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Número 1 (jan-jun/04) - Dialogarts - UERJ

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Caderno Seminal Digital – Vol 1 – Nº 1 – 1. (Jan/Jun-20<strong>04</strong>). Rio de Janeiro:<br />

<strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>04</strong>.<br />

CONSELHO CONSULTIVO<br />

André Valente (<strong>UERJ</strong>-FACHA)<br />

Ângela Lopes (UniverCidade-RJ)<br />

Carmen Lúcia Tindó (UFRJ)<br />

Claudio Cezar Henriques (<strong>UERJ</strong>-UNESA)<br />

Darcilia Simões (<strong>UERJ</strong>)<br />

Edwiges Zaccur (UFF)<br />

Flavio Garcia (<strong>UERJ</strong>)<br />

Flora Simonetti Coelho (<strong>UERJ</strong>)<br />

José Luís Jobim (<strong>UERJ</strong>-UFF)<br />

José Carlos Barcellos (<strong>UERJ</strong>-UFF)<br />

Luís Flavio Sieczkowski (UniverCidade-RJ)<br />

Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)<br />

Maria Leny H. de Almeida (<strong>UERJ</strong>)<br />

Maria Teresa G. Pereira (<strong>UERJ</strong>)<br />

Milton Marques Júnior (UFPe)<br />

Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />

Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />

Valderez H. G. Junqueira (UNESP)<br />

Vilson José Leffa (UCPel-RS)<br />

ISSN 1806-9142<br />

Irregular<br />

1. Lingüística Aplicada– Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -<br />

Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do<br />

Rio de Janeiro.<br />

Endereço para envio de trabalhos<br />

<strong>UERJ</strong>/IL- A/C Profa. Dra. Darcilia Simões<br />

R. São Francisco Xavier, 524, sala 1139-F,<br />

Maracanã, Rio de Janeiro, RJ,<br />

CEP 20.559-900<br />

contatos:<br />

dialogarts@uol.com.br<br />

EDITORA<br />

Darcilia Simões<br />

COMISSÃO EXECUTIVA<br />

Flavio Garcia<br />

Cláudio Cezar Henriques<br />

EQUIPE DE DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO<br />

Carla Barreto Vasconcellos (EIC)<br />

Renata Gonçalves da Silva (EXT)<br />

Viviane Souza de Oliveira (EXT)<br />

PROJETO DE CAPA<br />

Darcilia Simões<br />

LOGOTIPO:<br />

Rogério Coutinho<br />

Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um projeto<br />

de Extensão da <strong>UERJ</strong> do qual participam<br />

Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a<br />

Faculdade de Formação de Professores<br />

(Campus São Gonçalo). O objetivo deste<br />

projeto é promover a circulação da produção<br />

acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar<br />

o relacionamento entre a Universidade e o<br />

contexto sociocultural em que está inserida.<br />

O projeto teve início em 1994 com<br />

publicações impressas. Em 20<strong>04</strong>, inaugura as<br />

produções digitais com vistas a recuperar a<br />

ritmo de suas publicações e ampliar a<br />

divulgação.<br />

Visite nossa página:<br />

http://www.darcilia.simoes.com<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 1


APRESENTAÇÃO<br />

O Caderno Seminal é antes de tudo um forte!<br />

Nos seus 11 anos de vida, o Caderno Seminal tem atravessado sucessivas crises.<br />

As dificuldades socioeconômicas nacionais se refletem perversamente sobre as<br />

Universidades, e os projetos acadêmicos vêm lutando para se manterem ativos e<br />

atingirem seus objetivos.<br />

Assim vem sendo a trajetória do Caderno Seminal. A despeito da demanda de<br />

artigos de excelente qualidade e da cobrança dos lançamentos por parte do público-<br />

leitor, a equipe de produção do Projeto Publicações <strong>Dialogarts</strong>, que produz o Caderno<br />

Seminal, tem sofrido altos e baixos. Antes, lutava-se com a redução do número de<br />

bolsistas; hoje, aumentado o número de bolsistas (são 3 atualmente), atravessam-se as<br />

dificuldades de: espaço para trabalhar, máquinas, papel para impressão, gráfica em<br />

funcionamento precário etc. Até o treinamento na editoração eletrônica é realizado pelos<br />

docentes que lideram o projeto.<br />

No entanto, sobrevivemos! Eis o Caderno Seminal Digital, o que supomos<br />

resolverá não só a questão da periodicidade, mas sobretudo a divulgação em ampla<br />

escala com o auxílio da poderosa INTERNET.<br />

Agradecemos a todos que vêm confiando em nosso trabalho e reativamos a<br />

chamada para apresentação de artigos, cujas normas se encontram disponíveis na última<br />

página de cada volume.<br />

O critério de aceitação dos trabalhos é único: QUALIDADE!<br />

Por isso, <strong>jun</strong>tem-se a nós todos os colegas professores-pesquisadores e<br />

estudantes de pós-graduação (lato e stricto sensu) e venham distribuir democraticamente<br />

suas descobertas.<br />

Alvíssaras!<br />

Junho, 20<strong>04</strong><br />

Os Editores<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 2


SUMÁRIO<br />

FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE ....................................................... 4<br />

Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martins (<strong>UERJ</strong>_CPII)........................................... 4<br />

A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL ............................................................ 20<br />

Elizabeth Bessa de Mattos – <strong>UERJ</strong>.......................................................................... 20<br />

O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO COMO DESTRUIÇÃO<br />

EM A LUZ NO SUBSOLO, DE LÚCIO CARDOSO ............................................... 28<br />

Fernando Monteiro de Barros (<strong>UERJ</strong>) ..................................................................... 28<br />

REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE SENTENÇAS............................. 46<br />

Sandra Pereira Bernardo (<strong>UERJ</strong> / PUC-Rio)............................................................ 46<br />

CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA CINEGRAFISTA............... 72<br />

Regina Silva Michelli (<strong>UERJ</strong>)................................................................................. 72<br />

FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA ORAÇÃO............. 87<br />

Manuel Ferreira da Costa (<strong>UERJ</strong>) ........................................................................... 87<br />

A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC ................................. 105<br />

Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ <strong>UERJ</strong>) ............................................................... 105<br />

UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO...................................................... 120<br />

Cláudio Artur de O Rei (<strong>UERJ</strong>-UNESA) .............................................................. 120<br />

A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O<br />

PROFESSOR........................................................................................................ 136<br />

Claudia Moura da Rocha (<strong>UERJ</strong>) .......................................................................... 136<br />

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS........................................... 149<br />

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1) INTRODUÇÃO<br />

FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE 1<br />

Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martin 2 s (<strong>UERJ</strong>_CPII)<br />

A camada fonológica das línguas sempre foi objeto de estudo dos iniciados. O<br />

usuário comum não presta atenção no material fonêmico com o qual opera, e o ensino<br />

da língua sempre reduziu o estudo fonológico à classificação dos sons. Os estudos<br />

superiores da língua ocupam-se da camada fônica, contudo, ainda está bastante restrito o<br />

espaço reservado aos estudos fonológicos, uma vez que não se tem explorado<br />

suficientemente o valor expressivo-impressivo dos sons de modo a tornar seu estudo<br />

mais atraente. Observada a camada fônica da língua como objeto de beleza e riqueza,<br />

seu estudo acaba por tornar-se mais produtivo. O pesquisador passa a alargar a visão do<br />

objeto, não apenas como unidade sonora ou unidade mínima distintiva, mas como<br />

ingrediente da produção textual, integrante do seu potencial significante e potente na<br />

construção da semiose textual.<br />

2) A ICONICIDADE NA CAMADA FÔNICA.<br />

Como anunciamos no resumo, nossa abordagem pauta-se na semiótica norte-<br />

americana de Charles Sanders Peirce; e a teoria da iconicidade é por nós aplicada no<br />

sentido de captar nos textos as marcas sígnicas, que podem conduzir o leitor à<br />

mensagem básica lá inscrita. Nessa ótica, tomamos os fonemas da língua como signos<br />

sonoros (verbais vocais) representáveis na escrita, cuja combinação dá origem a novos<br />

signos sonoros mais complexos (sílabas, vocábulos, grupos de força, etc.), passíveis de<br />

uma análise a que chamamos fonossemiótica, ou seja, uma interpretação por meio da<br />

qual os fonemas (ou outra unidade fônica superior) sejam observados em seu potencial<br />

icônico ou indicial.<br />

1<br />

Comunicação apresentada, com o título Fonologia em nova chave, no II Seminário Internacional de<br />

Fonologia ─ PUC/RS, em 15/<strong>04</strong>/2002.<br />

2<br />

Aira Suzana R. Martins é doutoranda em Letras na <strong>UERJ</strong> e docente do Colégio Pedro II.<br />

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Observe-se o que dizem Simões 3 & Martins acerca de ícone e índice:<br />

O ícone, ligado à primeiridade, representa formas e sentimentos, tendo, por<br />

isso, alto poder de sugestão. Existe, nessa categoria, similaridade entre<br />

representâmen e objeto. São exemplos de ícones as pinturas, os diagramas,<br />

as fórmulas algébricas e as metáforas.<br />

O índice pertence à categoria da secundidade pelo fato de estabelecer uma<br />

relação de causalidade, temporalidade e espacialidade entre o representâmen<br />

e o objeto. Podemos reconhecer como índices o cata-vento, um grito de<br />

socorro, os nomes próprios, os pronomes pessoais e as metonímias.<br />

Para esclarecer, lembramos que, na perspectiva peirceana, o signo é constituído<br />

de três elementos (cf. Simões & Henriques 4 , 2002:25):<br />

Segundo Peirce 5 , um signo é um signo quando há alguém que possa<br />

interpretá-lo como signo de algo. Assim, um signo (ou representâmen), ao<br />

criar na mente de alguém um signo equivalente ou mais elaborado (no<br />

sentido do desenvolvimento), estará criando um interpretante, e a coisa<br />

representada recebe a designação de objeto. É isso que forma a relação<br />

triádica de signo.<br />

No nível fônico, a produção de ícones e índices se faz por meio do potencial<br />

expressivo ou impressivo resultante das escolhas fonemáticas. Em nossos estudos,<br />

temos privilegiado o texto rosiano porque, para nós, Guimarães Rosa talvez seja o autor<br />

que mais tem provocado o estranhamento no receptor, reação tão esperada pelo artista<br />

do mundo contemporâneo (cf. Simões & Martins, 2001).<br />

Em um trabalho intitulado, A construção fono-semiótica dos personagens de<br />

“Desenredo” de Guimarães Rosa 6 , Simões demonstrou a virtualidade fonêmica<br />

construída por Rosa, vejamos:<br />

O PAPEL DAS CONSOANTES.<br />

A primeiro personagem a aparecer é JÓ JOAQUIM que traz em seu<br />

nome a reiteração da figura de JÓ a partir da repetição dessa sílaba. Contudo, a<br />

3<br />

(In SIMÕES, Darcilia & Aira Suzana R. MARTINS. “Tresaventura”: a trindade do conhecimento na<br />

narrativa sertânica, na II Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa, PUC-MINAS, ago-2001):<br />

4<br />

SIMÕES, Darcilia & Cláudio Cezar HENRIQUES, A produção de trabalhos acadêmicos. Rio de<br />

Janeiro, 2002 – no prelo)<br />

5<br />

Apud FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva. 1986 [fl.66]<br />

6<br />

Apud 1997- Revista Philologus -set-dez/97 (distribuída em mar/1998)- 67-81 ); disponível na<br />

INTERNET www.filologia.org<br />

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metafonia presente serve de índice para as nuanças de diferenciação detectáveis<br />

no “novo Jó”: JÓ /ó/ JOaquim /o/<br />

Observe-se que pela própria ordem de apresentação no segmento fônico—<br />

em primeiro lugar aparece o homógrafo /z,ó/, conforme o mito judaico que<br />

remonta aos primórdios da História—vê-se um Jó diferente, inclusive com<br />

prenome duplo. E esse nome apresenta uma estrutura silábica complexa,<br />

porém, do tipo cV—livre, destravada, aberta, como era o JÓ bíblico em seu<br />

comportamento.<br />

A transformação do JÓ num outro se anuncia com o fechamento do timbre<br />

da vogal posterior média; e se consolida na incorporação de mais uma sílaba<br />

àquela. Um segmento fônico mais extenso e de estrutura fônica mais<br />

complexa -- /kiN/-- se liga a /z,ó/ por intermédio de uma sílaba do tipo V --<br />

/a/, formando o nome composto: JÓ JOAQUIM, cuja transcrição fonológica<br />

é a seguinte: /z,ó/ /z,o a ‘kiN/.<br />

Essa estrutura sugere possíveis alterações de comportamento se<br />

compararmos os dois jós: o bíblico e o rosiano.<br />

Como é possível depreender do transcrito, a autora procedeu à análise do conto a<br />

partir dos seus personagens, e à análise destes a partir de seus nomes, ou da<br />

configuração fonológica dos mesmos.<br />

Nessa ótica, percebe-se uma análise semiótica – o fonema como signo – fundada<br />

numa descrição funcionalista dos componentes fônicos dos significantes.<br />

3) A DESCRIÇÃO FONÊMICA NUM PRISMA FUNCIONAL<br />

Como se viu no excerto da análise de “Desenredo”, os valores fônicos são<br />

deduzidos (ou induzidos) com base na estrutura do vocábulo e, por conseguinte, da<br />

localização do fonema, do que resultam suas funções e valores. As funções podem ser<br />

definidas segundo o tipo de análise em realização. Em nosso caso, buscamos funções<br />

semióticas e estilísticas que nos permitam perscrutar os signos e tentar desvendar o<br />

caminho percorrido pelo enunciador na construção do texto.<br />

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Segundo esta ótica, a estruturação fônica da Língua Portuguesa ─ fonemas,<br />

sílabas e acentos ─ podem ser tomados como ícones ou índices, porque se prestam a<br />

representar a força expressional ou recurso impressivo que atuam sobre o receptor do<br />

texto e o conduzem durante a leitura (facilitando-lhe ou dificultando-lhe a<br />

interpretação). Por meio do levantamento das qualidades fônicas e de seus valores-<br />

funções expressivos e impressivos, buscamos propor uma leitura para o conto Meu tio,<br />

o Iauaretê. Focalizando, sobretudo a onomatopéia e a sugestão. Em nossa análise,<br />

procuramos apontar metaplasmos funcionais ─ os que decorrem da participação do<br />

fonema numa estrutura vocabular ou fraseológica ─ e os literários ─ aqueles que são<br />

deliberadamente produzidos pelo autor do texto. Ao lado disso, procuramos apontar a<br />

significação fonêmica no âmbito da neologia.<br />

4) EXEMPLO DE ANÁLISE FONOESTILÍSTICO-SEMIÓTICA DO CONTO MEU TIO O<br />

IAUARETÊ.<br />

4.1) UM RESUMO DA HISTÓRIA NARRADA POR G. ROSA<br />

Meu tio, o Iauaretê é um longo monólogo-diálogo em que o protagonista, um<br />

onceiro que vivia isolado nas gerais, pergunta e responde ao interrogatório que fazia a<br />

um visitante.<br />

O matador de onças, que se apresenta como um mestiço, filho de branco com<br />

índia, certo dia, recebe no sítio em que estava instalado a visita, de um via<strong>jan</strong>te que se<br />

dispersara de seus companheiros. Enquanto bebe cachaça, o bugre das onças conta<br />

como chegara àquela região. Sua função no local era acabar com as onças, mas, à<br />

medida que se identifica com elas, começa a protegê-las, passando a rejeitar a<br />

civilização e, com isso, ao invés de abater os animais, começa a matar homens.<br />

Sua fala é acompanhada de um grande arrependimento por já ter, a princípio,<br />

matado os felinos que ameaçavam a segurança dos moradores das redondezas. A partir<br />

do momento em que percebe sua grande afinidade pelas onças, passa a tratá-las com<br />

grande carinho; conhecendo uma a uma pelo nome. Tinha especial afeto por uma fêmea<br />

a quem chamava Maria-Maria. Não permitia que nenhum macho se aproximasse dessa<br />

fêmea; e a fala do personagem sugere que esse animal substituía a figura feminina em<br />

sua vida.<br />

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A leitura deste conto exige do leitor a participação ativa no processo de<br />

significação. A construção da narração se sobrepõe à ação das personagens. A<br />

linguagem faz com que o leitor se coloque diante do personagem que se forma e se<br />

transforma à sua frente, assim como as cenas que compõem a narrativa.<br />

A história, narrada numa linguagem inovadora em que se misturam neologismos,<br />

arcaísmos, tupinismos, interjeições e onomatopéias (associadas a ruídos e rugidos)<br />

mostra a oncificação do bugre: transformação gradativa do homem em onça.<br />

A combinação de todos os recursos lingüísticos produz um sem-número de<br />

efeitos responsáveis pela representação icônica das cenas na mente interpretadora do<br />

leitor. As palavras que se narram em de Meu tio o Iauaretê se assemelham a pinceladas<br />

de tinta que, aos poucos, formam uma paisagem diante de um espectador.<br />

A grande inovação de Guimarães Rosa neste conto é que a construção da<br />

narração se sobrepõe à ação dos personagens. Os personagens ou as cenas não são<br />

descritos, eles se vão mostrando, aos poucos, cinematograficamente, ao leitor.<br />

O título do texto é um elemento indicial da ruptura com o mundo dos homens,<br />

representada pelo onceiro, que acaba por assumir parentesco com as onças: Meu tio o<br />

Iauaretê (jaguaretê, iauaretê ─ onça, jaguar, do tupi yaware’te, onça verdadeira).<br />

Por esse motivo, à medida que ia revelando, sob efeito da bebida, a verdadeira<br />

causa da morte das pessoas, que, inicialmente era atribuída à doença, não sentia<br />

qualquer remorso, ao contrário, justificava: Ele inda tava vivo, quando caiu lá embaixo,<br />

quando onça Porreteira começou a comer... Bom, bonito! Eh, p’s, eh porã! Erê! Come<br />

esse, meu tio... (fl. 849)<br />

O mundo do personagem ─ o bugre onceiro ─ é regido pelas leis naturais; logo,<br />

os homens seriam o alimento, o meio de sobrevivência das onças da região.<br />

4.2) A ANÁLISE DA CAMADA FÔNICA DO CONTO<br />

Ao desenhar verbalmente o universo sertânico, G. Rosa, usando habilmente a<br />

palavra, modela a expressão com a propriedade de um artista plástico. Faz dos sons da<br />

língua portuguesa a matéria-prima com que constrói cenário e personagens, dando-se o<br />

requinte da produção sonoplástico-musical por meio da qual o leitor pode assistir às<br />

cenas como se fora em filme ou peça teatral.<br />

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Por isso, na intenção de colorir o estudo da fonologia portuguesa, deixamos o<br />

espaço da metalinguagem teorizante para examinar o potencial sonoro de nossa língua<br />

numa perspectiva desbravadora e lúdica.<br />

Dizemos desbravadora por nascer de um trabalho de interpretação textual no<br />

qual, fundados na semiótica de Peirce, tentamos levantar os valores icônicos, indiciais e<br />

simbólicos dos fonemas e de suas combinações silábicas. Dizemos lúdica por<br />

considerarmos o ludismo como característica dos processos investigativos, uma vez que<br />

desafiam nossa inteligência, fazendo-nos criar estratégias de ação que nos levem à<br />

consecução dos objetivos traçados para tal aventura.<br />

Assim, a análise que apresentamos a seguir tem por meta entender o esquema<br />

fônico de nossa língua por meio dos usos praticados pelo artista que, melhor que<br />

qualquer usuário, sabe explorar o potencial dos signos.<br />

4.3) A ONOMATOPÉIA E A SUGESTÃO.<br />

Numa narrativa de cenas sertânicas, nada mais oportuno que a presença das<br />

onomatopéias. Estes signos (ora ícones – quando imitativos; ora índices – quando<br />

sugestivos) prestam-se à construção sonoplástica das cenas, dando-lhe realces de<br />

verossimilhança e dinamizando o texto.<br />

Chamamos de interjeições-onomatopaicas os signos imitativos ou sugestivos<br />

que intercalam o uso lexical dicionarizado presente na fala do personagem, funcionando<br />

não só como marcadores conversacionais, mas sobre tudo como componentes<br />

imagéticos na construção do personagem.<br />

O onceiro da história, com sua fala rude e, de certa forma precária, é construído<br />

por meio de um discurso-texto estruturado em bases onomatopaicas, por meio do qual<br />

se torna possível vê-lo a um só tempo como homem rude e homem-onça.<br />

Vejamos:<br />

Hã-hã. Isto não é casa...É. Havéra. Acho. Sou fazendeiro não, sou<br />

morador... Eh, também sou morador não. Eu ⎯ toda parte. Tou aqui, quando<br />

eu quero eu mudo. É. Aqui eu durmo. Hum. Nhem? Mecê é que tá falando.<br />

Nhor não...Cê vai indo ou vai vindo? (fl. 825)<br />

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(...) Tá bom, dei’stá! Quero relógio nenhum não. Dei’stá. Pensei que mecê<br />

queria ser meu amigo... Hum. Hum-hum. É Hum. Iá axi. Quero canivete<br />

não. (...) (fl.828)<br />

Vem calada, vem comer. Mecê carece de ter medo! Tem? Se ela urrar, eh,<br />

mocanhemo, cê tem medo. Esturra – urra de engrossar a goela e afundar os<br />

vazios... Urrurrú-rrrurrú... Troveja, até. Tudo treme. Bocão que cabe<br />

muita coisa, bocão duas-bocas! Apê! (fl. 828)<br />

Observe-se que os elementos grifados nos excertos ─ Hã-hã. Hum. Nhem<br />

Hum. Hum-hum. Hum ─ são construídos com sons guturais, aspirados, nasalados,<br />

palatais. Esta escolha demonstra a consciência lingüística do autor no que tange ao<br />

potencial imitativo-sugestivo de tais qualidades sonoras na representação de um<br />

ambiente hostil, animalizado. O som gutural ─ no português representado pelas velares<br />

e uvulares, sobretudo as oclusivas ─ aproximam-se dos ruídos captáveis da natureza,<br />

grunhidos animais, estalos, batidas, etc. O som aspirado ─ via de regra produzido como<br />

uvular ─ acaba sendo uma variante gutural, talvez abrandada pela maior porção de ar<br />

necessária à sua produção. Os sons nasalados e os palatais sugerem a sonorização<br />

característica das cavernas, dos interiores; sons recuados e abafados. Os palatais, além<br />

disso, geram impressões de mastigação, logo, aproximam-se dos sons primais.<br />

Na mesma passagem tem-se a ocorrência da consoante vibrante (esturra-urra)<br />

seguida da consoante gutural surda (engrossar/goela), culminando com a onomatopéia<br />

que imita o rugido da onça. Finalizando, temos a presença da oclusiva dental surda<br />

sugerindo o fungado do animal (troveja/tudo/treme), que se repete ao longo da narrativa<br />

por meio da onomatopéia n’t, n’t, que sugere a mastigação, a degustação, ações<br />

realizadas na boca, e a onomatopéia serve de índice do perigo de ser devorado pelas<br />

onças: Eu xingo! Tiss n’t, n’t; ... (fl. 832): Se deixar, eu bebo até o escorropicho. N’t,<br />

m’p, aah... (fl.834)<br />

Como podemos ver, a onomatopéia n’t tem a variante m’p, que intensifica,<br />

talvez, o efeito de mastigação de n’t. Pelo fato de o primeiro fonema ter mudado seu<br />

ponto de articulação, o segundo tornou-se bilabial como o primeiro.<br />

As interjeições que aparecem no conto contribuem para a ambientação da<br />

história, produzindo o efeito da excitação constante na vida repleta de riscos do<br />

personagem.<br />

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(...). Onça vem. Heeé! Vem anda andando, ligeiro, cê não vê o vulto com<br />

esses olhos de mecê. Eh, rosna, pula não. Vem só brace<strong>jan</strong>do, gatinhando<br />

rente. Pula nunca, não. Eh− ela chega nos meus pés, eu encosto a zagaia.<br />

Erê! (fl. 832)<br />

A imagem sugerida pelo número abundante de interjeições, onomatopéias,<br />

vocábulos tupis vai-se intensificando ao longo do texto até imitarem a fala da onça em<br />

que o homem se transforma diante de seu interlocutor. A grande transformação começa<br />

a ocorrer nas últimas linhas do penúltimo parágrafo: ... Eu − Macuncozo... Faz isso não,<br />

faz não... Nhenhenhém... Heeé!...(fl. 852)<br />

O final da narrativa sugere que o interlocutor, para se defender, atira no onceiro<br />

que se transformara em onça. No início do parágrafo aparecem algumas palavras<br />

completas, compostas de vogais e fonemas consonantais vibrantes, que vão<br />

desaparecendo e dando vez a fonemas guturais, culminando com interjeições que<br />

sugerem o uivo da onça: Hé ... Aarrâ Cê me arrhoôu ...Remuaci ... Rêiucàanacê ...<br />

Araaã ... Ui ...Ui ...Uh ...uh ...êeêê ... êê ... ê ... ê...(fl. 852)<br />

4.4) METAPLASMOS FUNCIONAIS E LITERÁRIOS.<br />

Entendemos como metaplasmos funcionais, aqueles que ocorrem nas variantes<br />

lingüísticas e que, portanto, caracterizam falantes diferenciados. E por metaplasmos<br />

literários, entendemos os que são construídos pelo autor, com o objetivo de dar cores<br />

mais fortes ao texto na caracterização de certo personagem ou cena.<br />

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Os metaplasmos que ocorrem no texto funcionam também como elementos<br />

indiciais da fala sonsa do onceiro: em aspra temos a síncope da vogal e, provocando o<br />

desaparecimento da sílaba postônica (áspera>aspra). No verbo preguntar e no adjetivo<br />

fromoso vemos a metátese em que a mudança de posição da vogal criou o grupo<br />

consonantal pr para perguntar e fr para formoso. O autor emprega também a forma<br />

verbal estralar como uma variante de estalar, que sofreu o acréscimo do fonema<br />

vibrante /r/, fenômeno denominado epêntese. Observa-se, a partir dos exemplos<br />

apresentados, que a mudança de posição do fonema vibrante, dando origem a grupos<br />

consonantais como pr, tr, fr contribuem para a ambientação sonoplástica das cenas<br />

narradas, produzindo a idéia de perigo iminente, movimento brusco, ruído inesperado e<br />

fuga. Fenômeno inverso ocorreu com a palavra percura; o grupo consonantal pr se<br />

desfez, motivando a transformação da vogal posterior fechada em anterior<br />

(procura>percura). Em aperceiando, que aparece com a variante apreceio, também se<br />

observa o mesmo fenômeno, sendo, porém, mantida a vogal e. Nesse verbo, temos outra<br />

alteração fonológica, comum em várias formas verbais presentes na narrativa: os verbos<br />

em –iar se apresentam flexionados como verbos com terminação em –ear (vareia,<br />

arrupeio, desarreia, principeia).<br />

A palavra cruz, no texto, aparece também na forma curuz, exemplo de anaptixe<br />

ou suarabácti, um tipo especial de epêntese, em que o grupo consonantal se desfez com<br />

a intercalação da vogal alta, fechada u, fazendo surgir uma outra sílaba na palavra. O<br />

emprego dessa forma como uma interjeição se justifica perfeitamente no contexto: Fui<br />

indo pra lá, fui vendo: curuz! De toda banda, ladeza da chapada, tinha rastro de onça...<br />

(fl. 850). A reação do personagem diante da cena se apresenta iconicamente ao leitor<br />

por meio da desse vocábulo. A intercalação do u, alongando graficamente a palavra,<br />

produziu o efeito expressivo de recriar o estado de estupefação do onceiro.<br />

Em ridico houve a queda de uma sílaba, passando a palavra de proparoxítona a<br />

paroxítona (ridículo>ridico). Esses metaplasmos observados são, na verdade, formas<br />

arcaicas da língua que ainda podem ser verificadas na linguagem simples do homem<br />

sertanejo, sendo, por isso considerados metaplasmos funcionais.<br />

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Paralelamente, o autor faz criações vocabulares por meio de operações<br />

semelhantes às que se verificam na língua em geral, produzindo um efeito bastante<br />

interessante no texto.<br />

Palavras como desonçar, destemece, despulo e repulo, não-dicionarizadas,<br />

foram criadas por meio de processo que ocorre na gramática da língua, em que os<br />

vocábulos se constróem a partir do acréscimo do prefixo –des e –re, conhecido como<br />

prótese, servindo para caracterizar a fala do personagem. Vejamos os efeitos que<br />

produzem na narrativa:<br />

Hum, o couro dela é custoso pra se firmar, escorrega que nem sabão, pepego<br />

de quiabo, destremece a torto e a direito...(fl. 834)<br />

Pula de lado, muda o repulo no ar. (fl. 830)<br />

Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo.<br />

(fl. 827)<br />

É interessante observar a originalidade da forma desonçar, em que, inicialmente,<br />

o substantivo onça transformou-se em verbo para receber o prefixo –des. Vemos que os<br />

prefixos são formados por consoantes oclusivas e vibrantes, acompanhadas de vogal<br />

fechada, compondo o cenário em que se ouvem ruídos violentos de batidas e rugidos,<br />

que produzem a sensação de temor.<br />

Além de produzirem todos os efeitos comentados, essas formas são<br />

absolutamente adequadas ao texto, pelo fato de contribuírem para reforçar a idéia de<br />

limitação vocabular do personagem, e a natureza quase telegráfica dos enunciados. Uma<br />

palavra como desonçar é capaz de substituir uma sentença, além de ser um índice para o<br />

leitor do caráter ingênuo do personagem, desprovido de qualquer sentimento ético ou<br />

moral.<br />

Outro exemplo interessante de metaplasmo é o que deu origem ao vocábulo<br />

alprecata.Temos, registradas no dicionário (cf Ferreira, 1986), as palavras alparcata,<br />

alpargata e alpergata. Guimarães Rosa preferiu a forma alprecata, em que se vê a<br />

metátese, ou seja, a transposição do fonema vibrante, provocando o surgimento do<br />

grupo consonantal –pr.<br />

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Vemos, portanto, que as inovações lingüísticas introduzidas por Guimarães Rosa<br />

podem ser observadas em vários níveis. Ele não só promove a revitalização à língua,<br />

empregando termos do português arcaico, como também submete o léxico disponível a<br />

mecanismos de transformação −metaplasmos− semelhantes àqueles pelos quais passou<br />

a língua. As transformações por metaplasmos por que passam as palavras numa obra de<br />

ficção, podem ser consideradas metaplasmos literários.<br />

4.5) A SIGNIFICAÇÃO FONÊMICA NO ÂMBITO DA NEOLOGIA.<br />

O fenômeno da neologia consiste na produção de novas formas lingüísticas com<br />

o objetivo de designar seres, entes e objetos mais ajustadamente do que o que permite o<br />

léxico até ali existente. A forma neológica, portanto, pode ocorrer, no plano<br />

morfofonêmico, no plano mórfico, no plano semântico, etc.<br />

O texto rosiano é um manancial de inovações lingüísticas. O autor não só cria<br />

vocábulos novos, como também renova o significado de itens lexicais preexistentes ao<br />

seu texto. Em Meu tio o Iauaretê, a neologia ganha uma aparência especial ao nascer de<br />

cruzamentos lingüísticos entre formas vernáculas e formas de língua indígena<br />

característica do sertão nacional.<br />

Podemos destacar do texto alguns exemplos de neologismos oriundos do<br />

cruzamento do português com a língua tupi, como, por exemplo, o vocábulo sejuçu que<br />

aparece na passagem: Sejuçu já tão alto, olha as estrelinhas dele... Eu vou dormir não,<br />

tá quage em hora d’eu sair por aí.. (fl. 836). Essa forma, segundo Nilce Sant’Anna<br />

(2001), criada a partir do tupi seixu entendida como constelação, sofreu uma<br />

sonorização da consoante palatal -x, formando um jogo de oposição de consoantes<br />

surdas e sonoras -s/-j / ç acompanhadas de vogais que se tornam altas e fechadas ê/u/u,<br />

sugerindo o uivo do animal que se dá na presença das estrelas.<br />

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Dentre os inúmeros neologismos onomatopaicos formados a partir da língua<br />

tupi, podemos citar a palavra ciririca, formada a partir do vocábulo tupi siriri, que<br />

significa deslizar. Vemos que o fonema linguodental surdo /s/ é representado pelo signo<br />

–c, que também representa o fonema oclusivo velar /k/, formador do radical do verbo<br />

ciriricar; Debaixo da zagaia, ela escorrega, ciririca, forceja (fl. 833). A escolha do<br />

signo –c pode ter sido, talvez, por questões de sentidos que a recorrência do grafema<br />

pode sugerir na apresentação icônica da palavra, já que ocorre a repetição do grafema –<br />

r. O fonema vocálico /i/, que sugere estreiteza, associado ao fonema linguodental dá<br />

idéia de uma ação realizada com certa delicadeza para ser concluída por meio da força,<br />

que está representada pelo fonema /k/, indicando uma ruptura com alargamento<br />

representado pela vogal aberta a, conforme o próprio enunciado revela.<br />

O metaplasmo também pode participar da construção neológica. Na passagem:<br />

Vi que ela tava secando leite, vi o cinhim dos peitinhos...(fl 835), a palavra cinhim, que<br />

pode ser associada a sino, do latim sinu ─ que significa curvatura, sinuosidade, seio (cf.<br />

Cunha, 1998) recebe o sufixo de diminutivo –im. Nesse vocábulo, a recorrência da<br />

vogal -i sugere a idéia de pequenez, estreiteza, delicadeza reforçada pela consoante<br />

bilabial –m.<br />

O ritmo, a musicalidade das construções inusitadas que aparecem na fala do<br />

onceiro dão uma característica especial ao texto. Até mesmo o absurdo de um fato<br />

relatado é amenizado, parecendo, muitas vezes, engraçado, graças ao tratamento<br />

especial que a palavra recebe:<br />

Ela põe a mão pra frente, enorme. Capim mexeu redondo, balançadinho,<br />

devagarim, mansim: é ela. Vem por dentro. Onça mão − onça pé − onça<br />

rabo... Vem calada, quer comer. Mecê carece de ter medo? Tem? Se ela<br />

urrar, eh, macanhemo, cê tem medo. Esturra-urra de engrossar a goela e<br />

afundar os vazios. Urrurru-rrrurru... Troveja, até. Tudo treme. (fl. 828)<br />

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Vemos, na segunda oração, a incidência da vogal nasal palatal fechada, em que o<br />

autor faz uso do registro popular da língua, com o emprego do sufixo de diminutivo -im,<br />

para efeito de rima: capim, balançadinho, devagarim, mansim; também explora o efeito<br />

produzido pela alternância de fonemas orais e nasais, abertos e fechados: vem/dentro,<br />

onça/mão, onça/pé, onça /rabo. Mais adiante ocorre a incidência da vogal anterior<br />

semifechada: mecê/ter/medo.<br />

Observa-se a preferência pelo sufixo im em detrimento de inh, como vemos em<br />

outras passagens: pouquim, dinheirim, devagarim, oncim, jaguaraim, cinhim e muitos<br />

outros.<br />

A preferência por esse sufixo se justifica, no texto, pelo fato de essa forma ser<br />

um índice da fala ingênua do homem do sertão, reforçando a dualidade que existe no<br />

texto, em que o personagem ora vela, ora revela, ora se apresenta como um ingênuo<br />

caipira, ora se revela astucioso matador de homens: ...Mas então agora pode me dar<br />

canivete e dinheiro, dinheirim. Relógio quero não, tá bom, tava era brincando. Pra quê<br />

que eu quero relógio? Não careço...(fl. 828)<br />

Segundo Haroldo de Campos (1991), que aproxima o estilo rosiano do estilo de<br />

Joyce, o autor mineiro consegue criar, da revolução que promove com a palavra, um<br />

fato novo, alimentado em latências e possibilidades peculiares da nossa língua,<br />

conseguindo, com isso, promover uma profusão de efeitos. Em Meu tio o Iauaretê, o<br />

escritor, além de inovar, manipulando a língua a partir de todas as possibilidades que<br />

oferece e resgatando as construções arcaicas, introduz um elemento que desempenha um<br />

papel não apenas estilístico, mas, sobretudo, fundamental para a composição do conto,<br />

que é o idioma tupi. Os tupinismos são os elementos indiciais que conduzem o leitor a<br />

perceber a identidade do onceiro com os animais. Sua fala é entremeada de interjeições<br />

e onomatopéias que revelam a estranha convivência do personagem com as onças da<br />

região. Sua fala é um misto de português com língua tupi. As palavras desse idioma,<br />

<strong>jun</strong>tamente com as onomatopéias que lembram os ruídos próprios da onça, revelam o<br />

outro lado do personagem.<br />

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O termo nhem, que, segundo Antenor Nascentes (1966), corresponde ao verbo<br />

falar em português, adquire inúmeras funções. O narrador inicia sua fala empregando o<br />

termo como uma interjeição, que poderia ser substituído pelo nosso hein: ...Assopro o<br />

fogo. Nhem? Se essa é minha, nhem? (fl. 825) Mais adiante esse termo aparece<br />

reduplicado com a mesma função: ...Nhenhem? Eu cacei onça, demais. Sou muito<br />

caçador de onça...(fl. 827)<br />

O mesmo elemento aparece no neologismo jaguanhém, que corresponderia ao<br />

vocábulo jaguaretê (onça) aglutinado à forma nhem, que tem uma variante com a<br />

duplicação dessa palavra: jaguanhenhém, imitando a fala da onça: ... Ela falava comigo<br />

jaguanhenhém, jaguanhém...(fl. 846) ; Mãe lambe, lambe, fala com eles,<br />

jaguanhenhém, alisa, toma conta.(fl. 844)<br />

É interessante observar que o personagem faz uma espécie de “tradução” da fala<br />

tupi ou da linguagem da onça para seu interlocutor:...Marido falava bobagem, em noite<br />

de lua incerta ele gritava bobagem, gritava, nheengava.(fl. 831)... Nessa forma, que se<br />

flexiona como verbo, parece que a vogal i funciona como uma desinência de pretérito<br />

perfeito, como aparece na passagem: Miei, miei, jaguarainhém, jaguaranhinhenhém...<br />

(fl. 839)<br />

Observa-se na fala do onceiro uma incidência de fonemas consonantais nasais,<br />

palatais, vibrantes e fonemas vocálicos nasais e fechados: manheceu, mecê, ‘manhã e<br />

nhor sofreram o processo de aférese para que sobressaísse o som nasal, semelhante ao<br />

barulho dos animais. O verbo pôr, por efeito estilístico, foi flexionado no pretérito<br />

perfeito com uma terminação palatal: ponhei. O neologismo munhamunhã, que, de<br />

acordo com Nilce Sant’Anna (2001), pode ter o sentido de pensar ou falar bobagem,<br />

pode ser empregada como um nome ou verbo: Ah, munhamunhã: bobagem! Tou<br />

falando bobagem, munhamunhando....(fl. 825) A consoante –j sofre palatalização em<br />

nomes como Nhuão e Nhoaquim .<br />

4.6) ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O FAZER DE G. ROSA<br />

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Sabemos que Guimarães Rosa, em toda a sua obra, deixa transparecer um certo<br />

deslumbramento pela palavra. Ele tinha a preocupação de um artesão ao fazer a uma<br />

verdadeira pesquisa filológica ao empregar expressões arcaicas e explorar todas as<br />

possibilidades da língua para criar vocábulos e construções inusitadas. Essa<br />

característica especial da obra rosiana levou o crítico Oswaldino Marques 7 a defini-la<br />

como um prosopoema (à moda de Guimarães Rosa) palavra que sugere a fusão das duas<br />

modalidades do texto: prosa e poema. O interesse maior de G. Rosa é a expressão do<br />

pensamento por meio da palavra exata, adequada.<br />

No conto Meu tio o Iauaretê o autor realiza uma verdadeira inovação, na<br />

medida em que a linguagem é responsável pela ambientação. A narrativa é entremeada<br />

de interjeições, onomatopéias, frases truncadas e telegráficas. Isso faz com que se<br />

produza o efeito de realidade na mente do leitor.<br />

Esse processo de narração faz com que o leitor tenha participação na construção<br />

do texto. Enquanto constrói o sentido na narração, tendo como referência suas<br />

experiências, acrescenta formas e significados aos vazios deixados pelo texto.<br />

5) CONCLUSÃO<br />

Cremos que esta pequena análise tenha podido mostrar a importância dos estudos<br />

fonológicos, que, combinados com a interpretação semiótico-estilística, demonstra<br />

infinitas possibilidades de criação oferecidas pela língua, além de propiciar descobertas<br />

prazerosas por parte do aluno. Essa nova forma de investigação considera a camada<br />

fônica da língua um signo. Portanto, o levantamento das qualidades sonoras dos signos<br />

verbais torna possível desvendar os valores comunicativos inscritos nos textos. Isto<br />

porque tais qualidades servem de ícone, e mais adiante evoluem em índices que<br />

conduzem o leitor à mensagem do texto.<br />

Essa forma de leitura, que possibilita o diálogo que os textos podem estabelecer<br />

com outras artes, permite uma apreensão total do texto, o que não é possível com as<br />

formas tradicionais de investigação.<br />

7 “Canto e plumagem das palavras”. In Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1968 p.<br />

83.<br />

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Destarte, nossa proposta de uma fonologia em nova chave é a associação dos<br />

estudos fonêmicos aos semiótico-estilísticos com vistas a envolver estudioso e objeto<br />

num processo de trocas significantes, por meio das quais os textos tornar-se-ão objetos<br />

comunicativos cada vez mais eficientes. Cremos que a tomada de consciência do valor<br />

da camada fônica da língua e dos efeitos resultantes de um uso mais cerebral deste<br />

material poder resultar num processo de produção textual mais emocionante em função<br />

de sua eficiência comunicativo-expressiva.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CUNHA, Antônio Geraldo da. (1998). Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua<br />

Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.<br />

MARTINS, Nilce Sant’Anna. (2001). O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1986). Novo Dicionário Aurélio da Língua<br />

Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.<br />

NASCENTES, Antenor (1966). Dicionário Etimológico Resumido. Rio de Janeiro: INL/<br />

MEC.<br />

ROSA, João Guimarães (1995) Desenredo, in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova<br />

Aguilar.<br />

______ Meu tio o Iauaretê., in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.<br />

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A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL<br />

“Eles escrevem muito mal”<br />

Elizabeth Bessa de Mattos – <strong>UERJ</strong><br />

“Não vai se espantar. Eles escrevem muito mal. Erram muito. A professora da<br />

primeira série não fazia atividades de escrita espontânea com eles. Eles só escreviam as<br />

palavras e as frases da cartilha”.<br />

Essas foram as palavras que ouvi da professora a quem pedira alguns textos<br />

espontâneos de seus alunos da segunda série do Ensino Fundamental, que seriam usados<br />

como fonte de informações a respeito da escrita de crianças nessa fase escolar, já que<br />

ela me procurara anteriormente, solicitando ajuda, preocupada em solucionar os “muitos<br />

problemas”que, segundo ela, encontrava em seus escritos. Queria, em suma, subsídios<br />

para programar atividades futuras a partir das quais eles pudessem aprender a escrever<br />

“bem”.<br />

Típica representante de profissionais de magistério com sérios problemas de<br />

formação – concluiu seu curso em 1998, feito em colégio da rede pública estadual,<br />

deixava transparecer em seu comentário a falta de base, deixada por seu curso de nível<br />

médio, que lhe impedia de diagnosticar as possíveis falhas reveladas pelos educandos<br />

no que tange à língua escrita. Assustada, não conseguia pensar em exercícios que<br />

pudessem ajudá-los a resolver os “sérios problemas” encontrados.<br />

A declaração da professora não me causou espanto, pois todos sabemos das<br />

deficiências estruturais e pedagógicas pelas quais passam os cursos de formação de<br />

magistério em nível médio, advindas da falta de investimento dos governos estaduais<br />

num ensino de qualidade, ao longo dos tempos.<br />

Seu discurso expressou os muitos equívocos e confusões que muitos professores<br />

fazem quando focalizam o assunto escrever, principalmente em relação à fase em que se<br />

desenvolve o processo de aquisição da língua escrita nos alunos das séries iniciais.<br />

Reflete a aflição e a insegurança de quem está mais preocupado com a aparência da<br />

escrita do que com o que estes já conquistaram nessa área de aprendizagem. Afinal,<br />

ainda estão no início da escolarização!<br />

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O que é escrever mal? E quando não se tem boa caligrafia? Quando se cometem<br />

erros ortográficos?<br />

Com certeza ela não estava se referindo à análise discursiva do texto:<br />

estruturação, coesão, coerência, argumentação, organização de idéias, escolha de<br />

palavras – aspectos, entre outros, importantes a serem considerados na produção de um<br />

texto escrito.<br />

Demonstrou desconhecer a realidade lingüística de seus alunos. Não levou em<br />

conta o que eles haviam construído. Preocupou-se muito mais com o que eles ainda não<br />

sabem e que denomina de “erro”.<br />

Dentre as muitas informações que a professora ignora, encontram-se as<br />

pesquisas de Emília Ferreira e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita que<br />

já questionaram o conceito de erro elaborada pela concepção de ensino que não se<br />

preocupa com as hipóteses que as crianças constroem quando estão aprendendo a<br />

escrever.<br />

Não considerou a bagagem de conhecimentos inscritos naqueles pequenos<br />

textos, nem as hipóteses que as crianças constroem sobre a escrita, quando registram<br />

palavras que nunca foram estudadas, mas que fazem parte de seu universo lingüístico<br />

enquanto falantes de uma língua. Não sabia que os “erros” revelam uma lógica no uso<br />

dos recursos possíveis disponibilizados pelo sistema ortográfico.<br />

Assim, não detectar os níveis de conhecimento pelos quais os aprendizes passam<br />

