riobaldo vem a ser<br />
iniciada, desenredada igualmente a partir de outro causo, o último desta série inicial, o<br />
do arrependimento do jagunço Joé Cazuzo, do qual o narrador dá testemunho, pois o<br />
mesmo fazia parte de seu próprio bando quando desistiu da guerra:<br />
De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de<br />
suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – foi em<br />
arraso de tirotêi’, p’ra cima do lugar Serra Nova, distrito de Rio-<br />
Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e<br />
fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte<br />
político, com muitos soldados fardados (...). Agüentamos hora mais<br />
hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo<br />
– homem muito valente – se ajoelhou giro no chão do cerrado,<br />
levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro<br />
claro e urro surdo: − “Eu vi a Virgem Nossa (...).” Ele almou? Nós<br />
desigualamos. Trape por meu cavalo – que achei – pulei em mal<br />
assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado<br />
em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava.(...) Eu<br />
não cabia de estar mais bem encolhido (...). E outra, de fuzil, em<br />
ricochete decerto, esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja:<br />
bala faz o que quer – se enfiou imprensada entre em mim e a aba da<br />
jereba! Tempos loucos... (ROSA, J.G., 2001, p.35-36).<br />
Durante o tiroteio, Riobaldo se vê escondido e com medo da morte. É quando<br />
surge a primeira menção a Diadorim: “Conforme pensei em Diadorim”. 94 A partir desta<br />
94 Idem, p.37.
passagem, pode-se falar numa entrada na recordação da vida do narrador, realizada<br />
numa sucessão desordenada de fatos de sua trajetória, que começa com uma descrição<br />
da paisagem do sertão que lhe foi mostrada por Diadorim, segue pela tentativa frustrada<br />
de travessia do Liso do Sussuarão, pela escolha da vida jagunça, etc. História que vai<br />
sendo sucessivamente entrecortada ao longo de todo o romance por outras lembranças<br />
coletivas, menores, de hábitos, nomes de lugares, provérbios, casos, etc.<br />
Como o caso Maria Mutema, no qual se nota a ordem inversa do caso do menino<br />
Valtêi, pois é a estória menor que surge da narrativa predominante; que, aqui, quase na<br />
metade do livro, já é a da vida de Riobaldo. Trata-se da passagem em que os bandos de<br />
Joca Ramiro e do Hermógenes estão aliados contra o de Zé Bebelo, engajado em seu<br />
projeto de acabar com a jagunçagem no sertão. Riobaldo se vê no lado oposto ao antigo<br />
amigo e, aturdido com a morte de dois jagunços a quem tinha escolhido para lutar na<br />
linha de frente, indaga a si próprio sobre sua possível culpa. Tatarana, apelido que<br />
recebera neste bando, espera um possível ataque do bando dos bebelos e, no meio da<br />
noite, acordado com o Jõe Bexiguento, examina a “vagância de pecados” 95 da vida<br />
jagunça e relembra o que pergunta ao companheiro:<br />
...Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto<br />
arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso,<br />
queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe,<br />
broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente,<br />
nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de<br />
Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. (ROSA, J.G., 2001, p.<br />
236-237).<br />
É então que Jõe conta o caso de Maria Mutema, a mulher que, tendo confessado,<br />
arrependida, assassinar o marido “sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum,<br />
causa nenhuma” 96 , e matar igualmente o padre por desgosto, no confessionário, ao<br />
atribuir-lhe a responsabilidade pelo falso amor, é presa e, não só perdoada pelo povo do<br />
95 Idem, p.236.<br />
96 ROSA, J.G. (2001) p. 241.
lugarejo, mas adquire fama de santa, divulgada pela mesma população que a perdoou.<br />
Maria Mutema configura mais uma versão do Mal; mas, diferentemente dos casos das<br />
primeiras páginas, coloca em questão a possibilidade de esquecimento do passado<br />
através da noção de perdão, um esquecimento através do qual pode se dar a construção<br />
de uma nova história 97 .<br />
Desta forma, vê-se como a questão do Mal se inicia nas memórias coletivas,<br />
adentra a recordação da vida do narrador e retorna sempre, como uma lacuna, espaço<br />
vazio, entre o coletivo e o individual. Desde o princípio, a lembrança mais antiga que o<br />
narrador afirma possuir, é uma lembrança de ódio: “a coisa mais alonjada de minha<br />
primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem<br />
chamado Gramacêdo...” 98 E, durante toda a recordação de sua vida, a questão do Mal<br />
retorna sob a forma da dúvida sobre o pacto e outras estórias, que vão se interpondo (e<br />
compondo) à principal, configurando uma recordação que não cessa de ser evocada, e se<br />
mantém não respondida até a última página, na última referência ao diabo: “O diabo<br />
não há! É o que eu digo, se for... (grifo nosso) Existe é homem humano. Travessia.” 99<br />
O senhor sabe: um narrador em extinção<br />
97 A noção de perdão inclusa nesta pequena história não se confunde com a questão jurídica da<br />
imputabilidade criminal, o texto não menciona a absolvição da personagem. O filósofo Paul Ricoeur fala<br />
em “perdão difícil: nem fácil, nem impossível”, afirmando que o perdão se situa “na margem de<br />
instituições encarregadas da punição”, não se colocando de maneira nenhuma como substituto à lei, ao<br />
contrário, só se apresentando como horizonte diante daquilo que pode ser também julgado. No entanto,<br />
numa referência a Jacques Derrida, Ricoeur afirma que “o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é”,<br />
consistindo num desafio lógico que não pode estar a serviço de nenhuma finalidade. A questão se torna<br />
controversa e relevante sobretudo quando se trata dos chamados crimes contra a humanidade e<br />
genocídios do último século que, por sua vez, colocam uma outra desproporção, entre a culpa e a punição.<br />
Cf. RICOEUR, P.(2007) p.465-466; 474.<br />
98 Idem, p.58.<br />
99 Idem, p.624.
Em “O Narrador” 100 , Benjamin opõe uma narrativa proveniente da cultura oral e<br />
do meio artesão e coletivo ao romance do indivíduo inadaptado, relacionado à<br />
linguagem informacional, jornalística, proveniente dos novos tempos. De acordo com o<br />
filósofo, a narrativa épica se diferencia em tudo do romance moderno; pois, com a<br />
invenção da imprensa e a substituição da produção artesanal pela industrial, passamos a<br />
viver privados de experiência e sobrecarregados de informação, por isso, a linguagem<br />
atual perdeu a densidade narrativa, tornando-se meramente informacional. Ao leitor do<br />
romance tudo seria fornecido, não restando nenhum trabalho para a imaginação,<br />
justamente o que está presente e dá amplitude à narrativa arcaica.<br />
Novamente, é preciso ponderar que, ao falar neste narrador épico, arcaico, tal<br />
como o descreveu Walter Benjamin; estamos nos referindo, como o próprio filósofo<br />
chamou a atenção, a traços de uma figura “que não está de fato presente entre nós, em<br />
sua atualidade viva” 101 . Assim, este narrador rosiano se assemelha àquele que transmite<br />
uma experiência advinda de outras pessoas e outras gerações; seja através de uma<br />
linguagem que mimetiza a linguagem oral dos velhos contadores de estórias, seja pelo<br />
tom conciso, exemplar, pouco explicativo, de uma narrativa que “não se entrega (...)<br />
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver-se” 102 . Esta<br />
é a forma assumida pela linguagem nos incontáveis casos, estórias ou provérbios do ex-<br />
jagunço: “Couro ruim é que chama ferrão de ponta. (...) O senhor sabe: o perigo que é<br />
viver...” 103<br />
Estas memórias coletivas são comumente introduzidas no texto através da<br />
expressão: “o senhor sabe”, repetida ao longo do livro inteiro, e freqüentemente<br />
acompanhada de uma referência ao sertão, ou de uma forma de provérbio ou aforismo,<br />
100 Idem, p.197-221.<br />
101 BENJAMIN, W. (1986 d ) p.197.<br />
102 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.<br />
103 ROSA, J.G. (2001) p. 35.
e que justamente por pertencer a uma memória coletiva e arcaica, é assinalada como<br />
uma história já sabida e contada que, ao ser recontada pelo narrador, busca despertar<br />
uma recordação no interlocutor-leitor: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é<br />
forte, com as astúcias.” 104 Ou então: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das<br />
coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.” 105<br />
Outro vestígio do narrador benjaminiano no GSV seria o tédio, definido na tese<br />
benjaminiana como condição para a desejada distensão da escuta daquele que possui o<br />
dom de ouvir, e desenvolve o dom de narrar através desta experiência: “o tédio é o<br />
pássaro de ouro que choca os ovos da experiência.” 106 A transmissão desta experiência<br />
para o ouvinte é também vinculada por Benjamin ao modo de produção artesanal, ao<br />
tecer de uma rede:<br />
Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de<br />
tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim,<br />
se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa<br />
rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há<br />
milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.<br />
(BENJAMIN, W. 1986d, p. 205.)<br />
O tédio é assumido pelo próprio Riobaldo, quando, já aposentado, decide contar<br />
suas estórias ao forasteiro, e, no sertão, junto com o tédio encontra-se a imagem de outra<br />
rede, a indígena, mas igualmente associada ao devaneio que permite a rememoração;<br />
fazendo com que, desde o princípio do texto, a memória seja vinculada à imaginação e à<br />
fantasia. Mesma rede onde se deita um tempo estendido, contraposto ao áspero tempo<br />
cronológico, o tempo da ação e da produção (onde moemos todos):<br />
104 Idem, p.35.<br />
105 Idem, p.72.<br />
106 BENJAMIN, W. (1986) p. 204.<br />
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. (...) Vivi<br />
puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no<br />
asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem<br />
pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto<br />
de especular idéia. (ROSA, J.G., 2001, p.26).
Quanto ao caráter de ensinamento ou conselho prático próprio da narrativa<br />
épica, o que se lê no GSV seria muito mais a forma da sabedoria do que o conteúdo,<br />
pois os provérbios e causos são em sua maior parte contraditórios ou vagos, indefinidos<br />
demais para configurar algo da ordem de um conselho, o que também leva a pensar na<br />
definição de Benjamin para o provérbio, segundo ele, composto de resquícios ou<br />
“ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um<br />
acontecimento” 107 . É o que ocorre com o demo, que primeiro surge na forma da<br />
ambígua interrogação: “existe e não existe?” 108 , e depois não existe por si, mas “vige<br />
dentro do homem, os crespos do homem” 109 , restando sempre como indagação em<br />
aberto, como um passado ainda presente, mas nem um pouco reconciliado como o<br />
tempo das memórias ou narrativas mais tradicionais. Que conselho ou moral se pode<br />
extrair de uma pergunta que é, em si, um paradoxo?<br />
Trata-se de imagens contraditórias, que subvertem o senso comum e levam o<br />
pensamento lógico à exaustão, designando uma experiência inefável, semelhante à<br />
noção de Erfahrung, a Experiência; conceito fundamental que perpassa toda a obra<br />
benjaminiana, e surge justamente relacionado à memória: “a estrutura da memória é<br />
decisiva para a estrutura filosófica da experiência” 110 . A Erfahrung se diferencia da<br />
Erlebnis 111 , a vivência imediata, individual e assistida pela consciência, que seria a<br />
vivência possível após a entrada na Modernidade. A vinculação à tradição é assim<br />
pontuada por Benjamin, juntamente com a referência ao Inconsciente de Freud, pois<br />
esta experiência não se encontra disponível, afluindo, antes, à consciência:<br />
107 BENJAMIN, W. (1986) p.221.<br />
108 ROSA, J.G. (2001) p. 26.<br />
109 Idem, ibidem.<br />
110 BENJAMIN, W. (1989) p.105.<br />
111 Idem, p.46.
...a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na<br />
coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados<br />
na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência<br />
inconscientes, que afluem à memória. (BENJAMIN, W., 1989, p.105).<br />
A Erfahrung é igualmente ligada à narrativa épica e às formas subjetivas das<br />
sociedades tradicionais, tornando-se, após a Modernidade, sobretudo após a guerra de<br />
trincheiras, uma experiência perdida ou incomunicável. A Erfahrung é, ainda, colocada<br />
também, como uma Experiência de caráter alternativo à experiência de choque, outra<br />
noção inspirada no trauma freudiano. Porém, o choque benjaminiano surge numa<br />
dimensão histórica, referido à reação do sujeito à ruína e à catástrofe inerentes ao<br />
progresso científico e à Modernidade 112 .<br />
Deste modo, para a noção de experiência fazer sentido na atualidade, deveria ver<br />
contemplada a relação que estabelece com o passado e com o futuro, através de uma<br />
determinada referência ao passado arcaico ou tradicional que, entretanto, não se<br />
realizará como uma simples transmissão. Segundo a concepção benjaminiana, o passado<br />
“traz consigo um índice misterioso” 113 , compondo-se de nebulosas de sentido opacas à<br />
compreensão imediata. A noção de memória se distingue, portanto, da simples<br />
rememoração ou sucessão fixa de fatos passados no tempo. De acordo com o filósofo, o<br />
passado não está disponível, mas nos escapa a todo instante, só se deixando apreender<br />
num “lampejo”, quando nos apropriamos de uma reminiscência para construir, no<br />
passado, uma nova relação com o presente e com o futuro; nas palavras de Benjamin,<br />
“fazer do passado uma experiência única” 114 .<br />
Este vislumbre ou encontro secreto com o passado, para Benjamin, seria a<br />
relação que o presente estabelece com as gerações passadas, sendo a Experiência<br />
112 Cf. BENJAMIN, W. (1989) p.109.<br />
113 BENJAMIN, W. (1987) p. 222.<br />
114 Idem, p. 222-224.
(Erfahrung) 115 formada por uma fusão entre uma memória individual e outra forma<br />
mais arcaica e coletiva, ligada ao ritual:<br />
...Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em<br />
conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com o<br />
coletivo. Os cultos, com seus cerimoniais, suas festas (que, em parte<br />
alguma da obra de Proust foram mencionados), produziam<br />
reiteradamente a fusão desses dois elementos da memória.<br />
Provocavam a rememoração em determinados momentos e davam-lhe<br />
pretexto de se reproduzir durante toda a vida. As recordações<br />
voluntárias e involuntárias perdem, assim, sua exclusividade múltipla.<br />
(BENJAMIN, W., 1989, p. 107).<br />
É importante assinalar, aqui, este caráter de uma conjunção entre a memória<br />
coletiva e a individual, entre as recordações conscientes e inconscientes, que resulta<br />
numa concepção diferenciada de memória, numa construção bem próxima da busca<br />
efetuada pelo narrador de Guimarães Rosa. Pois, em primeiro lugar, em boa parte dos<br />
enunciados a respeito de um saber coletivo, o narrador rosiano fala do irrepresentável e<br />
do que não se pode comunicar... De fato, a escrita de Rosa não parece pretender<br />
recuperar esta figura do narrador, ausente da sociedade moderna, mas faz alusão a ela,<br />
a insere no texto enquanto figura em extinção.<br />
O que Riobaldo afirma buscar no passado parece situar-se, na esfera, sim, de<br />
uma experiência incomunicável e, talvez por isto ele se revele tantas vezes incapaz de<br />
narrar: “e eu não sou capaz de dar narração” 116 . Do mesmo caráter irrecuperável,<br />
perdido, do passado, viriam as várias expressões que se referem a uma falsa ou mal<br />
contada narrativa, ou o mentir e desmentir que se insere na busca pelo passado: “Ah,<br />
mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso.” 117<br />
“Ou Conto mal? Reconto.” 118<br />
115 BENJAMIN, B. (1989) p. 146 , (vide nota do revisor técnico).<br />
116 Idem, p.221.<br />
117 Idem, p. 200.<br />
118 Idem, p.77.
Outro aspecto a ressaltar é que, embora sejam apresentadas como parte de uma<br />
memória coletiva, de tradição oral, nem sempre as pequenas estórias de Riobaldo são<br />
contadas no tempo passado. Dos casos iniciais, quase todos, à exceção do Aleixo “que<br />
era o homem de ruindades calmas” 119 , e do delegado Jazevedão e seu capanga, “que<br />
tanto um era ruim, como o outro ruim era” 120 , são narrados no tempo presente do<br />
verbo: “Ainda o senhor estude. Agora mesmo, nestes dias, tem (grifo nosso) gente<br />
profanando que o próprio Diabo parou, de passagem, no Andrequicé.” 121<br />
E a predominância do tempo presente fornece tanto a idéia da atualidade de um<br />
passado sempre presente do tempo mítico, o passado que não passa do poeta Octávio<br />
Paz, citado no início deste capítulo, como a da articulação histórica e materialista do<br />
passado benjaminiano; além de uma terceira via de compreensão, a do passado<br />
traumático freudiano, que não passa por não ter sido esquecido. Num outro sentido, o<br />
tempo presente da narração reforçaria o caráter testemunhal 122 almejado pelo narrador<br />
para convencer seu interlocutor (ou, pelo escritor em relação ao leitor), como no caso do<br />
Aristides, que escuta a voz do diabo lhe chamando: “Do demo? Não gloso. Senhor<br />
pergunte aos moradores. (...) Sentença num Aristides – o que existe (grifo nosso) no<br />
buritizal primeiro desta minha mão direita.” 123<br />
O personagem que mais se assemelha à figura benjaminiana do sábio portador<br />
destas memórias coletivas, no GSV, foi, até o momento, pouco comentado pela crítica:<br />
trata-se do compadre Quelemém, a quem Riobaldo recorre após a morte de Diadorim,<br />
tendo sido indicado pelo amigo Zé Bebelo, como alguém “diverso de todo o mundo” 124 ,<br />
capaz de acolher sua dor: “Compadre meu Quelemén me hospedou, deixou meu contar<br />
119 Idem, p.28.<br />
120 Idem, p.34.<br />
121 Idem, p.24.<br />
122 Cf. capítulo 2 desta tese.<br />
123 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 24.<br />
124 Idem, p.623.
minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência –<br />
calma que minha dôr passasse; e que podia esperar muito longo tempo.” 125<br />
Quelemém encarna a ordem tradicional reproduzida socialmente sem nenhuma<br />
crítica; ele reprova, por exemplo, as incertezas de Riobaldo no caso do Aleixo, quando<br />
este questiona a justiça no fato das crianças terem-se tornado cegas: “Que, por certo,<br />
noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados” 126 . A figura é<br />
mencionada, desde o início, como o homem mais experiente, cuja opinião tradicional<br />
sobre os casos é tratada por Riobaldo como algo de muita relevância, mas<br />
simultaneamente, com fina ironia, uma crença insuficiente, como no exemplo do<br />
exorcismo:<br />
...Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os<br />
baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e<br />
com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre<br />
meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis.<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 25).<br />
Riobaldo reconhece esta sabedoria, mas não a aceita de todo: “Compadre meu<br />
Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente<br />
nunca deve aceitar inteiro o alheio” 127 Apelo e recusa à tradição dos quais novamente<br />
temos notícia através das teses sobre a história de Benjamin 128 , onde se encontra<br />
contradição semelhante na relação estabelecida com o passado. Pois, ao mesmo tempo<br />
em que o índice secreto do passado traz um chamado ao qual é preciso saber escutar, a<br />
idéia de um desencontro com a tradição é colocada não somente nas noções já descritas<br />
de um passado que escapa e só se deixa entrever num lampejo, mas na urgência de<br />
“arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” 129 . Isto porque<br />
125 Idem, ibidem.<br />
126 Idem, p.29.<br />
127 Idem, p.39.<br />
128 BENJAMIN, W. (1986e).<br />
129 BENJAMIN, W. (1986) p. 224.
Benjamin enxerga na história oficial, à qual se vincula a tradição, sempre a história dos<br />
vencedores:<br />
...O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a<br />
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes<br />
dominantes, como seu instrumento.(...) O dom de despertar no<br />
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do<br />
historiador convencido de que também os mortos não estarão em<br />
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de<br />
vencer. (BENJAMIN, W., 1986e, p.224-225).<br />
A idéia de um conflito com a tradição ao qual somos chamados a reinventar, a<br />
reescrever, passa, portanto, pela tarefa de despertar no passado as centelhas da<br />
esperança e buscar uma história dos vencidos, ou uma história esquecida, à qual ainda<br />
retornaremos para abordar as noções de ruína, resíduo e trauma no GSV, indissociáveis<br />
desta formulação. Por ora, o que é preciso assinalar nas obras de Benjamin e Rosa é a<br />
difícil relação com este passado tradicional, e a idéia do esforço necessário empreendido<br />
na busca e reconstrução desta história. É como se Riobaldo trouxesse esta memória, mas<br />
não desejasse nem recordá-la inteira, nem perpetuá-la, mas reescrevê-la em outras<br />
bases. Riobaldo relembra 130 , eis uma leitura possível para a freqüência com que o<br />
prefixo re aparece no texto ligado à memória e seus sinônimos: “Relembro<br />
Diadorim.” 131 “Me revejo de tudo.” 132 “Reconto” 133 .<br />
A figura de Quelemém sustenta, entretanto, dois aspectos contraditórios da<br />
memória arcaica: o de um sistema fechado, um conjunto de crenças referidas às<br />
sociedades denominadas fechadas ou tradicionais que se pretendem reproduzir ou<br />
atualizar, como já visto e, por outro lado, o de um fundo ou memória relacionada a um<br />
tempo perdido, irrecuperável, e ao Inconsciente da Erfahrung, ao esquecimento. É o que<br />
Riobaldo afirma, quando ao atribui ao personagem a dimensão da outra coisa, no<br />
130 Idem, p.56.<br />
131 Idem, p.56.<br />
132 Idem, p.77.<br />
133 Idem.
sentido de uma outra memória ou outra verdade sobre o passado, que vem se interpor à<br />
trajetória mais individual do narrador, fazendo-o narrar desemendado, contar falso:<br />
Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em<br />
minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. É<br />
ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei<br />
contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu<br />
Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso<br />
inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa. (ROSA, J.G., 2001,<br />
p. 214).<br />
Logo após avançar, o narrador retorna para o dito, ao que se situa no registro das<br />
palavras, da narração, do discurso, da linguagem: “Agora, neste dia nosso, com o<br />
senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo<br />
aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.” 134 Entretanto, o que vai sendo<br />
narrado aponta gradualmente para a necessidade deste dito constituir-se como um saber<br />
próprio, a partir do saber dos outros. Mas, fundamentalmente, a narrativa inclui a<br />
dimensão de não-saber, a dimensão da outra-coisa, consistindo numa rememoração que<br />
procura aproximar o que é possível nomear deste saber Inconsciente, que se associa ao<br />
esforço de nomear, rememorar (e elaborar) algo que, para o narrador, se impõe como<br />
necessário: “Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.” 135<br />
Percebe-se, portanto, o quanto a escrita de Rosa não elimina a tensão entre estas<br />
diferentes faces da memória; elas estão todas ali, expressas no texto. Entretanto, como<br />
afirmo no início deste capítulo, o texto coloca todas estas contradições em movimento,<br />
num ir e vir entre diferentes recordações e distintas concepções de memória,<br />
sobrepondo tempos, e, sobretudo, intercalando memória e esquecimento, ao falar<br />
igualmente de uma memória relacionada a este fundo inominável de onde brota o<br />
sentido de todas as coisas, ao que se coloca na ordem do irrepresentável...<br />
134 Idem, p.214.<br />
135 Idem, p.189.
A respeito da memória coletiva, cabe ainda indagar, com maior detalhe, o que<br />
estaria em jogo na origem deste conceito, e qual a sua pertinência atual nos estudos<br />
sobre a memória?<br />
Memória coletiva, uma memória “feliz”?<br />
São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças,<br />
que já não sei em qual camada da memória eu estava agora.<br />
CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO<br />
A ênfase de Benjamin sobre a tese de que da memória coletiva só conhecemos<br />
os vestígios, embora não tão marcada no texto de Halbwachs, está presente sob o item<br />
“Sobrevivência dos grupos desaparecidos” 136 , que talvez constitua o maior ponto de<br />
contato entre os dois autores. Pois, enquanto Benjamin parece procurar um termo<br />
transcendente, além da memória coletiva e a individual; para o sociólogo francês, é a<br />
memória individual que se alimenta de “correntes de pensamentos coletivos<br />
convergentes” 137 , constituindo-se no cruzamento entre as ligações que o sujeito<br />
estabelece com os diferentes grupos.<br />
Para Halbwachs, o sujeito é único no ponto de seu enredamento da trama social,<br />
daí advém a impressão de que suas lembranças são puramente pessoais, mas elas se<br />
devem sempre a algum grupo; o que faz com que, quanto maior a complexidade social,<br />
maior a sensação de parecerem desvinculadas de qualquer coletivo e portanto supostas<br />
como individuais:<br />
136 HALBWACHS, H. (1990) p.126.<br />
137 Idem, p.46.<br />
... É uma mudança de lugar, de profissão, de família, que não rompe<br />
ainda inteiramente os liames que nos amarram a nossos antigos<br />
grupos. Ora, acontece que em caso semelhante as influências sociais<br />
se fazem mais complexas, porque mais numerosas, mais<br />
entrecruzadas. (...) Essas lembranças nos parecem puramente pessoais,<br />
e tais como nós sozinhos as reconhecemos e somos capazes de<br />
reencontrá-las, distinguem-se das outras pela maior complexidade das
condições necessárias para que sejam lembradas; mas isto é apenas<br />
uma diferença de grau. (HALBWACHS, M., 1990, p.48).<br />
A artista e pesquisadora Leila Danziger 138 mapeou bem a discussão atual em<br />
torno da memória coletiva, seus detratores e admiradores, apontando como principal<br />
crítica ao conceito, a alegação de Huyssen, em seu livro, Seduzidos pela Memória:<br />
arquitetura, monumentos, mídia, sobre uma inadequação da noção, apesar de assinalar<br />
uma preocupação crescente com a memória nos cenários políticos e culturais, nos<br />
últimos trinta anos 139 , em torno de uma cultura da memória do holocausto disseminada<br />
por todo o mundo.<br />
A inadequação, para Huyssen, dever-se-ia ao fato das memórias coletivas<br />
estarem expostas à constante fragmentação num mundo em permanente mudança, onde<br />
a aceleração do tempo e a fugacidade das relações com os grupos sociais fazem com<br />
que a própria idéia de pertencimento a um grupo seja colocada em xeque 140 . E, como<br />
argumento a favor, destaca a afirmação do pensador alemão Weinrich de que a memória<br />
coletiva “tornou-se o centro da atual pesquisa sobre a memória” 141 . A pertinência da<br />
memória coletiva na esfera dos estudos literários é destacada por Danziger; mas, quanto<br />
à assertiva de Weinrich, esta validade também pode estar referida ao debate sobre uma<br />
política das memórias coletivas, no cerne da qual se encontra a discussão sobre os<br />
genocídios do século XX, bem como as noções de catástrofe e testemunho.<br />
Ao formular sua teoria, Halbwachs não está tratando, ele mesmo afirma, da<br />
evocação da recordação 142 . Apoiado na sociologia de Durkheim, seus conceitos não<br />
138 DANZIGER, L. (2004).<br />
139 Cf. HUYSSEN, A. (2000) p.9. Cabe notar ainda, sobre este estudo que, apesar de enfatizar o que<br />
chama uma obssessão pela memória, por tudo lembrar, contida na idéia de uma cultura da memória, o<br />
autor destaca a importância das lutas políticas em defesa das memórias ligadas às ditaduras da América<br />
Latina, contrárias às políticas do esquecimento, e ao possível apagamento das memórias locais trazido<br />
pela globalização; e destaca a importância de trabalhos que comparem os traumas históricos à<br />
recuperação das memórias nacionais.<br />
140 Idem, p.19.<br />
141 WEINRICH, H. (2001) p.168.<br />
142 Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.37.
abarcam o desejo ou a fantasia na construção da memória, a não ser enquanto falhas a<br />
serem corrigidas. A mudança no tempo é admitida, mas desde que se mantenha uma<br />
relação com algum grupo, não restando muito espaço para a criação subjetiva, pois<br />
todas as memórias seriam memórias de algum grupo. Sob este aspecto, sua teoria torna-<br />
se, em certa medida, tributária da noção clássica de arquivo já mencionada (sua versão<br />
coletiva?), em suas palavras “o aparelho registrador” 143 da consciência, que vê na<br />
memória uma pura positividade, e tem como preocupação central “a memória feliz” 144 ,<br />
expressão de Ricoeur para se referir a uma tradição que remonta às teorias platônicas<br />
sobre o tema 145 , formuladas sobretudo para responder à indagação do como a memória<br />
funciona, ou seja, de como a lembrança pode ser bem-sucedida.<br />
Pergunta na qual o esquecimento não se coloca enquanto tema a ser<br />
problematizado; o que tampouco anula a complexidade ou a pertinência de sua teoria,<br />
como já foi dito. Pois a definição de memória coletiva apresenta várias aproximações<br />
com as concepções de Benjamin, principalmente quando se refere a um descentramento<br />
do sujeito, contido na síntese de que nossas lembranças “nos são lembradas pelos<br />
outros” 146 , e a noções como a de uma “história viva” 147 que se reconstrói no presente<br />
(embora se trate de uma reconstrução apoiada em outras reconstruções coletivas,<br />
presentes e passadas), bem como a uma multiplicidade das memórias coletivas 148 ,<br />
oriundas de tempos distintos, de traços de diferentes camadas do tempo que se assentam<br />
lado a lado numa lembrança 149 , fazendo da imagem mnemônica sempre uma “imagem<br />
143<br />
Idem, p.51.<br />
144<br />
RICOEUR, P. (2007) p.46.<br />
145<br />
RICOUER, P. (2007).<br />
146<br />
HALBWACHS, M. Op. Cit., p.26<br />
147<br />
Idem, p.67.<br />
148<br />
Idem, p.86.<br />
149<br />
Idem, p.127.
da imagem” 150 . Traços e imagens nos quais, sem dúvida, o autor se aproxima bastante<br />
das concepções de memória desenvolvidas na ficção de Guimarães Rosa.<br />
A fim de conceber melhor seu alcance, a teoria de Halbwachs deve ser lida tendo<br />
em vista o contexto em que nasce, no qual, o próprio autor, assim como Benjamin,<br />
experimentava o múltiplo pertencimento a várias culturas, num mundo ainda totalmente<br />
demarcado pela idéia de Estado-Nação, e a ameaça de desaparecimento das tradições,<br />
não apenas pelo progresso, mas pela tentativa concreta de extermínio da cultura judaica;<br />
que tem como desfecho o fato de que Halbwachs, de forma semelhante à morte de<br />
Benjamin, vem a sucumbir, morto num dos campos nazistas em 1945 151 . E, apesar das<br />
críticas, e da própria afirmação de que “não há na memória vazio absoluto” 152 , seu<br />
texto contém momentos interessantes de aproximação entre o sujeito e o esquecimento,<br />
como um ponto de pura negatividade:<br />
...Por mais estranho e paradoxal que isso possa parecer, as lembranças<br />
que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não concernem a<br />
não ser a nós mesmos, que constituem nosso bem mais exclusivo,<br />
como se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de<br />
escapar também a nós próprios. (HALBWACHS, M., 1990, p. 49).<br />
Há também uma associação entre o subjetivo, aquilo que não pertence a nenhum<br />
grupo, mas se situa entre um e outro, e o resíduo das recordações 153 . As lembranças<br />
mais “individuais” se encontram, portanto, menos disponíveis, pois estariam situadas<br />
nestas passagens ou lacunas entre um grupo e outro, entre as diferentes relações<br />
estabelecidas entre um e outro:<br />
...ainda que possamos passar de um a outro, as relações são tão<br />
reduzidas, tão pouco visíveis, que não temos nem a ocasião nem a<br />
idéia de seguir os apagados caminhos pelos quais se comunicam. Ora,<br />
150 Embora separe os domínios da imagem e da lembrança em territórios distintos, creio que o autor, neste<br />
trecho, não está enfatizando esta distinção, tratando das imagens mnêmicas que compõem a lembrança.<br />
Cf. HALBWACHS, M. (1990) p.73.<br />
151 Cf. DANZIGER, L. (2004) p.14.<br />
152 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.77.<br />
153 HALBWACHS, M. Op. Cit., p.45.
é sobre tais caminhos, sobre tais sendas ocultas (grifo nosso), que<br />
reencontramos as lembranças que nos dizem respeito...<br />
(HALBWACHS, M., 1990, p.50).<br />
Todavia, nota-se a ausência de uma leitura que inclua o desejo ou a<br />
subjetividade como determinante na escolhas dos grupos com os quais o sujeito se<br />
identifica, num texto que a observação acurada de Ricouer aponta ser narrado em boa<br />
parte na primeira pessoa 154 ; o que, por sua vez, nos leva a questionar se o subjetivo não<br />
seria de todo negado ali, mas apenas não seria o foco de seu questionamento. Cabe,<br />
ainda, assinalar que o texto é elaborado nos anos 20, sendo mais ou menos<br />
contemporâneo da filosofia de Benjamin, mas publicado somente nos anos 50, levando<br />
a pensar também, que, guardadas as distâncias efetivas do contexto entre-guerras<br />
europeu para os anos dourados no Brasil, tanto Halbwachs como Benjamin assinalam<br />
com suas obras teóricas, algo que Guimarães Rosa parece realizar na ficção. Pois<br />
Riobaldo representa, sem dúvida, um narrador-testemunha 155 de um mundo em<br />
extinção, alguém que tenta narrar em meio a um cenário de choque entre um conjunto<br />
de saberes ligados à cultura tradicional e ao controverso processo de modernização<br />
brasileiro.<br />
Assim, embora enquanto conceito as memórias coletivas não expliquem a<br />
escolha do sujeito em relação à sua inserção nos grupos, não respondam à pergunta<br />
(deixada em aberto) que Riobaldo se coloca a si mesmo e aos outros companheiros<br />
sobre a motivação para terem entrado para o bando de jagunços – “eu não tinha nascido<br />
para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se<br />
sarrafa?” 156 – elas se encontram no texto. Riobaldo evoca memórias coletivas<br />
atribuíveis aos diferentes coletivos com os quais o personagem se relaciona: as<br />
memórias dos jagunços a respeito dos grandes chefes de bandos do sertão, como a<br />
154 RICOEUR, P. (2007) p.406.<br />
155 Cf. Cap. 2 desta tese.<br />
156 ROSA, J.G. (2001) p.83.
história da vida de Medeiro Vaz, ex-dono de terras, que largou tudo o que possuía para<br />
entrar na guerra, desde que a violência e os desmandos tornaram “impossível qualquer<br />
sossego” 157 na região. Ou a fama de coragem de Joãozinho Bem-Bem: “Esse que já<br />
tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante<br />
fama” 158 .<br />
Além dos já mencionados casos sobre o Mal, as lembranças dos nomes de<br />
lugares, de plantas, de animais, por exemplo, transmitidos pela linguagem oral, e todo o<br />
conjunto de hábitos antigos consistiriam em memórias coletivas dos sertanejos em<br />
geral. O discurso político sobre o coronelismo, o progresso, o governo e os políticos,<br />
com o qual Riobaldo tem contato através do projeto de Zé Bebelo de guerra contra a<br />
jagunçagem: “nesse nosso norte não vai se mais ter um qualquer chefe encomendar<br />
para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo<br />
destruírem, do civilizado e legal!” 159 E o discurso ligado à reflexão dos homens letrados<br />
das classes médias das cidades, que leva o Professor a tomar gosto pelas altas<br />
idéias” 160 , todos estes seriam apenas alguns exemplos de grupos sociais em jogo no<br />
texto, que alimentariam a memória e o discurso de Riobaldo, situado no cruzamento de<br />
todos as coletividades nas quais teve alguma inserção.<br />
Desta forma, se estas outras estórias, numa primeira leitura, poderiam ser<br />
associadas somente às memórias coletivas que se contrapõem à individual, no decorrer<br />
do texto vão se incorporando a um sentido mais profundo: pois, ao confrontarem esta<br />
memória individual, apontam para um vazio – a mesma lacuna, por pouco, não de todo<br />
banida da obra de Halbwachs e de todas as leituras mais positivas da memória? – que no<br />
157 Idem, p.60.<br />
158 Idem, p.146.<br />
159 Idem, ibidem.<br />
160 Idem, p.30.
GSV retorna sempre, como o demo, do qual Riobaldo não glosa 161 , ou o fundo<br />
originário infernal, misturado em tudo e com seus vários nomes: “ocos” 162 , “fundos<br />
fundos” 163 , “ermos” 164 , etc.<br />
Na medida em que a narração e o trabalho de memória avançam, o que Riobaldo<br />
faz questão de reafirmar é a sua não-adequação a todos aqueles grupos sociais: “Sempre<br />
fui assim: descabido, desamarrado” 165 . O seu interesse no passado tampouco se coloca<br />
numa individualidade estrita, que ele recusa: “De tudo não falo. Não tenciono relatar<br />
ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que?” 166 , e menos ainda se<br />
refere à ordem coletiva das determinações sociais objetivas, factuais. O que o texto<br />
revela sobre este desejo de recontar o passado é que, na proporção em que a lembrança<br />
escapa, esse obscuro objeto da recordação vai sendo deslocado – ora é a matéria<br />
vertente, ora são as coisas importantes que se situam em outro lugar – e redefinido num<br />
plano de ausência e negatividade, que não suprime o esquecimento, mas ao contrário,<br />
faz dele um mote, num movimento que se alterna entre a multiplicidade e a recriação de<br />
sentidos da rememoração, ao vazio do esquecimento e a interrogação do enigma.<br />
Através do narrador Riobaldo, que parece proceder com a memória da mesma<br />
forma que busca conhecer o mundo, pelo seu avesso, pelas suas entranhas, o escritor<br />
contradiz as suposições de base da maior parte das teorias tradicionais sobre a memória,<br />
que afirmam que esta só existe a partir da narração, assim como a história necessita de<br />
uma escrita da história, e a imagem, da palavra para se fazer linguagem. Por todo o<br />
romance, a tentativa de recontar o passado se acrescenta ao esforço de recompô-lo<br />
segundo a “natureza” desordenada, fragmentada das lembranças, segundo a ordem<br />
161 Entre outros sinônimos para o termo glosar, Houaiss lista: criticar, suprimir, eliminar, rejeitar, mas<br />
também “desenvolver (um mote) em versos”. Cf. HOUAISS, A. (2009).<br />
162 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 400.<br />
163 Idem, p. 398.<br />
164 Idem, p.50.<br />
165 Idem, p.163.<br />
166 Idem, p.232.
muito peculiar do rememorar, o que coloca em jogo não uma relação de simples<br />
subordinação, mas uma tensão entre a narrativa e a memória. É o que se nota justamente<br />
numa passagem que fala também da importância dos velhos, e por extensão, da<br />
memória para um país:<br />
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por<br />
disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor<br />
quase tudo. Não crio receio. (...) E meus feitos já revogaram,<br />
prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta<br />
empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta – só o deogratias;<br />
e o troco. Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem<br />
andava falando: – “A pátria não pode nada contra a velhice...”<br />
Discordo. A pátria é dos velhos, mais. (...) Não. Eu estou contando<br />
assim porque é o meu jeito de contar. (...) O que vale, são outras<br />
coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos,<br />
cada um com seu signo e sentimento... (ROSA, J.G., 2001, p.114-<br />
115).<br />
Mais uma vez, há aqui a associação entre uma memória do sujeito, do jeito<br />
próprio de cada um contar, e a herança dos velhos, que define então a memória<br />
subjetiva como indissociável das memórias coletivas de outras gerações. No que tange à<br />
relação entre narrativa e memória, a tentativa de unir a palavra (narrativa) à imagem<br />
(lembrança) aproxima o autor da outra lógica da poesia, a mesma que Foucault afirma<br />
ter sido inaugurada com a entrada na Modernidade e todas as transformações que a<br />
acompanharam, quando, diante da cisão entre a ordem das palavras e a das coisas,<br />
diante do fracasso da representação e da ausência de sentido do mundo, o homem é<br />
colocado na posição de intérprete, a decifrar seus signos 167 .<br />
Para demarcar a ruptura que teve lugar no pensamento ocidental a partir da<br />
Modernidade, Foucault compara os dois personagens desviantes emergentes desta<br />
separação, que serão o louco e o poeta: ambos tratarão a palavra na sua opacidade de<br />
coisa. Porém, enquanto o louco, “para quem todos os signos se assemelham e todas as<br />
167 Cf. FOUCAULT, M. (1999).
semelhanças valem como signos” 168 se verá enredado e perdido numa trama de<br />
linguagem “cuja semelhança não para de proliferar” 169 – o poeta,“sob a linguagem<br />
dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de “outra<br />
linguagem”(...) da semelhança.” 170 Situado na extremidade oposta de uma mesma<br />
posição marginal, o poeta será chamado a recriar o mundo segundo uma nova ordem<br />
que, no entanto, como se vê no que concerne às concepções de memória em jogo no<br />
Grande Sertão, constitui uma escritura poética que – ao mesmo tempo – assinala e<br />
contraria esta fissura.<br />
168 FOUCAULT, M. Op. Cit., p.65.<br />
169 Idem, p.66.<br />
170 Idem, ibidem.
II. DESENHO, DESGRAÇA: <strong>SERTÃO</strong> EM RUÍNAS<br />
A memória é uma vasta ferida.<br />
CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO<br />
No primeiro capítulo, tentei demonstrar que o estranho método de procura pelo<br />
passado efetuado pelo narrador Riobaldo parece consistir em definir o passado e a<br />
rememoração pelo seu negativo. Ou seja, através de determinado conteúdo que não<br />
interessa ser recordado, se recusa uma determinada concepção de memória. De acordo<br />
com a busca de Riobaldo, as lembranças ansiadas pelo narrador negam, sucessivamente,<br />
alguns determinantes quando estes são tomados como exclusivos no processo do<br />
rememorar: não são consideradas como realmente importantes as lembranças<br />
pertencentes ao passado individual linear e ordenado (o individual), a das horas de<br />
todos (o coletivo), e a da vida de sertanejo (o social).<br />
Outras vezes, é o conteúdo da recordação que, por um motivo ou outro 171 , é<br />
descrito como não merecedor de lembrança, como se dá com a violência excessiva<br />
presente nas lembranças de guerra do ex-jagunço: “Que isso merece que se conte?(...)<br />
Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não<br />
seja.” 172 Ou, ainda, por serem coisas sem nome, demasiado fragmentadas: “Daí, os<br />
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar<br />
narração” 173 . Ou, por fim, as recordações são recusadas simplesmente porque Riobaldo<br />
nega o desejo de contar: “Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual” 174 .<br />
Contudo, da mesma forma que as memórias coletivas, recusadas pelo narrador<br />
quando associadas somente às horas de todos – mas legíveis no texto desde que<br />
171 As questões a respeito da violência e do que pode ser nomeado ou não no processo de rememoração<br />
serão discutidas respectivamente mais adiante e no último capítulo desta tese. Por ora, é importante<br />
apenas frisar que as lembranças de guerra não são somente evitadas por ligarem-se ao recalcado e ao<br />
traumático para o personagem, mas também menosprezadas em favor de uma certa ética ou política da<br />
narração e da memória.<br />
172 ROSA, J.G. (2001) p. 245.<br />
173 Idem, p.221.<br />
174 Idem, p.125.
caracterizadas como herdadas de outras gerações, como memórias vivas, reconstruídas<br />
pelo sujeito – várias referências diretas e indiretas a elementos da geografia, da cultura e<br />
da história do Brasil podem ser identificadas na obra do escritor, cujo principal efeito<br />
não será de um realismo ou de um regionalismo strictu senso, mas o de promover um<br />
(re)pensar das relações entre ficção e memória, memória e história, e ficção e realidade.<br />
É interessante ver como isto se dá no texto, em que tipo de referência se pode falar e<br />
que relações elas colocam em questão, a começar pela paisagem, este sertão<br />
exaustivamente divulgado pelo autor e pela crítica.<br />
Sertão, paisagem subjetiva<br />
Abro a paisagem.<br />
...o sertão aceita todos os nomes...<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
A palavra sertão é, de fato, repetida incontáveis vezes por todo o texto, e assume<br />
uma infinidade de sentidos e leituras, daí as múltiplas propostas de interpretações a<br />
respeito do significado deste sertão de Rosa. Algumas tentativas, inclusive, são mais<br />
contundentes no intuito de definir (na acepção literal do termo, definitivamente) o que<br />
seria o sertão. Sobre a árdua tarefa da crítica, o pensador italiano Giorgio Agamben tem<br />
algo a acrescentar quando a situa entre a razão e a poesia, entre o “gozo do que não<br />
pode ser possuído e a possessão do que não pode gozar” 175 , afirmando que sua<br />
tentativa deve ser procurar não reencontrar seu objeto, mas “assegurar as condições de<br />
sua inacessibilidade” 176 , preservar a negatividade, a inapreensibilidade do objeto como<br />
seu bem mais precioso. Torna-se fundamental, portanto, resguardar que o sertão assume<br />
175 “(...la critique oppose) la jouissance de ce qui ne peut être possédé et la possession de ce dont on ne<br />
peut jouir.” Tradução minha, todas as traduções não mencionadas são de minha autoria. Cf. AGAMBEN,<br />
G. (1994) p.11.<br />
176 “...assurer les conditions de son inaccessibilité.” Idem, p.9.
