Número 1 (jan-jun/04) - Dialogarts - UERJ
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Caderno Seminal Digital – Vol 1 – Nº 1 – 1. (Jan/Jun-20<strong>04</strong>). Rio de Janeiro:<br />
<strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>04</strong>.<br />
CONSELHO CONSULTIVO<br />
André Valente (<strong>UERJ</strong>-FACHA)<br />
Ângela Lopes (UniverCidade-RJ)<br />
Carmen Lúcia Tindó (UFRJ)<br />
Claudio Cezar Henriques (<strong>UERJ</strong>-UNESA)<br />
Darcilia Simões (<strong>UERJ</strong>)<br />
Edwiges Zaccur (UFF)<br />
Flavio Garcia (<strong>UERJ</strong>)<br />
Flora Simonetti Coelho (<strong>UERJ</strong>)<br />
José Luís Jobim (<strong>UERJ</strong>-UFF)<br />
José Carlos Barcellos (<strong>UERJ</strong>-UFF)<br />
Luís Flavio Sieczkowski (UniverCidade-RJ)<br />
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)<br />
Maria Leny H. de Almeida (<strong>UERJ</strong>)<br />
Maria Teresa G. Pereira (<strong>UERJ</strong>)<br />
Milton Marques Júnior (UFPe)<br />
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />
Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />
Valderez H. G. Junqueira (UNESP)<br />
Vilson José Leffa (UCPel-RS)<br />
ISSN 1806-9142<br />
Irregular<br />
1. Lingüística Aplicada– Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -<br />
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Endereço para envio de trabalhos<br />
<strong>UERJ</strong>/IL- A/C Profa. Dra. Darcilia Simões<br />
R. São Francisco Xavier, 524, sala 1139-F,<br />
Maracanã, Rio de Janeiro, RJ,<br />
CEP 20.559-900<br />
contatos:<br />
dialogarts@uol.com.br<br />
EDITORA<br />
Darcilia Simões<br />
COMISSÃO EXECUTIVA<br />
Flavio Garcia<br />
Cláudio Cezar Henriques<br />
EQUIPE DE DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO<br />
Carla Barreto Vasconcellos (EIC)<br />
Renata Gonçalves da Silva (EXT)<br />
Viviane Souza de Oliveira (EXT)<br />
PROJETO DE CAPA<br />
Darcilia Simões<br />
LOGOTIPO:<br />
Rogério Coutinho<br />
Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um projeto<br />
de Extensão da <strong>UERJ</strong> do qual participam<br />
Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a<br />
Faculdade de Formação de Professores<br />
(Campus São Gonçalo). O objetivo deste<br />
projeto é promover a circulação da produção<br />
acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar<br />
o relacionamento entre a Universidade e o<br />
contexto sociocultural em que está inserida.<br />
O projeto teve início em 1994 com<br />
publicações impressas. Em 20<strong>04</strong>, inaugura as<br />
produções digitais com vistas a recuperar a<br />
ritmo de suas publicações e ampliar a<br />
divulgação.<br />
Visite nossa página:<br />
http://www.darcilia.simoes.com<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 1
APRESENTAÇÃO<br />
O Caderno Seminal é antes de tudo um forte!<br />
Nos seus 11 anos de vida, o Caderno Seminal tem atravessado sucessivas crises.<br />
As dificuldades socioeconômicas nacionais se refletem perversamente sobre as<br />
Universidades, e os projetos acadêmicos vêm lutando para se manterem ativos e<br />
atingirem seus objetivos.<br />
Assim vem sendo a trajetória do Caderno Seminal. A despeito da demanda de<br />
artigos de excelente qualidade e da cobrança dos lançamentos por parte do público-<br />
leitor, a equipe de produção do Projeto Publicações <strong>Dialogarts</strong>, que produz o Caderno<br />
Seminal, tem sofrido altos e baixos. Antes, lutava-se com a redução do número de<br />
bolsistas; hoje, aumentado o número de bolsistas (são 3 atualmente), atravessam-se as<br />
dificuldades de: espaço para trabalhar, máquinas, papel para impressão, gráfica em<br />
funcionamento precário etc. Até o treinamento na editoração eletrônica é realizado pelos<br />
docentes que lideram o projeto.<br />
No entanto, sobrevivemos! Eis o Caderno Seminal Digital, o que supomos<br />
resolverá não só a questão da periodicidade, mas sobretudo a divulgação em ampla<br />
escala com o auxílio da poderosa INTERNET.<br />
Agradecemos a todos que vêm confiando em nosso trabalho e reativamos a<br />