(pré - silábico, silábico – alfabético e alfabético) e que caracterizam um processo de<br />

transformação que segue percurso semelhante ao da escrita, desde sua invenção. Esses<br />

são conceitos que alteram certas noções, outrora preconizadas pelos que discutiam a<br />

questão: descaracterizaram o erro, que passou a ser visto como elemento construtivo, de<br />

acordo com o nível de aprendizagem em que o aluno se encontra.<br />

O erro é necessário e inerente ao processo porque, na verdade, representa as<br />

hipóteses construídas por aqueles que se apropriam dos objetos na intenção de conhecê-<br />

los.<br />

Nossa professora sabe muito pouco sobre a escrita, seu funcionamento, e seus<br />

diferentes usos.<br />

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Ao analisar os textos dos alunos, verificamos que estes já dominam a maioria<br />

dos aspectos referentes ao sistema de escrita fonográfico, baseado no significante, que<br />

depende dos elementos sonoros da língua para poder ser lido numa padronização de<br />

ordem linear: escrevem da esquerda para a direita, de cima para baixo; registram formas<br />

maiúsculas e minúsculas, em letra cursiva – mais difícil de desenhar e ler que a letra de<br />

forma; separam as palavras, segmentando o vocábulo fonológico; dos sinais diacríticos,<br />

utilizam o til; dos sinais de pontuação, conhecem apenas o ponto final, demonstrando<br />

que estão num estágio muito avançado de uso da escrita e que sabem muito mais coisas<br />

que a professora imagina.<br />

O que salta aos olhos em sua escrita são problemas relativos à caligrafia e ao<br />

sistema ortográfico de nossa língua. E isso é muito mais natural aparecer na fase de<br />

aprendizagem em que os alunos se encontram.<br />

Todavia, não deveria ser natural a professora em questão não saber da distinção<br />

entre os dois sistemas citados, fato que explica a demasiada preocupação com a<br />

ortografia em detrimento da adequação daquilo que os educandos escrevem.<br />

Quando transcrevemos a fala, isto é, passamos um texto de sua realização sonora<br />

para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados,<br />

passamos as palavras pronunciadas para uma formatação escrita num sistema gráfico<br />

que segue a grafia padrão, num processo que vai do sonoro para o gramático, baseado<br />

na correspondência letra e som, já que a escrita se realiza, no nosso caso, do ponto de<br />

vista da sua tecnologia, por unidades alfabéticas.<br />

E é justamente nesse ponto que o problema se coloca e as dificuldades aparecem<br />

não só para os iniciantes da escrita, mas também para todos que escrevem uma língua<br />

natural como o português: não existe correspondência direta entre todas as letras do<br />

alfabeto e os sons dos significantes que pronunciamos: o sistema de escrita raramente é<br />

fonético nas línguas naturais. Além disso, a escrita tende a ser uniforme, constante e<br />

universal, e tem como objetivo principal permitir a leitura, enquanto a fala se caracteriza<br />

por ser bastante diversificada no tempo e no espaço.<br />

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O sistema de escrita do português utiliza vários tipos de alfabeto (letra<br />

maiúscula, letra minúscula, letra cursiva, letra de forma) e não é totalmente alfabético:<br />

além das letras, os sinais gráficos elementares existem outros caracteres, de natureza<br />

ideográfica (logotipos, marcas, algarismos, sinais diacríticos, pontuação), que<br />

contribuem para dificultar o processo de escritura.<br />

Além disso, poucas letras têm uso propriamente alfabético, mantendo a relação<br />

um a um entre símbolo e som. Uma letra pode corresponder somente a um segmento<br />

fonético: bata [ bata ], ou a uma sílaba: apta [ a-pi-ta ]; várias letras podem<br />

corresponder ao mesmo som: fixe / fique-se [ fi-ki-si ]; duas letras podem representar<br />

um som: gu [ g ], em guerra; uma letra pode não ter som nenhum: o h, em hora [ ora ];<br />

uma mesma letra pode representar diferentes sons: x / [ s ], [ z ] e [ ks ], em próximo,<br />

exame e táxi, respectivamente; um som pode ser representado por diferentes letras: [ k ]<br />

/ c e qu, em casa e queijo.<br />

O sistema ideal seria aquele que mantivesse a correspondência de um para um,<br />

para todas as letras e sons. Entretanto, na língua portuguesa, isso só acontece em poucos<br />

casos.<br />

No meio de tantas situações arbitrárias que compreendem relação biunívoca<br />

(uma letra representa um som e vice-versa), relações múltiplas posicionais (uma letra<br />

representa diferentes sons e um som é representado por diferentes letras) e relações de<br />

concorrência (duas ou mais letras podem representar o mesmo som, no mesmo ambiente<br />

fonético), os aprendizes apresentam falhas na escrita que denotam o estágio de<br />

desenvolvimento em que se encontram, em relação à aquisição da língua escrita.<br />

Num primeiro momento, em que estão elaborando a teoria da correspondência<br />

entre sons e letras, podemos encontrar, no que diz respeito às letras: repetição, omissão,<br />

troca na ordem e traço inseguro no desenho delas.<br />

No segundo, já construíram e generalizam a hipótese da relação biunívoca,<br />

realizando a transcrição fonética da fala.<br />

No terceiro estágio do saber ortográfico, fazem trocas entre as letras<br />

concorrentes, problema que será superado gradativamente e que os acompanhará pelo<br />

resto de suas vidas.<br />

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Outro fator que contribui para aumentar as dificuldades ortográficas de quem<br />

escreve é a distância, cada vez maior, na correspondência fonema-letra, quando se dá<br />

conta das variadas maneiras de pronunciar uma palavra. No entanto, esta apresenta<br />

apenas uma forma de ortografia, sempre muito conservadora. O que também é natural.<br />

Se assim não fosse, como poderíamos nos entender, com cada um escrevendo do seu<br />

próprio jeito?<br />

De qualquer maneira, a variação lingüística é uma realidade que faz parte da<br />

dinâmica de toda língua viva e deve ser encarada com naturalidade por todos que<br />

trabalham com o ensino-aprendizagem, numa atitude de respeito às variantes que não<br />

integram o registro padrão, embora a função da escola seja promover o acesso aos<br />

educandos a esta variante de prestígio social.<br />

Uma possibilidade de trabalho pedagógico mais condizente aos fenômenos<br />

variáveis da fala que interferem na correspondência som-letra seria aquela que tratasse<br />

dos problemas clássicos decorrentes da variação lingüística, e que se repetem sempre,<br />

sistematicamente, diacrônica (em todas as fases da evolução da língua) e<br />

sincronicamente (em todas as produções de uma só fase). Os fenômenos são previsíveis<br />

e controlados por fatores intra- e extralingüísticos. As marcas deixadas pelos falantes na<br />

escrita denotam, portanto, fatores estruturais, como regras diacrônicas que atuam em<br />

qualquer manifestação sincrônica da língua, por razões fonomorfossintáticas; ou fatores<br />

psicossociais, índices de alta, baixa ou nenhuma escolaridade, situação sócio-econômica<br />

ou formalidade / informalidade de uso.<br />

Dos problemas mencionados por MOLLICA (1998), selecionamos fatos<br />

relacionados ao dialeto carioca, pois os alunos em questão nasceram na cidade do Rio<br />

de Janeiro:<br />

• não realização da vibrante pós-vocálica em final da palavras nas formas<br />

infinitivas: mata (matar); cou pra (comprar); cicaza (se casar); faze<br />

(fazer); enfeita (enfeitar); molha (molhar); morre (morrer); voa (voar);<br />

• supressão da marca de plural: não registrado;<br />

• monotongação - cancelamento das semivogais /y/ e /w/ nos ditongos<br />

crescentes /ey/ e /ow/: madera (madeira);<br />

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• assimilação /Mb/ ~ /m/ (também ~ tamém) e /Mdo/ ~ /no/ (falando ~<br />

falano): não registrado;<br />

• rotacismo /l/ ~ /r/ (clube ~ crube): não registrado;<br />

• passagem de /r/ a Ø (problema ~ poblema): não encontrado;<br />

• elevação e abaixamento de pré-tônicas e de pós-tônicas: eliz (eles) e<br />

quiria (queria), em função doe debordamento (harmonização vocálica);<br />

• cancelamento e inserção de semivogal: féis (fez), bale (baile); naisceu<br />

(nasceu).<br />

• LEMLE (1990) acrescenta mais um tipo:<br />

• Passagem de /l/ a /w/ (anzol ~ anzou): não registrado.<br />

Em função da espécie de raciocínio lingüístico dedutível dos “erros” cometidos,<br />

SIMÕES (1997) distribui os fatos em três grupos:<br />

• da escrita fonética (quando tentam reproduzir na escrita a sua fala): au<br />

(ao); quiria (queria); mata (matar); incomendou (encomendou); infeitar<br />

(enfeitar); pitisa (pizza); feiz (fez); eliz (eles); cicaza (se casar); cisasou<br />

(se casou); sicasarão (se casaram); asulinda (a sua linda); ciapaixonar<br />

(se apaixonar); os cinco últimos, retratando como percebem o vocábulo<br />

fonológico;<br />

• da regularização sistêmica (quando fazem analogias que demonstram<br />

uma percepção estrutural da língua): acabarão (acabaram); ficarão<br />

(ficaram); morarão (moraram); sairão (saíram); viverão (viveram);<br />

tinhas pessoas (tinha as pessoas); ea (e a : reforço do padrão silábico<br />

binário); morel (morreu: transferência de formas como anel, sol); comera<br />

(comeram); casara (casaram); fora (foram); cepre e zenpre (sempre);<br />

matado (matando); nacedo (nascendo); lidos (lindos); judos (<strong>jun</strong>tos),<br />

siderela / ciderela (Cinderela); pricipe / prisipe / pricipi (príncipe) – uma<br />

das maiores dificuldades, a nasalidade é resolvida de forma sistêmica: ou<br />

não é marcada ou é marcada por qualquer travador nasal);<br />

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• da instabilidade gráfica (quando grafam de maneira imprecisa os<br />

fonemas): ciderela / siderela (Cinderela); pricipe, pricepe, prisipi,<br />

pricipi, prisipe, prinsipe; felises / felisez (felizes); moso (moço); naseu<br />

(nasceu).<br />

Uma aluna registrou: seipre (sempre), bou (bom), cou (com) e preseite (presente)<br />

– escrita fonética ou regularização sistêmica? De qualquer maneira, a repetição do<br />

mesmo fenômeno prova a lógica realizada ao pensar sobre a escrita, no momento em<br />

que foi desafiada a escrever um texto espontâneo, numa atitude comum a todos.<br />

A mesma aluna grafou: cou pra (comprar), revelando a hipercorreção resultante<br />

de uma pronúncia alfabética.<br />

Realizações de um aluno como vilho (filho), tepoi (depois) e vata (fada)<br />

demonstram problema de fonação, apenas quanto à vibração das cordas vocais na<br />

articulação de um mesmo par distintivo, caso de troca do /f/, surdo, pelo /v/, sonoro, e<br />

do /d/, sonoro, pelo /t/, surdo; já gravisa (grávida) e fetizes (felizes) configuram troca de<br />

um fonema por outro.<br />

Considerando-se apenas a ortografia, uma convenção imposta por legislação<br />

oficial, sujeita a ações extralingüísticas e problema menor da escrita na primeira fase de<br />

escolaridade, será que os alunos produziram textos tão mal escritos, como supunha sua<br />

professora?<br />

A resposta à questão só pode ser negativa, porque eles revelaram muitos<br />

conhecimentos do sistema lingüístico, devido sos progressos que já fizeram no percurso<br />

da aprendizagem da língua escrita e também porque escrever de acordo com a ortografia<br />

oficial demanda tempo de aprendizagem e muito treinamento, uma vez que é um saber<br />

artificial que deve ser internalizado durante o processo escolar. Mesmo assim, isso não é<br />

garantia de pleno sucesso: quem não tem dúvidas, ao longo de toda a sua vida, a<br />

respeito da grafia correta de determinadas palavras? Quem nunca recorre ao dicionário?<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BAGNO, Marcos (2001). Português ou brasileiro?: um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola.<br />

CAGLIARI, Luiz Carlos (1997). Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione.<br />

LEMLE, Miriam (1990). Guia teórico do alfabetizador. 4 a ed., São Paulo: Ática.<br />

MARCUSCHI, Luiz Antônio (2001). Da fala para a escrita: atividades de Retextualização. São<br />

Paulo: Cortez.<br />

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MOLLICA, Maria Cecília (1998). Influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo<br />

Brasileiro.<br />

MORAIS, Artur Gomes (2000). Ortografia: ensinar e aprender. 4 a ed., São Paulo: Ática.<br />

SILVA, Myriam Barbosa da (1993). Leitura, ortografia e fonologia. 2 a ed., São Paulo: Ática.<br />

SIMÕES, Darcilia (1997). Estudos fonológicos: a língua portuguesa no plano dos sons e da<br />

grafia. Rio de Janeiro: <strong>UERJ</strong>, DEPEXT.<br />

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O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO<br />

COMO DESTRUIÇÃO EM A LUZ NO SUBSOLO, DE<br />

LÚCIO CARDOSO<br />

Fernando Monteiro de Barros (<strong>UERJ</strong>)<br />

Publicado em 1936 e reconhecido como o primeiro romance dentro da linha<br />

introspectiva a partir da qual seu autor é definido pela história da literatura brasileira<br />

(AYALA, 1986: 449), A luz no subsolo foi considerado por Mário de Andrade um<br />

romance “estranho e assombrado” (apud CARELLI, 1996: 628), chamando a atenção da<br />

crítica pelo seu “clima de mistério e alucinação” (ALMEIDA, 1996: 698). A luz no<br />

subsolo é o primeiro romance de atmosfera de Lúcio Cardoso. Em um clima<br />

fantasmagórico, ele cria personagens “extraordinários, portadores de questões cruciais”,<br />

afirma o crítico Mario Carelli em Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso<br />

(CARELLI, 1988: 166). O romance deixou Mário de Andrade desconcertado por seu<br />

desprezo pelas questões sociais e políticas no momento histórico conturbado que foi o<br />

final da década de 30 (CARELLI, 1988: 33). Em carta a Lúcio Cardoso, o escritor<br />

paulista afirma que, ao lê-lo, “não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado”<br />

(apud MARTINS, 1997: 12). Entretanto, apesar do traço universalista desta narrativa<br />

que transcendia o regionalismo para apresentar a busca do sujeito do século XX por<br />

uma “verdade” existencial, o substrato social e geográfico é inequívoco na apresentação<br />

de um etos patriarcal mineiro arruinado após o fim da Primeira República, o que nos faz<br />

refutar o “despaisamento” atribuído por Mário de Andrade à obra.<br />

A trama se passa numa casa-grande senhorial e decadente, soturna, presidida<br />

pelo casal Pedro e Madalena. Pedro despreza a mulher, que por ele sente uma atração<br />

irremediável. Por sua vez, Bernardo, amigo de Pedro, ama Madalena em segredo. O<br />

enredo se complica com a chegada de Emanuela, rapariga do interior que vem exercer a<br />

função de criada e se torna vítima da cupidez de Pedro, e com a vinda da mãe deste,<br />

Adélia, que se presta a ajudar o filho na tentativa de envenenar Madalena.<br />

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A crítica norte-americana Anne Williams, em seu livro Art of darkness: a poetics<br />

of Gothic, sustenta ser a família patriarcal a própria base do mito gótico (WILLIAMS,<br />

1995: 87). Com efeito, tais narrativas se passam em castelos medievais e têm como<br />

substrato social e político o etos do patriarcalismo. A autora, entretanto, propõe duas<br />

teses para a literatura gótica, a do “Gótico masculino”, escrito por homens, como por<br />

exemplo o romance pioneiro de Horace Walpole, e o Gótico feminino, de autoria de<br />

uma Ann Radcliffe ou de uma Emily Brönte.<br />

As narrativas góticas em sua vertente “masculina” apresentariam<br />

invariavelmente a queda do patriarcalismo decretada por potências do feminino,<br />

percebidas enquanto alteridade absoluta no mundo ocidental desde Aristóteles, citado<br />

por Anne Williams enquanto formulador de uma metafísica composta de antinomias.<br />

No livro I de sua Metafísica, no capítulo V, o filósofo grego efetivamente cita o<br />

paradigma atribuído aos Pitagóricos, a partir do qual a realidade consistiria de dez pares<br />

opostos (ARISTÓTELES, 1973: 222), que são, no texto de Williams, arrolados em duas<br />

colunas da seguinte forma (WILLIAMS, 1995: 18):<br />

Masculino Feminino<br />

Finito Infinito<br />

Ímpar Par<br />

Unidade Pluralidade<br />

Direito Esquerdo<br />

Quadrado Oblongo<br />

Quieto Movimentado<br />

Retilíneo Curvo<br />

Luz Escuridão<br />

Bem Mal<br />

Para Anne Williams, os elementos listados na “linha do mal” estão todos<br />

presentes na poética do Gótico (Idem: 19). As colunas “do bem” e “do mal” também<br />

sugerem, segundo a autora, vários outros pares binários inerentes ao pensamento<br />

ocidental (Ibidem):<br />

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Atividade Passividade<br />

Sol Lua<br />

Cultura Natureza<br />

Dia Noite<br />

Pai Mãe<br />

Cabeça Coração<br />

Inteligível Sensível<br />

Logos Pathos<br />

coluna do “feminino” agrega em si os elementos encarnadores por excelência da<br />

alteridade em relação ao domínio do masculino racionalista ocidental. O Gótico literário<br />

expressaria, assim, o feminino assustador e atraente ao mesmo tempo, alteridade da<br />

inconsciência perante a Razão predominante no século XVIII (Ibidem). Os aspectos da<br />

natureza caracteristicamente associados ao Gótico – a noite, a lua, as tempestades e toda<br />

sorte de violência e desordem – remetem todos ao princípio do feminino indomável,<br />

cujo maior terror de todos a ele associado é a morte (WILLIAMS, 1995: 86).<br />

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O feminino é da ordem do ctoniano e do dionisíaco. O próprio Dioniso,<br />

representação da totalidade, encarnação do paradoxo, era muitas vezes retratado com<br />

vestes femininas (PAGLIA, 1992: 92). O pensamento arcaico, não dicotômico, concebia<br />

a unidade da physis, natureza que trazia em seu bojo o que se entenderia hoje por<br />

sobrenatureza, já que o natural e o que hoje consideramos sobrenatural estavam<br />

interligados, conforme o pensamento de Tales de Mileto, citado por Aristóteles: “todas<br />

as coisas estão cheias de deuses” (ARISTÓTELES, 1973: 14). Segundo este<br />

pensamento originário, as colunas apontadas por Aristóteles e citadas por Anne<br />

Williams estariam entrelaçadas, formando a totalidade do Uno primordial, cindido pela<br />

metafísica platônica e aristotélica, que, ao privilegiar a linha do Logos, do masculino, do<br />

sol, do bem e do pai, teria decretado a demonização da linha matriarcal. Cumpre<br />

lembrarmo-nos de que as primeiras religiões eram cultos da natureza, agrários,<br />

presididos por deusas ancestrais ctonianas, grandes mães da Terra, substituídas mais<br />

tarde por deuses patriarcais do céu, habitantes dos cumes olímpicos (BRANDÃO, 1985:<br />

29).<br />

Assim como vários pensadores ocidentais, tais como Nietzsche, Freud e Walter<br />

Benjamin, Camille Paglia, outra crítica norte-americana, também vê, ao longo da<br />

história da arte ocidental, a sobrevivência residual da natureza em seu aspecto<br />

daimônico, ctoniano. A Ilustração setecentista equiparava a natureza à razão e à verdade<br />

(CANDIDO, 1981: 45), no que era entrevista apenas enquanto paisagem amena de<br />

superfície. O Barroco e o Romantismo, ao contrário, estavam cientes da dimensão<br />

violenta da natureza, que, segundo Paglia, “não é nenhum prado de verde promessa,<br />

mas uma espectral câmara gótica que não deixa nascer a história” (PAGLIA, 1992:<br />

6<strong>04</strong>). A literatura gótica inglesa do século XVIII contribui para a “desintegração do<br />

iluminismo apolíneo” (Idem: 270), no que ela, assim como seu contemporâneo francês,<br />

o marquês de Sade, subverte os postulados bem intencionados e edificantes de<br />

Rousseau, defensor da idéia da bondade da natureza:<br />

A reação inglesa a Rousseau assumiu forma assimilável: o romance gótico.<br />

Como a literatura inglesa tinha os precedentes arquetípicos de The faerie<br />

queene e Paraíso perdido, o romantismo inglês desde o início teve uma<br />

intensidade daimônica que o francês levou quarenta anos para adquirir. O<br />

gótico inglês da década de 1790 equivale à alquimia e ao ocultismo<br />

medievais de Fausto, em que Goethe trabalhava na época. As trevas e<br />

rudezas góticas opõem-se à luz, ao contorno e ao simbolismo apolíneos do<br />

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Iluminismo. O racionalismo protestante é derrotado pelo retorno gótico ao<br />

ritualismo e misticismo do cristianismo medieval, com seu paganismo<br />

residual. A arte retira-se para as cavernas, castelos, masmorras, túmulos,<br />

caixões. O gótico é um estilo de sensualidade claustrofóbica. Seus espaços<br />

fechados são úteros daimônicos. O romance gótico é sexualmente arcaico:<br />

retira-se para as trevas ctônicas, o reino goethiano das Mães. A mãe noite<br />

impregna o romantismo, de Coleridge e Keats a Poe e Chopin, com seus<br />

melancólicos noturnos. (Idem: 249)<br />

A citação acima, de Paglia, não deixa dúvidas quanto à vinculação do Gótico<br />

literário inglês às potências do feminino. Para Anne Williams, enquanto as narrativas<br />

góticas de autoria feminina se organizam a partir dos recursos do terror, ou seja, de uma<br />

ameaça imaginária e o processo pelo qual essa ameaça é dissipada, o Gótico de autoria<br />

masculina se especializa no horror, que vem a ser a reação do sujeito diante da<br />

violência e da catástrofe reais: a mortalha sangrenta, o cadáver putrefato (WILLIAMS,<br />

1995: 1<strong>04</strong>). E este horror das narrativas góticas “masculinas” nada mais é do que o<br />

horror da própria natureza, feminina, encarnação mor da alteridade para o logos<br />

ocidental (Idem: 106). O Gótico masculino percebe um mundo de crueldade, violência e<br />

horrores sobrenaturais fundamentados no feminino (Idem: 109). Assombrada pelo<br />

princípio feminino, a ordem simbólica patriarcal nos romances góticos estabelece o<br />

sofrimento da mulher como retaliação, apresentando contornos de sadismo (Idem: 106)<br />

e voyeurismo (Idem: 1<strong>04</strong>), ao pretender fazer com que o leitor sinta prazer com a<br />

vitimização das donzelas (Idem: 1<strong>04</strong>). Segundo Williams, este sadismo do Gótico<br />

masculino aproxima seus enredos dos escritos de Sade e da pornografia (Idem: 106).<br />

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O enredo gótico masculino por excelência descreve “as aventuras de uma jovem<br />

mulher que se encontra, em uma noite escura e tempestuosa, em um castelo pertencente<br />

a um homem poderoso e misterioso – um castelo, ela descobre, que esconde um segredo<br />

terrível” (WILLIAMS, 1995: 110) 8 . Esta jovem mulher é vista simultaneamente como<br />

vítima e como ameaça demoníaca, sendo, por conseguinte, enclausurada e molestada<br />

(Idem: 136), encarnando o clichê gótico da “donzela perseguida” (PRAZ, 1986: 14-15).<br />

No primeiro romance gótico da literatura inglesa, O castelo de Otranto (1764), de<br />

Horace Walpole, a personagem Isabella encarna este papel que, na narrativa de A luz no<br />

subsolo, é encarnado por três personagens femininas: Maria, Emanuela e Madalena.<br />

8 Minha tradução. No original: “It describes the adventures of a young woman who finds herself on a dark<br />

and stormy night in a castle belonging to a powerful and mysterious man – a castle, she discovers, that<br />

hides a terrible secret.”<br />

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O prólogo do romance de Lúcio Cardoso inicia-se sob o signo da aflição<br />

feminina: “Quase aturdida, percebia que um absurdo desfalecimento se apossava dos<br />

seus nervos” (ALNS, p. 9). Maria, prima de Madalena, parenta pobre agregada em sua<br />

casa, resolve partir, afligida pelo “terror” e pela “perturbação” (Ibidem) proporcionados<br />

por Pedro, marido de Madalena e “senhor do castelo”. Indagada por Madalena sobre o<br />

motivo de sua partida repentina, confessa ser “por causa ‘dele’” (ALNS, p. 18), que lhe<br />

causa “medo” (ALNS, p. 20), explodindo finalmente na seguinte confissão: “Não sei,<br />

não sei de nada! E não posso trabalhar, sinto que ‘ele’ está constantemente me<br />

vigiando... É um olhar que atravessa as próprias paredes!” (Ibidem). Após a confissão,<br />

Maria “ficou repetindo ‘não posso mais’ uma porção de vezes” (Ibidem), em uma<br />

evidente teatralização do paradigma do feminino enquanto fragilidade molestada. O<br />

clichê gótico dos olhos que espiam sorrateiramente, presente não apenas neste romance,<br />

mas em vários outros de Lúcio Cardoso, confirma o pastiche intratextual que permeia<br />

seus textos: Lúcio, como os escritores decadentistas (BOUÇAS, 1995: 7), é pasticheur<br />

de si próprio. Assim, do mesmo modo, confirma a personagem Madalena: “Por trás das<br />

capas amarelas ela se sentia espiada, vigiada, escarnecida... [...] Nada daquilo se<br />

exprimia por qualquer manifestação exterior, mas, logo que ela se voltasse, sentiria dois<br />

olhos implacáveis seguindo atentamente os seus movimentos” (ALNS, p. 26).<br />

Identicamente, o mesmo ocorre com a personagem Emanuela, jovem que vai trabalhar<br />

na casa de Pedro e Madalena e desperta a cupidez de seu patrão. A citação abaixo não<br />

deixa dúvidas quanto à vinculação do espaço e da atmosfera da narrativa cardosiana ao<br />

romance gótico inglês:<br />

[Emanuela, após estar com Adélia] Agora estava só no corredor escuro. Uma<br />

emoção estranha a assaltou. Ofegante, encostou-se à parede, sem forças para<br />

prosseguir a caminhada. Sentia-se ameaçada por perigos invisíveis. De uns<br />

dias para cá, perdia a tranqüilidade, julgando-se vigiada por alguém que não<br />

conseguia ver. Emanuela vinha sustentando essa luta há longo tempo – a<br />

cada hora, sentia esfacelar-se no seu espírito alguma coisa que a deixava<br />

aniquilada longos momentos. Era a sensação que lhe chegava, diante da<br />

escada escura, da casa imersa no silêncio. Tateando, continuou a caminhar,<br />

ganhou a escada, desceu, escutando a madeira estalar sob seus pés. Na sala<br />

encontrou uma lamparina acesa. Era verdade, pois – alguém estava<br />

acordado, alguém vigiava – dois olhos a seguiam insistentemente da sombra.<br />

Aproximou-se receosa e soprou a chama trêmula. No escuro, procurou o<br />

rumo da porta com o coração aos saltos. Quando segurou o trinco, ouviu um<br />

estalo; permaneceu quieta, até que novamente a madeira estalou. Alguém –<br />

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esse alguém que se escondera à sua aproximação – subia agora a escada.<br />

Emanuela sentiu-se desfalecer de terror. Fazendo um esforço sobre si<br />

mesma, rodou o trinco e mergulhou na escuridão do jardim.(ALNS, p. 149-<br />

150)<br />

Emanuela acaba sendo vítima da lubricidade de Pedro, que, byronianamente, a<br />

ama e a destrói. O senhor da casa, uma noite, entra em seu quarto, deixando-a<br />

“aterrorizada” (ALNS, p. 168). A moça implora “pelo amor de Deus” (ALNS, p. 170),<br />

mas Pedro comporta-se como legítimo vilão de romance gótico, algoz da donzela:<br />

Ele deixou escapar uma risada. Segurou-a pela cintura, enquanto a moça se<br />

esforçava para fugir ao seu abraço. Toda a sua carne se rebelava ao contato<br />

daquelas mãos incendiadas. Emanuela não ignorava que seria vencida, que<br />

rolaria nos braços daquele homem a quem não amava, mas que a dominava<br />

inteiramente, corpo e alma, pela sugestão de um sortilégio qualquer. Mas era<br />

repugnância que sentia, uma loucura que fazia o sangue turbilhonar na sua<br />

cabeça, enquanto dominava os nervos, cerrando os olhos como uma<br />

condenada. (Ibidem)<br />

Emanuela, como Maria, acaba comunicando a Madalena sua partida da casa,<br />

pelo mesmo motivo: medo de Pedro (ALNS, p. 183). A personagem, entretanto, ganha<br />

contornos de ambigüidade no que o prazer se mistura ao sofrimento de que foi vítima,<br />

como atestam suas próprias palavras: “Não compreendia nada daquilo – parecia que<br />

tinha descido um vento e eu delirava. Aquelas noites eram quentes e eu sentia o meu<br />

sangue arder” (ALNS, p. 261). Da mesma forma, Emanuela desperta em Pedro<br />

sentimentos ambivalentes: ele a deseja, mas ao mesmo tempo, “um ódio desmedido<br />

subia-lhe ao peito, diante daquela pobre criatura fraca, que não possuía forças para lutar<br />

sem pranto” (ALNS, p. 171), corroborando a visão dialética do feminino na literatura<br />

gótica masculina, ao mesmo tempo atraente (WILLIAMS, 1995: 19) e odioso (Idem:<br />

106).<br />

De volta à casa de sua família, Emanuela, grávida, recebe a visita do personagem<br />

espectral “mendigo resignado”, único elemento fantástico nesta narrativa. A citação<br />

abaixo poderia ter saído das páginas de Horace Walpole:<br />

Emanuela estava só. O calor parecia dar-lhe febre; lembrou-se de apagar a<br />

lamparina e dirigiu-se vacilante para o gancho de ferro onde as mariposas<br />

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inquietas voavam. Os dedos trêmulos seguraram a candeia – neste instante,<br />

alguém bateu na porta. Emanuela prestou atenção, admirada. Suas pupilas,<br />

extraordinariamente dilatadas, fixavam a chama débil. Seria realmente ali?<br />

Seu rosto impassível não denunciava nenhuma emoção. Mas devia ter se<br />

enganado, só as mariposas se debatiam contra a luz. Entretanto a porta<br />

rangera levemente – ela voltou-se de um salto e, pálida de terror, viu uma<br />

longa mão, descarnada e branca, que segurava a taramela da porta. “Quem é”<br />

– gritou. Um homem estava diante dela. Tinha entrado docemente e sorria.<br />

Trazia um xale escuro enrolado em torno do pescoço, o que dava relevo à<br />

sua extraordinária palidez. Um botão de metal luzia em seu colete. No ar<br />

havia um elemento novo, pesado e ameaçador. Emanuela passou a mão pelas<br />

têmporas, procurando afastar a visão. Uma estranha dormência paralisava<br />

seus movimentos. (ALNS, p. 265)<br />

Após pequeno diálogo entre Emanuela e a aparição, “o mendigo se desfigurava –<br />

não era mais o mendigo, mas uma grande sombra que se quebrava na parede” (ALNS,<br />

p. 268), que, mesmo imaterializado, “continuava a se insinuar” com sua “voz perversa”<br />

a destilar um discurso da desrazão e do devir metamorfoseante: “– Emanuela, venha ver<br />

da <strong>jan</strong>ela os campos de sua meninice... venha ver como tudo oscila, como tudo se<br />

revolve nas entranhas do tempo... Há muito que sua casa desapareceu e só resta o mar...<br />

tão perto daqui!” (Ibidem). A cena se consuma no melhor estilo das narrativas de terror,<br />

dramática e teatralmente:<br />

Uma rajada de vento escancarou a <strong>jan</strong>ela. A luz escarlate da lamparina<br />

tremeu e apagou-se de súbito – no silêncio, ouvia-se o rangido do gancho de<br />

ferro. Uma risada animal vibrou dentro da sala. Emanuela sentiu o mundo se<br />

abrir aos seus pés e as coisas oscilarem sobre a sua cabeça. Sacudida pelo<br />

vento, a <strong>jan</strong>ela estalava e, sentindo no rosto o hálito frio do abismo, correu e<br />

debruçou-se sobre a escuridão com um grito amargo de vitória. (ALNS, p.<br />

268)<br />

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O dado sobrenatural aqui da narrativa cardosiana, ao contrário dos quadros na<br />

parede em que as figuras riem e das estátuas ambulantes de O castelo de Otranto,<br />

parece se situar dentro da categorização que Tzvetan Todorov faz sobre o conceito de<br />

fantástico, que, segundo ele, recai na incerteza de os acontecimentos sobrenaturais<br />

terem realmente acontecido no âmbito diegético ou não passarem apenas de sonho ou<br />

alucinação dos personagens (TODOROV, 1975: 30-31). A velha Emília, parenta de<br />

Emanuela, ao sentenciar que “Emanuela jamais retornará de sua loucura” (ALNS, p.<br />

268), torna incerto para o leitor se o personagem do mendigo resignado trata-se de um<br />

fantasma sobrenatural ou de mera alucinação que teria acometido os personagens Pedro<br />

e Emanuela. De qualquer forma, contribui efetivamente para a criação da atmosfera<br />

gótica do romance. E sem contar que, tanto o sobrenatural quanto a loucura pertencem à<br />

linha da desrazão e do feminino, dionisíaca, contrária à razão cartesiana ocidental,<br />

apolínea. A causa da loucura de Emanuela também se inscreve na perspectiva das<br />

potências femininas desagregadoras: “Está grávida... e foi isto que a enlouqueceu...”<br />

(Ibidem), diagnostica mais uma vez a velha Emília, reconhecendo a correspondência<br />

entre Eros e desrazão.<br />

A personagem Madalena é um caso à parte. Segundo Anne Williams, o Gótico<br />

feminino, ou seja, a narrativa gótica escrita por mulheres, apresentaria enquanto enredo<br />

típico uma heroína desvalida que, ao chegar a um castelo presidido por um misterioso<br />

senhor, é assombrada por ameaças imaginárias que são dissipadas pouco a pouco no<br />

decorrer da trama, preservando sua integridade/virgindade e casando-se com o senhor<br />

do castelo no final. “O enredo do Gótico feminino é uma versão de ‘A Bela e a Fera’”<br />

(WILLIAMS, 1995: 145) 9 . Aqui o enredo trágico cede lugar à comédia, e o horror,<br />

explícito, suaviza-se no terror, imaginário. Enquanto no Gótico masculino o feminino é<br />

a encarnação absoluta da alteridade, no Gótico feminino, em contrapartida, o masculino<br />

é que é visto como o outro (WILLIAMS, 1995: 141), que pode parecer monstruoso no<br />

princípio, mas que acabará eventualmente por se transformar em um marido afetuoso<br />

através do amor (Idem: 145).<br />

9 “The Female Gothic plot is a version of “Beauty and the Beast”.”<br />

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A encarnação do masculino como alteridade se dará aqui no paradigma do<br />

homem fatal, apresentado por Mario Praz no segundo capítulo de seu A carne, a morte e<br />

o diabo na literatura romântica. Este foi um dos grandes arquétipos românticos,<br />

identificado com Byron, a partir do decalque feito do protagonista decaído do poema<br />

inglês do século XVII “Paraíso Perdido”, de John Milton (PRAZ, 1996: 73). Entretanto,<br />

antes de Byron, Ann Radcliffe, em seu romance gótico The Italian, de 1797, decretara o<br />

tom que nortearia o herói romântico byroniano a partir do personagem Schedoni, herói e<br />

vilão ao mesmo tempo:<br />

Vivia no convento dominicano do Espírito Santo, em Nápoles, um homem<br />

chamado padre Schedoni; um italiano, como seu nome demonstrava, mas<br />

cuja família era desconhecida, e a partir de algumas circunstâncias, assim<br />

parecia que ele desejava ocultar sua origem sob um véu impenetrável. Por<br />

qualquer que fosse o motivo, nunca o ouviram mencionar o nome de algum<br />

parente, ou o local de seu nascimento... [...] Havia circunstâncias, entretanto,<br />

que pareciam indicar que ele fosse um homem bem-nascido e de fortuna<br />

arruinada; seu espírito, como às vezes se deixava divisar sob o disfarce de<br />

sua conduta, parecia arrogante, não deixando transparecer, entretanto, as<br />

aspirações de uma mente generosa, mas sim o orgulho sombrio de uma<br />

mente desapontada. Algumas poucas pessoas no convento, que haviam<br />

ficado interessadas por sua aparência, acreditavam que a peculiaridade de<br />

seus modos, sua reserva severa e seu silêncio invencível, seus hábitos<br />

solitários e penitências freqüentes, traduziam o efeito do infortúnio se<br />

abatendo sobre um espírito altivo e desordenado, enquanto outros atribuíam<br />

sua conduta como sendo conseqüência de algum crime terrível atormentando<br />

a consciência perturbada. (RADCLIFFE, 1981: 34) 10<br />

Além disso, “a sua figura impressionava”, pois tinha “qualquer coisa de terrível<br />

em seu aspecto: algo de sobre-humano” (apud PRAZ, 1996: 75-76). E mais:<br />

10 “There lived in the Dominican convent of the Spirito Santo, at Naples, a man called father Schedoni; na<br />

Italian, as his name imported, but whose family was unknown, and from some circumstances, it appeared,<br />

that he wished to throw na impenetrable veil over his origin. For whatever reason, he was never heard to<br />

mention a relative, or the place of his nativity... [...] There were circumstances, however, which appeared<br />

to indicate him to be a man of birth, and of fallen fortune; his spirit, as it had sometimes looked forth from<br />

under the disguise of his manners, seemed lofty; it shewed not, however, the aspirings of a generous<br />

mind, but rather the gloomy pride of a disappointed one. Some few persons in the convent, who had been<br />

interested by his appearance, believed that the peculiarity of his manners, his severe reserve and<br />

unconquerable silence, his solitary habits and frequent penances, were the effect of misfortunes preying<br />

upon a haughty and disordered spirit; while others conjectured them the consequence of some hideous<br />

crime gnawing upon na awakened conscience.”<br />

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O seu capuz, também, ao fazer uma sombra sobre a lívida palidez de sua<br />

face, aumentava seu caráter severo, e produzia um efeito nos seus grandes<br />

olhos melancólicos, próximo do horror. Sua melancolia não era a de um<br />

coração ferido e sensível, mas aparentemente a de uma natureza soturna e<br />

feroz. Havia na sua fisionomia um não sei quê de extremamente singular,<br />

difícil de definir. Trazia as marcas de muitas paixões, que pareciam ter<br />

fixado os lineamentos que agora não mais animavam. Tédio e severidade<br />

habituais predominavam nas linhas profundas de sua face e seus olhos eram<br />

tão intensos que com um só olhar pareciam penetrar no coração dos homens<br />

e ler seus pensamentos secretos: poucos podiam tolerar o exame minucioso<br />

daqueles olhos, ou mesmo suportar vê-los uma segunda vez.<br />

(RADCLIFFE, 1981: 35) 11<br />

Mario Praz detecta na descrição do personagem gótico de Ann Radcliffe “certos<br />

elementos recorrentes nos homens fatais dos românticos: a origem misteriosa, que se<br />

supõe ser elevada, os traços de paixões extintas, a suspeita de uma horrível culpa, o<br />

hábito melancólico, a face pálida, os olhos inesquecíveis” (PRAZ, 1996: 76). Anne<br />

Williams destaca, neste paradigma, o olhar sempre intenso e penetrante (WILLIAMS,<br />

1995: 143), além do dado ambivalente, dual, de sua figura, no que nele se percebe a<br />

incongruência entre interior e exterior, presente e passado, em uma natureza paradoxal e<br />

ardilosa (Ibidem). Sua força e rudeza masculinas mascarariam uma capacidade<br />

convencionalmente ‘feminina’ por sentimentos intensos (Idem: 143-144). Citando o<br />

paradigma aristotélico, Williams sustenta que a dualidade do homem fatal, aliada ao seu<br />

caráter erotizado e misterioso, definitivamente o incluiriam na “linha do mal”,<br />

“feminina” (Idem: 144).<br />

11 “His cowl, too, as it threw a shade over the livid paleness of his face, encreased its severe character, and<br />

gave an effect to his large melancholy eye, which approached to horror. His was not the melancholy of a<br />

sensible and wounded heart, but apparently that of a gloomy and ferocious disposition. There was<br />

something in his physiognomy extremely singular, and that can not easily be defined. It bore the traces of<br />

many passions, which seemed to have fixed the features they no longer animated. Na habitual gloom and<br />

severity prevailed over the deep lines of his countenance; and his eyes were so piercing that they seemed<br />

to penetrate, at a single glance, into the hearts of men, and to read their most secret thoughts; few persons<br />

could support their scrutiny, or even endure to meet them twice.”<br />

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Em A luz no subsolo, vários traços do homem fatal podem ser vislumbrados no<br />

personagem Pedro, a partir da ótica em que é visto por Madalena, ao se lembrar de<br />

quando o vira pela primeira vez: “Fora então que o seu olhar caíra pela primeira vez<br />

sobre Pedro. Estava imóvel, encostado a uma árvore e fitava-a. Ao encontrar o seu<br />

vulto, estremecera e dissera num sussurro: “Está ali”...” (ALNS, p. 44). As descrições a<br />

seguir guardam inegáveis semelhanças com a do herói de Ann Radcliffe, no que Pedro<br />

também apresenta os traços de singularidade, fascínio e mistério:<br />

Aquele alguém que se apoiava de um modo tão displicente no velho tronco<br />

não se confundia com a massa escura e indistinta cujo vozerio enchia o ar<br />

dourado da manhã: fixando-o melhor, percebia em torno dele um brilho<br />

qualquer, um halo diferente, flutuando sobre sua pessoa e apartando-o da<br />

multidão como a uma criatura eleita. [...] Continuando a reparar, chegara<br />

entretanto à convicção de que estava realmente diante de um indivíduo<br />

estranho, inexplicavelmente fora de seu ambiente natural. Mais tarde,<br />

somente mais tarde, pudera compreender aquele sortilégio que o distanciava<br />

das demais criaturas, ser destinado a permanecer à parte, dentro de uma<br />

grandeza ou de uma miséria que não era a grandeza nem a miséria habitual<br />

dos homens. (ALNS, p. 44-45)<br />

[Madalena]... reconheceu subitamente o ser distanciado que estava encostado<br />

à árvore. Estava dentro de uma atmosfera impenetrável e, nele, as sensações<br />

se rompiam irremediavelmente. Nada resistia àquele rosto severo quase até o<br />

mau humor, àquela decisão diabólica marcada nos olhos, nos lábios, na sua<br />

pessoa inteira. (ALNS, p. 49)<br />

Também Pedro possui o característico olhar intenso e penetrante: “Ele a<br />

contemplara com aqueles olhos profundos, onde todas as coisas pareciam se perder,<br />

olhos sem vida, sem luz, mas poderosos e cheios de mistério” (ALNS, p. 57). Madalena<br />

percebe “seu estranho poder de dominar” (ALNS, p. 58) e o adivinha “caído como um<br />

anjo-mau” (ALNS, p. 60). A fala de Pedro a Madalena apresenta contornos de suposta<br />

maldição: “Lembre-se apenas de que você é uma alma pura e foi isso que me atraiu...<br />

Naturezas como a nossa...” (ALNS, p. 62).<br />

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Madalena comporta-se como heroína de romances góticos de autoria feminina,<br />

no que é ao mesmo tempo aterrorizada e fascinada por Pedro, deixando-se, porém,<br />

apaixonar, casando-se com ele. Mas só até aí. A partir do casamento, Pedro torna-se um<br />

marido indiferente e cruel, de modo que a personagem Madalena passa a se inscrever<br />

também no arquétipo da “mulher perseguida”, enclausurada, pois, em dado momento<br />

na narrativa “lembrava-se de que estava encerrada num quarto, separada de todos e que<br />

ninguém poderia penetrar nesse quarto” (ALNS, p. 228), e molestada, conforme a<br />

citação abaixo:<br />

[Pedro] Bruscamente adiantou-se como um felino, a lamparina entre as<br />

mãos, até o leito onde Madalena dormia. Um palor esverdeado, de chama<br />

que se extingue, brilhava nas suas pupilas. A mulher dormia profundamente,<br />

os cabelos palpitando no travesseiro branco. Uma onda de ódio subiu-lhe ao<br />

peito e flamejou impiedosamente na sua consciência... Ele não podia se<br />

livrar daquilo, era qualquer coisa mais forte do que a sua vontade, tão forte<br />

que chegava a ter medo de ser subjugado pelas forças perversas que o<br />

aprisionavam. Em certas noites, como aquela, sentia descer às suas entranhas<br />

um tão grande desejo do mal, que se erguia precipitadamente, procurando<br />

confundir no frio da noite a estranha inquietação que o envenenava.<br />

Lembrava-se do que acontecera há alguns dias – um homem, numa casa<br />

distante, estrangulara a mulher e enforcara o cadáver para simular que fora<br />

suicídio. A morta ficara sozinha no casarão; ele esquecera uma porta aberta e<br />

o vento da noite vinha balançar o corpo suspenso. Aquilo penetrava nas mais<br />

fundas camadas do seu ser e ele sentia, como um calor se derramando, o<br />

desejo tremendo de se libertar de alguma coisa que o subjugava. Na<br />

claridade hesitante, sentia as suas mãos se alongarem como duas aranhas<br />

ávidas. As têmporas latejavam; na sua cabeça gritos confusos despertavam<br />

de jornadas distantes, e ouvia como num sonho a corda da enforcada ranger<br />

na trave de ferro. O seu olhar descia novamente ao corpo adormecido, subia<br />

aos olhos largos, ao nariz afilado, parecia sugar a forma suave do rosto... E<br />

<strong>jun</strong>to à pele clara, as suas mãos mais claras ainda, desconhecidas e inquietas.<br />

Não sabia por que alimentava aquele horror pelas suas mãos... Tinha a<br />

impressão de que viviam uma vida autônoma, que não ignoravam o seu<br />

destino, cúmplices e criminosas. Estavam <strong>jun</strong>to à garganta de Madalena e<br />

pareciam gritar num rancor maior do que aquele que lhe transbordava no<br />

coração. (ALNS, p. 193-194)<br />

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As narrativas góticas masculinas são obcecadas eroticamente com a transgressão<br />

e a violação dos tabus (WILLIAMS, 1995: 172). Neste sentido concordamos com Paglia<br />

quando diz que são a contrapartida inglesa para a obra do marquês de Sade, que se<br />

compraz na perversão. Em A luz no subsolo o algoz sadeano não é outro senão o próprio<br />