inúmeros sentidos, distintos e inacabados, em diferentes passagens do texto. A dúvida<br />
se abre desde a primeira menção à palavra, situada nas páginas iniciais do romance:<br />
...Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,<br />
instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor<br />
tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é<br />
por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras<br />
altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo,<br />
então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se<br />
divulga: é onde os pastos carecem de fechos (...). O gerais corre em<br />
volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer<br />
aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão<br />
está em toda a parte. (ROSA, J.G., 2001, p.23-24).<br />
Se, no mapa brasileiro, a mais recente definição da Região Semi-Árida do<br />
Nordeste corresponde a uma área que se estende do norte de Minas Gerais ao Piauí 177 ;<br />
no dicionário, que revela seu uso mais corrente, os sinônimos para o termo sertão,<br />
“região agreste”, “terreno coberto de mato, afastado do litoral”, “toda região pouco<br />
povoada do interior” e “zona mais seca que a caatinga” 178 , não fornecem uma<br />
localização espacial precisa. E – embora o texto do GSV faça várias alusões a lugares<br />
geográficos existentes no mapa brasileiro na região em torno do norte de Minas Gerais,<br />
como o rio São Francisco, a cidades como Januária, e aos estados de Minas Gerais, à<br />
fronteira com Goiás e Bahia – o sertão de Rosa está muito além de um espaço objetivo,<br />
pois ele se insere no diálogo onde Riobaldo tenta, ao mesmo tempo, compreender e<br />
transmitir o que é o sertão para o senhor que escuta. Diz respeito, portanto, a uma<br />
experiência do narrador, a uma memória subjetiva. Memória sujeita a falhas e afetos<br />
daquele que narra, à qual Willi Bolle chamou de mapa mental, ou geografia ficcional<br />
para distinguir de uma geografia física ou objetiva:<br />
O narrador retira pedaços do sertão real e os recompõe livremente – de<br />
maneira análoga aos mapas mentais, que nascem da memória afetiva,<br />
177 A última definição data de 2005. Cf. IBGE, página eletrônica da internet (s/d).<br />
178 HOUAISS, A. (2009).
e lembranças encobridoras, de pedaços de sonhos e fantasias, medos e<br />
desejos. (BOLLE, W., 2004, p.71).<br />
Este mapa, constituído não somente de locais geográficos, mas de “‘passagens’<br />
da vida” 179 , seria o registro não apenas de um caminho linear, mas do errar e perder-se<br />
pelo sertão, de acordo ainda com a indagação de Willi Bolle (em clara alusão às<br />
palavras de abertura de Walter Benjamin em “Infância em Berlim por volta de 1900” 180 ,<br />
um texto onde Benjamin fala basicamente sobre a memória): “qual é o mapa geográfico<br />
capaz de representar não a origem, mas o perder-se no sertão?” 181 Perder-se inclui<br />
suportar o vazio e o esquecimento. Diversas vezes, o bando se perde, e o leitor é levado<br />
pela sensação de que os lugares, assim como os nomes, se movem no texto.<br />
Às descrições de lugares objetivos são interpostos, assim, outros locais sem<br />
registro no mapa oficial, como o Liso do Sussuarão, que é comparado a um inferno, “o<br />
miôlo mal do sertão” 182 , uma das imagens do Mal e de um centro insondável no<br />
romance, situado além da própria representação. Neste sentido, a indefinição ou<br />
imprecisão da paisagem segue a mesma lógica da narração e do processo de<br />
rememoração: uma lógica fragmentada, desordenada, na qual distintas camadas do<br />
tempo e do espaço se sobrepõem.<br />
Cabe notar como a escrita vai além da subjetividade do narrador e faz um apelo<br />
à participação do leitor, ao utilizar-se de expressões indeterminadas como: “pão ou<br />
pães, é questão de opiniães...” 183 ; abre lacunas e negações de sentido no texto, como<br />
propõe Wolfgang Iser 184 , e insere vazios de significação, aos quais o leitor é chamado –<br />
ou não – a preencher com a sua subjetividade, a atribuir-lhes um sentido particular, a<br />
179 BOLLE, W. ( 1994-95 ) p.88.<br />
180 “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. Entretanto, perder-se numa cidade, como<br />
alguém se perde numa floresta, requer instrução.” Cf. BENJAMIN, W. (2009) p.73.<br />
181 BOLLE, W. (1994-95) p.88.<br />
182 ROSA, J.G. (2001) p. 65.<br />
183 ROSA, J.G. (2001) p. 24.<br />
184 Iser propõe diferentes níveis de negatividade no texto, desde o nível mais formal das lacunas, a uma<br />
negatividade que se relaciona com o inominável, e se coloca como um núcleo irredutível à significação.<br />
Cf. ISER, W. (1999), p.28-33; SCHUAB, G. (1999).
partir de um horizonte maior já dado pelo autor... Desta forma, o texto de Rosa convoca<br />
e provoca o leitor, negando qualquer consenso, sequer a respeito da localização do<br />
sertão visto que, desde a primeira referência, menciona a polêmica em torno da<br />
geografia do local: “Uns querem que não seja” 185 .<br />
Instaurada a dúvida, inúmeras variações de sentido surgem ao longo da história,<br />
sendo o mais freqüente o uso do sertão no lugar de um saber que pode ser extraído a<br />
partir da memória coletiva, como por exemplo: “sertão é onde manda quem é forte,<br />
com as astúcias” 186 . Sentido que pode, ainda, atrelar-se mais ao modo de ser ou à<br />
“forma de pensamento” 187 , como quer Willi Bolle, do que à localização física, abolida<br />
com a interiorização desse espaço: “Sertão: é dentro da gente” 188 . Ou, diante da<br />
dificuldade de nomeação deste lugar, ele aparece como pura indefinição, um isto que<br />
aponta para um mais além (ou aquém) do espaço, do tempo e da compreensão: “O<br />
senhor tolere, isto é o sertão” 189 , como demonstrou Finazzi-Agrò no livro dedicado ao<br />
que o autor considera uma demanda ou apelo dos confins na obra de Rosa 190 , no qual<br />
assinala justamente o caráter de infinitude deste sertão: “O sertão é do tamanho do<br />
mundo” 191 . O espaço assume uma extensão infinita que atinge, no limite, a absoluta<br />
ausência de espaço: “O sertão é sem lugar” 192 . E culmina numa ausência de palavras<br />
para descrevê-lo, que se torna uma pura indicação: “o sertão: o senhor sabe” 193 .<br />
O termo paisagem tem origem na Europa do século XVI, inicialmente vinculado<br />
à pintura e, mais tarde, a um estilo de jardim orientado pela busca de um retorno à<br />
185 ROSA, J.G. (2001) p. 23.<br />
186 Idem, p.35.<br />
187 B OLLE, W. (2004) p. 82.<br />
188 ROSA, J.G. (2001) p. 325.<br />
189 ROSA, J.G. (2001) p.23.<br />
190 FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).<br />
191 ROSA, J.G. (2001) p. 89.<br />
192 Idem, p.370.<br />
193 Idem, p.406.
natureza 194 , referindo-se tanto a uma certa imagem do mundo, desde o início concebida<br />
a partir de um determinado modo de olhar; como à idéia de uma organização, de um<br />
conjunto. Na literatura, a paisagem vai progressivamente desvencilhar-se de um lugar<br />
físico, e ser expressa como um espaço indissociável entre o subjetivo e objetivo 195 .<br />
Atualmente, o termo incorporou-se a diversos outros meios, admitindo-se a<br />
possibilidade paisagens musicais, literárias, geográficas, históricas, entre outras, o que<br />
tornou o conceito transdisciplinar. Nas palavras do pesquisador francês Michel Collot, a<br />
paisagem se constitui numa “encruzilhada onde se encontram elementos vindos da<br />
natureza e a cultura, a geografia e a história, o interior e o exterior, o indivíduo e a<br />
coletividade, do real e do simbólico.” 196 Como na língua portuguesa, a palavra deriva<br />
de país, e o sufixo age acrescenta a idéia de uma apreensão ou forma que permite tomá-<br />
lo como um conjunto.<br />
Desde a origem, o conceito estaria intrinsecamente ligado à subjetividade, pois a<br />
paisagem não diz respeito ao retrato objetivo, mas, conforme Collot, a “um ponto de<br />
vista” 197 , a um certo olhar que inclui não apenas a visão como sentido (lembremos do<br />
aroma e sabor da madeleine, ligada a uma imagem do passado que, uma vez<br />
reencontrados, despertam a memória involuntária e recriam a partir dela toda a<br />
paisagem de recordações em Proust 198 ). Como propõe Merleau-Ponty, a construção de<br />
194 O jardim inglês estará também na origem do termo romântico e, segundo Antonio Candido, Rousseau,<br />
no séc.XVIII, pode ser considerado um precursor do Romantismo ao vincular a idéia de um “sentimento<br />
da natureza, a meditação e o movimento do corpo nos Devaneios do Passeante Solitário”. Cf.<br />
CANDIDO, A.(1993) p.261. A noção de uma paisagem subjetiva em movimento, como tento mostrar,<br />
estará no cerne do romance de Rosa.<br />
195 COLLOT, M. (1997) p.7.<br />
196 “Le paysage est un carrefour où se rencontrent des éléments venus de la nature et la culture, de la<br />
géographie et de l’historie, de l’intérieur et l’extérieur, de l’individu et de la collectivité, du réel et du<br />
symbolique.” Cf. COLLOT, M. (1997) p.5, tradução minha.<br />
197 Cf. COLLOT, M. (1997) p.13.<br />
198 “Procurar? Não apenas: criar.(...) Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim deve ser<br />
a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim.” Cf. PROUST, M.<br />
(2002) p.49.
uma paisagem envolve uma pluralidade de sentidos que se dá através do corpo como<br />
um todo e que, a partir do sensível, chega a atingir o invisível. 199<br />
Recentemente, a noção de paisagem vem sendo formulada por Collot através da<br />
fenomenologia de autores como Husserl e Merleau-Ponty, que buscam explicar como se<br />
dá a percepção deste conjunto, acrescentando ao conceito a idéia de uma junção entre o<br />
mundo sensível e sua apreensão, na bela expressão do teórico alemão Erwin Strauss,<br />
“um sentido dos sentidos” 200 . Isto significa que a paisagem apreendida pelos sentidos<br />
seria, de antemão, em certa medida organizada pelo simbólico, excluindo-se a<br />
possibilidade de uma pura percepção associada aos sentidos e totalmente desvinculada<br />
de seu registro psíquico.<br />
Em outro artigo intitulado “Du sens de L’espace à l’espace du sens”, Collot<br />
propõe haver uma intuição da continuidade entre o espaço verbal e o espaço<br />
extralingüístico 201 , intuição própria aos poetas e ao pensamento poético, inserindo-se no<br />
centro da problemática sobre a ruptura e proximidade entre a linguagem e o mundo<br />
discutida em diferentes formulações sobre a poesia na Modernidade, para ficar apenas<br />
com autores anteriormente mencionados 202 , desde Michel Foucault, em As Palavras e<br />
as Coisas, a Paul Valéry e Octavio Paz, que expõe a tensão não somente em seu<br />
trabalho crítico, mas em sua poética, como se lê em “Carta a Léon Felipe”, de 1967:<br />
...A escrita poética<br />
é apagar o escrito<br />
Escrever<br />
sobre o escrito<br />
o não escrito<br />
199 MERLEAU - PONTY, M. Apud. COLLOT, M. (1997) p.199.<br />
200 “un sens des sens” Apud COLLOT, M. (1997) p.200.<br />
201 “Cette intuition d’une continuité entre l’espace verbal et espace extra-linguistique me semble une<br />
contance de la refléxion poétique contemporaine.” Cf. COLLOT, M. (1987) p.99.<br />
202 Cf. FOUCAULT, M. (1999), VALÉRY, P. (1999) e PAZ, O. (1972). Os autores diferem quanto ao<br />
maior ou menor teor de aproximação e de ruptura entre a linguagem e o mundo que a poesia inscreve na<br />
Modernidade, sendo que, enquanto o primeiro, diferentemente de Collot, parece privilegiar o aspecto da<br />
cisão em suas análises; os dois últimos, poetas-críticos, tendem a considerar a questão como um conflito<br />
exposto pela própria poesia, como no poema citado acima. Ver também cap. 4 deste trabalho.
Representar a comédia sem desenlace<br />
Je ne puis parler d’une absence de sens<br />
sinon lui donnant un sens qu’elle n’a pas<br />
(...) O poeta<br />
Tu o dizes em tua carta<br />
é o que pergunta<br />
aquele que desenha a pergunta<br />
sobre o fosso<br />
e ao desenhá-la<br />
a apaga<br />
A poesia<br />
É a ruptura instantânea<br />
Instantaneamente cicatrizada<br />
Aberta de novo<br />
(...)Alguns querem mudar o mundo<br />
outros lê-lo<br />
Nós queremos falar com ele...<br />
(PAZ, O., 1997, p.387-388) 203 .<br />
A novidade da teoria sobre a paisagem estaria na forma de recolocar e explorar a<br />
questão a partir do eixo entre a linguagem e o espaço, de supor este espaço<br />
extralingüístico como um além do signo, uma abertura em contrapartida ao fechamento<br />
do universo dos signos defendido por determinadas abordagens de um estruturalismo<br />
que não apontam para nenhuma exterioridade às palavras 204 . A imagem poética ou<br />
literária constitui, de acordo com esta concepção da paisagem, o meio privilegiado de<br />
demonstrar este solo comum entre o mundo percebido e o simbólico: no poema de Paz,<br />
a pergunta é desenhada num verso e apagada em seguida; a ruptura se abre e cicatriza,<br />
mas não fecha, e o poema é estruturado numa disposição visual onde cada verso,<br />
203 “...La escritura poética/ es borrar lo escrito/ Escribir/ sobre lo escrito/ lo no escrito/ Representar la<br />
comedia sin desenlace/ (...)/ La escritura poética es/ aprender a leer/ el hueco de la escritura/ em la<br />
escritura/ (...)/ El poeta/ lo dices em tu carta/ es el pregunton/ el que dibuja la pregunta/ sobre el hoyo/ y<br />
al dibujarla/ la borra/ La poesia/ es la ruptura instantânea/ instantáneamente cicatrizada/ abierta de<br />
novo/ (...)/ Algunos quieren cambiar el mundo/ otros leerlo/ nosotros queremos hablar com él... Cf. PAZ,<br />
O. (1997) p.387-388. Tradução de Cláudio Willer. Cf. WILLER, C. (2001), página eletrônica.<br />
204 Cf. COLLOT, M. (1989) p.5-6. O autor menciona na introdução do livro assumir um distanciamento<br />
dos estudos literários da década de 70, que segundo ele censuravam qualquer alusão a elementos extratextuais,<br />
por considerá-los suspeitos de reconduzir a uma ilusão referencial ou lírica.
iniciado à margem do anterior, cria um ritmo que acompanha este movimento, numa<br />
alternância entre o ir e vir, a proximidade e a distância.<br />
Seguindo esta proposição, a imagem poética consistiria na tentativa de expressão<br />
de uma “paisagem de uma experiência” 205 , que coloca em jogo a idéia de uma<br />
“estrutura do horizonte” 206 , horizonte que vem a ser o da escrita poética, da busca de<br />
uma fala com o mundo realizada pela poesia e pelos poetas. Neste sentido, pode-se<br />
afirmar que a estrutura do horizonte da poesia rompe com as disjunções tradicionais<br />
entre “coisa ouvida” e “coisa pensante” ou entre espaço e linguagem 207 .<br />
O horizonte assinala a dupla face da experiência perceptiva: o sentido, como foi<br />
dito, que a define igualmente como uma experiência simbólica, já contida (mas não<br />
determinada) numa simples apreensão de qualquer cena, diz Collot, na qual desde<br />
sempre haveria uma série de relações entre os objetos que são igualmente percebidas e<br />
fazem parte deste mundo simbólico, da linguagem 208 . E, de outro lado, uma ausência,<br />
concebida por Lacan como própria ao registro do real, do que se apresenta como um<br />
inassimilável na experiência do sujeito 209 , que aqui demarca uma linha de um invisível<br />
absoluto ao qual a poética contemporânea não cessa evocar 210 , na sua insistência em<br />
reenviar continuamente a novos sentidos, novos horizontes de sentidos:<br />
ela não é a seus olhos (dos poetas) um limite provisório que se permite<br />
cruzar para descobrir o que segue à paisagem, mas sim a fronteira de<br />
um outro mundo destinado a permanecer desconhecido. (COLLOT,<br />
M., 1989, p.104). 211<br />
Graças a este caráter de invisibilidade radical, acrescenta o teórico francês, esta<br />
linha pode servir de metáfora a diversos domínios da experiência do invisível, dentre os<br />
205 COLLOT, M. (1997) p. 201.<br />
206 Idem, (1987) p.99.<br />
207 Idem, ibidem.<br />
208 Idem, p.100-101.<br />
209 Cf. LACAN, J. (2008b) p.60.<br />
210 COLLOT, M. (1989) p.103.<br />
211 “elle n’est pas a leurs yeux une limite provisoire que l’on peut franchir pour découvrir la suite du<br />
paysage, mais bien la frontière d’un outre monde destiné à demeurer inconnu.” Idem, p.104.
quais se destaca a da profundidade do passado 212 , que tanto para a fenomenologia como<br />
para a psicanálise (da mesma forma, também, no índice secreto do passado<br />
benjaminiano) contém um horizonte, uma espessura:<br />
...Husserl mostrou como cada momento que vem modificar aquele que<br />
o precedeu: o fenômeno da retenção não significa a conservação pura<br />
e simples da imagem do passado mas, ao contrário, a sua contínua<br />
transformação. (COLLOT, M., 1989, p.56). 213<br />
A idéia de um passado vivo, que possui um porvir, de que as lembranças se<br />
remexem, no dizer de Riobaldo, e que nos reenvia continuamente a novos horizontes –<br />
tal como a busca riobaldiana pelo passado e a redefinição de memória que a acompanha<br />
– leva à constatação de que há no passado uma dimensão escondida, irredutível à<br />
rememoração, a que Collot nomeia como “a versão negativa da estrutura do horizonte<br />
do passado” 214 .<br />
Eis, segundo Collot, um dos pontos de interlocução entre a compreensão<br />
fenomenológica do horizonte da paisagem e a teoria psicanalítica, que permite que o<br />
Inconsciente seja comparado a um horizonte: a definição mesma de Freud, que demarca<br />
simultaneamente a “parte obscura, impenetrável de nossa personalidade” 215 ,<br />
inacessível à consciência e a origem de onde provêm os sentidos que podem se tornar<br />
conscientes. A noção de imagem se situa no centro deste paradoxo, reaproximando<br />
horizonte e Inconsciente, pois o autor nos lembra duas idéias freudianas que<br />
estabelecem a continuidade entre mundo sensível e linguagem, entre sentir e pensar, ou<br />
entre imagem e palavra, exposta acima.<br />
212 “C’est porquoi l’horizont peut servirde métaphore à tous ces seuils d’invisibilité absolue auxquels se<br />
heurte la conscience dans les divers domains de l’experience: tache aveugle du corps, mystère insondable<br />
de L’Être, profondeur du passé, indetermination de l’avenir, transcendance d’autrui”. Cf. COLLOT, M.<br />
(1989) p.104.<br />
213 “Husserl a montré comment chaque moment qui vient modifie ceux qui l’ont précédé: le phénomène<br />
de la rétention ne signifie pas la conservation pure et simple de l’image du passe, mais au contraire sa<br />
continuelle transformation.” Cf. COLLOT, M. (1989) p.56.<br />
214 Idem, p.59.<br />
215 Citado por COLLOT, M., (1989) p.113.
A primeira seria a concepção de inconsciente como formado fundamentalmente<br />
por representações-coisa, diversamente dos sistemas consciente e subconsciente, onde<br />
se encontrariam as representações-palavra 216 . A noção de imagem que a representação-<br />
coisa contém se abriria por si mesma a esta multiplicidade de significações que<br />
transformam o inconsciente neste horizonte de sentido indefinido. Na mesma linha de<br />
pensamento, a noção de traços mnêmicos, para Freud ligada a resíduos de experiências<br />
do mundo sensível, que formarão parte do Inconsciente, igualmente articula a apreensão<br />
do mundo pelos sentidos à memória, redefinindo, vale dizer, a experiência dos sentidos<br />
e a memória como diversos de um registro objetivo do mundo e da representação<br />
tradicional, distintos da idéia clássica de arquivo 217 , e fundamentando a noção de<br />
paisagem como uma experiência relacionada à memória, situada sempre entre estes dois<br />
registros, a percepção e a memória (ou o sentir e o pensar) tradicionalmente colocados<br />
como excludentes.<br />
Nesta perspectiva, a paisagem do sertão vai sendo construída como este lugar<br />
impreciso, em sucessivas definições que não definem, onde um horizonte de sentido<br />
leva a outro; formada subjetivamente por fragmentos, desejos, lembranças, mas também<br />
por uma ausência, pelos vazios e lacunas que permanecem abertos: “Lugar sertão se<br />
divulga: é onde os pastos carecem de fechos” 218 . Sob a mesma ótica, este Grande<br />
Sertão se associa, ainda, à paisagem de “Os Cimos” 219 que marca o desmedido momento<br />
que parece transbordar de um processo de subjetivação, onde o Menino tem de se<br />
confrontar com uma seqüência de ausências e presenças, iniciadas em “As Margens da<br />
216 (Respectivamente Dingvorstellung e Wortvorstellung). Utilizo a tradução de Luiz Alfredo Garcia-<br />
Roza, que suprime a preposição “de” para evitar confusões entre os representantes psíquicos e a noção<br />
tradicional de representação. Cf. GARCIA-ROZA, L. (1991).<br />
217 Cf. Capítulo 3 desta tese.<br />
218 ROSA, J.G. (2001) p.24.<br />
219 ROSA, J.G. (1988).
Alegria” 220 : aparecimento, morte – reaparecimento de outro peru, feroz – surgimento<br />
intermitente da alegria, com a luz do vaga-lume.<br />
Hiância que continua neste segundo conto, durante o trabalho do pássaro:<br />
ausência da mãe doente, idas e vindas de outro pássaro, o tucano, volta para a mãe,<br />
sarada, perda do macaquinho jogado fora, perdido “no sem-fundo escuro do mundo” 221<br />
e encontro do chapéu do bonequinho que compõe, em seqüência, um verdadeiro poema<br />
sobre o fort-da freudiano 222 , nesse jogo de ausência e presença que reencena o trauma e<br />
possibilita uma elaboração subjetiva: “feito o desenglobar-se de uma nebulosa” 223 . Ir e<br />
vir como o movimento do macaquinho – o equivalente ao carretel do menino observado<br />
por Freud – que é suposto passear lá, “na outra parte, aonde as pessoas e coisas<br />
sempre iam e voltavam” 224 , e que traz para o Menino a miragem da completude<br />
original:<br />
Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o<br />
Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do<br />
terreirinho das altas árvores... e no jipe aos bons solavancos... e em<br />
toda-a-parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia...<br />
donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo,<br />
ainda muito mais vivo, entoante e existente – parado que não se<br />
acabava – do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos<br />
altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aquilo. Só tudo... (ROSA,<br />
J.G., 1988, p.159-160).<br />
No entanto, a paisagem dos cimos, da plenitude da origem, é a que resta<br />
desmedida, a não caber na representação ou linguagem tradicionais: “paisagem e tudo,<br />
fora das molduras” 225 . A beleza da escrita de Rosa é justamente conseguir falar deste<br />
descabimento através da sua poética, produzir este efeito de apontar o intangível através<br />
220 Idem.<br />
221 Idem, p.159.<br />
222 FREUD, S. (1976).<br />
223 ROSA, J.G. (1988) p.159.<br />
224 Idem, ibidem.<br />
225 ROSA, J.G. (1988) p.159.
das palavras 226 . O caráter desmedido, de resto e de origem ao mesmo tempo, fica mais<br />
claro com a comparação com a “nenhuma parte” da “Terceira-Margem do Rio” e com<br />
o lá de “Lá, nas Campinas” 227 , dois contos de Rosa nos quais o espaço já foi apontado<br />
como metáfora do Inconsciente.<br />
Ambos falam deste local como origem. No primeiro conto, trata-se do local de<br />
exílio do pai, que parte numa canoa, rio afora, num terceiro espaço, intermediário entre<br />
as duas margens: “naqueles espaços do rio, de meio a meio” 228 . “Ele não tinha ido a<br />
nenhuma parte” 229 . O adjetivo nenhum figura como expressão deste impossível lugar<br />
paterno ao qual o filho, inconformado com a perda, tenta, em vão, ocupar, substituir o<br />
lugar do pai naquela canoa 230 . Segundo Perrone-Moisés:<br />
De modo recorrente, quando o escritor se refere a esse “lugar”<br />
psíquico onde agem a memória e o desejo, ele o qualifica como<br />
“nenhum”, e usa, como metáfora, o outro lado de uma paisagem<br />
montanhosa. (PERRONE-MOISÉS, L., 2002, p.210).<br />
Já em “Lá, nas Campinas”, este lá é associado à terra perdida da infância que o<br />
personagem Drijimiro tenta reencontrar na recordação: “Vinha-lhe a lembrança – do<br />
último íntimo, o mim de fundo” 231 e da qual resta a frase: “Frase única, ficara-lhe, de<br />
no nenhum lugar antigamente: Lá, nas campinas” 232 . Novamente, surge o termo<br />
nenhum, pontuando a negatividade dos lugares que a mesma autora qualificou de<br />
“nenhures” 233 , a partir da formulação de Lacan de que ao Inconsciente, “o nome de todo<br />
lugar convém tanto quanto o de nenhum lugar” 234 , e que consistem em lugares apenas<br />
226<br />
Neste aspecto, vale a transcrição de Leyla Perrone-Moisés, quando afirma que “enquanto os<br />
psicanalistas sabem muito, os poetas sabem tudo”. PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.279.<br />
227<br />
Respectivamente em ROSA, J.G. (1988), (1985).<br />
228<br />
Idem, ibidem.<br />
229 ROSA, J.G. (1985)<br />
p.33.<br />
230<br />
Para uma análise de ambos os contos sob a perspectiva das relações entre esta topologia do<br />
inconsciente e a melancolia, ver o capítulo 3 deste trabalho.<br />
231<br />
ROSA, J.G. (1985) p.97.<br />
232<br />
Idem, ibidem.<br />
233<br />
PERRONE-MOISÉS, L. (2002) p.210.<br />
234<br />
LACAN, J. Apud. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.111.
no sentido de uma representação metafórica do Inconsciente, nunca em termos de<br />
localização cerebral 235 .<br />
No conto, onde o personagem, tendo passado “por incertas famílias e mãos; o<br />
que era comum quando vêm esses pobres” 236 , repete a vida toda esse resíduo de sua<br />
obscura origem como um refrão, este lá é comparado pela mesma autora ao “Wo Es<br />
War” de Freud, relido por Lacan como “Lá onde era”, o lugar a partir de onde um<br />
sujeito pôde advir:<br />
... A rememoração (...) é um problema do sujeito, que necessita voltar<br />
para “lá, onde era”, segundo a famosa formulação de Freud: “Wo Es<br />
war, soll Ich werden”, que Lacan traduz e examina como “Là où<br />
c’était, le sujet doit advenir” (Lá onde era, o sujeito deve vir a ser)...<br />
(PERRONE-MOISÉS, L., 2000, p.275).<br />
Além do enunciado cifrado, o personagem guardava na memória fragmentos de<br />
lugares: “Largo rasgado de um quintal, o chão amarelo de oca, olhos d’água jorrando<br />
de barrancos” 237 e nenhuma lembrança de pessoas. Nota-se, portanto, que esta<br />
paisagem rosiana envolve um espaço intrincado entre o objetivo e o subjetivo; mas,<br />
sobretudo, evoca um local de origem que não se confunde com o passado cronológico.<br />
Como salienta Perrone-Moisés, a partir da leitura de Lacan da teoria freudiana; lá<br />
concerne não apenas à história familiar e edipiana de uma vida e, sim, ao impossível<br />
lugar de origem a que todos tentamos alcançar: “à origem ontológica de que todos os<br />
homens são órfãos, não por terem perdido uma completude anterior, mas por serem<br />
constitutivamente incompletos.” 238 Este lá será pensado, portanto, como nenhum,<br />
ausência, enigma constituinte do humano, como centro a partir do qual um isso – da<br />
mesma forma que o sertão: é isto de Rosa, esbarra na impossibilidade de definição, pois<br />
235 Idem, p.211.<br />
236 Idem, p.98.<br />
237 ROSA, J.G. (1985) p.97.<br />
238 PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.273.
não consiste objetivamente numa positividade, sendo apenas possível apontá-lo, isso, ou<br />
lá, de onde eu vim... – pôde dar lugar a um sujeito, e que pressupõe, conforme já<br />
começamos a perceber, outras temporalidades envolvidas.<br />
Uma vez considerados alguns aspectos da topologia deste cenário rosiano, resta<br />
indagar como, no GSV, as diversas referências ao tempo histórico (apresentadas no<br />
início do capítulo) participam da configuração ou do desenho deste mapa subjetivo; ou<br />
talvez, como o tempo se conjuga ao espaço, e que formas do tempo se colocam em<br />
cena. Enfim, tendo em vista a marcante proximidade que o texto estabelece entre estes<br />
inomináveis e a memória, cabe perguntar que outras concepções podem lançar luzes<br />
sobre as sombras deste rememorar rosiano?<br />
Retrato negativo<br />
Sempre no gerais, é à pobreza, é à tristeza. Uma tristeza que até alegra.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Em Português, o termo paisagem surge alguns anos após o seu aparecimento na<br />
Europa, mas a idéia de construção de uma paisagem nacional somente chegará ao Brasil<br />
com os viajantes do início do século XIX, acolhida por uma classe dominante ávida em<br />
fornecer substrato cultural a um Estado recém-independente 239 . De acordo com Flora<br />
Sussekind, a obra de Guimarães Rosa, ao lado de escritores como Machado de Assis, se<br />
insere num momento da produção literária nacional em que, já tendo “retratado” a<br />
geografia e a história do país, o narrador rompe com a perpectiva fixa, e introduz a<br />
ambigüidade em relação ao que é narrado, transformando-se, ele próprio, em<br />
paisagem. 240<br />
239 Cf. BOLLE, W. (2004) p. 49.<br />
240 SUSSEKIND, F. Apud. BOLLE, W. (2004) p.49-54.
Willi Bolle considera o Grande Sertão como parte da série retratos do Brasil,<br />
um gênero derivado do livro homônimo de Paulo Prado, de 1928 241 , que teria início<br />
com Os Sertões 242 , de Euclides da Cunha, e estaria ao lado de obras como Casa-Grande<br />
e Senzala 243, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil 244 , de Sérgio Buarque de Holanda,<br />
cujos autores são todos considerados legítimos pensadores do Brasil, e suas obras<br />
bastante reveladoras da cultura brasileira. No que concerne ao GSV, este retrato não<br />
pode ser tomado como registro objetivo; e sim, como nos induz a pensar Bolle, em<br />
artigo onde distingue o ponto de vista do narrador-personagem rosiano, situado a partir<br />
da memória de um jagunço, do interior, e do plano mais baixo do sertão,“ao nível da<br />
estrada e do rio” 245 , em contraste com o olhar de “sobrevôo” 246 do observador que<br />
pretende uma visão geral, do alto, exterior aos acontecimentos, representado por<br />
Euclides da Cunha em Os Sertões. Em contrapartida, o retrato de Rosa do país pode ser<br />
visto como o negativo ou contraponto de sua época, a partir do olhar crítico do escritor<br />
sobre um determinado contexto histórico do Brasil.<br />
Além das já demonstradas noções de infinitude e de negatividade, podem ser<br />
considerados, então, como traços da paisagem no GSV, primeiramente (em ordem<br />
aleatória): a idéia do mundo misturado, que como se verá, guarda ressonâncias com<br />
aspectos históricos. Mas, num primeiro momento, é preciso observar como esta noção<br />
toma conta do espaço, reunindo, ao mesmo tempo, um cenário de um inferno próximo e<br />
uma imagem do paraíso, construída pelo universo do sonho, onde o amor deixou seus<br />
rastros numa natureza exuberante, para que o sujeito possa emergir como intérprete. É o<br />
que o narrador tenta comunicar a seu hóspede:<br />
241 Apud. BOLLE, W. (2004) p.23-24.<br />
242 Idem, p.35.<br />
243 Apud BOLLE W. (2004) p.24.<br />
244 HOLANDA, S.B. (1995).<br />
245 BOLLE, W. (1994-1995) p.85.<br />
246 Idem, ibidem.
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num<br />
afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre<br />
preta na Serra do Tatú – já ouviu o senhor gargaragem de onça? (...)<br />
Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi<br />
Diadorim...(...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de<br />
campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a<br />
escova, amarelinhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).<br />
Contraponto ao horror da guerra e todo o Mal inerente à vida do sertão, esta<br />
paisagem idílica só se torna visível através do amor por Diadorim, que o faz sonhar um<br />
sertão, para além da lógica tradicional, insuficiente para compreender aquela realidade:<br />
Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não<br />
sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje<br />
fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas<br />
quisquilhas da natureza. (ROSA, J.G., 2001, p. 45).<br />
Junto a esta, outra linha do desenho deste sertão se move entre a ruína, a miséria<br />
absoluta dos catrumanos, a violência extrema que esculpe os corpos à faca, presente na<br />
imagem do jagunço sem orelha, ou dos hermógenes cortando os próprios dentes no<br />
acampamento. No extremo oposto, as imagens irônicas sobre o progresso futuro,<br />
expressas em sua maior parte no projeto e anseios de Zé Bebelo: de pontes, de fábricas e<br />
escolas que virão “remediando a saúde, preenchendo a pobreza” 247 , riscam um espaço<br />
onde ainda convivem diferentes contradições e ambigüidades próprias à história e<br />
cultura do país.<br />
A presença de uma pura plasticidade ou reversibilidade das coisas e seres, que<br />
Rosenfield conceitua como princípio relacionado à questão do Mal e da versão e<br />
reversão do nada em tudo 248 , cujo lema: “tudo é e não é” 249 insere-se também no<br />
espaço através da sentença: “sertão: tudo certo, tudo incerto” 250 . Aqui, o primeiro<br />
aspecto que chama a atenção, e através do qual a descrição do espaço se conjuga ao<br />
tempo, é que a paisagem, construída a partir da memória, vai sendo descrita de acordo<br />
247 Idem, p.147.<br />
248 ROSENFIELD,K. (1993); (2006).<br />
249 ROSA, J.G. Op. Cit., p.27.<br />
250 Idem, p.172.
com o deslocamento do narrador e, em boa parte do texto, esse movimento coincide<br />
com a errância, entre ataques e fugas, do bando de jagunços: é neste “desfile” que os<br />
lugares e personagens encontrados pelo caminho vão descrevendo o sertão, por isso<br />
também a paisagem é sempre movente, sempre outra, como o desejo de Riobaldo:<br />
“Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!...” 251<br />
Trata-se, ainda, de uma geografia onde não apenas os lugares, por fazerem parte<br />
do passado, da memória, igualmente se remexem: “Sertão é isto: o senhor empurra<br />
para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.” 252 Mas, de uma<br />
dimensão na qual a mobilidade dos sentidos do sertão, das infinitas descrições que não<br />
descrevem (tais como as definições que não definem, de Finazzi-Agrò 253 ), apontam<br />
algo, reenviando sempre a outros sentidos. Ao apresentar um espaço primordial, um<br />
não-espaço, um não-lugar, o texto nos traz de volta o horizonte do inconsciente de<br />
Freud, que guarda outra semelhança com este curioso espaço do sertão: os<br />
representantes da pulsão que compõem o Inconsciente, segundo Freud, são igualmente<br />
“isentos de contradição mútua” 254 , ligando-se e religando-se com liberdade, daí a<br />
versão e reversão do Mal em bem, do nada em tudo, e a já comentada angústia do<br />
narrador em relação a este mundo tão misturado.<br />
Entretanto, esse não-espaço se inscreve como uma falta da própria origem, que<br />
não é apenas referida a uma vida, mas à origem do país; a partir da leitura da história<br />
como fracasso e ruína, e de sua inserção nesta paisagem, o escritor inverte a tentativa da<br />
historiografia de encontrar na geografia o sentido da história (aquela que naturaliza a<br />
pobreza, explicando-a de acordo com características geográficas da região) 255 , ou até<br />
251 Idem, p.407. Para uma associação entre a paisagem da memória e as anotações de viagem do escritor,<br />
cf. capítulo 4 desta tese.<br />
252 Idem, p.302.<br />
253 Cf. p.42 desta tese.<br />
254 FREUD, S. (1988a) p.191.<br />
255 Cf. FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p.77-79.
mesmo a pretensão de definir uma origem da nossa história, pois o que mais se<br />
evidencia neste trabalho de rememoração é que ele promove um deslocamento<br />
permanente desta suposta origem, reescrevendo outras histórias a partir do mapa<br />
subjetivo da memória, o que significa o mesmo que apontar que o que falta é a própria<br />
origem, na medida em que ela é sempre outra.<br />
Ao começar sua história literalmente pela morte, que não é apenas de Diadorim,<br />
mas a destruição, vinda de muitos lados, a violência, a doença, a miséria, o choque do<br />
progresso, a cidade que vem acabar com o sertão; Guimarães Rosa também ultrapassa a<br />
definição de metáfora inerente à paisagem, pois a concebe como uma metáfora<br />
perpassada pela história, pela ação do tempo, uma alegoria de um determinado<br />
momento histórico, construída através da memória deste narrador-testemunha.<br />
Raízes e resíduos do país<br />
Aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína.<br />
LÉVI-STRAUSS<br />
Mas, começar a história pela morte revela uma outra afinidade com a concepção<br />
benjaminiana da história, que enxerga no processo e na escrita da história uma dimensão<br />
trágica, de catástrofe e ruína, onde a história conhecida é a história dos vencedores: “os<br />
que num momento dado dominam são os herdeiros dos que venceram antes.” 256 A<br />
imagem benjaminiana para esta vitória não poupa materialismo: “Todos os que até hoje<br />
venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os<br />
corpos dos que estão prostrados no chão.” 257 A história que se constrói a partir da<br />
morte dos vencidos é movida pelo progresso, é o que mostra a imagem do anjo da<br />
história, o Angelus Novus, inspirado no quadro de Paul Klee, que, segundo Benjamin,<br />
256 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.<br />
257 Idem, ibidem.
ao ser atingido pela tempestade chamada progresso, é impelido para o futuro, mas volta<br />
seu olhar para o passado, onde vê somente uma catástrofe e ruínas:<br />
... Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.<br />
O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o<br />
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma<br />
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as<br />
dispersa a nossos pés... (BENJAMIN, W., 1986e, p.226).<br />
Este olhar voltado para o passado pressupõe certa desconsideração com o tempo<br />
cronológico, mas significa algo bem mais complexo do que uma suposta ausência de<br />
referência ao contexto histórico 258 , tanto em Benjamin como no enredo rosiano. Como<br />
já se começou a demonstrar, a história para Benjamin se desenrola em camadas ou<br />
superposições de tempos, distintas do tempo sucessivo e linear: “A história é objeto de<br />
uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por<br />
aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetztzeit).” 259 A noção de um tempo-de-agora,<br />
comparável ao kairos 260 , tempo oposto a Chronos, chamado pelos gregos momento<br />
certo, momento oportuno; aqui, se refere à idéia do potencial revolucionário do passado,<br />
pois a revolução é comparada ao “salto do tigre em direção ao passado” 261 , onde cada<br />
momento guarda consigo um passado, um presente e um futuro interligados, e o salto<br />
consiste em avançar até a origem, recuperar do esquecimento um passado vencido e<br />
interromper a marcha da catástrofe e do progresso:“Porque todo minuto poderia ser<br />
uma origem” 262 .<br />
258<br />
Ver também “Le Maintenant de la Possibilité de la Connaissance”, in: BENJAMIN, W. (2003) p.451-<br />
452.<br />
259<br />
BENJAMIN, W. (1986e).<br />
260<br />
LÖWY, M. (2005) p.119.<br />
261<br />
BENJAMIN, W. (1986e) p.120.<br />
262<br />
Trata-se do conto “O Mau Humor de Wotan”, publicado em 1948, onde encontram-se vestígios<br />
autobiográficos da estadia de Rosa como cônsul-adjunto na Alemanha durante a Segunda Guerra. Aqui, a<br />
idéia da possível origem a cada instante relaciona-se com os fatos que culminaram na morte do amigo do<br />
narrador no conto, “o menos belicoso dos homens”, o alemão Hans-Helmut Heubel, amigo de Rosa em<br />
Hamburgo, enviado para a guerra sem treinamento algum. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.5. Sobre os aspectos<br />
biográficos, conferir o artigo da antropóloga e crítica Ana Luisa Martins Costa e o ensaio e documentário<br />
ainda inédito de Adriana Jacobsen. COSTA, A. L. M. “Veredas de Viator”. In: GALVÃO, W.N.;<br />
COSTA, A.L.M. (2006). JACOBSEN, A.; VILELA, S. “Outro Sertão”. Idem.