chamada para apresentação de artigos, cujas normas se encontram disponíveis na última<br />
página de cada volume.<br />
O critério de aceitação dos trabalhos é único: QUALIDADE!<br />
Por isso, <strong>jun</strong>tem-se a nós todos os colegas professores-pesquisadores e<br />
estudantes de pós-graduação (lato e stricto sensu) e venham distribuir democraticamente<br />
suas descobertas.<br />
Alvíssaras!<br />
Junho, 20<strong>04</strong><br />
Os Editores<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 2
SUMÁRIO<br />
FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE ....................................................... 4<br />
Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martins (<strong>UERJ</strong>_CPII)........................................... 4<br />
A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL ............................................................ 20<br />
Elizabeth Bessa de Mattos – <strong>UERJ</strong>.......................................................................... 20<br />
O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO COMO DESTRUIÇÃO<br />
EM A LUZ NO SUBSOLO, DE LÚCIO CARDOSO ............................................... 28<br />
Fernando Monteiro de Barros (<strong>UERJ</strong>) ..................................................................... 28<br />
REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE SENTENÇAS............................. 46<br />
Sandra Pereira Bernardo (<strong>UERJ</strong> / PUC-Rio)............................................................ 46<br />
CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA CINEGRAFISTA............... 72<br />
Regina Silva Michelli (<strong>UERJ</strong>)................................................................................. 72<br />
FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA ORAÇÃO............. 87<br />
Manuel Ferreira da Costa (<strong>UERJ</strong>) ........................................................................... 87<br />
A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC ................................. 105<br />
Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ <strong>UERJ</strong>) ............................................................... 105<br />
UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO...................................................... 120<br />
Cláudio Artur de O Rei (<strong>UERJ</strong>-UNESA) .............................................................. 120<br />
A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O<br />
PROFESSOR........................................................................................................ 136<br />
Claudia Moura da Rocha (<strong>UERJ</strong>) .......................................................................... 136<br />
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS........................................... 149<br />
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1) INTRODUÇÃO<br />
FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE 1<br />
Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martin 2 s (<strong>UERJ</strong>_CPII)<br />
A camada fonológica das línguas sempre foi objeto de estudo dos iniciados. O<br />
usuário comum não presta atenção no material fonêmico com o qual opera, e o ensino<br />
da língua sempre reduziu o estudo fonológico à classificação dos sons. Os estudos<br />
superiores da língua ocupam-se da camada fônica, contudo, ainda está bastante restrito o<br />
espaço reservado aos estudos fonológicos, uma vez que não se tem explorado<br />
suficientemente o valor expressivo-impressivo dos sons de modo a tornar seu estudo<br />
mais atraente. Observada a camada fônica da língua como objeto de beleza e riqueza,<br />
seu estudo acaba por tornar-se mais produtivo. O pesquisador passa a alargar a visão do<br />
objeto, não apenas como unidade sonora ou unidade mínima distintiva, mas como<br />
ingrediente da produção textual, integrante do seu potencial significante e potente na<br />