Pedro, que, além de assombrar sua esposa com suas mãos durante a noite,<br />

prazerosamente acarretara a morte da menina Isabel durante a infância, jogando-a no<br />

poço de propósito, fazendo com que pegasse uma pneumonia. Nisto a narrativa<br />

inaugural do filão soturno da obra de Lúcio Cardoso procura o rompimento com os<br />

valores burgueses vigentes, que poderíamos afirmar como sendo identificados com a<br />

“linha do bem” aristotélica citada por Anne Williams. Pedro, personagem em busca do<br />

“absoluto” e da transcendência, arrisca na maldade encontrar a ligação com o sagrado<br />

perdido na modernidade. Afinal, a obra de Lúcio Cardoso prima pela busca de uma<br />

“verdade” perdida, segundo atesta Maria Teresinha Martins: “... aquilo que é a<br />

substância de sua obra: “a verdade” que revelará seu aspecto plural na estruturação e na<br />

filosofia da vida das personagens” (MARTINS, 1997: 15). E, sobre “a visão trágica do<br />

mundo” entrevista nos textos de Lúcio Cardoso, Maria Teresinha Martins corrobora<br />

nossa afirmativa acima ao vinculá-la a “uma forma de o autor recapturar, de um modo<br />

ou de outro, a unidade perdida do homem ante a massificação por que passava no século<br />

XX” (Idem: 23).<br />

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Segundo Roland Barthes, a “clausura sadiana”, além de sua função prática de<br />

“abrigar a luxúria das empreitadas punitivas do mundo”, manifesta também “uma<br />

qualidade de existência, uma volúpia de ser”, havendo sempre, neste espaço composto<br />

de “porões profundos, criptas, subterrâneos, escavações situadas na parte mais baixa dos<br />

castelos, dos jardins, dos fossos”, um “segredo” (BARTHES, 1990: 20). Este segredo,<br />

tanto em Sade, quanto no romance gótico inglês, como também em Lúcio Cardoso,<br />

geralmente é de ordem sexual. Na clausura dos corredores escuros e dos cômodos<br />

opressivos da casa-grande em que vivem, os personagens de A luz no subsolo são<br />

atormentados por seus desejos eróticos: “Não é a carne que é má. É a impossibilidade da<br />

carne” (ALNS, p. 206), sentencia Pedro a Bernardo. Bernardo deseja Madalena que<br />

deseja Pedro que deseja Emanuela que não deseja ninguém, tal é a ciranda de<br />

desencontros passionais que assolam os personagens atormentados da narrativa<br />

cardosiana. A volúpia da transgressão que acomete Pedro está bem sintetizada na fala<br />

do próprio personagem quando diz:<br />

... também eu sinto isso. É um diabólico desejo de se rebaixar, de descer ao<br />

mais fundo da ignomínia, de criar a vileza, se preciso for, contanto que se<br />

sinta vil, que se sinta a vergonha queimar e arder e que escorra nos lábios o<br />

gosto amargo da lama... Certas noites, percebo que alguma coisa espantosa<br />

se passa comigo – é necessário que eu vagueie e que eu sinta inteiramente o<br />

chamado sombrio que devora a minha alma... (ALNS, p. 210).<br />

O enredo trágico do gótico masculino (WILLIAMS, 1995: 103) consuma-se na<br />

queda do personagem que simbolicamente ocupa o lugar do senhor patriarcal, punido<br />

por sua desmedida, a violação da Lei. Ele se destrói, ou perdendo seu reino, como<br />

Manfred de O castelo de Otranto, ou morrendo (Ibidem), o que acontece com Pedro no<br />

final de A luz no subsolo. Pelo fato de que os elementos que decretam sua queda são<br />

todos relacionados na linha aristotélica do feminino (melancolia, incerteza, inação,<br />

loucura, paixão e morte), efetivamente somos obrigados a admitir que, embora<br />

apresentando a possibilidade de transcendência do jugo da natureza a partir da<br />

religiosidade católica, a narrativa cardosiana em questão corrobora a tese do feminino<br />

como agente destruidor do patriarcalismo, principal substrato das narrativas góticas<br />

inglesas de autoria masculina, apresentando, portanto marcas desta tradição mais<br />

profundas, além dos elementos mais óbvios do espaço e da atmosfera de terror, palavra,<br />

aliás repetida várias vezes ao longo das páginas de A luz no subsolo.<br />

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O feminino da catástrofe gótica, por sua vez, vincula-se à matriz dionisíaca da<br />

cultura grega, com toda sua carga de indiferenciação, propiciando assim, mesmo que<br />

desastrosamente, a quebra da individuação que enclausura os personagens. As páginas<br />

do romance de Lúcio Cardoso, no entanto, primam pelo rigor formal no uso da norma<br />

culta da Língua Portuguesa e pela plasticidade estetizante, o que faz com que<br />

“verdades” ctônicas sejam apresentadas a partir de belas máscaras apolíneas.<br />

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INTRODUÇÃO<br />

REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE<br />

SENTENÇAS<br />

Sandra Pereira Bernardo (<strong>UERJ</strong> / PUC-Rio)<br />

Duas grandes questões subjazem às pesquisas sobre processamento de frases:<br />

que tipo de informação é usada pelo aparato mental processador (parser) de uma<br />

sentença? E como essa informação é utilizada durante o processamento? Essas questões<br />

são seminais no âmbito da Psicolingüística e das Ciências Cognitivas, porque<br />

configuram um divisor de águas para as duas concepções básicas sobre a capacidade da<br />

linguagem: aquela que postula a existência de módulos encapsulados responsáveis pelo<br />

processamento da linguagem e aquela que propõe um aparato cognitivo mais interativo,<br />

do qual o componente responsável pela capacidade da linguagem faz parte.<br />

No que concerne ao processamento de frases, o postulado de módulos<br />

encapsulados para processamento da linguagem pressupõe uma hierarquia e uma<br />

serialidade para atuação do parser, inviabilizando, por exemplo, a utilização de<br />

informação semântica no primeiro repasse do processamento de uma sentença (Frazier,<br />

1987; Clifton & Ferreira, 1989; Clifton & Frazier, 1989, entre outros). Nesse primeiro<br />

repasse, à medida que as palavras são acessadas, o processador as acomoda em um<br />

construto sintático hierarquicamente determinado pela função de cada palavra.<br />

Por outro lado, a concepção teórica que concebe uma ligação entre o aparato<br />

mental para capacidade da linguagem e outros componentes da cognição, postula a<br />

possibilidade de um processamento interativo, em paralelo, durante o qual o<br />

processador utilizaria informações semânticas e pragmáticas na compreensão de uma<br />

sentença. Tal concepção teórica subjaz aos modelos conexionistas.<br />

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Entretanto, a modularidade não exclui a possibilidade de um modelo modular<br />

paralelo em que diferentes módulos trocam informações distintas, como, por exemplo,<br />

os processadores concebidos por Steedman & Altmann (1989) e Tanenhaus, Carlson &<br />

Trueswell (1989), que processam informações semânticas e sintáticas simultaneamente<br />

no primeiro repasse do parser.<br />

Neste trabalho, pretende-se especular sobre a interferência de informação<br />

semântica no processamento de sentença, a partir de um estudo da compreensão do<br />

sujeito de orações reduzidas ambíguas. Orações com ambigüidade constituem uma<br />

fonte rica de perguntas acerca do processamento de frases, colocando em xeque a<br />

existência de um construtor de estruturas sintáticas automatizado que não leva em conta<br />

o significado lexical durante o primeiro acesso aos constituintes frasais.<br />

A motivação para este estudo preliminar originou-se de reflexões sobre as<br />

seguintes frases:<br />

(a) Pendurado no galho mais alto da árvore, o menino avistou um ninho de<br />

marimbondos.<br />

(b) Pendurado no galho mais alto da árvore, o pára-quedista avistou um ninho<br />

de marimbondos.<br />

Em situação de teste informal, foi solicitado a dois indivíduos que prestassem<br />

atenção à enunciação de uma frase, para que em seguida fosse respondida uma pergunta<br />

sobre a mesma. Expressa a sentença, perguntou-se quem estava pendurado no galho da<br />

árvore. Os dois sujeitos responderam um ninho de marimbondo. A um terceiro<br />

indivíduo foi enunciada a sentença (b), utilizando-se contextualização idêntica para<br />

solicitação da tarefa. Feita a mesma pergunta, o falante respondeu o pára-quedista.<br />

As respostas fornecidas pelos falantes propiciaram a postulação de problemas<br />

específicos para este estudo. Um pára-quedista seria um candidato mais plausível a<br />

estar pendurado na árvore do que um menino, em se tratando de (b)? Ao ter de<br />

responder sobre a sentença expressa oralmente, teriam os sujeitos sofrido um efeito de<br />

recência no caso de (a). Em ausência de um contexto para auxiliar a compreensão de<br />

frases ambíguas, o que está “pré-setado” em termos de processamento do sujeito? Que<br />

postulados teóricos estão relacionados a essas respostas? Assim, tais questões nortearão<br />

o presente trabalho.<br />

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Na segunda seção, abordam-se os pressupostos teóricos envolvidos no problema<br />

estudado. Tratar-se-á, na terceira seção, da descrição do experimento realizado. Na<br />

quarta seção, passar-se-á aos resultados e à discussão destes. Por último, apresentar-se-<br />

ão as considerações finais.<br />

Pressupostos teóricos<br />

O conceito de parsing foi introduzido em psicolingüística, e em disciplinas<br />

interessadas na descrição e explicação da compreensão da linguagem, para explicar a<br />

capacidade humana de processar sentenças, tornando psicologicamente real a postulação<br />

de construtos mentais que acomodam hierarquicamente os constituintes frasais durante<br />

o processamento. Assim, o parser seria o responsável pela atribuição de categorias<br />

gramaticais e pelas relações estruturais entre os constituintes de uma sentença,<br />

desconsiderando o significado dos mesmos.<br />

Diante dessa conceituação, surge uma questão fundamental para as pesquisas<br />

sobre a compreensão humana de sentenças: como se estabelecem as relações entre<br />

parsing e interpretação, visto que esta é a responsável pela integração das informações<br />

fornecidas pelos constituintes e suas dependências estruturais, mantendo-as em algum<br />

nível interno de representação para retratar os eventos expressos nas sentenças.<br />

Logo, encontram-se na literatura modelos de processador sintático, objetivando<br />

responder a essa pergunta, que ora descrevem uma interação entre informação<br />

semântica e parsing, ora uma independência entre as etapas de postulação dos<br />

marcadores frasais e de atribuição de sentido à sentença. Os primeiros constituem os<br />

modelos paralelos de processamento e, em alguns casos, se coadunam com uma visão<br />

interativa, ou seja, uma integração forte entre a capacidade da linguagem e outras<br />

capacidades cognitivas humanas; os últimos são seriais e se identificam com uma<br />

concepção modular da capacidade de linguagem humana.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 48


As orações ambíguas constituem um interessante objeto de estudo porque<br />

requerem algumas vezes informações semânticas e pragmáticas para sua compreensão,<br />

o que coloca em xeque o encapsulamento dos módulos responsáveis pela linguagem,<br />

suscitando perguntas acerca das preferências do parser e, em geral, apresentando<br />

algumas limitações determinados modelos de processamento. Embora não exista um<br />

modelo consensual, a literatura tem apresentado resultados promissores no estudo da<br />

compreensão de sentenças, entre os quais serão resumidos, em seguida, os modelos<br />

considerados mais relevantes para o trabalho aqui exposto.<br />

Entre as teorias modulares seriais de processamento sintático, destaca-se a do<br />

garden-path (FRAZIER, 1987), cujo pressuposto básico é o da escolha da primeira<br />

análise disponível. De acordo com essa teoria (doravante TGP), também denominada<br />

teoria do labirinto, porque o parser cai em uma espécie de beco sem saída durante o<br />

processamento, o mecanismo processador de sentenças utiliza inicialmente apenas seus<br />

conhecimentos gramaticais, desconsiderando informações semânticas e pragmáticas.<br />

O princípio básico da escolha da primeira análise disponível realiza-se através de<br />

duas estratégias de parsing:<br />

a de Ligação Mínima (Minimal attachment, doravante MA), segundo a qual o<br />

parser deve postular o menor número de nós, ou seja, o menor número possível de<br />

sintagmas para acomodar as palavras que vão sendo percebidas; e<br />

a de Fechamento Tardio (Late Closure, doravante LC), de acordo com a qual, se<br />

for consistente com as regras da gramática, cada palavra que surge durante o input de<br />

uma sentença deve ser ligada ao sintagma em análise.<br />

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Tais estratégias, que explicariam a facilidade ou a dificuldade de compreensão de<br />

várias configurações sentenciais, constituem refinamentos do princípio da associação à<br />

direita, postulado por Kimball (1973: 24), para quem “símbolos terminais são<br />

otimamente associados ao nó não-terminal mais baixo”. Segundo Frazier (1987), a<br />

escolha da primeira análise, ou seja, realizar o MA, é um caminho “geral e<br />

psicologicamente motivado” a ser seguido pelo parser. As sentenças abaixo expressam,<br />

segundo Clifton Jr. & Ferreira (1989), a relevância das estratégias de MA e LC do<br />

parsing:<br />

(1a) Eu vi Maria.<br />

(1b) Eu vi Maria sair<br />

Em (1a), observa-se a interferência da estratégia de MA, que prediz a preferência<br />

pela aposição do SN ao SV; em (1b) o parser cairia em um garden-path e reanalisaria a<br />

sentença utilizando a estratégia de non-minimal attachment (doravante NMA).<br />

Face a uma oração com ambigüidade, esta seria resolvida somente com base na<br />

estrutura sintática. Rayner, Carlson & Frazier (1983) postulam a atuação de um<br />

processador temático para guiar o parser durante a reanálise, quando ocorre garden-<br />

path. Assim, primeiro é construído um marcador sintático, para, em seguida, serem<br />

computadas as informações semânticas, que apoiariam a interpretação de frases como:<br />

(2a) O espião viu o policial com o binóculo.<br />

(2b) O espião viu o policial com o revólver.<br />

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Em (2a), a análise preferida será, segundo os referidos autores, ligar com<br />

binóculo ao verbo ver, enquanto em (2b) tal ligação acarretaria um efeito de<br />

implausibilidade, que forçaria o parser a reanalisar a oração, guiado por um processador<br />

temático, apondo o SP com binóculo ao SN policial. O parser procederia de forma<br />

semelhante quanto à oração (3) Coloque a xícara sobre a mesa na pia: ao utilizar o MA,<br />

o parser ligaria inicialmente o SP sobre a mesa diretamente ao verbo coloque, caindo<br />

em um labirinto a partir da entrada de novo material na pia, percebido pelo processador<br />

com base nas análises sintática e semântica, respectivamente.<br />

A existência de estratégias de NMA é tomada por autores, como Taraban &<br />

McClelland (1988), Altmann & Steedmann (1988) e Tanenhaus, Carlson & Trueswell<br />

(1989), para a postular a atuação de um processador temático na primeira análise do<br />

parser, pois, segundo autores que advogam tal procedimento para o parsing, um<br />

processador eminentemente sintático não detectaria ambigüidades relacionadas a<br />

labirintos semânticos como em (5) Marcaram encontro em frente ao banco.<br />

Na concepção de Taraban & McClelland (1988), a aposição de SP a um SV, ao<br />

invés de a um SN, relaciona-se a fatores semânticos. Os Autores fundamentam seu<br />

argumento através do resultado de testes com leitura auto-controlada em que sentenças<br />

como (7a) apresentam um tempo de leitura menor que (7b), a qual teria sua<br />

processamento orientado por um MA. Segundo T. & M. (op. cit.), a preferência pela<br />

estratégia de NMA deve-se a expectativas temáticas suscitadas pelo verbo durante a<br />

análise inicial do processador.<br />

(7a) Os ladrões roubaram todas pinturas no museu.<br />

(7b) Os ladrões roubaram todas as pinturas à noite.<br />

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Entre as teorias contrárias a TGP destaca-se a proposta de Altmann & Steedman<br />

(1989), denominada Teoria Incrementacional Interativa (incremental-interactive theory,<br />

doravante TII), que trabalha com a noção de plausibilidade, advinda de bases<br />

referenciais e contextuais, as quais impediriam o surgimento garden-path, quando o<br />

parser estivesse diante de dois caminhos sintáticos. Nesse sentido, a estruturação das<br />

diversas configurações sentenciais poderia ocorrer simultaneamente; para os autores, a<br />

compreensão só é interrompida quando há relações de referência inapropriadas, o que<br />

ocorre na maioria das demonstrações em favor do MA.<br />

A TII tem o princípio do apoio referencial como um de seus pressupostos<br />

básicos. De acordo com esse princípio “a análise de um SN referencialmente baseado<br />

será favorecida em relação a um que não é”. Para que um referente esteja<br />

referencialmente baseado é necessário que todas as suas pressuposições referenciais<br />

sejam satisfeitas pelo um contexto, a presença de um SN simples como o livro<br />

pressupõe a existência de um único livro em um modelo de discurso relevante; enquanto<br />

um SN modificado, como uma oração relativa ou sintagma preposicional – o livro que<br />

eu comprei ou o livro na mesa, respectivamente –, pressupõem a existência de um<br />

exemplar, dentro de con<strong>jun</strong>to de entidades, que possui certas propriedades, as quais<br />

permitiram seu acesso durante o processamento.<br />

O princípio do apoio referencial é um subprincípio do princípio da parcimônia<br />

de Altmann & Steedman (1988), que favorece uma análise com menos pressuposições,<br />

ou seja, a preferência do parser, frente a um contexto indeterminado, será pelo SN<br />

simples.<br />

Altmann & Steedman (1989) ressaltam os seguintes caracteres da TII:<br />

a influência da interpretação e da referência sobre processamento sintático está<br />

limitada a um fraco processo de avaliação do encaixe do contexto das interpretações nas<br />

análises sintáticas produzidas autonomamente. Trata-se de um modelo modular<br />

paralelo com processamento semântico on line, que se opõe às teorias conexionistas, as<br />

quais postulam uma interação forte entre o componente responsável pelo processamento<br />

da linguagem e outras capacidades cognitivas ligadas ao conhecimento de mundo;<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 52


as interpretações em questão podem ser construídas incrementalmente, mais ou<br />

menos palavra por palavra, e analisadas como favoráveis ou não, antes dos constituintes<br />

estarem sintaticamente completos.<br />

O que subjaz à diferença entre um parsing serial (TGP) e um paralelo (TII) é o<br />

tempo, ou seja, se o parser atrasa o processamento até a sentença se completar, como<br />

ocorre com os modelos seriais, ou se as palavras vão sendo interpretadas no momento<br />

em que são percebidas, como ocorre nos modelos paralelos, segundo o princípio da<br />

imediaticidade de Just & Carpenter (1980, apud SINGER 1990).<br />

Em se tratando de sentenças ambíguas, esse princípio representa uma economia<br />

para a memória de trabalho, já que durante o input tem-se acesso às análises<br />

disponíveis, sem a necessidade de esperar o fim da sentença. No caso da sentença (8)<br />

João comprou flores para Suzana, em que há duas possíveis leituras – ‘as flores foram<br />

compradas para atender a um pedido de Suzana’ e ‘as flores foram compradas para<br />

presentear Suzana’ –, ao ouvir a preposição para, o compreendedor escolherá uma<br />

dessas interpretações e a manterá, a menos que nova evidência em contrário seja<br />

fornecida.<br />

A hipótese de atraso do processamento, concepção contrária à imediaticidade,<br />

assume as seguintes formas: (i) durante o processamento, a memória de trabalho<br />

acumula várias palavras antes de interpretá-las (KIMBALL, 1973; MARCUS, 1980;<br />

apud SINGER, 1990); (ii) o processamento em nível mais alto começa com o onset 12 de<br />

uma palavra, mas não pode se completar até que o compreendedor tenha acesso a outras<br />

palavras ao longo do discurso (EHRLICH & RAYNER, 1983; RAYNER, 1977; apud<br />

SINGER, 1990); (iii) as análises sintática e semântica procedem continuamente, porém,<br />

quando mais interpretações são possíveis, tudo é mantido na memória até que uma<br />

evidência decisiva seja encontrada. Uma vantagem do atraso do processamento é que<br />

este pode prevenir o parser quanto à possibilidade de decisões incorretas.<br />

12 Gorrell (1995) define onset como ponto de partida da ambigüidade, na sentença Ian knows Thomas is a<br />

train, por exemplo, o onset da ambigüidade é o verbo know, porque pode selecionar um complemento<br />

nominal ou sentencial.<br />

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Pode-se interpretar, a partir de reflexões como as de Dillinger (1992), que os<br />

diferentes parsings, atrasado ou imediato, são manifestações do mesmo fenômeno<br />

observado em momentos diferentes no tempo, já que pesquisas vem revelando<br />

vantagens em tarefas específicas para cada um: procedimentos imediatos estariam<br />

relacionados ao processamento de constituintes sintáticos, enquanto os atrasados, à<br />

identificação de referentes.<br />

Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), seguindo a corrente teórica que<br />

concebe uma análise semântica inicial do parser, tratam da importância dos papéis<br />

temáticos dos verbos e de como estes se relacionam com o processador.<br />

Segundo os autores, os papéis temáticos 13 são importantes porque auxiliam as<br />

decisões do parsing, mediando as informações advindas do contexto discursivo ou<br />

conhecimento geral. Tais papéis são parte de um fenômeno semântico ou conceitual<br />

estreitamente associado à estrutura sintática/lexical de uma sentença; por isso, estão<br />

intimamente relacionados à estrutura da sentença, propiciando-lhe uma forma de<br />

representação para acesso a conceitos e significados dos elementos do discurso<br />

mapeados pela forma sintática. Devido a essa propriedade, os papéis temáticos devem<br />

ser extremamente úteis ao sistema de compreensão, coordenando diferentes tipos de<br />

informação.<br />

A informação temática, ao ser usada no processamento de sentenças para<br />

reconhecimento de um verbo, disponibiliza as seguintes informações: a representação<br />

semântica ou sentido do verbo; os papéis temáticos associados ao verbo; os tipos de<br />

constituintes que podem servir como complementos de um verbo; e como os papéis e<br />

constituintes são conectados um ao outro.<br />

13 Papel temático é definido pelos autores como “possíveis papéis semânticos que podem ser<br />

desempenhados por complementos subcategorizados (ou argumentos) pelos verbos” (p. 212).<br />

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Ao acessar as informações temáticas, sempre que um verbo é encontrado em um<br />

contínuo discursivo, o sistema de compreensão não só projeta expectativas sobre o tipo<br />

de elemento que pode figurar depois do verbo, mas também pode conferir um<br />

significado provisório para a sentença como um todo através da atribuição de<br />

identidades particulares aos elementos, temporariamente não especificados, que<br />

desempenham, por exemplo, os papéis de tema e de recipiente, esperando a denotação<br />

de sintagmas pós-verbais. O sistema de compreensão pode ainda atribuir os papéis de<br />

tema e de recipiente a uma entidade já introduzida no discurso, ou na mesma sentença,<br />

até que novas evidências em contrário sejam encontradas.<br />

A partir dessa hipótese de atuação da informação temática no<br />

parsing, Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989) analisam experimentos para validar<br />

esse procedimento em diferentes configurações sentenciais.<br />

Os autores analisaram os experimentos de Rayner et al. (1983), com sentenças<br />

do tipo de (2), repetido em (9), e verificaram a existência de um viés semântico na<br />

utilização da estratégia de MA, que prediz a aposição do SP ao SV para (9a), porque<br />

binóculos é interpretado como um coerente instrumento do verbo ver. Para (9b), essa<br />

leitura não é possível, devido à incoerência inerente à interpretação de com o revólver<br />

como instrumento do verbo ver.<br />

(9a) O espião viu o policial com o binóculo, mas o policial não o viu.<br />

(9b) O espião viu o policial com o revólver, mas o policial não o viu.<br />

Rayner et al. (1983) utilizaram o fato de os sujeitos testados não terem repetido a<br />

leitura de (9a), mas a de (9b), para postular a existência dois processadores: um sintático<br />

e outro temático, este analisaria o output daquele. Em caso de os outputs não<br />

coincidirem, o conflito seria resolvido com base nas informações do processador<br />

temático. Nesse sentido, ao contrário do postulado pela TII, o compreendedor cairia em<br />

garden-path.<br />

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Entretanto, como reportam Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), Taraban &<br />

McClelland (1988), argumentaram contra essa interpretação, alegando que a ausência de<br />

repetição de leitura de (9a) estava relacionada a fatores semânticos. Para corroborar a<br />

contra-argumentação, T. & M. (op. cit.) desenvolveram testes em que o viés também<br />

conduziria a aposição do SP ao SN e obtiveram tempos de leitura igualmente rápidos<br />

para ambas as ligações com presença de influência da informação semântica.<br />

Quanto ao processamento de orações relativas reduzidas em inglês, Tanenhaus,<br />

Carlson & Trueswell (op. cit.) analisam resultados que permitem verificar a influência<br />

do traço [+ animado] no processamento de frases como (10) The lawyer sent the memo<br />

arrived late, em que os sujeitos testados chegam a um labirinto, porque, devido a<br />

coincidência nas formas verbais do perfeito e do particípio passado, preferem interpretar<br />

the lawyer como sujeito de uma oração principal.<br />

Observa-se a tendência desse mesmo traço ser interpretado preferencialmente<br />

como agente também em fronteiras de oração com ambigüidade, como nas sentenças<br />

(11):<br />

(11a) Even before the police stopped the driver was getting nervous.<br />

(11b) Even before the truck stopped the driver was getting nervous.<br />

que conduziram os sujeitos ao garden-path em (11a), devido ao favorecimento de um<br />

leitura causativa quando sujeito é animado contra uma interpretação intransitiva para<br />

sujeito inanimados.<br />

Sentenças com dependência de relações a distância consistem em outro tipo de<br />

configuração sintática em que, segundo Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), as<br />

representações temáticas são usadas na interpretação. Nesse sentido, um sintagma<br />

interrogativo ou relativo deve estar associado a uma categoria vazia da oração seguinte,<br />

como nos exemplos (12):<br />

(12a) Wich customeri did the secretary call __i about the article?<br />

(12b) That’s de guy whoi Susanj wanted PROj to marry __i.<br />

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Sob uma explicação baseada na informação temática, assume-se que o<br />

preenchedor pode ser associado diretamente ao papel temático do verbo tão logo este<br />

seja reconhecido. Os autores referem-se a estudos, como o de Tanenhaus, Boland,<br />

Garnsey & Carlson (1989), que sugerem uma associação dos preenchedores de<br />

categorias vazias a representações temáticas ao invés de sintáticas, porque o verbo torna<br />

disponível um con<strong>jun</strong>to de papéis temáticos. Esse postulado se opõe ao de Frazier et al.<br />

(1983), que propõem um atraso no uso de informação semântica.<br />

Na acepção de Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), o significado da<br />

estrutura temática do verbo permite que leitor e ouvinte construam rapidamente um<br />

esquema de representação que inclua os componentes centrais da situação descrita pelo<br />

verbo. Tal representação desempenha um importante papel, propiciando ao sistema de<br />

compreensão o desenvolvimento de interpretações tão rápidas.<br />

A leitura desses Autores comprova a hipótese de que a informação temática<br />

permite desambiguação de uma sentença, na medida em que auxilia o parser a<br />

selecionar uma entre as possibilidades morfológicas vislumbradas. O paralelismo dessa<br />

concepção teórica não está relacionado à busca realizada por vários parsers completos<br />

em paralelo, mas a acessos paralelos morfológicos e, mais geralmente, ao acesso<br />

imediato e uso de informação lexical. Assim, os papéis temáticos fornecem um<br />

mecanismo para o conhecimento geral e contexto interagirem com o processamento<br />

sintático na resolução da ambigüidade sintática, eliminando o número de garden-paths,<br />

freqüentemente atribuídos a estratégias de aposições sintáticas (p. 231).<br />

Os Autores ressaltam que o processamento temático depende, pelo menos<br />

parcialmente, do output do processamento sintático, visto que avaliar o encaixe de um<br />

constituinte em um particular papel depende de um “parseamento” correto desse<br />

constituinte. Os processamentos temático e sintático de fato interagem, já que a<br />

informação sintática pode ser utilizada para evitar uma atribuição temática incorreta e<br />

vice-versa. Portanto, há evidências de que a informação temática pode ser usada na<br />

seleção entre duas análises sintáticas em competição, sob a hipótese de que existe um<br />

certo grau de paralelismo (talvez lexicalmente baseado) no sistema de compreensão<br />

(p.232).<br />

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Os modelos e hipóteses resumidos aqui encerram valiosos avanços nas pesquisas<br />

sobre processamento sentenças. A adequação de um em detrimento de outros<br />

dependerá do tipo de sentença produzida, visto que não há evidência categórica em<br />

favor de um modelo. A aplicação de tais modelos na compreensão de orações reduzidas<br />

em português com ambigüidade total será discutida adiante.<br />

DESENHO DO EXPERIMENTO<br />

Nesta seção, será apresentada a descrição dos testes informais realizados com<br />

alunos de graduação de uma universidade localizada no Rio de Janeiro. Trata-se de<br />

testes informais, porque não foi possível realizar experimentos com aparelhos capazes<br />

de medir o tempo de processamento e a presença de releitura das sentenças. Devido à<br />

sua natureza preliminar, esses testes informais podem apresentar falhas metodológicas.<br />

As sentenças que compuseram o teste foram extraídas ou adaptadas de um<br />

manual de redação (MORENO & GUEDES, 1991), com intuito de verificar se o<br />

conceito de ambigüidade fornecido pelo manual tem uma evidência psicológica, ou seja,<br />

se em termos de processamento essa ambigüidade é percebida. Foi testada a<br />

compreensão de orações reduzidas de gerúndio, de particípio e de infinitivo.<br />

Os sujeitos receberam um bloquinho com oito frases, uma em cada folha, na qual<br />

continha uma pergunta no verso, para evitar releitura e para explorar, ao máximo,<br />

respostas-reflexo. Nesse sentido, também solicitou-se que a tarefa fosse realizada o<br />

mais rápido possível. A pergunta do tipo QU- foi concebida com objetivo de indagar<br />

sobre o sujeito 14 da ação expressa pelo verbo da oração reduzida. Assim, os indivíduos<br />

liam a frase, viravam a folha e respondiam à questão: por exemplo, à sentença<br />

Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso seguia-se a pergunta Quem<br />

estava enterrado?. Não havia qualquer tipo de enunciado, a tarefa foi solicitada<br />

oralmente pelo pesquisador. Foram obtidos oito testes de cada grupo de sentenças, que<br />

podem ser verificados em anexo.<br />

14 Toma-se por sujeito uma entidade sobre a qual é veiculada alguma informação ou condição expressa<br />

pelo verbo, à qual pode ser atribuído papéis temáticos de agente,alvo, tema, recipiente etc.<br />

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Há diferentes tipos de ambigüidade em conformidade com a presença de<br />

referentes 15 candidatos a sujeito: (i) sentenças que apresentam explicitamente dois<br />

referentes aptos a sujeito da reduzida; (ii) aquelas que expressam um referente explícito<br />

e um indeterminado (em terceira pessoa) como possíveis sujeitos; e (iii) sentenças que<br />

só oferecem um provável sujeito indeterminado, em terceira pessoa.<br />

Alguns casos de ambigüidade que podem ser questionados, porque se relacionam<br />

à ordem em que as sentenças foram configuradas. As dúvidas surgidas na interpretação<br />

de algumas sentenças parece corroborar a inadequação de se ensinar construção de<br />

frases a partir de períodos descontextualizados. Entretanto, esses casos duvidosos<br />

foram mantidos no teste como sentenças para controle, servindo de contraponto para<br />

análise de outras ocorrências de ambigüidade.<br />

Em seguida, expõem-se as frases e observações acerca do objetivo a ser atingido<br />

com cada sentença, que estão arroladas conforme o valor sintático (adjetivas,<br />

adverbiais) e o tipo de forma verbal nominal da oração reduzida.<br />

(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de marimbondos.<br />

(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho de<br />

marimbondos.<br />

(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso.<br />

(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo.<br />

(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo.<br />

(3b) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo.<br />

(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.<br />

(5) O quadro afixado na parede caiu.<br />

(6) Vimos várias reses, descendo a serra.<br />

15 O termo referente é utilizado para designar uma representação mental evocada por uma forma<br />

lingüística que ativa um con<strong>jun</strong>to de conhecimentos.<br />

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Carvalho.<br />

a pele.<br />

(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para Paulo<br />

(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo Carvalho.<br />

(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob<br />

(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob<br />

a pele de Pedro.<br />

(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida.<br />

(10a) Preso e jogado na prisão, o coração de sua mãe não agüentou.<br />

(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.<br />

(11a) Ressentido e humilhado pelo barão, um plano de vingança começou a<br />

surgir em sua mente.<br />

mente.<br />

(11b) Ressentido e humilhado, um plano de vingança começou a surgir em sua<br />

(12) Navegando com todas as velas ao vento, a ilha foi avistada.<br />

(13a) Depois de pôr minhoca no anzol, um peixe começou a beliscar.<br />

(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias iniciou a festa.<br />

(14) Vimos várias reses, ao descer a serra.<br />

(15) O anel foi encontrado pelo policial.<br />

(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.<br />

Busca-se, através das sentenças (1), (2), (8), (10) e (13), testar a interferência dos<br />

traços semânticos [± humano] e [± animado] na atribuição dos argumentos do verbo,<br />

pois a influência da informação semântica no parsing consiste na principal hipótese<br />

deste trabalho.<br />

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A sentença (3a), arrolada como ambígua no livro didático, não foi analisada<br />

como tal neste artigo. Seria incoerente um guarda portar jóias ao prender uma pessoa, a<br />

hipótese é que o contexto do período, devido ao papel temático do verbo prender da<br />

oração principal, encaminha a interpretação do sujeito da adjetiva reduzida. A frase<br />

(3b) foi elaborada para verificar, se a interpretação seria diferente da de (3a), caso a<br />

palavra guarda não figurasse na oração principal. Acredita-se que a classificação de<br />

ambígua dada ao período deva-se à posição da oração reduzida, a qual deveria ser<br />

expressa após a principal, como em (4), (5) e (6), inseridas no teste como distratoras.<br />

O con<strong>jun</strong>to de sentenças (11), do qual (11a) também foi classificada por Moreno<br />

& Guedes (1991) como ambígua, inclui-se no mesmo problema levantado em relação à<br />

(3), sendo que só podem apresentar sujeito em terceira pessoa.<br />

As frases (7), com as quais se visa observar a interferência de conhecimento de<br />

mundo na seleção para o sujeito, apresentam três tipos de referente: Machado de Assis,<br />

considerado um escritor conhecido do publico universitário; Murilo Rubião, também<br />

escritor, supostamente menos conhecido; e Paulo Carvalho, inventado. Espera-se que a<br />

atribuição de calouro ao sujeito da reduzida suscite menos escolhas de Machado de<br />

Assis como sujeito em relação aos demais.<br />

O período (9) talvez tenha sido apontado como ambíguo no manual devido à<br />

inversão das orações e por não haver um candidato explícito a sujeito; entretanto,<br />

acredita-se que, sem contexto mais amplo, pode-se atribuir um agente indeterminado<br />

para o verbo verificar, sem que haja problemas no processamento.<br />

A sentença (12), também analisada como ambígua, apresenta três referentes<br />

como possíveis sujeitos: indeterminado, tripulação [+ humano] e barco [-<br />

animado]. Supõe-se que o verbo navegar selecione preferencialmente barco como<br />

sujeito. Os períodos (14), (15) e (16) foram inseridos no teste como distratores.<br />

RESULTADOS E DISCUSSÃO<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 61


A discussão será apresentada subseqüentemente às tabelas com os resultados de<br />

cada frase. Assim, nas tabelas abaixo podem ser verificadas as ocorrências de cada<br />

sujeito das sentenças (1) a (3).<br />

Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />

(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de o menino<br />

marimbondos.<br />

7 / 8<br />

(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho pára-quedista<br />

de marimbondos.<br />

7 / 8<br />

um ninho de marimbondo<br />

1 / 8<br />

um ninho de marimbondo<br />

1 / 8<br />

Sujeito da or. reduzida<br />

Sentenças<br />

(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso. o cachorro o osso<br />

0 / 8<br />

8 / 8<br />

(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo. o cachorro o sapo<br />

1 / 8<br />

7 / 8<br />

Sujeito da or. reduzida<br />

Sentenças<br />

(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo. o guarda<br />

Jerônimo<br />

0 / 8<br />

8 / 8<br />

(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo. Sérgio<br />

Jerônimo<br />

0 / 8<br />

8 / 8<br />

Nas sentenças (1), os indivíduos escolheram a primeira análise disponível ao<br />

atribuir os marcadores sintáticos às orações, ligando primeiro o referente disponível,<br />

nesse caso, com o traço [+ humano], à posição de sujeito da reduzida. Registrou-se,<br />

entretanto, duas escolhas para um ninho de marimbondo, as quais representariam a<br />

postulação de uma estrutura com um nó a menos. Tal escolha pode ser devida a um<br />

efeito de recência para aqueles que ao responder a questão optaram pelo SN mais<br />

recentemente armazenado na memória.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 62


Cabe ressaltar que essas sentenças foram ligeiramente modificadas em relação às<br />

que motivaram este trabalho (cf. Introdução), quando em três sujeitos testados, também<br />

informalmente, foram obtidas duas escolhas para um ninho de marimbondo contra o<br />

menino, talvez em função do sintagma galho mais alto da árvore, o que teria deixado a<br />

sentença mais longa, conduzindo a escolha do último SN plausível (efeito de recência)<br />

ou a interpretação de que um menino não deveria estar em um galho mais alto. Devido<br />

a essas dúvidas, decidiu-se simplificar o SP. Contudo, em razão do resultado expressivo<br />

para o menino, caberia uma nova testagem para verificar se tal quadro seria mantido<br />

com o SP galho mais alto da árvore.<br />

Os resultados das sentenças (2) também apontaram para escolha que exprime<br />

uma estrutura com menor número de nós, já que o osso foi categoricamente selecionado<br />

em (2a) e o sapo, quase categórico, em (b), não obstante a diferença entre os traços<br />

animado e inanimado dos potenciais sujeitos. O registro de um caso de opção por o<br />

cachorro em relação a o sapo poderia estar ligado à implausibilidade de sapos estarem<br />

enterrados em quintais e a possibilidade de um cachorro ter cavado um buraco grande o<br />

suficiente para o engolir, embora em termos atribuição de marcadores sintáticos, a<br />

opção por o cachorro represente um nó a mais na estrutura frasal.<br />

É interessante refletir sobre a diferença entre as orações de (1) e (2), no que tange<br />

à posição dos referentes preferidos para sujeito, pois nas sentenças (1) há uma carga de<br />

processamento maior em razão dos SPs da árvore e de marimbondo em relação a<br />

(2). Em se imaginando um parsing imediato, que vai construindo hipóteses à medida<br />

que cada palavra vai sendo percebida, o primeiro candidato a sujeito da reduzida seria,<br />

de fato, um dos escolhidos; entretanto, frente a sentenças menores, o parsing teria<br />

construído os marcadores após o término das orações, aguardando um referente mais<br />

plausível que cachorro. Haveria uma relação entre o uso estratégias semânticas e carga<br />

de processamento, já que a percepção visual pode antecipar uma tarefa mais custosa<br />

para memória de processamento em caso de sentenças longas?<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 63


Embora não tenha sido possível medir o tempo de processamento das sentenças,<br />

é possível postular que o parsing foi construindo a análise incrementalmente e, ao<br />

interpretar um referente como um sujeito plausível para a reduzida, fez sua escolha. No<br />

caso de (2), a escolha preferida coincide com uma estrutura mais simples; em (1) ocorre<br />

o oposto, o que pode revelar a criação de um esquema de representação para as<br />

sentenças com base no contexto semântico.<br />

Os resultados de (3), utilizadas para controle, corroboram a influência das<br />

informações semânticas sobre o parsing, já que as duas sentenças apresentam a mesma<br />

quantidade de marcadores sintáticos (10 nós). Tal resultado reforça também o princípio<br />

cognitivo do parsing de Bever (1970), segundo o qual qualquer seqüência de nome-<br />

verbo-nome corresponde a ator-ação-objeto, relacionando a ordem da estrutura<br />

superficial à informação semântica. Essa relação poderia ser um recurso tomado pelo<br />

parsing, diante de dois possíveis temas para a oração reduzida. A questão da ordem<br />

entre a orações principal e subordinada reduzida também seria um objeto de estudo<br />

relevante para o processamento de sentenças, principalmente em se observando os<br />

resultados das sentenças seguintes.<br />

Sentenças Sujeito da or. reduzida Total<br />

(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.<br />

(5) O quadro afixado na parede caiu.<br />

(6) Vimos várias reses, descendo a serra.<br />

o rapaz<br />

o quadro<br />

várias reses<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 64<br />

8 / 8<br />

7 / 8<br />

6 / 8


As sentenças (4) a (6) podem ser interpretadas como evidência de que o<br />

ordenamento das orações deve ter relevância psicológica, pois no período (6), com<br />

ambigüidade, em que apenas dois testes apresentaram a resposta nós, observou-se um<br />

resultado próximo ao de (4) e de (5). Tal resultado também corrobora, em termos<br />

didáticos, a prescrição da ordem principal-subordinada em alguns contextos. Para a<br />

oração (5), foi computado um caso de ninguém como resposta, o que pode estar<br />

relacionado ao uso do pronome relativo quem na pergunta, porque, em outro teste, um<br />

indivíduo corrigiu a pergunta substituindo o quem por o que, ao dar a resposta quadro<br />

para essa frase. Esses “percalços” de experimento revelam a rapidez com que a reflexão<br />

atua nos testes, bem como as informações temáticas.<br />

de infinitivo:<br />

As sentenças (7) apresentaram a seguinte seleção para sujeito da oração reduzida<br />

Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />

(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para<br />

Paulo Carvalho.<br />

(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo<br />

Carvalho.<br />

Machado de Assis<br />

Tais períodos foram postulados para testar a interferência do conhecimento de<br />

mundo na seleção para o sujeito da oração infinitiva (PRO), já que em termos de<br />

estratégia processamento, nos dois casos há o mesmo número nós, assim a primeira<br />

análise disponível não seria influenciada por um menor custo de<br />

processamento. Devido ao PRO ser arbitrário, mesmo que a oração reduzida estivesse<br />

após a principal ter-se-ia a possibilidade de ligá-lo a Machado de Assis/Murilo Rubião<br />

e Paulo Carvalho. Outro dado que comprova a arbitrariedade desse PRO é o fato de<br />

um dos indivíduos ter selecionado ninguém como resposta à pergunta quem era<br />

calouro. Por outro lado, esse resultado também pode revelar a suposição de que Paulo<br />

Carvalho também é escritor, ou ainda o fato de a ambigüidade ter sido detectada.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 65<br />

3 / 8<br />

Murilo Rubião<br />

8 / 8<br />

Paulo Carvalho<br />

4 / 8<br />

Paulo Carvalho<br />

0 / 8


Portanto, ao não ser detectada a ambigüidade, um dos caminhos para processar<br />

essa frase seria coindexar o PRO ao primeiro SN encontrado na cadeia sintagmática<br />

com o traço [+ humano]; por isso, plausível. Tal estratégia pode ser evidenciada a partir<br />

dos resultados de (7a), em que a diferença entre Machado de Assis e Paulo Carvalho é<br />

praticamente irrelevante, e de (7b), cujo primeiro SN plausível foi selecionado<br />

categoricamente. Por outro lado, a seleção de Paulo Carvalho, em (7a), pode ser uma<br />

evidência da influência imediata do conhecimento de mundo no parsing, ou seja, em se<br />

tratando de um parser imediato, as respostas de (7b) evidenciariam uma mudança de<br />

escolha em relação a (7a), com base no conhecimento enciclopédico.<br />

Os resultados das sentenças (8), a seguir, também se relacionam à indexação de<br />

PRO e à interferência do traço [+ humano]:<br />

Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />

(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico<br />

deve ser injetado sob a pele.<br />

(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico<br />

deve ser injetado sob a pele de Pedro.<br />

A presença de flexão em dessensibilizado na sentença (8b) deveria conduzir a<br />

coindexação do PRO ao SN o anestésico ou a um sujeito em terceira pessoa, dada a<br />

natureza genérica do sujeito do infinitivo, como ocorreu em (8a), para a qual foi<br />

postulado o SN o paciente como sujeito. O resultado obtido com (8a) parece evidenciar<br />

que se busca um referente [+ humano] para os papéis de tema ou de agente do verbo,<br />

mesmo quando o contexto não o fornece explicitamente, mas este é autorizado através<br />

de uma categoria vazia. Essa interpretação pode ser corroborada com os resultados de<br />

(8b), que oferece um candidato a alvo da ação verbal com os referidos traços, não<br />

obstante à concordância e à necessidade de acrescentar mais nós ao marcador<br />

frasal. Com a sentença (9), em que o contexto é menos rico e envolve um tema sobre<br />

referentes inanimados obteve-se as seguintes respostas:<br />

o anestésico<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 66<br />

1 / 8<br />

o anestésico<br />

1 / 8<br />

a pele<br />

1 / 8<br />

a pele de Pedro<br />

5 / 8<br />

o paciente<br />

6 / 8<br />

ninguém<br />

2 / 8


Sentença Sujeito da or. reduzida<br />

(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida. alguém<br />

Como pode ser observado, a partir dos resultados, os sujeitos que participaram<br />

do teste não revelaram uma preferência marcante para seleção do sujeito de (9). A<br />

pergunta que surge a partir dessas respostas é se os indivíduos que optaram por não sei,<br />

não se sabe, não diz teriam percebido a ambigüidade ou se estão se referindo a um<br />

sujeito genérico, permitido pelo contexto (PRO), em relação àqueles que responderam o<br />

mecânico/alguém.<br />

Essa sentença, incluída no teste para um confronto com processamento de<br />

sentenças com referentes [+ humanos], foi interpretada pelo pesquisador como uma<br />

sentença de fácil decisão sobre o sujeito da oração reduzida, dentro das opções<br />

oferecidas pelo contexto; entretanto, houve inclusive um teste em branco sobre essa<br />

sentença. Essa dificuldade seria advinda de seu contexto pobre? O fato é que não se<br />

pode deixar de considerar a influência de contextos que favorecem a atuação de uma<br />

entidade com traços [+ humano] sobre as aposições feitas pelo parser, facilitando sua<br />

decisão.<br />

processador.<br />

o mecânico<br />

Os resultados das sentenças (10) e (11) reforçam essa interferência sobre o<br />