Considerando-se esta outra dimensão do tempo, oposta ao tempo cronológico, é<br />
preciso ver um pouco mais detalhadamente como se caracteriza este olhar para o<br />
passado no romance de Rosa; em outras palavras, como a história pode ser pensada na<br />
escrita rosiana? Embora enredadas na ficção, as referências históricas do GSV estão no<br />
texto: a de guerras antigas, passadas nas eras de 1879 263 ; e a menção, situada no tempo<br />
da vida jagunça, à passagem da Coluna Prestes pela região 264 que, conforme se sabe,<br />
cruzou o interior do país entre os anos de 1925 e 1927. O que leva a crer que, se a<br />
juventude do narrador é datada na década de vinte, a velhice, no presente da narrativa,<br />
pode situar-se em torno dos anos cinqüenta, coincidindo também com a época em que o<br />
texto é elaborado, levando-se em conta que o livro foi publicado em 1956.<br />
Ora, em plenos anos cinqüenta – marcados pelo projeto desenvolvimentista da<br />
era Juscelino Kubitscheck, pelo lema cinqüenta anos em cinco, que encontrou seu<br />
clímax na construção de Brasília, pelo intenso crescimento das cidades – é curioso como<br />
o olhar do artista se volta para os esquecidos da história; e quem seriam eles? Toda a<br />
sua obra é construída por personagens rurais, de um Brasil interior e arcaico, habitantes<br />
de pequenos vilarejos, fazendas, taperas isoladas no meio do mato ou ribeirinhas. São<br />
loucos, como em “Sorôco, sua mãe, sua filha” 265 , estranhos, como em “A Menina de<br />
Lá” 266 , e mais uma série de peões, mestiços, jagunços, bandidos, prostitutas; em poucas<br />
palavras, são figuras do desterro e do desamparo, como Miguilim 267 , que termina a saga<br />
de infeliz infância sendo levado pelo moço, para morar na cidade... São representantes<br />
dos que ficaram mantidos à margem da história, e que o GSV reúne num universo<br />
único, como restos, resíduos a quem o Brasil modernizado não concedeu lugar<br />
263 ROSA, J. G. (2001) p. 128.<br />
264 Idem, p.114.<br />
265 ROSA, J.G. (1988).<br />
266 Idem, ibidem.<br />
267 Idem, (2001b).
apropriado 268 ; transformados, agora, na ficção, em protagonistas principais da outra<br />
estória.<br />
Inúmeras passagens dão nota do olhar sensível do narrador diante do “estatuto<br />
de misérias e enfermidades” 269 , não apenas da vida jagunça, mas dos sertanejos tão<br />
sofridos que vão sendo encontrados pelo caminho do bando, como a fila de doentes que<br />
vinham pedir milagre: “lázaros de lepra, aleijados, por horríveis formas, feridentos, os<br />
cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo:<br />
criaturas que fediam” 270 . Pobreza que atinge desde os moradores, contrastados em<br />
honestidade em relação aos jagunços: “pai de família faminta. Coisas sem<br />
continuação” 271 ; aos jagunços rivais, presos pelos companheiros de Riobaldo: “Senti<br />
pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se<br />
via que não tinham esperança nenhuma decente.” 272 Uma condição em que à<br />
destituição se alia à tristeza: “Jagunço é homem já meio desistido por si” 273 .<br />
Supor que esta paisagem é composta por referentes da história do país,<br />
entretanto, não reenvia a nenhuma idéia de memória como registro fiel dos fatos: “Pois<br />
o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua<br />
rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.” 274 O passado não é o vivido,<br />
diz Benjamin 275 , mas tampouco esta rememoração se esgota na lembrança. Pois lá, na<br />
origem, no fundo, como tento demonstrar, o que se insinua no texto de Rosa é o<br />
esquecimento, e não apenas da noite que desfaz o dia, como pondera Benjamin sobre o<br />
apagamento da lembrança, o trabalho do esquecimento, que substitui o trabalho da<br />
memória e é mencionado a partir da obra de Proust: “Ou seria melhor falar no trabalho<br />
268 STARLING, H. (1999) p.16.<br />
269 ROSA, J.G. (2001) p. 75.<br />
270 Idem, ibidem.<br />
271 Idem, p.88.<br />
272 Idem, p.150.<br />
273 Idem, p.67.<br />
274 BENJAMIN, W. (1986) p. 37.<br />
275 Idem, p.37.
do esquecimento?” 276 Mas o esquecimento como suposto ponto de origem de toda<br />
memória, como o mesmo autor leva a pensar quando situa a imagem involuntária no<br />
mundo das correspondências, numa “camada especial, a mais profunda (...) na qual os<br />
momentos da reminiscência (...) não mais isoladamente, com imagens, mas informes,<br />
não visuais, indefinidos e densos, anunciam-nos um todo” 277 .<br />
Sendo assim, é preciso destacar a forma como aparecem, no GSV, as referências<br />
à história do país; não como fatos isolados, mas como fragmentos, sempre atrelados à<br />
subjetividade de alguém que recorda: o ano de 1979 consta da lembrança de Selorico<br />
Mendes sobre a invasão de Januária e Cariranha, e a passagem da coluna Prestes é<br />
evocada através do testemunho do narrador que, a respeito do acontecimento histórico,<br />
conta o que dele pode restar: “Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,<br />
encontra balas cravadas” 278 . Aqui, o que prevalece não está na ordem de uma pretensa<br />
objetividade do fato em si, mas sim neste olhar crítico diante de um contexto específico,<br />
que surge na ficção através das recordações do narrador e de outros personagens, como<br />
resíduos, pedaços de um Brasil, dissolvidos entre lacunas e elementos da fantasia; como<br />
o narrador descreve, melhor do que ninguém, quando se afirma incapaz de narração:<br />
“retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago...” 279 .<br />
Cabe pensar de que forma estes fragmentos funcionam como índices de uma<br />
tentativa de reescrever nossa história e origem numa linguagem que, como se verá,<br />
aponta o tempo inteiro para o seu mais além, para uma ausência ou esquecimento. A<br />
visão do escritor sobre seu tempo traz o questionamento benjaminiano sobre o passado,<br />
uma reescrita que pressupõe “escovar a história a contrapelo” 280 , apontada pelo<br />
filósofo como tarefa do historiador materialista, distinta do historicista (aquele que vê<br />
276 Idem, ibidem.<br />
277 Idem, p.49.<br />
278 ROSA, J.G. (2001) p. 66.<br />
279 Idem, p.221.<br />
280 BENJAMIN, W. (1986e) p. 225.
na história uma cadeia linear de fatos), pois evita estabelecer uma relação de empatia<br />
com os vencedores da história, e busca, através deste passado esquecido e vencido,<br />
“despertar no passado as centelhas da esperança” 281 .<br />
Segundo o capítulo “Memória e Libertação”, de Jeanne Marie Gagnebin, a<br />
respeito da vida e obra de Benjamin: “O historiador materialista (...) pretende fazer<br />
emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu<br />
apelo por um futuro diferente” 282 . A tarefa do historiador envolve, deste modo, uma<br />
temporalidade que conjuga os três tempos, onde o passado traz uma ligação com o<br />
presente e o futuro, visto pela mesma autora como o futuro do passado, daquilo que<br />
teria podido acontecer, ou que requer retirar do esquecimento: “aquilo que teria podido<br />
fazer da nossa história uma outra história” 283 . Ao revolver a fundo a história do país,<br />
trazendo de volta nossos conflitos esquecidos entre o campo e a cidade, a lei urbana e o<br />
costume do sertão, Guimarães Rosa compartilha da visão apontada pela mesma autora<br />
como sendo comum a Benjamin, Freud e Proust (embora cada um a desenvolva a seu<br />
modo): “da mesma convicção de que o passado comporta elementos inacabados; e,<br />
além disso, que aguardam uma vida posterior, e que somos nós os encarregados de<br />
fazê-los reviver” 284 .<br />
Certamente, as imagens inequívocas do cortejo triunfal da história no romance<br />
de Rosa se encontram na marcha das cidades, do progresso, e na máquina do governo<br />
que avançam sobre o sertão: “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade<br />
acaba com o sertão. Acaba?” 285 Conflito que o escritor reformula através desta<br />
construção formal igualmente repetida no texto, na qual à afirmação segue-se a sua<br />
interrogação não respondida, e que produz como efeito um corte ou uma suspensão no<br />
281 Idem, p. 224.<br />
282<br />
GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71.<br />
283<br />
Idem, p.60.<br />
284 GAGNEBIN, J.M. (1982) p.71.<br />
285 ROSA, J.G. (2001) p.183.
discurso do avanço do progresso 286 , colocando em relevo a dialética e o movimento<br />
inerente ao processo de choque entre a cidade e o campo, ao conflito armado entre a lei<br />
do governo e a lei do sertão, à guerra entre soldados e jagunços, e expondo o ponto de<br />
vista dos últimos em relação aos primeiros:<br />
Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em<br />
máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o<br />
pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonçável na<br />
capital do Estado? (ROSA, J.G., 2001, p. 319).<br />
Através deste olhar crítico do narrador, lê-se um misto de sonho e ironia em<br />
relação ao processo de modernização vigente na época, pois Riobaldo também sonha<br />
com a cidadania de uma cidade mais justa que o sertão: “eu tinha raiva surda das<br />
grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva – porque eu não era delas,<br />
produzido” 287 . São imagens de uma promessa que não chegará ao sertão, de trens que<br />
não virão e do contraste entre a falta de pontes e a cidade na qual o senhor vive: “no<br />
carro de bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe<br />
resolve. Até hoje é assim...” 288<br />
Afinal, para Riobaldo, o “progresso moderno” 289 é uma “ilusãozinha” 290 que<br />
não resolve, mas seria até “bom, se fosse verdade” 291 . Se cada época guarda um<br />
segredo, como soube dizer Benjamin 292 , o autor constrói, na ficção, a reescrita da<br />
história, revelando, pelo avesso, alguns segredos perdidos pelo discurso<br />
desenvolvimentista do período, que – diferentemente da origem em si mesma, tratada<br />
por Rosa como enigma – podem ser revelados: a violência nos embates entre o campo e<br />
286 Leyla Perrone-Moisés fala na suspensão do discurso do narrador no sentido do corte lacaniano, que<br />
aponta para a ausência de sentido, a possibilidade de criação novos sentidos, no final do conto “Lá, nas<br />
Campinas”, citando Rosa: “...Mas não acho as palavras.” Cf: PERRONE-MOISÉS, L. (2000) p.278.<br />
287 ROSA, J.G. (2001) p. 533.<br />
288 Idem, p. 118.<br />
289 Idem, p.140.<br />
290 Idem, ibidem.<br />
291 Idem, ibidem.<br />
292 BENJAMIN, W. (1986a) p. 40.
a cidade, entre o arcaico e o moderno, a marcha de um crescimento desigual, e a<br />
ausência de diálogo entre os personagens do interior e a máquina distante do governo.<br />
Das lembranças de guerra: esses tontos movimentos<br />
O grande sertão é a forte arma. Deus é um<br />
gatilho?<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Ao se abordar a forma como a violência surge articulada à memória no GSV, as<br />
primeiras questões que sobressaem se situam dentro da recusa de Riobaldo em narrar a<br />
guerra, diversas vezes repetida ao longo de sua fala. Afinal, trata-se do recalcado, que<br />
ele não deseja rememorar, ou de algo que, comparado com outros acontecimentos de<br />
sua vida, não é digno de ser narrado? A princípio, pode-se dizer que toda a memória<br />
sobre a violência e a guerra é traumática; ou o seu oposto, a guerra tornou-se trivial, e<br />
tudo que se refere a ela não passa de “tontos movimentos” 293 ? Além disso, como<br />
considerar as lembranças de guerra, tendo em vista as elaborações já iniciadas entre<br />
memória e história, realidade e ficção, já que é em torno da violência que giram as<br />
referências mais próximas à história do país, as Lembranças do Brasil 294 , como quer o<br />
título do livro de Heloísa Starling?<br />
Como sempre, o próprio narrador fornece algumas trilhas de compreensão, no<br />
momento em que confessa, durante uma inexplicada viagem de Diadorim, sua angústia<br />
diante da ausência do outro, chamando-a de “mordido e remordido sofrimento” 295 , no<br />
qual o “remordido” dá a dimensão de algo que – mesmo no presente da narrativa – não<br />
pode ser esquecido facilmente, algo relacionado ao trauma e à melancolia. Contraposto<br />
293 ROSA, J.G. (2001) p. 245.<br />
294 STARLING, H. (1999).<br />
295 ROSA, J.G. (2001) p.245.
àquele, é o “sofrimento legal padecido” 296 , que Riobaldo atribui, na mesma passagem,<br />
às guerras, diminuídas em relevância quando comparadas ao sentimento por Diadorim.<br />
Leyla Perrone-Moisés parece tratar da mesma diferença, quando associa outra<br />
oposição riobaldiana entre a “saudade da idéia e saudade do coração” 297 ; separando, de<br />
um lado, as lembranças conscientes, a saudade das alegrias e do companheirismo entre<br />
os jagunços, e do outro, a melancolia sentida em relação a Diadorim:<br />
Não resta dúvida de que a saudade maior de Riobaldo, como a de<br />
Drijimiro, é ‘saudade de coração’, não aquela que se cultiva como<br />
lembrança, mas aquela que dói sem remédio. (PERRONE-MOISÉS,<br />
L., 2000, p. 266).<br />
A autora se vale aqui da distinção feita por Lacan entre a memória consciente, e<br />
o inconsciente como fundamento do processo de rememoração, comparado ao chamar o<br />
sujeito de volta para casa, no inconsciente:<br />
... A rememoração não é a reminiscência platônica, não é o retorno de<br />
uma forma, de uma impressão, de um eidos de beleza e de bem que<br />
nos vem do além, dum verdadeiro supremo. É algo que nos vem das<br />
necessidades da estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos<br />
baixos encontros e de toda turba falante que nos precede, da estrutura<br />
do significante... (LACAN, J., 2008b, p.53).<br />
Diferença que, no romance, lança luzes sobre o que pode permanecer na ordem<br />
da recordação traumática 298 , e o registro das lembranças que, posteriormente, não são<br />
consideradas importantes – seja porque destituídas de valor subjetivo para o narrador:<br />
“isso de guerra é mesmice, mesmagem” 299 ; ou porque, mesmo tendo sido marcadas sob<br />
o signo do trauma, puderam ter o esquecimento (possível) como resultante de um<br />
trabalho de elaboração – lembre-se da fala de Riobaldo a este interlocutor silencioso<br />
como possível metáfora de uma situação de análise. Tal esquecimento significaria<br />
296 Idem, ibidem.<br />
297 Idem, p.43.<br />
298 Pois, como ainda veremos, este lá refere-se a um (des)encontro com o real do trauma, e o retorno diz<br />
respeito ao inconsciente como repetição.<br />
299 ROSA, J.G. (2001) p.319.
também o que permite que se passe de uma recordação a outra, que se produza um<br />
movimento ou um deslizamento de um sentido a outro. Ou, na formulação de Weinrich<br />
inspirada em Freud, trata-se de diferenciar o esquecimento não-apaziguado, vinculado à<br />
resistência do recalque, do esquecimento apaziguado 300 , que passou por um trabalho de<br />
rememoração, onde a arte da memória se aproxima da arte de poder esquecer. Por ora,<br />
demarcar esta diferença é o que basta para deixar, por um momento, a melancolia de<br />
lado, e voltar à violência, já que, certamente, ambas ainda retornarão como subtítulos na<br />
agenda da memória deste Grande Sertão.<br />
A despeito da crítica manifestada pelo narrador repetidamente ao descrever os<br />
detalhes das guerras, equiparadas por ele à dimensão objetiva da vida: “Vida e guerra, é<br />
o que é: esses tontos movimentos” 301 ; as lembranças de guerra efetivamente compõem<br />
seu relato: “o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração – dou o<br />
tampante, e o que for – de trinta combates. Tenho lembrança” 302 . E ele não poupa nem<br />
a si mesmo quando se trata de admitir os próprios crimes, incluindo os dois estupros que<br />
cometeu 303 ; desaprovando, contudo, a violência já na época, como demonstra ao<br />
compartilhar o sonho de sertão pacificado de seu amigo Zé Bebelo: “A gente devia<br />
mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o comércio,<br />
saquear na sebaça.” 304<br />
Sobre este ponto, é preciso frisar que, retomando a questão do olhar do escritor<br />
sobre estes personagens, ao inserir na história o ponto de vista dos jagunços, o texto não<br />
incorre numa visão ingênua; tampouco caracterizar o olhar do escritor como sensível<br />
significa propor que ele os transforme em vítimas da violência:<br />
300 WEINRICH, H. (2001) p.191.<br />
301 Idem, p. 245.<br />
302 Idem, ibidem.<br />
303 Idem, p. 189.<br />
304 Idem, p.146.
Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda<br />
abaixo, tigre cangussú estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, (...).<br />
Comprou-se para ele, então, uma boa perna de pau. Mas, assim, talvez<br />
por se ter sacolejado um pouco do juízo, ele nunca mais quer sair de<br />
casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ái,<br />
quem tem dois tem um, que tem um não tem nenhum...” Todo o<br />
mundo ri. E isso é remorso? (ROSA, J.G., 2001, p.233).<br />
No entanto, a discussão sobre o remorso situa-se numa passagem enigmática,<br />
onde Tatarana, nessa que parece ser sua primeira batalha, entra numa espécie de transe e<br />
atira automaticamente: “Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele<br />
atirava. Eu atirava.” 305 Tendo em frente o tempo todo as costas do amigo: “Aí, eu<br />
estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava<br />
ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue!” 306 Os textos seguintes: “Narrei<br />
miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço<br />
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.” 307 E:<br />
“porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era” 308 , deixam “no ar”<br />
se o seu questionamento envolve, direta ou indiretamente, a morte do companheiro.<br />
Ainda em relação à decisão colocada entre narrar a guerra ou narrar as coisas<br />
importantes; ela parece insinuar, além de uma crítica ao que merece ser contado, uma<br />
diferença, que mais uma vez desvincula a memória da noção de realidade factual, pois o<br />
que fica na memória como trauma pode estar, ou não, relacionado à guerra. É inegável,<br />
contudo, que a violência se articula com a problemática do Mal e, sobretudo, se inscreve<br />
também como trauma, relacionado a algo que se produz como um excesso 309 , que<br />
sempre escapa à representação e à lembrança: “porque o extenso de todo sofrido se<br />
305 Idem, p.230.<br />
306 Idem, ibidem.<br />
307 Idem, p.232.<br />
308 Idem, p.234.<br />
309 Em “Além do Princípio do Prazer”, encontra-se tanto a idéia do excesso como a de uma fixação do<br />
sujeito no trauma, na proposição retomada por Freud, de que: “os histéricos sofrem principalmente de<br />
reminiscências.” Cf. FREUD, S. (1976) p.24.
escapole da memória” 310 , levando o ex-jagunço a duvidar da possibilidade de<br />
esquecimento do que é relacionado ao Mal:<br />
... Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a<br />
alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido<br />
e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas medonhas demais, tem.<br />
Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor<br />
e raiva de ódio... (ROSA, J.G., 2001, p. 37).<br />
A mesma irredutibilidade da dimensão traumática se coloca na primeira batalha<br />
em que Riobaldo, tendo seguido Diadorim ao lado dos hermógenes, se vê contrariado<br />
pelo não só pelo dever de matar: “Eu ia matar gente humana” 311 , como por ter como<br />
alvo o amigo Zé Bebelo: “Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu<br />
nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo...” 312<br />
Oscilante entre o autoquestionamento sobre a sua responsabilidade: “Quantos não iam<br />
morrer por minha mão?” 313 E a ausência de culpa: “Eu não tinha nada com aquilo,<br />
próprio, eu não estava só obedecendo?” 314 O improvável esquecimento se inscreve na<br />
frase repetida – muitas vezes – durante a mesma passagem: “Ah, digo ao senhor: dessa<br />
noite não me esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom nem ruim.<br />
Matar, matar, quê que importava? Dessa noite esquecer não posso” 315 .<br />
Mundo misturado, mundo à revelia<br />
[o projeto de Brasília] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou<br />
dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio<br />
sinal da cruz.<br />
LÚCIO COSTA<br />
Apresentados, deste modo, alguns dos eixos de reflexão que envolvem a<br />
temática da violência, que atravessa o texto por inteiro, podemos nos acercar melhor do<br />
310 ROSA, J.G. (2001) p. 418.<br />
311 Idem, p.223.<br />
312 Idem, ibidem.<br />
313 Idem, p.224.<br />
314 Idem, ibidem.<br />
315 Idem, p.225.
lugar que ocupa, entre o traumático e o banal, a ficção e a história, e ainda entre o que<br />
deve ser lembrado ou esquecido. O crítico José Miguel Wisnik aponta, na raiz da<br />
violência que perpassa a obra de Rosa, uma especificidade da cultura brasileira<br />
circunscrita em torno de uma dupla ou (dobra) da ausência da lei, e que se refere, não<br />
somente ao acaso e à insuficiência na origem de toda lei; mas à ausência de uma lei que<br />
“não faz sentido na formação ancestral brasileira” 316 e que merece ser pensada,<br />
portanto, em sua singularidade.<br />
No rastro das formulações das idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz 317 , e das<br />
contradições abordadas em Raízes do Brasil 318 , haveria algo em nossa história que se<br />
repete e permanece como um enigma, “entre a violência e a retórica” 319 , onde a<br />
tentativa de instauração de uma lei comum, capaz de impor limites à força bruta,<br />
convive lado a lado com a lei do mais forte do sertão: “Sertão. O senhor sabe: sertão é<br />
onde manda quem é forte, com as astúcias” 320 .<br />
O ponto de partida de Wisnik é o conto “Famigerado”, de Primeiras Estórias 321 ,<br />
no qual a violência – diferentemente do GSV – comparece como ameaça não<br />
concretizada, mas onde novamente um jagunço, do sertão, busca junto ao letrado,<br />
homem da cidade, um sentido que lhe esclareça uma palavra ou uma experiência. O<br />
ensaio se concentra na questão desta passagem do sertão à cidade, da ausência de lei do<br />
sertão à lei que falta da cidade brasileira, através dos (des)entendimentos em torno do<br />
sentido da palavra famigerado, que constitui o enredo do conto.<br />
Na pergunta desafiante do jagunço Damázio, que vai da Serra do São Ão até a<br />
cidade, para interrogar o médico, o narrador da história, sobre o sentido da palavra<br />
316 WISNIK, J.G. (2002) p.184.<br />
317 SCHWARZ, R. (1977).<br />
318 HOLANDA, S. B. (1995).<br />
319 WISNIK, J.G. (2002) p.184.<br />
320 ROSA, J.G. (2001) p. 35.<br />
321 ROSA, J.G. (1988).
famigerado, dirigida ao jagunço por um insensato moço do governo, se assinalam, com<br />
humor, as “armas desiguais” 322 de um e outro: “um homem cuja linguagem é a da faca<br />
e a da bala está suspenso pelo fio sutilíssimo de uma palavra, podendo no entanto, e a<br />
qualquer momento, cair matando” 323 . Estabelecida a tríade entre o jagunço, o homem<br />
culto e o moço do governo, o que ali se delineia é o lugar intermediário do intelectual e<br />
das idéias em nossa história, entre o poder da bala e o poder político, lugar que poderia<br />
ser de mediação de um acordo comum, que fornecesse o solo simbólico de uma lei, por<br />
sua vez, capaz de assegurar limites à ausência de limites.<br />
O duelo é lido à luz do primeiro e do último conto do livro, “As Margens da<br />
Alegria” 324 e “Os Cimos” 325 , nos quais, excepcionalmente, o cenário rural privilegiado<br />
por Rosa se inverte, e o personagem principal, o Menino, viaja para o: “lugar onde se<br />
construía a grande cidade” 326 , numa referência à construção de Brasília, inaugurada em<br />
1960, dois anos antes da publicação dos contos. Desta forma, o diálogo se inscreve num<br />
cenário situado no centro do conflito, com todas as contradições que envolveram o<br />
projeto de construção, símbolo de um programa modernizador que leva a cidade ao<br />
centro do interior do país e faz dela a sede do poder político.<br />
A escolha do campo como cenário privilegiado dos escritos de Rosa também<br />
revela um local onde historicamente, no Brasil, desde Canudos, desenvolveram-se<br />
conflitos violentos, envolvendo populações numerosas, o que contraria nossa auto-<br />
imagem de “um caráter pacífico e ordeiro” 327 . Assim, a temática daqueles contos<br />
persiste no GSV e, para Wisnik, consiste numa melancolia relacionada a uma passagem<br />
322<br />
WISNIK, J.M. (2002) p.177.<br />
323<br />
Idem, p.181.<br />
324<br />
ROSA, J.G. (1988).<br />
325<br />
Idem.<br />
326<br />
Idem, p. 7.<br />
327<br />
GRYNZPAN, M. (2002) p. 154.
traumática do arcaico ao moderno em nossa história, a algo de não-simbolizado aí, que<br />
daria origem a um mundo misturado:<br />
Mas o que se decanta nesses contos é mais um trabalho de luto, nem<br />
apologético nem saudosista, onde a saudade é mais funda e inclui o<br />
futuro – o desígnio irresolvido que persiste na mudança. A questão<br />
aqui não é a passagem sucessiva do arcaico ao moderno, mas a<br />
persistência de um no outro... (WISNIK, J.M., 2001, p.179).<br />
Melancolia – é preciso dizer – assim como no GSV, “à qual não se<br />
entregam” 328 os personagens, e que não exclui a experiência da alegria, embora<br />
apareça à margem, ou intermitente, como a luz do vagalume no final do conto, como<br />
afirma o crítico. Em “Famigerado”, Rosa trata com humor a ambigüidade de sentido da<br />
palavra, presente na origem de toda significação, tal como formulada por Freud 329 .<br />
Ambigüidade que, contudo, associada a outras ambigüidades do contexto histórico<br />
brasileiro, permanece como duplicidade não resolvida. Pois a palavra, desprendida da<br />
experiência desde nossas origens, desliza, frágil, ao longo de uma cadeia de<br />
associações: “fasmisgerado... faz-me gerado... falmisgerado... familhas-gerado...” 330<br />
A solução encontrada pelo homem culto é ignorar o contexto em que o termo foi<br />
utilizado, e apelar para um sentido primeiramente neutro:<br />
“– Famigerado é inóxio, é ‘célebre’, ‘notório’, ‘notável’...<br />
– ‘Vosmecê mal não veja em minha grosseria no não entender. Mais<br />
me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome<br />
de ofensa?’<br />
– Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros<br />
usos... (ROSA, J.G. 1988, p.16).<br />
328 WISNIK, J.M. (1997) p.179. Cf. Capítulo 4 desta tese, sobre a felicidade do texto.<br />
329 Freud investiga a relação do Inconsciente com a linguagem, através do princípio da não-contradição e<br />
do estudo de palavras ambíguas da língua egípcia, e analisa como o uso de uma palavra pode derivar no<br />
sentido oposto ao original, o que Rosa percebe ocorrer com famigerado, em português. Mais tarde, Freud<br />
irá propor o mesmo em relação ao termo Unheimlich (o Estranho). Cf. FREUD, S. (1970) e (1988b).<br />
330 ROSA, J.G. (1988) p. 15.
Ao passar, porém, da neutralidade ao elogio, “–Famigerado? Bem. É:<br />
‘importante’, que merece louvor, respeito...” 331 , o homem culto reitera esse (literal)<br />
estado de coisas, no qual a palavra passa a valer como ornamento: destituída de sentido<br />
prático 332 , a inteligência se torna “decorativa” 333 , e a eloqüência diz o que o mais forte<br />
deseja ouvir... Saída na forma de uma formação de compromisso, encontrada pela<br />
inteligência em nosso passado histórico que, a fim de conciliar duas exigências opostas<br />
(aqui, sair com vida do episódio e esclarecer o homem simples, dizer a verdade),<br />
mantém no recalque, no esquecimento, a violência implícita na situação, numa esepécie<br />
de paródia à história de nossas idéias fora do lugar 334 .<br />
Nos contos que evocam Brasília, esta não-mediação simbólica, da linguagem, é<br />
percebida pelo olhar do Menino, entre o mundo da natureza e a chegada da civilização:<br />
entre a “incessante alegria” 335 , o transbordamento da natureza, na “paisagem de muita<br />
largura” 336 concentrada na visão do peru; e a descoberta do Mal encarnado “no mundo<br />
maquinal, no hostil espaço” 337 do campo de obras do aeroporto: “entre o<br />
contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.” 338<br />
331 Idem, p. 16.<br />
332 Trata-se da importação das idéias européias iluministas aplicadas a uma realidade incongruente com<br />
sua origem, como a idéia de liberdade à sociedade escravista e rural da época. Cf. SCHWARZ, R. (1977).<br />
333 HOLANDA, S.B. (1995) p.84.<br />
334 Implícita nesta formulação está também o conceito elaborado por Lacan de Foraclusão do Nome-do-<br />
Pai, da instância da lei, própria da estrutura psicótica, e que (simplificadamente) faz com que a palavra, ao<br />
não se inscrever simbolicamente, retorne do real na forma de delírios e alucinações, etc., levando, para a<br />
psicose, a que a palavra seja tratada como coisa, o que se verifica, por exemplo, na certeza irredutível,<br />
opaca, das construções delirantes. Cf. LACAN, J. (2008). Algo próximo do que estes estudos<br />
sociológicos apontam: na formação da cultura brasileira, o valor da palavra é deslocado para o ornamento,<br />
o enfeite; o que o pensamento hesitante de Damázio, parece indicar, como mostra Wisnik, ao final do<br />
conto, cogitando numa extradição da autoridade, encarnada no moço do Governo: “Sei lá, às vezes o<br />
melhor mesmo, pra esse moço do Governo era ir-se embora, sei não...” Cf. ROSA, J.G. (1988) p.17.<br />
E, ainda, a respeito da formação de compromisso efetuada pelas idéias em nossa cultura, Sérgio<br />
Buarque de Holanda mostra como a cordialidade irá se desenvolver como traço de caráter nacional desde<br />
os engenhos de açúcar... Tendo, na origem, o caldo onde se misturaram a herança ibérica e africana,<br />
diante da escravidão. Nesta ótica, a cordialidade admite a violência para não sucumbir a ela, ocultando-a.<br />
Cf. HOLANDA, S.B. (1995) p.61.<br />
335 ROSA, J.G. (1988) p.9.<br />
336 Idem, ibidem.<br />
337 Idem, p.10.<br />
338 Idem, ibidem.
Haveria, portanto, na origem da formação social brasileira, em nossa história,<br />
uma “falha simbólica” ou ausência de um corte simbólico que, através da linguagem,<br />
operasse uma distinção na experiência, e que, ao não se efetivar, retorna como violência<br />
em ato, não simbolizada, o que nos levaria a confundir a lei e o crime, a polícia e o<br />
bandido, o público e o privado, que passam a ser vivenciados como o mesmo, fazendo<br />
com que, ainda hoje, a lei da cidade se aproxime, mais do que nunca, da lei da selva...<br />
Em “As margens da Alegria” 339 , a violência desta passagem, não simbolizada no<br />
coletivo, irá ser vivida subjetivamente pelo Menino (como pontua Wisnik), como “o<br />
inaudito choque” 340 , um trauma, na medida em que comporta algo da ordem de um<br />
excesso, em que o fator surpresa é preponderante e que envolve uma ruptura 341 , uma<br />
divisão que é aqui relacionada à experiência do corte da árvore:<br />
...Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma<br />
lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver?<br />
Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da<br />
área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na<br />
boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore,<br />
de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre:<br />
ruh...sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela.<br />
Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito<br />
choque – o pulso da pancada. O Menino fez ascas. Olhou o céu –<br />
atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. (ROSA, J.G.,<br />
1988, p.10-11)<br />
No GSV, a ausência da lei é ressentida por Riobaldo como algo que, passando<br />
por uma autoridade política, poderia demarcar uma divisão, um limite capaz de<br />
assegurar que o demo, signo da mistura do mundo, não existe:<br />
...Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios,<br />
políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção –<br />
proclamar por uma vez, artes assembléias. Que não tem diabo<br />
nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! (...) Por que o governo<br />
não cuida?! (ROSA, J.G., 2001, p. 31).<br />
339 Idem, ibidem.<br />
340 Idem, p.11.<br />
341 A noção de trauma envolve outros aspectos, principalmente a partir de Lacan, mas, por ora, estes são<br />
os aspectos necessários a destacar. Cf. FREUD, S. (1976) p.47.
A lei do mais forte do sertão aparece resumida na acusação de Ricardão durante<br />
o julgamento de Zé Bebelo: “Lei de jagunço é o momento” 342 ,“é a misericórdia de<br />
uma boa bala” 343 . O “costume velho de lei” 344 , ditado pelo coronelismo, fruto de um<br />
conjunto de alianças políticas entre os grandes fazendeiros e os chefes de bandos,<br />
consiste na lição de Selorico Mendes ao jovem afilhado:<br />
–“Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo<br />
política e potentes chefias (...) Mas, adiante, por aí arriba, ainda<br />
fazendeiro graúdo se reina mandador – todos donos de agregados<br />
valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada!...”<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 127-128).<br />
O que o fazendeiro ensina é que, neste mundo à revelia, onde a norma já nasce<br />
invertida, os jagunços são “ordeiros” 345 , responsáveis pela manutenção de um certo<br />
equilíbrio neste intrincado sistema, movendo-se entre mandados e mandantes, fazendo a<br />
lei que não há, ajudando a prender e dando julgamento segundo uma autoridade<br />
essencialmente pessoal. Por exemplo, o caso dos irmãos que se unem para matar o pai,<br />
que, antes, havia mandado um matar o outro. Presos pelos jagunços, os dois têm o<br />
perdão como veredicto do então chefe Zé Bebelo, com a condição de terem a boiada<br />
desapropriada pelos jagunços. 346<br />
As mesmas contradições se mostram no projeto de Zé Bebelo de acabar com a<br />
jagunçagem: “Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado<br />
fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a<br />
saúde de todos, preenchendo a pobreza.” 347 A ironia de pretender a paz através da<br />
342 ROSA, J.G. Op. Cit., p.284.<br />
343 Idem, ibidem.<br />
344 Idem, p.276.<br />
345 Idem, p.128.<br />
346 Idem, p.92. Há, nem tanto neste julgamento menor, mas sim no de Zé Bebelo – onde se esboça um<br />
fórum coletivo, no qual vários chefes dão acusação, e o réu é ouvido antes da sentença – toda uma<br />
discussão em torno da lei do sertão, a lei da cidade e do governo, e a justiça; que aponta para a construção<br />
de uma lei realmente intermediária entre os envolvidos, que escapa ao objetivo deste trabalho, mas que<br />
não deixo de ressaltar, a fim de apontar possíveis linhas posteriores de pesquisa.<br />
347 Idem, p.146.
guerra, do extermínio dos jagunços com o apoio do governo – à semelhança da Guerra<br />
de Canudos – se nota no grito de Bebelo após cada vitória num combate: “Viva a lei!<br />
Viva a lei...!” 348<br />
Ao conceber formalmente o romance, projetando o desenho deste sertão como<br />
uma conversa – onde o jagunço fala e o senhor escuta – Guimarães Rosa traz de volta<br />
não apenas o diálogo que faltou em Canudos 349 , mas o simbólico como mediação<br />
ausente na origem de nossa cultura, numa imagem alegórica que coloca estes opostos<br />
em movimento, em interlocução:<br />
Na conversa entre o narrador sertanejo, o velho fazendeiro e exjagunço<br />
Riobaldo e seu visitante, um jovem doutor da cidade, são<br />
tematizados as diferenças, os conflitos e os choques culturais, mas<br />
também as interações, os diálogos e o trabalho de mediação. (BOLLE,<br />
W., 2004, p 39-40).<br />
Neste diálogo, é interessante observar que o termo doutor (ou Seu), comumente<br />
utilizado no Brasil pelas populações menos instruídas como forma de tratamento a uma<br />
pessoa culta, numa situação formal, não aparece no diálogo com o visitante. Além disso,<br />
o tratamento senhor, empregado do início ao fim do romance, não seria usual em nossa<br />
língua num diálogo tão extenso. Na verdade, a forma de tratamento senhor é<br />
praticamente restrita, no país, a situações formais, utilizada por populações com nível<br />
considerável de instrução.<br />
Sob este ângulo, além da dialética entre o jagunço e o letrado, de Walnice<br />
Nogueira Galvão 350 , a partir da leitura de Raízes do Brasil, e do “Famigerado” de<br />
Wisnik – que ao final aponta justamente para a escravidão como a nossa violência mais<br />
348 Idem, p.93.<br />
349 “Só faltou uma conversa.” É com a frase do morador João de Régis sobre a falta de diálogo entre as<br />
autoridades e a população do Arraial de Canudos, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897 – que culminou<br />
no massacre dos sertanejos e na destruição das 5.200 casas por parte do exército brasileiro, após três<br />
expedições derrotadas – que Willi Bolle inicia o seu estudo sobre o Grande Sertão. Cf. BOLLE, W.<br />
(2004) p.17.<br />
350 GALVÃO, W. N. Op. Cit.
íntima e recalcada, nosso passado esquecido – este senhor também pode ser pensado<br />
como designando, em contraste com o jagunço, escravo, o ancestral sinhô, o senhor de<br />
engenho e posses, patriarca desta lavoura arcaica, na dupla conotação do termo, tanto<br />
mítica como rudimentar 351 . Veja-se a forma como, lá pelas tantas, Riobaldo assume o<br />
lugar dos catrumanos, prováveis descendentes de ex-escravos escondidos pelo sertão, e<br />
se dirige ao senhor, como se verá adiante, na estranha língua falada por eles: “Tudo<br />
isto, para o senhor, meussenhor, não faz razão, nem adianta.” 352<br />
Ao revolver desta maneira o fundo de nossa constituição como país, em nossas<br />
miragens das origens, o texto desloca tanto as fantasias ligadas a concepções<br />
idealizadas sobre a origem e a natureza, como as ilusões de Modernidade atreladas à<br />
idéia de um país do futuro. Neste sentido, é que se pode afirmar que o GSV promove<br />
uma lembrança dos “sonhos coletivos” 353 do país, através destes resíduos da história.<br />
Mas, também, inclui o despertar, como algo que torna possível “recordar aquilo que é<br />
mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance” 354 rearticulando o passado em sua<br />
relação com o presente e o futuro.<br />
Portanto, se, por um lado, a crítica atual a uma cultura da memória nos leva a<br />
pensar no engodo de uma super-memória – tal como antecipa Funes, o memorioso 355 ,<br />
personagem de Jorge Luis Borges – o texto crítico de Rosa se faz presente na discussão<br />
em torno da memória coletiva no Brasil (onde a ruína veio antes da construção) e na<br />
América Latina, onde uma política do esquecimento das ditaduras ainda se exerce num<br />
jogo de forças distinto do contexto globalizado, trazendo a necessidade de um discurso<br />
351<br />
Sobre os métodos rústicos utilizados na lavoura brasileira desde a colonização, cf. HOLANDA, S. B.<br />
(1994) p.49. E a respeito da dialética senhor-escravo no GSV à luz de Casa-Grande & Senzala, cf.<br />
BOLLE, W. (2004) p.281-306.<br />
352<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />
353<br />
BOLLE, W. (1994-1995) p.92.<br />
354<br />
BENJAMIN, W. (2007) p. 434. Ainda no texto das “Passagens”, Benjamin propõe o despertar como<br />
um processo: “que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações”, associando-o à<br />
rememoração. Cf. BENJAMIN, W. (2007) p.433.<br />
355<br />
Cf. BORGES, J.L. (2007).
próprio, contrário ao apagamento dos rastros, ou o retirar do esquecimento, ainda em<br />
primeiro plano. Esta associação entre o esquecimento produzido pelo recalque e a<br />
memória histórica se encontra já no próprio Freud:<br />
...É universalmente reconhecido que, no tocante à origem das<br />
tradições e da história legendária de um povo, é preciso levar em<br />
conta esse tipo de motivo, cuja meta é apagar da memória tudo o que<br />
talvez seja penoso para o sentimento nacional. (FREUD, S., 1987b,<br />
p.137).<br />
Sob este viés, o texto de Rosa, situado no entrecruzamento entre o mundo<br />
misturado, o mundo à revelia e ainda o imundo de loucura dos desmandos percebidos<br />
por Medeiro Vaz 356 , se insere na atualidade ao despertar determinadas verdades<br />
adormecidas, por banais que nos pareçam, como: “quem controla o passado, controla o<br />
futuro” 357 . E outras, na verdade nem um pouco fáceis, mas que nos parecem igualmente<br />
íntimas – como a idéia de Marx de que a história se repete: “a primeira vez como<br />
tragédia (na violência da ausência de lei do sertão), e a segunda como farsa” 358 (na lei<br />
da selva, hoje, nas cidades, onde caberia perguntar, se as aparentes antinomias entre a<br />
lei do governo e a lei da bala, por exemplo, não se estabelecem mais do que nunca,<br />
como inseparáveis...).<br />
356 ROSA, J.G. (2001) p. 60.<br />
357 Frase de Orwell em 1984, constante como epígrafe do livro O que Resta da Ditadura, de Edson Teles<br />
e Vladimir Saflate. Cf. TELES, E.; SAFATLE, V. (2010).<br />
358 MARX, K. (s/d).
Dessa volta não lhe dou desenho: o narrador-testemunha 359<br />
E passados muitos e muitos anos, uma vez consumada a fuzilaria do tempo,<br />
ainda assim de alguma forma eu seria um rosto sobrevivente...<br />
CHICO BUARQUE, LEITE DERRAMADO.<br />
Dessa volta, não lhe dou desenho – tudo igual, igual.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA.<br />
Diferentemente da forma o senhor sabe, introdutória de boa parte da memória de<br />
origem coletiva que visa transmitir ao visitante – o que já contém certa ironia, pois é o<br />
jagunço que ensina o senhor sobre sua experiência no sertão: “O senhor sabe? Já<br />
tenteou sofrido o ar que é saudade?” 360 – quando se trata de dar testemunho através da<br />
recordação do que restou do sertão 361 , a frase que Riobaldo repete inúmeras vezes é o<br />
senhor vá: “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá: Alguma coisa ainda encontra.” 362<br />
Neste ponto, já se observam algumas características que nos permitem falar em<br />
testemunho, embora ele se diferencie do que convencionou-se a chamar literatura de<br />
testemunho, surgida das narrativas dos sobreviventes sobre as catástrofes do século XX,<br />
sobretudo a partir de Auschwitz 363 . Pois, aqui, será considerado o testemunho do<br />
359<br />
O termo, sugerido por Susana Kampff Lages a partir do texto apresentado na qualificação desta tese,<br />
em agosto de 2009, é conceituado originalmente pelo crítico e teórico norte-americano Norman Friedman<br />
(1955) em “O Ponto de Vista da Ficção”, como uma categoria de narrador, levando-se em conta quem<br />
narra, como narra, o lugar do narrador, a distância em relação ao texto e ao leitor. Ali, o narradortestemunha<br />
(I as witness): “é um personagem em seu próprio direito dentro da história, mais ou menos<br />
envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na<br />
primeira pessoa (...). Podemos notar aqui que as cenas são apresentadas de modo direto, como a<br />
testemunha os vê.” Isto quer dizer que o narrador insere o leitor diretamente dentro da cena. Cf.<br />
FRIEDMAN, N. (2002) p. 175-176. Note-se, contudo, que, como sempre, o narrador rosiano não se<br />
encaixa muito bem numa única categoria, sobrepondo outras tipologias do próprio Friedman, como a de<br />
narrador-protagonista. Em segundo lugar, esta categoria literária de testemunha não envolve o caráter do<br />
testemunho como intrinsecamente relacionado às catástrofes históricas, que vem a articulá-lo à chamada<br />
literatura de testemunho, e constitui exatamente o centro da presente abordagem de Riobaldo como<br />
narrador-testemunha.<br />
360<br />
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 43.<br />
361<br />
Neste sentido, Márcio Seligmann-Silva concebe o testemunho como uma modalidade de memória. Cf.<br />
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.73.<br />
362<br />
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 47.<br />
363<br />
Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (2003a) p.388.
narrador, ou o narrador como testemunha, tratando-se, portanto, também, de uma<br />
construção fictícia. 364<br />
Como já se começou a delinear, o narrador Riobaldo possui traços pertinentes<br />
aos dois termos em latim para designar o testemunho: testis e superstes 365 . De acordo<br />
com o termo superstes, aquele que sobreviveu a uma catástrofe, o narrador é testemunha<br />
como ex-jagunço, sobrevivente da história do progresso que marcha sobre o sertão, do<br />
sertão em extinção, em ruínas. Sobretudo se pensamos na matança dos jagunços como<br />
metáfora do extermínio em Canudos, sugerida no momento mesmo em que o bando é<br />
pego pelos soldados do governo: “Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o<br />
senhor.” 366 Neste sentido, o testemunho traz uma lacuna, como diz Agamben 367 , ou<br />
“uma tentativa de apresentar uma experiência que resiste a essa apresentação” 368 , que<br />
se sobressái, por exemplo, nos inúmeros questionamentos de Riobaldo sobre a<br />
possibilidade de narração, como na tentativa de contar sobre a travessia do Liso do<br />
Sussuarão: “Como vou achar ordem para dizer ao senhor do martírio...?” 369<br />
Através do imperativo o senhor vá – incitação para conferir diretamente o que o<br />
a fala não pode comunicar – se mostra a referência à precariedade da representação da<br />
experiência pela linguagem, a algo que sempre resta, e que articula o testemunho à<br />
noção de trauma e de real da psicanálise 370 . Mas é com a morte de Diadorim, “a<br />
364<br />
O objetivo de traçar associações entre o testemunho de Riobaldo e elementos da discussão atual sobre<br />
o tema seria mais o de apontar linhas de pesquisa futuras do que aprofundar uma teoria em torno de uma<br />
questão tão complexa que, por si, já configuraria tema único para uma tese. Abordagens da noção de<br />
testemunho na obra de Rosa vêm sendo realizadas recentemente pela crítica, aparecendo nos seguintes<br />
artigos: SELIGMANN-SILVA (2009); CARDOSO, M. R. (2008).<br />
365<br />
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />
366<br />
ROSA, J.G. Op. Cit., p. 317.<br />
367<br />
AGAMBEN, G. (2008) p.42.<br />
368<br />
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />
369<br />
ROSA, J.G., (2001) p. 66.<br />
370<br />
A noção de catástrofe é marcada em Benjamin pela noção de trauma freudiano. Cf. BENJAMIN, W.<br />
(1989). Ambas situam-se na ordem do que não pode ser lembrado nem totalmente esquecido, mas<br />
permanece como um excesso, retornando como sintoma; e desde as teses benjaminianas sobre a história,<br />
há também uma outra leitura do excesso na catástrofe, que se refere à perpetuação da barbárie, do<br />
“inimigo que não tem cessado de vencer”. Cf. BENJAMIN, W. (1986e) p.225.
selvagem desgraça” 371 que se encontra mais claramente a dimensão do testemunho<br />
como tentativa de elaboração do trauma, onde a memória encontra o esquecimento,<br />
visto que a fala de Riobaldo, sempre endereçada a um outro, este senhor que o escuta,<br />
reproduz uma situação de análise, na qual o dispositivo da enunciação “é a<br />
oportunidade de construção de uma narrativa” 372 , sendo o texto comparável “a uma<br />
vereda por onde o mal pode fluir” 373 , onde o lembrar busca paradoxalmente o<br />
esquecimento: ao mesmo tempo reúne e apresenta a impossibilidade de reunir os<br />
pedaços. Isto porque: “Só no branco do esquecimento a imagem pode ser deitada” 374 ,<br />
e não apenas no sentido do esquecimento necessário a uma tentativa de reconstrução da<br />
sua história, mas inversamente, como ainda veremos, porque a narrativa testemunhal de<br />
Riobaldo indica o esquecimento, o silêncio e o vazio como dimensões essenciais do<br />
próprio rememorar, da palavra e da significação 375 .<br />
Em latim, para o testemunho há também o termo testis, que se refere à<br />
testemunha como terceiro, aquele que pode restabelecer a verdade objetiva ou jurídica,<br />
que, no romance, se mostra em fatos que Riobaldo menciona, como o de uma forca<br />
construída para matarem os prisioneiros, por falta de cadeia na região, da qual o<br />
narrador assegura: “eu vi” 376 . Porém, como pontua Seligmann-Silva, no relato de<br />
Riobaldo, as duas vertentes do testemunho mostram-se indissociadas: as coisas que vi<br />
371<br />
ROSA, J.G. Op. Cit., p.173.<br />
372<br />
SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.196.<br />
373<br />
Idem, ibidem.<br />
374<br />
Idem, p.137.<br />
375<br />
Cf. caps. 3 e 4 desta tese. Ainda sobre a existência de uma lacuna ou vazio próprio do testemunho,<br />
Agamben baseia-se no estruturalismo do lingüista Benveniste para explicá-lo do ponto de vista da perda<br />
ou dessubjetivação inerente a todo ato de fala. Resumidamente, o ato de fala comportaria ao mesmo<br />
tempo uma apropriação e uma desapropriação ou perda do sujeito na língua (onde o testemunho torna-se<br />
o lugar por excelência de um estranhamento, de uma não-coincidência, entre o ser vivo e o ser falante),<br />
postulando haver no lugar de um sujeito do testemunho, antes: “um processo ou um campo de forças<br />
percorrido sem cessar por correntes de subjetivação de dessubjetivação”. Em outras palavras, o<br />
testemunho seria também o resto deste encontro mal-sucedido, se estabelecendo num não-lugar<br />
intermediário: “o resto de Auschwitz – as testemunhas – não são nem os mortos, nem os sobreviventes,<br />
nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p. 124; 162.<br />
376<br />
ROSA, J.G. Op. Cit., p.90.
não se separam das coisas que vivi 377 , pois quando testemunha: “vi a morte com muitas<br />
caras” 378 , no meio da batalha da Fazenda dos Tucanos, desconfiado da traição de Zé<br />
Bebelo, o sentido da morte se abisma nas muitas mortes que presenciou, proporcionou,<br />
ou às quais sobreviveu: sozinho, no meio da travessia.<br />
O que restou do sertão, segundo a memória do narrador, são fragmentos da<br />
natureza – mais ou menos aprazíveis – como a cor do céu, “esse é céu azul-vivoso, igual<br />
um ovo de macuco” 379 ; ou o trovão: “Na Serra do Cafundó, ouvir trovão de lá, e<br />
retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode até ser que chore, de medo mau em ilusão,<br />
como quando foi menino.” 380 Mas a natureza, como já se disse, foi marcada na<br />
recordação do narrador por Diadorim, daí a indissociabilidade entre o ver e o viver de<br />
seu testemunho. Também restaram figuras do sertão cotidiano, como vaqueiros,<br />
misturados, do mesmo modo, a crenças e fantasias, ou as “bizarrices” 381 que ele<br />
imagina que interessariam ao forasteiro, e que assinalam tanto o aspecto novamente<br />
subjetivo do relato; como, no nível histórico, a invasão da cidade sobre o campo, que só<br />
consegue enxergá-lo como exótico, fantasioso:<br />
...O senhor vá. (...) Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do<br />
Urucúia – aonde tanto boi berra... (...) cavalo deles conversa cochicho<br />
– que se diz – para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem<br />
mais ninguém mais perto, capaz de escutar. Creio e não creio. (ROSA,<br />
J.G., 2001, p. 47).<br />
Sobram, ainda, as diferentes imagens do Mal, como os brejos entre os rios<br />
Carinhanha e Piratinga: “Dali, para cá, o senhor vem (...) Por lá, sucuri geme. Cada<br />
surucuiú do grosso (...) Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de<br />
mula, arranca ferradura por ferradura.” 382 E – depositário de toda a memória<br />
377 SELIGMANN-SILVA, M. (2009) p.131.<br />
378 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 374.<br />
379 Idem, p.42.<br />
380 Idem, p.43.<br />
381 Idem, p. 42.<br />
382 Idem, p.47.
coletiva, incluindo hábitos, crenças, estórias dos sertanejos – resta o compadre<br />
Quelemén, indicando a figura do narrador, da narrativa, e da transmissão desta memória<br />
como modalidade de resistência ao apagamento deste universo:<br />
Compadre meu Quelemén é um homem fora de projetos. O<br />
senhor vá lá (grifo nosso), na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A<br />
estrela – d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo de<br />
cana. (...) Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – e é ele mesmo, já<br />
risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cúia de<br />
garapa e dá a ele lembranças minhas... (ROSA, J.G., 2001, p. 74).<br />
Outro elemento presente é o caráter fictício do testemunho 383 , evidenciado no<br />
trecho anterior sobre o cochicho dos cavalos, que prossegue numa passagem em que o<br />
narrador começa alertando o visitante (e, com ele, o leitor) sobre a mentira dos outros.<br />
Mas, então, é o seu próprio discurso que se reveste de ambigüidade; fazendo com que,<br />
ali, já não se saiba bem em quem acreditar, principalmente ao considerar-se a lembrança<br />
que o narrador recusa como falsa, estranhamente relacionada a um subterrâneo onde<br />
outrora se torturavam escravos:<br />
...E agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a<br />
fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da casa, por<br />
debaixo dela, socavado no antro do chão – lá judiaram com escravos e<br />
pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para não mentir, lhe digo:<br />
eu nisso não acredito. Reconditório de se ocultar ouro, tesouro e<br />
armas, munição, ou dinheiro falso moedado, isto sim. O senhor deve<br />
de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a baboseira,<br />
dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de<br />
rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas,<br />
depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o<br />
mundo carece disso. Eu acho, que. (ROSA, J.G., 2001, p. 90).<br />
Na medida em que o narrador se depara com a ruína do sertão, o incentivo a<br />
desbravar este espaço se reverte no seu contrário não vá, e é por acreditar que não<br />
restou mais nada que ele desencoraja a viagem do explorador:<br />
383 O teórico aproxima neste artigo o testemunho da ficção, citando Derrida, para afirmar que o<br />
testemunho só existe diante da possibilidade, ao menos, da mentira e da ficção. Cf. SELIGMAN-SILVA,<br />
M. (2009) p.144.
Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de<br />
territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus<br />
motivos. Agora – digo por mim – O senhor vem, veio tarde. (...)<br />
Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.41-42).<br />
Dentre o que foi destruído pela história e restou apenas como fragmento no<br />
discurso, narrativa testemunhal, está a grandeza de chefes como Medeiro Vaz: “raça de<br />
homem que o senhor mais não vê, eu ainda vi” 384 . Além dela, o jaguncismo é extinto;<br />
alguns costumes dos vaqueiros cedem lugar a outros, como as roupas de couro; e até o<br />
gado, domesticado, alude à entrada do progresso e da cidade sobre o sertão:<br />
... Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi<br />
jagunço, por aí, pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam<br />
de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje<br />
de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando<br />
menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de<br />
curraleiro e de crioulo... (ROSA, J.G., 2001, p. 42).<br />
Riobaldo guarda a lembrança e, lamenta melancolicamente o apagamento desta<br />
memória através dos nomes de seus lugares da infância, que são alterados pelo mesmo<br />
processo:<br />
Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá<br />
ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão<br />
alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro<br />
Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-<br />
Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? (ROSA, J.G.,<br />
2001, p.58).<br />
E a Guararavacã do Guacuí, o lugar onde, em meio ao silêncio, ele, já crescido,<br />
admite que além de mandar a morte, também pôde mandar o amor:<br />
384 Idem, p.60-61.<br />
A Guararavacã do Guacuí: o senhor tome nota deste nome. Mas, não<br />
tem mais, não encontra – de derradeiro, ali se chama é Caixeirópolis; e<br />
dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não dava. (...) Agora, o<br />
mundo quer ficar sem sertão... (Grifo nosso). (ROSA, J.G., 2001, p.<br />
305).