construção da semiose textual.<br />
2) A ICONICIDADE NA CAMADA FÔNICA.<br />
Como anunciamos no resumo, nossa abordagem pauta-se na semiótica norte-<br />
americana de Charles Sanders Peirce; e a teoria da iconicidade é por nós aplicada no<br />
sentido de captar nos textos as marcas sígnicas, que podem conduzir o leitor à<br />
mensagem básica lá inscrita. Nessa ótica, tomamos os fonemas da língua como signos<br />
sonoros (verbais vocais) representáveis na escrita, cuja combinação dá origem a novos<br />
signos sonoros mais complexos (sílabas, vocábulos, grupos de força, etc.), passíveis de<br />
uma análise a que chamamos fonossemiótica, ou seja, uma interpretação por meio da<br />
qual os fonemas (ou outra unidade fônica superior) sejam observados em seu potencial<br />
icônico ou indicial.<br />
1<br />
Comunicação apresentada, com o título Fonologia em nova chave, no II Seminário Internacional de<br />
Fonologia ─ PUC/RS, em 15/<strong>04</strong>/2002.<br />
2<br />
Aira Suzana R. Martins é doutoranda em Letras na <strong>UERJ</strong> e docente do Colégio Pedro II.<br />
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Observe-se o que dizem Simões 3 & Martins acerca de ícone e índice:<br />
O ícone, ligado à primeiridade, representa formas e sentimentos, tendo, por<br />
isso, alto poder de sugestão. Existe, nessa categoria, similaridade entre<br />
representâmen e objeto. São exemplos de ícones as pinturas, os diagramas,<br />
as fórmulas algébricas e as metáforas.<br />
O índice pertence à categoria da secundidade pelo fato de estabelecer uma<br />
relação de causalidade, temporalidade e espacialidade entre o representâmen<br />
e o objeto. Podemos reconhecer como índices o cata-vento, um grito de<br />
socorro, os nomes próprios, os pronomes pessoais e as metonímias.<br />
Para esclarecer, lembramos que, na perspectiva peirceana, o signo é constituído<br />
de três elementos (cf. Simões & Henriques 4 , 2002:25):<br />
Segundo Peirce 5 , um signo é um signo quando há alguém que possa<br />
interpretá-lo como signo de algo. Assim, um signo (ou representâmen), ao<br />
criar na mente de alguém um signo equivalente ou mais elaborado (no<br />
sentido do desenvolvimento), estará criando um interpretante, e a coisa<br />
representada recebe a designação de objeto. É isso que forma a relação<br />
triádica de signo.<br />
No nível fônico, a produção de ícones e índices se faz por meio do potencial<br />
expressivo ou impressivo resultante das escolhas fonemáticas. Em nossos estudos,<br />
temos privilegiado o texto rosiano porque, para nós, Guimarães Rosa talvez seja o autor<br />
que mais tem provocado o estranhamento no receptor, reação tão esperada pelo artista<br />
do mundo contemporâneo (cf. Simões & Martins, 2001).<br />
Em um trabalho intitulado, A construção fono-semiótica dos personagens de<br />
“Desenredo” de Guimarães Rosa 6 , Simões demonstrou a virtualidade fonêmica<br />
construída por Rosa, vejamos:<br />
O PAPEL DAS CONSOANTES.<br />
A primeiro personagem a aparecer é JÓ JOAQUIM que traz em seu<br />
nome a reiteração da figura de JÓ a partir da repetição dessa sílaba. Contudo, a<br />
3<br />
(In SIMÕES, Darcilia & Aira Suzana R. MARTINS. “Tresaventura”: a trindade do conhecimento na<br />
narrativa sertânica, na II Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa, PUC-MINAS, ago-2001):<br />
4<br />
SIMÕES, Darcilia & Cláudio Cezar HENRIQUES, A produção de trabalhos acadêmicos. Rio de<br />
Janeiro, 2002 – no prelo)<br />
5<br />
Apud FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva. 1986 [fl.66]<br />
6<br />
Apud 1997- Revista Philologus -set-dez/97 (distribuída em mar/1998)- 67-81 ); disponível na<br />
INTERNET www.filologia.org<br />
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metafonia presente serve de índice para as nuanças de diferenciação detectáveis<br />
no “novo Jó”: JÓ /ó/ JOaquim /o/<br />
Observe-se que pela própria ordem de apresentação no segmento fônico—<br />
em primeiro lugar aparece o homógrafo /z,ó/, conforme o mito judaico que<br />
remonta aos primórdios da História—vê-se um Jó diferente, inclusive com<br />