3 / 8<br />

não se sabe<br />

não diz<br />

não sei<br />

3 / 8<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 67


Sentenças Sentenças Sujeito da or. Reduzida Sujeito da or. reduzida<br />

(11a) (10a) Ressentido Preso e jogado e humilhado na prisão, pelo o coração barão, de um sua aquele mãe não que agüentou. tramou o ele filho<br />

plano de vingança começou a surgir em sua<br />

mente.<br />

7 / 8<br />

alguém não mencionado<br />

2 / 8<br />

(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.<br />

2 / 8 3 / 8<br />

o irmão de sua mãe<br />

(11b) Ressentido e humilhado, um plano de uma pessoa<br />

vingança começou a surgir em sua mente<br />

3 / 8<br />

8<br />

ele<br />

/ 8<br />

3 / 8<br />

eu / o sujeito<br />

2 / 8<br />

As sentenças (10) podem evidenciar um processamento imediato e paralelo do<br />

parsing, que opta por uma interpretação tão logo perceba um referente plausível para<br />

ocupar uma posição sem argumento determinado na oração reduzida, mesmo no caso de<br />

(10a), em que esse referente está representado por um SN mais complexo – o coração<br />

de sua mãe –, levando o compreendedor a extrair o sujeito da reduzida do ad<strong>jun</strong>to<br />

adnominal da principal – de sua mãe.<br />

Pode-se estabelecer para os casos de orações reduzidas antepostas à principal um<br />

processamento similar ao que é utilizado no “parseamento” de sentenças com<br />

dependências de longa distância, incluindo-se as reduzidas de particípio ou<br />

gerúndio. Nesse contexto, o processamento ocorreria como se a oração reduzida tivesse<br />

deixado uma lacuna a ser preenchida à medida que as informações da oração principal<br />

fossem sendo percebidas, considerando as possibilidades de indexação do<br />

referente-sujeito para essa lacuna. Como os resultados vêm revelando, essa indexação é<br />

influenciada por fatores semânticos na seleção de sujeitos em contextos ambíguos.<br />

Os resultados de (11), que demonstram uma tendência a postular um executor da<br />

trama, serviriam como evidência de uma busca por informações semânticas plausíveis,<br />

para representação de um esquema capaz de auxiliar o sistema de compreensão, pois os<br />

sujeitos testados procuraram, através de várias formas, expressar essa representação<br />

esquemática, a despeito de um contexto mais pobre que o de (10).<br />

Seguem-se, abaixo os resultados das sentenças (12) e (13):<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 68


Sentenças Sentenças Sujeito da or. Sujeito Reduzida da or. Reduzida<br />

(13a) (12) Navegando Depois de com pôr todas minhoca as velas no anzol, ao vento, um a peixe ilha foi Alguém avistada. / o pescador o barco / o navio oculto ele / / indefinido não sei / não se<br />

começou a beliscar.<br />

sabe / não diz<br />

4 / 8<br />

2 / 8<br />

7 / 16<br />

9 / 16<br />

(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias<br />

iniciou a festa.<br />

Os resultados da sentença (12) consistem em uma espécie de controle para a<br />

tendência de se postular um sujeito com traço [+ humano] sempre que o contexto<br />

temático o permite. Observe-se que, apesar da presença do verbo navegar, o qual pode<br />

selecionar uma entidade [- humana] para executor da ação, nesse caso, explicitamente<br />

expresso na frase, aventou-se em um teste a tripulação como sujeito. Houve, ainda, um<br />

caso de escolha de todas as velas, opção que pode estar relacionada à necessidade desse<br />

processador apor o referente mais próximo ao verbo como sujeito, ou ao fato de em uma<br />

leitura rápida, o aluno não ter entendido a sentença. Os casos de não sei, não se sabe<br />

etc. podem representar a percepção da ambigüidade ou a postulação de um sujeito<br />

indeterminado, não nomeado.<br />

As sentenças (13), que figuraram cada uma em dois testes, consubstanciam mais<br />

uma evidência em favor de uma influência do contexto temático e da tendência em se<br />

atribuir a situação expressa a uma entidade personificada. Em (13b), cujo contexto<br />

favoreceria a seleção desse tipo de entidade, essa preferência foi corroborada, pois,<br />

mesmo aos sujeitos indeterminados imputou-se tal traço. Registrou-se um teste com a<br />

resposta “sujeito em terceira pessoa (?)”, que talvez esteja expressando uma percepção<br />

da ambigüidade, embora em nenhum teste tenha-se verificado respostas com duas<br />

possibilidades.<br />

o mestre de cerimônias<br />

13 / 16<br />

A sentença (14) Vimos várias reses, ao descer a serra, usada para controle das<br />

sentenças reduzidas teve o PRO categoricamente indexado a um pro. Ao se confrontar<br />

o processamento dessa sentença com o de (6) Vimos várias reses, descendo a serra, que<br />

teve seis respostas para várias reses como sujeito da reduzida, pode-se questionar sobre<br />

uma possível diferença entre o parsing de orações reduzidas de gerúndio e de infinitivo;<br />

e sobre uma possível distinção relacionada a presença de preposição.<br />

o instalador<br />

2 / 16<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 69


As sentenças (15) e (16), abaixo, colocadas no teste como distratoras<br />

apresentaram resultados praticamente categóricos, a exceção de uma resposta ninguém<br />

para (16), devido à pergunta ter sido iniciada pelo pronome interrogativo quem.<br />

(15) O anel foi encontrado pelo policial.<br />

(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.<br />

Para avaliar satisfatoriamente as tendências apontadas pelos testes, seria<br />

necessário utilizar experimentos de leitura autocontrolada, a fim de verificar o tempo de<br />

processamento de sentenças, aliado a uma checagem da presença de releitura. Mesmo,<br />

em se tratando de testes informais, considera-se que há alguns ajustes a serem feitos, no<br />

sentido de controlar efeitos inesperados que favoreçam a reflexão sobre as respostas.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Não obstante a natureza preliminar e as possíveis falhas metodológicas, as<br />

sentenças testadas revelaram questões interessantes sobre o processamento de orações<br />

reduzidas em língua portuguesa, e, acima de tudo, demonstram que há muito a ser feito<br />

nessa área de compreensão sentencial.<br />

Acredita-se que tenha sido possível observar a relação entre parsing e<br />

informação semântica. Quanto à indagação sobre como essa informação é utilizada,<br />

considera-se prematura qualquer tipo de posicionamento nesse sentido.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 70


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CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA<br />

CINEGRAFISTA<br />

Regina Silva Michelli (<strong>UERJ</strong>)<br />

(...) ó Cesário Verde, ó Mestre,<br />

Ó do "Sentimento de um ocidental"!<br />

FERNANDO PESSOA, Álvaro de Campos.<br />

“Dois Excertos de Odes” (Fins de Duas Odes,<br />

Naturalmente).<br />

Leio até me arderem os olhos<br />

O livro de Cesário Verde.<br />

FERNANDO PESSOA, Alberto Caeiro. Poema III, “O<br />

Guardador de Rebanhos”.<br />

Cesário Verde (1855-1886) insere-se, cronologicamente, no período do realismo<br />

português. As características de sua poesia projetam-no, entretanto, como poeta antecipador do<br />

modernismo e, por isso, incompreendido em sua época. O realismo de Antero de Quental<br />

configura-se através de uma poesia intelectualizada, caracterizando as dificuldades de a “nova<br />

idéia” sustentar-se em meio aos ataques românticos, conclamando à luta, à ação social. António<br />

José Saraiva e Óscar Lopes asseguram que “Cesário Verde é o único poeta do grupo tido como<br />

realista que consegue romper, de facto, com a herança romântica”, renovando completamente a<br />

estilística tradicional da poesia portuguesa (1996, p.926).<br />

Cesário derrama-se poeticamente entre o campo, mostrando o trabalho com as uvas e a<br />

dificuldade de exportação, em meio a um quadro familiar (Nós), e a cidade, o “bulício”<br />

característico de Lisboa. Em O Sentimento dum Ocidental, focaliza o entardecer, os<br />

trabalhadores saindo das construções e oficinas, às seis horas da tarde (Ave Marias), enquanto o<br />

eu-lírico vaga por ruas e becos da cidade. Diferente do cavaleiro medieval, que buscava<br />

cumprir sua “demanda”, o eu-lírico parece deambular sem um objetivo claro, voltado apenas<br />

para a visão da realidade, para as emoções que ela lhe provoca e o registro dessas observações<br />

sob a forma de poesia.<br />

Como afirma Massaud Moisés, Cesário Verde fez poesia fixando os aspectos da<br />

realidade considerados até então a-poéticos, lançando sua atenção sobre “o prosaico diário,<br />

inclusive nos seus aspectos julgados repelentes, grotescos ou ridículos” (1974, p.216). Sua<br />

poesia flagra a vida que pulsa nas pequenas coisas, registrando o corriqueiro, o banal, o<br />

cotidiano: a (teórica) visão de uma vendedora de hortaliças, quando se dirige para o trabalho, é<br />

suficiente para provocar-lhe o ensejo de escrever (Num Bairro Moderno), da mesma forma que<br />

a simplicidade de um “pic-nic” no campo é motivo para a pintura impressionista – “Pinto<br />

quadro por letras, por sinais” (Nós) – de uma “aquarela” em que realça a beleza feminina (De<br />

Tarde).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 72


Sua linguagem é simples e coloquial, com vocabulário variado, expressando o dia-a-dia.<br />

Cesário Verde rebela-se contra o estilo requintado das estéticas clássicas, assumindo uma<br />

postura lingüística totalmente contrária aos padrões considerados ideais: “Acabou com a<br />

exigência de que as palavras viessem em traje de gala para poder figurar nas festas das letras”<br />

(PIRES,1966, p.135). Impossível admitir na poesia dessa época a presença de peixes podres<br />

gerando infecções (ainda que pareçam ressoar nos versos cesarianos as palavras com que<br />

Camões aborda o escorbuto n’ Os Lusíadas). A frase cesariana é curta, incisiva como um bisturi<br />

rasgando o verso: “Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.”(Contrariedades).<br />

A poesia e o fazer poético – a metapoesia – revelam-se preocupações de Cesário Verde,<br />

o que vai se consubstancializar efetivamente no modernismo. Em Contrariedades, Cesário<br />

desvela a sua condição de poeta (“Nas letras eu conheço um campo de manobras”), reflete sobre<br />

a forma (“apuro-me em lançar originais e exatos,/ Os meus alexandrinos...”, o que lhe granjeou<br />

a característica de parnasiano), afiançando sua preferência pela poesia (“não há questão que<br />

mais me contrarie/ Do que escrever em prosa.”): “De comum, entre Cesário Verde e os<br />

modernos, avulta a inquirição sobre as articulações do discurso, isto é, textos que se dobram<br />

sobre si mesmos fazendo da produção textual o objeto de indagação” (SILVEIRA, 1995a,<br />

p.299).<br />

A poesia cesariana assinala uma tensão entre o “fora” e o “dentro” do poeta: “Ao invés<br />

de retratar o objeto exterior, o poeta identifica-o com o seu mundo interior. A realidade objetiva<br />

funde-se, portanto, à realidade subjetiva, o que o afasta dos cânones realistas, onde predomina a<br />

“fotografia do real” (MOISÉS,1974, p.216). José Régio alerta para o fato de que a realidade é<br />

apenas um ponto de partida para o verdadeiro poeta, definindo a magnificência da obra de<br />

Cesário através da “luta amorosa entre um mundo exterior que poderosamente se impõe e um<br />

mundo interior que ao mesmo tempo assimila esse outro e lhe rege” (PIRES, 1966, p.140). A<br />

multiplicidade de planos e visões aparece em muitos de seus poemas:<br />

os acontecimentos e os temas surgem e desenvolvem-se em múltiplas direções, por<br />

vezes paralelas, por vezes divergentes, distanciando-se, reaproximando-se,<br />

entrecruzando-se para ao cabo se entrelaçarem ou interpenetrarem, vindo a constituir<br />

um con<strong>jun</strong>to poético harmonioso e completo. É o seu processo inédito das<br />

intercessões e entrecruzamentos de planos, panoramas, evocações e sentidos, na<br />

visão das coisas, o que caracteriza a quebra cesariana da unidade do assunto,<br />

ressalvada pela interpenetração dos temas e harmonia final do contexto. (MELO,<br />

1967, p.15)<br />

Em Contrariedades, observa-se o movimento de mergulhar em seu interior, conturbado<br />

pelas “contrariedades” do viver e pelas dificuldades do reconhecimento de seu valor pela crítica,<br />

e o vislumbrar “ali defronte” alguém em pior situação: a tísica, às voltas com o seu trabalho<br />

braçal, também ela abandonada, “devendo a conta à botica”.<br />

A poética cesariana adquire contornos que a aproximam do impressionismo. Tal<br />

característica já se observa nesse registro da impressão que a realidade provoca em seu espírito,<br />

com a interferência da subjetividade na captação da realidade visível, afastando o poeta dos<br />

cânones realistas. Segundo o professor Afrânio Coutinho, o objeto é apresentado pelas<br />

sensações e emoções que desperta na alma do artista, num dado momento, através dos<br />

sentimentos – em vez das coisas, as sensações das coisas (1997, p.325). A razão cede passo às<br />

sensações. Assim, “Uma cena é retratada por uma visão primeira, resultante de uma imagem<br />

que dentro dela se avultou e cuja impressão repentina e dominante passa a envolvê-la”<br />

(PIRES,1966, p.121). Sua arte é feita de impressões imediatas, de pinceladas, de sugestões<br />

diversas, compondo quadros de um autêntico pintor impressionista. O efeito produzido (as<br />

sensações) tem mais valor, artisticamente, que o próprio agente causador (“E fere a vista, com<br />

brancuras quentes,/ A larga rua macadamizada.”, Num Bairro Moderno).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 73


Há o domínio do momento, do fragmentário, do instável, do móvel, do subjetivo, sobre<br />

a continuidade e a permanência, pois a realidade é um processo em curso, um vir-a-ser. Cesário<br />

percebe o real, o momento, sem contornos definidos, dando a idéia de fugacidade. É um artista<br />

de instantâneos, de impressões rápidas e fugidias, captando o movimento (daí o uso de<br />

gerúndios) e a sua sensação diante do espaço.<br />

A valorização da cor, dos efeitos tonais e da atmosfera revela a influência da pintura:<br />

“Foi quando tu, descendo do burrico,/ Foste colher, sem imposturas tolas,/ A um granzoal azul<br />

de grão-de-bico/ Um ramalhete rubro de papoulas.” (De Tarde).<br />

A técnica impressionista empregada é o “pontilhismo”. Segundo Afrânio Coutinho, o<br />

pontilhismo define-se como a “pintura com palavras, captando a realidade não em estado de<br />

repouso, mas nas impressões e no conhecimento afetivo de aspectos e partes do real” (1997,<br />

p.326). Acrescenta ainda:<br />

Arte de cunho pictórico, o Impressionismo literário acompanha a técnica dominante<br />

na pintura com o “pontilhismo”, o “divisionismo”, acumulando sensações isoladas,<br />

detalhes, para a captação de um mundo de aparências efêmeras, que o leitor<br />

apreende, depois sintetizando, somando os aspectos parciais. O impressionista<br />

“inventa” paisagens, que parecem mais autênticas do que a realidade.<br />

(COUTINHO,1997, p.327-328).<br />

Pode-se afirmar que esta técnica, em Cesário, corresponde à multiplicidade de planos de<br />

sua câmera cinematográfica, que registra o deslocamento de seus olhos, sensações, sentimentos,<br />

trazendo para sua poesia um movimento, fruto da quebra de unidade temática, confirmada ainda<br />

por suas frases curtas, isoladas, fragmentárias.<br />

A própria sintaxe esquemática, oposta à sintaxe estruturada em que se abandonam a<br />

ordem lógica, as ligações con<strong>jun</strong>tivas coordenantes e subordinantes, é já característica do<br />

impressionismo. O modo imperfeito, que visa a dar ao leitor a impressão de que assiste ou<br />

testemunha os fatos descritos, bem como o emprego das formas perifrásticas, do gerúndio e do<br />

infinitivo regido por preposição (por expressarem o aspecto durativo da ação, como já foi<br />

apontado) são largamente encontrados nos poemas de Cesário.<br />

O poema O Sentimento dum Ocidental já evoca, a partir do próprio título, a presença de<br />

um sujeito que mostra, aqui, o seu sentimento de cansaço e de angústia, profunda melancolia a<br />

lhe corroer a alma. Apresenta a realidade como ela é, através de imagens que chocaram as<br />

“sensibilidades” daquela época e que valeram ao poeta a recomendação de Ramalho Ortigão<br />

para que fosse mais Cesário e menos Verde. O texto divide-se em quatro partes, focalizando a<br />

caminhada solitária do eu-lírico pela cidade de Lisboa, desde o entardecer (Ave-Marias) até a<br />

completa escuridão (Horas Mortas), entretecendo espaço e tempo com reflexões e sentimentos:<br />

Na história da poesia da cidade os poemas típicos de Cesário são algo inteiramente<br />

novo, pelo amor juvenil e constante à realidade concreta, vista com olhos de artista<br />

plástico, transposta em séries de instantâneos claros, exactos, flagrantes. (...) Em<br />

“Cristalizações”, “Num Bairro Moderno”, “O Sentimento dum Ocidental”<br />

descobrimos a figura integral de Lisboa. (PRADO COELHO, 1961, p.219)<br />

Analisando a primeira parte, observa-se na primeira estrofe que os elementos exteriores<br />

– cujas idéias são retomadas ao longo do poema – convergem para o interior: “as sombras, o<br />

bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”. Sensações visuais,<br />

auditivas e olfativas interagem com os sentimentos do eu-lírico.<br />

A segunda estrofe focaliza as sombras, mostrando o fechamento, a soturnidade de um<br />

espaço asfixiante, como se as nuvens pressionassem o homem restringindo-o à terra. Configurase<br />

um cenário em que a cidade adquire características londrinas, aproximação explicável pelo<br />

aspecto nebuloso e melancólico com que o eu-lírico percebe Lisboa.<br />

A terceira estrofe descreve a agitação de uma forma impressionista. Ilumina<br />

inicialmente o espaço exterior, observando a noção de perspectiva própria da pintura, com “os<br />

carros d’aluguer, ao fundo”. O foco converge depois para o interior do poeta, que reflete o<br />

descompasso de Portugal em relação aos outros países: sinaliza a felicidade dos que “ganham”<br />

mundo – o que se pode contrapor ao “desejo absurdo de sofrer” dos que permanecem –,<br />

enumerando várias cidades que lhe “ocorrem” sem que da série, em gradação, faça parte Lisboa.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 74


A próxima estrofe exemplifica cabalmente o impressionismo. À abertura, o emprego do<br />

verbo “Semelham-se” assinala a ligação com esta estética, pois semanticamente acusa uma<br />

comparação que evidencia um olhar individualizador, ao aproximar elementos díspares. Da<br />

mesma forma, as construções em andamento, comparadas a gaiolas, evidenciam o<br />

aprisionamento de que se ressente o ser humano nesse espaço escurecido, asfixiado pelas<br />

sombras. Os dois últimos versos, marcados por sensações auditivas (“ao cair das badaladas”),<br />

cinestésicas (“saltam de viga em viga”) e visuais (os carpinteiros, animalizados, parecem<br />

morcegos, não só pela movimentação, como pela escuridão da noite), mostram um flagrante em<br />

que a realidade (carpinteiros, última palavra da estrofe) perde sua primazia para as sensações<br />

despertadas no poeta e que, por isso, lhe são anteriores sintagmaticamente.<br />

Homem imerso no seu tempo, Cesário percebe o cotidiano das pessoas simples do povo,<br />

como os calafates em sua rusticidade, caracterizando as ações humanas através de verbos no<br />

presente. Tal qual um cinegrafista (e não um fotógrafo), a câmara do poeta registra o momento,<br />

o fragmentário, a cena em seu dinamismo. O exterior, entretanto, atua sobre o interior e eis<br />

Cesário embrenhando-se também pelos “becos” da alma (abandonando as “nossas ruas”), “a<br />

cismar” em sua errância pelos cais de hoje e de ontem. O que “evoca” é a grandiosidade<br />

passada, que não encontra reflexo nesse “monótono” presente, restando apenas as “sombras” a<br />

asfixiar a existência. Ontem, crônicas navais, baixéis e soberbas naus, heróis, aventuras,<br />

conquistas e a literatura salva – Os Lusíadas –, ainda que à custa de muitas lutas. Hoje, “o<br />

sentimento dum ocidental” desencantado, carros d’aluguer, botes e couraçado inglês,<br />

carpinteiros, calafates e varinas, trabalho em que o homem é animalizado e a literatura<br />

destruída, epopéia morta no fundo da gaveta (Contrariedades). Os trabalhadores estão secos,<br />

sem sangue, sem vida, enfadados, arengando, mostrando o conformismo de uma época em que<br />

não há o que fazer e, quando alguém o faz, é sem vitalidade. O pessimismo presente ratifica-se<br />

através de advérbios que projetam a negação no tempo e de um verbo que assinala “o<br />

movimento do presente, indo em direção ao futuro” (SILVEIRA,1995, p.18): “não verei<br />

jamais”. Poucas saídas parecem se oferecer a esse homem, configurando-se antes como fugas ou<br />

amargas reflexões: de um lado, o mundo, através da via férrea; de outro, o passado, pela via da<br />

memória. A movimentação que ele está captando também se passa em seu interior: os bulícios<br />

que hoje apresentam um mundo sem grandes horizontes foram outrora positivos, numa clara<br />

crítica à época e ao espaço presentes pela exaltação do passado. Sobre a mudança do tempo<br />

verbal, devido ao emprego do futuro no verso “Singram soberbas naus que eu não verei<br />

jamais!”, o professor Jorge Fernandes da Silveira assegura que a mudança é também uma<br />

“estratégia de fazer com que um modo de estar no presente resulte em passagem para o futuro.<br />

Ao invés de reduzir a evocação do passado ao saudosismo ou ao fatalismo, o poeta adianta uma<br />

das mais inovadoras proposições de interlocução com o passado: minimizar no presente a<br />

monumentalização do passado (SILVEIRA,1995, p.18). No dizer do Professor José Carlos<br />

Barcellos, “Cesário Verde está muito preocupado com a decadência do Portugal do séc. XIX,<br />

em que lhe coube viver. Melhor dizendo, incomoda-o o contraste entre a grandeza passada,<br />

consignada fundamentalmente no texto de Camões, e a miséria presente, que parece obstruir<br />

qualquer possibilidade de futuro”(1996, p.29-30).<br />

Próximas cenas, o retorno ao bulício da realidade exterior atenua a angústia e o<br />

“incômodo” interiores. Deslocando a sua câmara pelo que vê em torno, registra, em períodos<br />

curtos, impressões auditivas (o “tinir de louças e talheres”, “arengam dois dentistas”), visuais<br />

(“Um trôpego arlequim braceja numas andas”, “Os querubins do lar flutuam nas varandas”, “Às<br />

portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas”) e cinestésicas (“Vazam-se os arsenais e as oficinas”,<br />

comparando as pessoas a líquidos, em um tom pejorativo, uma vez que não assinala qualquer<br />

alegria nessa captação). Visualiza-se a imagem cotidiana da classe humilde dos trabalhadores<br />

em seu movimento diário.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 75


Chega-se, por fim, aos últimos elementos enumerados na primeira estrofe: o Tejo, a<br />

maresia. Acumulam-se sensações visual e tátil na percepção do rio, que reluz, viscoso: “Nas<br />

suas viagens em círculos pelas ruas de Lisboa, Cesário acaba sempre por chegar à beira dum rio<br />

fechado: o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a<br />

via da glória nacional” (SILVEIRA,1995, p.7). A figura das varinas é também mostrada de<br />

forma impressionista: o poeta apresenta de início a comparação com um “cardume negro”<br />

(entrecruzam-se, provavelmente, o elemento que elas portam em suas canastras, o peixe, com a<br />

cor de suas roupas de mulheres viúvas, pilastras da casa), seguindo-se a configuração heróica,<br />

mas masculinizada, dessas mulheres (“hercúleas”, “troncos varonis” como “pilastras”); elas<br />

trazem, no entanto, o traço da alegria na galhofa que caracteriza muitas vezes o alarido<br />

feminino. Se o presente é marcado pelo aspecto durativo do gerúndio, em uma ação que<br />

semanticamente acentua a força dessas mulheres, “Correndo com firmeza”, o futuro se lhes<br />

configura trágico na percepção do poeta: “embalam nas canastras/ Os filhos que depois<br />

naufragam nas tormentas”, reproduzindo-se no filho a história do pai, num determinismo<br />

característico do período: “Nas rimas das varinas, um sábio deslocamento de actantes é um<br />

valor forte na questão, agora inexorável, de nomear quem é sujeito nessa história de “varões<br />

valerosos” outrora assinalados, e hoje desempregados. (...) Com toda a certeza, as varinas de<br />

troncos varonis representam uma vontade outra de pôr em movimento a questão do ingresso de<br />

Portugal na modernidade.”(SILVEIRA,1995, p. 8-9).<br />

A última estrofe ratifica o desalento e o abandono das varinas, sem nada a se interpor<br />

entre elas e o chão áspero da realidade, sem nada a lhes proteger os pés: “Descalças!”. O último<br />

verso resume a miséria daquele contexto social, vulnerável às epidemias que se espalhariam por<br />

Lisboa (“Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/ E o Cólera também andaram na<br />

cidade”, Nós).<br />

José Carlos Barcellos atenta para o fato de que “Cesário parece vislumbrar uma<br />

possibilidade de recuperação da grandeza perdida, na reconstrução de um novo futuro por parte<br />

das camadas populares” (1996, p.30). Curioso, no entanto, é observar as marcas que trazem as<br />

configurações das personagens focalizadas. Os carpinteiros são comparados a morcegos; os<br />

calafates, aos magotes, aparecem “enfarruscados, secos; os lojistas enfadam-se e dois dentistas<br />

arengam, discurso provavelmente vazio de maior significação, enquanto que através de um<br />

“trôpego arlequim” metaforicamente denunciam-se os esforços de equilíbrio de um povo que<br />

mal caminha pelas próprias pernas, alçado a uma altura maior pelas “andas” (pernas de pau) que<br />

utiliza. Restam as crianças e as mulheres. As primeiras representam uma certa neutralidade e<br />

isenção face aos problemas vigentes, talvez devido à ingenuidade característica da faixa etária:<br />

são “querubins” flutuando ainda distantes desse contexto social, mas potencialmente capazes de<br />

uma ação futura (como o pequerrucho regando a trepadeira, no poema Num Bairro Moderno).<br />

Sobre as mulheres incide também o olhar diferente de Cesário, impregnado mesmo de carinho.<br />

As varinas trazem a marca da galhofa (tal como a tísica de Contrariedades, que canta) e da<br />

alegria, apesar da dor reinante. Contrapondo-se ao “arlequim” e ao eu-lírico, que erra pelos cais,<br />

correm com firmeza. São pilastras a sustentar a própria vida, sofrimento e graça conjugados:<br />

Ave Marias!<br />

Cesário Verde reflete sobre a sociedade de seu tempo e valoriza o cotidiano como forma<br />

de chamar a atenção aos menos favorecidos, percebendo-se em seus poemas uma acentuada<br />

solidariedade para com os humildes, os sofredores, os marginais da vida. Tal se observa Num<br />

Bairro Moderno. O poema evidencia, logo de início, as diferenças sociais: de um lado, a<br />

abundância presente nas casas apalaçadas, com jardins e porcelanas, pequerruchos regando<br />

trepadeiras, o sossego aconchegante de uma “vida fácil”; de outro, a escassez, presente na<br />

fragilidade de uma rapariga “magra”, com roupas rotas e “digestão desconhecida” (fome),<br />

obrigada a apregoar suas couves e hortaliças arrumadas em um gigo extremamente pesado para<br />

uma pessoa “pequenina”, com “bracinhos brancos”, “sem quadris”. Nas casas apalaçadas, a<br />

infância é preservada e registrada poeticamente: “Um pequerrucho rega a trepadeira/ Duma<br />

<strong>jan</strong>ela azul; e, com o ralo/ Do regador, parece que joeira/ Ou que borrifa estrelas; e a poeira/<br />

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.”<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 76


Como em um filme, o poeta focaliza a vendedora numa escada, sendo atendida por um<br />

criado que se sente investido da autoridade própria dos donos da casa, reproduzindo o mesmo<br />

discurso de poder dos que oprimem os menos favorecidos como ele: “Se te convém, despacha;<br />

não converses./ Eu não dou mais”. A desigualdade é reforçada pelo posicionamento espacial: a<br />

rapariga deve estar embaixo, ao pé da escada, enquanto o criado dirige-se a ela do “patamar”,<br />

atirando-lhe a moeda em paga do que comprara. Cesário desloca para o “cobre” adjetivos que<br />

caracterizam a rudeza do criado, enquanto os vegetais são humanizados, provável ponto de<br />

partida para a transfiguração que vão sofrer ao longo do poema (“um cobre lívido, oxidado,/<br />

Que vem bater nas faces duns alperces”).<br />

As hortaliças e legumes na cesta marcam a presença do campo – “um retalho de horta” –<br />

na cidade, na “larga rua macadamizada”. Os vegetais são assimilados à vida citadina, adquirindo<br />

forma humana segundo critérios plásticos (“por anatomia”, “Achava os tons e as formas”). O<br />

processo evidencia tanto o psiquismo do eu-lírico, quanto o fazer poético. O eu-lírico é tomado<br />

de um insight – “Subitamente – que visão de artista!” – e lança a hipótese da transformação,<br />

invocando a ajuda do sol, “o intenso colorista”, o que o aproxima do impressionismo.Volta-se<br />

para o real, captado através de diferentes sensações, inclusive sinestésicas (“Bóiam aromas”),<br />

como se necessitasse de tempo para as idéias amadurecerem. “Aos bocados”, vai efetivando a<br />

“recomposição” do real, sua transfiguração em linguagem poética.<br />

A figura criada apresenta traços femininos, com belas proporções carnais, seios, cabelos<br />

em tranças, colos, ventre, carnes tentadoras. A sensualidade transpira nas entrelinhas do texto. A<br />

fala da rapariga, que pede ajuda ao eu-lírico para levantar a cesta, parece interromper o fluxo de<br />

seus pensamentos. A realidade irrompe retardando e modificando o processo de transformação,<br />

que se opera no espaço do eu-lírico.<br />

O olhar do poeta novamente “deambula” pelo espaço exterior, reorganizando suas<br />

imagens internas. Tendo experimentado o peso do gigo, ele completa a transfiguração dos<br />

vegetais, realçando agora a masculinidade da figura, que passa a conduzir a rapariga: “E, como<br />

as grossas pernas dum gigante,/ Sem tronco, mas atléticas, inteiras,/ Carregam sobre o pobre<br />

caminhante,/ Sobre a verdura rústica, abundante,/ Duas frugais abóboras carneiras.”.<br />

O poeta apresenta-se como um alguém que porta uma filmadora, registrando realidades.<br />

De longe, em plano amplo, focaliza o bairro moderno, às dez horas da manhã, situando-se logo<br />

em seguida de forma avaliativa (judicativa) nesse contexto. Oferece um close da rapariga,<br />

mostrando sua atuação com o criado e a fala deste. Troca a visão do exterior pela “visão de<br />

artista” que interfere na captação da realidade. Escolhendo as imagens externas, mostra a<br />

movimentação de pessoas pela rua – a cidade acorda e toma seu café. O poeta corta a visão<br />

exterior e realiza seu projeto: fixando sua câmara na cesta, promove a transformação dos<br />

vegetais, no que é interrompido pela fala da rapariga. Como um narrador que se desdobra em<br />

personagem, direciona o foco para a sua aproximação da moça, que agora é tratada “sem<br />

desprezo”. Depois, seguindo “para o lado oposto”, como indicação cênica que perspectiva a<br />

distância necessária para retornar à transfiguração, o poeta desliza sua câmara pelo espaço<br />

circundante, até centrar o foco na cesta, completando a imagem criada.<br />

A figura feminina de classes menos favorecidas – representada na tísica de<br />

Contrariedade, nas varinas de O Sentimento dum Ocidental e na rapariga do gigo – conjuga<br />

tristeza e alegria, como se do ponto de vista do poeta essas figuras mal tivessem consciência da<br />

vida miserável a que estão condenadas. Cesário Verde, como elas, não faz apologia de reformas<br />

e ações sociais, como se “alienado” fosse; entretanto, denuncia com eloqüente precisão as<br />

desigualdades e as injustiças que apresenta em seus textos – “Que mundo! Coitadinha!” –,<br />

sentindo-se atingido por essa “desgraça alegre que me incita”, provavelmente a escrever.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 77


Cesário Verde é ainda inovador ao criar “em toda mensagem lírica portuguesa a poesiareportagem,<br />

que iria florescer nos campos modernos” (PIRES,1966, p.142). O poeta mostra as<br />

transformações ocorridas em Lisboa, com as novas “edificações somente emadeiradas” e seu<br />

surto das novas classes, a burguesia e o operariado, expondo condições de vida contrastantes.<br />

Desastre é um poema que ilustra essa característica cesariana: relata o acidente envolvendo “um<br />

rapaz servente de pedreiro” que “Caíra dum andaime e dera com o peito,/ Pesada e secamente,<br />

em cima duns tapumes.”: “No primeiro verso, o servente de pedreiro, que caíra, está já às portas<br />

da morte. Esta abertura surpreendente, sem preparação descritiva, serve não só para comunicar<br />

o insolite quotidien, mas também, paradoxalmente, para sugerir a normalidade relativa dum<br />

desastre que prescinde de explicação prévia” (LAIDLAR,1986, p.51). O texto caracteriza a<br />

vítima, o “desastre” e a reação dos transeuntes, através de uma visão cinematográfica que<br />

quebra com a linearidade da “história narrada”, da reportagem. As diferenças sociais avultam.<br />

O “garoto” é descrito como “enjeitado”, “Não conhecera os pais, nem aprendera a ler”.<br />

Trabalhava excessivamente “para não morrer/ De bagas de suor tinha uma vida cheia”; desde os<br />

seis anos de idade vendia jornais, “criança escrava”. Seu salário – “oito vinténs ou menos” –<br />

provavelmente mal dava para sopas, como a tísica, o que justifica a fraqueza de seu “corpinho”,<br />

o “fato remendado e sujo da caliça”. Conseguiu suportar “a doença, as privações cruéis”, mas<br />

sucumbe por fim. Estonteado e fraco, sente-se atraído pelo mar – “que abismo!” – e pelo sol –<br />

“que labareda!” –, indicando a liberdade, o calor e a energia vital de que carece para sobreviver:<br />

“rolou nas atrações da queda”.<br />

O início do texto mostra-o numa maca, a caminho do hospital. Sua trajetória é costurada<br />

pelos comentários das pessoas: o sofrimento contrasta de início com o silêncio indiferente de<br />

dândis e cocotes, passageiros e cocheiros; ao silêncio ou ignorância, pela morte, sobrepõe-se o<br />

descaso social. Na figura de “um bom poeta”, que ri e se embebeda, Cesário critica o interesse<br />

de quem vê no acidente um “episódio”, uma “cena tão faceta”, esvaziada de seu conteúdo<br />

trágico. Somente um preto e “a gente da província” (e a natureza, representada pela brisa)<br />

condoem-se da sorte do rapaz. As pessoas da cidade mostram a corrosão dos sentimentos<br />

humanos: “Esta expressão da anonímia citadina e da alienação dos indivíduos uns dos outros é<br />

característica social que não se manifesta nos versos “realistas” dos poetas contemporâneos de<br />

Cesário” (LAIDLAR,1986, p.52).<br />

A aristocracia se faz representar pelo “fidalgote” (cujo diminutivo acentua o tom<br />

pejorativo) acompanhado não de senhoras, mas de “duas prostitutas”; a soberba desse homem –<br />

já condenado no Auto da Barca do Inferno – aflora em sua indignação com os murmurinhos<br />

sobre o acidente, como se “um servente de pedreiro” representasse absolutamente nada no<br />

contexto social.<br />

A crítica cesariana recai também sobre o poder político. Um democrata comenta as<br />

intenções de um ministro prostituído por seu egoísmo, envolvido em manobras eleitoreiras ou<br />

amorosas: "Aonde irás, ministro!/ Comprar um eleitor? Adormecer num seio?". O eu-lírico<br />

manifesta-se no poema ao insinuar a culpa dos poderosos na desgraça dos humildes, suspeitando<br />

que aquele homem “– Conservador que esmaga o povo com impostos –/ Mandava arremessar -<br />

que gozo! estar solteiro! –/ Os filhos naturais à roda dos expostos...”. A ironia realça o absurdo<br />

da situação, sobre a qual “Deite-se um grande véu...”. O clero aparece compactuando com esse<br />

poder, evidenciando uma atitude que beira à adulação, rejeitada por Cesário no poema<br />

Contrariedades: “E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.”<br />

O tempo atravessa o texto: há referências ao sol e à sesta, momento em que se dá a<br />

queda; quando o enterro acontece, “anoitecia”, como se o sol pudesse se apartar desse mundo,<br />

reforçando a escuridão, as trevas. A solidão e o desamparo desse “desgraçado” em vida se<br />

reduplicam na morte, reafirmando a miséria humana: é enterrado “sem o adeus dos rudes<br />

camaradas:/ Isto porque o patrão negou-lhes a licença,” pretextando atraso nas obras. Ao<br />

“soletrar a narração do fato”, que aparece num local insignificante de algum jornal, o patrão<br />

demonstra o seu parco letramento, a sua ignorância sobre letras e ternura humana. Irritado,<br />

macula a própria verdade de uma morte em que lhe cabe uma grande parcela de culpa:<br />

“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 78


Se o herói se configura pelo feito que ultrapassa a medida humana, aqui é a dor que se<br />

mostra imensa, ultrapassando a condição humana de suportá-la: “As lutas, afinal,/ Deixavam<br />

repousar essa criança escrava,”. A sociedade é caracterizada pela corrupção, pela<br />

insensibilidade, pelo materialismo; a honra reside no plano do rapaz, aparecendo como advérbio<br />

de modo ao modificar o verbo que caracteriza sua morte: “Findara honradamente.” Diferente de<br />

Sísifo, o rapaz não consegue empurrar todo dia sua pedra para o andaime de uma obra que,<br />

longe de dignificar o ser, antes o avilta. Prometeu sem correntes físicas, sucumbe à vertigem da<br />

queda imposta aos pequenos, não pelos deuses, mas pela ganância desumana do próprio homem.<br />

Segundo Leyla Perrone-Moisés,<br />

Em poemas como "Num bairro moderno", "Cristalizações" e, sobretudo, "O<br />

sentimento de um Ocidental", o poeta revela uma notável intuição (mais do que uma<br />

consciência) dos desacertos sociais e das dores advindas do "progresso". Mas<br />

descobre, ao mesmo tempo, as possibilidades de exploração poética dessa nova<br />

realidade desconcertada e desconcertante. Com uma ousadia de que nem ele mesmo<br />

parecia se dar conta (já que esperava o reconhecimento de seu meio), Cesário<br />

enveredou por um caminho que só os modernistas do século seguinte poderiam<br />

reconhecer como fértil: a poesia que capta a estranheza oculta na banalidade e a<br />

música latente na coloquialidade. (...) A novidade de Cesário, no ambiente português<br />

de seu tempo, não podia ser reconhecida. Por isso, ele tinha razão em dizer numa<br />

carta: «literariamente parece que Cesário Verde não existe». 19 Nesse sentido, ele foi<br />

um "astro sem atmosfera". Seu relógio poético estava adiantado. Embora o não<br />

reconhecimento de seus pares magoasse o poeta, ele não fez qualquer concessão<br />

para ser melhor recebido. Como ele, os poetas do século XX aceitarão a perda da<br />

aura e praticarão uma poesia da realidade cotidiana, assumindo a tarefa de dar<br />

dignidade poética a uma matéria despoetizada.<br />

A modernidade de Cesário Verde, portanto, é hoje inquestionável, rompendo com toda<br />

uma tradição normatizadora que asfixia um poeta de sua estirpe. Um dos primeiros a consagrar<br />

sua importância foi Fernando Pessoa. Segundo o professor Jorge Fernandes da Silveira, “No<br />

seu modo diferente de estar na linguagem, de escrever Portugal, Cesário Verde vê o outro, a si<br />

mesmo e o outro de si mesmo. Só isto já lhe garante o título de pioneiro do modernismo<br />

português quase seu contemporâneo,”(SILVEIRA,1995, p.11), afirmando ainda que “Cesário rise<br />

para dentro, sabe-se, pós-modernamente, um homem português.” (SILVEIRA,1995, p. 23).<br />

Os flagrantes filtrados por olhar de poeta fazem de Cesário Verde um exímio observador<br />

da realidade humana de sua época. Sua visão transfigura-se em poesia para todos os tempos.<br />

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O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL<br />

Junqueiro<br />

I<br />

AVE-MARIAS<br />

Nas nossas ruas, ao anoitecer,<br />

Há tal soturnidade, há tal melancolia,<br />

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia<br />

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.<br />

O céu parece baixo e de neblina,<br />

O gás extravasado enjoa-me, perturba;<br />

E os edifícios, com as chaminés, e a turba<br />

Toldam-se duma cor monótona e londrina.<br />

Batem os carros d’ aluguer, ao fundo,<br />

Levando à via férrea os que se vão. Felizes!<br />

Ocorrem-me em revistas exposições, países:<br />

Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!<br />

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,<br />

As edificações somente emadeiradas:<br />

Como morcegos, ao cair das badaladas,<br />

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.<br />

A Guerra<br />

Voltam os calafates, aos magotes,<br />

De jaquetão de ombro, enfarruscados, secos;<br />

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,<br />

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.<br />

E evoco, então, as crônicas navais:<br />

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!<br />

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!<br />

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!<br />

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!<br />

De um couraçado inglês vogam os escaleres;<br />

E em terra num tinir de louças e talheres<br />

Flamejam, ao <strong>jan</strong>tar, alguns hotéis da moda.<br />

Num trem de praça arengam dois dentistas;<br />

Um trôpego arlequim braceja numas andas;<br />

Os querubins do lar flutuam nas varandas;<br />

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!<br />

Vazam-se os arsenais e as oficinas;<br />

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;<br />

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras.<br />

Correndo com firmeza, assomam as varinas.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 80


Vêm sacudindo as ancas opulentas!<br />

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;<br />

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras<br />

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.<br />

Descalças! Nas descargas de carvão,<br />

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;<br />

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,<br />

E o peixe podre gera os focos de infecção!<br />

Porto, Portugal a Camões, publicação extraordinária do<br />

Jornal de Viagens, 10 de <strong>jun</strong>ho de 1880.<br />

(Extraído de SILVEIRA, 1995, p.<br />

116-117)<br />

NUM BAIRRO MODERNO<br />

A Manuel Ribeiro<br />

Dez horas da manhã; os transparentes<br />

Matizam uma casa apalaçada;<br />

Pelos jardins estancam-se os nascentes,<br />

E fere a vista, com brancuras quentes,<br />

A larga rua macadamizada.<br />

Rez-de-chaussée repousam sossegados,<br />

Abriram-se, nalguns, as persianas,<br />

E dum ou doutro, em quartos estucados,<br />

Ou entre a rama dos papéis pintados,<br />

Reluzem, num almoço, as porcelanas.<br />

Como é saudável ter o seu conchego,<br />

E a sua vida fácil! Eu descia,<br />

Sem muita pressa, para o meu emprego,<br />

Aonde agora quase sempre chego<br />

Com as tonturas duma apoplexia.<br />

E rota, pequenina, azafamada,<br />

Notei de costas uma rapariga,<br />

Que no xadrez marmóreo duma escada,<br />

Como um retalho de horta aglomerada,<br />

Pousara, ajoelhando, a sua giga.<br />

E eu, apesar do sol, examinei-a:<br />

Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;<br />

E abre-se-lhe o algodão azul da meia,<br />

Se ela se curva, esguedelhada, feia,<br />

E pendurando os seus bracinhos brancos.<br />

Do patamar responde-lhe um criado:<br />

“Se te convém, despacha; não converses.<br />

Eu não dou mais”. E muito descansado,<br />

Atira um cobre lívido, oxidado,<br />

Que vem bater nas faces duns alperces.<br />

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Subitamente – que visão de artista! –<br />

Se eu transformasse os simples vegetais,<br />

À luz do sol, o intenso colorista,<br />

Num ser humano que se mova e exista<br />

Cheio de belas proporções carnais?!<br />

Bóiam aromas, fumos de cozinha;<br />

Com o cabaz às costas, e vergando,<br />

Sobem padeiros, claros de farinha;<br />

E às portas, uma ou outra campainha<br />

Toca, frenética, de vez em quando.<br />

E eu recompunha, por anatomia,<br />

Um novo corpo orgânico, aos bocados.<br />

Achava os tons e as formas. Descobria<br />

Uma cabeça numa melancia,<br />

E nuns repolhos seios injetados.<br />

As azeitonas, que nos dão o azeite,<br />

Negras e unidas, entre verdes folhos,<br />

São tranças dum cabelo que se ajeite;<br />

E os nabos – ossos nus, da cor do leite,<br />

E os cachos de uvas – os rosários de olhos.<br />

Há colos, ombros, bocas, um semblante<br />

Nas posições de certos frutos. E entre<br />

As hortaliças, túmido, fragrante,<br />

Como dalguém que tudo aquilo <strong>jan</strong>te,<br />

Surge um melão, que me lembrou um ventre.<br />

E, como um feto, enfim, que se dilate,<br />

Vi nos legumes carnes tentadoras,<br />

Sangue na ginja vívida, escarlate,<br />

Bons corações pulsando no tomate<br />

E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.<br />

O sol dourava o céu. E a regateira,<br />

Como vendera a sua fresca alface<br />

E dera o ramo de hortelã que cheira,<br />

Voltando-se, gritou-me, prazenteira:<br />

“Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...”<br />

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;<br />

E, pelas duas asas a quebrar,<br />

Nós levantamos todo aquele peso<br />

Que ao chão da pedra resistia preso,<br />

Com um enorme esforço muscular.<br />

“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”<br />

E recebi, naquela despedida,<br />

As forças, a alegria, a plenitude,<br />

Que brotam dum excesso de virtude<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 82