Note-se que, no mesmo testemunho do sobrevivente à morte que lhe rondou por<br />
todo lado, que aponta para o inenarrável de sua experiência, podemos ler, no sentido<br />
daquele que viu o mundo querer ficar sem sertão, o depoimento de Riobaldo que atesta<br />
a catástrofe, retirando do esquecimento tanto a paisagem da memória, como o próprio<br />
processo de apagamento deste universo.<br />
Catrumanos, muçulmanos: ecos de outro sertão?<br />
Sofriam a esperança de não morrer.<br />
GUIMARÃES ROSA<br />
O episódio do menino peludo, confundido com um macaco, morto, assado e<br />
comido pelos homens do bando durante a primeira travessia do Liso do Sussuarão; e o<br />
encontro com os catrumanos e o povo do Sucruiú constituem o ápice do quadro de<br />
horrores que Riobaldo testemunha, onde a pobreza atinge a dimensão de catástrofe, que<br />
ele assinala após deixar para trás o povoado do Sucruí, e a visão dos catrumanos:<br />
“Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo.” 385<br />
O encontro com os catrumanos é antecipado da seguinte forma pelo narrador:<br />
“Porque está chegando a hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas” 386 .<br />
Ocorre quando o bando, já chefiado por Zé Bebelo, tendo conseguido cavalos em<br />
Currais-do-Padre, deve pegar munição no local chamado Virgem-Mãe mas, por irônico<br />
engano, é levado para a Virgem-da-Lage, e se perde na “estrada de muitos<br />
cotovelos” 387 , onde não há sinal de ninguém durante três dias de viagem: “nós<br />
estávamos em fundos fundos” 388 . Então, são interceptados pelos catrumanos, que tentam<br />
impedir a passagem até o arraial do Sucruiú, assolado pela varíola.<br />
385 Idem, p.408.<br />
386 Idem, p.397.<br />
387 Idem, ibidem.<br />
388 Idem, 398.
Descritos como um povo reperdido: “Do fundo do sertão” 389 , na mesma fala<br />
que antecede sua aparição, são equiparados ao próprio sertão: “De repente, por si,<br />
quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro, o<br />
próprio, mesmo” 390 . São vistos, portanto, como produzidos por um sertão sujo,<br />
estranho, repugnante:<br />
Para o nosso juízo, eles eram dôidos. Como é que, desvalimento de<br />
gente assim, podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram.<br />
Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem<br />
salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os<br />
catrumanos daquelas brenhas. (ROSA, J.G., 2001, p. 400).<br />
Comparáveis a criaturas, vivendo como os mais primitivos dentre os sertanejos,<br />
à parte de um Brasil que manda lembranças, como bem se observa no recado de Zé<br />
Bebelo – em nova referência aos que são mantidos à margem da história do país:<br />
– “O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido<br />
de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”<br />
– “Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça...”<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 403).<br />
Os catrumanos habitam um limiar de difícil compreensão, no qual a humanidade<br />
dos jagunços, através da voz de Riobaldo, é questionada, da mesma forma como seus<br />
vizinhos, o povo do Sucruiú, doentes e identificados a seres humanos apenas por suas<br />
casas: “coisa humana” 391 :<br />
Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e<br />
as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de<br />
miséria, quase que não possuíam o respeito das roupas de vestir.<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.399).<br />
Embora o caráter documental estrito não constitua o foco desta análise, devido<br />
às impressionantes semelhanças que ultrapassam a homofonia entre os catrumanos e os<br />
muçulmanos dos campos de extermínio nazistas, e também pelo conhecido hábito de<br />
389 Idem, p.406.<br />
390 Idem, p.397.<br />
391 Idem, p.408.
Rosa de coletar e reutilizar palavras pouco conhecidas, como nomes de plantas, animais,<br />
descrição física de lugares, etc., cabe conjeturar sobre esta sombria inspiração para o<br />
termo catrumano, que em português constitui um regionalismo, sinônimo de caipira, e<br />
cuja etimologia – quadrúmano – já aponta um primeiro traço em comum, a condição de<br />
destituição de humanidade à qual ambos são impostos.<br />
Até o momento, não se sabe se o escritor teve acesso ao termo muçulmano, um<br />
jargão dos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial.<br />
Entretanto, no conto “A Velha” – que é considerado um dos que contém elementos de<br />
um diário ainda inédito do escritor, conhecido como Diário de Hamburgo 392 , escrito em<br />
parte em alemão, parte em português, entre 1938 e 1942, quando o escritor esteve como<br />
cônsul adjunto na Alemanha – Rosa narra, em meio ao “espírito de catástrofe, em<br />
tempo tão ingeneroso” 393 de uma Alemanha pré-guerra, um dos atendimentos à<br />
multidão de judeus que procurava o consulado brasileiro na tentativa de sair do país<br />
(“Vê-los, vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rouco, raivoso.” 394 ); no qual lhe<br />
foram descritos em detalhes as “hitlerocidades, as trágicas técnicas, o ódio abismático,<br />
os judeus trateados” 395 dos campos nazistas, tornando plausível a intencionalidade<br />
desta associação, além da evidente semelhança encontrada no texto.<br />
O fato é que os catrumanos encarnam, no texto, a alteridade de uma condição<br />
ainda mais vil e abjeta que a dos sertanejos e jagunços já tão sofridos na mesma<br />
392 Os outros contos, todos publicados em Ave Palavra, seriam: “o Mau Humor de Wotan”, “A Senhora<br />
dos Segredos”, e “Homem, Intentada Viagem”, e trazem como cenário a Alemanha durante a Segunda<br />
Guerra. Cf. ROSA, J.G. (1970). Conforme destacou a pesquisadora Eneida Maria de Souza, uma das<br />
organizadoras da edição do diário, em todos eles há material do Diário de Hamburgo. Cf. SOUZA, E.<br />
(2008). Segundo Reinaldo Marques, outro dos organizadores da edição ainda não publicada do diário, no<br />
excelente ensaio “Grafias de Coisas, Grafias de Vidas”, uma espécie de genealogia da trajetória do<br />
documento, o diário contém uma diversidade de registros, entre os quais registros de palavras em várias<br />
línguas, listas de livros na estante, de temperos da cozinha alemã, roteiros de viagem, relatos de visita ao<br />
zoológico, descrições de paisagens, do clima, e colagens, onde têm destaque notícias da guerra, em<br />
recortes do jornal do Partido Nazista. Cf. MARQUES, R. (2009).<br />
393 ROSA, J.G. (1970) p.110.<br />
394 Idem, p.108.<br />
395 Idem, ibidem.
proporção em que os muçulmanos, os prisioneiros judeus que não resistiram aos campos<br />
de extermínio nazistas, conforme o livro de Agamben nos lembra 396 . Segundo o relato<br />
dos sobreviventes, dentre os quais tem destaque o de Primo Levi, o termo designava<br />
tanto um quadro clínico de desnutrição intensa, quanto uma condição, para uns,<br />
marcada pela perda da dignidade, para outros da consciência, ou ainda da capacidade de<br />
resistir às inumanas condições.<br />
Em que pese a precariedade de definições para o que se considerava impensável,<br />
o que importa é que, nos campos, eles eram facilmente identificáveis como a imensa<br />
maioria que sucumbia rapidamente, produzidos pelo experimento do campo, num<br />
estado aparente de um puro sobreviver; um “semiviver” 397 nas palavras de Rosa, ao qual<br />
se sucedia uma morte rápida. Sobrevivência na qual o limite entre a vida e a morte,<br />
entre o humano e o inumano, põe em xeque a própria idéia de estabelecer um limite:<br />
“Para Levi, o muçulmano é, antes, o lugar de um experimento, em que a própria moral,<br />
a própria humanidade são postas em questão” 398 .<br />
Situados num limite do que o humano pôde suportar, representando o pior do<br />
pior, por isso mesmo ambos desencadeiam reações de repulsa, tanto por parte dos<br />
jagunços, como dos prisioneiros dos campos. Da íntima semelhança com este alter, que<br />
a qualquer momento pode passar a ser o mesmo, da indesejada e a todo tempo recalcada<br />
equivalência, adviria a inquietante estranheza, conforme ensina Freud em “O<br />
Estranho” 399 . A repulsa é confirmada por um dos sobreviventes citados por Agamben:<br />
O estágio do muçulmano era o terror dos internados, pois nenhum<br />
deles sabia quando tocaria também ele o destino de muçulmano,<br />
396 Cf. AGAMBEN, G. (2008).<br />
397 Em “A Velha”. Cf. ROSA, J.G. (1970) p.109.<br />
398 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.70.<br />
399 FREUD, S. (1988b). Ainda sobre as tentativas de encobrir esta condição, em Agamben: “Por isso, a<br />
preocupação mais insistente do deportado consistia em esconder as suas enfermidades e as suas<br />
prostrações, em ocultar incessantemente o muçulmano que ele sentia aflorar em si mesmo por todos os<br />
lados.” Cf. AGAMBEN, G. (2008) p.59.
candidato certo para as câmaras de gás ou para qualquer outro tipo de<br />
morte. (LANGBEIN, H. Apud. AGAMBEN, G., 2008, p.59).<br />
Também para Riobaldo, os catrumanos eram difíceis de serem olhados: “Ossos<br />
e queixos” 400 ; ou de se fazerem entender, falando uma língua igualmente estranha,<br />
onomatopaica, cheia de “s”: “Ossenhor utúrge, mestre...” 401 . Despertavam o riso dos<br />
jagunços, mas Riobaldo expressa por eles, além da estranheza que perpassa todo o<br />
encontro, um misto de pena e medo:<br />
...Aqueles catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia<br />
deixar de pensar neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado<br />
sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar<br />
minhas armas, as coisas e minhas roupas. (...) Draste eu duvidava<br />
deles. Duvidava dos fojos do mundo... (ROSA, J.G., 2001, p. 405).<br />
Equiparam-se, uma vez mais, muçulmanos e catrumanos, em sua posição central<br />
no campo: de um lado, aquele que “viu a Górgona” 402 , a cabeça de serpentes da<br />
medusa, que produzia a morte, e “chegou ao fundo” 403 , testemunhando a<br />
impossibilidade de ver e testemunhar, ocupando o lugar, de acordo com Primo Levi, de<br />
testemunhas integrais 404 . De outro, produzidos pelo “fundo do sertão”, os catrumanos<br />
representam a “multidão sem rosto e sem especificidade” 405 , a quem o narrador-<br />
testemunha tenta dar rosto e voz.<br />
400 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 401.<br />
401 Idem, ibidem.<br />
402 AGAMBEN, G. Op. Cit., p.61.<br />
403 Idem, ibidem.<br />
404 Idem, p.67.<br />
405 PENNA, J. C. (2005) p.46.
Um outro cortejo<br />
O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.<br />
WALTER BENJAMIN<br />
Quando eu morrer<br />
cansado de guerra<br />
morro de bem com a minha terra:<br />
cana, caqui:<br />
inhame abóbora<br />
onde só vento se semeava outrora<br />
Amplidão, nação, sertão sem fim<br />
Ó Manuel, Miguilim<br />
Vamos embora.<br />
CHICO BUARQUE DE HOLANDA, Assentamento.<br />
Se a narrativa nasce da morte e opõe à historiografia uma outra história, nesta<br />
reescrita têm lugar os esquecidos da história. Contudo, além do cortejo triunfal dos<br />
vencedores da história, Benjamin aponta na obra do escritor russo Leskov – tomado<br />
como modelo de uma narrativa que coloca o tempo em movimento, na transmissão da<br />
memória e tradição do narrador ao ouvinte, um retorno ao passado, mas uma recriação<br />
da memória no presente e uma retransmissão às gerações futuras – a existência de um<br />
cortejo dos justos, definidos como figuras ligadas ao mundo arcaico, à redenção, e ao<br />
maternal, que representariam a “sabedoria, a bondade e o consolo do mundo” 406 ,<br />
corporificando-se como porta-vozes das criaturas mais abjetas e insignificantes.<br />
A idéia do justo, nesta perspectiva, vem enfatizar o potencial da narrativa na<br />
recriação da memória e na oposição à marcha dos vencedores da história, na medida em<br />
que, se há em jogo uma política do apagamento dos rastros de determinada memória,<br />
esta pode ressurgir, como resíduo, fragmento, em nova composição narrativa. Mesmo<br />
considerando que, atualmente, só se possa falar na figura do narrador ou da narrativa<br />
como aquele que comparece como ausente, em extinção: pois é deste outro lado – deste<br />
fim que coincide com a origem – que se pode testemunhar a barbárie:<br />
406 BENJAMIN, W. (1986d) p. 216.
O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se<br />
desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na<br />
qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo, ou como<br />
retardatária miserável. (BENJAMIN, W., 1986d, p.210).<br />
Um dos justos citados em Leskov é hermafrodita e assexuado, fazendo pensar<br />
em Diadorim, que, apesar de movido pelo ódio e pela vingança, demonstra compaixão<br />
pelos oprimidos, como na travessia de volta do Liso do Sussuarão, onde protege a mãe<br />
do menino morto e assado pelos jagunços. As figuras femininas são, por todo o texto,<br />
comparáveis à mãe de Riobaldo que, tendo criado seu filho solteira, é lembrada por ele<br />
como alguém que concentrou uma dupla função, de um amor maternal compreensivo e<br />
de uma autoridade que lhe colocou limites 407 : “A bondade especial de minha mãe tinha<br />
sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no<br />
punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias.” 408 As mulheres representam,<br />
para Riobaldo, ora uma mediação ao desmedido da guerra sem fim dos homens do<br />
sertão, ora uma saída ou diferença em relação ao universo do ódio, que ele enxerga no<br />
erotismo da prostituta Nhorinhá: “A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá<br />
puta e bela” 409 .<br />
Outra versão feminina de uma generosidade superior pode ser identificada na<br />
cartomante Ana Duzuza, que oscila entre a figura do justo, “naquele sertão essa dispôs<br />
de muita virtude” 410 ; e a mais abjeta das criaturas: “Raspava a rapadura com a quicé,<br />
ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; ou, se não, segurava o naco,<br />
rechupando, lambendo. A gente engrossava nôjo, salivava.” 411 A cartomante é salva<br />
407 ROSENFIELD, K. (2006) p.264-273.<br />
408 ROSA, J.G. (2001) p.57.<br />
409 Idem, p. 327.<br />
410 Idem, p. 49.<br />
411 Idem, p.53.
por Riobaldo precisamente quando ele alega ser seu filho, contrapondo-se ao desejo de<br />
matar de Diadorim 412 .<br />
Além da feminilidade, o que torna interessante esta leitura benjaminiana é que a<br />
figura do justo não consiste num personagem propriamente dito, mas pode deslizar<br />
numa cadeia que vai do justo “até os abismos do inanimado” 413 . Pois, “como ninguém<br />
está à altura desse papel, ele passa de uns para outros.” 414 Sendo assim, se no “topo”<br />
da hierarquia está Riobaldo, no extremo oposto estão os catrumanos, situados no “ponto<br />
em que, para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade” 415 .<br />
Riobaldo, que termina a história como o pacificador do sertão, assume sua face de justo<br />
nos momentos em que, apesar de jagunço, demonstra sua empatia pelos oprimidos: “E<br />
eu tinha receio que me achassem de coração mole, (...) que tinha pena de toda cria de<br />
Jesus”. 416 Da mesma forma, ao deixar o povoado do Sucruiú, ele fala em salvação,<br />
sonhando em sair dali levando todos consigo (todos, menos o Hermógenes, remarque-<br />
se): desde Diadorim e Zé Bebelo, até os catrumanos e o povo doente do arraial<br />
vizinho 417 .<br />
A noção de alegoria, para Benjamin associada como método do drama barroco<br />
alemão 418 , abre diversas perspectivas à imagem do justo na escrita de Rosa. A palavra<br />
alemã Trauerspiel (traduzida por drama barroco) traz em si o conflito entre luto<br />
412<br />
Uma coincidência biográfica não pode deixar de ser mencionada: no período em que Guimarães Rosa<br />
e sua esposa Aracy trabalharam juntos no consulado brasileiro em Hamburgo, expediram centenas de<br />
vistos a judeus que fugiam da perseguição alemã. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa teve, inclusive, seu<br />
nome gravado no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, obtendo o título dos “Justos<br />
entre as Nações”, que homenageia os não-judeus que ajudaram a salvar judeus durante o holocausto.<br />
413<br />
BENJAMIN, W. (1986d) p. 217.<br />
414<br />
Idem, p.218.<br />
415<br />
Idem, p.219.<br />
416<br />
Idem, p.186.<br />
417<br />
Benjamin associa a idéia do justo a um princípio religioso grego, a apocatastasis, que designa a<br />
salvação de todas as almas ao Paraíso, embora em seu texto se acrescente uma conotação política, onde a<br />
salvação é pensada através da narrativa, da figura mesmo do narrador: “Salvos, como nos contos de<br />
fadas”. Cf. BENJAMIN, W. (1986d) p.216.<br />
418<br />
Cf. BENJAMIN, W. (1984).
(Trauer) e jogo (Spiel) 419 , consistindo na arte de dizer uma coisa através de outra, revela<br />
que o sentido está perdido, mas engendra a possibilidade de novos sentidos a partir da<br />
morte e da perda. Assim é composto o texto do GSV: com os restos de tudo que sobrou<br />
da história oficial, as ruínas e resíduos da história, o artista construiria um outro sertão.<br />
A grande diferença entre o símbolo e a alegoria é a temporalidade, pois –<br />
diferentemente do símbolo, que pressupõe relação atemporal e imediata entre a imagem<br />
e o conceito – a alegoria contém em si a temporalidade histórica, a dialética, o<br />
movimento. Por tratar-se de uma substituição, pode ser pensada como uma metáfora ou<br />
imagem perpassada de ruína e morte, pois o que está desde sempre perdido é o referente<br />
ou o objeto, tornando a relação com o referente sempre mediada pela linguagem 420 . A<br />
alegoria se refere à impossibilidade de reunir os pedaços, e ao mesmo tempo a esta<br />
colagem ou mosaico.<br />
A partir desta concepção de alegoria como concernente à dialética, vai se<br />
tornando claro, também, que a imagem alegórica mais próxima deste cortejo dos justos,<br />
oposto ao cortejo triunfal do progresso, é a do próprio bando de jagunços, em sua<br />
errância sem fim pelo sertão, em busca de justiça, deparando-se pelo caminho com os<br />
outros desvalidos da história... Principalmente no último bando, quando, à frente do<br />
cortejo e ao lado do chefe Urutú Branco são postos um cego (Borromeu) e uma criança<br />
(o pretinho Guirigó). Imagem dialética e poética que une, na figura do jagunço de uma<br />
terra-sem-lei, o justo e o justiceiro, o pedido por justiça e o ato, quase sempre violento,<br />
do fazer justiça com as próprias mãos, reunindo também no mesmo bando os jagunços e<br />
os mais frágeis representantes da população.<br />
O cortejo tem lugar num sertão onde, como afirmou Heloísa Starling 421 , desde<br />
Medeiro Vaz, o rei dos gerais – que se despojou de todos os bens, família, casa, tudo<br />
419 GAGNEBIN, J.M. (1994) p.45.<br />
420 Cf. BENJAMIN, W. (1986g).<br />
421 STARLING, H. (1999).
que o prendia a uma identidade particular – todos os chefes repetem, em vão, a mesma<br />
tentativa de refundar uma lei a partir do nada, (como em Canudos, fundar uma outra<br />
sociedade) e todos fracassam no “sonho de um só” 422 . Os bandos seguem seu cortejo<br />
num sertão destituído de tudo, compondo uma alegoria, pais-agem onde desfilam, lado-<br />
a-lado, a ruína e o progresso.<br />
Neste deslocamento incessante, se movem os dois extremos da história do país, a<br />
barbárie e a redenção. É o que ocorre, por exemplo, no julgamento de Zé Bebelo pelos<br />
jagunços, quando cada um dos envolvidos toma a palavra para refletir sobre o crime, a<br />
culpa e a justiça, e cuja sentença final se define pelo seu exílio do sertão, destoando do<br />
costume local de simplesmente matar os inimigos. Ali, tem lugar um dos momentos<br />
intermediários entre a lei da bala e a lei do governo, onde ambas se deslocam, e o que<br />
se insinua é a possibilidade de construção de uma lei outra, terceira em relação ao<br />
conflito originário.<br />
Através destes múltiplos desdobramentos de imagens, dá-se a perceber o<br />
potencial da narrativa, da linguagem; que pode advir da morte e retornar a ela, mas<br />
engendra a vida em sua proliferação de sentidos, fazendo vislumbrar, a partir dos<br />
resíduos, uma outra vida possível. Aqui, uma palavra se destaca, novamente seguindo<br />
Benjamin: o entrecruzamento. Pois, se o tecido da memória é infinito, e o texto se<br />
constrói como o que tece o rememorar através da trama da narrativa, a eternidade a que<br />
se refere à memória involuntária de Proust, localiza-se numa camada mais profunda que<br />
a memória, que, para Benjamin, não é a do tempo infinito, idealista e mítico, mas a do<br />
tempo-de-agora, tempo entrecruzado, por vezes chamado tempo imemorial 423 .<br />
Esta encruzilhada dos tempos, tempo-de-agora ou tempo imemorial, isso que<br />
Benjamin aponta em Proust – e nós lemos, aqui, agora, no tempo-sobre-tempo de “Os<br />
422 Idem, p.63.<br />
423 Cf. BENJAMIN, W. (1986a) p.40; cap.4 desta tese.
Cimos” 424 – é também demonstrado como capaz de ser entrevisto na pintura, é o que<br />
Benjamin afirma numa aparentemente singela nota de rodapé sobre a presença do olhar<br />
diante da multidão das cidades recém-crescidas na Europa, no impressionismo de<br />
Monet 425 . Porém, ressalte-se, se o tempo entrecruzado é definido a partir do salto do<br />
tigre em direção ao passado, como aquilo que pode apontar algo simples na origem,<br />
revela também o seu caráter imemorial, que igualmente não será o da origem<br />
cronológica, pois lá, a lembrança encontra-se como enigma, impossível de ser<br />
recuperada por confundir-se com a própria origem.<br />
Deste modo, o trabalho da memória e do esquecimento tecidos no texto<br />
constituem algo que passa por, mas também ultrapassa a melancolia. Retomando o<br />
primeiro e o último conto de Primeiras Estórias 426 ; se, no primeiro, trata-se de uma<br />
alegria às margens (melancolia das coisas, mas alegria da vontade, diz Wisnik 427 ), em<br />
“Os Cimos” justamente se trata do inverso afastamento da melancolia contida no<br />
primeiro, que percebemos como o impulso de felicidade do rememorar (ensaio de<br />
Benjamin sobre Proust) 428 .<br />
A rememoração e a narrativa envolvem, portanto, algo que Benjamin não cessa<br />
de repetir e Guimarães Rosa não se detém em realizar, chegando até a falar sobre isso<br />
em entrevistas, onde novamente aparece a imagem do infinito (“a travessia para a<br />
424 ROSA, J.G. (1988).<br />
425 O que parece se inscrever em primeiro plano no texto “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” é a<br />
experiência de choque diante da multidão emergente das cidades européias no séc. XIX, como um dos<br />
temas que fundam sua poesia como eminentemente moderna. Contudo, nesta nota, Benjamin nos brinda<br />
com nada menos do que este exemplo de como a obra de arte pode expressar imagens visuais não<br />
exatamente sobre estas distintas sobreposições do tempo, mas do olhar sobre elas, um olhar que<br />
materializa o novo tempo das cidades e que se superpõe à experiência pré-industrial anterior a ela. Pois o<br />
filosofo “lê” o tumulto das manchas de tinta da pintura como “reflexo das experiências tornadas<br />
familiares aos olhos dos habitantes das grandes cidades. Um quadro como a Catedral de Chartres, de<br />
Monet, que parece um formigueiro de pedras, poderia ilustrar esta suposição”. Cf. BENJAMIN, W.<br />
(1989) p.123.<br />
426 ROSA, J.G. (1988).<br />
427 WISNIK, J.M. (2002) p.181.<br />
428 BENJAMIN, W. (1986a) p.38-39.
solidão que equivale ao infinito” 429 , infinito da felicidade), e que podemos situar nesta<br />
imagem da travessia, que também pode ser a travessia do fantasma, pensada tanto na<br />
dimensão do trabalho da rememoração, no atravessamento do trauma, como no processo<br />
da escrita: uma travessia da palavra.<br />
429 LORENZ, G. (1983) p.73.
Escute meu coração, pegue no meu pulso.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA
III. TRAVESSIA, MELANCOLIA E <strong>ESQUECIMENTO</strong><br />
Vida inquieta, inquietante estranheza<br />
...Mas escrever a vida é outra história.<br />
Inacabamento.<br />
PAUL RICOUER<br />
“A vida não fica quieta” 430 diz o narrador do conto “Antiperipléia”, um bem-<br />
humorado guia de cegos – mas poderia perfeitamente ser uma frase de Riobaldo, tal o<br />
volume e a intensidade de sua fala quando decide contar suas memórias a seu hóspede,<br />
na fazenda São Gregório, herdada por ele do padrinho Selorico Mendes. Na visita que<br />
era para durar, no mínimo três dias, conforme ele pede ao senhor, não se sabe ao certo<br />
qual a duração do estranho diálogo.<br />
O que chama a atenção nas mais de seiscentas páginas escritas sem uma única<br />
pausa, em parágrafos sucessivos, sem nenhum capítulo ou qualquer outra divisão formal<br />
que interrompa o texto, é este efeito de um jorro da memória, comparável ao furor com<br />
que Benjamin descreve a obra de Proust em seu ensaio sobre o escritor, sobretudo<br />
quando o pensador assinala, neste excesso, a discrepância entre a vida e a poesia,<br />
definindo, ali, o texto como tecido da rememoração 431 .<br />
Entretanto, conforme vimos, se o narrador fala a partir da morte, esta também<br />
engendra a vida como aquilo faz falar e que gera a narrativa; pulsão nomeada por<br />
Seligmann-Silva (à maneira de Benjamin e Freud) em “Narrar o Trauma”, como a<br />
“pulsão testemunhal” 432 . No ensaio, o autor compara a narrativa testemunhal à cena<br />
psicanalítica, destacando o potencial do testemunho de, ao dirigir-se a um outro,<br />
estabelecer novas associações e temporalidades, em que pese o aspecto da<br />
430 ROSA, J.G. (1985) p.19.<br />
431 BENJAMIN, W. (1986a) p. 49.<br />
432 SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.70.
irredutibilidade do trauma 433 . Em “Sobre a Escova e a Dúvida”, um dos quatro prefácios<br />
de Tutaméia, Guimarães Rosa dá testemunho sobre a origem da obra como uma força<br />
estranha ao próprio autor:<br />
... Quanto ao <strong>GRANDE</strong> <strong>SERTÃO</strong>: <strong>VEREDAS</strong>, forte coisa e comprida<br />
demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido<br />
– por forças ou correntes muito estranhas. (ROSA, J.G., 1985, p.175).<br />
Sem dúvida, muita estranheza perpassa o texto. Especificamente, o que<br />
caracteriza a rememoração de Riobaldo como distinta de qualquer outra narrativa de<br />
memórias é, a princípio, a sua forma de um diálogo, onde só um fala. Mas, o que vem a<br />
ser uma fala? “O que distingue uma fala de uma gravação de linguagem?” 434 , pergunta<br />
e emenda Lacan: “Falar é antes de mais nada falar a outros”. A estrutura do texto,<br />
construída na forma da mensagem (que, contudo, é diferente de comunicação)<br />
endereçada a este alguém de fora, um outro que escuta, silencioso, permite a<br />
comparação do texto com uma situação de análise:<br />
...Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das<br />
coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo<br />
mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho<br />
assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo<br />
proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o<br />
que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais<br />
de si. Para isso é que o muito se fala? (ROSA, J.G., 2001, p.55).<br />
A alteridade deste desconhecido em relação a esta fala-narração é bem marcada,<br />
ele é o único personagem sem nome da história, a quem Riobaldo chama de senhor, o<br />
que já proporcionou interpretações desta figura como sendo a do próprio escritor, por<br />
sua estampa culta e viajante, e até mesmo o próprio leitor, devido às incessantes<br />
incitações do narrador para que ele participe na produção dos sentidos da narração,<br />
433 (Sobre a narrativa): “Conquistar essa nova dimensão equivale a sair da posição do sobrevivente para<br />
voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral...” Cf.<br />
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) p.69.<br />
434 LACAN, J. (2008) p.48.
espondendo às suas indagações e aos vazios de sentido textuais: “O senhor pense, o<br />
senhor ache. O senhor ponha enredo” 435 . Entretanto, assim como em Freud, a<br />
estranheza parece advir muito mais da sua continuidade com uma condição de<br />
intimidade, do “amigo-estranho” do que a um caráter de pura exterioridade 436 :<br />
inquietante familiaridade, como corrige João Camillo Penna 437 , é o que faz desta fala<br />
um falar consigo mesmo.<br />
Através da definição de Schelling, o Estranho é associado por Freud a um ao que<br />
retorna do recalcado: “Unheimlich é o nome de tudo o que deveria ter permanecido...<br />
secreto e oculto mas veio à luz” 438 . De fato, a narrativa de Riobaldo reenvia a todo<br />
tempo ao campo do inconsciente, à procura por narrar uma memória não-sabida: “Me<br />
lembrei do não-saber” 439 . Não-saber que vai se constituindo a partir da suposição de<br />
saber a este Outro, reafirmada o texto inteiro na forma de: o senhor sabe. Ao contar sua<br />
história, o narrador endereça, transfere a seu ouvinte-leitor esta sua verdade não-sabida:<br />
“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do eu, a minha<br />
verdade.” 440 Sua fala faz apelo a este saber inconsciente – de acordo com Lacan, a esse<br />
algo “que fala no sujeito, além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não sabe, e diz<br />
sobre isso mais do que crê” 441 – como se estivesse numa situação de análise: “Conto ao<br />
435 ROSA, J.G. (2001) p.325.<br />
436 O argumento de Freud é o de que o significado da palavra heimlich “se desenvolve na direção da<br />
ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich”. Das várias matizes de sentido<br />
de heimlich: familiar, doméstico, íntimo, secreto, oculto, inquietante, estranho (pouco usado); haveria<br />
um ponto em que o íntimo, secreto e oculto deriva para levemente assustador, inquietante, e se torna<br />
unheimlich. FREUD, S. (1988b) p.244. De acordo com Luiz Hanns, entretanto, o termo estranho em<br />
português possui um sentido de exterioridade, alteridade (sinônimo de forasteiro), inexistente em alemão,<br />
o que não nos impede de constatá-lo como um dos sentidos presentes no texto, o que o aproxima da<br />
figura do psicanalista. Cf. HANNS, L. (1996) p.234.<br />
437 PENNA, J.C. (2003) p.96.<br />
438 FREUD, S. (1988b) p. 243.<br />
439 ROSA, J.G. (2001) p.303.<br />
440 Idem, p.616.<br />
441 LACAN, J. (2008) p.54.
senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não<br />
sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba” 442 .<br />
Por isso, pode-se considerar a presumida motivação da rememoração ligada à<br />
carência de que o bom seja apartado do ruim como situada no plano do discurso<br />
manifesto, pedido endereçado ao analista-senhor para que responda e resolva. Mas, ao<br />
pedido e à pergunta se sobrepõe algo, numa latência, que impulsiona a narrativa e a<br />
memória em direção às coisas obscuras, o que o próprio narrador também percebe com<br />
o tempo: “Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver<br />
essas águas, o lume da lua...” 443 Vê-se, então, que a recordação se move menos no<br />
sentido de um esclarecimento – embora Riobaldo resista, a princípio, – o rememorar e o<br />
contar se deslocam em direção ao sombrio – o estranho – das coisas.<br />
E como num processo de análise, se esta fala traz demanda de respostas e<br />
soluções, também formula um desejo em aberto, dos pastos que carecem de fechos;<br />
Riobaldo, parafraseando o título de Vladimir Safatle 444 , tem paixão pelo negativo, gosta<br />
do que não compreende: o sertão está além do seu entendimento, ele tenta aprender com<br />
Quelemén a recordar a sobre-coisa, e com Diadorim, a sua neblina – a personificação<br />
da obscuridade – admite desejar o impossível:<br />
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos<br />
dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até<br />
que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me<br />
adoecido, tão impossível. (ROSA, J.G., 2001, p. 62).<br />
Em outras palavras, há o pedido de “quero todos os pastos demarcados” 445 ,<br />
endereçado ao senhor através das várias perguntas: “Mas não diga que o senhor,<br />
442 ROSA, J.G. (2001) p.245.<br />
443 Idem, p. 325.<br />
444 SAFATLE, V. (2006).<br />
445 ROSA, J.G. (2001) p.237.
assiado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço!” 446 , há o apelo<br />
pela norma dum caminho certo que desfaça a mistura do mundo:<br />
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma<br />
só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que<br />
sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho<br />
certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem –<br />
mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; (...) Mas, esse<br />
norteado tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo<br />
sempre o confuso dessa doidera que é... (ROSA, J.G., 2001, p.500).<br />
No entanto, um pedido mais fundamental se sobrepõe ao primeiro: “Me dê um<br />
silêncio. Eu vou contar” 447 , pedido de escuta do que não está no dito, da palavra como<br />
instrumento, mas no sobredito, pulsão, busca pelas outras palavras: “Escute meu<br />
coração”, pegue no meu pulso” 448 – pedido que comove uma outra busca, relacionada<br />
com o desejo, ainda presente, por Diadorim; mas fundamentalmente com a questão da<br />
ausência, do Mal ou da negatividade sob todas as suas formas, com as lacunas e vazios<br />
deixados para que sejam tecidos, conforme ele provoca: “O senhor fia?(...). O senhor<br />
tece?” 449 “O senhor sente?” 450 . Ou, simplesmente, para que sejam deixados em aberto,<br />
para que se admita o nada, o silêncio como fim, retorno e origem da rememoração e da<br />
criação, da narrativa.<br />
Quanto a saber se houve pacto ou não, se o diabo existe e não existe, a questão é<br />
formulada de início numa dimensão filosófica, relacionada ao gosto por especular idéia,<br />
do Mal que verte e reverte no bem: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem,<br />
446 Idem, p.26.<br />
447 Idem, p. 609.<br />
448 Idem, p.601.<br />
449 Idem, p.201.<br />
450 Idem, p.200. É preciso fazer uma ressalva, aqui, pois mesmo estas perguntas aparentemente<br />
endereçadas ao senhor são construídas de uma forma aberta, insolúvel, e o silêncio do senhor como<br />
resposta também as distanciam de perguntas comuns, apontando para a diferença entre o caráter<br />
artístico do texto e uma situação analítica (embora o silêncio do analista seja justamente uma das<br />
condições fundamentais para se estabeleça uma análise, como veremos), pois o primeiro, ao se<br />
estabelecer em formas elaboradas abertas, plurais, atinge o inconsciente do leitor, provocando a<br />
construção de novas respostas. A esta abertura se deve o alcance universal da obra de arte, uma<br />
distinção importante em relação à forma “fixa” do sintoma neurótico. Sobre isto, cf. PERRONE-<br />
MOISÉS, L. (1990) p.120.