prenome duplo. E esse nome apresenta uma estrutura silábica complexa,<br />
porém, do tipo cV—livre, destravada, aberta, como era o JÓ bíblico em seu<br />
comportamento.<br />
A transformação do JÓ num outro se anuncia com o fechamento do timbre<br />
da vogal posterior média; e se consolida na incorporação de mais uma sílaba<br />
àquela. Um segmento fônico mais extenso e de estrutura fônica mais<br />
complexa -- /kiN/-- se liga a /z,ó/ por intermédio de uma sílaba do tipo V --<br />
/a/, formando o nome composto: JÓ JOAQUIM, cuja transcrição fonológica<br />
é a seguinte: /z,ó/ /z,o a ‘kiN/.<br />
Essa estrutura sugere possíveis alterações de comportamento se<br />
compararmos os dois jós: o bíblico e o rosiano.<br />
Como é possível depreender do transcrito, a autora procedeu à análise do conto a<br />
partir dos seus personagens, e à análise destes a partir de seus nomes, ou da<br />
configuração fonológica dos mesmos.<br />
Nessa ótica, percebe-se uma análise semiótica – o fonema como signo – fundada<br />
numa descrição funcionalista dos componentes fônicos dos significantes.<br />
3) A DESCRIÇÃO FONÊMICA NUM PRISMA FUNCIONAL<br />
Como se viu no excerto da análise de “Desenredo”, os valores fônicos são<br />
deduzidos (ou induzidos) com base na estrutura do vocábulo e, por conseguinte, da<br />
localização do fonema, do que resultam suas funções e valores. As funções podem ser<br />
definidas segundo o tipo de análise em realização. Em nosso caso, buscamos funções<br />
semióticas e estilísticas que nos permitam perscrutar os signos e tentar desvendar o<br />
caminho percorrido pelo enunciador na construção do texto.<br />
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Segundo esta ótica, a estruturação fônica da Língua Portuguesa ─ fonemas,<br />
sílabas e acentos ─ podem ser tomados como ícones ou índices, porque se prestam a<br />
representar a força expressional ou recurso impressivo que atuam sobre o receptor do<br />
texto e o conduzem durante a leitura (facilitando-lhe ou dificultando-lhe a<br />
interpretação). Por meio do levantamento das qualidades fônicas e de seus valores-<br />
funções expressivos e impressivos, buscamos propor uma leitura para o conto Meu tio,<br />
o Iauaretê. Focalizando, sobretudo a onomatopéia e a sugestão. Em nossa análise,<br />
procuramos apontar metaplasmos funcionais ─ os que decorrem da participação do<br />
fonema numa estrutura vocabular ou fraseológica ─ e os literários ─ aqueles que são<br />
deliberadamente produzidos pelo autor do texto. Ao lado disso, procuramos apontar a<br />
significação fonêmica no âmbito da neologia.<br />
4) EXEMPLO DE ANÁLISE FONOESTILÍSTICO-SEMIÓTICA DO CONTO MEU TIO O<br />
IAUARETÊ.<br />
4.1) UM RESUMO DA HISTÓRIA NARRADA POR G. ROSA<br />
Meu tio, o Iauaretê é um longo monólogo-diálogo em que o protagonista, um<br />
onceiro que vivia isolado nas gerais, pergunta e responde ao interrogatório que fazia a<br />
um visitante.<br />
O matador de onças, que se apresenta como um mestiço, filho de branco com<br />
índia, certo dia, recebe no sítio em que estava instalado a visita, de um via<strong>jan</strong>te que se<br />
dispersara de seus companheiros. Enquanto bebe cachaça, o bugre das onças conta<br />
como chegara àquela região. Sua função no local era acabar com as onças, mas, à<br />
medida que se identifica com elas, começa a protegê-las, passando a rejeitar a<br />
civilização e, com isso, ao invés de abater os animais, começa a matar homens.<br />
Sua fala é acompanhada de um grande arrependimento por já ter, a princípio,<br />
matado os felinos que ameaçavam a segurança dos moradores das redondezas. A partir<br />
do momento em que percebe sua grande afinidade pelas onças, passa a tratá-las com<br />
grande carinho; conhecendo uma a uma pelo nome. Tinha especial afeto por uma fêmea<br />
a quem chamava Maria-Maria. Não permitia que nenhum macho se aproximasse dessa<br />
fêmea; e a fala do personagem sugere que esse animal substituía a figura feminina em<br />
sua vida.<br />