Ou duma digestão desconhecida.<br />

E enquanto sigo para o lado oposto,<br />

E ao longe rodam umas carruagens,<br />

A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,<br />

Descolorida nas maçãs do rosto,<br />

E sem quadris na saia de ramagens.<br />

Um pequerrucho rega a trepadeira<br />

Duma <strong>jan</strong>ela azul; e, com o ralo<br />

Do regador, parece que joeira<br />

Ou que borrifa estrelas; e a poeira<br />

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.<br />

Chegam do gigo emanações sadias,<br />

Oiço um canário – que infantil chilrada! –<br />

Lidam ménages entre as gelosias,<br />

E o sol estende, pelas frontarias,<br />

Seus raios de laranja destilada.<br />

E pitoresca e audaz, na sua chita,<br />

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,<br />

Duma desgraça alegre que me incita,<br />

Ela apregoa, magra, enfezadita,<br />

As suas couves repolhudas, largas.<br />

E, como as grossas pernas dum gigante,<br />

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,<br />

Carregam sobre o pobre caminhante,<br />

Sobre a verdura rústica, abundante,<br />

Duas frugais abóboras carneiras.<br />

Lisboa, Verão de1877 – Lisboa, brinde aos<br />

assinantes do Diário de Notícias (1877).<br />

(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 96-99)<br />

DESASTRE<br />

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,<br />

Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;<br />

Caíra dum andaime e dera com o peito,<br />

Pesada e secamente, em cima duns tapumes.<br />

A brisa que balouça as árvores das praças,<br />

Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,<br />

E dentro eu divisei o ungido das desgraças,<br />

Trazendo em sangue negro os membros ensopados.<br />

Um preto, que sustinha o peso dum varal,<br />

Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"<br />

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,<br />

Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 83


Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,<br />

Corriam char-à-bancs cheios de passageiros<br />

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,<br />

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.<br />

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,<br />

A rir e a conversar numa cervejaria,<br />

Gritava para alguns:"Que cena tão faceta!<br />

Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.<br />

Findara honradamente. As lutas, afinal,<br />

Deixavam repousar essa criança escrava,<br />

E a gente da província, atônita, exclamava:<br />

"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"<br />

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;<br />

Mornas essências vêm duma perfumaria,<br />

E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,<br />

Numa travessa escura em que não entra o dia!<br />

Um fidalgote brada a duas prostitutas:<br />

"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"<br />

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas<br />

E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.<br />

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,<br />

De bagas de suor tinha uma vida cheia;<br />

Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,<br />

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.<br />

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,<br />

Sentira a exalação da tarde abafadiça;<br />

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco<br />

E o fato remendado e sujo da caliça.<br />

Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,<br />

Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!<br />

"Os vultos, lá embaixo, oh! como são pequenos!"<br />

E estremeceu, rolou nas atrações da queda.<br />

O mísero a doença, as privações cruéis<br />

Soubera repelir - ataques desumanos!<br />

Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos<br />

Andara a apregoar diários de dez-réis.<br />

Anoitecia então. O féretro sinistro<br />

Cruzou com um coupé seguido dum correio,<br />

E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!<br />

Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"<br />

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,<br />

- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 84


1.1 Referências bibliográficas<br />

Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -<br />

Os filhos naturais à roda dos expostos...<br />

Mas não, não pode ser ... Deite-se um grande véu...<br />

De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!<br />

Todos os figurões cortejam-no risonhos<br />

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.<br />

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,<br />

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:<br />

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,<br />

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.<br />

E antes, ao soletrar a narração do fato,<br />

Vinda numa local hipócrita e ligeira,<br />

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:<br />

"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"<br />

Lisboa. Porto, O Porto, 30 de Outubro de<br />

1875.<br />

(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 90-92)<br />

BARCELLOS, José Carlos.“Camões, Cesário, Pessoa: permanência e ruptura”. Caderno<br />

Seminal. Rio de Janeiro: ED<strong>UERJ</strong>, ano 3, nº 3 , 1996.<br />

COUTINHO, Afrânio (direção) A literatura no Brasil – era realista, era de<br />

transição. v. IV, São Paulo : Global, 1997.<br />

FERRETTI, Regina Michelli. “Glória ao sempre verde Cesário”. In: Singularidades de uma<br />

cultura plural – XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura<br />

Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação<br />

Universitária José Bonifácio, Fundação Brasil-Portugal, 1992.<br />

LAIDLAR, John. “Na encruzilhada: “Desastre” de Cesário Verde”. Colóquio/ Letras, nº 93.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, set.1986. Volume especial sobre Cesário Verde.<br />

MELO, Martinho Nobre de. “Apresentação”. In: VERDE, Cesário. Cesário Verde,<br />

poesia. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1967, Coleção Nossos Clássicos.<br />

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1974.<br />

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Cesário Verde: um "astro sem atmosfera?" Sexto Congresso da<br />

Associação Internacional de Lusitanistas. http://www.geocities.com/ail_br/ail.html.<br />

PIRES, Orlando. Cesário Verde precursor e clássico. Rio de Janeiro: Imprensa Exército, 1966.<br />

PRADO COELHO, Jacinto do. Problemática da história literária. Lisboa: Ática, 1961.<br />

SARAIVA, António José e LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto:<br />

Porto, 1996.<br />

SILVEIRA, Jorge Fernandes. “Cesário – Duas ou Três Coisas”. In: VERDE, Cesário. Cesário<br />

Verde: todos os poemas. Org. e introdução de Jorge Fernandes da Silveira. Rio de Janeiro:<br />

Sette Letras, 1995.<br />

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______. “Notas para um trabalho sobre a apreensão da realidade na poesia de Cesário Verde”.<br />

In: Gilda Santos, Jorge Fernandes da Silveira e Teresa Cristina Cerdeira da Silva (org.)<br />

Cleonice, clara em sua geração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995a.<br />

VERDE, Cesário. O Livro de Cesário Verde. Int. de António Capão. Porto: Paisagem, 1982.<br />

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FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA<br />

ORAÇÃO<br />

Manuel Ferreira da Costa 16 (<strong>UERJ</strong>)<br />

INTRODUÇÃO<br />

A idéia deste trabalho monográfico nasceu das leituras e discussões do curso Domínio<br />

lexical e representação da experiência através de textos, ministrado pela prof.dr. Darcilia M.<br />

Pinto Simões, curso de Doutorado, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2 º semestre<br />

de 2002.<br />

A partir da leitura de A gramática - história, teoria e análise, ensino, de Maria Helena<br />

de Moura Neves, em que faz uma abordagem funcional da gramática da língua portuguesa,<br />

pensamos em aplicar a teoria funcional da gramática ao tradicional estudo do “sujeito” como<br />

termo essencial da oração.<br />

TEMA E DELIMITAÇÃO<br />

Apresentamos esta monografia com um tema específico: as relações semânticas dos<br />

chamados termos essenciais da oração. Isto significa que analisaremos o que tradicionalmente<br />

se conhece por sujeito e predicado Para tal, nos valeremos de uma teoria funcional da<br />

linguagem ou ─ como também é conhecida ─ da gramática das valências.<br />

SITUAÇÃO PROBLEMA<br />

Já é consenso perguntar para que se ensina língua portuguesa a um falante nativo. O que<br />

tem predominado são atividades metalingüísticas de descrição da língua como um objeto<br />

abstraído de seu uso, fora de uma atividade discursiva.<br />

Segundo Neves 17 o que predomina nesse estudo tanto descritivo como prescritivo é uma<br />

análise das classes de palavras e suas funções sintáticas, com o objetivo da análise pela análise.<br />

O reconhecimento (e outras atividades meramente classificatórias ou de competência cognitiva<br />

indicial) de classes de palavras ocupa 39,71% das atividades pedagógicas, enquanto o<br />

reconhecimento (e outras atividades indiciais) das funções sintáticas chega a 35,85% do tempo<br />

gasto no ensino da língua portuguesa. Os exercícios de classes de palavras e funções sintáticas<br />

ocupam 75,56% do total.<br />

Percebe-se que há aí uma teoria gramatical subjacente. Trata-se de uma gramática<br />

prescritiva, com um con<strong>jun</strong>to de regras de bom uso (gramática normativa) e uma gramática<br />

descritiva, com a apresentação das entidades de uma língua e suas funções.<br />

Porque a gramática normativa foi tão combatida como se fosse uma forma de opressão,<br />

os professores, pressionados pelo mercado ou pela má orientação das aulas de lingüística nos<br />

cursos de formação, passaram a privilegiar a gramática descritiva, de base estruturalista. Ainda<br />

venho do tempo em que nos concursos públicos se exigia o conhecimento estruturalista da<br />

língua e que depois era repassado em sala de aula para os alunos.<br />

16 O autor é doutorando em Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong> e docente aposentado do Colégio Pedro II.<br />

17 NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.<br />

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Exatamente porque se privilegiam esses dois pontos de vista (além disso, aplicados de<br />

forma estanque), não surpreende “o desprezo pela atividade essencial da reflexão e operação<br />

sobre a linguagem” 18 , Na verdade, há muita atividade sobre a linguagem (operações<br />

metalingüísticas), mas quase nada de atividades de linguagem (operações lingüísticas) e<br />

atividades com a linguagem (operações epilingüísticas). Pouco, muito pouco, é o espaço<br />

reservado para a reflexão sobre os procedimentos em uso, sobre os propósitos do texto, sobre os<br />

efeitos de sentido da escolha desta ou daquela palavra, desta ou daquela construção sintática.<br />

De modo geral, a concepção vigente é de que a língua não passa de um instrumento de<br />

comunicação e não se levam em conta os sujeitos que a usam para interagirem e o contexto do<br />

momento da comunicação.<br />

Além disso, voltamos a frisar, que, de modo geral, e de forma repetida, são atividades<br />

que privilegiam o reconhecimento, indicação, classificação, definição (operação cognitiva<br />

indicial) desses elementos. Em verdade, tal pedagogia constitui, em vista de sua<br />

operacionalidade, um “adestramento” sob a máscara de que se ensinam esses conteúdos para<br />

levar o aluno à “falar e escrever melhor”, quando na verdade os professores reconhecem que o<br />

ensino de gramática “não serve para nada”.<br />

Diante disso, há outra atitude extrema: a abolição dos estudos de gramática na escola. A<br />

língua portuguesa virou desaguadouro de todas as matérias, lugar de uma interdisciplinaridade<br />

mal compreendida. Compete ao professor de português trazer material didático (jornais,<br />

revistas, letras de música, filmes etc.) e discutir com os alunos os temas transversais que estão<br />

na “onda”.dos meios de comunicação. O estudo de língua portuguesa perde seu objeto próprio e<br />

os alunos até já sabem que “português não precisa estudar”. Desgraçadamente, português está se<br />

tornando a mais interdisciplinar (!) das disciplinas. Qualquer um (penso também em qualquer<br />

professor de outra área) dá sua opinião. Melhor: palpite. O professor Evanildo Bechara tem<br />

levantado sua voz contra esse estado de coisas dizendo que qualquer aluno (até um estrangeiro<br />

que tem o português como língua instrumental) tendo uma boa capacidade de interpretação, não<br />

precisa saber português.<br />

3) JUSTIFICATIVA<br />

Tendo em vista este problema (conhecido como o fracasso do ensino da língua)<br />

apontamos para a hipótese de que uma redefinição do objeto, um novo ponto de vista pode<br />

oferecer algumas soluções. Desde já, porém, acreditamos que sejam provisórias, porque em<br />

ciência nada é definitivo. Mas se provisórias, isto não quer dizer que não sejam mais adequadas<br />

para o momento.<br />

Um outro motivo que nos leva a esta monografia foi a recente experiência que tivemos<br />

ao fazer parte da banca de seleção do concurso público para professores do Colégio Pedro II.<br />

Colocados diante do tema “o sujeito - seus papéis temáticos ou funções semânticas”, foram<br />

muito poucos os candidatos que conseguiram desenvolver a contento tal tema. De modo geral,<br />

limitaram-se a um comentário superficial do “sujeito como aquele de quem se diz alguma coisa”<br />

ou “sujeito como o ser que pratica a ação”. Mesmo criticando essas definições, a maioria passou<br />

à tradicional classificação de sujeito simples, composto, indeterminado ou inexistente. Sem<br />

perceberem o alcance do tema, essa grande maioria ficou rodando em torna da identificação<br />

sintática de sujeito como elemento que concorda com o verbo. Se uma instituição tiver como<br />

orientação pedagógica um ensino funcional da língua, o referido concurso revelou que é pouca a<br />

mão-de-obra disponível.<br />

Foi, sobretudo, esta experiência que nos levou a pensar esta monografia. Ao contrário<br />

de teóricos encastelados e coroados nas suas academias, nós, trabalhando com o ensino<br />

fundamental e médio, sentimos, na prática as dificuldades do problema. Esta monografia,<br />

podemos dizer, “vem da grande tribulação” e esperamos que possa contribuir para aqueles que<br />

estão nessa mesma “tribulação”.<br />

18 NEVES, opus cit. p. 41.<br />

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4) Fundamentação teórica<br />

Para fazer esta abordagem do tema, vamos nos valer da teoria da gramática das<br />

valências. Cumpre esclarecer que apesar de não possuirmos vasta bibliografia sobre o assunto, o<br />

que aqui vamos expor tem muito de prática de sala de aula.<br />

A primeira coisa a salientar é o fato de que tomamos o verbo como elemento central de<br />

nossas análises. Isto já vem de longe, desde o ensinamento de Carone 19 . Segundo a lógica da<br />

gramática tradicional o SN (sujeito - tema) teria de ser o ponto de partida, seguido do SV, como<br />

rema, comentário desse tema. Partir-se-ia do conhecido para o desconhecido. Porém, a autora<br />

advoga que “os conceitos lógicos de sujeito e predicados transcendem a gramática da língua,<br />

pertencem à outra faixa de cogitações” (p.61). Devemos separar a análise lingüística da análise<br />

lógica. Citando Tesnière 20 , o “verbo [é a palavra] à qual todas [as outras palavras] se prendem,<br />

(...) constitui o ‘o nó dos nós’”. Isto dito em 1991 por Carone é confirmado, doze anos mais<br />

tarde, por Neves 21 , quando nos diz que “o conceito de valência se vincula à consideração da<br />

centralidade do verbo na análise da frase” .<br />

Neves advoga que a proposição (o juízo) só se forma quando ao tema (um ‘ónoma’) se<br />

acrescenta um rema (um verbo). Essa teoria bipartida é antiga. Vem de Aristóteles, que definia<br />

uma proposição (juízo) como a relação entre dois termos: um ónoma (nome) e um rhêma<br />

(verbo), o que originou a famosa estrutura lógica conhecida como S é P (sujeito / predicado). Na<br />

posição de predicado ficariam os termos universais, de maior extensão. Foi esse ponto de vista<br />

que gerou todo o estudo tradicional de uma teoria gramatical.<br />

Diferente de Aristóteles temos os estóicos. Segundo estes, não se bipartem os termos (S<br />

é P). Não temos uma lógica de termos, mas do predicado, entendido este como um<br />

acontecimento, um dizível (lékton). Este “dizível” pode ser esclarecido pela diferença que, mais<br />

tarde, se fez entre o “referente” e a “referência”. O primeiro é o que está fora da língua. O<br />

segundo é o modo de dizer o primeiro. No dizível “a mãe lava roupa”, há uma transformação<br />

corporal no plano dos referentes, mas no plano do “lékton” temos transformações incorporais.<br />

Sendo planos diferentes, os nós do dizível são diferentes do mundo dos objetos.<br />

No plano do dizível forma-se, segundo Tesnière, um pequeno drama (ação verbal) em<br />

que o verbo figura como o “enredo” e dele participam personagens num determinado cenário ou<br />

circunstâncias.<br />

Assim como no mundo dos corporais os objetos estabelecem relações entre eles, no<br />

mundo dos incorporais, da ação verbal, as palavras também formam um tecido de relações em<br />

que o verbo é, numa linguagem bíblica, a ‘pedra angular’ ou, o ‘nó dos nós’. Em termos de<br />

análise lingüística chama-se essa ‘pedra angular’ de predicador, o hierarquizante de nível<br />

superior. Os ‘personagens’ são denominados de actantes, obrigatórios ou facultativos<br />

(circunscritantes).<br />

Segundo Charaudeau 22 ,entende-se por actante “um ser, humano ou não, relacionado com<br />

uma ação e dentro da qual desempenha um certo papel em função de sua relação com o<br />

processo acional e outros actantes”. Mas o autor é um pouco confuso, porque na p.381, diz<br />

expressamente que “não se confundirá actante e ser”. O último é um elemento extralingüístico,<br />

enquanto que o primeiro se define e não existe senão na relação com um predicador.<br />

Dessa forma, o actante relaciona-se com o processo e com outros actantes. Além disso,<br />

para entendê-lo é preciso levar em conta seu papel e a qualificação (os traços semânticos) do<br />

elemento que o exerce.<br />

19<br />

CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1991 (Fundamentos)<br />

20<br />

TESNIÈRE, Lucien. Eléments de syntaxe structurare. Paris: Klincksiek, 1969, p. 14-15.<br />

21<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática- história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp,<br />

2002<br />

22<br />

CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression.. Paris: Hachette Livre, 1992, p.380-381<br />

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O número de actantes ou argumentos obrigatórios (constituintes indispensáveis) que um<br />

verbo pode reger constitui, segundo Tesnière, a sua valência. Os argumentos de um verbo são<br />

em número limitado, enquanto os circunstantes são em número ilimitado. Estes não são<br />

determinados pela valência do verbo. São os chamados, tradicionalmente, de ad<strong>jun</strong>tos<br />

adverbiais.<br />

Segundo os autores da teoria, um verbo apresenta no máximo três valências<br />

(predicadores). Porém se considerarmos que Ǿ também é uma valência, podemos dizer<br />

que, na verdade, são quatro. Assim, há verbos de valência Ǿ, (avalentes) de valência 1,<br />

(monovalentes) de valência 2 (bivalentes) e de valência 3 (trivalentes).<br />

De acordo com Neves (2002: 105), “semanticamente, o primeiro actante realiza a ação,<br />

o segundo a completa e é por ela afetado, e o terceiro recebe algo em proveito ou prejuízo”. O<br />

modalizador, semanticamente, já está apontando para os papéis semânticos dos termos da<br />

oração (sujeito, CD e CI).<br />

Embora se possa fazer uma separação entre actantes (argumentos) como elementos<br />

obrigatórios e circunscritantes como elementos facultativos, porque há circunscritantes também<br />

obrigatórios (verdadeiros complementos integrantes), de qualquer forma, a teoria tem a grande<br />

vantagem de equiparar o sujeito aos demais complementos e de considerar a frase não como<br />

uma construção linear de termos justapostos, mas hierarquizados, isto é, “amarrados” a um<br />

verbo predicador.<br />

Não desconhecemos que além do verbo, os nomes e os adjetivos dos chamados verbos<br />

de “ligação” ou “estativos” também podem ser predicadores.<br />

Mas, como prática geral, a partir do verbo há casas vazias que são preenchidas com<br />

argumentos. Na nossa prática didática temos mostrado essa hierarquia de funções por meio de<br />

uma visualização da construção da frase. Antes dessa visualização, aplicamos sinais<br />

matemáticos (chaves, colchetes e parênteses) para que os alunos percebam os nós sintagmáticos<br />

entre as palavras. O verbo vem sempre entre chaves. Logicamente que iniciamos com<br />

proposições simples até chegar às mais complexas<br />

(1) IMAGINAÇÃO DÁ FORMA A PRESÉPIO<br />

(Globo Baixada,22, dez.02, p. 23)<br />

A primeira operação é separar os termos por meio dos sinais matemáticos:<br />

[Imaginação] {dá} [forma] a [presépio]]<br />

Como se percebe, o verbo representa o predicador entre chaves e três actantes<br />

(argumentos), sendo que o último é regido por preposição.<br />

Após este primeiro passo, fazemos uma espécie de árvore das hierarquias<br />

dá<br />

imaginação forma a presépio<br />

(2) COMÉRCIO FUNCIONA EM HORÁRIO ESPECIAL<br />

(idem, p. 13)<br />

[Comércio] {funciona} [em (horário) especial]<br />

funciona<br />

comércio em horário<br />

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especial<br />

Percebe-se, no enunciado, o predicador verbal com dois argumentos (sujeito e um<br />

ad<strong>jun</strong>to adverbial). Esse último, devido à situação comunicativa, não parece assim tão<br />

facultativo. De modo que se não o podemos chamar de “complemento relativo”, é, pelo menos<br />

um complemento ou um ad<strong>jun</strong>to verbal. Observe-se, também que o termo horário serve como<br />

predicador do termo especial, argumento de horário. É a situação comunicativa que determina<br />

o preenchimento das casas vazias. A situação comunicativa (o contexto, a perspectiva<br />

determinada pelas necessidades e intenções comunicativas) determina a quantidade e a<br />

qualidade dos argumentos.<br />

É possível, nesse nível, já trabalhar as preposições como “elementos transpositores” de<br />

classes de palavras. Assim, o con<strong>jun</strong>to [(horário) especial] passa a funcionar como uma locução<br />

adverbial, tendo como núcleo o termo superior.<br />

(3) DRAGAGEM DE RIOS, CANAIS E VALÕES FAZ PARTE DO PLANO<br />

DE EMERGÊNCIAS. (idem, p.3)<br />

A esta altura, já se focalizou a con<strong>jun</strong>ção (soma) de elementos. Como só se podem<br />

somar elementos do mesmo valor, então eles pertencem a um mesmo con<strong>jun</strong>to. Como já se<br />

dispõe da con<strong>jun</strong>ção como conector, é, relativamente, fácil para o aluno fazer o agrupamento<br />

dos con<strong>jun</strong>tos.f<br />

[(dragagem) de rios +canais + valões] {faz} [(parte) do ((plano)) de emergências]<br />

Numa visualização teríamos:<br />

Faz<br />

Dragagem parte<br />

de rios, canais, valões do plano<br />

de emergências<br />

A visualização das hierarquias mostra que o elemento superior é predicador<br />

(subordinante) em relação ao inferior (subordinado). A esta relação de subordinante /<br />

subordinado, os autores se valem do termo reccção (regência). Como se percebe a recção<br />

aplica-se tanto a verbos como a nomes (ou pronomes).<br />

Também colocamos os argumentos em duas caixas (contêineres) de modo que nos<br />

parece mais fácil pereceber os dois actantes (supeito e CD) e suas recções.<br />

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É bom que se diga que isto é apenas um recurso pedagógico para a percepção do aluno.<br />

Compete ao professor saber fazer essa montagem. Não exigimos isso do aluno, mas se ele<br />

souber fazê-lo, será um grande avanço na percepção da hierarquia sintagmática dos elementos<br />

da frases. O leitor pode questionar<br />

que existem construções de frases muito mais complexas do que estas. É verdade. Mas a<br />

orientação deste modelo é ir do mais simples para o mais complexo, quando são necessárias<br />

outras operações. Para terminar, tomamos uma sentença de complexidade de nível médio,<br />

aplicando-lhe a teoria das valências.<br />

(4) ESQUEMA DE AMPARO A DESABRIGADOS INCLUI ALIMENTOS,<br />

COLCHONETES E ROUPAS. (idem, p. 6).<br />

Este enunciado, apesar de já bastante complexo, não oferece grande dificuldade para o<br />

reconhecimento de sua hierarquização sintagmática.<br />

[(Esquema) de ((amparo)) a desabrigados] {inclui} [alimentos] +[colchonetes] +<br />

[roupas]<br />

Inclui<br />

Esquema alimentos colchonetes roupas<br />

de amparo<br />

a desabrigados<br />

O gráfico mostra, com clareza, que o verbo incluir possui duas valências (sujeito) e<br />

complemento direto (CD), sendo este último formado por três elementos coordenados.<br />

Para encerrar este assunto, convém acrescentar que além da quantidade da valência de<br />

um predicador, há que se considerar também a qualidade. Em outras palavras: cada argumento<br />

apresenta suas restrições semânticas em relação aos actantes regidos. Assim, por exemplo, o<br />

verbo criticar exige que o actante sujeito tenha os semas [+humano], [+animado]. Já os actantes<br />

que funcionam como CD podem ser [±humano], [± animado]. O verbo incluir pode ser<br />

colocado dentro do hiperônimo ter (verbos em que há uma “relação de posse”). No caso, o<br />

ponto de chegada de algum agente (no texto é a prefeitura de Duque de Caxias) e esse ponto<br />

contêm, como resultado de ação, os CD alimento, colchonetes, roupas. Como se vê, estes<br />

últimos, em decorrência da significação do verbo, não uma ação, mas muito mais resultado de<br />

um processo, não são também “pacientes” da “ação” verbal. Tanto assim que embora seja<br />

gramatical a transformação na voz passiva: “alimentos, colchonetes e roupas são incluídos na<br />

estratégia de amparo a desabrigados”, talvez o mais esperado seria: “alimentos, colchonetes e<br />

roupas estão incluídos na estratégia de amparo a desabrigados”, marcando o resultado da ação.<br />

O aspecto verbal aqui é fundamental para a construção do sentido.<br />

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Um leitor que compartilhe deste conhecimento pode alegar que isto não passa das<br />

conhecidas “árvores” da gramática transformacional. Como já frisamos, não faz parte de nossa<br />

prática que os alunos montem as tais árvores. Além disso, não nos interessam aqui as estruturas<br />

superficiais e profundas, os esquemas cognitivos da linguagem humana. O objetivo é tão<br />

somente levar o aluno a perceber a hierarquização, a tessitura dos elementos da frase. Pode-se<br />

alegar também que ficamos no nível da frase e que, como todos sabem, a unidade de ensino é o<br />

texto. Isto é verdade, mas quando passarmos para a análise semântica dos componentes<br />

actanciais dos termos da oração, o leitor perceberá, de acordo com o gênero textual, que o valor<br />

semântico de um termo advém de sua inserção no texto. Além disso, convém atentar para a<br />

observação de Vilela 23 de que já é consenso que qualquer gramática tem como objeto o<br />

tratamento de unidades mais amplas que as frases e palavras. Mas, diz o autor, “a gramática<br />

não poderá falar de textos, frases e grupos de palavras sem ter bem presente as ‘palavras’”.<br />

Concluindo, podemos perceber que existe uma relação lógico-semântica entre um<br />

predicador e seu argumento. Os papéis argumentativos preenchem, segundo Neves (2000: 111)<br />

“os lugares lógico-conceptuais vazios que o predicado abre à sua volta”.<br />

A idéia de uma relação lógico-semântica entre predicadores verbais e o argumento<br />

sujeito é objeto básico desta monografia.<br />

5) Objetivo básico e questões a investigar<br />

Nosso objetivo é mostrar ─ ainda que analisando apenas o argumento sujeito ─ que<br />

numa abordagem funcional da gramática não basta que o aluno saiba identificar os elementos<br />

sintáticos da frase, mas pensar os papéis semânticos que tais elementos exercem dentro de um<br />

texto, na construção do sentido.<br />

Para isto, propomo-nos investigar as seguintes questões:<br />

5.1) Uma classificação semântica dos verbos.<br />

5.2) Os papéis temáticos do sujeito<br />

Um estudo semântico dos verbos<br />

Os manuais escolares costumam brindar-nos com dois tipos de verbos: verbos de ação e<br />

verbos de ligação. Como se percebe, há aí uma mistura de critérios. Os primeiros se definem<br />

semanticamente, enquanto os segundos apontam para um papel interno e, geralmente, são<br />

considerados como “semanticamente esvaziados”. São também conhecidos como “portatempo”,<br />

cuja função é fazer a ligação (cópula) entre um sujeito e um predicativo (predicador<br />

nominal ou adjetival, segundo a gramática funcional).<br />

Um estudo mais profundo vê nessa teoria uma simplificação, porque a categoria verbo é<br />

complexa não apenas em termos morfológicos, mas, sobretudo, semanticamente. Por isso,<br />

vamos aprofundar nosso estudo do papel semântico dos verbos. Desde já alertamos o leitor que<br />

são os traços semânticos do verbo que vão determinar a recção não só da quantidade, mas<br />

também da qualidade dos actantes e circunstantes.<br />

2. Classificação dos verbos segundo Charaudeau 24<br />

Para este autor, nenhuma definição de verbo pode ser plenamente satisfatória. Se se<br />

define verbo como a palavra que exprime ação feita ou sofrida por um sujeito, como existência<br />

ou estado de um sujeito, então teremos que perguntar se dormir, custar, sonhar, restar,<br />

concernir são ações.<br />

Se se diz que o verbo tem por papel situar no tempo as ações ou os acontecimentos,<br />

então temos que enquadrar ontem, hoje, amanhã, logo, imediatamente, agora, depois como<br />

verbos.<br />

Se se admite que os verbos estabelecem uma relação de predicado (rema informativo)<br />

em relação a outro termo, outras palavras (como os adjetivos e nomes) também desempenham<br />

esse papel.<br />

23 VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação.Coimbra: Almedina, 1992, p. 29<br />

24 Opus cit. p. 28-35<br />

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Para este autor (p.35), os verbos são classes de palavras que, tradicionalmente,<br />

exprimem um processo. Isto é: o processo descreve o que acontece no universo, o que se produz<br />

no tempo e que modifica um estado de coisas.<br />

Ainda de acordo com o autor (p.30), existem duas classes de processos:<br />

As ações: atos ou atividades que estão sob o controle de um ser capaz de ser<br />

responsabilizado por eles em virtude de um projeto ou intenção de ação.<br />

Os fatos: representam igualmente atividades que modificam um estado de coisas e<br />

implicam seres, mas não se pode atribuir a estes nenhuma responsabilidade pelo acontecimento.<br />

O fato é o que surge, o que se produz sem a intervenção de um agente. Assim, chover, nevar,<br />

cair são verbos de fatos.<br />

O autor volta ao assunto nas p. 378-379, explicitando que “ação” implica que a atividade<br />

se encontra sob a responsabilidade de um “agente” mais ou menos engajado. O “fato”<br />

representa (...) apenas uma atividade que se produz (ou é produzida) fora da responsabilidade de<br />

um ser-agente”. E propõe (p.379), o seguinte esquema:<br />

processos<br />

Ação<br />

Atividade sob a responsabilidade e<br />

intencionalidade de um agente [±engajado]<br />

Fato<br />

Atividade sem a responsabilidade nem a<br />

intencionalidade<br />

Isto nos permite classificar os verbos em dois tipos: verbos de ação e verbos de<br />

acontecimentos. Assim se entende que verbos ditos auxiliares ou de ligação, como ser, parecer,<br />

estar, continuar, ficar, permanecer, andar etc. não correspondem a processos, mas servem para<br />

exprimir vários tipos de relação: qualificação, existência, dependência. Devido ao fato de<br />

revelarem o aspecto dos processos em curso (exceto o verbo ser), podem ser qualificados como<br />

“estativos”.<br />

Classificação dos verbos segundo Costa. 25·.<br />

Esta nos fala em três blocos de verbos:<br />

De atos e atividades: quebrar, ler. Implicam o traço [+humano], [+agente], [+dinâmico]<br />

De processos e acontecimentos: crescer, cair. Implicam os traços: [±humano], [-<br />

agente], [+dinâmico]<br />

De estados: continuar, parecer. Implicam os traços [+durativo], [-agente], [-dinâmico]. É<br />

esta autora que coloca os verbos de “ligação” entre os verbos “estativos”.<br />

Este estudo dos traços verbais já nos leva a uma primeira conclusão: as categorias de<br />

Agente e Paciente só existem com verbos que exprimem atos e atividades. Assim, o sujeito é<br />

agente quando se trata de verbos de ação ou de atividade. Do mesmo modo se pode falar em CD<br />

(complemento direto) como paciente quando o termo tiver os traços [+vivente], [+ humano]<br />

relacionados com verbos que exprimem atos ou atividades.<br />

Assim, em:<br />

O garoto quebrou a planta.<br />

O garoto abriu a porta com a chave..<br />

A chave abriu a porta.<br />

A porta abriu.<br />

A chuva derrubou a árvore.<br />

As plantas morrem com o calor.<br />

O calor mata as plantas.<br />

25 COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1990, p.14-15<br />

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A noite está fria.<br />

A noite esfriou.<br />

Esfriou.<br />

Só em (1) podemos atribuir ao sujeito o papel de Agente e ao CD, o de Paciente, mas em<br />

sentido lato, porque lhe falta o sema [+humano]. Em (2) o sujeito é Agente, mas o CD não é<br />

paciente, mas resultado do ato. Em (3), o sujeito tem o papel de Instrumento, enquanto que o<br />

CD é o Resultado do acontecimento. Em (4) o sujeito é o Resultado do acontecimento. Em (5) o<br />

sujeito é a Causa do acontecimento, enquanto o CD é o Conseqüente. Em (6), o sujeito é o<br />

Conseqüente de um processo cuja Causa é o calor. Em (7) o sujeito desempenha o papel<br />

semântico de Causa, enquanto o CD, o de Conseqüente. Em (8) o papel do sujeito parece ser<br />

muito mais o de Referente de um estado. Já em (9) o sujeito não é Agente, nem Paciente. Sem<br />

outro nome, parece-nos mais o tema ou, como diziam os gregos, o suporte do rema. Pode ser<br />

também interpretado o ser afetado (transformado) pelo processo (ou, como dizem alguns<br />

autores, trata-se de um locativo temporal). Em (10) o verbo indica um processo e não tem<br />

valência, porque é semanticamente pleno. Desse modo, não apresenta casa vazia para ser<br />

preenchida.<br />

Charaudeau 26 classifica “agente” e “paciente” como “actantes de base”. Segundo esse<br />

autor, entende-se por “agente” um “actante humano que é o iniciador-responsável pela ação<br />

que efetua, voluntariamente ou não”. O “agente” é sempre humano. Isto significa dizer que lhe<br />

é atribuída uma intenção (um projeto de fazer) mesmo que às vezes seja descrito como agindo<br />

involuntariamente (p.381). Quanto aos animais ou a outro ser se atribui o traço [+humano], estes<br />

também podem ser considerados agentes. Desta forma, “sujeito” e “agente” só coincidem<br />

quando o actante que efetua a ação é humano (p.382).<br />

Mais difícil é a explicação para o actante “paciente”. Segundo Charaudeau, trata-se de<br />

“actante não humano ou humano que representa o termo ou o suporte da ação: ou que a<br />

padece ou é, pelo menos afetado por ela” (p.383). A seguir faz a diferença entre “paciente”<br />

humano e não humano:<br />

“O actante não-humano representa o ponto de impacto de uma ação, de modo que seu<br />

estado inicial se encontra modificado. Recebe os efeitos de uma ação, sem um estado de alma.<br />

Já o humano suporta de maneira positiva ou negativa a ação. Encontra-se atado a um agente<br />

humano através de uma relação de interesses humanos, relação que o afeta de maneira<br />

negativa.”(p.383)<br />

A nós parece-nos que o actante “paciente” constitui um hiperônimo. O melhor seria<br />

restringi-lo a um predicador [+vivente] de um verbo de ação [que supõe um “agente<br />

intencionado”].<br />

Dessa forma, observemos as frases:<br />

(1) O vento derrubou a casa.<br />

(2) O lutador derrubou o adversário.<br />

(3) O menino encheu o copo.<br />

(4) O pai elogiou o filho.<br />

(5) O pai salvou o filho.<br />

26 Opus cit. 380-382<br />

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Se em (1) o sujeito não é humano, não temos uma ação, uma intencionalidade. Então,<br />

não é um “agente”, mas muito mais uma “causa”. Não se pode negar que “casa” recebe o<br />

impacto da ação. Se lhe aplicarmos a categoria de “paciente”, certamente será mais por<br />

hiperônimo, uma vez que nos parece muito mais o “conseqüente”. Em (2), não há dúvida de que<br />

o sujeito é “agente” e o CD, por também ser humano, é “paciente” no sentido estrito da palavra.<br />

Em (3) temos um sujeito agente, mas o CD, opinião nossa, só é “paciente” por hiperonímia,<br />

porque não se trata de humano. Trata-se do resultado do processo. Em (4) é difícil ver no CD a<br />

categoria de “paciente”. Salvo melhor interpretação, está nos parecendo mais o “beneficiário”.<br />

Por isso, se transformada na voz passiva: “O filho foi elogiado pelo pai”, não vemos no sujeito<br />

um actante “paciente”. O mesmo se pode dizer em (5). É difícil ver no CD um actante passivo.<br />

Para terminar esta explanação, observe-se um último exemplo:<br />

(6) O pai deu um presente ao filho.<br />

Observa-se que o CI é, claramente, o beneficiário da ação do agente. Se, então,<br />

parafraseássemos, teríamos:<br />

(7) O pai presenteou o filho.<br />

O termo “filho” mudou de função sintática, mas não de função semântica.<br />

Não nos estenderemos mais neste assunto, porque não é nosso objeto a análise das<br />

funções semânticas do CD. Só o fizemos, porque com certas classes de verbos transitivos, o CD<br />

passa a ser SU (sujeito) da voz passiva.<br />

4) Classificação segundo Vilela<br />

Podemos falar ainda de outras classificações de verbos, tendo em vista a quantidade e as<br />

restrições que impõem aos actantes. Vilela 27 aponta duas classes de verbos:<br />

Verbos semanticamente motivados. Entre eles estão os verbos de ação, de estado, de<br />

processo que impõem condições (restrições) de uso do sujeito e complemento. Neste con<strong>jun</strong>to<br />

há verbos de natureza:<br />

física: chover, esfriar, trovejar, etc.<br />

fisiológica: dormir, morrer, nascer, etc.<br />

sensorial: amar, odiar, gostar de, etc.<br />

intelectual: decidir, planejar, etc.<br />

Uma outra classificação pode ser a de:<br />

verbos dinâmicos / de atividade<br />

verbos de processo<br />

verbos de sensações corporais<br />

verbos de transação de eventos (vender, comprar, adquirir, etc)<br />

verbos de momentos<br />

verbos estativos<br />

verbos de movimento<br />

verbos de posse<br />

verbos de percepções e cognições experiências.<br />

verbos relacionais.<br />

Isto tudo parece muito exaustivo, mas tem a vantagem funcional de fornecer:<br />

“informações acerca da forma léxica, do número de argumentos e dos traços sintáticosemânticos<br />

dos elementos que ocupam os espaços destinados aos argumentos e as funções<br />

semânticas realizadas pelos argumentos no con<strong>jun</strong>to frásico.(p.22)<br />

De posse de alguns desses conceitos podemos, então, falar de predicados “estativos”,<br />

“posicionais”, “processuais”, e “acionais”.(p.23)<br />

Verbos pragmaticamente motivados. Neste grupo, estão os verbos que constituem atos<br />

de fala, quando “dizer é fazer”. São os verbos performativos. Entre eles, temos:<br />

verbos de asserção: dizer, acusa, declarar<br />

27 Opus cit. p. 19-25<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 96


verbos de avaliação: julgar, analisar, condenar<br />

verbos de atitude do falante: aclamar, aceitar, prometer<br />

E outros, que não citaremos para não nos alongarmos por demais. Mesmo assim,<br />

convém ter em mente os chamados:<br />

verbos dicendi<br />

verbos dandi<br />

verbos tollendi.<br />

Tais verbos são importantes porque exigem como<br />

Complemento indireto (CI): a entidade a quem é “dado”, “tirado” ou “transmitido” algo,<br />

de acordo com o significado implicado no lexema verbal. Esta entidade situa-se, normalmente,<br />

na classe semântica (classema) [+humano]<br />

Complemento direto (CD): a entidade “dada” e “tirada” situa-se, normalmente, na<br />

categoria semântica (classema) [-humana]. A entidade “transmitida” situa-se na classe<br />

semântica [+abstrato].<br />

5) Classificação segundo Mateus et al. 28<br />

A leitura, em Mateus, sobre a predicação (p.46) nos remete ao “dizível” dos estóicos,<br />

porque predicar “visa, fundamentalmente, descrever estados de coisas relativos a um dado<br />

universo de referência”. Dada essa idéia básica, as autoras passam a descrever não só uma<br />

tipologia dos estados de coisas, como também uma tipologia dos predicadores. Para nosso<br />

propósito, tentaremos fazer um resumo desses dois tópicos.<br />

5.1) Tipologia dos estados de coisas<br />

Segundo as autoras, há três tipos de “estados de coisas” ou três tipos de predicadores<br />

(p.47-51):<br />

a) ESTADO. Quando entidades envolvidas numa descrição não sofrem qualquer<br />

alteração ou transição durante um intervalo de tempo, a essa descrição chamamos de estado.<br />

Como se percebe, o sema básico é o [- dinâmico].<br />

Exemplos: João anda triste<br />

A casa fica no alto do morro.<br />

b) EVENTO. Quando as entidades envolvidas numa descrição sofrem uma<br />

transformação, alteração, uma passagem de um estado para outro, esse “dizível” contém um<br />

evento e seu sema básico é o [+dinâmico].<br />

Exemplo: O garoto quebrou a vidraça.<br />

O gato comeu o rato.<br />

João ama Maria.<br />

Os dois exemplos mostram que nos eventos há um “fazer” de natureza física ou<br />

psíquica.<br />

c) PROCESSO. Quando no “fazer” não há uma transformação, alteração das entidades<br />

envolvidas, mas um evento realizado entre dois espaços de tempo. A esse “dizível” ou<br />

“predicação” chamamos de processo e seu sema básico também é [+dinâmico]<br />

Exemplo: As aves cantam<br />

Os pilotos controlam a máquina.<br />

Além dessa classificação, podemos analisar se os “actantes” dos “dizíveis” são ou não<br />

controladores da predicação. Levando-se em conta esse traço [+controlador] ou [+intencional]<br />

podemos classificar, respectivamente<br />

• estados como posições.<br />

• eventos como ações.<br />

• processos como atividades.<br />

5.2) Tipologia dos predicadores (52-66)<br />

28 MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 1983.<br />

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Se, por um lado, o “lékton” determina a classe sintático - semântica do predicador, por<br />

outro lado, este determina não só o número dos argumentos, mas também a relação semântica<br />

que cada um deles mantém com esse predicador. E, como os outros autores da “gramática das<br />

valências.” concluem que “o predicador é o núcleo em torno do qual se organiza uma<br />

predicação” (p.52).<br />

Também como mostramos acima nas nossas “árvores” os autores nos informam que<br />

“ocorrem predicadores pertencentes a diferentes categorias sintáticas: “verbais, nominais,<br />

adjetivais” e que tais predicadores exigem um determinado número de argumentos. Aos<br />

argumentos obrigatórios (actantes) denominam “argumentos nucleares” do predicador. Os nãoobrigatórios<br />

são os “argumentos opcionais”. Assim, cada predicador tem seu esquema<br />

predicativo (p.53) que determina:<br />

a categoria sintática do predicador;<br />

o número de lugares do predicador;<br />

a função semântica de cada um dos argumentos. Isto é: a relação semântica que cada um<br />

dos argumentos nucleares mantém com o predicador.<br />

As autoras apresentam uma lista de nove funções semânticas dos argumentos que<br />

podemos aplicar perfeitamente ao nosso objeto de investigação (o argumento sujeito). Não<br />

vamos, aqui, nos deter na explicação e definição de cada uma dessas funções semânticas. Bastanos<br />

apenas enumerá-las e tentar aplicá-las na análise de textos. Eis, pois, uma tabela das funções<br />

semânticas:<br />

Paciente Objeto Locativo<br />

Neutro Experienciador Agente<br />

Origem Recipiente Posicionador<br />

Como o estudo é bastante complexo e nos faltam maiores experiências sobre ele, vamos<br />

nos ater aos dados acima, que podem, perfeitamente, servir de crítica para quem melhor<br />

conhecer o assunto.<br />

6) Conclusão<br />

Como esta monografia tem limites de espaço e, sobretudo, de tempo, apressamo-nos em<br />

concluir que uma proposta de classificação completa pertence ao mundo dos “impossíveis”<br />

(Vilela, p. 26). Mas, de qualquer forma, pode-se reter que uma classificação do verbo deve levar<br />

em conta além dos aspectos morfológicos e sintáticos, também os aspectos semânticos e<br />

pragmáticos. E, sobretudo, convém levar em conta que “há sempre outra grandeza com a qual<br />

o verbo é confrontado para ser classificado” (id.ib.).<br />

Se nos detivemos na classificação dos verbos foi porque são eles que ocupam o “nó dos<br />

nós” na gramática das valências e determinam a quantidade e a qualidade dos argumentos.<br />

Então, por isso, a seguir, passaremos a analisar a relação verbo / actante sujeito.<br />

Verbo e papéis semânticos do sujeito<br />

Azeredo 29 ensina que “o verbo pode atribuir diferentes papéis semânticos a seu sujeito -<br />

agente, paciente, instrumento, lugar, neutro ─ em virtude tão ─ só de natureza de sua<br />

significação. Outras vezes, porém, esses papéis são indicados pela estrutura sintática do<br />

predicado” (p.174 § 353) [voz ativa, passiva, média ou reflexa].<br />

29 AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos da gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 2000, p. 173-174.<br />

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No § 350, p. 173, diz que os verbos transitivos que denotam ação envolvendo um sujeito<br />

e um objeto direto referentes a seres animados atribuem ao primeiro o papel de agente e ao<br />

segundo, o de paciente. Mas logo no seguinte parágrafo acrescenta que um verbo transitivo de<br />

ação que não se refira a um ser animado, o sujeito não desempenha o papel de “agente”. Cita<br />

como exemplo: A chuva [causa] alagou a cidade [conseqüente]. A corrente do relógio<br />

[instrumento] feriu meu pulso [resultado da ação]. O cofre [lugar continente] guardava os<br />

documentos mais preciosos [conteúdo]. Mesmo com certos verbos transitivos de sujeito<br />

animado, este não é agente, mas ser afetado pelo acontecimento a que a frase se refere. Por<br />

exemplo: Pedro quebrou o braço. O sujeito, segundo Azeredo, representa o todo, enquanto o<br />

CD, a parte.<br />

Isto significa dizer que não se pode definir que “sujeito é o ser que pratica a ação”.<br />