os crespos do homem – ou é o homem arruinado, o homem dos avessos” 451 . No decorrer<br />
do texto, a indagação vai sendo subjetivada, assumindo a forma da culpa diante da<br />
morte de Diadorim: “E o diabo não há! Nenhum. É o que eu tanto digo. Eu não vendi<br />
minha alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada” 452 .<br />
Entretanto, há também em relação à questão do demo um retorno freqüente à<br />
dimensão do Mal como inominável, inapreensível, em meio mesmo à travessia da<br />
questão do pacto (levando-nos a pensar em novas dessubjetivações), o que faz com que<br />
o trabalho da rememoração seja fundado sobre e deslocado para esta negatividade,<br />
afinal as coisas importantes se situam num plano não totalmente redutível à<br />
rememoração, o que a faz desenrolar-se permanentemente em busca do valor das outras<br />
coisas. Ao falar em saudade como motor da busca, portanto, é preciso retomar a<br />
distinção entre a saudade da idéia e a saudade do coração, pois esta saudade não é<br />
somente a nostalgia consciente do que passou, mas algo que concerne ao inconsciente (à<br />
toda parte que coincide com a nenhuma) que move o desejo de rememorar e contar sua<br />
história, como a tristeza sem razão de motivo, pois determinada pelo não-sabido:<br />
“Apertou aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo” 453 .<br />
A selvagem desgraça, ainda.<br />
Aqui a estória se acabou.<br />
Aqui a estória acabada.<br />
Aqui a estória acaba.<br />
Pensar em Diadorim como signo maior da negatividade no enredo é diferente de<br />
dizer que a rememoração é movida pelo desejo ou pelo amor de Riobaldo em relação a<br />
Diadorim, pois o que move ou pulsa é suposto situar-se além ou aquém da<br />
rememoração, da compreensão e da representação, podendo-se indagar se o próprio<br />
caráter de proibição deste amor não funcionaria como motor de um desejo louco para<br />
451 Idem, p.26.<br />
452 Idem, p.500.<br />
453 ROSA, J.G. (2001) p.304.
alguém tão atraído pelo lume da lua como Riobaldo 454 : “às loucas, gostasse de<br />
Diadorim” 455 .<br />
A despeito disso, o amor por Diadorim mantém-se como aquilo que não passa,<br />
marcando toda a rememoração de Riobaldo – desde o primeiro encontro com o menino<br />
Reinaldo, na juventude: “Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como<br />
eu ia poder deslembrar?” 456 ; ao reencontro, quando o jovem Riobaldo decide se juntar<br />
aos jagunços de Medeiro Vaz, e o reconhece como “o que atravessou o rio comigo,<br />
numa bamba canoa, toda a vida” 457 , e cujo caráter de permanência no tempo é<br />
sintetizado poeticamente no sorriso de Reinaldo, tal como o narrador o recorda: “E<br />
como ele sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo” 458 . Deste modo, o<br />
amor por Diadorim no presente da narrativa atravessa o rememorar, manifestando-se<br />
quando o ex-jagunço reconta sua história ao visitante, levando-o a conjugar os verbos<br />
relembrar e amar: “Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não<br />
me ouça.” 459<br />
Por outro lado, na dimensão em que representa o grande mistério para Riobaldo,<br />
em sua esquisitice, em seu gosto pelo silêncio, em seu enigma não revelado, no conflito<br />
que o faz sentir e que ele busca compreender: “Acho que eu tinha de aprender a estar<br />
alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no menino pensava, eu acho<br />
que” 460 , compreender a si próprio – também se pode considerar este um dos<br />
movimentos da rememoração, que se acrescenta às diversas culpas, seja por associar o<br />
amor por outro homem ao demo: “... o amor assim pode vir do demo? (...) Peço não ter<br />
454 Ao diferenciar o objeto do desejo do objeto da pulsão, Lacan fala, deste último exatamente como os<br />
desejos loucos, vazios, como os decorrentes de uma simples proibição. Cf. LACAN, J. (2008b).<br />
455 ROSA, J.G. (2001) p. 55.<br />
456 Idem, p. 120.<br />
457 Idem, p.154.<br />
458 Idem, ibidem.<br />
459 Idem, p.56.<br />
460 Idem, p.126.
esposta; que, senão, minha confusão aumenta” 461 . Ou, por não ter se antecipado ao<br />
acontecimento da morte: “Como foi que não tive um pressentimento?” 462<br />
Entretanto, além desta dimensão de elaboração e do trauma e reconstrução da<br />
história, há outra dimensão da rememoração se refere a um nível concebido por Freud<br />
como “tendências mais primitivas (...) e independentes” do princípio do prazer 463 , que<br />
vêm a caracterizar a pulsão de morte. Em termos lacanianos, tanto formulações como o<br />
não assimilável do trauma 464 , como a do real que retorna sempre ao mesmo lugar 465 ,<br />
apontariam para a pulsão como aquilo que move o rememorar 466 . É o que se vê na<br />
forma do demônio: “E a idéia me retorna” 467 . Retorna como nenhum e com todos os<br />
nomes, por toda a narrativa:<br />
... Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o<br />
tunes, o cramulhão, o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o mal-encarado,<br />
aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que<br />
minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras<br />
pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa<br />
Senhora da Abadia!... (ROSA, J.G., 2001, p. 317-318).<br />
A morte de Diadorim constitui para Riobaldo uma dupla perda: a morte do amor<br />
evitado no passado, que o faz sufocar “numa estrangulação de dó” 468 e a revelação:<br />
... A dôr não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de<br />
coronha. (...) Diadorim era mulher, como o sol não acende a água do<br />
rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. (ROSA, J.G., 2001,<br />
p.615).<br />
Revelação num tempo posterior, que traz em si a perda do que teria sido<br />
possível somente no passado, acenando-lhe com o impossível de todo: “E a beleza dele<br />
461 Idem, p.155.<br />
462 Idem, p.207.<br />
463 FREUD, S. (1976) p.29.<br />
464 LACAN, J. (2008b) p.60.<br />
465 Idem, p.55.<br />
466 Idem, (2008b).<br />
467 Idem, p.55.<br />
468 Idem, p. 614.
permanecia, só permanecia, tão impossivelmente” 469 . Talvez, nesta dupla perspectiva,<br />
possamos compreender a proposição de Susana Lages segundo a qual a narrativa seria<br />
um resíduo da saudade de Riobaldo por Diadorim, da saudade que não passa e que<br />
fundamenta o texto como um todo:<br />
A dor sentida pela morte de Diadorim expressa-se fisicamente: suor,<br />
febre; Riobaldo adoece, quase “morre de saudade”, de uma saudade<br />
em luta contra a melancolia: vazio improdutivo, repetição, morte.<br />
Riobaldo ultrapassa com “tardança” esse estado melancólico e dirigese<br />
à nova vida com Otalícia, à qual, no entanto, não supre o vazio<br />
deixado pela perda de Diadorim. Ao contar sua história ao Compadre<br />
Quelemén, sua melancolia dissolve-se e a saudade, resíduo, resto de<br />
melancolia, produz a narrativa enquanto ação, vida. (LAGES, S.,<br />
2002, p.111).<br />
A morte de Diadorim é quando origem e fim coincidem. A tripla afirmação<br />
sobre o fim da história na última epígrafe, desdobra os sentidos do fim, da permanência<br />
e da origem, sob os diversos tempos: da estória que se acabou no passado, da estória<br />
acabada ou destruída, no tempo inexorável do particípio passado, e da estória<br />
rememorada ou narrada, que acaba no presente, e continua acabando... Mas,<br />
simultaneamente, recomeça, sob a forma da recordação contada a Quelemén, como<br />
pulsão que o religa à vida, com a narração ao visitante que dá forma ao texto. Note-se,<br />
porém, que tampouco o texto sai inatingido do golpe, quando o narrador –<br />
inesperadamente – se confessa como escritor da estória, e se recusa a narrar a morte,<br />
ameaçando não escrevê-la: “Os olhos dele ficados para a gente ver. (...) Os cabelos<br />
com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é,<br />
não fica sendo! Diadorim...” 470<br />
469 Idem.<br />
470 Idem, p.614.
Aqui, a duplicidade da perda é assinalada novamente através de uma construção<br />
formal que acompanha um tema semântico. A mesma idéia de um duplo trauma, e mais<br />
ainda do trauma que retorna como repetição, atingindo o presente, se nota na forma e no<br />
ritmo deste dia (re)marcado na memória, onde diversas construções e fonemas se<br />
repetem:<br />
...Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. (...). O<br />
senhor mesmo, o senhor pode imaginar um corpo claro e virgem de<br />
moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios<br />
da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio<br />
abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era<br />
um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E<br />
tantos anos já se passaram. (ROSA, J.G., 2001, p. 207).<br />
A selvagem desgraça mostra, ainda, nitidamente, o entrecruzamento entre a<br />
rememoração própria ao romance, ligada à trajetória de uma vida, e a memória coletiva,<br />
associada à narrativa épica 471 : pois é a nele que a questão do Mal, difusa em suas<br />
múltiplas histórias, é tomada como coisa sua para Riobaldo. Isto é, confrontado com o<br />
Mal em sua forma mais aguda, por assim dizer, o jagunço se volta ao passado, tentando<br />
buscar na memória uma resposta particular à questão do demo e do pacto. No mesmo<br />
eixo de discussão, o acontecimento da morte associa o trauma como experiência do<br />
sujeito que perde seu amor à dimensão da catástrofe, na medida em que a revelação da<br />
Mulher envolve em termos dos determinantes coletivos, da violência e pobreza que<br />
compõem – o querer e o poder – de matar dos jagunços.<br />
Ao deparar-se com o real do corpo de mulher de Diadorim, Riobaldo e os<br />
jagunços choram, e ele se abraça com a mulher que a preparava para o enterro, mas esta<br />
mulher aparece aí com letra maiúscula, apontando possivelmente para A Mulher, o<br />
feminino e toda a diferença a que ela pode remeter: “Recaí no marcar do sofrer. Em<br />
real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos<br />
471 Cf. Cap.1 desta tese.
meus jagunços decididos choravam” 472 . A imagem seguinte traz a dor diante da perda<br />
em particular do amor e da castração do feminino no plano coletivo, condensada no<br />
lamento diante do corte nos cabelos de Diadorim:<br />
... Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata...<br />
Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não<br />
sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:<br />
- ‘Meu amor!’<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.615).<br />
Junto ao sofrimento de Riobaldo diante da surpresa da revelação, está o choro<br />
dos decididos jagunços, onde se lê também o lamento de todos por um (im)possível<br />
presente melhorado, pela diferença que o feminino poderia fazer não só na vida de<br />
Riobaldo, mas numa vida onde efetivamente pudesse manifestar-se, ainda viva, como<br />
contraponto à guerra sem fim do sertão.<br />
Dor em aberto<br />
E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta<br />
ferida.<br />
CHICO BUARQUE, Leite Derramado.<br />
Além da melancolia dirigida ao passado histórico, este lamento sertanejo, o<br />
olhar melancólico perpassa também a memória dos amores de Riobaldo, sobretudo a<br />
recordação ligada a Diadorim, seu “amor de ouro” 473 ; o que não significa, entretanto,<br />
em nenhum dos aspectos, propor que a rememoração se esgota na melancolia, nem<br />
sequer pensá-la como traço definitivo estabelecido nestes laços de amor. Pois, aqui,<br />
como lá – lembre-se a imagem dialética do cortejo dos justos – há um enfrentamento<br />
desta dor e deste luto, o que leva Riobaldo, mesmo sem esquecer Diadorim, a seguir em<br />
frente, atravessando no meio da tristeza, podendo amar e casar-se com Otalícia, o<br />
472 ROSA, J.G. (2001) p.616.<br />
473 Idem, p.68.
“amor de prata” 474 , e a situar-se na história – não apenas, mas também – a partir de um<br />
tempo após a perda: “Eu estou depois das tempestades” 475 .<br />
Entretanto, a melancolia – sofrimento que Freud diferencia do luto comum e se<br />
relaciona com um desencadear específico nos processos de enlace e separação do objeto<br />
de amor, “de um amor que não pode ser renunciado” 476 – também perpassa a<br />
rememoração, onde a dor sem remédio, a saudade do coração e o remordido sofrimento<br />
transmitem a mesma idéia de um irredutível lamento diante da perda: “ah, meus<br />
buritizais levados de verdes” 477 . Esta sensação da perda do objeto como uma parte de si<br />
mesmo constitui uma primeira distinção entre a melancolia em relação ao luto,<br />
caracterizado por uma elaboração da perda que possibilita a escolha de outros objetos de<br />
amor.<br />
Por toda a rememoração se encontra uma identificação do sujeito com este<br />
objeto, numa condição especial, tal como a perda descrita por Freud na melancolia: “a<br />
sombra do objeto caiu sobre o sujeito” 478 , que o personagem manifesta no momento<br />
mesmo da morte de Diadorim: “da dôr que me nublou” 479 . Identificação na qual o que<br />
foi perdido mantém-se – ainda no presente da narrativa – em obscuridade, não se<br />
discernindo completamente do sujeito: “mas Diadorim é a minha neblina (grifo<br />
nosso)...” 480 . A ambivalência desta sombra se mostra, ainda, no lamento diante do<br />
tempo e do amor irrecuperável, nas variantes da fórmula: “Ah, naqueles tempos eu não<br />
sabia, hoje é que sei...” 481 . E a culpa, mais um traço apontado como próprio à<br />
melancolia no texto de Freud, como possível conseqüência da ambivalência no próprio<br />
laço com o objeto, que se acirra diante da perda, na qual uma parte do sujeito sofre,<br />
474 Idem, ibidem.<br />
475 Idem, p.611.<br />
476 FREUD, S. (1988 c ) p.256.<br />
477 ROSA, J.G. (2001) p. 614.<br />
478 FREUD, S. (1988c) p. 254.<br />
479 ROSA, J.G. (2001) p. 613.<br />
480 Idem, p.40.<br />
481 Idem, p.62.
culpada: “Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter” 482 .“Agora,<br />
no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir” 483 . E a outra, goza, sadicamente<br />
(diria Lacan) com as auto-recriminações 484 .<br />
Difícil apontar, em Rosa, a estória mais triste, o personagem mais melancólico;<br />
possível, contudo, é comparar as diferentes versões ou ensaios sobre a melancolia ao<br />
longo de sua produção. Assim, a melancolia de Riobaldo pode ser pensada face ao já<br />
mencionado lamentar repetitivo da terra perdida da infância, no conto “Lá, nas<br />
Campinas” 485 , juntamente com o narrador de tristes palavras de “A Terceira margem do<br />
Rio” 486 . Do primeiro conto, cabe apenas ressaltar a associação entre a dimensão da<br />
perda em particular do personagem, insinuada no texto como possível abandono dos<br />
pais, para uma dimensão inconsciente, não apenas como cenário dos desejos edipianos,<br />
da tragédia familiar de cada um, mas também como fundo originário, enigma<br />
constitutivo do sujeito 487 .<br />
Em “A Terceira Margem do Rio”, a forma como o filho se refere aos pais,<br />
durante todo o conto, aproxima afetivamente o leitor, irmanando-o na experiência de<br />
desamparo com o recolhimento do pai a uma canoa, rio afora: “Nosso pai era homem<br />
cumpridor, ordeiro, positivo; (...). Nossa mãe era quem regia” 488 , “Nosso pai não<br />
voltou.” 489 , “Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura...” 490 A forma,<br />
482 Idem, p. 304.<br />
483 Idem, p. 329.<br />
484 Um aspecto pouco pensado pela crítica parece justamente a ambivalência amor-ódio de Riobaldo em<br />
relação à escolha de Diadorim pela guerra (e não pelo amor), sendo o ódio de Diadorim, ao mesmo<br />
tempo, o que atrái e repele Riobaldo, divisão que aumenta diante da revelação de que ela era mulher<br />
somente na morte. Cf. o artigo de Ana Luiza Martins Costa, intitulado “Diadorim, delicado e terrível”,<br />
em: SCRIPTA (1998). Como sugere Freud, na melancolia, as auto-recriminações são recriminações ao<br />
objeto amado... Cf. FREUD, S. (1988c) p.254.<br />
485 ROSA, J.G. (1985) p.97-100.<br />
486 Idem, (1988) p.32-37.<br />
487 Cf. PERRONE-MOISÉS (2000) p.264-279.<br />
488 ROSA, J.G. (1988) p.32 .<br />
489 Idem, p.33.<br />
490 Idem .
utilizada do início ao fim do texto, dá à experiência o tom – ou o ritmo, repetição que<br />
acompanha o lamento melancólico – universal.<br />
A forte ligação afetiva com o pai fica igualmente evidente desde o início, no<br />
pedido do filho para ir junto: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” 491 E a<br />
dificuldade para esquecer, índice de sua melancolia, aparece em suas constatações: “E<br />
esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.” 492 , “A gente teve de se<br />
acostumar com aquilo. Às penas, que, a gente nunca se acostumou, em si, na<br />
verdade” 493 .<br />
Com o passar do tempo, não diminuem, mas aumentam os entraves para<br />
encontrar objetos substitutos deste amor: “Tiro por mim, que, no que queria e no que<br />
não queria, só com nosso pai me achava” 494 . Dificuldades que a família parece tentar<br />
superar; mas ele, não. A irmã se casa, a família se muda para longe; só ele, o filho,<br />
permanece. E o sentimento de culpa: “Sou homem de tristes palavras. De que era que<br />
eu tinha tanta, tanta culpa? (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto...” 495<br />
Culpa cujo ápice se dá com a tentativa de se substituir, tomar o lugar do pai na canoa;<br />
tentativa fracassada, pois identificar-se completamente com o pai seria a morte, com o<br />
que o filho se assombra, fugindo da empreitada, e adoecendo fisicamente com o<br />
impasse:<br />
491 Idem, ibidem.<br />
492 Idem, p.35.<br />
493 Idem, p.34.<br />
494 Idem, ibidem.<br />
495 Idem, p.36.<br />
...E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me<br />
tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele pareceu<br />
vir: da parte de além.<br />
Sofri o grave dos medos, adoeci. ..<br />
(ROSA, J.G., 1988, p.37.)
O final do conto reafirma a tristeza e o desejo de habitar este lugar, a terceira<br />
margem do rio: “Mas então que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem<br />
também, numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e eu rio<br />
abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.” 496 Faz pensar, também, na universalidade da<br />
condição subjetiva e a impossibilidade de uma identificação total com a figura paterna,<br />
ou ainda o limite de acesso a este local, fundo originário de onde brotaria a<br />
subjetividade... Neste sentido, a partir da idéia de Perrone-Moisés a respeito de uma<br />
orfandade particular contraposta a uma falta constituinte na origem da subjetividade<br />
como universal, é interessante pensar como Rosa reúne ambas as vertentes do<br />
inconsciente numa única imagem poética de uma terceira-margem comum a todos, na<br />
qual nosso pai e nossa mãe nos tornam irmãos de uma mesma orfandade, de uma<br />
origem desconhecida e de uma busca de retorno a este lá onde era.<br />
No entanto, há na rememoração de Riobaldo um movimento diferente dos outros<br />
dois contos. É que, apesar da travessia particular do primeiro e da tentativa do segundo,<br />
ambos terminam com a morte – objetiva, de Drijimiro, num caso; e o apelo de morte do<br />
filho, no outro – indicando a morte como único retorno possível a esta origem. No<br />
Grande Sertão, talvez pela forma com que é endereçado ao Outro, talvez por tratar-se<br />
de uma elaboração posterior do autor para um tema ensaiado nos contos; a narrativa se<br />
põe num movimento, num ir e vir, onde o real: “não está na saída nem na chegada: ele<br />
dispõe para a gente é no meio da travessia” 497 , onde a “mãe morte” 498 se espalha por<br />
toda a história; mas a travessia pode, sim, deslocar aquele impossível, a dor em aberto,<br />
sem suprimi-lo, mas na direção de uma possível alegria.<br />
Mais uma vez, estamos diante da imagem poética que, se na dimensão coletiva<br />
situava-se no cortejo dos justos em direção a uma outra justiça; aqui, encontra-se em<br />
496 Idem, ibidem.<br />
497 ROSA, J.G. (2001) p. 80.<br />
498 Idem, p.371.
uma imagem do movimento: a travessia, tristonha, porém, não apenas entrecruzada pela<br />
alegria: “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais,<br />
no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!” 499 . Alegria<br />
construída durante: “Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre<br />
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões” 500 . “Minha tristeza é uma volta<br />
em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da<br />
tristeza...” 501 .<br />
E, finalmente, alegria como o que permite a passagem: “O vau do mundo é a<br />
alegria” 502 . De acordo com o dicionário, vau significa tanto o local raso de um rio que<br />
pode ser atravessado a pé ou a cavalo, por onde os peões passam com o gado durante<br />
as cheias; como ocasião favorável, oportunidade 503 .<br />
Travessia de minha vida<br />
Mas o mor o infernal a gente também media.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
A imagem da travessia reaparece várias vezes ao longo do texto: desde a<br />
travessia do São Francisco, no primeiro encontro com Diadorim, quando o atravessar à<br />
canoa o rio imenso, ao lado do menino Reinaldo, “... o que até hoje, minha vida, avistei,<br />
de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia” 504 , é associado pelo jovem Riobaldo ao<br />
enfrentamento do medo, através da coragem que o fascina no outro, que marca a<br />
abertura de um caminho próprio, ao começo de um tempo: “Foi um fato que se deu, um<br />
dia, se abriu. O primeiro.” 505 Até a Guararavacã do Guacuí, lugar onde Riobaldo<br />
499 Idem, p.334.<br />
500 Idem, p. 323.<br />
501 Idem, p.168-169.<br />
502 Idem, p. 321.<br />
503 Cf. Houaiss, A. (2009).<br />
504 Idem, p. 122.<br />
505 Idem, p.116.
descobre o “amor mesmo amor, mal encoberto em amizade” 506 , onde ele menciona<br />
novamente a “Travessia de minha vida” 507 , confirmando ser a travessia reconstruída na<br />
rememoração, enigmaticamente marcada e remarcada por Diadorim.<br />
Entretanto, a construção deste caminho como travessia de sua própria vida<br />
requer um confronto com a solidão, com a qual Riobaldo se depara nos vários<br />
momentos em que tenta convencer o amigo a trocar a guerra por uma vida juntos, e o<br />
encontra irrevogável, revendo-se diante da escolha pela vida jagunça – “eu achava que<br />
não tinha nascido para aquilo” 508 – ao lado de um amor muitas vezes visto como<br />
impossível: “Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de sozinha travessia” 509 .<br />
A travessia da rememoração de Riobaldo se apresenta na dupla vertente entre o<br />
lembrar, recordar, recompor, “remembrar” 510 “as passagens emendadas” 511 da vida, e<br />
o esquecimento, na medida em que a triste travessia é esquecer Diadorim:<br />
... Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me<br />
dava entrante uma tristeza no geral, um prazo de cansado. Mas eu não<br />
meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia,<br />
pois então era preciso... (ROSA, J.G., 2001, p. 248).<br />
No trabalho de luto que se sobrepõe à melancolia de Riobaldo, e que compõe a<br />
rememoração, iniciada a partir da morte de Diadorim, o mais difícil e doloroso é este<br />
retomar cada lembrança, cada fragmento de memória que promove um reencontro com<br />
o objeto perdido, ter de rever para ressignificar, dar novos sentidos no sentido do<br />
desligamento. Em outras palavras, o sofrimento não é simplesmente perder, mas<br />
reencontrar, sabendo que foi perdido, como afirma o psicanalista Juan David Nasio:<br />
...Admito-a, mas não situo a dor como diretamente resultante da<br />
separação. Não; penso, ao contrário, que a dor surge no momento em<br />
506 Idem.<br />
507 Idem, p.305.<br />
508 Idem, p.82.<br />
509 Idem, p.200.<br />
510 Em “Nenhum, Nenhuma”. Cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.<br />
511 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 235.
que há um superinvestimento da representação do objeto amado e<br />
atualmente perdido. O que dói no trabalho de luto não é tanto a<br />
ausência do ente querido, mas o encontro, o investimento e o<br />
superinvestimento da representação psíquica que temos do ser amado<br />
e perdido. Em seu texto, Freud fala em ligação e desligamento das<br />
representações do objeto perdido; creio, exatamente que a dor se<br />
produz quando localizamos e delimitamos mais de perto (...) o objeto<br />
perdido...(NASIO, J.D., 1991, p.101).<br />
Lembrar e esquecer Diadorim constitui, portanto, dimensão importante da<br />
rememoração: “Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivendo o que me faltava.<br />
Tão mixas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e do reperdido” 512 .<br />
Neste trabalho de elaboração 513 , onde o tempo não é linear, mas narrado conforme a<br />
rememoração, aos saltos, sobretempos, falhas, lacunas, num processo movido entre a<br />
lembrança e o esquecimento, entre a melancolia e a alegria, “entre a paz e a<br />
angústia” 514 : “Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica<br />
demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!” 515 .<br />
As duas travessias do Liso do Sussuarão, a primeira interrompida, no início; e<br />
outra concluída, quase no fim do romance, mostram-se emblemáticas do processo que<br />
Lacan chamará a travessia do fantasma, noção bastante complexa e recorrente em todo<br />
seu pensamento 516 que, aqui, interessa na acepção da fantasia construída pelo sujeito<br />
512<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />
513<br />
Segundo Luiz Hanns, o termo utilizado por Freud, durcharbeitein (verbo) ou durcharbeitung<br />
(substantivo), expressa a idéia de “trabalhar-se através (durch) de alguma tarefa” ou “percorrer uma<br />
tarefa do início ao fim”, sem pretensão de triunfar ou conquistar, o que difere um pouco da tradução em<br />
português elaboração, que pode dar a idéia de um processo de aperfeiçoamento, digestão ou assimilação,<br />
que se distancia do uso em Freud e Lacan, e que destacamos, aqui, em Rosa como travessia, pois o luto<br />
seria muito mais atravessado, do que digerido ou eliminado. A noção, encontrada por toda a obra<br />
freudiana, possui esta conotação no texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, como elaboração das chamadas<br />
resistências, daquilo que se repete num processo de análise, como constituinte do próprio processo e,<br />
numa primeira acepção, algo cujo enfrentamento permite que o processo de análise prossiga: “Esta<br />
elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma<br />
prova de resistência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores<br />
mudanças...” Cf. FREUD, S. (1987c), p. 171; HANNS, L. (1996) p.198-204.<br />
514<br />
Em “Nenhum, Nenhuma”, cf. ROSA, J.G. (1988) p.49.<br />
515<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 329.<br />
516<br />
A noção de fantasia como fator determinante na memória é percebida por Freud a partir da clínica, e<br />
pode ser situada teoricamente, na medida em que ele abandona a concepção de sedução como origem da<br />
histeria, declarando a Fliess (Carta 69 - 1897): “não acredito mais em minha ‘neurótica’”. Cf. FREUD,<br />
S. (1988d) p.309. A constatação de que não era de uma realidade objetiva que falavam suas pacientes a<br />
respeito da sedução paterna, e sim da fantasia inconsciente, marca uma reviravolta em sua teoria e
como um trauma ligado à sua origem, que faz fronteira com o real, pois o fantasma<br />
encerra uma opacidade própria ao real, uma “entrada para o real” 517 , na medida em<br />
que o fantasma é o que pode “fornecer ao sujeito uma experiência da ordem da não-<br />
identidade e do descentramento próprio ao Real” 518 .<br />
O Liso do Sussuarão, descrito por Riobaldo como deserto intransponível: “pra<br />
lá, pra lá, nos ermos” 519 (note-se novamente o lá), um vazio, um oco cheio de nada,<br />
traz todas as marcas de seu fantasma pessoal e inconsciente: “que o Liso do Sussuarão<br />
não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, um escampo dos<br />
infernos”(...) “Não era possível!” 520 . Atravessar o Liso, desta forma, constitui metáfora<br />
da travessia do fantasma, ou do confronto com o inominável, também apresentado na<br />
cena do pacto, confronto com o demo, sobre o qual – curiosamente – Riobaldo se<br />
questiona: “Atravessei meus fantasmas?” 521<br />
Não cabe tentar desvendar a travessia do Liso nem o pacto, pontos cegos,<br />
umbigos da idéia 522 no enredo, veja-se a caracterização das Veredas Mortas, local do<br />
pacto, como fundo imemorial: “aquele chão gostaria de comer o senhor; e ele cheira a<br />
clínica. A partir deste momento, a fantasia adquire lugar preponderante na constituição da lembrança,<br />
dando lugar a uma concepção de memória ligada à lembrança como construção do sujeito, diferenciada<br />
de uma realidade objetiva. Cf. FREUD, S. (1975).<br />
A visão de Lacan, por sua vez, interessa por partir do fantasma como aquilo que não apenas se repete<br />
numa análise durante seu percurso, sentido já exposto no texto acima, mas no desenvolvimento dado por<br />
Freud posteriormente, quando Freud o percebe como algo que resta, um irredutível, mesmo ao final de<br />
qualquer processo de análise, o que Lacan atesta como ligado ao trauma: “Nossa experiência nos põe<br />
então um problema, que se atém a que (...) vemos conservada a insistência do trauma a se fazer lembrar a<br />
nós. O trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto desvelado”. Cf. LACAN, J. (2008b)<br />
p.60.<br />
517 LACAN, J., Apud SAFATLE, V. (2006) p.206. A idéia, aqui, é do fantasma como cena criada a partir<br />
dos primeiros objetos perdidos (ou cedidos, como lembra Safatle em seu livro, assim chamados por<br />
Lacan), que dizem respeito portanto a este encontro não-idêntico e não totalmente assimilável com o<br />
real, o que pressupõe, por sua vez, que o fantasma não seja totalmente submetido à estrutura<br />
fantasmática, que ele comporta algo da não-identidade do real exposta acima, que se relaciona à pulsão<br />
e à repetição.<br />
518 SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />
519 ROSA, J.G. (2001) p. 50.<br />
520 Idem, p. 50.<br />
521 Idem, p.499.<br />
522 Idem, p. 579.
outroras... Uma encruzilhada, e pois!” 523 Por outro lado, vale, sim, destacar alguns<br />
pontos demarcados na memória de Riobaldo, que entrecruzam, até certa medida, a<br />
questão do pacto e da travessia, com o amor por Diadorim e a questão do medo que, por<br />
sua vez, perpassam – diferentemente – a rememoração.<br />
Ao conhecer Diadorim, o que primeiro chama a atenção é que Riobaldo<br />
encontra-se desvalido, destituído, pedindo esmola a mando de sua mãe. Após a travessia<br />
do São Francisco ao lado do Menino, imediatamente após o Reinaldo mencionar a<br />
coragem que herdou do pai, (que mais tarde será reconhecida por Riobaldo como um<br />
“mandado de ódio” 524 ): “Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito<br />
diferente” 525 . É então que Riobaldo (que então não conhecia o próprio pai), não sem<br />
interrogar-se a si mesmo, identifica-se com esta fala e, ao rememorar, elege o<br />
enfrentamento de seu medo como marco inicial de sua travessia: “E eu não tinha medo<br />
mais. Eu? (...) eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável” 526 .<br />
Apesar disto, o medo é uma constante pelo sertão e pelo discurso de Riobaldo,<br />
fazendo-se medo do demo. Se, pouco antes do pacto, o medo retorna, e ele se diz<br />
enjoado daquela realidade, ao encontrar os fazendeiros da região, sem um chefe<br />
confiável, desconfiado de Zé Bebelo, sozinho, questionando sobre o sentido de<br />
permanecer jagunço, sem ter realizado o amor por Diadorim: “Eu queria minha vida<br />
própria, por meu querer governada. A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal,<br />
por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho” 527 . Após o<br />
pacto, ao passar de jagunço a chefe do bando, ele se refere àquele sofrimento como<br />
queixas antigas, demarcando uma mudança de posição não apenas de estatuto social,<br />
mas subjetivo.<br />
523 Idem, p. 417.<br />
524 Idem, p.444.<br />
525 Idem, p.125.<br />
526 Idem, ibidem.<br />
527 Idem, p.370.
Outro marco importante: anterior ao pacto com o demo, houve o pacto sempre<br />
reafirmado com Diadorim, de lutarem juntos, e de vingança pela morte de seu pai, Joca<br />
Ramiro, matando o Hermógenes. É quando este pacto, de certo modo, se vê ameaçado<br />
pelo contexto acima, que Riobaldo tenta o pacto com o demo. Mas a questão da vida<br />
desgovernada permanece, pois agora quem ameaça mandar é o demo. Como chefe,<br />
Riobaldo se vê leve, voltado para a ação, mas vulnerável ao Mal, perdendo o controle<br />
no encontro com o fazendeiro seo Ornelas e o lázaro. Diante desta conjuntura, outro<br />
ponto remarcado aqui é a intervenção de analista do compadre Quelemén, ao afirmar<br />
que o caso do delegado Hilário, contado pelo seo Ornelas, cuja moral da história era –<br />
“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém ”528 –<br />
tinha muito a ver com a história de Riobaldo:<br />
... Mas só porque o compadre meu Quelemén deduziu que os fatos<br />
daquela éra faziam significado de muita importância em minha vida<br />
verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, que com<br />
a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí narro. O senhor me<br />
releve e suponha. (ROSA, J.G., 2001, p. 477).<br />
Todas estas passagens associam o atravessar do fantasma ao discernimento dos<br />
aspectos imaginários, projetados tanto na figura do Hermógenes, temido e enfrentado,<br />
como na de Diadorim, admirado e desejado, bem como a de Medeiro Vaz e Zé Bebelo<br />
(que Riobaldo menciona ao fazendeiro Ornelas, logo ao se apresentar), todos,<br />
caracterizados como pequenos outros em quem Riobaldo se espelha na busca por si<br />
mesmo. Não por acaso, voltado para o tempo de jagunço anterior ao pacto e à travessia,<br />
ele indaga: “Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda<br />
esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia” 529 .<br />
Atravessar o fantasma, portanto, como o deserto do Liso, requer coragem: “O<br />
sertão tem medo de tudo. Mas hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que ele<br />
528 ROSA, J.G. (2001) p. 476.<br />
529 Idem, p. 407.
é bondade adiante.” 530 “O que ela [a vida] quer da gente é coragem” 531 . Coragem,<br />
segundo a leitura lacaniana, de deslocar-se do trauma à fantasia 532 , isto é, de confrontar-<br />
se com a dimensão fantasmática do trauma, questionando-a em seu estatuto de ordem<br />
imaginária, criação do sujeito, o que novamente distancia a memória da objetividade, ao<br />
aproximá-la da fantasia. Algo que é entrevisto no questionamento de Riobaldo sobre o<br />
Hermógenes, associado, como Diadorim, à neblina e ao fantasma:<br />
... Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes!<br />
Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por<br />
estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire<br />
veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um<br />
destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim,<br />
mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era<br />
que era o realce meu – ? – eu carecendo de derrubar a dobradura dele,<br />
para remedir minha grandeza façanha!...” (ROSA, J.G., 2001, p. 556).<br />
Igualmente interessante é constatar como a coragem e o mover-se, o dar um<br />
passo adiante, pode tornar o que parece impossível em possível, conforme as falas do<br />
Urutú Branco antes da travessia: “O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se<br />
sentia no poder de fazer” 533 . E após o suposto pacto: “Eu caminhei para diante. Em, ô<br />
gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível” 534 . Evoca, portanto, uma<br />
outra experiência, experiência de encontro com o real, que – se não torna tudo, como<br />
imagina Riobaldo, possível – faz com que algo se desloque (como a percepção de um<br />
deserto nem tão terrível assim, mais adiante) juntamente com a própria travessia,<br />
530 Idem, p. 329.<br />
531 Idem, p. 334.<br />
532 O que é importante apontar nesta noção, para esta análise, é, segundo Lacan, a correlação entre aquilo<br />
que se repete como trauma, com a fantasia, que funciona como uma espécie de tela, cena, para o real: “O<br />
lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela<br />
que dissimula algo de absolutamente primeiro”. Cf. LACAN, J. (2008) p.64. Outra observação<br />
importante diz respeito ao aspecto imaginário de Diadorim, como um dos aspectos, não o único, pois já<br />
associei este amor como objeto da pulsão, do estranho em Diadorim. Diadorim pode ser considerado<br />
ligado ao fantasma de Riobaldo, pois o mesmo objeto pode aparecer ao sujeito ligado à dimensão da<br />
pulsão, do real, à dimensão simbólica ou ainda imaginária. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />
533 Idem, p. 61.<br />
534 Idem, p. 451.
fazendo lembrar a afirmação de Collot 535 , de um encontro com o real que a poesia e os<br />
poetas não cessam de evocar, e que esta abordagem do fantasma como atravessável<br />
também acentua 536 .<br />
A travessia faz com que – lá, de dentro do deserto – e só depois, Riobaldo<br />
redimensione a impossibilidade em atravessá-lo: “O que era – que o raso não era tão<br />
terrível?” 537 Dali, ele pode ver “um feio mundo, por si, exagerado” 538 , e surpreender-se<br />
com a existência de vida naquele estranho local; com os insetos, aranhas, abelhas: “No<br />
que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas” 539 . Uma jornada<br />
que pressupõe arte, cujo movimento é freqüentemente associado à dança: “Mas o<br />
demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que<br />
chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio” 540 .<br />
A travessia ressurge, ainda, na última página do romance, quando Riobaldo põe<br />
fim à sua fala para o senhor que o escuta, na forma da inconclusa resposta à questão do<br />
demo, como travessia do homem humano, à qual se segue o símbolo (∞), imagem<br />
existente desde gravuras rupestres, utilizada no tarô como equilíbrio entre os opostos,<br />
nomeada pela letra grega leminiscata, como o símbolo matemático do infinito, já<br />
apontado por Ettore Finazzi-Agrò 541 .<br />
Em perspectiva, o símbolo pode ser visto como a curva, tira ou Banda de<br />
Moebius, na forma comparável a de um anel torcido, onde o seu lado direito coincide<br />
com o avesso, e que constitui justamente um dos modelos topológicos utilizados por<br />
535 Cf. Cap.2.<br />
536 Esta perspectiva se opõe à leitura exclusivamente estruturalista do real como impossível, para pensálo<br />
como experiência do real, experiência de confronto com a não-identidade, o descentramento, o<br />
desconhecido, o inominável, distinta do imaginário e da apreensão simbólica. Encontro esta ênfase na<br />
leitura de Lacan de Vladimir Safatle e em algumas formulações de M.D. Magno, por exemplo, que<br />
considero, por este motivo, bastante próximas da literatura de Rosa.<br />
537 ROSA, J.G. (2001) p. 524.<br />
538 Idem, ibidem.<br />
539 Idem, ibidem.<br />
540 Idem, p. 325.<br />
541 Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.29.
Lacan para falar da memória e da subjetividade 542 , intrinsecamente relacionado à noção<br />
de a posteriori, (Nachträglichkeit, em Freud), aprés-coup da significação, ou<br />
simplesmente só-depois (tradução originalmente proposta por M.D. Magno). O a<br />
posteriori diz respeito aos efeitos da significação, construídos só-depois, a esta volta ou<br />
dobra do tempo sobre si mesma, presente na forma do romance, cujo fim está inserido<br />
desde o início, na dupla face onde o sujeito simultaneamente narra e é narrado, e a volta<br />
atrás coincide com o passo adiante 543 , dobra do tempo que Riobaldo associa inúmeras<br />
vezes a Diadorim como trauma:<br />
... Às voltas e revoltas, eu pelejava contra o meu socorro. Hoje, eu sei;<br />
pois sei, por que. (...) Só que andava às tortas, num lavarinto. Tarde<br />
foi que entendi mais do que meus olhos, depois das horrorosas<br />
peripécias, que o senhor vai me ouvir. Só depois (grifo nosso), quando<br />
tudo encurtou... (ROSA, J.G., 2001, p.517).<br />
Dos fracassos da memória ao esquecimento<br />
Mas tampouco nada se parece se parece menos com a Balbec real do que<br />
aquela com que muitas vezes sonhei...<br />
MARCEL PROUST<br />
Somente a partir de uma expectativa de uma memória bem-sucedida, de uma<br />
positividade total da lembrança, pode-se falar em fracasso na recordação 544 , é preciso<br />
frisar. Entretanto, de acordo com a psicanálise, nos pontos em que a memória falha,<br />
542 Lacan usa o termo transfinito (do matemático Georg Cantor) para distanciar-se do caráter totalizante<br />
do infinito, ao referir-se ao que ultrapassa o finito. Cf. LACAN, J. (2003); (2008). Entretanto, conforme<br />
já mencionamos, o tema do infinito era uma idéia cara a Rosa, sem que, a nosso ver, em sua obra, isso<br />
constitua objetivamente uma definição, surgindo muito mais como abertura, como também parece propor<br />
a análise de Finazzi-Agrò. Mas o infinito pode ser lido também, numa acepção literal e diversa, como o<br />
não-finito da finalidade sem fim do objeto poético, cujo excesso de sentidos se opõe ao fechamento ou<br />
finitude da lógica do mercado. Cf. LINS, V. (2005) p.7.<br />
543 “... a verdade, implícita na fala do narrador, é alcançada graças a uma volta atrás”. 543 Cf. FINAZZI-<br />
AGRÒ, E. (2001) p.43. Cabe ressaltar de que a verdade será tomada nesta abordagem como verdade<br />
parcial, subjetiva, construída nesta fala endereçada do narrador ao senhor-leitor.<br />
544 Em “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, de 1898, um dos seus textos iniciais, Freud busca<br />
compreender os processos psíquicos em jogo nos lapsos de memória, utilizando-se de exemplos<br />
autobiográficos a respeito do esquecimento de nomes, e de como estes “equívocos” podem ser<br />
determinados pelo inconsciente. No texto freudiano, lado a lado com a proposta de uma psicanálise que<br />
visa corrigir os recalques, resgatar as lembranças perdidas através da recordação, como lembra Coimbra,<br />
aparecem expressões como: um “inacessível à memória” e “lacunas da memória”, além da expressão<br />
referida ao fracasso, que acenam para uma outra visada sobre o tema. Cf. FREUD, S. (1994a);<br />
COIMBRA, J.C. (1997) p.120.
erra, desvia, é que se insinua a noção de algo que resta não-totalmente recoberto pela<br />
rememoração ou pela reminiscência criadora, isto é, pela noção de uma reconstrução de<br />
uma história através do rememorar. Neste sentido, um aspecto já apontado no processo<br />
de rememoração de Riobaldo é o de que a temporalidade não é linear: “Em desde<br />
aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés<br />
nem cabeça, por falta de sisudez e alegria” 545 .<br />
Desta forma, a memória não se apresenta de uma só vez, nem segue uma única<br />
direção do tempo. De acordo com Freud, “ela se desdobra em vários tempos” 546 . Isto<br />
significa que não há uma seqüência ou seta única do tempo, na direção passado-<br />
presente-futuro, ao contrário, os tempos podem coabitar ou fundir-se num mesmo<br />
tempo, e o passado é determinado pelo presente, nas voltas que o texto dá, rompendo<br />
com a cronologia, em mais uma analogia com o inconsciente freudiano, cujos processos<br />
são descritos como intemporais, ou seja, não são ordenados cronologicamente 547 . A<br />
referência ao tempo seria dada posteriormente, pelo consciente, o que faz com que a<br />
rememoração se assemelhe a um jogo onde as cartas se embaralham para Riobaldo:<br />
“Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?” 548 O relato de<br />
suas memórias é composto de múltiplas camadas do tempo, de diferentes saltos no<br />
tempo, onde o narrador interpõe recordações, num ir e vir da elaboração, do tecer a<br />
história.<br />
A noção de lembranças encobridoras diz respeito às formas pelas quais o<br />
inconsciente pode encobrir, condensando, sobrepondo ou deslocando a recordação 549 .<br />
545 ROSA, J.G. (2001) p.260-261.<br />
546 FREUD, S. (1988e), p. 281.<br />
547 Idem, (1988a) p.214.<br />
548 ROSA, J.G. (2001) p.198.<br />
549 FREUD, S. (1994b). O que é importante frisar em torno do conceito é a distinção entre memória e<br />
experiência, ou o abandono da concepção de memória ligada aos fatos verídicos, à realidade objetiva, em<br />
prol de uma memória ligada à verdade do sujeito, em outras palavras uma memória determinada pelo<br />
inconsciente. Novamente, há a afirmação de que a memória é constituída pela fantasia através de resíduos<br />
do passado.