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A leitura deste conto exige do leitor a participação ativa no processo de<br />
significação. A construção da narração se sobrepõe à ação das personagens. A<br />
linguagem faz com que o leitor se coloque diante do personagem que se forma e se<br />
transforma à sua frente, assim como as cenas que compõem a narrativa.<br />
A história, narrada numa linguagem inovadora em que se misturam neologismos,<br />
arcaísmos, tupinismos, interjeições e onomatopéias (associadas a ruídos e rugidos)<br />
mostra a oncificação do bugre: transformação gradativa do homem em onça.<br />
A combinação de todos os recursos lingüísticos produz um sem-número de<br />
efeitos responsáveis pela representação icônica das cenas na mente interpretadora do<br />
leitor. As palavras que se narram em de Meu tio o Iauaretê se assemelham a pinceladas<br />
de tinta que, aos poucos, formam uma paisagem diante de um espectador.<br />
A grande inovação de Guimarães Rosa neste conto é que a construção da<br />
narração se sobrepõe à ação dos personagens. Os personagens ou as cenas não são<br />
descritos, eles se vão mostrando, aos poucos, cinematograficamente, ao leitor.<br />
O título do texto é um elemento indicial da ruptura com o mundo dos homens,<br />
representada pelo onceiro, que acaba por assumir parentesco com as onças: Meu tio o<br />
Iauaretê (jaguaretê, iauaretê ─ onça, jaguar, do tupi yaware’te, onça verdadeira).<br />
Por esse motivo, à medida que ia revelando, sob efeito da bebida, a verdadeira<br />
causa da morte das pessoas, que, inicialmente era atribuída à doença, não sentia<br />
qualquer remorso, ao contrário, justificava: Ele inda tava vivo, quando caiu lá embaixo,<br />
quando onça Porreteira começou a comer... Bom, bonito! Eh, p’s, eh porã! Erê! Come<br />
esse, meu tio... (fl. 849)<br />
O mundo do personagem ─ o bugre onceiro ─ é regido pelas leis naturais; logo,<br />
os homens seriam o alimento, o meio de sobrevivência das onças da região.<br />
4.2) A ANÁLISE DA CAMADA FÔNICA DO CONTO<br />
Ao desenhar verbalmente o universo sertânico, G. Rosa, usando habilmente a<br />
palavra, modela a expressão com a propriedade de um artista plástico. Faz dos sons da<br />
língua portuguesa a matéria-prima com que constrói cenário e personagens, dando-se o<br />
requinte da produção sonoplástico-musical por meio da qual o leitor pode assistir às<br />
cenas como se fora em filme ou peça teatral.<br />
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Por isso, na intenção de colorir o estudo da fonologia portuguesa, deixamos o<br />
espaço da metalinguagem teorizante para examinar o potencial sonoro de nossa língua<br />
numa perspectiva desbravadora e lúdica.<br />
Dizemos desbravadora por nascer de um trabalho de interpretação textual no<br />
qual, fundados na semiótica de Peirce, tentamos levantar os valores icônicos, indiciais e<br />
simbólicos dos fonemas e de suas combinações silábicas. Dizemos lúdica por<br />
considerarmos o ludismo como característica dos processos investigativos, uma vez que<br />
desafiam nossa inteligência, fazendo-nos criar estratégias de ação que nos levem à<br />
consecução dos objetivos traçados para tal aventura.<br />
Assim, a análise que apresentamos a seguir tem por meta entender o esquema<br />
fônico de nossa língua por meio dos usos praticados pelo artista que, melhor que<br />
qualquer usuário, sabe explorar o potencial dos signos.<br />
4.3) A ONOMATOPÉIA E A SUGESTÃO.<br />
Numa narrativa de cenas sertânicas, nada mais oportuno que a presença das<br />
onomatopéias. Estes signos (ora ícones – quando imitativos; ora índices – quando<br />
sugestivos) prestam-se à construção sonoplástica das cenas, dando-lhe realces de<br />
verossimilhança e dinamizando o texto.<br />
Chamamos de interjeições-onomatopaicas os signos imitativos ou sugestivos<br />
que intercalam o uso lexical dicionarizado presente na fala do personagem, funcionando<br />
não só como marcadores conversacionais, mas sobre tudo como componentes<br />
imagéticos na construção do personagem.<br />
O onceiro da história, com sua fala rude e, de certa forma precária, é construído<br />