Mesmo a idéia de que seja o “ser de quem se afirma ou nega alguma coisa” fica muito vaga e<br />

não serve. Basta ver, por exemplo, a frase de Genouvrier & Peytard 30 No começo do século, os<br />

bondes eram puxados por burros. O sujeito lógico (autor da ação) seria os “burros”. O sujeito<br />

gramatical (o termo com quem o verbo concorda) seriam os “bondes”, mas o sujeito informativo<br />

(o tema ─ ser de quem se diz alguma coisa) seriam tanto “os bondes”, como “começo do<br />

século” e até mesmo “burros”.<br />

Quanto à classificação entre sujeito simples e composto, isto são critérios sintáticos. De<br />

modo geral são aprendidos mecanicamente sem que se remeta ao seu papel semântico no texto.<br />

Quando se fala em sujeito indeterminado ou oração sem sujeito, aí sim, temos critérios<br />

funcionais e podemos recorrer à gramática das valências.<br />

Mesmo com toda essa teoria, é necessário que o analista não fique apenas no nível da<br />

frase. O mais importante é perceber as recorrências das funções semânticas de um determinado<br />

argumento dentro de um texto.<br />

2) Texto e papéis semânticos do sujeito<br />

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que os papéis semânticos do sujeito dependem do<br />

gênero de texto. Um texto, por exemplo, de informação científica não terá o mesmo tipo de<br />

sujeito de um texto argumentativo ou de um texto narrativo. Dependendo do texto, haverá uma<br />

predominância de uma ou outra função semântica do sujeito.<br />

Observe-se, por exemplo, o texto:<br />

A oferta da viúva<br />

Levantando os olhos, viu os ricos lançando ofertas no Tesouro do Templo.<br />

Viu também uma viúva indigente que lançava duas moedinhas, e disse “De<br />

fato, eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos<br />

aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas. Esta, porém, na sua<br />

penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver”.<br />

(Lucas, 21, 1-3).<br />

Fazendo um levantamento dos predicadores verbais, temos:<br />

Levantar(1 vez) Dizer (1 vez)<br />

Sobrar (1 vez)<br />

Ver (duas vezes)<br />

Dar (1 vez)<br />

Lançar (3 vezes) Oferecer (1 vez)<br />

Possuir (1 vez)<br />

Viver (1 vez)<br />

O texto apresenta vários tipos de verbos: de movimento (levantar, lançar) de sensação<br />

corporal (ver), verbos dandi (dar, oferecer), verbo dicendi (dizer), verbo de posse (possuir).<br />

30 GENOUVRIER, Emile & PEYTARD, Jean. Lingüística e ensino de português. Coimbra: Almedina,<br />

1973, p.133.<br />

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Os verbos levantar, ver, dizer possuem o mesmo sujeito (no contexto, Jesus). Os dois<br />

primeiros podem ser qualificados como verbos dinâmicos, de acontecimentos. Embora o sujeito<br />

tenha os traços [+vivente], [+humano], pode-se perceber que a definição de “agente” pode ser<br />

tomada se o considerarmos um hiperônimo. No verbo “levantar” Jesus é o sujeito afetado pelo<br />

seu ato, e olhos é a parte, como ensina Azeredo. Quanto ao verbo “ver”, o sujeito (Jesus) é<br />

“agente”, mas como experienciador de uma cognição, quase no papel de sujeito sentiendi.<br />

Quanto ao verbo “dizer” (um dicendi), o sujeito “agente” é, na verde, emissor, o ponto de<br />

partida do discurso. Neste caso, seu papel actancial poderia ser o de “origem”.<br />

Os verbos “lançar” têm como sujeito os termos “ricos” e “uma viúva indigente”. Se o<br />

que eles lançam (moedas) não pode ser tomado como “paciente” no sentido estrito da palavra,<br />

pois não tem os semas [+animado], [+humano], então também não se pode dizer que os sujeitos<br />

sejam “agente”, igualmente no sentido estrito.<br />

Porém, há uma diferença: os ricos lançam por lançar; o gesto deles é mais uma<br />

atividade. Então poderíamos considerá-los como “atores”, força causadora de um processo. Já a<br />

pobre viúva, como lança o que lhe ia faltar, há nela um alto grau de intencionalidade, controle.<br />

Por isso, ela é muito mais que a força causadora do processo e se torna “agente” de um ato<br />

calculado, visando a um fim. Por isso mesmo, ousamos dizer que os sujeitos do verbo lançar<br />

não têm o mesmo papel semântico.<br />

Quanto aos verbos “dar, oferecer” têm como sujeitos não agentes, mas possuidores que<br />

fazem transferência de algo seu. Sem outra nomenclatura, arrisco chamá-los de sujeitos<br />

“possuidores” ou “recipientes”, conforme Mateus et al.. Porém, um leitor atento pode observar<br />

que os ricos dão e a viúva indigente oferece. Deste modo, a relação de transferência que se<br />

efetua não é a mesma. Esta é a razão porque dissemos acima que o “agente” do verbo “lançar”<br />

tem conotações ou semas diferentes.<br />

Os ricos deram o que sobrava e isto não lhes custou nada. Assim, não são em nada<br />

agentes e pacientes. São muito mais “origem”. A viúva ofereceu não as sobras, mas tudo o que<br />

possuía para viver. Os primeiros são doadores e retentores ou, origem do processo. Trata-se<br />

mais de uma atividade.<br />

A segunda, ao ofertar é um agente, mas ao ficar sem nada, torna-se paciente de seu ato.<br />

Por ser uma doadora completa, houve nela uma transformação incorporal ou, como se diz, uma<br />

transformação de papéis jurídicos: de possuidora passou a despossuída. Em resumo, os ricos são<br />

sujeitos possuidores e permanecem nesse papel. Conforme Mateus et al., estamos diante de um<br />

predicador de processo. A viúva, de possuidora passa a sujeito despossuidor. Apresenta,<br />

portanto, dois papéis semânticos: agente e paciente. Estamos diante de um quadro de uma ação<br />

controlada.<br />

A seguir, vamos tomar outro gênero de texto para perceber como se comportam<br />

semanticamente os sujeitos.<br />

Os fungos<br />

“Os fungos incluem diversos tipos de organismos, com forma e tamanhos<br />

variados. Não possuem clorofila e por isso não fabricam o próprio alimento.<br />

Dessa forma, dependem do alimento do ambiente. Não dizemos, entretanto,<br />

que os fungos comem, mas sim que absorvem alimento do meio e depois o<br />

utilizam como fonte de energia. Os fungos crescem em lugares úmidos como<br />

troncos de árvores caídas e restos vegetais, estrume de animais, frutas<br />

apodrecidas”.<br />

(Fonte: GODWAK & MARTINS. Natureza & Vida. São Paulo: FTD, 1993,<br />

p. 63, v. 2.)<br />

Como fizemos anteriormente, vamos listar os verbos:<br />

Incluir<br />

Depender Absorver<br />

(Não) possuir<br />

(Não) dizer Utilizar<br />

(Não) fabricar (Não) comer Crescem<br />

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Percebe-se, com clareza, que se trata de um texto descritivo de uma informação científica. A<br />

não ser o verbo dizer, todos os outros têm como sujeito o termo “fungos” cuja classificação<br />

como ser oferece dificuldades mesmo para os especialistas. Por isso, vamos tomá-los como [±<br />

vivente], [± animado], tendo em vista os semas dos verbos predicadores.<br />

A primeira coisa a analisar é o verbo dizer. Se está na 1ª pessoa do plural, logo a<br />

gramática tradicional nos imporia que se trata de um sujeito determinado “nós”. E realmente, o<br />

sujeito gramatical é “nós”. Acontece, porém, que é um “nós” não especificado, que pode ser<br />

parafraseado como “não se diz”, claramente indeterminado. O “nós” não se refere ao sujeito da<br />

enunciação, mas a uma voz indeterminada dos cientistas, da ciência. Uma voz não<br />

comprometida com o que diz. Semanticamente é um sujeito indeterminado e por isso mesmo<br />

não se pode apontar qual o responsável direto pela origem da informação.<br />

Para o verbo incluir, o sujeito “fungos” tem o papel semântico de elemento de uma<br />

classe. É um entre outros tipos de organismos. Podemos dizer que tem a função semântica de<br />

recipiente.<br />

A negação dos verbos possuir e fabricar faz dos fungos seres sem capacidade de<br />

transferências e de serem agentes de atividade. Estão mais para receptores (parasitas). Também<br />

não podem ser considerados como simples pacientes. Em lugar disso, podemos classificá-los<br />

como “dependentes”.<br />

O caráter de [±viventes], [±animados] faz deles que não comam, não fabriquem, mas<br />

absorvam o alimento e o utilizem como fonte de energia. Em lugar de agentes ou origem de<br />

processos, teríamos “utantes” e até “mutantes. Por isso, o texto conclui que eles “crescem”, em<br />

virtude de um processo de mutação. Teriam, talvez, a função semântica de “neutros.?<br />

Concluindo, podemos dizer que no primeiro texto predominam predicadores de eventos<br />

que determinam as funções semânticas dos sujeitos: tranferenciais (origem, agente,<br />

experienciais).<br />

No segundo predominam predicadores de processos. No entanto, como esses sujeitos<br />

não apresentam o traço semântico [+controlador] então não são “causativos” do processo. Por<br />

isso, neles predomina a função semântica de origem do processo.<br />

Ditas estas coisas, não nos alongaremos mais porque precisamos de maiores pesquisas e,<br />

para isso, nos falta tempo. Mesmo assim, ao se tratar das funções semânticas do sujeito não se<br />

pode deixar de fora a questão da “voz verbal”.<br />

3) Voz verbal e papéis semânticos do sujeito<br />

A tradição gramatical é explicita quanto aos papéis temáticos do sujeito quando se<br />

refere à “voz verbal”. O conceito geral é que na “voz ativa” o sujeito pratica a ação; na<br />

“passiva”, sofre e na “reflexiva” pratica e sofre.<br />

Como já abordamos, é preciso precaução quanto a essas reduções. Só se pode dizer que<br />

o sujeito é “agente” quando houver os semas de [+humano] [+intencionalidade], [+controle<br />

dinâmico]. No mais, a categoria “agente” é usada como um hiperônimo. Assim, em: o pássaro<br />

voa, não teríamos, propriamente um agente, uma voz ativa, mas um processo. Não uma ação,<br />

mas uma atividade. Por isso, os antigos não classificariam a construção da frase como “voz<br />

ativa”, mas “média”.<br />

Outra coisa também que os fatos desmentem é dizer que na “voz passiva” o sujeito é<br />

paciente. Depende dos semas do predicador, como já analisamos. Para melhor ilustrar isso, a<br />

frase “Mulher estuprada será indenizada”, título de uma manchete da Folha de São Paulo, foi<br />

aplicada como exercício para turmas de 7ª série. Levantou-se a questão de que apesar da forma<br />

passiva, o sujeito “mulher” apresentava dois papéis semânticos: era “paciente” em relação ao<br />

estupro, mas “beneficiária” em relação à indenização. Isto significa então, de acordo com<br />

Mateus (p.321), que a noção de passiva é muito mais uma noção sintática. E há na manchete<br />

dois predicadores, um “adjetival” e outro “verbal”.<br />

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Se na voz ativa tivéssemos “mulher receberá indenização da justiça” o sujeito continua<br />

sendo o beneficiário recipiente, enquanto o CD será o benefício e o CI será o agente ou<br />

beneficiador. Se parafrasearmos, “Justiça dará indenização à mulher”, mudam-se os valores<br />

sintáticos, mas permanecem os papéis semânticos.<br />

Se isso foi uma novidade, já é consenso no ensino a diferença entre voz passiva (forma<br />

sintática passiva) e passividade. Poucos são os professores que confundem como voz passiva<br />

uma frase como “o garoto apanhou do pivete”, cujo processo reflexo seria “o pivete bateu no<br />

garoto”. Os termos “garoto” e “pivete” teriam funções sintáticas diferentes (sujeito e CI), mas o<br />

mesmo papel semântico.<br />

Sabemos que existe outra forma sintática de passiva, mas não vamos explorar o assunto,<br />

porque nossa intenção é, sobretudo, desmistificar que a função do sujeito da voz passiva é de<br />

“paciente”. Como já dissemos, tudo depende do predicador.<br />

Conclusão<br />

Com estas observações, cremos ter atingido nossos propósitos de ver os papéis<br />

temáticos do sujeito dentro do texto, ou como advoga Neves (2002) dentro da língua em uso.<br />

Para concluir podemos tecer algumas considerações gerais do que se deve ter em mente<br />

a respeito do sujeito, quando formos fazer a “ponte” entre a academia e as salas de aula.<br />

De modo geral, não se pensa o sujeito em termos semânticos. Estamos habituados a<br />

caracterizá-lo como o termo que está em relação de concordância com o verbo. Mas se for<br />

levada em consideração a diversidade dos papéis semânticos do sujeito - como fizemos acima -<br />

o hábito da explicação sintática (embora possa ser o ponto de partida) não esclarece a verdadeira<br />

função do sujeito. Conforme vimos, é possível declarar que as características dos predicadores<br />

vão selecionar os papéis semânticos dos sujeitos a eles correspondentes.<br />

Como há diferentes predicadores, há também diferentes papéis semânticos do sujeito.<br />

Podemos então listar os predicadores:<br />

Predicadores identificadores: o sujeito é tem o papel de ser identificado. Exemplo:<br />

A viúva do Evangelho era pobre<br />

Predicadores classificadores: o sujeito é enquadrado dentro de uma classe. Exemplo: Os<br />

fungos incluem diversas classes de organismos.<br />

Predicadores experienciais: o sujeito tem o papel de experienciador do processo.<br />

Exemplo: Os ricos gostam de lançar moedas ao Templo.<br />

Predicadores transferenciais: o sujeito tem o papel de transferidor ou receptor<br />

(benficiário) Exemplo: A viúva ofertou duas moedinhas ao Templo. E numa operação conversa,<br />

podemos dizer que “o Templo recebeu duas moedinhas da viúva”.<br />

Predicadores locativos: o sujeito apresenta o papel de lugar.Exemplo: O templo ficava<br />

no centro da cidade.<br />

Predicadores de atividade física: o sujeito tenderia a ser um “agente”, considerado como<br />

hiperônimo. Exemplo: Lançavam ofertas ao Tesouro do Templo. Estes predicadores podem<br />

referir-se a um movimento controlado pelo sujeito, isto é, um movimento voluntário, realizado<br />

por um ser animado. Nesse caso, o papel semântico do sujeito será o de “agente”. Mas, como<br />

observamos, há graus diferentes de movimento voluntário.<br />

Em contrapartida, se o movimento realizado por um ser animado não for controlado,<br />

voluntário, o papel semântico do sujeito será o de origem do processo. No caso dos textos<br />

acima, pudemos perceber que os “ricos” e os “fungos” são muito mais origem do que agentes do<br />

processo. E, concluindo, se o predicador exprimir um movimento não-controlado e realizado<br />

por um ser não-animado, o papel semântico do sujeito será o de objeto, como por exemplo: a<br />

moeda caiu no cofre do Templo.<br />

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Ao término desta monografia, estamos nos lembrando daquela situação de perplexidade<br />

do mestre Serafim da Silva Neto 31 que ─ já em 1956 ─ constatava que se ao final de pelo menos<br />

7 anos de estudo de língua portuguesa, “saem os alunos na mais lamentável ignorância da língua<br />

pátria [então] é um curso absolutamente inútil. (...) Fora da linguagem comum, trivial, rasteira,<br />

tudo para eles é um abismo” (p.189).<br />

E verificava que de ano para ano caía o nível. Examinadas as causas, chega à conclusão<br />

de que, depois das causas políticas e sociais, o problema está na falta de leitura. Imagina que se<br />

um aluno lesse 1 hora que fosse por dia, no final do ano já seriam 365 horas e ao final de 7 anos,<br />

2.555. “Hoje - lamentava-se ─ desgraçadamente, nossos jovens, em geral, não lêem coisa<br />

nenhuma. Limitam-se a olhar histórias em quadrinhos e a soletrar as linhas que as explicam.<br />

Sofrem, pois, de verdadeira inanição intelectual” (id.p.192).<br />

Pobre do mestre, se ainda estivesse entre nós... Com mais amargura verificaria a política<br />

de facilitação ou, como dizia, vantagem fácil da época, com uma clientela, queixava-se citando<br />

Gladstone Chaves de Melo, cuja<br />

“preocupação máxima, e quase sempre única, na aula, é descobrir e ‘gozar’ o ridículo do<br />

professor (...) atucanar-lhe a paciência com mil diabruras e insolências, reduzi-lo à condição de<br />

Polícia Especial, ou antes, domador de feras. Realmente, é dificílimo ensinar a uma classe onde<br />

80 por cento dos alunos não prestam a menor atenção; olham atrevidos para o mísero” (p. 191-<br />

192).<br />

Numa visão quase que profética, constatava que se ensinava muito a gramática e pouco<br />

a língua. Ainda não se falava numa gramática funcionalista, mas o mestre já advertia que “a<br />

gramática estuda palavras e construções, mas esquematiza-as, enquanto a língua real, a língua<br />

viva [grifo do autor] nos mostra essas mesmas palavras e construções intimamente entrosadas”<br />

(id.ib.). Já proclamava que se devia ensinar a língua como um fim e a gramática como um meio.<br />

Mas, e isto é espantoso, sábio foi também ao denunciar a campanha que se fazia contra<br />

ela. Isso, finalizamos, “prejudicou o estudo da língua, porque, afinal, não se podem estudar<br />

apenas textos e mais textos, sem codificação e sistematização dos fatos neles exemplificados”<br />

(id. p. 197). Parece-nos que hoje, nós, no século XXI, voltamos à mania dos “textos e mais<br />

textos”, de fazer das aulas de língua portuguesa uma discussão de temas transversais, numa<br />

febre de “interdisciplinaridade” que - como ao mestre Serafim - nos assusta.<br />

Perdemos o nosso objeto de ensino. Trazemos, para o começo deste século XXI, sua voz<br />

(profética) quando nos diz que “muito se exagerou, nos fins do século passado e no começo<br />

deste, o refrão de que uma língua se aprende nos textos” (id.ib.). Cuidadoso, porém, adverte e<br />

reconhece que uma língua se aprende, sobretudo, na minuciosa e atenta leitura de textos de<br />

todas as épocas. Não como fazemos hoje: damos aos alunos apenas textos do dia, quando muito<br />

da semana. E os clássicos? E os textos literários?<br />

Além disso, os textos não são para serem estudados, num trabalho de minuciosa e atenta<br />

leitura. São apenas pretextos para serem discutidos temas transversais, inter, transdisciplinares e<br />

outros modismos. Acabamos dando aula de história, filosofia, sociologia, geografia, ciências,<br />

códigos de trânsito, receitas, etc. e nos esquecemos que nosso objeto é língua portuguesa.<br />

Isto que agora denunciamos, o mestre Serafim já o fazia naquela época quando alertava<br />

que uma língua não se aprende “somente nos textos, pois as língua, com serem expressões de<br />

arte, possuem um arcabouço gramatical que precisa ser conhecido” (id.ib).<br />

Concluindo, voltamos a advertir que o tema (funções semânticas do predicado e sujeito)<br />

desta pesquisa, neste rumo de um ensino efetivo da língua viva, é apenas um primeiro estudo e,<br />

por isso, assumimos as lacunas e as insuficiências (talvez até mesmo incoerências) que nele<br />

houver. Mas, mesmo assim, já nos pareceu um grande passo.<br />

31 NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da filologia portuguesa. São Paulo: Cia.<br />

Ed.Nacional,1956.<br />

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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______ A gramática - história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp, 2002.<br />

______.Gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.<br />

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática<br />

no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.<br />

VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação. Coimbra: Almedina, 1992.<br />

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A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC<br />

Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ <strong>UERJ</strong>)<br />

Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da<br />

cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o<br />

sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. (...) Estamos<br />

falando do Ourives do Palavreado. Estamos falando de poesia<br />

verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca<br />

mesmo.<br />

Versátil - que se move facilmente; que está em movimento.<br />

Propenso à mudança, volúvel, inconstante, mutável.<br />

(Koogan/Houaiss s. u)<br />

O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma breve apreciação dos<br />

caminhos lingüísticos percorridos pelo poeta e letrista Aldir Blanc, colocando em foco a<br />

seleção vocabular e a especialização lexical. Procuraremos mostrar de que modo a<br />

temática brasileira é explorada e como é feita a representação de uma visão de mundo<br />

bastante aproximada da realidade das classes populares, especialmente ao tratar de<br />

temas como o amor e o futebol. Numa abordagem estilístico-semântica que busca o<br />

concurso da Semiótica, procuraremos identificar a iconicidade lexical na construção dos<br />

campos semânticos que orientam a coesão e a coerência dos textos em análise,<br />

verificando como se atualiza sua identidade como sujeito em seu vínculo com a<br />

realidade essencialmente brasileira e especificamente carioca.<br />

A escolha de Aldir Blanc se justifica exatamente por sua versatilidade. Como se<br />

encontra no verbete, ser versátil é ser propenso à mudança, é estar em movimento. De<br />

que forma se detecta, entretanto, qualquer movimento? Deve-se ter um referencial fixo,<br />

em relação ao qual um objeto se mova. Sabemos que a linguagem de Aldir está em<br />

movimento, assim como ele próprio, em sua vida, porque há elementos fixos a<br />

denunciar uma energia cinética inquieta, a mesma que o fez abandonar a carreira de<br />

médico psiquiatra para abraçar incondicionalmente a criação poética. Os elementos<br />

fixos são exatamente sua identidade como brasileiro, carioca, plenamente enraizado na<br />

zona norte do Rio (ocupada, em geral, pela classe média e por camadas populares), onde<br />

nasceu e mora.<br />

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Segundo Aldir, as vivências de infância e juventude em Vila Isabel, Estácio,<br />

Tijuca, pontuadas sempre pela boemia e pela música, que chegava de casas vizinhas no<br />

vento, determinariam suas opções de vida: “A Zona Norte se entranhou em mim de vez,<br />

com seus vitrolões, seus álbuns de 78 rotações” (Blanc, 2001, p6). A vida do povo, o<br />

trabalho, o morro, o samba, a boemia, o bar, o futebol, as crendices e as dores populares<br />

foram-se reunindo, nas vivências do poeta, a uma riqueza intelectual vinda do gosto<br />

pela literatura, em especial pelas obras de Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge<br />

Amado, Carlos Heitor Cony. Na música, canções “antigas” de Ismael Silva, Wilson<br />

Batista e Noel Rosa estavam na lista de suas “cantorias” de bar, mas foi em Vinícius de<br />

Moraes que constituiu sua grande referência. De modo irreverente, Blanc dimensiona o<br />

peso de nomes da literatura universal em seu perfil de poeta: “Claro que houve também<br />

Pound, Llorca e Maiacovsky, mas creio que a influência da sinuca foi maior”. Em<br />

torno deste eixo, sua poesia rodopia, criativa, genética, desdobrando-se em signos de<br />

diferentes tipos: ora mais especificamente icônicos, ora mais notadamente indiciais, ora<br />

simbólicos.<br />

Para melhor esclarecermos os pressupostos teóricos que sustentam esta<br />

investigação, recuperemos os conceitos de ícone, índice e símbolo, como formulados<br />

por Peirce (2000) em sua Semiótica:<br />

“Um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que<br />

possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não<br />

existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha<br />

geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o<br />

torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse<br />

caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um<br />

molde com buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria<br />

havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou não a<br />

capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o<br />

caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso<br />

de qualquer elocução de discurso que significa apenas por força de<br />

compreender-se que possui essa significação”. (Peirce, 2000: 74)<br />

Relembremos, igualmente, que, segundo este autor, o processo de semiose se<br />

estrutura numa tríade, que envolve Signo/Objeto/Interpretante, cuja relação é assim<br />

apresentada por Darcilia Simões (1999):<br />

“Nessa tríade, o filósofo retoma um esquema aristotélico e nos mostra um<br />

processo de inter-relações por meio das quais a consciência humana dialoga<br />

com o exterior. Em outras palavras: o que Peirce designa como signo é aqui<br />

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tomado como um fato ou fenômeno (aquilo que sensibiliza a consciência─ a<br />

que ele designou phaneron) que estimula a ação da consciência. Esta, por<br />

sua vez, reage ao lampejo da idéia-mensagem e a associa a um objeto<br />

imediato de natureza sígnica (representâmen) que processa os dados em<br />

forma de pensamento com base no interpretante ─“tradução” do phaneron<br />

em juízo verbal.”(Simões, 1999, p.91)<br />

Através de levantamentos dos campos semânticos trabalhados pelo poeta em alguns de<br />

seus textos, procuraremos surpreender a construção da semiose na relação entre elementos<br />

essencialmente ideológicos que lhe servem de eixo e elementos lingüísticos mutáveis.<br />

NÍVEIS DE SOFISTICAÇÃO NO TRATO LINGÜÍSTICO<br />

Este carioca “com Vila Isabel no DNA”─ conforme nos diz Roberto Moura na<br />

apresentação do songbook do artista ─, despeja em poemas, contos e crônicas tanto a<br />

crueza da vida do povo como o seu lado engraçado, sem deixar de visitar os recantos da<br />

alma humana, complexa em sua natureza. Revela-se, então, toda a versatilidade que<br />

colocamos em foco neste trabalho ─ sua linguagem transita da expressão mais popular<br />

aos elementos mais sofisticados.<br />

1.1) A VOZ DO POVO<br />

Uma das características de Blanc é fazer-se meio para a expressão popular,<br />

usando seus temas, seu palavreado:<br />

Veio a comadre bater no portão lá de casa<br />

pra contar que meu cumpadre nem começou, já acaba...<br />

Esse cara precisa de um chá de mastruço e catuaba.<br />

Disse que faz uns seis meses<br />

que o fuque-fuque anda ruço:<br />

esse cara precisa de um chá<br />

de catuaba e mastruço.<br />

(Claudio Cartier e Aldir Blanc, “Mastruço e Catuaba” -<br />

fragmento. In: Blanc, 1996)<br />

Neste refrão de uma letra de samba, Blanc utiliza vocábulos e expressões<br />

essencialmente populares para abordar de modo “caseiro” e bem-humorado a questão da<br />

sexualidade. A marca da oralidade carioca está na seleção lexical: cumpadre, esse cara,<br />

anda ruço (=está difícil). Mesmo numa relação de amizade, entre compadre e comadre,<br />

com liberdade inclusive para falar de intimidades, cabe uma certa reserva ao se tratar de<br />

sexo. É aí, que surge o termo popular fuque-fuque, uma espécie de onomatopéia alusiva<br />

ao coito.<br />

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O texto conta com uma cumplicidade do leitor/ouvinte para construir sentidos<br />

através do preenchimento de lacunas discursivas como a do segundo verso,<br />

graficamente assinalada pelas reticências.<br />

Assim, fazendo graça de assuntos sérios, muitas vezes ainda tratados “como<br />

tabus”, Aldir monta, ao longo de várias de suas letras, uma autêntica colagem de cenas<br />

da vida do povo.<br />

1.2) JOGO SEMIÓTICO<br />

O mesmo tempo ─ o sexo ─ está presente em “Maçã Tatuada” (Blanc, 1996), já<br />

numa abordagem diferente:<br />

Numa esquina de Copa ficava parada,<br />

alvejada pelas setas do vício,<br />

e o início tinha sido divino:<br />

um amante latino<br />

Sua boca vermelha, a maçã tatuada<br />

sobre o ombro (a sombra de veludo),<br />

a pele onde um homem que é nada<br />

pensa que é capaz de tudo. (...)<br />

Toda vez que as pestanas castanhas batiam,<br />

o olhar trocava mil slides:<br />

na praia, na lambada,<br />

com a amiga que já faleceu de Aids...<br />

e na bolsa, quando ia ao toalette,<br />

a gilete, o sempre-livre,<br />

e o chiclete importado,<br />

o velho exemplar do despertar de algum mago.. (...)<br />

Através da seleção vocabular, Aldir Blanc define um campo semântico relativo à<br />

atmosfera da vida de prostituição, da rua (esquina, setas do vício, boca vermelha, maçã<br />

tatuada, sombra de veludo, pestanas castanhas). Os objetos portados pela mulher<br />

funcionam, aqui, como signos indiciais de sua vida e atividade ─ bolsa, gilete, sempre-<br />

livre, chiclete importado, exemplar do despertar de algum mago. Para Peirce, índice<br />

seria.<br />

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“um signo ou representação que se refere ao seu Objeto não tanto em virtude<br />

de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar<br />

associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar<br />

numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o Objeto” (apud Santaella,<br />

2000, p.122).<br />

Assim, os objetos da bolsa, sendo individuais e estando dinamicamente<br />

conectados à vida daquela prostituta, funcionam como seus índices.<br />

A contundência deste texto, no entanto, reside na forma pela qual a noção de<br />

tempo é trabalhada. A escolha do imperfeito dilata os processos verbais e sinaliza a<br />

passagem do tempo (ficava, batiam, trocava); no verso “o início tinha sido divino: / um<br />

amante latino...”, mais uma vez se sugere um razoável decurso de tempo, com a<br />

referência ao “início”, o que é confirmado pelas alusões às lembranças da personagem:<br />

os mil slides trocados - pedaços de sua memória -, a experiência da morte de uma<br />

amiga. Imagens que, inter-relacionadas, significam uma história de vida muito peculiar<br />

e lhe conferem um certo peso, uma nostalgia. Os signos utilizados representam uma<br />

mulher vivida, experiente, sofrida e sugerem que seja uma adulta, não apenas em seu<br />

emocional, mas também em termos de faixa etária.<br />

ao primeiro:<br />

A partir daí, o poeta inaugura um novo campo semântico oposto conceitualmente<br />

Prostituta Mulher Pura<br />

esquina, setas do vício, boca vermelha,<br />

maçã tatuada, sombra de veludo,<br />

pestanas castanhas,Duvivier<br />

Jezebel, Moema, treze anos.<br />

Reunindo alguns desses elementos em paradoxos, o poeta provoca uma releitura da<br />

personagem e prepara o clímax do poema.<br />

(...) o apelido que não posso esquecer:<br />

a Jezebel da Duvivier,<br />

saiu assassinada na manchete,<br />

entre a greve e os motins urbanos,<br />

chamava-se Moema, era morena,<br />

e tinha apenas treze anos.<br />

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Vejamos como ele operacionaliza isto.<br />

Primeiro faz a revelação do nome de guerra da prostituta, “Jezebel da Duvivier”,<br />

paradoxal em si por reunir um nome bíblico 32 ao de uma rua de Copacabana, num jogo<br />

que evoca a dicotomia entre a mulher santa e a mulher da vida, aqui reunidas numa só:<br />

era da vida porque prostituta, era santa, por ser menina e mártir. Trabalhando ainda com<br />

contrastes, coloca este nome como inesquecível, elevando a personagem a uma posição<br />

de destaque, mas dissolve a notícia do assassinato da moça, “entre a greve e os motins<br />

urbanos”.<br />

Em seguida, revela o nome verdadeiro da garota, mostrando a sua face de moça<br />

sob a máscara da mulher: Moema (usada, preterida pelo homem, tragada, ingênua, para<br />

as profundezas do mar). Por fim, aponta sua idade – treze anos –, sublinhando-a com<br />

um “apenas” e fazendo essa flagrante adolescência contrastar com todas as informações<br />

e sugestões anteriores.<br />

Segundo Peirce (2000), “tudo o que atrai a atenção é índice. Tudo o que nos<br />

surpreende é índice, na medida que assinala a <strong>jun</strong>ção entre duas porções de<br />

experiência”. Ao longo do texto, signos indiciais são utilizados para desenhar a<br />

personagem e trabalhar a atenção do leitor, proporcionando-lhe uma surpresa ao final.<br />

No entanto, a partir daí, a personagem é redimensionada e ressignificada, tornando-se,<br />

em si, um signo simbólico que representa a questão da prostituição infantil. Nos dizeres<br />

de Lúcia Santaella, o símbolo seria “um meio geral para o desenvolvimento de um<br />

interpretante”. Nota-se que, calando sua fala nesse ponto, o poeta projeta o leitor em<br />

reflexões sobre o tema, deixando-lhe a possibilidade de tomar a personagem como signo<br />

e, vinculando-a a elementos de sua experiência particular, fazer associações entre idéias<br />

e penetrar, assim, numa dimensão crítica. O símbolo realiza, portanto, sua função.<br />

1.3) NEOLOGISMOS<br />

O estilo caleidoscópico de Aldir Blanc, que salpica substantivos e deixa que o<br />

leitor os movimente para formar novas e variadas imagens, fica nítido em “Querelas do<br />

Brasil” (Maurício Tapajós e Aldir Blanc):<br />

32 “Jezabel - esposa de Acab, Rei de Israel, e mãe de Atalia. Foi morta por ordem de Jeú e devorada por<br />

cães” (s.u. Koogan/Houaiss, p. 1285).<br />

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o brazil não merece o brasil<br />

o brazil tá matando o brasil<br />

jereba-saci<br />

caandrades cunhãs ariranharanha<br />

sertõesguimarães bachianaságuas<br />

imarionaíma ariraribóia<br />

na aura das mãos de jobim-açu, ô,ô,ô<br />

pererê camará tororó olerê<br />

piriri ratatá karatê olará<br />

jererê sarará cururu olerê<br />

blá-blá-blá bafafá sururu olará<br />

do brasil s.o.s. ao Brasil<br />

Nesse poema o autor exercita um nacionalismo crítico, aliado a um manejo<br />

vocabular, que penetra a intimidade mórfica e mesmo fonética das palavras para<br />

produzir neologismos e registrar coloquialismos capazes de recuperar as riquezas<br />

naturais e culturais do país, feste<strong>jan</strong>do nomes e obras do nosso modernismo com<br />

recursos tão bem utilizados por esta mesma estética: “caandrades”, “sertõesguimarães”,<br />

“bachianaságuas”, “imarionaíma” – vocábulos com segredos por desvendar.<br />

“Caandrades” – Carlos/Andrade? Os Andrades de cá? Talvez mais desvendável seja<br />

“sertõesguimarães”, que definitivamente funde o lugar da seca com Guimarães Rosa,<br />

que tão bem o retratou; ou “bachianaságuas”, numa referência aos poemas musicais de<br />

Heitor Villa-Lobos; ou, ainda, “imarionaíma”, em que autor/obra/personagem se<br />

confundem. Coerente com sua identidade musical inclui uma homenagem a Tom Jobim,<br />

visto como um indígena (no sentido etimológico do termo) de grandes proporções<br />

criadoras, um compositor grande, como marca o sufixo tupi (“na aura das mãos de<br />

jobim-açu”). Por fim, a denúncia e a crítica configuradas na oposição “brazil” / “brasil”,<br />

apresentadas no início do poema, são substituídas por um pedido de socorro dramático<br />

aos seus iguais: “do brasil s.o.s. ao brasil”. A opção pelo uso do substantivo comum ao<br />

mencionar o país, deixa claro que o poeta não se refere às entidades políticas que são os<br />

países, mas à realidade ideológica que neles se encontra.<br />

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1.4) ECONOMIA VOCABULAR<br />

O exercício crítico e a expressão ideológica marcaram e marcam o trabalho de<br />

Blanc. Por esta característica, todo o povo o conheceu, através de letras como “O<br />

mestre-sala dos mares” e “O bêbado e a equilibrista” (Blanc,2001). Em “O ronco da<br />

cuíca”, mais uma vez, é lançado um olhar crítico sobre a realidade do povo e sobre as<br />

relações de poder que regem o comportamento político-social. No plano da seleção<br />

vocabular, todo um jogo semântico é elaborado com base em apenas alguns lexemas.<br />

O Ronco da cuíca<br />

(BOSCO, João e BLANC, Aldir. In: MPB4, 2000)<br />

a fome tem que ter raiva pra interromper<br />

a raiva é a fome de interromper<br />

roncou, roncou<br />

roncou de raiva a cuíca<br />

roncou de fome<br />

alguém mandou<br />

mandou parar a cuíca<br />

é coisa dos home<br />

a raiva dá pra parar, pra interromper<br />

a fome não dá pra interromper<br />

a raiva e a fome é coisa dos home<br />

a fome tem que ter raiva pra interromper<br />

a raiva é a fome de interromper<br />

a fome e a raiva é coisa dos home<br />

é coisa dos home, é coisa dos home<br />

a raiva e a fome, mexendo a cuíca<br />

vai ter que roncar<br />

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No texto, Blanc “joga” com alguns lexemas e o faz de modo tão flagrante que<br />

mesmo um leitor menos avisado tem condições de perceber, ao menos, a persistência<br />

em alguns vocábulos.<br />

Um levantamento inicial permite identificar palavras-chave deste texto:<br />

• raiva fome cuíca roncar interromper home<br />

Das palavras destacadas, três são substantivos e duas são verbos. Passando a<br />

organizar esse con<strong>jun</strong>to de vocábulos em dois subgrupos, conforme sua classe, teremos<br />

em um grupo, raiva, fome, cuíca e home e em outro as ações de interromper e roncar.<br />

Como suporte para as reflexões que serão feitas, buscou-se o sentido<br />

dicionarizado de cada vocábulo. Em cada verbete transcrito, destacaram-se, desde já,<br />

trechos que parecem vincular-se pelo sentido ao contexto em que os lexemas aparecem.<br />

1.4.1) OS SUBSTANTIVOS: RAIVA, FOME, CUÍCA, HOME<br />

Blanc inaugura seu texto com a tríade que irá sustentar o restante do poema:<br />

fome/raiva/ronco. Nos dois primeiros versos, fome e raiva aparecem em relação de<br />

oposição – a raiva “dá pra parar, pra interromper”, já a fome “não dá pra interromper”.<br />

Logo a seguir, os dois lexemas se aproximam quanto ao efeito por eles produzido, o<br />

ronco, que pode ser “de raiva” ou “de fome”.<br />

Examinando o significado dicionarizado para estes lexemas, tem-se que raiva<br />

corresponde a “violento acesso de ira, com fúria e desespero; ânsia veemente; desejo<br />

irresistível; grande apetite; paixão ardente; aversão, ódio” Fome, por sua vez,<br />

corresponde a “sensação causada pela necessidade de comer; falta, míngua de<br />

víveres; miséria, penúria; avidez, sofreguidão, desejo insaciável” (Michaelis, s.u). Vê-<br />

se que ambos os vocábulos comportam os traços semânticos de ânsia, sofreguidão e<br />

desejo. Igualmente, encontra-se neles o sema da nutrição (raiva=grande apetite;<br />

fome=míngua de víveres).<br />

Entre esses lexemas se estabelece uma forte imbricação, explicitada na<br />

circularidade dos seguintes versos:<br />

• “a fome tem que ter raiva pra interromper”<br />

• “a raiva é a fome de interromper”<br />

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Assim, a fome (que “não dá pra interromper”), reunida à raiva, que traz o traço<br />

“dá pra interromper”, assimila a possibilidade da interrupção. Tem-se, então que:<br />

• Fome + raiva= possibilidade de interromper<br />

Por sua vez, a raiva é definida como “fome de interromper”, ou seja;<br />

• Raiva = fome + interromper<br />

O sentido será completamente tautológico e, portanto, estéril, se exatamente os<br />

mesmos semas participarem da construção dos sememas de raiva e de fome. Façamos<br />

um exame destes semas, comparando-os com os que participam dos sememas cuíca e<br />

home. Antes, porém, vejam-se os verbetes para estes dois termos:<br />

• cuíca (tupi Kuika) – “instrumento musical rústico, de origem africana,<br />

feito de um barrilete ou tronco oco, com uma das bocas tapada por<br />

uma pele bem esticada, em cujo centro há preso por dentro um bastão, o<br />

qual, quando friccionado com a mão, produz um ronco cavo (escavado,<br />

côncavo, cavernoso, rouco)”. (Michaelis, s.u)<br />

• home (corruptela de homem)- “mamífero da ordem dos primatas, único<br />

representante vivente do gên. Homo, da espécie Homo sapiens,<br />

caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis,<br />

inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e<br />

capacidade para produzir linguagem articulada; a espécie humana; a<br />

humanidade; o ser humano considerado em seu aspecto morfológico, ou<br />

como tipo representativo de determinada região geográfica ou época”<br />

(Houaiss, 2000)<br />

LEVANTAMENTO DOS SEMAS DAS PALAVRAS-CHAVE DO TEXTO “O RONCO DA CUÍCA”<br />

desejo ,<br />

ânsia<br />

nutrição dá pra<br />

interrompe<br />

r<br />

saciáve<br />

l<br />

voluntári<br />

o<br />

Causa de<br />

ronco<br />

Consciente Humano<br />

Raiva + + + + + + + +<br />

Fome + + - - - + - +<br />

Cuíca + - + - + + + -<br />

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Retornando aos registros lexicográficos, descobre-se que raiva é definida como<br />

“desejo irresistível, grande apetite”. Irresistível é aquilo a que não se pode fazer frente,<br />

diante do que se está passivo. Apetite evoca a idéia de vontade, de ato voluntário. O que<br />

depende da vontade, “dá para parar, para interromper”; o que é desejo irresistível, não.<br />

Por isso, a fome “não dá pra interromper”, já que se caracteriza pela avidez, pela<br />

sofreguidão, sendo um desejo insaciável, uma necessidade, afastando-se do caráter<br />

voluntário da raiva.<br />

A raiva, no plano do consciente, tem força irresistível, mas pode ser controlada.<br />

A fome, no plano do orgânico, está fora de controle, não tem direção certa, não tem<br />

vontade.<br />

Ao dizer que a fome tem que ter raiva pra interromper, busca-se uma transição<br />

do primeiro elemento do plano orgânico - não-consciente - para o plano do consciente,<br />

voluntário. A raiva empresta à fome os traços +voluntário, +consciente, inaugurando<br />

um novo sentido para o vocábulo, bem como, gerando novas possibilidades de<br />

interromper. “A raiva é a fome de interromper” ─ a raiva, aí, ganha um aspecto de<br />

agente, aquele que vai realizar algo.<br />

A fome consciente pode interromper (no sentido ativo, de fazer parar). A raiva,<br />

acrescida do traço ─ saciável da fome, ganha força para interromper. A leitura passa<br />

então, de uma visão de raiva e de fome, como coisas interruptíveis, para agenciadores<br />

aptos a interromper algo.<br />

Vejamos agora, como se encaixa a cuíca neste raciocínio. A cuíca é um duto com<br />

duas bocas, uma aberta, outra fechada; uma roncando, outra calada. É a boca a boca da<br />

fome, da carência e também a boca do ronco, da raiva. A cuíca dá expressão tanto à<br />

fome quanto à raiva.<br />

No entanto, a cuíca “dá pra interromper”, ou seja, é voluntária e pode ser<br />

interrompida por quantos consigam vetorizar sua raiva, por se sentirem incomodados<br />

pela expressão da cuíca. Entram em cena os “home” ─ aqueles que mandam calar a<br />

cuíca. Dentro do conhecimento partilhado da cultura brasileira, sabe-se que o elemento<br />

home é +voluntário, +consciente e vincula-se ao exercício do poder, da imposição,<br />

sendo capaz de “calar a cuíca”, colocando-a como paciente de sua ação.<br />

1.4.2) Os verbos: roncar, interromper<br />

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Tanto a raiva quanto a fome têm o traço “produtor de ronco”, comum também à<br />

cuíca, que ronca “de raiva” e “de fome”. A raiva e a fome, mexendo a cuíca, vão fazê-la<br />

roncar, não só para expressar a dor, a necessidade, mas para protestar contra a sua<br />

causa, quem sabe até, na tentativa de interromper a opressão. Segundo o verbete, ronca,<br />

do latim Rhonchare, é “produzir som áspero, cavernoso e forte; estrondear, restrugir,<br />

dizer em tom de provocação; blasonar, bravatear” e interromper do latim Interrumpere;<br />

corresponde a “fazer cessar por algum tempo, cortar ou romper a continuidade, destruir,<br />

extinguir, calar-se, falar de coisa diversa do que vinha dizendo, não continuar a fazer o<br />

que estava fazendo; cortar a palavra a” (Michaelis, s.u).<br />

Os home, com raiva, com fome de interromper uma expressão incômoda, que<br />

grita, que “ronca” a fome, a carência, a dor de uma parcela da população; interrompem,<br />

mandam calar a cuíca, fecham-lhe a boca, impedem-lhe o ronco, silenciam-na.<br />

Aldir Blanc, neste jogo de substantivos e verbos, reproduz a rede que prende<br />

uma sociedade caracterizada pela carência, pela necessidade de expressão e pelo<br />

encontro constante com a opressão. Faz da letra do samba uma denúncia acerca das<br />

relações sócio-políticas da sociedade brasileira, especialmente da comunidade carioca,<br />

caracterizada pelo samba e simbolizada pela cuíca. Esta, com suas bocas, sua carência e<br />

sua expressão, mas também com sua submissão involuntária ao poder. É o signo<br />

simbólico de uma sociedade sob regime autoritário, mas a raiva, é esta, sim, o motor de<br />

todas as ações desenvolvidas. A raiva empresta consciência e dá vetor à fome; a raiva<br />

motiva a expressão da cuíca, fazendo-a roncar; a raiva dispara a ação opressora de<br />

mandar calar, de interromper. Ela é o arquissemema do texto de Blanc, capaz de<br />

costurar homens em dois lados, separados pelas suas ideologias, mas iguais na raiva,<br />

numa brigam viril para definir quem, por fim, será interrompido, se a cuíca, se os home.<br />

1.4.3) METÁFORAS: INTIMISMO E EXISTENCIALISMO<br />

Finalmente, após vermos a face descontraída, a face crítica e a engajada de Aldir<br />

Blanc, através de suas letras, vejamos como aparece seu lado existencial, em “Carta de<br />