No linguajar de Riobaldo, os lapsos e as lembranças encobridoras seriam as peças que a<br />
memória nos prega, os descaminhos por onde os labirintos da memória nos fazem errar.<br />
É assim que o narrador confunde nomes, como o da encruzilhada onde ocorre o suposto<br />
pacto, no princípio denominadas Veredas Mortas, que – ao final da narrativa, após a<br />
perda de Diadorim, tendo adoecido gravemente e, de certo modo, tendo escolhido<br />
continuar a viver – Riobaldo descobre chamarem-se, na verdade, Veredas Altas,<br />
demonstrando, além disso, uma associação dos nomes dos lugares de acordo com o<br />
sentido que adquirem na memória do personagem 550 .<br />
Durante a rememoração de Riobaldo, é freqüente a constatação do narrador de<br />
que tanto o passado lhe escapa – permanecendo como enigma ou mistério – bem como a<br />
de que ele não se esgota nesta tentativa de recuperação, produzindo sempre um resíduo.<br />
Ao deslocamento do narrador pelo espaço, se acrescenta esta errância das recordações,<br />
dos nomes, dos equívocos, num redemoinho (cuja imagem de uma espiral do tempo é<br />
também a do a posteriori freudiano, no qual, do presente, ele ressignifica o passado, e o<br />
que deste retorna como resto não-recuperado, incide novamente sobre o presente e o<br />
futuro, numa volta adiante...), e cujo excesso nos leva a subverter a noção de fracasso,<br />
para a concepção de que a memória toda ela é constituída por estas peças, pela<br />
fantasia 551 . E de que toda lembrança seria encobridora, desvinculando-se da noção de<br />
experiência ou verdade, para uma verdade construída pelo sujeito 552 .<br />
Pois, só depois, vários anos depois, quando o passado volta uma segunda vez, e<br />
ele reconta sua história ao visitante silencioso, Riobaldo assinala o caráter fantasmático,<br />
ilusório, de suas lembranças: “mocidade é tarefa pra mais tarde se desmentir” 553 . E<br />
com ele, a constatação de que todo o trabalho de rememoração coloca em xeque a<br />
550 Cf. capítulo 4.<br />
551 Como se vê no decorrer da trajetória freudiana, por exemplo em “Construções em Análise”, de 1920,<br />
e principalmente em toda a obra lacaniana. cf. FREUD, S. (1975).<br />
552 Cf. FREUD, S. (1975).<br />
553 ROSA, J.G. (2001) p.39.
ecuperação do tempo perdido, pois a lembrança se torna deslembrança: “lembro,<br />
deslembro” 554 .<br />
O que todos estes índices do “fracasso” da memória apontam seria, sobretudo,<br />
para um esquecimento não-incorporado na lembrança, que Riobaldo afirma quando se<br />
diz incapaz “de dar narração” 555 : “o que sinto, e esforço em dizer não consigo...” 556<br />
Esta diferença entre o esquecimento como simples apagamento da lembrança e uma<br />
dimensão constituinte do esquecimento talvez possa ser entrevista nas expressões do<br />
autor deslembro e não-memória, abordadas no próximo capítulo. Por ora, é importante<br />
apenas frisar que este esquecimento como ponto de enigma da origem seria também o<br />
que separa esta concepção de memória da noção de arquivo clássica 557 .<br />
Depois após: divisão do tempo e do sujeito<br />
Aí era um tempo no tempo.<br />
J. G. ROSA.<br />
“Aqui eu podia pôr ponto” 558 : a frase é dita por Riobaldo no meio do livro. Ali,<br />
tem lugar uma espécie de balanço da história contada, na qual ressurge a idéia de que<br />
tudo já teria sido dito na primeira metade. E é com frases curtas, numa alteração<br />
554 Idem, ibidem, p.42.<br />
555 ROSA, J.G. (2001) p.221.<br />
556 Idem, p. 305.<br />
557 Cf. FREUD, S. (1994a); DERRIDA, J. (2001); BIRMAN, J. (2008); BENJAMIN, W. (1986a).<br />
Para uma aproximação com uma discussão mais sistemática sobre a questão do arquivo, que<br />
escapa ao projeto desta tese, deixo apenas algumas indicações que, a meu ver, distanciam a teoria<br />
freudiana da memória da noção de arquivo clássica: a primeira, já comentada no primeiro capítulo seria<br />
a noção de resíduo, pois difere da idéia de memória como registro fiel da realidade, armazenamento. A<br />
ela, acrescento a perspectiva deste esquecimento constituinte da memória, ligado ao inominável ao<br />
imponderável da origem, e não apenas como apagamento da memória necessário à capacidade de novos<br />
armazenamentos, como também ressalta Birman sobre a crítica de Derrida à teoria freudiana. A estes<br />
dois aspectos somem-se, entre outras, a comparação freudiana do trabalho de análise à escavações,<br />
ruínas, das camadas do tempo; a idéia da memória como fantasia, construção, no processo de análise,<br />
que Freud expressa como se o analista pudesse emprestar um passado ao analisando, e finalmente a<br />
idéia de que a beleza das coisas é que elas passam, em “Sobre a Transitoriedade” ; que, somados,<br />
constituem fortes argumentos para uma diferenciação entre a teoria freudiana e a concepção positivista<br />
de arquivo como registro de lembranças estável, centrado, organizado e linear. Cf. FREUD, S. (1975);<br />
(1988f); BIRMAN, J. (2008); DERRIDA, J. (2001).<br />
558 ROSA, J.G. (2001) p. 324.
sensível do ritmo anterior, em ritmo de dansa (como ele escreve), que o narrador abre<br />
seu saquinho de relíquias, e retira seus fragmentos, retorcendo e interrogando seu<br />
passado nas cinco páginas seguintes a este ponto enigmático:<br />
... Do jeito é que retorço meus dias: repensando. (...) Tenho saquinho<br />
de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser...<br />
... Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus<br />
gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... (...) O São<br />
Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigrí, minha mãe, fez<br />
uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar<br />
arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou,<br />
depois de queimar sua casa-de-fazenda. (...) Zé Bebelo me alumiou.<br />
Zé Bebelo ia e voltava... Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir,<br />
toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso assim, é na paridade.<br />
O diabo na rua... (ROSA, J.G., 2001, p. 325-326-328).<br />
Condensada num único parágrafo que toma quase quatro destas cinco páginas,<br />
no mesmo balanço, a rememoração vai e vem, deslizando por fatos e personagens de<br />
sua vida, sem obedecer a nenhuma cronologia, onde o que se destaca é este anúncio do<br />
fim ainda no meio, sinalizando que os tempos da história estariam todos contidos no<br />
entrecruzamento do texto anterior, mas só percebidos neste instante em que o narrador<br />
vai e volta do passado, nesta curva do tempo. Não por acaso, a imagem do redemoinho<br />
é insinuada aqui (o diabo na rua...), na forma de uma espiral que nos reenvia a esta<br />
noção traçada e retraçada por Freud e Lacan, de um tempo desdobrado, ou só-depois da<br />
significação.<br />
A noção de a posteriori ou só-depois da significação articula tempo e memória,<br />
pois, ao supor uma significação dada ao trauma num tempo posterior ao evento<br />
recordado 559 , Freud estabelece um tempo desdobrado para a significação, onde só-<br />
depois o sujeito confere um sentido traumático a uma lembrança. O que se coloca em<br />
cena, portanto, além do distanciamento entre a memória e o acontecimento, entre a<br />
559 É difícil estabelecer uma data exata para os conceitos, numa obra que foi permanentemente revisada<br />
pelo seu autor, mas pode-se pensar na “Carta 69” de Freud a seu amigo Fliess, como um marco, uma<br />
reviravolta no pensamento que, ao deslocar a noção de sedução para a idéia de um trauma psíquico,<br />
situa na lembrança, e portanto só-depois, no presente da rememoração, o sentido traumático da<br />
recordação. Cf. FREUD, S. (1988d); COIMBRA, J. C. (1997).
memória e a realidade objetiva – já que não é o evento em si que se torna motivo do<br />
trauma, mas sim a forma como ele é lembrado por alguém: “Eu me lembro das coisas,<br />
antes delas acontecerem...” 560 – é esta noção de um tempo dividido em dois, que<br />
Riobaldo, além de possivelmente inspirar a tradução de M.D. Magno 561 (como se viu,<br />
só-depois é uma fala do jagunço), nos oferece através de outra expressão desdobrada,<br />
igualmente ligada ao trauma:“Bem que eu conheci Otalícia foi tempos depois; depois se<br />
deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após.”(Grifo<br />
nosso) 562 .<br />
O a posteriori consiste, em seu aspecto mais conhecido, naquilo que confere à<br />
rememoração a forma de uma ressignificação da história, que possibilita ao sujeito uma<br />
construção de sua história:<br />
... Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir<br />
relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa<br />
assim se ata, a gente sente mais o que o corpo a próprio é: coração<br />
bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. (ROSA, J.G.,<br />
2001, p. 154).<br />
Entretanto, o outro aspecto já insinuado do só-depois diz respeito ao jamais 563 ,<br />
ao irrecuperável do tempo perdido. A divisão do tempo coloca em jogo uma divisão do<br />
sujeito que leva o narrador a uma incessante interrogação sobre si mesmo diante da<br />
dobra do tempo: “Eu não tinha nada com aquilo, próprio, eu não estava só<br />
obedecendo? Pois, não era?” 564 Como tentei mostrar, esta divisão se acompanha de<br />
uma construção formal específica: “Ah, digo ao senhor: dessa noite não esqueço.<br />
560<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 47. A frase é retomada por Chico Buarque em seu último romance, Leite<br />
Derramado, que desenvolve, através das memórias de um narrador centenário e senil, idéias bastantes<br />
próximas sobre o tempo e a memória. Cf. BUARQUE, C. (2009).<br />
561<br />
O estudo de Magno sobre Rosa veio a constituir sua tese de doutorado no curso de Letras pela UFRJ.<br />
Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985).<br />
562<br />
Idem, p. 173.<br />
563<br />
Sobre estes dois aspectos do a posteriori, ver o capítulo da dissertação de mestrado em Teoria<br />
Psicanalítica da UFRJ, intitulado “O Só-Depois e o Jamais”, em FLANZER, S.N. (1998).<br />
564<br />
Idem, p.223.
Posso?” 565 Onde a reiteração das perguntas desfazem, desafiam a afirmação anterior,<br />
sendo dirigidas tanto ao um passado esquecido da história, “cidade acaba com o sertão.<br />
Acaba?” 566 ; como à sua experiência particular: “dessa noite não esqueço. Posso?” 567 .<br />
Ambas dizem respeito a uma suspensão do tempo, a um passado que não passa,<br />
seja na forma do sertão que permanece, seja na lembrança traumática da primeira noite<br />
de guerra. Cisão do sujeito que se interroga, e divisão do tempo; pois, nesta indagação,<br />
o passado é interrogado a partir do presente 568 . Na tentativa de passagem de um tempo a<br />
outro, algo não coincide, algo de refratário que se produz como resto não-integrado à<br />
história, resíduo que vem a ser uma das definições de real em Lacan, e que persiste<br />
impulsionando o próprio rememorar 569 , o mesmo real que roda e põe diante, e que se<br />
articula como repetição, movendo o rememorar em nova volta (daí a forma da espiral do<br />
tempo), na qual, contudo, o narrador não se vê mais identificado a si mesmo: “O senhor<br />
tolere e releve estas minhas palavras de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia,<br />
sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais” 570 .<br />
A dimensão de resto se nota, ainda, na indagação sempre reformulada e nunca<br />
completamente respondida, promovido sobretudo pelo silêncio do interlocutor:<br />
... E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era traição. Era? Hoje eu<br />
sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros.<br />
Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era.<br />
Agora, depois mais do tudo que houve, não foi? (ROSA, J.G., 2001, p.<br />
215).<br />
A divisão ou dobra do tempo coloca em questão uma idéia de memória que não<br />
se resume na ressignificação do passado, mas aponta para algo que insiste como um<br />
565<br />
Idem, p.225.<br />
566<br />
Idem, p.183.<br />
567<br />
Idem, p.225.<br />
568<br />
Para uma análise específica sobre este duplo aspecto do trauma na obra de Ruth Klüger, cf.<br />
TRÔCOLI, F. (2010).<br />
569<br />
Cf. LACAN, J. (2008b). E: “Que no intervalo deste passado que ele já é no que se projeta, um buraco<br />
se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui o que basta, para suspendê-lo<br />
da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno.” Cf. LACAN, J. (1996) p.57.<br />
570<br />
Idem, p. 204.
vazio; que, a cada vez, resta como não-realizado, não-recuperado, que impulsiona a<br />
rememoração. É, portanto, a partir da noção deste tempo desdobrado que a<br />
rememoração estabelece uma relação com o esquecimento, na medida em que a própria<br />
rememoração insiste numa recuperação da lembrança jamais integralmente bem-<br />
sucedida:<br />
... Eu atravesso as coisas e não vejo – e no meio da travessia não vejo!<br />
– só estava entretido era na idéia dos lugares de saída e de chegada.<br />
Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas<br />
vai dar noutra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso<br />
do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.51.).<br />
A noção de um esquecimento constituinte é pensada por Freud e Lacan através<br />
das diversas formulações que apontam, todas, para o inconsciente: o umbigo do sonho,<br />
a pulsão e o real como concepções-limite entre a representação e uma exterioridade. Em<br />
relação à rememoração, o inconsciente é definido como aquele lá onde era que se<br />
insinua através da repetição, mas na forma de um além, uma ausência ou hiância 571 ,<br />
suposto, só depois, como ponto de origem, enigma que em última instância se confunde<br />
com o próprio sujeito. Sujeito que se constitui não apenas dividido e descentrado, mas<br />
fundado sobre este esquecimento que assegura um limite à regressão infinita da<br />
rememoração: “sou do deslembrado” 572 .<br />
Ponto final e inaugural que não escapa ao questionamento de Riobaldo, quando<br />
se lembra da Guararavacã do Guacuí, o lugar onde seu amor se revela: “Será que tem<br />
um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar pra trás?” 573 E ponto<br />
enigmático – ao qual a cena do pacto alude (lembre-se do registro das Veredas Mortas,<br />
local do pacto: “Ali eu tive limite certo” 574 ) – levando-o a afirmá-lo também, quando se<br />
571 LACAN, J.(2008) p.59.<br />
572 ROSA, J.G. (2001) p. 546.<br />
573 ROSA, J.G. (2001) p.305<br />
574 Idem, p.418.
questiona por que não matou o Hermógenes antes, quando esteve comandado por ele,<br />
tendo-o a seu lado: “Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para<br />
trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para<br />
diante...” 575<br />
Se o a posteriori envolve uma superposição de tempos, onde a rememoração é<br />
determinada pelo desejo presente, um retorno que não é ao passado cronológico, mas ao<br />
“que é mais inicial e autêntico em mim” 576 ; também acena para o futuro, para Lacan, o<br />
tempo verbal do futuro anterior 577 , que corresponderia em língua portuguesa, ao futuro<br />
do presente composto, o tempo do que terá sido. Pois lá seria simultaneamente o local<br />
do porvir, no qual o retorno: “Não é um passo atrás, na descoberta de uma origem,<br />
mas, insisto, um retorno adiante, uma entrada mais adiante no país natal, em suma, o<br />
retorno do recalcado” 578 .<br />
Riobaldo tem sua versão sobre a pulsão como força constante 579 , que faz com<br />
que o passado retorne num passo à frente: “Os dias que são passados vão indo em fila<br />
para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os<br />
cavalos se arraçôam” 580 . O retorno do sertão faz com que o trabalho da rememoração<br />
caminhe novamente: “Mas o senhor vá avante (...) eu queria decifrar as coisas que são<br />
importantes” 581 . Imagem semelhante à dos cavalos se vê no que move o desejo de<br />
realização do pacto: “Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras<br />
do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios” 582 .<br />
575 Idem, p.229-230.<br />
576 NASIO, J.D. (1991) p.105.<br />
577 “Isto poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade<br />
que tem no seu presente o futuro anterior”. Cf. LACAN, J. (1996) p.57.<br />
578 Idem, (1988) p.28.<br />
579 “A primeira coisa que diz Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem<br />
noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante.” Cf.<br />
LACAN, J. (2008) p.163.<br />
580 ROSA, J.G. (2001), p.327.<br />
581 Idem, p.116.<br />
582 Idem, p.419.
Eu senhor de certeza nenhuma: o sujeito descentrado<br />
O espelho, são muitos (...)<br />
Mas que espelho?<br />
J.G.ROSA<br />
Ao desdobrar-se junto com o tempo, Riobaldo se depara com a inevitável<br />
experiência do descentramento: pois, ao afirmar: “No passado, eu, digo e sei, sou<br />
assim” 583 , já não sabe mais quem é, dividido entre o que lembra e o que é levado pela<br />
lembrança: “A lembrança dela me fantasiou (...)” 584 , “Noite lembrada em mim” 585 ; o<br />
que faz com que, a determinada altura, ele tenha se reconhecido num “eu senhor de<br />
certeza nenhuma” 586 . É interessante observar uma fusão, na forma eu-senhor, imagem<br />
dialética e poética – em outras palavras, a construção de um terceiro – entre o narrador<br />
que quer saber e o senhor que sabe, mas imediatamente, não sabe mais...<br />
Pois “a travessia é a travessia do espelho” 587 , das identificações imaginárias,<br />
cujo percurso é a produção de uma outra cena, onde o narrador pode olhar de fora para<br />
o espelhamento, e perceber a dissimetria, a diferença (que Riobaldo percebe depois, em<br />
Diadorim, Maria Deodorina) entre dois reflexos, e produzir um texto, imagem, obra,<br />
que ocupa o lugar do espelho, lugar de enigma que nos olha desde um ponto abissal, nos<br />
interroga, nos abre “a um vazio que nos olha, que nos concerne e, em certo sentido, nos<br />
constitui” 588 .<br />
A experiência de desencontro consigo mesmo, de um eu excêntrico a si é uma<br />
constante em Guimarães Rosa, e novamente parece que, a partir dos motivos presentes<br />
583 Idem, p.156.<br />
584 Idem, p.57.<br />
585 Idem, p.585.<br />
586 Idem, p.370.<br />
587 De acordo com Magno, numa referência a Lewis Carrol, atravessar o liso é atravessar o liso do<br />
espelho. O chiste refere-se à mudança na relação especular, bidimensional com o outro, para situar-se<br />
num lugar terceiro, mais aberto à dessemelhança. Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p.55.<br />
588 Sobre o espelho: Idem, p.190; sobre o que nos olha na imagem: DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.31.
nas interrogações de contos, como em “O Espelho”: “Você chegou a existir?” 589 , à já<br />
mencionada pergunta final do narrador no conto de sugestivo título “Nenhum,<br />
Nenhuma”: “eu; eu?” 590 ; Riobaldo leva ao extremo estas indagações, atravessando-as,<br />
indo e vindo com suas identificações, deixando-se atravessar pela incerteza, sem<br />
dissolver-se por completo, mas – tampouco – deixar de se reconhecer no Outro: “o<br />
sertão me produz, depois me engoliu, me cuspiu...” 591<br />
Desta forma, se o narrador confirma a divisão do sujeito que pensa onde não<br />
é 592 , não parece paralisar-se na oposição entre o ou pensa ou é. E traz – comparável,<br />
mas não idêntico a Hamlet – nossas contradições em aberto; pois, como ainda se verá, a<br />
pergunta se o diabo existe e não existe? resta sem resposta até o fim, permanecendo<br />
como a nossa questão: to be or not to be, versão brasileira; onde a inconclusão consiste<br />
muito mais numa “escolha poética” 593 (em decidir ser ‘e’ não ser, ao invés de paralisar<br />
na dúvida entre ser ‘ou’ não ser) do que numa suposta “‘natureza ‘duvidosa’ da<br />
identidade brasileira” 594 :<br />
589<br />
Não me estenderei no comentário sobre este conto já exaustivamente analisado à luz da psicanálise,<br />
apenas observo o mesmo endereçamento da questão, nele formulada através da identidade, a um senhor<br />
culto, apontando uma noção de sujeito que vem necessariamente do Outro, presente no primeiro<br />
parágrafo do texto: “O senhor, por exemplo, que estuda e lê, suponho nem tenha idéia do que seja na<br />
verdade – um espelho?” – O conto termina com a pergunta direta ao leitor, através de nova provocação:<br />
“Você chegou a existir? Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de que vivemos<br />
em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora,<br />
sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto.” ROSA, J.G. (1988) p.65; 72.<br />
590<br />
Idem, p.54.<br />
591<br />
ROSA, J.G. (2001) p.601.<br />
592<br />
No item “Do sujeito da certeza”, Lacan destaca a oposição entre o sujeito freudiano e o cógito<br />
cartesiano, definindo o inconsciente como “nem ser, nem não ser”, mas como não-realizado, como o<br />
representante de algo que não está lá, constituindo um sujeito que pensa onde não é, e também menciona<br />
Hamlet, sujeito imerso na dúvida entre ser ou não ser. Cf. LACAN, J. (2008) p.36-41.<br />
593<br />
Todas as vezes em que me refiro à escolha poética em deixar as perguntas em aberto, trata-se da fala<br />
de Didi-Huberman, segundo a qual “a suspensão da conclusão é uma questão de ritmo”, “não reponder é<br />
uma decisão poética” do artista que assim decidiu (“il a bien décidé”), que acena também para a ética e a<br />
responsabilidade de toda escolha. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009/2010). Em outras palavras, o<br />
indecidível não está dado de antemão, não constitui uma ‘natureza em si’; diferença que, pensada no<br />
contexto do olhar crítico do escritor sobre a nossa história, talvez se traduza na escolha entre um elogio<br />
de uma indecisão perpétua, ou da suspensão que nos reapresenta a contradição, de uma dialética que se<br />
abre para uma terceira possibilidade.<br />
594<br />
Cf. FINNAZI-AGRÒ, E. (2001) p.143. Tomo emprestada a expressão utilizada pelo pesquisador,<br />
embora saiba que sua perspectiva é histórica, para ilustrar uma abordagem existente da ambigüidade<br />
brasileira enquanto identidade, natureza a-histórica; numa palavra, um destino, ao qual a decisão de ser<br />
e não ser se contrapõe.
...A suspeita prévia, mais uma vez, é que a solução do dilema nacional<br />
– assim como a questão da existência ou inexistência do Diabo –<br />
esteja dobrada na pergunta, ou seja, que a verdade de uma nação que<br />
não é “una” (...) consiste justamente na sua inconsistência e<br />
indefinição, ou melhor, no seu conter de modo problemático e<br />
interrogativo, tudo aquilo que a pode abolir: “O Brasil existe e não<br />
existe?” (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p. 102).<br />
Na entrevista de 1965 a Günter Lorenz, Rosa afirma a brasilidade justamente<br />
como algo de originário, mas, noutro de seus muitos paradoxos, “a língua de algo<br />
indizível.(...) talvez um sentir-pensar” 595 , fornecendo como um dos exemplos de<br />
brasilidade, após o exasperado apelo do entrevistador alemão; exatamente a crença no<br />
diabo, o que só vem reforçar a leitura da questão, aqui, como pergunta que nos devolve,<br />
poeticamente, a forma do nó, o fascínio e o horror de ser e não ser 596 presentes em<br />
nossas contradições irresolvidas (apesar de certa disjunção entre esta leitura e a<br />
declaração final do escritor de uma possível superação completa da questão):<br />
... Um terceiro exemplo: segundo nossa interpretação brasileira, não<br />
muito cristã, mas muito crédula, o diabo é uma realidade no mundo.<br />
Está oculto na essência das coisas, e faz ali suas brincadeiras. A<br />
ciência existe para expulsar o diabo. O homem sofre sempre o<br />
desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode assim<br />
liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem<br />
falsidades. Também isto é brasilidade. (In: LORENZ, G., 1983, p.62).<br />
Considerando as implicações desta pergunta paradoxal, juntamente com a noção<br />
de um sujeito dividido e descentrado, não se pode argumentar que a rememoração da<br />
vida do jagunço unifica a história, conferindo-lhe uma identidade íntegra – pois vida,<br />
diz ele, “a vida não é entendível” 597 : “Vida” é noção que a gente completa seguida<br />
assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia” 598 . E Diadorim ensina que:<br />
595 LORENZ, G. (1983) p.92.<br />
596 Ver também a noção de imagem poética em Octavio Paz, justamente como o que condensa os opostos<br />
em uma única unidade, rompendo com a lógica pré-socrática de Parmênides o ser é – o não ser não é.<br />
Em: PAZ, O. (1972) p.37.<br />
597 ROSA, J.G. (2001) p.156.<br />
598 Idem, p.414.
“A vida nem é da gente...” 599 , insinuando a impossibilidade de dissociar inteiramente<br />
esta destituição da vida de seus enlaces sociais, já que há um confronto explícito entre o<br />
fazendeiro, “sujeito da terra definitivo” 600 , e o jagunço, “homem provisório” 601 , que<br />
articula a destituição do jagunço também às condições impostas por aquele sertão.<br />
Entretanto, o percurso da rememoração põe em cena uma destituição que não se<br />
restringe à esfera social, pois, em que pese a fronteira fluída entre os termos eu e outro<br />
(fluidez acentuada por toda a obra de Rosa e para a qual o próprio conceito de<br />
destituição subjetiva irá apontar), trata-se, na destituição, de uma espécie de<br />
esquecimento de si, comparável, como a lemos, ao gesto fundador de Medeiro Vaz:<br />
... Quando moço, de antepassados de posses, ele recebera grande<br />
fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras e os<br />
desmandos dos jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito<br />
carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer<br />
sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e<br />
se espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar,<br />
reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em<br />
terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só<br />
nascimento (...). No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na<br />
distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de seu pai, avô, bisavô (...)<br />
Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com<br />
cacho d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos<br />
campos, e saíu por esse mundo em roda, para impor a justiça...(ROSA,<br />
J.G., 2001, p.60).<br />
Cansado da violência, deste imundo de loucura; num único gesto, Medeiro Vaz<br />
reconhece seu dever, sua condição de assujeitamento, e destitui-se dela, despojando-se<br />
de todos os vestígios de sua vida anterior, instituindo um nada, um marco inicial que,<br />
por sua vez, dará origem à nova subjetivação, relacionada à era dos medeiros-vazes.<br />
599 Idem, p.171.<br />
600 Idem, p. 429.<br />
601 Idem, ibidem.
Destituição e esquecimento: os vários riobaldos e o rio<br />
Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das<br />
beiradas mal nem vejo...<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Se o curso da vida de Riobaldo não unifica completamente a história, não é<br />
somente porque, conforme visto no primeiro capítulo, as memórias coletivas<br />
atravessam, compondo a narrativa e dificultando o seu enquadre como um relato de<br />
memórias puramente individual. Mas também, porque, ao falar de si, tampouco se trata<br />
de um único Riobaldo: na rememoração de sua vida, o narrador se desdobra em vários<br />
eus, discerníveis através de seus vários nomes: o menino, o professor, o jagunço<br />
Tatarana, o cerzidor, o chefe Urutú Branco e o fazendeiro aposentado.<br />
Do ranger de sua rede, ele conta as suas memórias entrecruzadas pelas memórias<br />
dos outros, os casos de caipira, sem que nenhuma delas – assim como nenhuma de suas<br />
identidades, isoladamente – se estabeleça como definitiva, ou responda definitivamente<br />
aos seus questionamentos; e além disto, é capaz de filosofar sobre:<br />
... De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada<br />
vez daquela hoje vejo que era como se fosse diferente pessoa.<br />
Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.115).<br />
A constatação leva imediatamente ao questionamento de Agamben em sua<br />
investigação sobre o testemunho 602 : diante destes vários eus, considerando a noção de<br />
um narrador-testemunha; quem narra, quem é o sujeito da narrativa? De que começos<br />
ou limites Riobaldo fala, quando assinala determinados pontos que parecem marcar a<br />
passagem de uma identidade a outra, com termos como: uma transformação pesável, ou<br />
o primeiro dia da travessia do São Francisco 603 ? Ou: “Tudo agora reluzia com<br />
602 Cf. AGAMBEN, G. (2008).<br />
603 “Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.” Cf. ROSA, J.G. (2001) p. 116.
clareza” 604 , e “de meus íntimos esvaziado” 605 após o pacto. Ou, ainda: “Desmim de<br />
mim mesmo” 606 , diante da morte próxima de Diadorim?<br />
Duas noções lacanianas bastante úteis para pensar a questão são as de retificação<br />
e destituição subjetiva. Enquanto a retificação subjetiva concerne a uma re-significação<br />
do passado através do trabalho da rememoração, ao apelo à construção de um saber<br />
sobre si mesmo através do rememorar; a destituição subjetiva refere-se a um conceito<br />
pensado inicialmente por Lacan a partir da experiência do término do processo de<br />
análise – associado, portanto, à travessia do fantasma – quando o sujeito “se reconhece<br />
na opacidade de um objeto pulsional que o constitui ao mesmo tempo que lhe<br />
escapa” 607 (cf. o caso de Medeiro Vaz), opacidade relacionada à uma queda do sujeito<br />
suposto saber e à noção de algo que resta, não mais vinculado ao imaginário, mas com o<br />
real.<br />
A destituição diz respeito a um momento em que o sujeito, reconhecendo que<br />
sempre haverá um resto impossível de nomear, um inacessível à palavra, pertencente ao<br />
registro do real, pode atravessar o seu fantasma, o que provoca uma “queda” deste<br />
sujeito (“o faz tombar de seu fantasma”) 608 , ao mesmo tempo assegurando-lhe a<br />
possibilidade de seguir em frente com o testemunho de um novo saber, o da sua própria<br />
análise, e mais aberto à experiência do real. Em termos mais próximos à memória,<br />
haveria um confronto com a impossibilidade de recuperar o tempo perdido e uma<br />
abertura ao esquecimento constituinte. A idéia de que o fantasma desvela seu aspecto<br />
real faz, ainda, com que ele se represente como algo de “informe, de impessoal, de<br />
opaco” 609 , de desumano.<br />
604 ROSA, J.G. (2001) p. 440.<br />
605 Idem, p.439.<br />
606 Idem, p. 610.<br />
607 SAFATLE, V. (2006) p.216.<br />
608 LACAN, J. (s/d) p.36.<br />
609 SAFATLE,V. (2006) p.219.
Neste sentido, é interessante comparar a destituição de Riobaldo na imagem do<br />
rio, seu desejo de pensar como o rio anda, com a transmutação em onça do narrador de<br />
“Meu Tio, o Iauaretê” 610 . Enquanto no conto, que reproduz a forma do diálogo<br />
silencioso com um visitante, o leitor é lançado desde o início numa espécie de vertigem,<br />
de ameaça, que termina com uma alusão à morte – seja do ‘eu – onça’ pelo moço de<br />
fora, antecipado na fala do selvagem: “Eu vou. Um dia volto mais não” 611 ; seja do<br />
moço, devorado por este âmago, coração selvagem das trevas 612 . Por outro lado, no<br />
GSV, a destituição configura uma corrente, de acordo com a definição de Agamben 613 ,<br />
que não se dá apenas no fim; não custa lembrar que o real se apresenta para a gente é no<br />
meio da travessia. Mas, além disso, para Riobaldo, a corrente é tomada ao pé da letra:<br />
“Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não<br />
quer ir a nenhuma parte, ele só quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo” 614 .<br />
No GSV, a imagem do rio, do tornar-se o rio, surge como efeito das sucessivas<br />
passagens, que pode ser visto, em retrospecto, nas múltiplas subjetivações, por toda a<br />
travessia como um passado que está lá só-depois. Porém, diversamente da saída para o<br />
assassinato, presente em “Meu tio”; Riobaldo mergulha no “reprofundo” 615 , mas não se<br />
afoga. Em contraste com o um dia volto mais não do onceiro, como veremos adiante, as<br />
canções de Siruiz falam justamente de um jogo entre o ir e voltar. E, ainda,<br />
diferentemente da “Terceira Margem do Rio” 616 , tampouco há o imperativo da morte, o<br />
fim do tempo, como condição para descer rio abaixo, para tornar-se o próprio tempo.<br />
610<br />
ROSA, J.G. (1969).<br />
611<br />
Idem, p.142.<br />
612<br />
Conferir a comparação entre o conto, o GSV e o romance de Joseph Conrad. Cf. FINNAZI –AGRÒ,<br />
E. (2001) e cap. 4 deste trabalho.<br />
613<br />
Cf. Cap. 2 desta tese.<br />
614<br />
ROSA, J.G. (2001) p.450. É interessante perceber o paralelo entre questões que Rosa desenvolve em<br />
sua obra, formuladas através da teoria e da clínica psicanalítica: “...como atravessar o fantasma a fim de<br />
disponibilizar ao sujeito a experiência de um real capaz de produzir o descentramento? E, principalmente,<br />
como atravessar o fantasma sem jogar o sujeito, de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?”<br />
Em: SAFATLE, V. (2006) p.205.<br />
615<br />
ROSA, J.G. (2001) p.365.<br />
616 Idem, (1988).
Pois o rio reúne a metáfora de Lete, o rio do esquecimento, mas também a do correr do<br />
tempo, do vir a ser, de Heráclito, no qual um homem não se banha duas vezes:<br />
... Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar – tem uma coisa!:<br />
eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente<br />
duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.603).<br />
Ao invés de dissolver-se completamente no tempo, Riobaldo, que se viu aberto,<br />
dividido pelo tempo, pelo São Francisco, que partiu sua vida em duas partes; ao tornar-<br />
se rio, também é capaz de abrir-se a este tempo e à sua dimensão criadora, visível na<br />
imagem da travessia no final do texto, que evoca este tempo no tempo, do tornar-se<br />
tempo aqui-agora, do rio como aquilo que só-depois, inserido no princípio, acena para<br />
o devir das coisas futuras.<br />
Como ensina Lacan, a destituição tem a ver com a já comentada noção de algo<br />
que resta, produto do só-depois da significação: “Que possam surgir liberdades da<br />
clausura de uma experiência, eis o que tem a ver com a natureza do ‘aprés-coup’ na<br />
significância.” 617 Experiência de deslocamento, abertura, descentramento e estranheza<br />
comparável à obra de arte, daí a possibilidade da leitura de Magno, partilhada por<br />
Susana Lages 618 , do texto como resto, resíduo da travessia.<br />
Neste sentido, é também possível indagar se a famigerada pergunta sobre o<br />
Diabo, fantasma que constitui Riobaldo como sujeito desta busca, que o fascina e<br />
assombra por toda a narrativa – apesar de permanecer em aberto, através do pingado de<br />
pimenta que o escritor introduz com a expressão se for, reinstauradora da dúvida – em<br />
617 LACAN, J. (s.d.) p. 39.<br />
618 Cf. p.135 deste trabalho.
suma, se esta questão-fantasma não é destituída no final do romance, ou seja, de algum<br />
modo, deslocada, dando lugar à imagem da travessia 619 :<br />
...Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não<br />
existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto.<br />
Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe<br />
é homem humano. Travessia. (ROSA, J.G., 2001, p.624).<br />
Na travessia precedida, no fim, como no início do texto, por não e nada 620 , vai<br />
se delineando uma possível resposta à questão de quem narra, do narrador-testemunha,<br />
situado neste limite instável entre um e outro, o que narra e é narrado, pois quando<br />
Agamben afirma que “o sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma<br />
dessubjetivação” 621 , é preciso ler o que ele diz em seguida, que vem a ser a já citada<br />
corrente de subjetivações e dessubjetivações própria ao testemunho, justamente como o<br />
testemunho de Riobaldo, que atravessa o deserto, mas não o habita o tempo todo (como<br />
supõe-se do pai, na terceira margem do rio): Riobaldo traz o rio em seu nome, mas vai<br />
lá e volta, como a letra da canção de Siruiz, o brinquedo do menino de “Os Cimos” 622 e<br />
– evidentemente – como o carretel do neto de Freud.<br />
Se a destituição, a queda do sujeito, dá lugar a esta noção de sujeito de<br />
passagem 623 , à imagem da travessia e à identificação com o rio, é interessante pensar<br />
que, além de ser possível somente em retrospectiva perceber como toda a narrativa traz<br />
esta marca 624 ; há uma provável escolha poética do escritor – tão atento aos jogos<br />
formais com a simetria e a dissimetria, à disposição das palavras no texto e à ordem dos<br />
619<br />
Na leitura de Safatle sobre a destituição subjetiva, o objeto não seria abandonado, dando lugar a um<br />
puro deslizamento significante, mas trata-se de um “deslocamento no interior da significação do objeto”,<br />
que possibilita o “desvelamento do descentramento”, ou experiência do real, que ele nomeia como carne,<br />
termo inspirado em J.P. Sartre, que revelaria a opacidade do objeto, pois Safatle está tratando questão<br />
da destituição do sujeito através do amor. Cf. SAFATLE, V. (2006) p.206.<br />
620<br />
Nonada vem a ser a contração de não e nada, sinônimo ainda de tutaméia, ninharia, pouca coisa, e<br />
aparece abrindo e fechando o texto, como sua primeira palavra e uma das últimas, no parágrafo final.<br />
621<br />
AGAMBEN, G. (2008) p.124.<br />
622<br />
ROSA, J.G. (1988).<br />
623<br />
Utilizo a idéia de passagem e travessia também presente em FINAZZI-AGRÒ, E. (2001).<br />
624<br />
Magno destaca o caráter da letra (∞) como simultaneamente resíduo e fundamento da narrativa do<br />
GSV, que vem em lugar do que a palavra não alcança: “É com esta letra, com este ícone, que Rosa<br />
marca a anca do seu bezerro erroso chamado Grande Sertão: veredas.” Cf. MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p.56.
contos nos livros – ao inscrever nonada como a primeira, mas não a sua última palavra,<br />
esta, sim, a travessia, que indica um retorno ao início do livro, à estória contada e escrita<br />
do (re)memorar.<br />
Nas idas e vindas da rememoração de seus outros eus, a noção de sujeito da<br />
narrativa, o narrador-testemunha, portanto, não consiste propriamente numa<br />
objetividade, sendo pensada como lugar 625 , passagem, efeito, de um a Outro, dando<br />
testemunho de suas dessubjetivações e engendrando novas subjetivações, definição que<br />
complementa a já mencionada leitura de Arrigucci de que a narrativa individual se<br />
desenreda da coletiva, pois revela a constituição deste sujeito não apenas a partir destes<br />
outros eus; mas, fundamentalmente, a partir do Outro como campo do não-realizado,<br />
inconsciente, como os campos gerais “cheios de nada” 626 , o mesmo nada capaz de<br />
“virar coisas” 627 .<br />
A rememoração é, portanto, realizada na dupla face destituição-retificação, na<br />
qual ambas respondem pela (im)possibilidade de narrar uma história. Em sua fala para,<br />
Riobaldo pode passar – com a intervenção silenciosa deste senhor que soube escutar o<br />
seu pedido por um silêncio – da repetitiva suposição o senhor sabe, para outras<br />
posições, onde a reserva de saber do senhor insere uma lacuna, na qual o senhor não<br />
sabe – “o senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e<br />
acusa buracões profundos” 628 – “Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luiz-e-silva.<br />
O senhor não sabe, o senhor não vê” 629 – permitindo, assim, a introdução de uma<br />
negação mais radical ainda no interior de seu discurso:<br />
625 MAG<strong>NO</strong>, M.D. (1985) p. 14.<br />
626 ROSA, J.G. (2001) p. 538.<br />
627 Idem, 296.<br />
628 Idem, p. 357.<br />
629 Idem, p.608.<br />
... Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo,<br />
sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz,
então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as coisas que<br />
formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe<br />
falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém<br />
ainda não sabe (grifo nosso). Só umas raríssimas pessoas – e só essas<br />
poucas veredas, veredazinhas... (ROSA, J.G. Op. Cit., p. 116).<br />
A passagem de o senhor não sabe para ninguém não sabe 630 somente pode ser<br />
realizada graças ao silêncio, ao não saber responder às suas demandas, por parte deste<br />
senhor-escritor-analista, que introduz e possibilita a construção deste silêncio, fazendo<br />
com que, quando Riobaldo lhe proponha: “Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio,<br />
põe no colo” 631 – o silêncio se espraie pela obra e por todos nós, senhores-leitores. Pois<br />
ao pedido por um silêncio se junta o pedido por uma intervenção que ponha ponto final<br />
na rememoração infinda: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.” 632<br />
A partir deste nada absoluto, Riobaldo passa da expectativa de objetividade do<br />
relato, para a criação narrativa:<br />
... E mais não digo; chus! Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe.<br />
Conto. Reinaldo – ele se chamava...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.155).<br />
E pode, então, ocupar uma outra posição, chamada por Lacan de discurso do<br />
mestre ou do analista, posição de alguém que passou de um lugar expectante para um<br />
lugar onde se reconhece como tendo sido capaz de atravessar e deixar-se atravessar pela<br />
linguagem, pelo ser narrado e pelo vazio, de onde não e nada, ninguém não sabe<br />
(destituição, dessubjetivação) pode dar lugar a algo, lugar de mestria ou autoria<br />
(retificação, nova subjetivação): o senhor saiba; é como ele se refere algumas vezes ao<br />
visitante, agora inversamente colocado na posição de aprendiz, expressão que aparece,<br />
630 Creio ter encontrado a mesma diferença entre estes dois registros na já mencionada distinção de Iser<br />
entre a lacuna e a negatividade radical (cf. Cap.2), na formulação do vazio que é destinado a<br />
permanecer desconhecido, de Collot (cap. 2); ou na formulação lógica pensada por Lacan, que distingue<br />
entre o zero e o nada, entre o que pode ser preenchido e o que já é, em linguagem rosiana, cheio de nada,<br />
centro opaco, que não pode ser preenchido, mas funciona como centro insondável de sustentação da<br />
subjetividade ou de origem da narrativa. Cf. LACAN, J. (s/d).<br />
631 ROSA, J.G. (2001) p. 306.<br />
632 Idem, p. 546.
não por acaso, com maior freqüência após o pacto: “Saiba o senhor – lá como se diz –<br />
no vertiginosamente: avistei meus perigos” 633 . – “Saiba o senhor, eu estava ali, assim,<br />
em padastro de todos” 634 .<br />
Na passagem de um a outro, o que se representa é o sujeito, o sujeito como efeito<br />
ou lugar (tutaméia?), movimento, “montagem surrealista da pulsão” 635 (talvez<br />
coubesse, devido à semelhança entre os ângulos recortados aos cacos e ruínas, e ao<br />
caráter parcial, não-todo de toda imagem, lembrar, também, a composição cubista da<br />
canção popular 636 ). Dividido e descentrado, mas aberto pelo e ao tempo, a quem é<br />
possível tornar, torcer, o exílio, o desterro, a perda; em viagem, dansa, criação – sujeito<br />
sempre outro – no dizer de Riobaldo: “acho que eu não era capaz de ser um só o tempo<br />
todo...” 637<br />
Por tudo isto, é possível concluir que, quando o crítico Finazzi-Agrò afirma que<br />
a travessia não apaga a melancolia, está se referindo à marcha do progresso, e não a esta<br />
travessia do rememorar:<br />
... Mas a travessia, o ir além e para a frente, o ser arrastados, pela<br />
“tempestade do progresso”, rumo ao futuro, não pode nem deve<br />
apagar o olhar melancólico que Guimarães Rosa – como o Ângelus<br />
Novus, como o anjo da história imaginado por Benjamin – teve que a<br />
coragem de dirigir à dimensão assombrosa de que se (e nos) afastou: a<br />
esse passado selvático, disseminado de ruínas, povoado pelos mortos e<br />
pela Morte... (FINAZZI-AGRÒ, E., 2001, p.142).<br />
Pois, se a travessia é a busca da outra coisa, da sobre-coisa e das coisas<br />
importantes, alçadas à dimensão de negatividade, das terceiras memórias, da não-<br />
memória, que se deslocam, alternando-se no texto com os conteúdos positivos da<br />
memória: as lembranças coletivas, as lembranças de guerra, as lembranças de Diadorim,<br />
num ir e vir da memória e das palavras às imagens-sem-nome benjaminianas, ao silêncio<br />
633 Idem, p.366.<br />
634 Idem, p.602.<br />
635 LACAN, J. (2008b).<br />
636 Trata-se da canção chamada Vaca Profana, do compositor Caetano Veloso.<br />
637 Ibidem, p.485.
e ao esquecimento, das lembranças que vão em fila para o sertão; mas retornam, desde<br />
os ocos e ermos, como os cavalos... – seguindo as definições em aberto do mesmo<br />
crítico, cabe tentar reinscrever a questão, parafraseando Riobaldo, na forma das suas<br />
construções inquietantes: A travessia não apaga a melancolia. Apaga?<br />
E, por ser poética e sempre outra a travessia, é possível revertê-la numa imagem que<br />
tensiona e reúne os dois opostos: a travessia da melancolia. Talvez, assim, ela recoloque<br />
o problema do que Rosa realiza de forma única neste livro, considerando a melancolia<br />
em nossas raízes mais íntimas.
IV. OFICINA ABERTA 638 : PALAVRA, IMAGEM E <strong>ESQUECIMENTO</strong><br />
Os Nomes da Memória<br />
...Tudo é porta<br />
tudo é ponte<br />
OCTAVIO PAZ<br />
Findo o sólido. Findo o contínuo e o calmo. Uma certa dança está em toda<br />
parte.<br />
HENRI MICHAUX<br />
...Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
A identificação – ou destituição – de Riobaldo em apenas rio nos traz de volta à<br />
questão do nome, da importância capital do nome e da nomeação das coisas no texto,<br />
antecipada na epígrafe acima. Em termos mais teóricos, a leitura da memória e do<br />
tempo no romance de Rosa – e, principalmente as considerações finais, sobre o ir e vir<br />
das imagens no espelho de Riobaldo, bem como a produção de um resto resistente à<br />
significação, na imagem da letra [∞] – relacionada às noções de Inconsciente e real,<br />
apontam para a idéia de um passado tecido de linguagem, onde diversos índices opacos<br />
do que é não-totalmente recuperado pela lembrança coloca em evidência uma outra<br />
dimensão da linguagem, além do significante, que nos traz de volta às discussões sobre<br />
a criação poética. 639<br />
638 De acordo com o artigo de Ana Luiza Martins Costa, este seria um dos títulos encontrados por Paulo<br />
Ronái numa lista do escritor, junto a outros possíveis títulos para a coletânea Ave, Palavra. Em<br />
GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M. (2006) p.211.<br />
639 Apenas para indicar alguns pontos de discussão, alguns elementos reiteram o quanto estas leituras do<br />
nome estão mais próximas do que parecem com as formulações psicanalíticas apresentadas anteriormente,<br />
vejam-se as afirmações de Lacan em 1972, no momento em que está tentando estabelecer sua teoria numa<br />
linguagem matemática, através da topologia (por ex. a Banda de Moebius); e faz uma espécie de revisão<br />
de seu ensino: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem, eu não disse pela”. E acrescenta: “a<br />
referência pela qual eu situo o inconsciente é justamente aquela que escapa à lingüística (...) eu o disse<br />
em quê: no que a condensação e o deslocamento antecederam a descoberta, com a ajuda de Jakobson, do<br />
efeito de sentido da metáfora e da metomínia.” Cf. LACAN, J. (2003) p.490-491. O que se vê nesta nova<br />
visada lacaniana, portanto, é um privilégio da linguagem sobre a concepção de cadeia significante dada<br />
pela lingüística, no que a linguagem aponta para um além do signo, ou seja, a própria definição de<br />
inconsciente.