Pedra”, composição que tem música de Guinga:<br />

CARTA DE PEDRA (Igreja da Penha)<br />

Prezado amigo, escrevo pra esclarecer<br />

que, mesmo antes de nascer,<br />

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meu coração se fez humano por ser suburbano<br />

e o HIV<br />

deu positivo porque meus irmãos<br />

padecem de doença igual<br />

e um degrau atrás de outro degrau<br />

me leva de joelhos à Igreja onde Deus me diz<br />

que o Humano me é estranho, sim,<br />

porque é meu pai e, ai de mim,<br />

nós nos desentendemos sempre<br />

e é assim que se faz<br />

canções, estradas, catedrais<br />

que depois não visitamos mais<br />

dão de nós o melhor testemunho,<br />

Prezado amigo, eu vi sair do papel<br />

A pedra e o fogo que há no céu<br />

E tudo parecia letra de chorinho<br />

E então também chorei...<br />

Os meus avós e o pai são os degraus<br />

Aonde eu piso em direção ao caos<br />

Mas posso ver na beira goiabeiras,<br />

Limoeiros, pés de sapoti<br />

E a Penha volta aqui<br />

Feito o mito de uma Ressurreição.<br />

A hóstia é pedra – hei de ralar!<br />

A Santa não pode cumprir o que não me crismar:<br />

O pai que eu amo não demora,<br />

A valsa chora e eu sei que chora<br />

Pelas Penhas que eu vou inventar<br />

Até que a própria Virgem<br />

Mande eu descansar...<br />

(Guinga & Blanc. In: Aldir Blanc- 50 anos. Rio de<br />

Janeiro: Alma Produções Ltda., 1996)<br />

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Neste poema, em que a escrita surge como elemento capaz de esclarecer a vida,<br />

Blanc trabalha, basicamente, com dois campos semânticos: o da pedra e o da<br />

pacificação.<br />

No campo de pedra, entram todas as referências ao seu sacrifício e às suas dores:<br />

penha, pedra, degrau, hóstia, humano, caos, canções, escadas, catedrais, chorinho. No<br />

campo da pacificação, estão: igreja, goiabeiras, limoeiros, pés de sapoti, virgem, valsa.<br />

A negociação entre esses dois campos é feita pela crisma – sacramento da confirmação<br />

da fé, mudança de nome. Assim, só pela transformação – escolhida pessoalmente –<br />

poderá ele receber a autorização da virgem para descansar.<br />

Mas note-se que as penhas inventadas são motivos para maiores escritas, maiores<br />

construções ...o fazer do poeta não pára. Não é apenas o eu-lírico que se transmuta; as<br />

penhas, as dores, as marcas da vida igualmente se transmutam em versos, em matéria<br />

poética.<br />

Aqui, Blanc trabalha com símiles e metáforas para criar um cenário que o<br />

represente como ser humano, estranho, sofrido, mas a caminho de esclarecimento pela<br />

poesia, numa relação religiosa com as palavras, tijolos lexicais que sustentam catedrais<br />

de sentido – um sentido revelador.<br />

2) A POESIA DE BLANC E A SALA DE AULA<br />

Muitas são as letras de Blanc que podem ser discutidas e aproveitadas em sala de<br />

aula, para deflagrar um processo perceptivo, qualificado em nossos alunos.<br />

Descortinando <strong>jun</strong>to com eles os véu que inicialmente parecem esconder o poético, é<br />

possível inaugurar novos sentidos, colocar os discentes em atitude de parceria e de<br />

cumplicidade com o texto.<br />

Partindo de letras com vocabulário popular, seguindo para outras mais<br />

sofisticadas, pode-se, ao mesmo tempo, desenvolver num crescendo a capacidade de ler<br />

– não no sentido estritamente alfabético, mas na acepção mais ampla de decifrar o<br />

mundo. Lendo a realidade através de outras palavras, de imagens originais, o aluno<br />

cresce e enriquece seu repertório, familiariza-se com outras formas de dizer, ver e<br />

enxergar.<br />

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Num tempo em que letras de música escorregam para discursos fragmentários, é<br />

mais que urgente, investir num trabalho que apresente qualidade poética e criativa aos<br />

nossos alunos, mostrando que um mesmo poeta pode ser versátil e passear entre a<br />

expressão popular e alguma erudição, sem se perder de si mesmo e sem se afastar de um<br />

compromisso com a música brasileira de qualidade.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BLANC, Aldir (1996). 50 anos (CD). Rio de Janeiro: Alma.<br />

__________ (2001). A poesia de Aldir Blanc: melodias e letras cifradas para guitarra, violão e<br />

teclados. Coord. edit. Roberto Mora; prod. Luciano Alves. São Paulo: Irmãos Vitale.<br />

KOOGAN/HOUAISS(1993). “Enciclopédia e dicionário ilustrado”. Rio de Janeiro: Ed. Delta.<br />

HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (v 1.0). Ed. Objetiva,<br />

2001<br />

MPB4 (2000). MPB4 VIVO – Melhores momentos. Rio de Janeiro: Cid<br />

PEIRCE, Charles Sanders (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.<br />

Revista Letristas Brasileiros (n º 1, 1996). Aldir Blanc e amigos.Rio de Janeiro: Alma.<br />

SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São<br />

Paulo: Pioneira, 2000.<br />

SIMÕES, Darcília. “Leitura e produção de textos: subsídios semióticos”. In: Valente, A. (org.).<br />

Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis, RJ:Vozes, 1999.<br />

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1) INTRODUÇÃO<br />

UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO<br />

Cláudio Artur de O Rei (<strong>UERJ</strong>-UNESA) 33<br />

Estilo é a linguagem que transcende do plano intelectivo para<br />

carrear a emoção e a vontade. (Mattoso Câmara, 1988:13)<br />

A Retórica, velha ciência da persuasão definida como uma arte do discurso eficaz (ars<br />

bene discendi), embora tenha sido suprimida como disciplina do currículo escolar, jamais<br />

cessou de reaparecer. Às vezes, fragmentada e camuflada, recebeu denominações diversas ao<br />

sabor da moda: Teoria da Composição, Arte Oratória, Teoria das Figuras, Estética, Poética,<br />

Estilística... E é exatamente com essa denominação Estilística que nosso trabalho será enfocado.<br />

Entretanto, sabemos que a Estilística sempre fora vista como a “irmã pobre” dentre os<br />

ramos da lingüística, tendo nesta mesma havido uma tendência que se recusava a inserir nos<br />

seus limites o problema da expressividade individual ou mesmo coletiva.<br />

Nossa proposta em desenvolver um trabalho em Estilística se dá pelo fato de ser ela<br />

uma ciência bastante abrangente o que nos permite utilizar como corpus um texto literário como<br />

o conto O Búfalo, de Clarice Lispector, e desmembrá-lo em uma análise que passa pelos níveis<br />

gramaticais, lingüísticos e literários, visto que a Estilística não é um estudo centrado em si<br />

mesmo, pois tal estudo nos permite “passear” por outros ramos de estudo.<br />

O corpus será analisado conforme a proposta do livro Iniciação à Estilística, de Nilce<br />

Sant’Anna, respondendo às perguntas por ela elaboradas as quais direcionarão o estudo<br />

estilístico que nos propomos.<br />

Nossa análise do conto O Búfalo tentará comentar os níveis de estruturação estilística<br />

do texto, num percurso dedutivo, o que nos oferece um leque de diferentes caminhos para<br />

análise, da mesma forma que sabemos da impossibilidade de esgotar aqui toda a riqueza dessa<br />

produção textual, devido às inúmeras possibilidades ou potencialidades existentes no corpus.<br />

Assim, partindo dos grandes núcleos significativos do conto (eixos semânticos),<br />

tentaremos levantar, comentar e classificar palavras, expressões e estruturas nominais e orações<br />

que participem da trama metafórica do conto. Além das estruturas das palavras, analisaremos,<br />

também, seu aspecto fonético, a expressividade de certas vogais e consoantes de acordo com as<br />

propostas da Fonoestilística.<br />

Mais adiante,tomaremos os determinantes — artigos e adjetivos — como alvo de<br />

análise com o objetivo de apontar-lhes os efeitos de sentido emergentes de sua posição nos<br />

enunciados, isto é, os valores expressivos de certas anteposições e posposições de adjetivos e a<br />

escolha no uso de alguns deles. Faremos, também, um levantamento do uso dos artigos<br />

definidos e indefinidos e as implicações no uso de cada um deles ou mesmo em sua omissão.<br />

Outro aspecto que também será abordado por nós é a questão da função poética em<br />

prosa que se apresenta no conto e de que forma Clarice Lispector consegue subverter esses<br />

valores poéticos mais simples em uma linguagem em prosa em prol de uma riqueza expressional<br />

ímpar.<br />

33 O autor é doutorando em Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong>, é docente da Universidade Estácio de Sá e da<br />

rede municipal de ensino.<br />

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Por fim, para não frustrar o leitor de qualquer estudo estilístico, apresentaremos breve<br />

quadro das figuras presentes no texto — sejam de substância fônica, sintática ou semântica —<br />

seguidas de breve exemplário.<br />

Todavia, é indiscutível que temos uma meta além da análise do conto O Búfalo: a de<br />

mostrar que a Estilística não está presente apenas nos livros de Retórica do passado, mas que ela<br />

é uma ciência com vezo semiótico-pragmático, constante em nosso uso diário, mesmo que por<br />

muitos não seja vista como tal.<br />

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA<br />

E aqui tocamos no ponto crucial: a escolha. Aí está a alma do<br />

estilo. A língua oferece possibilidades: o sujeito elege uma e<br />

rejeita a outra. (Chaves de Melo, 1976:23)<br />

A Estilística é uma disciplina lingüística que se fundamenta nos fatores de<br />

expressividade e afetividade; e seu papel é depreender todos os processos lingüísticos que<br />

permitem a atuação da manifestação psíquica e do apelo dentro da língua intelectiva. (Mattoso,<br />

1975: 137), e baseado nessa assertiva, ousamos dizer que a Estilística é uma espécie de<br />

"psicologia lingüística", destarte, a moderna noção de estilo, envolvendo a compreensão do<br />

autor e da obra, deixou de ser formal, retórica ou gramatical, para ser psicológica. Assim, a<br />

Estilística ocupa-se, primordialmente, da função afetiva da linguagem.<br />

Outrossim, o estilo é visto como um processo que exige conhecimento, gosto, requinte,<br />

senso de proporção e adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa e constante<br />

reinvenção. Cremos pertencer a Sílvio Elia uma das melhores caracterizações de "estilo",<br />

quando diz: Estilo significa o máximo de efeito expressivo que se consegue obter dentro das<br />

possibilidades da língua. (apud: Chaves de Melo, 1976: 24).<br />

Do ponto de vista cronológico, a Estilística é uma ciência bastante recente. Foi<br />

inaugurada em 1902 por Charles Bally, e como bem assinalou Chaves de Melo (1976: 15) até<br />

hoje está procurando seus direitos de cidadania, ou seu foral, no reino das disciplinas<br />

lingüísticas. No entanto, foi efetivamente a partir da Estilística idealista de Leo Spitzer, seguida<br />

então por Dámaso Alonso, Amado Alonso — que se distinguiam dos princípios de Bally,<br />

Vossler e Auerbach pela modernidade — que os estudos da expressão literária começaram a<br />

tomar impulso, dando início a uma reformulação crítica no processo literário, isto é, a velha<br />

retórica cede lugar a uma nova retórica (Estilística), em cujas premissas já não se exige o uso de<br />

uma "língua bonita", congelada pelas regras dos gramáticos. A língua, sendo uma expressão do<br />

homem, evolui com o homem, com os costumes, os ideais e os usos que ela exprime. Essa nova<br />

retórica implica a alteração conceitual de linguagem e estilo.<br />

Infelizmente, porém, há um grande ressentimento em nossa cultura lingüística, tomada<br />

essa palavra no sentido amplo de estudo das Letras, pela ausência de uma tradição de pesquisas<br />

estilísticas, seja da Estilística como ciência da expressão, seja da crítica estilística que aponta<br />

para a escrita literária.<br />

Tal desinteresse por esse tipo de estudo ocorre devido a dois conceitos falhos. O<br />

primeiro deles é que durante muito tempo prevaleceu entre nós as noções da antiga retórica,<br />

confundindo a Estilística com a parte da gramática que estuda as figuras de linguagem e os<br />

recursos poéticos. O segundo conceito falho é que os raros estudos acerca da expressão<br />

estilística literária têm-se limitado ao círculo restrito do meio universitário, distantes, portanto,<br />

do público maior interessado em Letras.<br />

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Dessa forma, tentando contribuir para o desfazimento desses antigos conceitos, optamos<br />

por trabalhar com um corpus literário, porém com diretrizes bastante diferentes daquelas a que<br />

estamos acostumados ver como modelo de análise estilística. Assim sendo, dentro do vasto<br />

campo da Estilística, optamos pela Estilística literária para a abordagem e elaboração deste<br />

trabalho.<br />

Não seguiremos, entretanto, uma linha de análise centrada em um único estilisticista,<br />

trabalharemos com concepções variadas de diferentes correntes que sejam pertinentes ou que se<br />

encaixem à proposta do trabalho. Aplicaremos modelos e conceitos de Spitzer, Vossler,<br />

Auerbach, Amado Alonso, Guiraud, Castagnino entre outros, por serem estudiosos da Estilística<br />

com visões diferentes, mas que se complementam em nossa proposta. Tal fato procede em<br />

virtude da grande maleabilidade com que Clarice Lispector trabalha as palavras nesse conto;<br />

logo, não nos podemos ater a uma única análise, ou a um único teórico.<br />

Seguindo a definição de que Estilística literária examina como é constituída a obra<br />

literária e considera o prazer estético que ela provoca no leitor; temos que o que interessa é a<br />

natureza poética do texto. Traços lingüísticos, dados históricos, ideológicos, sociológicos,<br />

psicológicos, geográficos, folclóricos etc., a visão de mundo do autor, tudo se engloba no valor<br />

estético da obra, que está impregnado do prazer do autor de criá-la e que vai suscitar no leitor<br />

um prazer correspondente, e tal conceituação corresponde bem ao que pretendemos fazer.<br />

O nosso trabalho será de pesquisa bibliográfica, sendo o corpus formado por um conto<br />

específico de Clarice Lispector cuja análise será norteada por perguntas específicas, então a<br />

leitura proposta não poderá ser concebida como a única possível; pois não teremos tempo hábil<br />

nem pretensão de dizer que esgotaremos todas as possibilidades do corpus.<br />

Porém, um enfoque estilístico mais profundo pode levar-nos a conclusões finais até<br />

então não supostas ou levantadas.<br />

3)ANÁLISE DO CORPUS<br />

3.1)UMA PROPOSTA DE LEITURA<br />

Não se preocupe em entender; viver ultrapassa todo o<br />

entendimento. (Clarice Lispector, in: A Hora da Estrela)<br />

Após a leitura do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, optamos por iniciar a nossa<br />

análise pelo narrador. A história é contada em terceira pessoa por um narrador onisciente neutro,<br />

que cede, às vezes, à personagem principal da história o direito da fala: Mas não o camelo de<br />

estopa. “Oh Deus, quem será o meu par neste mundo?”<br />

O tempo é marcado, no texto, por uma seqüência natural e ordenada, os fatos se<br />

justapõem. Embora haja uma situação de tempo: Mas era Primavera, nós não conseguimos<br />

captar no texto nenhum outro marcador temporal, isto é, nem o dia da semana, nem o mês, nem<br />

o ano. Isto é bastante interessante, pois a temática do texto é algo que pode acontecer em<br />

qualquer época.<br />

Um dos tópicos que mais nos chamou a atenção foi a questão da personagem<br />

protagonista da história, que nós sabemos apenas ser uma mulher. Ocorre uma anonímia no<br />

conto, ou como mesmo disse o narrador: a assassina incógnita. Acreditamos que tal fenômeno<br />

ocorra por não ser algo específico, mas passível de ocorrência a qualquer um.<br />

A história gira em torno da frustração amorosa de uma mulher e a manifestação latente<br />

da busca do prazer sexual: (...) deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro<br />

gemido., ou sua vida estava perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se<br />

(...), ou A brisa arrepiou os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, (...), ou ainda Gemeu<br />

de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado ferro<br />

frio.<br />

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A conotação sexual no conto é bastante expressiva, (...), por enquanto apenas a vontade<br />

atormentada de ódio como desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de<br />

amor, a vontade de ódio como se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea espiritualizarase<br />

na grande esperança. Percebemos que ela tem o desejo, que é a falta, é a necessidade do<br />

outro, do par, do complemento, visto que ela está só e está à procura do objeto "a", que é o<br />

representante do desejo, ou da "coisa", que é o impossível 34 . O marcador temporal Mas era<br />

Primavera relaciona-se diretamente com essa questão, pois é o tempo do acasalamento dos<br />

animais: O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas<br />

que arranham mas não dói ... Interessante de se ressaltar, nessa passagem, o uso do verbo<br />

“cristianizar” numa alusão ao conceito do crescei-vos e multiplicai-vos, ainda mais sendo de<br />

nosso conhecimento as origens judaicas da autora do conto.<br />

Em seu passeio ao zoológico, a personagem procura a identificação do objeto amado<br />

nos animais, talvez por se sentir como um animal, no cio, tentando acasalar-se, e em algumas<br />

passagens do texto, sente-se como se estivesse presa, enjaulada: "(...) rodeada pelas jaulas,<br />

enjaulada pelas jaulas fechadas, ou (...) A jaula era sempre do lado onde ela estava: (...), ou<br />

ainda A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava<br />

enjaulada e que um quati livre a examinava.<br />

Em sua procura, num misto de amor e ódio, a personagem observa os animais, e<br />

associa-os começando pelo leão, pelo rei, cujo apetite sexual faz com que consiga copular até<br />

setenta e duas vezes por dia, sentiu o cheiro quente. Já a girafa e o camelo não lhe inspiraram<br />

grandes sentimentos, talvez por serem ruminantes, e ficarem como ela própria "ruminando" a<br />

vida e na vida, era uma semelhança não o confronto que ela buscava.<br />

O hipopótamo despertou nela algo estranho, ousamos mesmo dizer algo fálico, como na<br />

passagem O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda.<br />

Seu grande e primeiro confronto, no entanto, foi com os macacos. Os primatas. Os semelhantes<br />

no mundo animal. Ao observá-los, começou a sentir o ódio pela possível identificação, mas isto<br />

foi exatamente o fator que a repeliu, pois o que ela queria era algo mais próximo da "besta fera"<br />

e não do homem. Se ela quisesse matar um homem, ela teria matado aquele que não a quis: “Eu<br />

te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse<br />

muito apressada. ou Eu te amo, disse ela então com ódio, para o homem cujo grande crime<br />

impunível era o de não querê-la., é de ressaltar o uso das aspas em "Eu te odeio" e o não uso em<br />

Eu te amo, percebemos mais uma vez a estreita relação e aproximação entre amor e ódio<br />

conflitantes que co-habitam dentro da personagem.<br />

Mas não o macaco, muito próximo! Há, ainda, a constatação de que o macaco era velho,<br />

logo sua capacidade de reprodução já estaria no fim. Tal fato também pode ser aplicado ao<br />

elefante, que lhe lembra um velho dócil; não esquecendo que o referido animal é uma raça em<br />

extinção. Animais estes não compatíveis com seu intuito. O mesmo pensamento ocorreu com o<br />

quati. Ele era a inocência, aquela sensação infantil de quem ainda não despertou para o amor ou<br />

para o cio.<br />

34 Apontamentos de aulas do curso de Literatura Portuguesa III, ministrado pela professora Nadiá Ferreira<br />

em 1987 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />

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Em suas reflexões, a personagem vai-se deparando com conflitos psicológicos<br />

subconscientes que lhe causam verdadeiras ansiedades neuróticas. O conflito amor e ódio não<br />

assume uma relação antitética, mas sim uma "perfeita" sinonímia. A tênue linha que separa<br />

amor e ódio é rota, o que os aproxima paradoxalmente, e ela tem a necessidade de amar para<br />

odiar ou de odiar para a amar: O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em dor ela não<br />

alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? ou Só sabia perdoar, que só<br />

aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, amar. Imaginar que<br />

talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração<br />

gemer sem pudor, ou ainda, Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo, já antecipando que a<br />

culminância de seu conflito será a morte. Afinal, durante a leitura do conto o narrador vai-nos<br />

dando pistas desse conflito: encolheu-se como uma velha assassina solitária, ou a assassina<br />

incógnita, ou ainda, E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. E é<br />

exatamente nessa esteira de análise, que vamos notando mais pistas em relação à morte, sendo<br />

que só temos a conclusão desse ato no desfecho da narrativa, quando descobrimos, finalmente,<br />

porque a personagem sempre punha a mão no bolso quando via um animal, ali estava o punhal<br />

que ela usaria para matar: Com os punhos nos bolsos do casaco, ou (...) apertando o punho no<br />

bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos (...), ou ainda, os punhos de novo fortificados nos<br />

bolsos.<br />

Inferimos, ainda, nessa questão do casaco, a ênfase dada ao adjetivo marrom, quando o<br />

narrador descreve a personagem com o casaco: A mulher do casaco marrom, ou quieta no<br />

casaco marrom, ou ainda, Dentro de um casaco marrom. Cremos que tal ênfase seja uma<br />

associação à idéia de transformação da personagem, isto é, como se ela vestisse, através do<br />

casaco, uma pele ou uma pelagem de animal, visto que ela está no zoológico à procura do seu<br />

par, mesmo que seja entre os irracionais: “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”<br />

Percebemos que o narrador faz, no decorrer do conto, quatro alusões à fome: (...), há<br />

dias mal comia, contraiu-se em cólica de fome, (...), fazia o possível para que não percebessem<br />

que estava fraca e difamada, (...), Mas o céu lhe rodava o estômago vazio; (...). Associamos tais<br />

alusões ao fato de que as fêmeas no cio mal se alimentam, pois a fome é tida como um dos<br />

maiores afrodisíacos naturais que existe (fato constatado em qualquer país de economia<br />

miserável).<br />

O narrador em dois momentos distintos e opostos faz referência à palavra Igreja:<br />

Separadas de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. e Pálida, jogada fora de<br />

uma Igreja, (...) Na primeira referência, vemos a aproximação do desejo do casamento (ou do<br />

acasalamento), porém, na segunda referência, vemos que o afastamento de tal objetivo é bem<br />

marcado, o que faz com que ela retorne à realidade, ou seja, à busca do "objeto" amado, visto<br />

que a manifestação do desejo sexual já a está extasiando: Levantou-se do banco estonteada<br />

como se estivesse se sacudindo de um atropelamento.<br />

Então, após longa procura ela se depara com o búfalo, que, como ela, também estava só<br />

em plena primavera; ocorrendo, assim, uma perfeita identificação entre eles, pois o búfalo vai<br />

tornar-se o objeto de seu desejo. E com o encontro vem o confronto, uma soturna rivalidade que<br />

culmina com a morte dos dois: (...), sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato.<br />

Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara.<br />

Sutilmente, o narrador nos mostra isto através do adjetivo mútuo, e também a grande fixação<br />

que a personagem tem pelos olhos. Ao analisar os macacos, ela já sugere que seria entre os<br />

olhos do macaco que ela o mataria. Chegamos à conclusão de que é exatamente neste ponto<br />

(local) em que ela crava o punhal, ao mesmo tempo em que o chifre do búfalo também se crava<br />

nela, como um símbolo fálico de complementação do vazio: a realização do desejo.<br />

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3.2) SUGESTÃO DE ESTUDO<br />

3.2.1) OBSERVAR O EMPREGO EXPRESSIVO DE PALAVRAS GRAMATICAIS. COMO A<br />

CONJUNÇÃO MAS E O ARTIGO DEFINIDO.<br />

A con<strong>jun</strong>ção mas é empregada largamente no texto, é, inclusive, a primeira palavra do<br />

mesmo, porém tal palavra é empregada com uma acepção diferente da que lhe é comum.<br />

Sabemos que essa con<strong>jun</strong>ção possui valor de oposição, adversidade; entretanto, no texto, ela<br />

apresenta um caráter mais subjetivo, introspectivo, não conhecemos a idéia anterior para saber<br />

se ocorre ou não a oposição.<br />

Podemos, então, analisar a palavra mas em momentos distintos: como con<strong>jun</strong>ção<br />

operando como sinalizador de relações opositivas, como operador argumentativo, pois além do<br />

caráter de oposição também direciona a linha argumentativa do discurso, e como marcador,<br />

onde não terá uma atuação no nível sintático nem denotará relações de adversidade entre<br />

orações, servirá como seqüenciador e organizador do discurso.<br />

Em nossa pesquisa estatística no texto, achamos a palavra mas em vinte e quatro<br />

passagens, as quais esquematizamos no quadro abaixo.<br />

CLASSIFICAÇÃO EXEMPLO COMENTÁRIOS<br />

C<br />

O<br />

N<br />

J<br />

U<br />

N<br />

Ç<br />

Ã<br />

O<br />

O<br />

P<br />

E<br />

R<br />

A<br />

D<br />

O<br />

R<br />

A<br />

R<br />

G<br />

U<br />

M<br />

E<br />

N<br />

Aquele elefante inteiro a quem fora dado com<br />

uma simples pata esmagar. Mas que não<br />

esmagava<br />

(...), o prazer percorreu suas costas até o malestar,<br />

mas não ainda o mal-estar que ela viera<br />

buscar.<br />

O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em<br />

dor ela não alcançava?<br />

(...) o mundo das bestas que na primavera se<br />

cristianizam em patas que arranham mas não<br />

dói ...<br />

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era<br />

bom no cair da tarde.<br />

Talvez não a tivesse olhado Não podia saber,<br />

porque das trevas da cabeça ela só distinguia os<br />

contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto<br />

ou sentido.<br />

Sua força estava ainda presa entre as barras,<br />

mas uma coisa incompreensível e quente (...)<br />

Mas de costas para ela o búfalo totalmente<br />

imóvel.<br />

“Mas isso é amor, é amor de novo.”<br />

(...) encontrar-se com o próprio ódio mas era<br />

primavera e dois leões (...)<br />

Mas não diante da girafa que (...)<br />

Mas não era no peito que ela mataria, (...)<br />

Mas não sabia sequer como se fazia.<br />

T Mas não o camelo de estopa.<br />

A adversidade encerra também uma idéia<br />

de restrição. 35<br />

A adversativa encerra uma idéia de<br />

retificação.<br />

A adversativa encerra uma idéia de<br />

indignação.<br />

A adversativa encerra uma idéia de<br />

exceção<br />

A adversativa encerra uma idéia<br />

de compensação.<br />

A adversativa encerra uma idéia de<br />

insistência.<br />

A adversativa encerra uma idéia de<br />

restrição.<br />

Encerra uma idéia de indignação,<br />

pelo próprio teor do parágrafo.<br />

Chamamos a palavra mas, nessa análise,<br />

de operador argumentativo por conduzir<br />

uma orientação argumentativa ao<br />

discurso,já que notamos a possibilidade de<br />

alcance da interrogação, isto é, possibilitase<br />

a articulação por sobre os limites da<br />

conversa, como se o narrador “dialogasse”<br />

com os leitores e expusesse suas<br />

35 Para tais conceituações indicamos conferir:<br />

SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro (1999). “Um estudo do item MAS na gramática e no discurso”. In:<br />

Caderno Seminal, Ano 5 – Nº 6. Rio de Janeiro: Publicações DIALOGARTS.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 125


M<br />

A<br />

R<br />

C<br />

A<br />

D<br />

O<br />

R<br />

A<br />

T<br />

I<br />

V<br />

O<br />

Mas como se tivesse engolido o vácuo, o<br />

coração surpreendido.<br />

Mas onde, onde encontrar o animal que lhe<br />

ensinasse a ter o seu próprio ódio?<br />

Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a<br />

alegria de andar descalça?<br />

Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela<br />

escorria enfim o primeiro fio de sangue negro.<br />

Mas era primavera<br />

Mas a girafa era uma virgem de tranças recémcortadas.<br />

Mas era primavera, e, apertando o punho no<br />

bolso do casaco, (...)<br />

Mas o elefante suportava o seu próprio peso.<br />

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, (...)<br />

Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; (...)<br />

com os leitores e expusesse suas<br />

argumentações para justificar as intenções<br />

da personagem, ou mesmo questioná-las 36 .<br />

Não existe, ainda, um conceito sistema-tico<br />

para a classificação marcador, todavia,<br />

sabemos que ele funciona como um<br />

organizador e seqüenciador de partes<br />

maiores do discurso: as relações tópicas,<br />

uma vez que ele organiza o discurso,<br />

contribui para a interação dialógica e<br />

promove a ligação entre as partes do<br />

discurso, retomando ou iniciando o turno.<br />

Ainda em relação à expressividade do mas, analisando as palavras de LAPA Sempre que<br />

vemos o homem revoltar-se contra o seu destino, encontramos a con<strong>jun</strong>ção mas, (1991: 201)<br />

parece-nos haver aí uma grande relação bastante pertinente com o conto, na medida em que<br />

sabemos que a personagem é um ser amargurado com o seu destino, daí a necessidade dela de<br />

amar para odiar e de odiar para amar, ou como vemos no desfecho da narrativa de matar para<br />

morrer e de morrer para matar. E, além disso, não podemos também nos furtar de admitir que<br />

todo movimento de surpresa pressupõe um mas (Lapa, 1991: 201), como na passagem: Mas de<br />

repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar,<br />

aquele espanto (...).<br />

Em relação à abundância de artigos definidos no texto, cremos que esteja ligada à<br />

questão da totalidade que o uso do referido artigo encerra. O artigo definido tem um efeito de<br />

representação que acentua o aspecto visual e familiar com os substantivos a que se direcionam.<br />

No texto, a personagem principal está à procura de algo que lhe falta, preencher o vazio,<br />

por isso é usado o artigo com valor totalitário, já que a cada momento ela pode deparar-se com o<br />

que procura.<br />

Destarte, em relação ao uso do artigo, podemos perceber que, no conto, o emprego dos<br />

indefinidos é bastante incomum; porém, há um emprego que é de grande importância salientar.<br />

Percebemos que o título é O Búfalo, com o artigo definido, e durante a narrativa o emprego<br />

continua sendo o mesmo: o búfalo, o animal específico com o qual a personagem se identificou.<br />

Curiosamente, a última palavra do texto também é búfalo, sendo que é a única passagem em que<br />

ele é empregado (precedido) por um artigo indefinido. Entendemos isso como o fim da<br />

expectativa da personagem: a mulher viu o céu inteiro e um búfalo; vemos que a mulher é<br />

específica (a personagem), e que ela também atingiu o seu objetivo: o céu (metaforicamente<br />

indicando a morte da personagem) e que o agente causador não importa mais: um búfalo, não<br />

mais aquele búfalo que ela escolheu para os seus propósitos. Como ele poderia ter sido qualquer<br />

outro. O búfalo representa agora uma imprecisão, uma indeterminação, algo vago; ou, também,<br />

a idéia de que o búfalo que ela vê no céu seja a Constelação de Touro, uma vez que,<br />

anatomicamente, são parecidos pois pertencem à mesma classe de animais. Astrologicamente,<br />

as pessoas sob a influência de tal constelação são determinadas em seus propósitos, o que vem a<br />

corroborar a noção de que a personagem tenha atingido a sua meta, a sua determinação.<br />

36 Idem.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 126


Além dessa passagem, uma outra similar ocorre com a palavra homem em duas<br />

situações distintas:“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amála.<br />

“Eu te odeio”, disse muito apressada e em Eu te amo, disse ela então com ódio, para o<br />

homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la, vemos então que na relação<br />

antitética entre amar e odiar, a personagem altera o uso do artigo. No que tange ao amor, é o<br />

homem, específico, aquele quem ela ama; já em relação ao ódio, é um homem, qualquer<br />

homem, algum homem, como se ela houvesse generalizado o ódio para toda a raça masculina,<br />

por isso o indetermina.<br />

Notamos que a reiteração constante do artigo marca o processo gradativo da narrativa<br />

evitando possíveis equívocos de compreensão, devido à ambigüidade causada, em certos casos,<br />

pela elipse do mesmo.<br />

Porém, percebemos que na dicotomia amor/ódio presente, no texto, a palavra amor,<br />

freqüentemente, não é precedida por artigo, e fator inverso ocorre com a palavra ódio: Mas isso<br />

é amor, é amor de novo., ou por amor, amor, amor (...), (...) não era o ódio ainda, ou o ódio<br />

que lhe pertencia. A omissão do artigo, neste contexto, possui uma concisão enérgica, até<br />

mesmo, dramática, que acentua expressivamente o valor daquilo que ela não tem: amor, como<br />

que se a ausência do artigo sugerisse a incerteza da própria existência desse sentimento.<br />

3.2.2) EXAMINAR OS ASPECTOS VARIADOS DO LÉXICO — A ADJETIVAÇÃO, OS<br />

EMPREGOS FIGURADOS.<br />

O emprego estilístico do adjetivo no conto é bem articulado e intencionalmente<br />

empregado. Todos os animais citados são adjetivados; tudo a que ela se refere, olha ou pensa<br />

vem seguido de adjetivo, como se quisesse qualificar/caracterizar ou até mesmo justificar seus<br />

objetivos, propósitos.<br />

Os adjetivos empregados para os animais são bastante sugestivos devido à sua carga de<br />

significação: leões — glabra (adjetivo digno de uma "rainha"), louros, enjubado; girafa —<br />

aérea, virgem; hipopótamo — úmido, roliço; macaco — velho; elefante — inteiro, oriental;<br />

camelo — corcunda; quati — curioso, livre; búfalo — negro, preto, calmo, tranqüilo. Ainda<br />

percebemos que ao ver o camelo ela sentiu ódio, um ódio seco, adjetivo que está ligado ao<br />

campo semântico de camelo.<br />

Quanto à posição do adjetivo, tanto aparece anteposto ao substantivo quanto posposto,<br />

dependendo da carga afetiva depositada no adjetivo. Assim, temos: onde por puro amor<br />

nasciam entre os trilhos ervas de um verde (...) e aspirou o pó daquele tapete velho, é de se<br />

apreciar que, no primeiro exemplo, o adjetivo puro denota a idéia de matização afetiva,<br />

enquanto que, no segundo exemplo, o adjetivo velho conserva o seu valor próprio, sem<br />

impregnação de sentimentos.<br />

A linguagem no conto é bastante figurada. O cunho metafórico é predominante na<br />

narrativa. Há várias seqüências de imagens sutis que encobrem a rudeza da realidade.<br />

Entretanto, além da metáfora propriamente dita, podemos reconhecer outros exemplos de<br />

linguagem figurada. Abaixo, enumeramos algumas delas em tabela:<br />

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FIGURA DEFINIÇÃO EXEMPLO<br />

Fusão de diversas impressões sensoriais na expressão lingüística; (...) onde só com cheiro<br />

associação de sensações: a percepção própria de um sentido quente lembrava (...)<br />

Sinestesia desencadeia reações em outros. Somente o cheiro da poeira do<br />

camelo (...)<br />

Epizeuxe<br />

Paradoxo<br />

Oxímoro<br />

Símile<br />

É o enfileiramento de palavras repetidas (iguais).<br />

A paciência, a paciência, a<br />

paciência,<br />

encontrava<br />

só isso ela<br />

e só aprendera a amar, a<br />

amar, a amar.<br />

Contraste que ocorre em um mesmo determinante. ,diante daquele silencioso<br />

Consiste na ligação entre duas idéias ou pensamentos que, na<br />

realidade, excluem-se.<br />

Confronto claro entre coisas e seres, geralmente usando termos<br />

marcadores de comparação.<br />

pássaro sem asas.<br />

,tal doce martírio em não<br />

saber pensar.<br />

,nos olhos a doçura da<br />

doença,<br />

FIGURA DEFINIÇÃO EXEMPLO<br />

Apóstrofe<br />

Diácope<br />

Anadiplose<br />

Catacrese<br />

Quiasmo<br />

Antítese<br />

(...) a ter a doçura da<br />

infelicidade,<br />

Macacos felizes como ervas<br />

(...), branca como papel, fraca<br />

como papel,<br />

(...), viscosa como uma saliva.<br />

Consiste em dirigir-se o orador ou escritor, interrompendo-se em “Deus, me ensine somente a<br />

tom patético ou pungente, a seres, pessoas ou coisas reais, fictícios odiar”.<br />

ou ausentes. “Oh Deus, quem será meu par<br />

neste mundo?”<br />

É a separação de palavras repetidas.<br />

É o emprego da mesma palavra ou expressão no final de uma frase<br />

ou verso e no início da frase ou verso seguinte.<br />

Uma das variedades da Metáfora é a mudança do significado natural<br />

de uma palavra, geralmente pela defecção, no idioma, de termo<br />

mais apropriado.<br />

É um cruzamento de termos efetuados por meio de uma mera<br />

repetição simétrica.<br />

É uma oposição de idéias.<br />

O chão onde simplesmente por<br />

amor – amor, amor, não o<br />

amor! –<br />

(...) ingenuidade do quati. O<br />

quati<br />

curioso lhe fazendo uma<br />

pergunta (...)<br />

(...) a ter o seu próprio ódio? O<br />

ódio que lhe (...)<br />

Enterrar a cara entre a dureza<br />

das grades.<br />

(...) ninguém interessado nela,<br />

e ela não<br />

interessada em ninguém.<br />

Os olhos vindos de sua própria<br />

escuridão na<br />

desmaiada luz da tarde.<br />

Sobre o negror a alvura<br />

erguida dos cornos.<br />

Polissíndeto Repetição do mesmo conectivo no início do período, verso ou frase. (...) é grande e leve e sem<br />

Metonímia<br />

Consiste no emprego de uma palavra em virtude de haver entre elas<br />

algum relacionamento.<br />

culpa (...)<br />

Ela mataria a nudez dos<br />

macacos. (O abstrato pelo<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 128


Metáfora<br />

Aliteração<br />

Hipálage<br />

Pleonasmo<br />

Anáfora<br />

É a comparação direta sem o uso de conectivos, uma ação mental<br />

de associação de idéias.<br />

É a repetição do mesmo som consonantal<br />

Consiste em atribuir a um termo da frase qualificações pertencentes<br />

a outro ou outros termos<br />

Repetição de palavras ou de idéias que têm o mesmo sentido.<br />

Muitas vezes, repete-se um elemento da oração ou preposição, ou<br />

se empregam palavras que, embora desnecessárias para a perfeita<br />

expressão do pensamento, servem para dar à elocução mais<br />

energia, graça, força ou elegância.<br />

É a repetição da mesma palavra no início de frases, períodos ou<br />

versos.<br />

concreto: nudez = órgão<br />

sexual)<br />

(...) reconstituiu sobre as patas<br />

estendidas a cabeça de uma<br />

esfinge.<br />

O rolo roliço de carne, carne,<br />

redonda (...)<br />

(...) quente no enferrujado frio<br />

do ferro.<br />

E no silêncio do cercado, os<br />

passos vagarosos, a poeira<br />

seca sob os casacos secos.<br />

Somente o cheiro de poeira do<br />

camelo vinha de encontro ao<br />

que ela viera: ao ódio seco (...)<br />

Inocente, curiosa, entrando<br />

cada vez mais fundo dentro<br />

daqueles olhos (...)<br />

(...) ...oh não mais esse mundo!<br />

Não mais esse perfume, não<br />

esse arfar cansado, não mais<br />

esse perdão (...)<br />

Conforme já dissemos, a metáfora predomina em todo o texto, porém optamos por<br />

apresentar apenas um ou dois exemplos de cada, por não ser o objetivo principal de nossos<br />

estudos. Outro recurso também notado é o uso da anástrofe, que difere dos outros recursos de<br />

inversão (hipérbato e sínquise) por antecipar o termo regido de preposição pelo termo regente.<br />

Estilisticamente, as inversões, em geral, estão ligadas à emotividade, a uma participação direta<br />

no campo emocional. A ênfase na antecipação de um termo atribui-lhe um cunho mais afetivo,<br />

no caso em questão, a palavra amor: (...) — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas<br />

de um verde tão tonto (...).<br />

3.2.3) DESTACAR AS REPETIÇÕES DE FONEMAS, PALAVRAS, ESTRUTURAS SINTÁTICAS.<br />

A repetição em todos os níveis — fônicos, lexicais e sintáticos — é um dos recursos<br />

mais expressivos na estilística do texto. A cada passagem, este recurso vai-se tornando mais e<br />

mais perceptível.<br />

Há inúmeros casos de aliteração e assonância, às vezes, ocorrendo simultaneamente<br />

como no exemplo: 0 rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça<br />

e muda. Constatamos que todas as palavras (exceção: muda) possuem o grafema [r], ora com<br />

valor fonético de uma alveolar /r/ , outra, esperando, ora com fonema velar /R/, rolo, roliço,<br />

redonda, roliça, carne. Tais fonemas remetem à idéia de aspereza, atrito, idéias estas bastante<br />

pertinentes ao contexto; pois, sendo um hipopótamo um paquiderme, temos a sensação táctil de<br />

que o roçar de suas carnes duras no ato sexual deve provocar vibrações auditíveis, o que vem<br />

corroborar o uso dos fonemas vibrantes. Em relação à assonância, nesta passagem, a vogal<br />

posterior média /o/ nos dá a noção de formas arredondadas, o que muito se pode inferir neste<br />

contexto, pela forma grande e gorda dos hipopótamos, ou mesmo, uma alusão à forma dos<br />

órgãos sexuais, que possuem formas, aproximadamente, redondas. Como era primavera,<br />

podemos deduzir que a espera de outra carne, seja a vinda do(a) parceiro(a) .<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 129


Um outro exemplo interessante no que tange à questão de repetição de fonemas é a<br />

passagem E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os casacos secos.,<br />

notamos aí uma aliteração bem acentuada com a repetição do fonema oral, constritivo, fricativo,<br />

alveolar, surdo /c/. Esse é o momento, no conto, em que a mulher encontra o búfalo num final<br />

de tarde com a brisa mexendo nos seus cabelos, como sabemos que as constritivas, pelo seu<br />

caráter contínuo, sugerem sons de certa duração, bem como as coisas e fenômenos que os<br />

produzem, relacionamos que é nesse exato momento que começa a mútua observação entre o<br />

búfalo e a mulher por isso os passos vagarosos, eles estão se estudando no silêncio do fim de<br />

tarde. E essa idéia é reforçada, visto que a alveolar /c/ transmite a sensação táctil de suavidade,<br />

ou mesmo, pressupõe um sopro, vento acompanhado de um silvo longo ou violento que é<br />

determinado pela vogal sobre a qual se apóia o fonema sibilante, isto é, acompanhado de vogais<br />

agudas a sibililação é menor, e de vogais graves já é maior.<br />

E, por fim, temos, ainda, a aliteração (...) encostou o rosto quente no enferrujado frio do<br />

ferro, onde vemos que a fricativa labiodental /f/ nos transmite uma sensação cinética com idéia<br />

de fuga, escapamento, além, é claro, da sensação táctil de aspereza da vibrante velar /R/. Como<br />

assinalamos anteriormente, a personagem protagonista do conto sempre se sente presa às jaulas,<br />

daí urgir a vontade de escapar, de fugir. Notamos o conflito da personagem nesta passagem até<br />

pela própria antítese entre rosto quente e frio do ferro.<br />

Quanto à repetição de palavras, vemos que tal procedimento é enfático. Existem<br />

palavras que são ''chaves'' neste processo: ódio, amor, olhos. São, a bem da verdade, recursos<br />

estilísticos bastante expressivos, que podem ser vistos como marcadores isotópicos do texto,<br />

pois demonstram a trajetória conflituosa da personagem e de que forma se direcionam ao<br />

clímax.<br />

Em relação às estruturas, notamos haver um grande número de construções com<br />

seqüências nominais. Associamos isso à noção que se tem de que as categorias dos nomes são<br />

signos de representação estática, amplamente usadas em descrições impressionistas, para causar<br />

impacto, como se cada palavra tivesse que atingir o seu objetivo individualmente, para, então,<br />

ter-se o efeito ''coletivo'', total.<br />

No texto, percebemos que existe a intercalação de seqüências nominais com as<br />

seqüências verbais. Isto é uma técnica bem comum, pois visa a aguçar a capacidade<br />

imaginativa, fazendo-nos visualizar mais nitidamente a descrição do objeto destinado, como nas<br />

seguintes passagens: Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher<br />

desviou os olhos da jaula, (...); ou Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O<br />

hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando<br />

outra carne roliça e muda.; ou A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu.<br />

Ela mataria a nudez dos macacos.; ou ainda, E agora esse silêncio também súbito. Estavam de<br />

volta a terra. A maquinaria de novo inteiramente parada.<br />

Contudo, notamos haver, no texto, uma certa não-estruturalização dos períodos. O texto<br />

apresenta além das seqüências nominais, processos de parataxe e hipotaxe, sem que haja uma<br />

predileção para qualquer um deles, embora percebamos um uso mais freqüente de períodos com<br />

orações absolutas. Ressaltamos, então, o fato dos valores estilísticos em orações absolutas ser<br />

caracterizado pela natureza do verbo, já que o verbo pode, teoricamente, ser o responsável,<br />

usado pelo autor, pela determinação de toda a realidade física, psíquica ou social no desenrolar<br />

da trama.<br />

Dessa forma, temos que orações com predicado nominal têm valor expressivo quando<br />

se direcionam a julgamentos de valor ou quando se veiculam imagens que constituem definições<br />

fantasiosas, modos pessoais de interpretar a realidade: “Oh Deus, quem será meu par nesse<br />

mundo?”, Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Já em relação ao predicado<br />

verbal, a expressividade é mais complexa, pois dependerá da transitividade verbal. Salientamos,<br />

apenas, o fato de que os verbos intransitivos têm muito em comum com os predicados nominais,<br />

pois ambos são voltados para o sujeito: Ficou respirando.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 130


Em sua grande maioria, as palavras repetidas possuem a mesma função sintática,<br />

não se usando nenhuma substituição por pronomes. O que ocorre, neste caso, é a anáfora<br />

retórica, não a anáfora lingüística.<br />

3.2.4) RESSALTAR COMO A FUNÇÃO POÉTICA É PREDOMINANTE NESTE TEXTO EM<br />

PROSA.<br />

A função poética tem por objetivo destacar os aspectos expressivos da mensagem, seja<br />

em prosa, seja em verso, pois há muito se deixou de associar que a função prosa estaria ligada à<br />

denotação e a função poética, à conotação.<br />

Podemos dizer que o efeito da função poética no texto em prosa resulta da combinação<br />

de duas estruturas: a análise da mensagem não sobrepu<strong>jan</strong>do a análise do código, já que o efeito<br />

expressivo de um vocábulo não se encontra apenas na frase ou no contexto em que ele está<br />

inserido, mas sim na totalidade significativa, no confronto com os outros vocábulos<br />

equivalentes.<br />

Baseados nisso, vemos que o texto apresenta muitas características poéticas, tais como:<br />

a predominância da linguagem figurada; o uso da linguagem inusitada; o ritmo frasal; o insólito<br />

da sintaxe; a plurisignificação; e, entre outras mais, a ênfase do significante na significação e a<br />