O debate, apresentado desde Platão, é reavivado com o surgimento da<br />
lingüística, caracterizando uma discussão à qual: “Toda a filosofia, e toda a literatura<br />
posterior a Platão, terá de lidar de alguma forma” 640 , e remonta à discussão sobre a<br />
origem das línguas e a natureza da linguagem, dividida entre uma teoria baseada na<br />
arbitrariedade do signo, adotada pela lingüística, e uma concepção da origem natural ou<br />
originária da linguagem, pensada a partir do primeiro romantismo alemão 641 ; sendo<br />
exposto da seguinte forma por Susana Lages:<br />
... o conflito entre uma visão cratilista e uma visão que poderíamos<br />
chamar de hermogênea da linguagem, assim como é apresentada por<br />
Platão no Crátilo. O problema da adequação entre nome e coisa<br />
conduzido por Sócrates nesse diálogo constitui o fundamento de<br />
qualquer discussão moderna sobre a linguagem e dá origem a duas<br />
vertentes, nomeadas segundo os interlocutores de Sócrates no diálogo<br />
– Hermógenes e Crátilo. A primeira, ligada ao que hoje chamamos, a<br />
partir de Saussure, arbitrariedade do signo ou da linguagem, ou depois<br />
de Benveniste, de convencionalidade do signo, contraposta a uma<br />
linhagem cratilista, cujo cerne é a idéia de algo que hoje se<br />
convencionou chamar caráter não-arbitrário ou motivado do signo...<br />
(LAGES, S.K., 2002, p. 122-123).<br />
Como assinala Seligmann-Silva, Benveniste não se pronuncia sobre a origem,<br />
por considerá-la uma questão metafísica; simplesmente deixa-a de lado, em favor de<br />
uma concepção da natureza arbitrária do signo 642 . Diferentemente desta, há no primeiro<br />
romantismo alemão (de F.Schlegel e Novalis) uma concepção mágica, ligada a uma<br />
origem divina ou natural, um além do aspecto comunicacional ou instrumental da<br />
língua, e que se formulava através de três momentos fundamentais: o de uma natureza<br />
da linguagem a priori, segundo Novalis: “o tempo no qual pássaros, animais e árvores<br />
falavam” 643 , marcado pela semelhança entre a linguagem e o mundo; a passagem à<br />
queda, que equivale à ruptura com as similitudes, à origem das diferentes línguas, à<br />
640<br />
LAGES, S.K. (2002) p.123.<br />
641<br />
Cf. SELIGMANN-SILVA, M. (1999).<br />
642<br />
Idem, p.23.<br />
643<br />
Apud. SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.24.
fragmentação desta relação, que resulta numa fragmentação da linguagem e da<br />
apreensão das coisas; e a tentativa de restituição desta linguagem originária, através da<br />
idéia do mundo como livro a ser lido, decifrado e reescrito, numa escrita que se<br />
encarregue da colagem dos cacos, da restituição do poder mágico que ligava as palavras<br />
às coisas, que vem a ser proposta através da escrita poética.<br />
No GSV, ambas as dimensões surgem articuladas à memória e ao esquecimento,<br />
seja através de um deslizamento das imagens do passado, como vimos, entre as diversas<br />
identificações de Riobaldo; ou, na constatação de imagens que escapam, de um núcleo<br />
irredutível à memória e à dimensão instrumental da linguagem, onde os signos são<br />
tomados em sua opacidade. Riobaldo vê nos olhos de Diadorim os olhos de sua mãe, e<br />
se diz transportado pela lembrança a esta similitude originária com o mundo: “Então,<br />
eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante” 644 .<br />
Do mesmo modo, diante da perda dos nomes dos lugares marcados nas<br />
recordações de infância, que são, com o tempo, substituídos por outros, o personagem<br />
lamenta: “é em senhas” 645 . Cabe demarcar novamente o necessário (e impossível, de<br />
todo) deciframento da senha, que revela e esconde seu sentido, na mesma fala em que,<br />
ao ressaltar o caráter sagrado do nome, ele não diz que os nomes se sucedem em<br />
séries...<br />
A importância dos nomes próprios já foi destacada por Ana Maria Machado em<br />
Recado do Nome 646 , onde a autora se pergunta justamente sobre as funções do nome na<br />
obra de Rosa, marcada pela presença de uma dimensão significante, cujo conteúdo se<br />
associa a outro significante no texto (ex: Diadorim, Diá, o diabo); indissociável de uma<br />
função nomeadora, de um “nome que enche os tons” 647 . A crítica partiu principalmente<br />
644 Idem, p. 164.<br />
645 ROSA, J.G. (2001) p. 58.<br />
646 MACHADO, A.M. (2003).<br />
647 Idem, a citação acima, do texto de Rosa, constitui o título do capítulo 4 do livro de A.M. Machado.
a partir da leitura do “Recado do Morro” 648 , onde o nome se transmite através de um<br />
recado que, como pontuou Wisnik 649 , é diferente de mensagem, pois a idéia do recado é<br />
de que o nome porta uma significação não-comunicacional a ser decifrada, algo que se<br />
encontra, também, na descrição do nome de Diadorim: “Diadorim – o nome<br />
perpetual” 650 .<br />
O nome porta uma densidade que se articula à concepção romântica da<br />
linguagem, e que, por sua vez, como ressalta Seligmann-Silva, encerra “nada – ou<br />
muito pouco de metafísico” 651 , pois a noção da linguagem decaída insere<br />
necessariamente uma concepção de linguagem muito próxima da Modernidade, na<br />
medida em que é fundada sobre a ruptura com as coisas e a fragmentação, onde a<br />
palavra divina é dada como perdida. É a esta linguagem que a poesia tentaria restituir,<br />
desvinculando-a do sentido cotidiano, para um sentido criador, de uma linguagem<br />
concebida como pura linguagem:<br />
...Língua elevada à segunda potência (...) língua do som e imagemescrita.<br />
Ela possui mérito poético e não é retórica – subalterna –<br />
quando ela é uma expressão perfeita – eufônica – correta e precisa –<br />
quando ela é como que uma expressão com [e] pela expressão –<br />
quando ela ao menos não aparece como meio – mas é em si mesma<br />
uma produção perfeita da faculdade lingüística superior. (<strong>NO</strong>VALIS,<br />
apud. SELIGMANN-SILVA, M., 1999, p.28).<br />
A importância dada por Guimarães Rosa não apenas aos nomes próprios, mas às<br />
palavras em geral – também encontra raízes na formulação romântica da poesia,<br />
segundo a qual “todas as palavras são elevadas à categoria de nome” 652 – tornando-se<br />
visível no gosto do escritor por coletar palavras, confeccionar listas, nos diários e<br />
cadernetas amplamente utilizados em seu processo criativo. Método que revela uma<br />
648 ROSA, J.G. (2001b).<br />
649 WISNIK, J.M. (1998).<br />
650 ROSA, J.G. (2001) p. 387.<br />
651 SELIGMANN-SILVA, M. (1999) p.26.<br />
652 Idem, p.32.
procura intensa pela palavra precisa; e articula, também, a memória pessoal do escritor a<br />
esta crença no poder mágico do nome, da palavra, da linguagem 653 , pois os nomes<br />
procedem dos registros da experiência subjetiva do escritor, seja no caso da viagem de<br />
1952, pelo sertão, junto com os vaqueiros; ou em suas anotações de viagem como<br />
diplomata pela Europa:<br />
...Quando saio montado num cavalo pela minha Minas Gerais, vou<br />
tomando nota das coisas. O caderno fica impregnado de sangue de<br />
boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada<br />
espécie, tem um vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o<br />
vôo de cada pássaro, a cada momento. Eu não escrevo difícil. EU SEI<br />
O <strong>NO</strong>ME DAS COISAS. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.,<br />
2006, p.196).<br />
Na entrevista a Günter Lorenz, o autor fala da criação de uma linguagem<br />
própria, como um estilo necessário ao escritor e ao homem, criação pautada numa<br />
relação de amor com a língua, expressa na já célebre citação: “A língua e eu somos um<br />
casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente” 654 . Amor pela ida ao sentido<br />
originário das palavras, em uma “utilização de cada palavra como se ela tivesse<br />
acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la ao<br />
seu sentido original” 655 . Na mesma entrevista, a procura pela palavra revela-se como<br />
um método de escrita: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra<br />
ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias” 656 .<br />
O cuidado se revela, no GSV, na escolha dos diferentes nomes para se referir à<br />
memória, que podem parecer neologismos, mas são em sua maior parte termos antigos,<br />
pouco usados, como olvidar (termo antigo, sinônimo de esquecer) e alembrar (antigo,<br />
sinônimo de lembrar). Este último adquire, no texto, o sentido de um lembrado pela<br />
653 A este respeito, ver também o estudo da pesquisadora Marília Rothier Cardoso, onde associa as<br />
anotações de viagem feitas pelo escritor à construção da paisagem no conto inédito e inacabado “O<br />
Imperador”. CARDOSO, M. R. (2008).<br />
654 LORENZ, G. (1983) p.83.<br />
655 Idem, p.81.<br />
656 Idem, p.79.
lembrança: “Alembrado de que no hotel e nas casas de família se usa toalha pequena<br />
de se enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato...” 657 .<br />
Ou então, os nomes são usados numa função incomum, como a flexão do verbo<br />
em substantivo: uns lembrares. O termo deslembrar aparece como sinônimo do esforço<br />
do trabalho do esquecimento: “Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?” 658 ; ou,<br />
de um esquecimento originário, abissal, como em “sou do deslembrado”. Recordar e<br />
recordação (do latim re, de novo; e cordis, coração, voltar ‘com’ ou ‘no’ coração) são<br />
usados em passagens carregadas de afeto, como “o que me agradava era recordar<br />
aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada” 659 , referindo-se<br />
à canção de Siruiz. Associado, por sua vez, à repetição inerente ao processo de<br />
rememoração, surge o prefixo re, como já apontamos: relembrar, relembro, recordei.<br />
Já o termo remembrar, de “Nenhum, nenhuma” 660 , não aparece no texto do<br />
GSV, mas é digno de nota pela dupla sinonímia entre o uso antigo, no sentido de<br />
relembrar, e o atual tornar a unir o que estava separado, que parecem ambos<br />
condensarem-se na rememoração como trabalho de reunião das passagens emendadas<br />
da vida, no emendo e comparo de Riobaldo. E, finalmente, destempo: “Ah-oh-ah, o<br />
destempo de estar sendo debochado se irou em mim”. Segundo o dicionário, significa o<br />
que chega ou está fora do tempo 661 ; mas a palavra alude, num sentido mais amplo, no<br />
texto, ao tempo não-cronológico que irrompe ao longo da rememoração.<br />
Nesta análise, o que a discussão sobre a linguagem traz como questões para a<br />
memória seria algo em torno do seguinte: como o texto de Rosa articula, ou vai além de<br />
uma mera articulação, recriando, fazendo novas perguntas, a partir de uma visão de um<br />
passado que não apenas não responde às questões colocadas pelo narrador, mas de um<br />
657 ROSA, J.G. (2001) p. 354.<br />
658 Idem, p.120.<br />
659 Idem, p.137.<br />
660 Idem, (1988).<br />
661 Idem, p. 144. E, para todos os sinônimos supracitados, cf. HOUAISS (2009).
ememorar que só faz produzir maiores questões: “Vivendo, se aprende; mas o que se<br />
aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” 662 ?<br />
Dito de outro modo, como se entrecruza uma noção de memória em que a<br />
imagem do passado só existe articulada pelo presente num futuro anterior (o tempo do<br />
que terá sido, do a posteriori), com esta idéia de uma dimensão originária e densa da<br />
linguagem? Já vimos como isto se dá através de várias formulações sobre o tempo e<br />
memória, mas e em relação à linguagem, na sua dimensão menos significante e mais<br />
nomeadora, por assim dizer?<br />
Um primeiro ponto em que nome e memória se tocam, no texto, é na<br />
importância do nomear as imagens do passado, situando-se no cerne da luta que não é<br />
somente travada contra um neutro esquecimento, mas uma guerra entre memórias 663 ,<br />
entre as memórias da cidade e do sertão, dos velhos e dos jovens, entre a história oficial<br />
e a estória. Trata-se de dar nome aos anônimos: retirar do esquecimento o nome dos<br />
lugares da infância; dos companheiros vivos e dos mortos nas guerras (enumerados, um<br />
a um, por Riobaldo); de elementos regionais da cultura, como a jacuba (comida de<br />
peões, feita com carne-seca e pirão de leite); ou da natureza, como o pássaro<br />
Manuelzinho-da-Crôa. Entretanto, no nível em que apresenta o inominável, o nome faz<br />
referência a um esquecimento situado além ou aquém do recalque, a um esquecimento<br />
constitutivo ou originário, que se articula por sua vez ao aspecto do não-realizado, e<br />
forma a noção freudiana de inconsciente, juntamente com o recalcado.<br />
Outros pontos inquietantes parecem girar em torno da questão das origens e da<br />
natureza da linguagem em questão. Rosenfield 664 chamou a atenção para a relação entre<br />
o nome Hermógenes e a concepção hermogênea da linguagem (da contingência dos<br />
signos) salientando que Riobaldo percebe o personagem como a encarnação do Mal,<br />
662 Idem, p. 429.<br />
663 Cf. PORTELLA, E. (2003) p.7.<br />
664 ROSENFIELD, K. (2006), cap.1.
epresentante da mistura, do próprio demo. Mas, paradoxalmente, percebemos que o<br />
Hermógenes exerce seu fascínio sobre o personagem. O conflito se manifesta na<br />
angústia de Riobaldo, na sua demanda por uma ordem superior ou anterior às coisas,<br />
que organize a mistura do mundo.<br />
No entanto, na medida em que o jagunço se depara com os sucessivos equívocos<br />
e fracassos que apontam para a ausência de ordem ou fundamento; a aversão ao acaso<br />
parece modificar-se, até o momento em que ele decide confrontar-se com o Mal – e,<br />
num mesmo gesto – pactuando com o demo (o acaso), mas eliminando o Hermógenes (a<br />
personificação do Mal) e todos os de seu bando; pacificando o sertão, mas abrindo-se ao<br />
correr do tempo e ao acaso, o que reabre novamente a questão sobre a natureza do<br />
sentido. No mesmo leque de questões, como já apontado, Riobaldo se pergunta se o Mal<br />
consiste numa objetividade, isto é, se existe demo sozinho; ou, se o Mal é apenas a<br />
contingência, o não-saber, a dificuldade humana em separá-lo do bem, presente na<br />
imagem do demo habitante dos crespos do homem.<br />
Além disso, em relação ao apelo a um retorno às origens, encontrado seja nas<br />
diversas alusões aos fundos sem fundos; no Liso do Sussuarão, como miolo Mal do<br />
sertão, seja na figura do jagunço como habitante originário do sertão; Rosa parece (sem<br />
negá-la), provocar um curto-circuito na aspiração romântica de retorno a uma relação<br />
mimética com a natureza, invertendo a crença numa harmonia originária, ao inserir, lá,<br />
na origem, através da nossa figura mais primitiva, a do indígena, o Mal como<br />
contingência, arbitrariedade, mistura, confusão: “Quem tem mais dose de demo em si é<br />
índio, qualquer raça de bugre” 665 . E acrescenta, estendendo a maldade ao homem em<br />
geral: “A gente viemos do inferno – nós todos” 666 .<br />
665 ROSA, J.G. (2001) p. 38. Neste sentido, como não ler, na questão de Riobaldo sobre o demo, além da<br />
já afirmada versão brasileira do to be or not to be (cap.3 desta tese), uma reescrita do tupy or not tupy, do<br />
Manifesto Antropofágico de 1922? Novamente, é a análise de Finazzi-Agrò quem dá as coordenadas<br />
desta leitura, ao ler no canibalismo do “Meu Tio, o Iauaretê”, uma releitura – ainda menos mistificante e
A imagem da constelação, em Benjamin, à qual a linguagem é comparada,<br />
ilustra bem a duplicidade da linguagem, pois permite uma dupla leitura: numa dimensão<br />
mágica, as estrelas podem significar o destino dos homens; porém, esta leitura é<br />
inseparável da interpretação da dimensão semiótica de sua posição relacional no céu 667 .<br />
Com isto, lança novas luzes à questão, na medida em que os nomes não surgem como<br />
verdades isoladas e anteriores, mas surgem articulados, adquirindo sentido em relação<br />
uns aos outros, no texto.<br />
No ensaio “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”,<br />
Benjamin afirma que “o nome resume em si esta totalidade intensiva da linguagem” 668 ,<br />
que constitui a função nomeadora. Pois o nome não reenvia à coisa em si, mas a esta<br />
capacidade de nomear: “no nome, a linguagem fala. Pode-se definir o nome como<br />
linguagem da linguagem” 669 . O nome é como a imagem do passado que perpassa veloz,<br />
mas, no instante em que o ocorrido se encontra com o agora (imagem dialética), ela se<br />
revela num lampejo, despertando ou salvando o que ficou esquecido pela história 670 . Em<br />
sentido semelhante, vale lembrar a conceituação de recalque, no artigo sobre o<br />
mais radical – da antropofagia de Oswald de Andrade, mas que possui em comum com este a inversão da<br />
tese do indianismo romântico, que localizava no indígena a idéia de pureza vinculada à identidade<br />
nacional. A distância de Rosa da antropofagia seria relativa ao caráter ainda idealizador desta última, ao<br />
“colocar o autóctone na posição de quem, a partir da sua condição radical e liminar, assimila o Outro<br />
europeu comendo seu corpo e corrompendo sua alma,(...) disfarçando o índio de improvável precursor<br />
do comunismo e do surrealismo”; enquanto neste eu-onça não sobraria espaço para uma idealização<br />
identitária fechada, justamente por situar-se nesta zona-limite do representável, da pura destituição. Cf.<br />
FINAZZI-AGRÒ, E. (2001) p. 146.<br />
666 ROSA, J.G. (2001) p. 64.<br />
667 BENJAMIN, W. (1986f).<br />
668 “Le nom résume en lui cette totalité intensive du langage comme essence spirituel de l’homme.”<br />
BENJAMIN, W. (2000) p.148.<br />
669 “... dans le nom, le langage parle. On peut définir le nom comme le langage du langage.” Idem,<br />
ibidem.<br />
670 Como esclarece M. Seligmann, em seu livro sobre Benjamin, as idéias, como mônadas, os fenômenos<br />
originários e a imagem dialética pertencem a uma mesma constelação de conceitos que aproximam a<br />
teoria da linguagem da temporalidade histórica. Há uma semelhança entre o sentido que só é conferido<br />
pelo texto, pela linguagem, com a verdade que só pode ser conhecida no instante, no agora. Cf.<br />
SELIGMANN-SILVA, M.(1999) p.147; BENJAMIN, W. (1984).
inconsciente, como exatamente aquilo que nega à representação-coisa, vinda do<br />
inconsciente, a sua tradução em palavras. 671<br />
A duplicidade da linguagem se articula às concepções de linguagem decaída – a<br />
coisa em si não tem nenhum verbo, diz Benjamin 672 , ela é conhecida pelo verbo<br />
humano: a linguagem – bem como de uma linguagem pura, ou linguagem da<br />
linguagem, pois a restituição a que se refere não é propriamente a do sentido original, já<br />
que o sentido está perdido desde sempre, mas da significação (admitindo-se que o signo<br />
comporta a duplicidade); trata-se, para Benjamin, de “recuperar a faculdade de<br />
nomeação” 673 .<br />
Da mesma forma, o texto de Rosa apresenta ambas as dimensões da linguagem,<br />
mostrando-nos como uma não existe sem a outra. Assim, no aspecto significante dos<br />
nomes da memória, os significados se articulam no interior do texto, ou em relação a<br />
outros textos do autor, por exemplo, na oposição lembrar-deslembrar; ou ainda na<br />
diferença entre deslembrar Diadorim e ser do deslembrado de Riobaldo. Contudo, é no<br />
cruzamento deste registro com a dimensão nomeadora que Ana Maria Machado referiu-<br />
se à função do nome na escrita do autor como uma “constelação de significados” 674 :<br />
... Mas o mais importante é que essa significação nunca é isolada e só<br />
se verifica realmente se o Nome é tomado no conjunto do texto, como<br />
parte de um sistema, em que um elemento só existe por oposição a<br />
outros. (MACHADO, A. M., 2003, p.121).<br />
No que concerne à dimensão mágica do nome no texto, o nomear evoca o<br />
retorno à origem para redimir as palavras esquecidas, e recuperar o ato criador, que lhe<br />
confere o estatuto de sagrado não por uma natureza intrínseca, mas, simplesmente,<br />
671 Cf. FREUD, S. (1988a) p.206.<br />
672 “...parce que la chose en elle-même n’a aucun verbe; crée à partir du verbe de Dieu, elle est connue<br />
dans son nom selon le verbe humain.” Cf. BENJAMIN, W. (2000) p.156.<br />
673 LINS, V. (2005) p.145.<br />
674 MACHADO, A.M. (2003) p.182.
porque, neste ato, o homem se compara a Deus, nomeando aquilo que não tem nome – o<br />
que a declaração do escritor ao Cruzeiro, em 1967, parece confirmar:<br />
Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, nos livros<br />
arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo<br />
salvar. (...) Para determinadas passagens, entretanto, não existem<br />
palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons<br />
que a correspondam. (Apud. GALVÃO, W.N.; COSTA, A.L.M.,<br />
2006, p.82).<br />
Talvez, esta citação forneça chaves de leitura para a criação do termo não-<br />
memória, no conto-poema “Evanira”, de Ave, Palavra 675 , expressão criada para nomear<br />
uma memória que a lembrança não alcança, feita de esquecimento, e que tem, como<br />
veremos, muito a esclarecer sobre a memória no Grande Sertão.<br />
As Terceiras Memórias ou Uma História do Coração<br />
Dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no<br />
rabo da palavra.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA.<br />
Afirmar, portanto, que a memória no texto é fundada sobre a negatividade do<br />
esquecimento não significa que não haja produções de sentido em relação ao conteúdo<br />
do que merece ser lembrado, e à própria concepção do rememorar. Pois a memória não<br />
foge à regra rosiana da tensão entre os opostos, do tudo é e não é de Riobaldo, que<br />
engendra sempre uma terceira possibilidade. Assim, cabe ver um pouco mais no detalhe<br />
esta sucessiva busca pelo passado que se desdobra na interrogação filosófica sobre a<br />
própria noção de rememoração.<br />
Em sua negação mais contundente, quando se recusa a narrar as guerras,<br />
caracterizadas como tontos movimentos, o que está em jogo para o narrador é uma<br />
lembrança que pode ser relatada, mas não possui valor. Em outras palavras, trata-se de<br />
675 ROSA, J.G. (1970).
um questionamento ético do que vale a pena ser lembrado, do estatuto ético da<br />
memória:<br />
... Que isso merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor<br />
quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que<br />
é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja.<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 245).<br />
A lembrança sem valor é, assim, interrompida em seus excessos, como na<br />
tentativa frustrada em atravessar o Liso do Sussuarão: “Mas para que contar ao senhor,<br />
no tinte, o mais que se mereceu?” 676 . No repetido questionamento, a linguagem é alçada<br />
à posição de um limite ético, onde o que se percebe é a insuficiência da memória diante<br />
da impossibilidade de comunicar exatamente o que se passou: “Para que conto isto ao<br />
senhor? Vou longe. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?” 677 –<br />
“De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso<br />
de guerra é mesmice...” 678 .<br />
Além de sua função comunicativa, portanto, a dimensão parcial, fragmentada e<br />
negativa da linguagem, que aponta para a impossibilidade de dizer tudo, surge como<br />
mediação para a escolha subjetiva de não narrar, não rememorar o Mal indefinidamente,<br />
impondo um limite, como se vê também na primeira batalha junto ao Hermógenes: “De<br />
tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia<br />
para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho” 679 .<br />
Aqui, dois aspectos chamam a atenção: a associação das memórias de guerra à narração<br />
de uma vida como seqüência linear de fatos objetivos; e a contraposição a estas, de uma<br />
outra instância da memória, das outras coisas que valem a pena serem buscadas, e que<br />
se configuram numa armação subjetiva da memória, onde, através do signo, se juntam o<br />
676 ROSA, J.G. (2001) p. 70.<br />
677 Idem, p. 227.<br />
678 Idem, p. 319.<br />
679 ROSA, J.G. (2001) p. 232.
pensamento e o sentimento, indicando, mais uma vez, que os sentidos da memória se<br />
encontram além da objetividade do relato:<br />
... Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte (...).<br />
O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda<br />
em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com<br />
outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só<br />
sendo as coisas de rasa importância...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.114).<br />
Se esta recusa incessante revela um plano sempre deslocado para mais além,<br />
sempre outro, há efetivamente a construção de sentidos para o rememorar, que se<br />
colocam em oposição aos primeiros: as horas da gente são valorizadas em oposição às<br />
horas de todos, o armar o ponto dum fato em oposição à narração da vida em dobrados<br />
passos; os signos e sentimentos em distinção às guerras e batalhas. No entanto, estas<br />
segundas imagens da memória, colocadas em oposição às primeiras, não possuem<br />
significado definido e estável como os anteriores. Quando nos indagamos sobre o<br />
sentido que podem produzir, vemos que seu sentido se constrói não apenas em oposição<br />
aos primeiros, mas num eixo: horas da gente – armação do ponto dum fato – signos e<br />
sentimentos. Da mesma forma, as outras coisas – a sobrecoisa – as coisas importantes<br />
se ligam numa constelação que produzem sentidos; porém, sentidos mais opacos,<br />
obscuros, e por serem parciais, não-todos, o que eles mais produzem são as novas<br />
perguntas, novos significados criados a cada leitura.<br />
Construídas em aberto, num nível distinto da descrição, do dito, estas imagens<br />
da memória propagam-se numa terceira possibilidade – esta imagem tão cara a Rosa –<br />
revelando o desejo do narrador de contar as outras estórias, que não se configuram<br />
como primeiras, nem segundas, mas como terceiras estórias, por serem projetadas<br />
numa terceira margem da significação. Lá, onde era – nos ocos cheios de nada, onde as<br />
coisas podem vir a ser – ou, o terceiro pensamento, entre a paz e angústia – a imagem<br />
surge como o terceiro elemento benjaminiano de uma memória comparada aos sonhos,
eino em que as imagens, sobredeterminadas pela condensação e pelo deslocamento,<br />
guardam a capacidade de se assemelhar entre si; onde, conforme o verso de Paz, tudo é<br />
porta, tudo é ponte:<br />
... As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a<br />
estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de<br />
roupas, e é ao mesmo tempo “bolsa” e “conteúdo”. E, assim como as<br />
crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o<br />
que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia –, assim também<br />
Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu,<br />
para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem.<br />
(BENJAMIN, W., 1986a, p.39).<br />
Dizendo de outro modo, na rememoração, que inclui a busca das “razões de não<br />
ser” 680 de seu passado, e na filosofia sobre o tempo e a memória de Riobaldo, há<br />
afirmação, mas sobretudo de algo que não está lá. Esta construção fica ainda mais clara<br />
na associação entre as imagens da memória anteriores (horas da gente, coisas<br />
importantes, etc.) com a imagem de uma memória do coração:<br />
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? (...) Mesmo<br />
o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e<br />
verdadeiramente entendido – porque enquanto coisa assim se ata, a<br />
gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo.<br />
(...) “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as<br />
horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. (ROSA,<br />
J.G., 2001, p.154).<br />
Pois a memória do coração tem a ver – ao mesmo tempo – com o amor por<br />
Diadorim, com as vísceras, com o que pulsa no real do corpo; mas também com o que é<br />
depois entendido e nomeado como horas da gente, numa subjetivação desta<br />
experiência, como recordação – o que volta no coração e marca no corpo:<br />
680 ROSA, J.G. (2001) p. 201.<br />
... Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração<br />
copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que<br />
o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 481).
A imagem do coração reúne todas as coisas: “Coração cresce de todo lado.<br />
Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.<br />
Coração mistura amores. Tudo cabe” 681 . Por isto mesmo, define-se como o menos<br />
conhecido, a parte mais central ou profunda de algo, o âmago e a parte mais íntima de<br />
um ser 682 . “Coração da gente – o escuro, escuros” 683 . Obscuridade que apela para ser<br />
conhecida, nomeada; escutar as memórias de Riobaldo é escutar seu coração: “Escute<br />
meu coração, pegue no meu pulso...” 684<br />
A junção entre o real do corpo e a idéia de um cerne da linguagem encontra<br />
expressão no desejo de Riobaldo de ir até no rabo da palavra. No diálogo com Günter<br />
Lorenz, o escritor associa a tarefa do escritor a um “compromisso do coração” 685 ,<br />
distinto da luta política engajada, como um “credo, uma poética” 686 que equipara<br />
homens e escritores em um “servir à verdade e aos homens” 687 . Compromisso que se<br />
aproxima da “leitura das vísceras” 688 (das semelhanças) benjaminiana, da busca em<br />
liberar a imagem do passado, cuja apreensão “dá-se num relampejar. Ela perpassa<br />
veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada” 689 . Na mesma<br />
entrevista, Guimarães Rosa articula a busca pelo sentido original das palavras à crença<br />
no poder transformador da linguagem: “renovando a língua se pode renovar o<br />
mundo” 690 ; definindo-se como um reacionário da língua: “pois quero voltar cada dia à<br />
origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder dar<br />
681 Idem, p. 204.<br />
682 HOUAISS, A. (2009).<br />
683 ROSA, J.G. (2001) p. p.52.<br />
684 Idem, p.601. Pensando na força poética desta imagem de Rosa, que parte de um exame médico para<br />
abri-la em mil e uma imagens da memória, cabe a pergunta, parafraseando Didi-Huberman, a respeito de<br />
Walter Benjamin: “E como não segui-lo, como não fazer nosso este desejo?” Cf. DIDI-HUBERMAN, G.<br />
(1998) p.178.<br />
685 LORENZ, G. (1983) p.84.<br />
686<br />
Idem, p.74.<br />
687<br />
Idem.<br />
688<br />
BENJAMIN, W. (1986f) p.112.<br />
689<br />
Idem, 110.<br />
690<br />
Idem, p.88.
luz segundo a minha imagem” 691 . Novamente, a ressalva segundo a minha imagem o<br />
distancia da visão de uma verdade objetiva situada na origem, reinserindo as noções de<br />
construção, montagem, fantasia, tanto para a temática da ficção, como para a da<br />
memória.<br />
Vê-se, portanto, que a memória do GSV envolve ir ao coração da linguagem e ao<br />
coração da história: ao encontro daquilo que volta no corpo, no coração, daquilo que faz<br />
com que o pensamento pare, uma mônada, um centro saturado de tensões, para extrair,<br />
emancipar 692 a imagem – o terceiro elemento – esquecida, da história. De maneira bem<br />
próxima, este coração já foi objeto da análise de Finazzi-Agrò, no estudo onde lê o<br />
conto “Meu tio, o Iauaretê” juntamente com o GSV, comparando-os com o Heart of<br />
Darkness, O Coração das Trevas 693 , romance de Joseph Conrad.<br />
A semelhança gira em torno deste centro escuro, originário, de uma “natureza”<br />
selvagem e abominável que exerce seu fascínio imaginário sobre uma civilização que<br />
vai a seu encontro (o crítico emprega a palavra vertigem), e onde a questão da<br />
aniquilação, da morte, se impõe por todos os lados. Em “Meu Tio, o Iauaretê”, este<br />
centro se faz notar em diversos níveis, desde o deserto indefinido habitado pelo<br />
protagonista: “Sou fazendeiro não, sou morador... Eh, também sou morador não. Eu –<br />
tôda a parte” 694 . Sujeito indefinido pelo espaço: “Eu – longe” 695 ; bem como pela<br />
origem, filho de índia com branco; ele se revela um misto de homem e animal: “Eu –<br />
onça” 696 : “onça é meu tio, o jaguaretê” 697 .<br />
691 LORENZ, G (1983) p.84.<br />
692 “Emancipar: do latim manceps/pis, termo jurídico que significa tomar, pegar pela mão, duplo gesto<br />
de reivindicar autoridade e libertar de uma autoridade. As imagens se vendem e se compram, mas a<br />
‘imago’ é inestimável, não se vende, é sua história, sua genealogia (...) emancipar significa assumir a<br />
possibilidade de remontagem do tempo”. Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />
693 CONRAD, J. (2010).<br />
694 ROSA, J.G. (1969) p. 126.<br />
695 Idem, p.129.<br />
696 Idem, p.135.<br />
697 Idem, p.137.
Ele, caçador, pago pelo fazendeiro para desonçar o mundo, narra uma<br />
experiência no limite do humano, de con-fusão com o maior predador do território<br />
brasileiro. Sim, segundo o próprio, ele: caça, mata, come a carne e o coração, bebe o<br />
sangue, come a caça, cheira a, fala, entende, trepa (?) com onça; até descobrir-se: “Eu<br />
viro onça. Então eu viro onça mesmo” 698 . Originário deste local inconsciente, de onde<br />
brota a linguagem; ele, mais perto do fundo do que Riobaldo, possui, não somente<br />
vários nomes, mas todos: “Ah, eu tenho todo nome” 699 ; condição que o equipara ao<br />
sem-nome, o Diabo: “ Diabo? Capaz que eu seja...” 700 – “Agora, tenho nome nenhum,<br />
não careço” 701 .<br />
Impossível não ler, também aqui, a perda do nome como destituição, em seus<br />
contornos histórico-sociais: o tornar-se onça como vingança contra a condição imposta<br />
pelo fazendeiro Nhô Nhuão Guede, o homem ruim e rico, de quem ele se queixa<br />
repetidamente: “me botou aqui. Falou: – ‘Mata as onças, tôdas!’ Me deixou aqui<br />
sòzinho, eu nhum, sòzinho de não poder falar nem escutar...” 702 E a solução final,<br />
deixada em suspensão, como mistério, como um segredo do qual não saberemos nunca,<br />
quem mata quem, lá, em nossa origem: o índio, que come o preto e o branco? Ou o<br />
branco, que assassina a tiros aquele que é visto como selvagem? Esta me parece ser a<br />
questão central desenhada no final do conto 703 :<br />
Mecê gostou, ã? Prêto prestava não, ô, ô, ô... Oi: mecê presta,<br />
cê é meu amigo... Oi, deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um<br />
tiquinho em mecê, tiquinho só, encostar minha mão...<br />
Ei, ei, que é que mecê tá fazendo?<br />
698 Idem, p.146.<br />
699 Idem, p.144.<br />
700 Idem.<br />
701 Idem.<br />
702 Idem, p.149.<br />
703 Devo a uma conversa com a professora Marília Rothier Cardoso esta leitura da inconclusão, que difere<br />
da interpretação de Finazzi-Agrò sobre o final da estória, para quem o selvagem é morto a tiros pelo<br />
visitante. Entretanto, o crítico é quem coloca com maior precisão a questão da inconclusão na obra de<br />
Rosa, que suscitou todo este debate.
Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra<br />
outra banda... Mexo não, tô quieto, quieto... Oi: cê quer me matar, ui?<br />
Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me<br />
prender? Oi: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à toa... Ói o<br />
frio... Mecê tá dôido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora!<br />
Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem,<br />
Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa de<br />
prêto? Matei prêto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui,<br />
mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Macuncôzo...<br />
Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...<br />
Hé... Aar-rrã... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci...<br />
Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...<br />
(ROSA, J.G., 1969, p.159).<br />
De acordo com Finazzi-Agrò, enquanto no romance de Conrad trata-se de uma<br />
viagem da memória, para a qual o leitor é preparado e levado, progressivamente, a<br />
penetrar no âmago do horror; no conto de Rosa, o lugar da enunciação ocupado pela<br />
voz narrativa, é como se já estivesse lá e, deste centro obscuro partisse sua narrativa e<br />
sua rememoração, pois a forma do conto também é a do diálogo, onde o protagonista<br />
conta sua vida a um interlocutor, mas numa voz que partiria do próprio abismo:<br />
... em suma, diferentemente do que acontecia em Heart of Darkness,<br />
não há um Marlow contando de um Kurtz, o que preserva, em certa<br />
medida, a perspectiva de uma razão falando de seu contrário – aqui,<br />
não, aqui é o habitador do centro que con-voca, no seu discurso, o<br />
discurso do outro, do civilizado. Anula-se, com isso, o espaço, a<br />
distância, a fronteira tranqüilizadora entre o eu culto e o ele selvagem,<br />
instaurando um novo (e, ao mesmo tempo, voltando a um<br />
antiqüíssimo) sentido do espaço (...) em que também nós, os<br />
interlocutores, os civilizados, corremos o risco de ser engolidos.<br />
(FINAZZI-AGRÒ, E. 2001 p. 136-137).<br />
Há, no conto rosiano, porém, algo não apontado diretamente pelo crítico, que,<br />
por outro lado, o aproxima de minha leitura do GSV, e que consiste no humor inserido<br />
pelo escritor mineiro nesta ameaça insidiosa, onde o discurso do narrador também oscila<br />
entre ameaçar e ser ameaçado; estabelecendo-se num ritmo, comparável aos<br />
movimentos que os felinos fazem com suas presas, parecendo brincar com elas... É que<br />
o texto parece jogar com todas as nossas idealizações, promovendo uma dança dos<br />
lugares entre quem devora e é devorado, deslocando os lugares ocupados pelos
personagens na história. Do contrário, como justificar nosso riso e o desconcerto diante<br />
das repetidas menções do índio ao preto – o ser ausente no diálogo (não fala nem escuta,<br />
mas é falado o tempo todo) entre o índio e o branco, e de quem, aparentemente, não<br />
resta dúvida ter sido aniquilado?<br />
Eh, onça gosta de carne de prêto. Quando tem um prêto numa<br />
comitiva, onça vem acompanhando, seguindo escondida, por<br />
escondidos, atrás, atrás, atrás, ropitando, tendo ôlho nele. Preto rezava,<br />
ficava seguro na gente, tremia todo...<br />
(ROSA, J.G., 1969, p. 151).<br />
Entretanto, se todos os textos mencionados trazem o questionamento até as<br />
raízes da história e da linguagem; a língua onomatopaica do conto rosiano, cheia de<br />
ruídos e palavras indígenas, nos quais o sentido se dissolve no som, confirma a posição<br />
abissal do narrador; que, como já afirmei, difere da posição de Riobaldo no Grande<br />
Sertão. Neste, o narrador não se situa o tempo todo no deserto absoluto, sua<br />
rememoração é entremeada por diversos signos da negatividade. Mas, o atravessar – o<br />
mór infernal a gente media – e o deixar-se atravessar por esta corrente que tudo leva,<br />
tornando-se parte dela, não alude à morte como saída, pois Riobaldo pensa, rememora –<br />
e se move – através do vazio, tanto na acepção do atravessar, como no sentido de fazer<br />
dele seu mote, seu objeto 704 .<br />
Sem pretender atribuir hierarquias de qualquer natureza entre os textos, pode-se<br />
dizer que há traços deste fundo imemorial de que parte o conto, no romance; ou talvez<br />
pudéssemos dizer que, enquanto no conto, o narrador se encontra no presente, lá, no<br />
exílio, à beira do abismo escuro da origem; no romance, há uma idéia de trânsito,<br />
passagem, viagem permanente, que atravessa e evoca este mesmo abismo. Apropriando-<br />
704 Toda esta analogia vai ao encontro das pesquisas de Ana Luisa Martins Costa, segundo as quais o GSV<br />
e Corpo de Baile, escritos quase na mesma época, fariam parte de um mesmo projeto de Guimarães Rosa,<br />
tendo o GSV crescido demais, e se desenvolvido de uma das novelas não publicadas do Corpo de Baile,<br />
possivelmente o “Meu Tio, o Iauaretê”. Cf. GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. (Orgs.) (2006).
me da fala de Didi-Huberman sobre a imagem dialética, é preciso reconhecer que o<br />
coração do sertão funciona como um centro para:<br />
...pensar a oscilação contraditória em seu movimento de diástole e<br />
sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o fluxo e o<br />
refluxo do mar que bate) a partir de seu ponto central, que é seu ponto<br />
de inquietude, de suspensão, de entremeio.<br />
(DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.77).<br />
A radicalidade desta proposta encontra nome, como antecipamos, em<br />
“Evanira” 705 , texto de difícil classificação, cuja abertura por um narrador que nomeia a<br />
um si mesmo enquanto tal, duplicando-se, já introduz a complexidade: “O narrador,<br />
tenta, em ímpetos, narrar o inarrável” 706 . Para Susana Lages, trata-se de um poema<br />
com diálogos e uma narrativa comparável a um roteiro de teatro ou cinema. Em sua<br />
análise, que enfatizou a figura do anjo como mediador entre os tempos e entre os<br />
amantes, destaca-se a idéia relacionada à memória, da saudade como “emblema da<br />
relação amorosa que deve, (...) necessariamente passar por alguma vivência da morte<br />
(...) sob a forma da separação” 707 .<br />
infância,<br />
Perpassado pela figura do Anjo-nôvo e suas asas, que enviam às memórias de<br />
Anjo nôvo. Nós –<br />
E UM SOM CHEIO DE AVENCAS PENDURADAS,<br />
restituindo-me: menino.<br />
(ROSA, J.G., 1970, p.37).<br />
o texto fala deste anjo como a necessária saudade, pensada a partir da história de<br />
dois seres “que imemorialmente se amam” 708 , uma saudade como anterior ao próprio<br />
amor:<br />
705 ROSA, J.G. (1970).<br />
706 ROSA, J.G. (1970) p. 36.<br />
707 LAGES, S. (2002) p.148.<br />
708 ROSA, J.G. (1970) p.36.
...quem não ama e tem saudades<br />
está à espera de alguém, como o não nascido quer o ar, ainda não<br />
respirado. Como a pedra, de asas inùtilmente ansiosa. Como os cães<br />
elevam os ouvidos. Como o temer, sòzinho, ver. Como o não saber.<br />
(ROSA, J.G., 1970, p. 37).<br />
Onde o nosso jardim imemorial, que evocaria a plenitude da origem, é feito de<br />
“florestas e pausas (grifo nosso)” 709 . Mas, da dissolução no amor, experiência que<br />
reúne, “Amo-te (...) Uno-me. Eu, enfim era eu, indispersado” 710 – resta uma saudade,<br />
“sobrada solidão” 711 , que evoca novamente o não-saber da origem: “quem poderia<br />
restituir-me o que, DEPOIS nunca houve, só ausente, (...) no nevoeiro do agora?” 712 . A<br />
saudade em “Evanira” faz menção à memória da origem enquanto perdida, mas<br />
potencialmente criadora: “EVA-NASCENTE, PRIMEVA”:<br />
A saudade é um sonho insone<br />
A saudade é o coração dando sombra.<br />
(ROSA, J.G., 1970, p.39).<br />
Ao evocar a incompletude, o “no meio do caminho desta vida” 713 de Dante, a<br />
saudade funda uma ausência que se constitui como deserto a atravessar “(ou atravesso-<br />
a, como a um não-mar, a um não-lugar – EU, SAARONAUTA ...)” 714 . É quando o<br />
narrador se diz ameaçado pelo evanescer da saudade e do tempo, que põe em risco a<br />
perda do Amor. Aqui, tem lugar esta memória que não a alcança, que traz de novo o não<br />
saber da origem, junto a uma possível releitura do tempo originário romântico; pois,<br />
mesmo antes, nem tudo era falante:<br />
709 Idem, p.37.<br />
710 Idem, p. 37.<br />
711 Idem, p.38.<br />
712 Idem.<br />
713 Idem.<br />
714 Idem, p.39.<br />
NÃO-<strong>MEMÓRIA</strong><br />
NÃO-LEMBRANÇA:<br />
(...) A AUSÊNCIA DOS PÁSSAROS QUE ANTES<br />
VISITAVAM <strong>NO</strong>SSAS MASMORRAS EMPAREDADAS DE<br />
SILÊNCIO.