ênfase na enunciação. Assim, a função poética vem ratificar as idéias já levantadas no decorrer<br />

da análise.<br />

No texto, percebemos que a função poética tem por objetivo "costurar" os elementos<br />

ligados à ruptura com o enredo factual e à entrega do fluxo de consciência que são caraterísticas<br />

bem comuns na obra de Clarice Lispector.<br />

Destarte, notamos que a função poética, no texto, dirige sua atenção para os elementos<br />

da mensagem efetivamente utilizados. Tal fato procede porque vemos que a função prática da<br />

mensagem não está tão-somente na descrição, mas nas possibilidades significativas da<br />

mensagem, tornando ela o próprio foco da atenção por si mesma, isto é, ela provoca reação no<br />

leitor pelo que é e não por aquilo que serve.<br />

No conto O Búfalo, percebemos que a mensagem, numa acepção totalitária, volta-se<br />

para si mesma; passando, então, a focalizar os próprios signos, pondo em destaque a sua<br />

integralidade de significante e significado. Afetiva, sugestiva, conotativa, reveladora de<br />

recursos imaginativos criados pelo emissor, a função poética é metafórica e possibilita leituras e<br />

visões diversas de uma mesma mensagem ou signo isolado, pois propicia ao leitor associações e<br />

equivalências de idéias. E são essas reconfigurações propiciadas pelo princípio da equivalência<br />

que fazem a mensagem voltar-se para si mesma, tornando-se multissignificativa, como tentamos<br />

demonstrar, através de nossas diferentes análises, no decorrer desse estudo.<br />

Podemos concluir que a função poética, seja na poesia, seja na prosa, executa, portanto,<br />

uma ruptura das expectativas, fornecendo uma possível resposta não antecipada<br />

automaticamente na língua, que é capaz, por isso mesmo, de atrair uma atenção especial para os<br />

próprios signos, uma certa persistência da atenção. E a mensagem, desse modo, se autocentra,<br />

para verificar o arranjo dos seus próprios constituintes lingüísticos.<br />

3.3) UM BREVE PASSEIO PELA SEMIÓTICA<br />

3.3.1) OS OBJETIVOS DA ANÁLISE<br />

Quando Peirce, em 1867, tornou públicos seus estudos sobre o signo, deu abrangência<br />

àquilo que, até então, numa perspectiva saussureana, era direcionado apenas ao signo verbal.<br />

Hoje, no início do século XXI, não seria absurdo afirmar que tal estudo ainda é dominante.<br />

Nesse sentido, a proposta de nosso trabalho é, ao contrário do muito que se tem visto,<br />

apresentar com uma visão menos limitada as flexibilidades do signo lingüístico, desde de sua<br />

origem na mente (ícone) até às suas várias concepções significativas (símbolo).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 131


A proposta deste ensaio é apresentar à luz da teoria semiótica de Peirce, uma análise do<br />

conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector.<br />

Para esse pesquisador, o fundamental para um estudo de signos seria a observância da<br />

divisão dos símbolos em diversas tríades. Nesse sentido, uma vez que os textos de Clarice<br />

Lispector, devido ao fluxo de consciência muito presente em sua obra, apresentam-se sequiosos<br />

de estudos analíticos, optamos por levantar aqui como os conceitos peirceanos de signo se<br />

manifestam.<br />

Com esse intuito, dividimos esse enfoque semiótico em duas partes: a primeira é uma<br />

proposta de leitura para melhor compreendermos as intenções do texto e direcionar, também,<br />

nossas intenções para a segunda parte que é relacionar os conceitos semióticos de Peirce no que<br />

tangem à imagem do búfalo conto.<br />

Claro que nos limitaremos apenas às questões de ícone, índice e símbolo devido à<br />

grande nomenclatura estabelecida por Peirce para análise e compreensão dos signos. Com isso,<br />

nosso trabalho será bastante limitado deixando em aberto outras possibilidades de classificação<br />

que existem no corpus.<br />

Tal como Saussure, Peirce estabelece uma distinção entre as “qualidades materiais” — o<br />

significante do signo — e seu “interpretante imediato” — o significado. Das relações entre os<br />

dois elementos, discernem-se três variedades fundamentais de signos (que representam, segundo<br />

sua terminologia): 1) o ícone opera pela similitude de fato entre o significante e o significado;<br />

por exemplo, entre a representação de um animal e o animal representado: a primeira vale para<br />

o segundo por semelhança; 2) o índice opera pela contigüidade de fato, vivida, entre significante<br />

e significado; por exemplo: a fumaça é índice de fogo; Robinson Crusoe encontrou um índice:<br />

seu significante eram marcas de pé, donde inferir como significado a existência de ser humano<br />

na ilha; a aceleração do pulso como sintoma de febre é também índice, e nesse caso a semiótica<br />

de Peirce conflui com o estudo médico sobre os sintomas de doença, chamado semiótica,<br />

semiologia ou sintomatologia; 3) o símbolo opera pela contigüidade instituída entre significante<br />

e significado. Essa conexão forma uma regra, através da qual exclusivamente será interpretado<br />

o signo. O termo símbolo, semelhante utilizado por Saussure, é por este substituído, para evitar<br />

ambigüidades, pelo de sema — termo que Peirce reserva uso inteiramente diferente.<br />

3.3.2) APLICAÇÃO SEMIÓTICA NA LEITURA DE O BÚFALO<br />

Seguindo a nossa proposta de trabalho, ao enforcarmos a aplicação do conceito de ícone,<br />

índice e símbolo na análise desse conto, notamos que o búfalo (personagem da história) se<br />

aplica às categorias dessa tríade perfeitamente.<br />

A primeira noção que podemos inferir aí é a questão de o búfalo ser um ícone puro, pois<br />

está vinculado à mente da personagem, e irá sair do plano do objeto mediato para o objeto<br />

imediato, à medida que ele deixa de ser ícone puro e passa a ícone atual, pois passará do<br />

imaginário para o real devido a uma possível associação por semelhança (como enfocamos em<br />

nossa proposta de análise). Tornando-se, então, um signo icônico, o búfalo corresponderá a três<br />

estágios desse signo: 1) à imagem (a visualização mental do animal); 2) ao diagrama (a mental<br />

representação física dele); e 3) à metáfora (nesse caso representando o objeto da vingança da<br />

personagem, pois ela fará com o búfalo o que teve vontade de fazer com quem a desprezou, o<br />

búfalo representa, nesse momento, a solução da angústia).<br />

No entanto, porque não representam efetivamente nada, senão formas e sentimentos<br />

(visuais, tácteis, viscerais...), os ícones têm um alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,<br />

por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ela se assemelhe. Daí que, no<br />

universo das qualidades, as semelhanças se proliferaram na mente da personagem do conto,<br />

produzindo na mente dela as mais imponderáveis comparações, por uma simples questão de<br />

sugestão.<br />

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A partir do momento em que a personagem se direciona ao búfalo, tendo-o como um<br />

referencial real, ele deixa de ser ícone e passa a ser índice, visto que é o objeto imediato da<br />

personagem e representa, também, uma simples possibilidade do efeito de impressão, pelo valor<br />

qualitativo, que o búfalo está apto a produzir ao excitar os sentidos da personagem. Eis uma<br />

razão pela qual a personagem ficou parada diante dele, a observá-lo numa pura absorção<br />

contemplativa, pois o ícone nos dá essa capacidade de absorver possibilidades qualitativas, pois<br />

todo índice está habitado de ícones. Estes são peculiares àqueles e também estão inerentes ao<br />

índice (não podemos nos esquecer de que a secundindade pressupõe a primeiridade).<br />

O búfalo é visto, neste momento, como índice porque ele é uma existência concreta e<br />

real para a personagem. É infinitamente determinado como parte do universo a que pertencem<br />

— a personagem e o búfalo. Desse modo, concluímos que o índice, como seu próprio nome já<br />

diz, é um signo que como tal funciona porque indica uma outra coisa com a qual está<br />

factualmente ligado.<br />

Chegamos, então, ao momento em que o búfalo representará um signo de terceiridade,<br />

isto é, será um símbolo. O símbolo não representa seu objeto em virtude do caráter de sua<br />

qualidade (ícone), nem por manter em relação ao seu objeto uma conexão de fato (índice), mas<br />

extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que por convenção ou pacto<br />

coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto. Ao final do conto, depois que a<br />

personagem mata o búfalo e é morta por ele, ele assume uma função de símbolo, pois deixa de<br />

ser específico e passa a ser genérico. No texto, isso fica bem marcado pela mudança do artigo<br />

precedente que, durante a narrativa, era o definido e após a morte passou a ser indefinido.<br />

O símbolo é, pois, o deslanche da remessa de signo a signo, remessa esta que só não é<br />

para nós infinita porque o búfalo morre, e devemos nos limitar às perigosas associações de<br />

idéias. Mas, mesmo assim, ainda o associamos à Constelação de Touro.<br />

3.3.3) CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Realmente, ao fim do trabalho, percebemos que numa análise semiótica as<br />

compreensões a que podemos chegar no desencadeamento das interpretações dos signos, visto<br />

que um signo remete a um outro e este a um outro e assim indefinidamente, podem apresentar<br />

dois tipos de conclusão: uma real e outra carregada de emotividade. Isso decorre em virtude do<br />

fato de o signo poder ser um pensamento, uma imagem, um gesto, uma palavra ou seqüência<br />

(como uma frase, p. ex.), e o que entendermos dele ser, também, um novo signo. Devemos,<br />

entretanto, ter cautela para não quebrarmos os elos sígnicos que vão formando essa cadeia<br />

significativa.<br />

Isso significa que, por mais que a cadeia semiótica se expanda, em signos-interpretantes<br />

gerando signos-interpretantes, o vínculo com o objeto não é nunca perdido, uma vez que o<br />

objeto é justamente aquilo que existe e resiste na semiose ou ação do signo.<br />

Além dessa limitação lógica nos estudos semióticos, outro fato chamou nossa atenção: o<br />

fato das tríades. Peirce embasou todos os seus estudos semióticos sobre o signo na divisão do<br />

mesmo em diferentes tríades, algumas mais, outras menos complexas.<br />

Sabemos que o número três é amplamente usado na história do pensamento por vários<br />

filósofos e estudiosos: Hegel, Freud, Marx, Kant. Inferimos nesse ponto, a questão de que o<br />

número três, para a Cabala, representa o equilíbrio cósmico, e a noção de que tudo que está em<br />

harmonia na natureza está regido pelo número três: três partes do dia (manhã, tarde e noite), três<br />

partes do corpo (cabeça, tronco e membros), três partes da vida (nascimento, vida e morte /<br />

infância, maturidade e velhice), três estados naturais (sólido, líquido e gasoso), três estações<br />

férteis do ano (verão, outono e primavera), Santíssima Trindade em diversas religiões (no<br />

Taoísmo, no Cristianismo e no Candomblé), e até mesmo o triângulo que é tido como o símbolo<br />

da perfeição geométrica, daí a definição de Pitágoras de que Deus geometriza a partir do<br />

número três.<br />

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Acreditamos que o desejo e a vontade de Charles Sanders Peirce em estabelecer para os<br />

signos critérios classificatórios em tríades se deva ao fato de se tentar achar um equilíbrio lógico<br />

para os seus estudos, a fim de que se pudesse chegar à perfeição na compreensão dos mesmos<br />

num processo gradativo e coerente, respeitando-se, evidentemente, a hierarquia da primeiridade,<br />

da secundidade e da terceiridade.<br />

CONCLUSÃO<br />

Conforme informamos na introdução, o nosso roteiro de estudo basear-se-ia nas<br />

sugestões para análise do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, encontradas no Livro Iniciação<br />

à Estilística, de Nilce Sant’Anna. Assim, procuramos seguir uma linha de raciocínio que não<br />

fugisse às propostas iniciais, embora tenha-nos parecido bastante difícil por dois aspectos.<br />

O primeiro deles é a grande dificuldade em tentar responder de forma satisfatória as<br />

propostas, em virtude do grande leque de opções que elas oferecem ao iniciarmos a análise.<br />

Contudo, procuramos desenvolvê-las de forma precisa, embora saibamos que nem todos os<br />

aspectos pertinentes que existem no corpus foram ressaltados. Também ficamos bastante<br />

receosos quanto à questão de falhas em nossa análise, conseqüentes de alguma imprecisão na<br />

classificação dos dados.<br />

O outro aspecto foi o cuidado para não nos enveredarmos por outros caminhos devido à<br />

riqueza lingüística do texto. Receamos que tal desvio poderia conduzir a análise para caminhos<br />

tortuosos e permeáveis às subjetividades, às vezes bastante perigosas, como em nossa proposta<br />

de leitura do conto, e fugíssemos da proposta que nos propusemos: uma análise estilísticosemiótica.<br />

Analisar estilística e semioticamente o conto O Búfalo foi, a um só tempo, um estudo<br />

hercúleo e prazeroso, pois pudemos descobrir/levantar possibilidades que em nossa primeira<br />

leitura não percebemos e contribuir para o desfazimento de que a Estilística é uma ciência<br />

ultrapassada e não credora de maiores atenções. No entanto, a linguagem hermética de Clarice<br />

Lispector, em muitos momentos, deixou-nos em situações delicadas de entendimento no que<br />

tange à veracidade/viabilidade de nossas conclusões, mas a cada linha tínhamos a sensação de<br />

estarmos descobrindo algo inusitado e que poderia ser associado a algo que fora visto<br />

anteriormente.<br />

Por fim, gostaríamos de salientar que tivemos um imenso prazer na elaboração desse<br />

estudo e esperamos, também, que a expectativa decorrente da conclusão dessa análise, suscite<br />

em nosso leitor o mesmo prazer que nos causou durante todo o caminho que trilhamos para<br />

chegarmos até aqui. Não podemos nos esquecer também de ratificar que não foram esgotadas<br />

todas as possibilidades interpretativas ou significativas existentes no corpus. Afinal, seria muito<br />

pretensioso de nossa parte afirmamos que esgotaríamos todas as potencialidades lingüísticoestilístico-semióticas.<br />

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INTRODUÇÃO<br />

A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE<br />

TRABALHO PARA O PROFESSOR 37<br />

Claudia Moura da Rocha 38 (<strong>UERJ</strong>)<br />

Quem fala uma língua sabe muito mais do que aprendeu.<br />

Chomsky<br />

Um dos maiores desafios para os educadores de hoje é despertar o interesse de<br />

seus alunos. Quando o assunto é língua portuguesa, não importa o grau de ensino —<br />

Fundamental, Médio, Superior, parece que o desafio é maior ainda. Por que tantos<br />

alunos se ressentem de ter de estudar sua própria língua? Como podem ter tanta<br />

dificuldade e, às vezes, tanto desinteresse pelo idioma por meio do qual se comunicam,<br />

pensam, escrevem bilhetinhos de amor, cantam, namoram, brincam?<br />

Um dia de espantos, hoje. Conversando com uma rapariga em flor,<br />

estudante, queixa-se ela da dificuldade da língua portuguesa, espanto-me:<br />

—Mas como pode ser difícil uma língua em que você está falando comigo<br />

há dez minutos com toda a facilidade?<br />

Ela ficou espantada. (Mario Quintana apud Ramos Filho, J. et al. (1995).<br />

Caderno de atividades em língua portuguesa. Rio de Janeiro: JOBRAN.)<br />

Como no texto de Mario Quintana, nós, professores, também nos espantamos ao<br />

constatar este paradoxo. O aluno, que é um falante fluente do português, se queixa por<br />

julgar não dominá-lo. Para o estudante, a língua portuguesa ensinada na escola é algo<br />

completamente distanciado de seu cotidiano, de sua vida, considerando sua própria<br />

língua algo enfadonho e a gramática servindo apenas para ditar regras. Na verdade, o<br />

aluno sabe sua língua; o que ele não domina é a norma culta, a variante culta que cabe à<br />

escola ensinar.<br />

37<br />

O presente ensaio teve origem na disciplina Tópicos de Fonologia ministrada pela Profa. Dra. Darcilia<br />

Simões no semestre 2003/1.<br />

38<br />

A autora é mestranda de Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong> e docente da rede municipal de ensino.<br />

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Mas, o que pode o professor de língua portuguesa fazer por seus alunos? E pelo<br />

seu próprio ofício? Como transpor os obstáculos que impedem a apropriação, por parte<br />

de seus alunos, da língua portuguesa?<br />

Talvez a solução esteja em mostrar ao aprendiz que a língua portuguesa (seu<br />

objeto de estudo) não está tão dissociada de sua vida, ao contrário, faz parte dela: é por<br />

meio da língua que o aluno interage com o outro, comunica suas idéias, seus desejos,<br />

obtém informações, convence seus interlocutores...<br />

O objetivo deste trabalho é demonstrar que o professor, ao fazer um pequeno<br />

levantamento de fatos lingüísticos que podem ser encontrados em seu dia-a-dia (em<br />

jornais, revistas, propagandas, músicas de sucesso, programas de televisão, piadas),<br />

pode estimular seus alunos e levá-los a um resultado mais animador em sala de aula.<br />

Outro intento do professor deve ser o de mostrar ao aprendiz de língua<br />

portuguesa que qualquer falante possui um grande conhecimento de sua língua materna,<br />

a ponto de utilizá-la como matéria-prima para produzir trocadilhos, rimas, ambigüidades<br />

em piadas, textos publicitários, editoriais, músicas, charges, entre outros exemplos de<br />

textos cotidianos.<br />

No presente texto, especificamente, faremos um apanhado de fenômenos (fatos)<br />

fônicos que ocorrem em nossa linguagem cotidiana, demonstrando que não podemos<br />

(nem devemos) pensar em língua portuguesa dissociada da realidade do falante.<br />

1. A FONOLOGIA EM SALA DE AULA<br />

Abordar assuntos fonológicos em sala de aula é relevante, principalmente porque<br />

as aulas de Fonologia sempre ficam restritas à contagem de fonemas, classificação de<br />

vogais e consoantes, estudo de encontros vocálicos e consonantais, ficando relegado a<br />

segundo plano um enfoque mais voltado para a aplicação prática da Fonologia.<br />

No primeiro segmento do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série), os fatos fônicos se<br />

resumem à contagem de sílabas (quando é feita uma mistura de critérios, e começa a<br />

confusão entre translineação e divisão silábica), dígrafos, encontros consonantais,<br />

ditongos, tritongos, hiatos. Não que isto não seja importante, mas o que vemos é que aí<br />

se inicia, na cabeça do aluno, uma verdadeira “salada” terminológica, cuja<br />

aplicabilidade este não domina.<br />

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No segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), restringe-se à<br />

contagem de fonemas, diferença entre fonema e letra, numa abordagem, por vezes,<br />

abstrata, faltando ao aluno um contexto que o permita concretizar esses conceitos. Não<br />

podemos esquecer que todos aqueles temas vistos no primeiro segmento são revisitados.<br />

No Ensino Médio, retorna-se à contagem de fonemas, diferença entre fonema e<br />

letra, enveredando pelas vogais (orais & nasais), consoantes (oclusivas, constritivas...)<br />

Além do que foi dito anteriormente, o ensino (que vai do nível Fundamental ao<br />

Superior) tem dado mais espaço à morfologia, sintaxe e semântica, desconhecendo que<br />

o domínio dos fenômenos fônicos auxilia na compreensão e na produção textual.<br />

Entretanto, a experiência — oriunda da prática obtida na produção ou<br />

realização de cursos avançados de Tópicos de Fonologia (pós-graduação lato<br />

e stricto sensu) e da disciplina Fonologia da língua portuguesa na graduação<br />

— demonstra que o domínio dos fatos e fenômenos do plano fônico da<br />

língua subsidiam o entendimento dos outros planos da descrição lingüística;<br />

e que, uma vez compreendida a inter-relação entre os vários planos, a<br />

compreensão dos esquemas da língua atualizados na produção de textos se<br />

realiza de uma forma mais firme, visto ser sustentada em bases múltiplas: a<br />

fonologia explica a morfossintaxe e abre espaços para requintes estilísticos.<br />

E estas, morfossintaxe e estilística, por sua vez, orientam a elaboração<br />

semântica, a produção do sentido textual. (Simões, 2003: 48)<br />

Os exemplos aqui elencados são oriundos de jornais, revistas, propagandas,<br />

músicas e podem ser aplicados em sala de aula, feitas, obviamente, as adaptações<br />

necessárias à faixa etária, grau de ensino, nível de interesse, dentre outros aspectos a<br />

serem considerados.<br />

Nem sempre o professor consegue fazer uma ponte entre os conhecimentos<br />

fonológicos e a realidade; nem sempre demonstra ao aluno que as assonâncias e<br />

aliterações não estão presentes apenas nos textos literários, nos clássicos, mas também<br />

na MPB ou num forró; nem sempre consegue apontar a paronomásia ou a homonímia<br />

presentes nas piadas e não somente abordá-las como conhecimentos estanques e<br />

distantes da realidade do falante. A análise da matéria fônica, por exemplo, quase<br />

sempre fica restrita à versificação, e não é mostrada ao aluno a sua presença nos<br />

trocadilhos, nos jogos de palavras, nas piadas, nos jingles comerciais.<br />

2. A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O PROFESSOR<br />

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Passemos à análise do corpus retirado de jornais, revistas, internet, novas fontes<br />

de textos para o professor utilizar em suas aulas. Os mais recentes livros didáticos já<br />

vêm dando preferência a esse tipo de material.<br />

Mulheres Apaixonadas, o título da novela das oito horas da TV Globo, tornou-se<br />

mote para vários trocadilhos e jogos de palavras. Aparentemente um sintagma usual,<br />

banal até, fruto de um arranjo normalíssimo da língua, mas que caiu nas graças do<br />

público e dos humoristas.<br />

O sintagma formado pelo núcleo (determinado) mulheres e pelo ad<strong>jun</strong>to<br />

adnominal (determinante) apaixonadas é reaproveitado em três reportagens da revista<br />

Veja. Mulheres Desesperadas (26/02/2003) é uma reportagem sobre a estréia da novela<br />

e sobre suas personagens femininas, as tais mulheres que estariam desesperadas pelos<br />

galãs. Ao núcleo mulheres é acrescido um novo atributo, desesperadas, que tem um<br />

valor semântico pejorativo em relação ao atributo original (apaixonadas).<br />

Na segunda reportagem, Mulheres Descerebradas (19/03/2003), o assunto<br />

principal é a qualidade dos diálogos da referida novela (segundo a matéria, “diálogos<br />

que saem do nada e vão para lugar nenhum”). Novamente o determinante apaixonadas<br />

é substituído; agora temos descerebradas, fazendo referência ao “papo cabeça” de<br />

algumas personagens.<br />

A terceira e última matéria de Veja analisada é Mulheres Exploradas<br />

(09/<strong>04</strong>/2003), cujo tema são as empregadas domésticas da trama; é feita uma crítica ao<br />

tratamento que lhes é dado pela novela (trabalham de 2ª a 2ª, estão sempre a postos,<br />

entre outras “irrealidades”).<br />

Podemos observar que, nos três títulos, ocorreu a apropriação do sintagma<br />

original e sua posterior desconstrução. O recurso empregado foi a permanência do<br />

vocábulo mulheres e a substituição de apaixonadas por outros vocábulos com algo em<br />

comum: a terminação –adas. Esta opção por palavras que tenham a mesma terminação<br />

(no plano morfológico, o sufixo derivacional –ad + a desinência de gênero –a + a<br />

desinência de número –s; no plano fônico, a seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/),<br />

produz um eco, fruto de uma semelhança fônica, de uma identidade sonora e que<br />

permite ao leitor/falante se lembrar do sintagma original. Numa frase popular: — Olha a<br />

rima que dá!<br />

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Outras alterações nesse título foram realizadas pelo grupo Casseta & Planeta em<br />

seu programa de televisão. A paródia da novela é intitulada Mulheres Recauchutadas,<br />

fazendo óbvia referência às mulheres adeptas de plásticas e do uso de silicone. Em outro<br />

momento do programa, nova sátira à novela é apresentada: Mulheres Desgovernadas,<br />

cujos personagens principais são a governadora do Rio de Janeiro e seu marido, o ex-<br />

governador do mesmo Estado, fazendo uma alusão à situação de desgoverno em que o<br />

Rio de Janeiro se encontra. Recentemente, foram criadas as versões Mulheres<br />

Assassinadas, em referência à morte da personagem Fernanda, vítima de uma bala<br />

perdida, e Mulheres Enraquetadas, em referência às raquetadas com que o marido da<br />

personagem Raquel a agride. Notemos que o vocábulo enraquetadas evoca o nome da<br />

personagem agredida, pela sugestão sonora (grifamos o elemento comum entre o nome<br />

da personagem — Raquel — e o adjetivo neológico).<br />

É importante salientar que a escolha do atributo (do ad<strong>jun</strong>to adnominal) é sempre<br />

calcada na semelhança fônica da terminação (seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/), na<br />

repetição desta terminação. A repetição, entre outros fenômenos do plano fônico, tem<br />

valor expressivo:<br />

Não há dúvida de que na matéria fônica se escondem possibilidades<br />

expressivas. Deve-se entender como tal tudo que produza sensações<br />

musculares e acústicas: sons articulados e suas combinações, jogos de<br />

timbres vocálicos, melodia, intensidade, duração dos sons, repetição,<br />

assonância e aliterações, silêncios, etc. (Martins, 2000: 26)<br />

Não é raro encontrarmos outras construções empregando o atributo apaixonadas<br />

e alterando, desta vez, o núcleo original mulheres:<br />

• Convivas Apaixonados (nota da coluna Controle Remoto, do jornal O Globo,<br />

do dia 20/05/2003, sobre a popularidade do autor da novela, Manoel Carlos);<br />

• Mães Apaixonadas (manchete do jornal do Club Municipal, de maio de 2003,<br />

em homenagem ao Dia das Mães; normalmente o adjetivo apaixonadas seria atribuído à<br />

mulher, esposa ou namorada, fugindo do campo associativo de mãe, mais relacionado à<br />

proteção, cuidados.).<br />

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Nestes casos, a escolha do vocábulo não é baseada no plano fônico. O efeito<br />

produzido não é tão forte, nem tão significativo quanto nos exemplos onde existe a<br />

semelhança sonora da terminação. Os novos sintagmas remetem ao original (mulheres<br />

apaixonadas), sugerem ao ouvinte a lembrança do sintagma primitivo, mas a graça e a<br />

sensação de inusitado, gerados pela mudança, são menores.<br />

No entanto, em Colheres Apaixonadas, mais uma sátira dos humoristas do<br />

Casseta & Planeta à novela (nesta versão, as personagens são colheres), novamente há a<br />

substituição do núcleo calcada na semelhança fônica entre mulheres e colheres: palavras<br />

que possuem igual terminação.<br />

Outro fato que reforça a identidade/semelhança sonora entre as palavras acima é<br />

que a vogal /o/ de colheres é realizada por muitos falantes como /u/: /kuereS/. As<br />

vogais /o/ e /u/ se aproximam quanto ao movimento da língua que ocorre no momento<br />

da produção dessas vogais: ambas são vogais posteriores (há em ambas um movimento<br />

da língua para trás).<br />

Recentemente, na internet, começaram as sátiras à novela. No site de humor<br />

Humortadela (o próprio nome do site é um cruzamento vocabular entre humor e<br />

mortadela, calcado na existência de uma sílaba em comum, produzindo um trocadilho),<br />

vamos encontrar a abertura da novela sendo exibida e as várias versões do título, de<br />

acordo com os personagens que aparecem e suas características: Mulheres Mal-Criadas<br />

(em referência à personagem que briga com os pais e os avós), Mulheres Apadrinhadas<br />

(alusão à irmã de dois famosos cantores sertanejos, a qual participa da novela),<br />

Mulheres Todas Peladas (o alvo agora é a atriz que posou nua para uma revista<br />

masculina), Mulheres Embriagadas (referindo-se à professora alcoólatra), Mulheres<br />

Enrugadas (sátira à mulher mais velha que namora um homem mais jovem), Mulheres<br />

Estapeadas (alusão à personagem que apanha do marido), Mulheres Que São Espadas<br />

(as personagens citadas são lésbicas). É relevante salientar que os autores da paródia da<br />

internet também demonstram uma preocupação em manter a identidade sonora com o<br />

título original.<br />

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Empregar palavras com finais semelhantes é um recurso muito comum na<br />

propaganda. Este procedimento é chamado homoteleuto e é definido como “o<br />

aparecimento de uma terminação igual em palavras próximas, sem obedecer a um<br />

esquema regular, ocorrendo ocasionalmente numa frase ou num verso”. (MARTINS,<br />

2000: 40)<br />

• Abuse e use: C&A.<br />

• Tomou Doril, a dor sumiu. (A forma ortográfica é divergente mas há<br />

identidade sonora entre Doril /iw/ e sumiu /iw/. Esta é uma boa oportunidade para<br />

abordar as variantes regionais, pois a identidade sonora é maior entre os falantes<br />

cariocas, que realizam “a vocalização da lateral em posição final de sílaba e neste caso<br />

temos um segmento com as características articulatórias de uma vogal do tipo [u] que é<br />

transcrito [w].” (SILVA, 2002: 39)<br />

• Todo dia uma alegria. (propaganda do Hiperfundo Bradesco)<br />

• Mandou, chegou. (slogan do SEDEX)<br />

Este recurso também é muito produtivo em campanhas institucionais como a<br />

campanha de combate à fome, o Programa Fome Zero:<br />

• O Brasil que come, ajudando o Brasil que tem fome.<br />

Analisando charges, encontraremos a utilização de outro recurso, o de<br />

desconstruir expressões consolidadas pelo uso (citações bíblicas, provérbios, expressões<br />

populares) e reconstruí-las posteriormente, sempre empregando recursos fonológicos.<br />

Em duas charges de Chico Caruso, ocorre a substituição da palavra original, que<br />

integrava uma expressão cristalizada, por outra com a qual guarda semelhança sonora:<br />

• Em Lulinha mete os pleitos (05/06/2003), há alusão à expressão popular meter<br />

os peitos (ser corajoso, tomar uma atitude) e aos seios da modelo Gisele Bündchen, que<br />

aparece na charge ao lado de José Graziano, responsável pelo Fome Zero, programa de<br />

erradicação da fome, ao qual a modelo doou seu cachê; o vocábulo peitos é substituído<br />

por pleitos, em referência às eleições.<br />

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Em peitos e pleitos ocorre paronomásia, “figura pela qual se aproximam, na<br />

frase, palavras que oferecem sonoridades análogas com sentidos diferentes”<br />

(MARTINS, 2000: 45). A palavra escolhida como substituta possui semelhança com a<br />

original no tocante à terminação, sugerindo graça pelo inusitado do trocadilho.<br />

• Em Paz na Terra aos homens com boas amizades (02/05/2003), ocorre a<br />

apropriação da frase bíblica Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14) e a<br />

alteração de vontade por amizade. A charge remete à amizade entre os senadores José<br />

Sarney e Antônio Carlos Magalhães, justificando a escolha do vocábulo amizades, outro<br />

exemplo de substituição de vocábulo calcada na coincidência dos sons finais.<br />

Vejamos dois anúncios de um curso preparatório:<br />

• Entre para o clube dos bem-empregados.<br />

• Entre para o clube dos bem-preparados.<br />

Feita a apropriação da expressão entrar para o clube dos desempregados,<br />

produziu-se o clube dos bem-empregados e o clube dos bem-preparados. Este é mais<br />

um exemplo de semelhança fônica entre o vocábulo original e o substituto.<br />

O humor é um terreno mais que propício a essas desconstruções de frases feitas,<br />

expressões populares, títulos de obras. Analisando a produção do grupo Casseta &<br />

Planeta, um olhar mais atento sobre a coluna Agamenon nos fornecerá alguns bons<br />

exemplos destas desconstruções de sintagmas cristalizados pelo uso. Em Olhai os<br />

colírios do campo (22/06/2003), há o reaproveitamento do título de uma famosa obra da<br />

literatura brasileira, Olhai os lírios do campo, do escritor Érico Veríssimo. A forma<br />

gráfica lírio está contida em colírio, ou sob outro ponto de vista, colírio é formado pelo<br />

acréscimo da sílaba [co] a lírio. O texto faz uma alusão a um colírio que causou<br />

problemas aos seus usuários. Olhai (verbo olhar) e colírios pertencem ao mesmo campo<br />

associativo, justificando a sua presença neste contexto e alterando o título original.<br />

Outra vez há semelhança sonora entre a palavra original e a substituta.<br />

(29/06/2003).<br />

Na seção Pensamento do dia, encontramos mais um exemplo:<br />

• A seleção é a pátria de bobeira por A seleção é a pátria de chuteiras<br />

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Neste exemplo, é a semelhança fônica que endossa a escolha de bobeira.<br />

Chuteira/bobeira têm a terminação composta pela mesma seqüência de fonemas /e/, /y/,<br />

/r/, /a/.<br />

Nomes de pessoas (prenomes e sobrenomes) também são sintagmas<br />

cristalizados. Desde que nascemos os carregamos e temos poucas chances de alterá-los,<br />

salvo casamento ou a adoção de nomes artísticos. Os humoristas do citado grupo<br />

Casseta & Planeta realizam um trabalho com os nomes próprios de políticos famosos: o<br />

ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já foi chamado no programa de Fernando<br />

Henrique Invejoso, Ficando Henrique Nervoso. Atentemos para Cardoso, o sobrenome<br />

alterado, que possui a mesma terminação dos vocábulos substitutos (invejoso, nervoso).<br />

Deste modo, fica mais fácil para o ouvinte lembrar o sobrenome original do presidente,<br />

confirmando a associação entre a paródia e o parodiado.<br />

O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva também já foi vítima de algumas<br />

sátiras. Na coluna Agamenon, foi chamado de:<br />

• Luiz Inéscio Lula da Silva (11/05/2003; 15/06/2003);<br />

• Luiz Inércio Lula da Silva (01/06/2003);<br />

• Luiz Ignorácio Lula da Silva (06/07/2003);<br />

• Luiz Galináceo Ejacula da Silva (06/07/2003);<br />

• Luiz Inácio Rola da Silva (06/07/2003);<br />

• Juiz Inácio da Silva, o Amarelula (13/07/2003).<br />

No programa de televisão, o presidente também teve seu nome alterado:<br />

• Luiz Entrevistácio Lula da Silva (26/08/2003);<br />

• Luiz Anúncio Lula da Silva (26/08/2003).<br />

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Verifica-se uma preocupação em manter a estrutura do nome do presidente,<br />

fazendo a alteração em algum ponto que seja favorável à substituição. Nos quatro<br />

primeiros exemplos, é o segundo nome do presidente que sofre modificações: Inácio<br />

transforma-se em Inéscio (em alusão a néscio, pessoa tola, ignorante), em Inércio<br />

(fazendo referência à inércia, pela falta de exercícios físicos e a conseqüente obesidade<br />

do presidente, e também a uma possível inércia política), em Ignorácio (remete à<br />

ignorante, fazendo referência à falta de cultura acadêmica do presidente), em Galináceo<br />

(no lugar de galinha, homem que “paquera” muito, em referência ao episódio em que o<br />

presidente conheceu uma das dançarinas de um grupo popular. A forma galináceo existe<br />

na língua e por isso foi mantida a grafia com –e). Em comum à maioria dos exemplos<br />

anteriores, a opção pelo fonema inicial /i/ e pela terminação –ácio (-áceo). Há<br />

necessidade de manter a semelhança sonora com o nome verdadeiro do presidente, para<br />

que o leitor reconheça quem está sendo alvo da paródia. Partindo destes exemplos,<br />

pode-se salientar para o aluno a importância de se ter um amplo vocabulário. Os<br />

produtores destes trocadilhos com os nomes próprios possuem um amplo domínio do<br />

léxico português para fazer tais trocas. Néscio é um exemplo de vocábulo que não é<br />

comum na linguagem coloquial; vocábulo de uso não-corrente, e do qual se apropriaram<br />

para criar o neologismo Inéscio.<br />

No último exemplo, Juiz ocorre no contexto onde se esperaria Luiz. O vocábulo<br />

inserido remeterá ao episódio dos juízes na Reforma da Previdência. Ocorre uma<br />

substituição calcada na troca de apenas um fonema.(Mais adiante veremos outros<br />

exemplos que podem ser aproveitados para tratar do papel distintivo do fonema.)<br />

Outros políticos e pessoas famosas foram alvo deste tipo de paródia, sempre<br />

mantendo a semelhança sonora com o nome original e uma relação semântica com<br />

alguma característica do satirizado:<br />

• Fernando Cóllon (03/08/2003);<br />

• Rosquinha Garotinho, Rosquinha Molequinha (27/<strong>04</strong>/2003; 22/06/2003);<br />

• Anthony Molequinho (22/06/2003) - o uso do diminutivo nos nomes do casal é<br />

mantido, preservando a identidade sonora entre o nome verdadeiro e o fruto da<br />

paródia.);<br />

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• Mário Jorge Lobo Gagállo (29/06/2003), em alusão ao técnico de futebol<br />

Mário Jorge Lobo Zagallo, insinuando sua velhice (gagá);<br />

• o vice-presidente José de Alencar virou José de Amargar (08/06/2003), devido<br />

às suas opiniões dissonantes e às suas reclamações;<br />

• Bill Pinton (08/06/2003) - o presidente norte-americano Bill Clinton,<br />

conhecido por sua fama de conquistador;<br />

• César Guggenmaier (13/07/2003) - cruzamento vocabular de Guggenheim,<br />

nome do museu que o prefeito pretende trazer para a cidade do Rio de Janeiro, e do<br />

sobrenome do próprio prefeito, Maia;<br />

• Marta Chuplicy (13/07/2003) e José Gaynoíno (29/06/2003), trocadilho<br />

sugerindo preferências sexuais.<br />

Outro tema que pode ser abordado e melhor contextualizado através de exemplos<br />

do dia-a-dia é o conceito de fonema. Vejamos algumas sugestões.<br />

O título da coluna do dia 29/06/2003, A bicha vai pegar, é uma apropriação da<br />

expressão popular o bicho vai pegar. A inserção do vocábulo bicha remete à Parada<br />

Gay, que ocorreria no Rio de Janeiro no mesmo dia.<br />

Bicha e bicho diferem pela alternância dos fonemas /o/ e /a/. É um bom exemplo<br />

da função distintiva do fonema, como se pode comprovar pela seguinte definição: “Os<br />

fonemas são unidades mínimas não-significativas, mas distintivas, ou seja, unidades que<br />

distinguem as formas da língua”. (Simões, 2003: 24) A alteração fonológica gerou<br />

alteração de sentido, reforçando a função primária do fonema: a distinção.<br />

• Mamar: verba intransitiva por Amar: verbo intransitivo (11/05/2003).<br />

Neste segundo exemplo, ocorre uma paródia do título do livro de Mário de<br />

Andrade Amar: verbo intransitivo; os dois vocábulos mamar e amar diferem pelo<br />

fonema nasal dental no início do vocábulo. Em verba/verbo, a alteração do fonema /o/<br />

para /a/, gera um novo significante e, conseqüentemente, um novo significado,<br />

reforçando o conceito de fonema como um traço distintivo das palavras.<br />

Em mais dois anúncios publicitários podemos encontrar exemplo do papel<br />

distintivo do fonema, sendo empregado para fortalecer o trocadilho:<br />

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• Limpol acaba com a gordura sem acabar com as mães. Desculpe, com as<br />

mãos. (Trocadilho apoiado na troca intencional do fonema).<br />

• Sente-se bem, sinta-se melhor ainda. (Propaganda de uma loja de cadeiras).<br />

A questão da nasalidade pode ser abordada através do exemplo abaixo, proferido<br />

por Silvio Pereira, Secretário de Organização do PT, e conhecido por soltar algumas<br />

pérolas como essa:<br />

• Desculpe por estar pegando o bode andando.(18/05/2003)<br />

A expressão original é pegar o bonde andando. Bonde e bode são um bom<br />

exemplo do valor distintivo da nasalidade.(cf. Câmara Jr.), pois o sentido da expressão<br />

popular foi completamente modificado com a alteração fonológica.<br />

3. ALGUMAS CONCLUSÕES<br />

Após analisar atentamente o exemplário fornecido por charges, propagandas e<br />

textos humorísticos, podemos elencar algumas conclusões:<br />

• aparentemente, essas alterações geram o riso e a graça pelo seu despropósito.<br />

Despropósito intencional e que demonstra um amplo domínio dos recursos expressivos<br />

da língua portuguesa. Quem as produz (redatores de programas humorísticos,<br />

publicitários, chargistas) possui um bom conhecimento de sua língua materna, para dela<br />

se apropriar como matéria-prima para seus trocadilhos e jogos de palavras. Engana-se<br />

quem pensa que essas alterações são resultado da falta de compreensão da língua; ao<br />

contrário, elas demonstram usuários que detêm conhecimento sobre a matéria fônica da<br />

língua, sobre seu vocabulário e sua estrutura morfossintática. O aluno perceberá que<br />

também ele necessita conhecer sua língua para melhor utilizá-la no dia-a-dia ou mesmo<br />

trabalhá-la artisticamente;<br />

• ao recolher este tipo de corpus para trabalhar com os alunos, fica patente a<br />

relação entre conhecimento e realidade, entre teoria e prática, contextualizando o<br />

ensino;<br />

• o ensino de língua portuguesa não é, nem precisa ser, desconectado da<br />

atualidade. Podemos e devemos trabalhar os clássicos com os alunos, mas nada melhor<br />

que exemplos atuais para ilustrar a teoria;<br />

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• as aulas de Fonologia não mais se resumirão à contagem de sílabas ou<br />

identificação de encontros vocálicos, consonantais, nem tampouco à versificação (rimas,<br />

assonâncias, aliterações). Um leque de opções se abre para o aluno e para o professor:<br />

charges, músicas, quadrinhos, comerciais, internet, entre outros exemplos de aplicação<br />

de fenômenos fônicos.<br />

Ao optar por este tipo de trabalho, o professor se coaduna com as novas<br />

tendências ou exigências educacionais. Vários estudiosos pregam um ensino<br />

contextualizado, ancorado na realidade do aluno, sendo este o agente de construção do<br />

seu próprio conhecimento (cf. Piaget, Freinet, Vygotsky). Ao selecionar tal sorte de<br />

corpus para o trabalho em sala de aula, além de proporcionar um ensino mais dinâmico<br />

e próximo da realidade de seus alunos, o professor produz seu próprio material didático,<br />

desvinculando-se de livros didáticos que nem sempre atendem às necessidades dos seus<br />

educandos, de tal forma que sua prática demonstre maior coerência e visão crítica de<br />

sua própria língua.<br />

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Bíblia Sagrada (1985) São Paulo: Editora Ave Maria.<br />

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. (1991) Rio de Janeiro: Vozes.<br />

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa.<br />

(2000) São Paulo: T. A. Queiroz.<br />

MONTEIRO, José L. Morfologia Portuguesa. (1991) São Paulo: Pontes.<br />

RAMOS FILHO, João et al. Caderno de atividades em língua portuguesa. (1995) Rio de<br />

Janeiro: JOBRAN.<br />

SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de<br />

exercícios. (2002) São Paulo: Contexto.<br />

SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave: considerações metodológicas sobre a fala e a<br />

escrita. (2003) Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora.<br />

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS<br />

Os textos deverão ser encaminhados exclusivamente pela INTERNET (em forma<br />

de anexo a mensagem eletrônica), para o seguinte endereço eletrônico:<br />

dialogarts@uol.com.br<br />

Os volumes não são temáticos, apesar de priorizarem as áreas: Letras,<br />

Lingüística e Semiótica.<br />

A língua oficial da publicação é o português.<br />

O fluxo de recebimento de artigos e publicação é contínuo (exceto quando haja<br />

chamadas especificando datas), ficando sujeito à quantidade de textos aprovados pelo<br />

Conselho Editorial e às condições de produção disponibilizadas pela <strong>UERJ</strong>.<br />

AS INSTRUÇÕES DE DIGITAÇÃO SÃO AS SEU SEGUINTES<br />

Digitado em Word (com aplicação de estilos do próprio editor de textos),<br />

gravado em formato RTF; página tamanho A4, com as seguintes configurações:<br />

margens de 3cm; cabeçalho e rodapé com 1cm; orientação do papel na posição retrato,<br />

com o mínimo de 8 (oito) e o máximo de 25 (vinte e cinco) laudas.<br />

Não hifenizar.<br />

Não produzir espaços com o uso da tecla ENTER.<br />

Não incluir figuras, gráficos e tabelas no arquivo texto. (vide item 3.3)<br />

ESTILOS A SEREM CRIADOS E USADOS PELO AUTOR<br />

• Título: fonte Times New Romam 12, negrito, caixa de frase, parágrafo<br />

simples, centralizado, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois,<br />

• Autor: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento à<br />

direita, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois, seguido do nome<br />

da(s) instituição(ões) que representa;<br />

• Corpo do “Texto: fonte Times New Roman 12; parágrafo 1,.5, com<br />

alinhamento justificado, recuo especial na primeira linha de 0,75cm, 3<br />

espaços antes e 3 espaços depois;<br />

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• Citação: fonte "Mimes New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento<br />

justificado, sem recuo especial na primeira linfa, com recuo de 3cm à<br />

esquerda e 1 cm à direita, 3 espaços antes e 0 espaços depois,<br />

• Bibliografia: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com<br />

alinhamento justificado, recuo especial de deslocamento de 0,8cm; 3 espaços<br />

antes e 3 espaços depois,<br />

• Notas: apenas notas de referência direta (em estilo americano), conforme o<br />

exemplo: (SIMÕES, 2003: 37). Não publicaremos textos com notas de<br />

rodapé ou de fim.<br />

CRITÉRIOS ADICIONAIS:<br />

• palavras ou expressões-objeto cm itálico, termos estrangeiros (inclusive<br />

latim ou grego) sublinhados, não usar negrito;<br />

• evitar figuras, gráficos e tabelas;<br />

• quando as figuras (usar formato JPEG para WEB), tabelas e gráficos forem<br />

indispensáveis, mandá-los em arquivos independentes e numerados. (Indicar<br />

no texto a localização de cada figura, gráfico ou tabela).<br />

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