(ROSA, J.G., 1970, p. 40).<br />
O narrador tem, então, “SAUDADE da saudade” 715 , e fala da importância de<br />
cultivar a saudade e a memória, através de um limite mortal, pois “morre-se de não se<br />
lembrar” 716 , de não ter saudade. Mas é a saudade da saudade que o confronta com a<br />
morte, com a não-memória, com o limite da origem. Se estamos no campo do<br />
inconsciente, não há como fugir do tempo desdobrado, do só-depois que insere a<br />
memória e a saudade como saudade da origem.<br />
Ao atravessar o vazio da saudade, diz o narrador, sobre si mesmo: “o narrador<br />
sabe-se transformado novamente e que passou por uma espécie de morte, propiciatória<br />
e necessária” 717 . Então, este vazio, não-memória, revela-se como mediador e fonte,<br />
como o que move a memória:<br />
SAUDADE: A DONA DE PONTES,<br />
CIDADES E PAISAGENS.<br />
(...)<br />
A<br />
DANÇA LUCIFORME<br />
Deusa.<br />
(ROSA, J.G., 1970, p.43).<br />
O texto termina com um apelo à construção desta saudade e ao silêncio,<br />
acenando para esta não-memória, ou história do coração, do que volta no coração, e do<br />
que move o retorno ao coração da história – que, se envolve uma ida à origem, da<br />
linguagem, seria para recuperar o diabolismo 718 da palavra, sua capacidade de seduzir e<br />
reproduzir, produzindo sempre um sentido a mais, além, que inclui o necessário silêncio<br />
– do mesmo modo que a ida ao passado caracteriza-se como capaz de liberar a imagem,<br />
na miragem da origem, não para fixá-la como registro; mas, ao compará-la, movê-la,<br />
colocando em evidência sua dimensão evanescente, de esquecimento.<br />
715 Idem, p.40.<br />
716 Idem.<br />
717 Idem, p.42.<br />
718 Cf. PERRONE-MOISÉS, L. (1990) p.14.
Trata-se, portanto, de um texto revelador em muitos aspectos, entre eles, o da<br />
constatação de que este lá, (onde era) é fundamentalmente ritmo, nota musical, o que é<br />
percebido na extrema semelhança do ritmo do poema, semelhante ao de uma canção,<br />
com aquele do meio do romance, que apontei anteriormente, quando Riobaldo faz<br />
balanço de sua história, colocando tudo, até a si mesmo, em suspensão 719 . É preciso<br />
perceber que é em compasso de dança, onde o ritmo do luto se aproxima do jogo, que<br />
esta imagem, que o nome “não-memória” evoca, é elaborada, do mesmo modo como as<br />
que se seguem.<br />
Imagens do esquecimento<br />
Muita coisa importante falta nome.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Os representantes da ausência espalham-se pela recordação de Riobaldo,<br />
constituindo-se em índices da negatividade; ou seja, manifestações de algo que<br />
comparece como ausente, cujos exemplos vão desde o espaço físico, até algumas<br />
figurações humanas e inumanas, insinuando-se através de determinadas construções<br />
formais. No espaço, já foi apontada a presença dos inúmeros “fundos fundos” 720 , ocos e<br />
ermos, cujo maior exemplo seria o deserto do Liso do Sussuarão, o miôlo Mal do<br />
Sertão; mas que se estendem aos pântanos movediços, como o “brejão engolidor” 721 ;<br />
ou abismos como:<br />
... ao Vão-do-Ôco e o Vão-do-Cúio: esses buracões precipícios –<br />
grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas<br />
(...). Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de descer e ir ver,<br />
aindas que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso<br />
escalavrado, entre as moitarias de xaxim. (ROSA, J.G., 2001, p. 520).<br />
719 Devo esta afirmação aos textos e ao curso de Didi-Huberman, à sua formulação de que o que nos olha<br />
na obra provém do ritmo e dos restos, bem como à obra crítica e teórica de José Miguel Wisnik, cujos<br />
textos consultados encontram-se na bibliografia final deste trabalho.<br />
720 ROSA, J.G. (2001) p. 398.<br />
721 Idem, p. 83.
O Diabo representa a figura máxima desta escala, cujo excesso de nomes já<br />
aponta para algo que se manifesta sem, necessariamente, consistir numa identidade:<br />
“Não é, mas finge de ser” 722 .<br />
... Rincha-Mãe, Sangue-D’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-<br />
Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o<br />
Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos<br />
nomes... (ROSA, J.G., 2001, p.26).<br />
O pacto se insere como o grande acontecimento negativo do enredo, onde<br />
Riobaldo invoca o demônio, e obtém como resposta o silêncio. A noite do pacto, repleta<br />
de escuridão, de vento, e de frio – mas também de seres noturnos, grilos, passarinhos,<br />
cobras – fica sendo o grande confronto com o Nada, o Acaso, o unheimlich, o<br />
descentramento do real; verdadeira “experiência da noite sem limite” 723 , onde tudo é<br />
passível de dissolução:<br />
“– Lúcifer, Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengulindo.<br />
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia<br />
feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que<br />
termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante<br />
mal-acordado dum totalzinho sono.<br />
“– Lúcifer ! Satanaz!...”<br />
Só outro silêncio. O senhor sabe o que é o silêncio é? É a gente<br />
mesmo, demais.<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.438).<br />
O Hermógenes se apresenta como uma personificação do demo, e é interessante<br />
lembrar que ele é vencido por outro personagem que escolhe a guerra ao amor, mas que<br />
se caracteriza, acima de tudo, mais pela ambigüidade do que pelo Mal, que vem a ser<br />
Diadorim: “Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que<br />
cismava profundo” 724 . A esquisitice de Diadorim remete ao silêncio: “Ele gostava de<br />
722 Idem, p. 318.<br />
723 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.99.<br />
724 Idem, p.77.
silêncios” 725 . Diversos aspectos, já mencionados, apontam para o enigma em torno de<br />
Diadorim.<br />
Outros dois personagens destacam-se em seu caráter negativo: um cego, aquele<br />
que não vê, Borromeu é indagado por Riobaldo, que o toma como a personificação do<br />
próprio sertão, numa passagem bastante enigmática: “– Você é o Sertão?” 726 – E o<br />
senhor, que não fala, presença sem nome e silenciosa por todo o romance, que confirma<br />
– através do seu silêncio como propiciador da construção da história – que a<br />
negatividade destacada, aqui, vai muito além do Mal como valor moral, e tampouco<br />
define uma posição niilista, pois o Mal, talvez situado para além da maldade, é visto<br />
como parte de tudo que há, da qual podemos ver somente a manifestação, os efeitos.<br />
Neste sentido, o que denominamos negatividade no GSV possui ressonâncias<br />
com a noção de pulsão, como algo além da representação, exterior ao psíquico, que se<br />
manifesta através da repetição; e que, portanto, em primeiro lugar, não se confunde ou<br />
restringe a uma agressividade submetida à esfera da moral ou do sexual, pois trata-se de<br />
um princípio ou função, “isto é, (...) algo que está presente a cada momento regendo<br />
cada começo” 727 . Além disso, como princípio disjuntivo, a pulsão de morte tampouco<br />
se confunde com niilismo absoluto; ao contrário, de acordo com a leitura lacaniana, o<br />
que está em jogo é uma “vontade de destruição, vontade de recomeçar com novos<br />
custos, vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa” 728 ;<br />
“vontade de criação a partir de nada” 729 , que a inscreve numa positividade, como<br />
potência criadora.<br />
Novamente, encontramos ressonâncias com o pensamento de Walter Benjamin,<br />
quando afirma, sobre o caráter destrutivo: “O caráter destrutivo só conhece um lema:<br />
725 Idem, p. 51.<br />
726 Idem, p. 607.<br />
727 GARCIA-ROSA, L.F. (1990) p.155.<br />
728 LACAN, J. (1988c) p.260.<br />
729 Idem.
criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é<br />
mais forte que todo ódio.” 730 Veja-se, na recordação de Riobaldo, a percepção sobre o<br />
momento do pacto: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorozamente, esta<br />
vida é grande” 731 . E o testemunho do período que sucedeu este encontro com o<br />
nada:“desde por aí, tudo o que vinha por suceder era engraçado e novo, servia para<br />
maiores movimentos” 732 .<br />
Na mesma perspectiva, no prefácio “Aletria e Hermenêutica” 733 , uma espécie de<br />
ensaio em que Guimarães Rosa contrapõe a estória à história, situando a primeira do<br />
lado do humor, da anedota; ele menciona um nada residual, distinto da morte absoluta,<br />
definido como um resto da linguagem, que aponta para algo que não se submete<br />
totalmente a ela mesma: “O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo” 734 .<br />
Em seguida, acrescenta: “Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo” 735 , como<br />
se fosse Riobaldo, a declarar: “Do escurão, tudo é mesmo possível” 736 .<br />
Em relação à linguagem, se a língua rosiana tem como proposta este mergulho,<br />
esta ida ao âmago da própria linguagem, já se falou num lance de dês (entre Deus,<br />
Diabo, Diadorim e seus desdobramentos mórficos, que compõem o texto...), que se<br />
articula como um encontro com a potência do Acaso, da profusão diabólica da<br />
linguagem 737 . De maneira análoga, já se apontou um lance de ‘s’ e ‘f’ associado ao Mal<br />
e ao sem-fim (“oferecer fim, oferecer faca”), que constituem formas pelas quais a<br />
linguagem se afasta da função comunicativa para demarcar a dimensão em que o<br />
sentido se aproxima do som, da materialidade do signo, que aponta para o não-sentido:<br />
730 BENJAMIN, W. (1989) p.236.<br />
731 ROSA, J.G. (2001) p. 438.<br />
732 ROSA, J.G. (2001) p. 445.<br />
733 ROSA, J.G. (1985).<br />
734 Idem, p.10.<br />
735 Idem, p.17.<br />
736 Idem, (2001) p. 220.<br />
737 CAMPOS, A. (1978).
... O fato é que a reflexão sobre o ser da maldade e o fim maligno do<br />
prazer de fazer sofrer e de sofrer desdobram-se de modo sonoro numa<br />
proliferação de “s” e “f” que aparecem maciçamente nas cenas que<br />
descrevem o movimento dilacerante, triturante, moedor e destruidor<br />
da “matéria vertente” – das massas aquáticas, animais ou humanas.<br />
(...) As saudades repetidamente mencionadas pelos jagunços de uma<br />
“boa esfola, com faca cega” aparecem assim como a versão humana<br />
do movimento “surdo e cego” da ondulação aquática (...) ou do Liso<br />
do Sussuarão, “inferno sem fim” que “se emenda com si mesmo”.<br />
(ROSENFIELD, K., 2006, p.229).<br />
Porém – vale dizer novamente – o não-sentido, aqui, é considerado como lugar<br />
de criação dos múltiplos sentidos, e não pura ausência, note-se o exemplo dos<br />
significantes Diadorim delicado, ou Diá, como produtores de significados importantes.<br />
A linguagem onomatopaica aponta, segundo Benjamin, para esta dimensão em que o<br />
som procura assemelhar-se ao sentido, que revela a face da linguagem além do<br />
significante:<br />
... Mas, se a linguagem, como é óbvio para as pessoas perspicazes, não<br />
é um sistema convencional de signos, é imperioso recorrer, no esforço<br />
de aproximar-se da sua essência, a certas idéias contidas nas teorias<br />
onomatopaicas, em sua forma mais crua e mais primitiva.<br />
(BENJAMIN, W., 1986f, p.110).<br />
Além disso, os testemunhos de Riobaldo sobre o pacto (citados na página<br />
precedente) fazem pensar é nesta experiência do vazio como um processo, que só é<br />
“reveladora por ser dialética (...) mostrando o objeto como perda, mas ultrapassando<br />
também a privação em dialética do desejo” 738 . A série de transformações que têm lugar<br />
após o pacto, como a passagem de jagunço a chefe do bando, a mudança de posição de<br />
Riobaldo em relação a Diadorim e o projeto de acabar com a guerra no sertão, apontam,<br />
todas, para o desejo colocado em movimento.<br />
As construções formais negativas se espalham pelo texto, ainda, através dos<br />
paradoxos, que produzem uma exaustão do sentido; das pausas e interrupções rítmicas<br />
da narração; das interrogações sem resposta; e das negações desdobradas, que evocam<br />
738 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.102.
uma dimensão mais primordial da negativa, um além da representação, além (ou aquém)<br />
do recalque 739 ; ora referidas ao sertão: “Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar,<br />
nunca não encontra. (grifo nosso)” 740 . Ora, ao Liso do Sussuarão:“Nas lagoas aonde<br />
nem um de asas não pousa” (grifo nosso) 741 . “Não tem excrementos. Não tem<br />
pássaros.” 742 – “Água não havia, capim não havia” 743 .<br />
Montagem, jogo, dansa<br />
... De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno<br />
dele, e em sonho nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era<br />
a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter<br />
sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada<br />
de Copacabana.<br />
(BUARQUE, CHICO. LEITE DERRAMADO).<br />
Em relação à comparação com o divino feita por Benjamin – do júbilo da<br />
nomeação 744 – que encontramos na paisagem fora das molduras de “Os Cimos” 745 , ou<br />
na afirmação do nome como sagrado, não penso ser forçado compreendê-la mais como<br />
um efeito do que uma crença, pois, como ensina Didi-Huberman, a partir de Freud, a<br />
nomeação da experiência só se dá numa obra de perda, somente diante da morte<br />
iminente, ou entre duas mortes, daquilo que não existiu e um dia deixará de existir; a<br />
experiência da linguagem se dá diante da fenda, entre o ser nomeado e o nomear 746 .<br />
739<br />
Em “A Negativa”, Freud associa, primeiro, a negação ao recalque daquilo que não se admite recordar,<br />
chegando a afirmar que “o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula<br />
negativa.” Mas, ao longo do texto, faz supor um outro nível de negatividade, não necessariamente<br />
submisso ao recalque, pois se apresenta também na psicose; ligado à pulsão de morte, definida, ali, como<br />
uma função, algo destrutivo, disjuntivo, oposto à união estabelecida por Eros, que me parece próximo do<br />
que vemos nas negações desdobradas de Guimarães Rosa. Cf. FREUD, S. (1988g) p.269.<br />
740<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 317.<br />
741<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 47.<br />
742<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 50.<br />
743<br />
ROSA, J.G. (2001) p. 67.<br />
744<br />
Nas palavras de Pierre Fédida, baseado no termo criado pelo poeta Francis Ponge: “Objeu [objetojogo]<br />
é acontecer da palavra num gargalhar de coisa. É júbilo de encontro, exatamente entre coisa e<br />
palavra.” Apud. DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.81.<br />
745<br />
ROSA, J.G. (1988).<br />
746 DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.79-85.
Em O que Vemos, o que nos Olha, o historiador da arte afirma que – diante da<br />
imagem, que porta em si uma suspensão, uma tensão dialética entre o visível e o<br />
invisível (ou entre a aura, a distância; e o vestígio, ruína, proximidade), que exige uma<br />
experiência de confronto com o nada, com o vazio que nos olha – duas formas de<br />
denegação do vazio se apresentam: a crença no ver além da imagem, preenchendo seu<br />
vazio com um sentido além dela mesma; ou o cinismo da tautologia, a negação de<br />
qualquer sentido além do visível, expresso na fórmula: você vê o que você vê, que<br />
pretenderia uma pura objetividade da imagem, um sentido que se esgotaria na forma,<br />
sem que ela remetesse a qualquer ausência 747 .<br />
Vale a pena ler mais uma vez parte do texto de Rosa para mostrar o momento<br />
em que a busca riobaldiana da memória se afirma no entremeio, no intervalo entre estas<br />
duas dimensões da imagem, justamente quando rejeita a objetividade das lembranças de<br />
guerra:<br />
... Vida, e guerra, é que é: esses tontos movimentos, só o contrário do<br />
que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo<br />
ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e<br />
parece longe... (ROSA, J.G., 2001, p. 245).<br />
Mas, além disto, é preciso destacar que, quando Didi-Huberman se vale da<br />
noção do fort da freudiano para ilustrar a criação da imagem artística, está equiparando<br />
a criação de imagens artísticas, visuais e literárias, à experiência originária de criação<br />
das imagens psíquicas, à entrada do sujeito na linguagem, na qual a imagem surge como<br />
resto de uma alternância, de um ir e vir, de um jogo entre a presença e a ausência, onde<br />
também o sujeito, ao brincar, ao jogar com isso, se constitui entre o ser deixado e o<br />
deixar. 748 Em última instância, trata-se de equiparar a montagem das imagens na arte à<br />
747 DIDI-HUBERMAN, G. (1998).<br />
748 “... não é de saída que a criança vigia a porta por onde saiu sua mãe, indicando assim que espera re<br />
vê-la ali, mas, anteriormente, é o ponto mesmo em que ela o deixou, o ponto em que ela o abandonou<br />
perto dele, que ele vigia (...) Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe
teoria da construção da memória (do sujeito como montagem surrealista da pulsão),<br />
ambas elaboradas como o jogo do luto ao qual se junta o jogo do prazer – e, aqui,<br />
chega-se ao mesmo ponto crucial ao qual vimos insistindo, de um pensamento que<br />
subverte a noção de memória ao compará-la à ficção:<br />
... as imagens da arte (...) sabem apresentar a dialética desse jogo no<br />
qual soubemos (mas esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar<br />
lugares para essa inquietude. (...) As imagens da arte sabem de certo<br />
modo compacificar esse jogo da criança que se mantinha apenas por<br />
um fio, e com isso sabem lhe dar um estatuto de monumento, algo que<br />
resta, que se transmite, que se compartilha (mesmo no<br />
malentendido)...<br />
(DIDI-HUBERMAN, G., 1998, p.97).<br />
Anteriormente, o próprio Freud já havia comparado o jogo à criação poética em<br />
“Escritores Criativos e Devaneios”, texto de 1908, no qual ele começa assinalando que a<br />
aproximação entre o poeta e o homem comum, entre a poesia e a vida, é feita em geral<br />
pelos próprios escritores. Comum ao brincar e à criação poética estaria a noção de jogo;<br />
relação cuja similitude teria deixado vestígios na língua alemã, nos termos jogo do luto<br />
e jogo do prazer:<br />
A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação<br />
poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel’ [‘peça’] às formas<br />
literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que<br />
podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel’ ou ‘Trauerspiel’<br />
[‘comédia’ e ‘tragédia’...] (FREUD, S., 1988h, p.136).<br />
No texto, se esboça uma continuidade entre o jogo e a fantasia ou devaneio,<br />
sendo os dois últimos considerados substitutos ao jogo infantil. Porém, o mais<br />
importante é que, ao dar forma estética, através das imagens artísticas, às imagens da<br />
fantasia, do inconsciente, recusadas pelo adulto, a escrita poética as apresenta,<br />
conferindo-lhes legibilidade: “A verdadeira ars poética está na técnica de superar esse<br />
nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos<br />
veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele<br />
nada mais tem a fazer senão o jogo do salto”. Cf. LACAN, J. (2008b) p.66.
demais.” 749 Mas, Freud vai além da analogia, insinuando o apelo da obra de arte ao<br />
inconsciente, à inquietação e à produção de nossas próprias imagens, ou a garantia de<br />
sua reivindicação de expressão: “Talvez até grande parte desse efeito seja devida à<br />
possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos<br />
próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha” 750 .<br />
Este duplo aspecto da reivindicação à forma e da sua insubordinação, por parte<br />
da imagem, foi repensado – especificamente em relação à poesia – por Paul Valéry, três<br />
décadas mais tarde, na conferência “Poesia e Pensamento Abstrato”, onde aproxima o<br />
estado poético das lembranças dos sonhos:<br />
Entretanto, nossas lembranças de sonhos nos ensinam, através de uma<br />
experiência comum e freqüente, que nossa consciência pode ser<br />
invadida, enchida, inteiramente saturada pela produção de uma<br />
existência, cujos objetos e seres parecem ser os mesmos que os da<br />
véspera; mas seus significados, suas relações e seus meios de variação<br />
e de substituição são completamente diferentes e representam-nos,<br />
sem dúvida, como símbolos e alegorias, as flutuações imediatas de<br />
nossa sensibilidade geral, não controlada pelas sensibilidades de<br />
nossos sentidos especializados. É quase da mesma maneira que o<br />
estado poético se instala, desenvolve-se e, finalmente, desagrega-se<br />
em nós. (VALÉRY, P., 1999, p.197-198).<br />
Para Valéry, assim como a lembrança do sonho evoca as imagens inconscientes,<br />
a imagem poética não se esgota na comunicação, pois “quer viver ainda, mas uma vida<br />
totalmente diferente” 751 ; promovendo, no leitor – simultaneamente – o esquecimento do<br />
sentido usual, instrumental, objetivo; e a rememoração do universo poético. O estado<br />
poético desenvolve-se como as lembranças de sonhos, quer dizer, promove uma<br />
recordação dos nossos sonhos, uma libertação da imagem, que possui o caráter de<br />
resíduo, ou de vestígio da lembrança do sonho.<br />
749 FREUD, S. (1988h) p.142.<br />
750 Ibidem, p.143.<br />
751 VALÉRY, P. (1999) p.200.
A imagem do pêndulo, oscilando “entre a forma e o conteúdo, entre o som e o<br />
sentido, entre o poema e o estado de poesia” 752 , diz respeito ao movimento através do<br />
qual a poesia se faz, entre a voz, o ritmo, a pura forma; de outro lado, o sentido, o<br />
conteúdo, as imagens da rememoração provocadas por aquela forma, que, entretanto<br />
reclamariam, de volta, essa forma, esse ritmo, criando o movimento; que é outra forma<br />
de dizer que a poesia provoca em mim as minhas lembranças. Também neste sentido é<br />
que podemos pensar que a escrita poética rosiana evocaria nossas lembranças subjetivas<br />
e coletivas. Seguindo Valèry, a palavra não é apenas dança, puro movimento, pois<br />
sempre produz algum sentido, mas é possível fazer as palavras dansarem, como Rosa<br />
faz, dançando sobre as pranchas, parando sobre as pontes até que as palavras se<br />
precipitem, gerando novas palavras; de acordo com a tese da experiência do abismo<br />
como criadora.<br />
A noção benjaminiana de alegoria como colagens de restos de imagens 753<br />
igualmente articula a imagem artística com as imagens da memória e da história,<br />
assinalando seu caráter crítico, de despertar; pois o alegorista – comparado ao<br />
cirurgião 754 , que corta, separa e reorganiza os fragmentos, recompondo-os segundo a<br />
sua imagem (quando a dimensão crítica se aproxima da criação da imagem, como o<br />
terceiro elemento desta dialética) – é reconhecido como criador de uma montagem, da<br />
mesma forma que o historiador materialista procede com os cacos da história.<br />
...a imagem do vaso quebrado que deve ser reconstituído a partir de<br />
seus cacos. Comum a ambos os movimentos é a relação de<br />
contigüidade, o estar lado a lado, sem qualquer fusão entre os<br />
elementos. Essa preocupação com um relacionamento não fusional<br />
entre elementos perpassa todo o pensamento e a escrita<br />
benjaminianos, pois nela se encerram duas questões recorrentes e que<br />
definem por excelência uma tarefa crítica: a da mediação, transmissão,<br />
752 Ibidem, p.205.<br />
753 “As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que são as ruínas no reino das coisas”. Cf.<br />
BENJAMIN, W. (1984) p. 200. “Pois a alegoria é as duas coisas, convenção e expressão, e ambas são<br />
por natureza antagonísticas”. Cf. BENJAMIN, W. (1984) p.197.<br />
754 BENJAMIN, W. (1986c) p.186.
comunicação, por um lado, e a da interrupção da cesura, do silêncio,<br />
por outro. (LAGES, S.K., 2002, p.102).<br />
No mesmo sentido, em Benjamin, o começar com pouco, com os restos da<br />
tradição e da barbárie, coincide com o arrancar à tradição ao conformismo – e ambos<br />
colocam em cena a tensão entre a memória, do aproveitamento dos rastros; e o<br />
esquecimento, da renúncia – referindo-se tanto à criação artística como à relação que as<br />
gerações e os sujeitos estabelecem de maneira geral com a história e com a memória dos<br />
antepassados 755 , e acenam para a rememoração como algo distinto da tradição, ou seja,<br />
algo relativo à criação, à memória inventada 756 , que se manifesta como ausência: não-<br />
memória, traduzindo em língua rosiana.<br />
A mesa de montagem se revela, deste modo, como imagem do processo de<br />
rememoração do narrador rosiano que, ao voltar seu olhar ao passado, se depara com os<br />
restos, os resíduos da história:<br />
... Em todos os momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a<br />
vida é cheia de passagens emendadas. Eu na Nhanva, ensinando lição<br />
a ele, ditado e leitura (...). Então, agora, era eu também – Zé Bebelo<br />
vinha de lá, comandando armas de esquadrões, e o que ele tinha<br />
jurado, naquela ocasião, ficava sendo de acabar comigo, com minha<br />
vida. (ROSA, J.G., 2001, p.235).<br />
O trabalho deste luto, ou a travessia da melancolia, se constitui no jogo, nesta<br />
oficina aberta de montagem das passagens emendadas da experiência. “Hoje em dia,<br />
verso isso: emendo e comparo” 757 . É no digo, e desdigo; no conto, e reconto que o<br />
narrador pensa e repensa a história, compara o incomparável do trauma, compondo sua<br />
coleção de relíquias como uma colagem, coleção de cacos, do lixo que sobrou da<br />
história; e o faz em movimento de dansa, nesta alternância entre o ir e vir, entre a<br />
755 Cf. BENJAMIN, W. (1986b) p.<br />
756 “Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar<br />
sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua<br />
beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura realmente<br />
inventada da memória.” DIDI-HUBERMAN, G. (1998) p.114.<br />
757 ROSA, J.G. (2001) p. 173.
proximidade e a distância; o que leva as coisas passadas a se remexerem nos lugares,<br />
fazendo balancê, e dá à rememoração seu caráter móvel, plástico, reversível, abrindo-se<br />
para a reinvenção.<br />
Esta idéia de um movimento constituinte da rememoração, da paisagem<br />
construída nas andanças, por sua vez, é constitutiva do processo mesmo de escrita de<br />
Guimarães Rosa, indo desde o valor das anotações, dos registros colhidos durante as<br />
viagens pelo sertão e pela Europa, que constituem sua matéria prima; ao estranho ritual<br />
de escrita do GSV, revelado a Benedito Nunes, onde o rolar pelo chão se articula como<br />
momento inicial, inquietante, da escrita, ao qual se segue o movimento de ler, reler,<br />
reescrever o texto:<br />
Ando muito, canto, rolo no chão. Depois escrevo e repasso tudo até<br />
oito, nove vezes. Se consigo descobrir coisas novas no escrito, nele já<br />
deparo com as situações antes não pensadas, então começa a segunda<br />
fase do trabalho. A estória terá se produzido como se outro a houvesse<br />
escrito. Daí por diante posso trabalhar noutras direções. (In:<br />
GALVÃO, W. N.; COSTA, A. L. M. [Orgs.]).<br />
É assim que os motivos presentes nas noções (já mencionadas) do prazer do<br />
movimento (Wisnik), da alegria intermitente (Rosa), do júbilo da nomeação (Fédida) ou<br />
da felicidade do rememorar (Benjamin), convergem para a idéia de dança, montagem,<br />
dança do pensamento, mas pensar num ritmo, numa coreografia; dança, sobretudo,<br />
como ato de conhecimento, onde “o movimento argumentativo dá lugar ao movimento<br />
coreográfico” 758 . Dansa escrita, no romance, sempre com ‘s’, talvez por reenviar ao<br />
som da palavra, à música, e também à origem onomatopaica da língua, conforme a<br />
presença dos ‘s’ na língua dos catrumanos e nos significantes malignos.<br />
Como signo, a dança se articula ao desejo insidioso, “Diadorim, você<br />
dansa? 759 ” À festa: “Mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-<br />
758 Cf. DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />
759 ROSA, J.G. (2001) p. 190.
gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado dos pés dansando” 760 . E<br />
ritual, capaz de reunir o bem, o mal, o caos e o diabolismo do acaso: “Você quer<br />
dansação e desordem” 761 . – “Em dansa de demônios, que nem não existem” 762 . No<br />
entanto, o movimento não se detém no caos, não cultua o irracionalismo, mas se<br />
conforma como o que permite ir lá e voltar, dando novos passos em direção ao desejo:<br />
... até que chegue a hora de se dansar. Travessia. Deus no meio” 763 .<br />
Em direção ao sem-fim da origem, como movimento da rememoração, se vai e se<br />
retorna, no embalo dos versos da canção de Siruiz que, em sua primeira versão, coloca<br />
exatamente em questão a possibilidade do retorno:<br />
Urubú é vila alta<br />
mais idosa do sertão:<br />
padroeira, minha vida –<br />
vim de lá, volto mais não...<br />
Vim de lá, volto mais não?...<br />
(...)<br />
Remanso de rio largo,<br />
viola da solidão:<br />
quando vou p’ra dar batalha,<br />
convido meu coração...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p. 135).<br />
A segunda cantiga, composta pelos jagunços, não por acaso, após a morte de<br />
Siruiz, já descreve uma coreografia completa, um vaivém, cujo desenho seria<br />
popularmente conhecido como ginga, e que põe em jogo uma certa dialética da<br />
malandragem 764 , de uma ida iniciada mas não totalizada, que, contudo, não evita nem se<br />
contrapõe ao mergulho no reprofundo nem o atravessar até o fim. Mas, como, no sertão,<br />
760 Ibidem, p.540.<br />
761 Ibid. p.484.<br />
762 Ibid., p.618.<br />
763 Idem, p. 325.<br />
764 Cf. CANDIDO, A. (1993). Creio estar utilizando o termo mais em seu valor imagético do que<br />
conceitual, pois a dialética da ordem e da desordem, para Candido, na qual insere a comicidade, é vista<br />
como sistema, estrutura que explica tanto o texto como os fatos sociais: “...dialética da ordem e da<br />
desordem, é um princípio válido de generalização, que organiza tanto AB como A’B’, dando-lhes<br />
inteligibilidade.” Cf. p.46. Enquanto, aqui, a dialética da malandragem me parece, é concebida como<br />
forma de pensamento, numa certa linhagem de imagens às quais Candido faz referência quando cita<br />
Macunaíma, por exemplo.
é o próprio corpo que é tornado carretel, lembre-se dos entraves com a mediação<br />
simbólica, já discutidos, e da morte como ameaça onipresente – a atenção é detida no<br />
ponto de onde se é capaz de retornar vivo; o que também nos reenvia à discussão sobre<br />
o humor presente em “Meu Tio, o Iauaretê” 765 :<br />
Olerereêe, bai-<br />
Ana...<br />
Eu ia e não vou mais:<br />
Eu fa-<br />
ço que vou lá dentro, oh baiana,<br />
e volto<br />
do meio p’ra trás...<br />
(ROSA, J.G., 2001, p.193).<br />
Sabe-se que a ginga provém da arte de enganar o inimigo na capoeira, esse misto<br />
de dança e luta dos escravos no Brasil; portanto, uma certa encenação da dança se<br />
acrescenta a este movimento, que se contrapõe, como resistência, à melancolia: “O<br />
correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,<br />
sossega e depois desinquieta” 766 .<br />
Enfim, considerar este processo de rememoração como uma mesa de montagem<br />
a partir da ausência, da alternância, do ritmo, da dialética e do humor, nos leva à<br />
constatação de que as imagens não se subjugam completamente a uma ordem ou<br />
conceito, pois as imagens pedem para serem lidas, traduzidas; mas, por outro lado,<br />
mantém-se “intocadas não só pelos fenômenos, como umas pelas outras” 767 ,<br />
765 ROSA, J.G. (1969). E como não mencionar – já que grande parte desta formulação parece ter origem<br />
na concepção benjaminiana de montagem e direito de escolha das imagens no cinema, em “A Obra de<br />
Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” – um filme que ilustra bem estas idéias, que consiste numa<br />
montagem de imagens já existentes, portanto restos de imagens, do século XX, onde não há diálogos,<br />
apenas nomes e pequenas frases escritas; que vem a ser “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, de<br />
Marcelo Masagão, no qual há uma seqüência impressionante de imagens dos dribles do jogador de<br />
futebol Garrincha, demonstrando seu talento na arte do “faço que vou... e volto”, intercaladas,<br />
comparadas, em ritmo de samba, com uma coreografia de Fred Astaire.<br />
766 ROSA, J.G. Op. Cit., p. 334.<br />
767 No livro “A Origem do Drama Barroco Alemão”, estou considerando a “idéia” como imagem, nos<br />
itens “A idéia como Configuração” (constelação) e “A Palavra como Idéia”, onde Benjamin trata da<br />
questão nos termos da idéia e da palavra, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet, BENJAMIN, W. (1984)<br />
p. 59. A aproximação foi feita a partir da leitura de Seligmann-Silva, e da concepção de que a imagem
eivindicando novamente seu direito à palavra ou à representação. Embora a linguagem<br />
seja a condição de apreensão das imagens – graças ao duplo caráter de distância,<br />
ausência, que reenvia permanentemente a novas imagens, e de vestígio como ruínas da<br />
história – elas mantém-se insubordinadas, rebeldes ao aprisionamento na linguagem,<br />
exatamente como as imagens da memória, irredutíveis em sua dimensão de origem e<br />
resto, reenviando a novas buscas pelo passado desde sempre perdido.<br />
A rememoração de Riobaldo põe as lembranças como as cartas de um baralho,<br />
que verte e reverte, cuja mudança na ordem apela, criticamente, por uma reconfiguração<br />
do mundo:<br />
... Ao modificar a ordem fazemos com que as imagens tomem uma<br />
posição. Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação<br />
definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma<br />
vez por todas – como um dicionário, um arquivo, ou uma enciclopédia<br />
– mas sim para recolher segmentos, trocos do parcelamento do<br />
mundo, respeitar sua multiplicidade, sua heterogeneidade. E para<br />
outorgar legibilidade às relações postas em evidência.<br />
(DIDI-HUBERMAN, G., 2010, n/c.).<br />
A mesa de montagem leva, portanto, à equiparação entre a composição da<br />
memória e da narrativa, “o contar como montagem de um sutil cosmos de imagens<br />
refratados” 768 , onde a significação sempre parcial do passado, no giro da memória,<br />
depende de uma configuração dos pedaços, de acordo com o ponto de vista, com o<br />
olhar, ou com o momento presente de onde se volta ao passado:<br />
... Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cemdobro<br />
de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – mesmo eu não<br />
acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados<br />
guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do<br />
Hermógenes, por causa. (ROSA, J.G., 2001, p.359).<br />
A rememoração se compara, assim, ao caleidoscópio usado por Baudelaire como<br />
imagem exemplar do olhar do artista e da obra de arte. Mais uma vez, a imagem do<br />
“não se deixa fixar”, sendo percebida num lampejo; ambas já mencionadas. Cf. SELIGMANN-SILVA,<br />
M. (1999); BENJAMIN, W. (1986f).<br />
768 ROSENFIELD, K. (2006) p.205.
espelho, porém multifacetado, fragmentado, cuja forma se move, compondo e se<br />
recompondo, de acordo com o ponto, a posição de onde se olha. Assemelha-se, ainda,<br />
ao sujeito em análise, girando seu ponto de vista em relação à sua história, como o<br />
balanço entre as lembranças e o esquecimento de Riobaldo:<br />
... um espelho tão grande quanto esta multidão, a um caleidoscópio<br />
dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa<br />
a vida múltipla e a graça movente de todos os elementos da vida. É<br />
um eu insaciável de não-eu, que, a cada instante, o devolve e o<br />
exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e<br />
fugidia. (BAUDELAIRE, C., 1976, p.352) 769 .<br />
Neste movimento de avanço e recuo pelo sertão, do qual se compõe a narrativa,<br />
formada como um caleidoscópio de imagens produzidas pela rememoração – em última<br />
instância, o que se produz é um espelho do próprio tempo – sem que, ali, os conflitos<br />
sejam resolvidos, pois “uma imagem não tem nunca uma palavra final” 770 . Talvez por<br />
isto, sua última palavra, travessia; e sua última imagem, a Banda de Moebius,<br />
convidem, façam esta invocação ao tempo. É que, desta oficina da memória, da porta<br />
assim escolhida para permanecer aberta – lá, desde aquele vão, ainda aqui, agora, o<br />
Grande Sertão nos olha, grande espelho das desigualdades – e nos desinquieta, nos<br />
instiga a atravessá-lo, a rever e reescrever nossa história, talvez com outras linhas e<br />
palavras: a não-memorizar e evanascer...<br />
769 “... un mirroir aussi immense que cette foule; à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de<br />
ses mouvements, représente la vie multiple et la grâce mouvante de tous les éléments de la vie. C’est un<br />
moi insatiable du non-moi, qui, à chaque instant, le rend et l’exprime em images plus vivantes que la vie<br />
elle-même, toujours instable et fugitive”. Cf. BAUDELAIRE, C. (1976) p.352. Ver também a dança do<br />
cristal em Didi- Huberman, cf. DIDI-HUBERMAN (1998), p.118.<br />
770 DIDI-HUBERMAN, G. (2009).
CONCLUSÃO: RESTOS – DO <strong>SERTÃO</strong> – A CONCLUIR<br />
Eis, portanto, minha vez de fazer balanço do próprio trabalho, relendo, uma vez<br />
mais, buscando, nas idéias desenvolvidas, nos resíduos que insistem a nos inquietar, o<br />
lugar comum, na forma da repetição, e os traços diferenciais deste percurso, que<br />
pretendeu discutir, situar, comparar – a partir da fala de Riobaldo – as noções de<br />
memória e esquecimento presentes no texto.<br />
De início, a discussão realizada no primeiro capítulo, acerca das concepções de<br />
memória individual e memória coletiva, envolveu, também, a correlação benjaminiana<br />
entre uma memória própria da narrativa épica, e uma rememoração típica do romance.<br />
Porém, ao ser confrontada com a busca e o desejo de Riobaldo das coisas sempre<br />
outras, instaurador de uma negatividade da memória; a mesma distinção apontou para<br />
uma certa insuficiência destas categorias de memória, na medida em que possibilita uma<br />
leitura dicotômica da memória; ao contrapor, de um lado, a memória individual e, de<br />
outro, a coletiva.<br />
Por outro lado, se vistas como intrinsecamente articuladas, as mesmas categorias<br />
permitiram pensar a memória e o tempo no romance de Rosa em interlocução com as<br />
concepções de tempo e memória psicanalíticas e benjaminianas; na medida em que a<br />
idéia de uma memória do narrador que se desenreda do coletivo se aproxima da<br />
concepção de uma memória subjetiva para a psicanálise, constituída sempre a partir do<br />
Outro. De forma semelhante, a memória de Riobaldo pôde ser considerada, de acordo<br />
com a concepção de Walter Benjamin, numa tensão constante entre os tempos, entre a<br />
tradição e a ruptura, a renúncia e o começar com pouco.<br />
O mesmo ocorreu com o conceito de memória coletiva de Halbwachs, visto que<br />
a memória coletiva permite tanto uma leitura mais fechada, se contraposta à memória
individual; como traz importantes ressonâncias com o texto de Rosa, a partir das noções<br />
de resíduo ou traço de memória, comuns a Benjamin e Freud; mostrando-se<br />
fundamental para pensar a memória no texto, segundo a presente leitura.<br />
No segundo capítulo, a partir das noções de história como ruína e memória<br />
como resíduo, procurei analisar a questão dos referentes espaço-temporais. Aqui, a<br />
preocupação foi indagar como os traços ou restos da história e da memória se articulam,<br />
através de duas noções principais: a paisagem e o narrador-testemunha. Em relação à<br />
primeira, encontrei um caminho na teoria de Michel Collot, que articula a idéia da<br />
construção desta paisagem com a noção de inconsciente freudiano, através da<br />
formulação do inconsciente como um horizonte; uma linha que, ao projetar sempre um<br />
outro plano da paisagem, manifesta-se como ausência, negatividade. Além disto, a<br />
formulação de um narrador-testemunha como sobrevivente e testemunha da barbárie,<br />
possibilitou abordar simultaneamente os aspectos históricos do romance e as dimensões<br />
de lacuna, ficção e fantasia do testemunho.<br />
O incessante deslocamento da rememoração de Riobaldo, do plano da outra<br />
coisa, das coisas importantes, e da sobre-coisa revelou, também, uma verdadeira<br />
filosofia sobre o tempo e a memória. Trouxe, com a recorrência, por todo o texto, dos<br />
fundos, ocos e ermos; a idéia de rememoração como retorno, manifestação do<br />
inconsciente freudiano, de uma ausência só pensada a partir da linguagem que,<br />
entretanto, evoca o seu além ou aquém, na forma do enigma, do esquecimento.<br />
O terceiro capítulo foi dedicado a seguir esta trajetória da memória de Riobaldo<br />
tendo em vista seu movimento desdobrado e dividido entre o narrar e ser narrado, entre<br />
suas diferentes subjetivações e dessubjetivações. A rememoração foi considerada à luz<br />
da noção de tempo do nachträglichkeit freudiano, traduzido como a posteriori ou só-
depois, sintetizado na imagem do redemoinho e da curva de Moebius, pois ambas falam<br />
de um tempo que rearticula o princípio e o fim do romance.<br />
Ao comparar a fala de Riobaldo a uma situação de análise (demonstrando como<br />
preenche algumas de suas condições básicas: associação livre, abstinência do analista e<br />
transferência de saber); entretanto, o tempo todo, mantive a preocupação de preservar o<br />
seu caráter de obra de arte e de escritura, mostrando a montagem desta memória através<br />
de diferentes construções de linguagem que a tornam irredutível a um puro setting<br />
analítico.<br />
No último capítulo, tentei estabelecer relações entre a memória, o esquecimento<br />
e a linguagem, situando a rememoração numa alternância, num ir e vir, entre a<br />
possibilidade, referida à memória; e a resistência do nome, que alude ao esquecimento<br />
como resto ou opacidade não-nomeável; chegando, também, à concepção de memória<br />
como montagem subjetiva, parcial e fragmentada, que a religa à idéia de fantasia e<br />
ficção.<br />
Para retornar ao início deste trabalho – imitando a forma temporal da narrativa –<br />
uma primeira indagação, apresentada na introdução, que ainda pode restar, seria a<br />
questão da existência de um ponto de origem que ponha limite à memória infinita;<br />
pensado como relacionado, no texto, aos fundos, ocos, e ermos; à negatividade do<br />
esquecimento, ao deslembrado, que Riobaldo afirma haver: “Tem um ponto de marca,<br />
que dele não se pode mais voltar para trás...” 771 Teoricamente, poderia, ainda, ser visto<br />
como o ponto de torsão da Banda de Moebius que, como Lacan demonstra, ao girarmos<br />
a banda longitudinalmente, percebe-se como um vazio, aludindo para sua dimensão<br />
fantasmática. Em Benjamin, como foi visto, igualmente há a noção de um fundo<br />
771 Idem, p.229-230.
imemorial, onde a memória encontra o esquecimento, que se constitui simultaneamente<br />
como limite e fonte da rememoração.<br />
Outro aspecto importante se encontra nas possíveis analogias entre os tempos do<br />
futuro anterior (o terá sido) do a posteriori freudiano, e o futuro do passado (o teria<br />
sido) do olhar do historiador-materialista benjaminiano. Ambos se contrapõem à idéia<br />
de um tempo linear, e se referem a um tempo que se sobrepõe em camadas, no qual a<br />
noção de resto ou resíduo está presente como fundamental para a rememoração. E,<br />
finalmente, ambos os tempos se encontram no agora, tanto em Benjamin como em<br />
Freud, o agora é o tempo determinante de onde se volta ao passado, um tempo saturado<br />
de tensões, como o real no meio, de Riobaldo.<br />
Resta, ainda, a questão da ausência e a “saída” elaborada pelo texto diante da<br />
mesma; situada entre a morte, a melancolia, a travessia e o humor. Dito de outro modo,<br />
procurei demonstrar como a ausência seria construída e elaborada de forma<br />
diferenciada, no GSV, em relação a outros textos do escritor. Pois – diferentemente do<br />
apelo a uma espécie de dissolução através da morte e da melancolia, presentes em<br />
alguns contos analisados; ou, ainda, diversamente do caráter predominante de humor,<br />
traço distintivo de Tutaméia 772 – no Grande Sertão, o que vejo destacar-se é a idéia de<br />
movimento, de travessia, que permite ir e vir, dialetizar, colocar em movimento, tanto o<br />
caráter do trauma ligado a Diadorim, como os contornos mais históricos da ausência,<br />
nas formas da falta da lei, da violência, da miséria. Neste caso, movimento que consiste<br />
no modo como o texto remexe, desloca nossas memórias recalcadas sobre a violência e<br />
a escravidão.<br />
Mas, se o humor não é predominante no romance, não se trata da inexistência de<br />
humor; veja-se como Riobaldo, diante da ausência, brinca, ironiza com o nó entre a<br />
772 ROSA, J.G. (1985).
destituição subjetiva e a destituição da condição social de menos-valia; questionando,<br />
simultaneamente, o saber do chefe Zé Bebelo e o do senhor culto e viajado:<br />
– “Pois é Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada, não sou<br />
nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a<br />
coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma<br />
nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada.<br />
De nada... De nada...” (ROSA, J.G., 2001, p. 366).<br />
Portanto, em relação à afirmação inicial de que a travessia não apaga a<br />
melancolia, é como se o texto do GSV, sem contradizê-la, também nos levasse a afirmar<br />
que: apesar da melancolia, atravessamos. A travessia se substitui, reformulando,<br />
colocando em outros termos a pergunta sobre a possibilidade de esquecer o trauma, pois<br />
o texto mostra – feliz e dolorosamente – como é possível, não apenas ser atravessado,<br />
mas atravessá-lo até o fim, e aceitar, paradoxalmente, que algo de irredutível sempre<br />
pode restar.<br />
Outra pergunta elaborada no princípio diz respeito ao modo como a obra de arte<br />
interfere na relação com nossas lembranças, nossa memória, em nossa percepção do<br />
tempo. A obra, memória inventada, afeta nossa memória... Já foi dito como a arte pode<br />
ser lida à luz da psicanálise, mas eu proporia também o inverso como questão: como ler<br />
a psicanálise a partir da obra de arte e da teoria da arte? Algumas indicações creio que<br />
foram dadas no sentido de um encontro com o real, através de autores que trabalham<br />
nesta fronteira entre a arte e a psicanálise, pois todos falam da arte como propiciadora<br />
de uma experiência do real, do parcial, do descentramento, e do esquecimento;<br />
experiência, que, contudo, só vale na medida em que põe em movimento o desejo; em<br />
outros termos, que permite articular uma outra história.
Uma última observação acerca da relação entre teoria e texto foi encontrada em<br />
Didi-Huberman, na noção de uma estética da comparação, do como 773 . Trata-se de uma<br />
outra forma de pensar a teoria, que não exclui a lógica, mas inclui as imagens. Pois,<br />
quando Freud compara a memória ao bloco mágico ou às escavações, às ruínas; ou<br />
quando Lacan compara o inconsciente à linguagem; quando Rosa insere e recria,<br />
adaptando as imagens existentes, do sertão, do país, segundo a sua imagem; sem<br />
dúvida, é de uma outra forma de pensar que se trata, além da lógica.<br />
Uma analogia ou dança como forma de pensamento, que se produz em<br />
movimento, que não exclui a lógica, mas não nega o vazio; nas palavras de Guimarães<br />
Rosa, põe no colo o silêncio. Esta imagem fala desta travessia que se move, deixando-se<br />
embalar pelo silêncio, mas que é também capaz de embalá-lo, de acolher o silêncio, de<br />
uma dialética ou ida e vinda em direção ao silêncio; ou ainda, de uma inserção do vazio<br />
através do movimento, que produz mais movimento, como o pêndulo poético de Valéry.<br />
Findo o trabalho, em que pese o mergulho em todos os ocos e fundos sem fim<br />
deste sertão, seja através das raízes do Brasil profundo, inconsciente; seja através das<br />
apesar das várias faces da memória e do esquecimento, dos diferentes jogos e modos do<br />
rememorar e do esquecer; é importante destacar que este sertão só se pode apontar,<br />
como faz Riobaldo: sertão: é por ali, – jamais colocar um ponto final nesta indicação.<br />
A travessia se fez, e apesar dos restos de melancolia, há o encontro com um<br />
tempo capaz de remexer e deslocar o passado, o presente, e talvez o futuro. Um tempo<br />
do não-realizado, para o qual é necessário montar e remontar, colar e separar, colar de<br />
novo, analisar como se colam e se comparam as imagens; e compará-las de novo, afim<br />
de “recuperar a imago da imagem” 774 e, neste ritmo, também a alegria e o humor do<br />
773 DIDI-HUBERMAN, G. (2009).<br />
774 Idem.
encontro com o diabolismo da palavra. Pois o sertão, após nos engolir, nos cuspir do<br />
quente da boca, também nos produz.
... Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.<br />
JOÃO GUIMARÃES ROSA
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