por meio de um discurso-texto estruturado em bases onomatopaicas, por meio do qual<br />
se torna possível vê-lo a um só tempo como homem rude e homem-onça.<br />
Vejamos:<br />
Hã-hã. Isto não é casa...É. Havéra. Acho. Sou fazendeiro não, sou<br />
morador... Eh, também sou morador não. Eu ⎯ toda parte. Tou aqui, quando<br />
eu quero eu mudo. É. Aqui eu durmo. Hum. Nhem? Mecê é que tá falando.<br />
Nhor não...Cê vai indo ou vai vindo? (fl. 825)<br />
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(...) Tá bom, dei’stá! Quero relógio nenhum não. Dei’stá. Pensei que mecê<br />
queria ser meu amigo... Hum. Hum-hum. É Hum. Iá axi. Quero canivete<br />
não. (...) (fl.828)<br />
Vem calada, vem comer. Mecê carece de ter medo! Tem? Se ela urrar, eh,<br />
mocanhemo, cê tem medo. Esturra – urra de engrossar a goela e afundar os<br />
vazios... Urrurrú-rrrurrú... Troveja, até. Tudo treme. Bocão que cabe<br />
muita coisa, bocão duas-bocas! Apê! (fl. 828)<br />
Observe-se que os elementos grifados nos excertos ─ Hã-hã. Hum. Nhem<br />
Hum. Hum-hum. Hum ─ são construídos com sons guturais, aspirados, nasalados,<br />
palatais. Esta escolha demonstra a consciência lingüística do autor no que tange ao<br />
potencial imitativo-sugestivo de tais qualidades sonoras na representação de um<br />
ambiente hostil, animalizado. O som gutural ─ no português representado pelas velares<br />
e uvulares, sobretudo as oclusivas ─ aproximam-se dos ruídos captáveis da natureza,<br />
grunhidos animais, estalos, batidas, etc. O som aspirado ─ via de regra produzido como<br />
uvular ─ acaba sendo uma variante gutural, talvez abrandada pela maior porção de ar<br />
necessária à sua produção. Os sons nasalados e os palatais sugerem a sonorização<br />
característica das cavernas, dos interiores; sons recuados e abafados. Os palatais, além<br />
disso, geram impressões de mastigação, logo, aproximam-se dos sons primais.<br />
Na mesma passagem tem-se a ocorrência da consoante vibrante (esturra-urra)<br />
seguida da consoante gutural surda (engrossar/goela), culminando com a onomatopéia<br />
que imita o rugido da onça. Finalizando, temos a presença da oclusiva dental surda<br />
sugerindo o fungado do animal (troveja/tudo/treme), que se repete ao longo da narrativa<br />
por meio da onomatopéia n’t, n’t, que sugere a mastigação, a degustação, ações<br />
realizadas na boca, e a onomatopéia serve de índice do perigo de ser devorado pelas<br />
onças: Eu xingo! Tiss n’t, n’t; ... (fl. 832): Se deixar, eu bebo até o escorropicho. N’t,<br />
m’p, aah... (fl.834)<br />
Como podemos ver, a onomatopéia n’t tem a variante m’p, que intensifica,<br />
talvez, o efeito de mastigação de n’t. Pelo fato de o primeiro fonema ter mudado seu<br />
ponto de articulação, o segundo tornou-se bilabial como o primeiro.<br />
As interjeições que aparecem no conto contribuem para a ambientação da<br />
história, produzindo o efeito da excitação constante na vida repleta de riscos do<br />
personagem.<br />
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(...). Onça vem. Heeé! Vem anda andando, ligeiro, cê não vê o vulto com<br />
esses olhos de mecê. Eh, rosna, pula não. Vem só brace<strong>jan</strong>do, gatinhando<br />
rente. Pula nunca, não. Eh− ela chega nos meus pés, eu encosto a zagaia.<br />
Erê! (fl. 832)<br />
A imagem sugerida pelo número abundante de interjeições, onomatopéias,<br />
vocábulos tupis vai-se intensificando ao longo do texto até imitarem a fala da onça em<br />
que o homem se transforma diante de seu interlocutor. A grande transformação começa<br />
a ocorrer nas últimas linhas do penúltimo parágrafo: ... Eu − Macuncozo... Faz isso não,<br />
faz não... Nhenhenhém... Heeé!...(fl. 852)<br />
O final da narrativa sugere que o interlocutor, para se defender, atira no onceiro<br />
que se transformara em onça. No início do parágrafo aparecem algumas palavras<br />
completas, compostas de vogais e fonemas consonantais vibrantes, que vão<br />
desaparecendo e dando vez a fonemas guturais, culminando com interjeições que<br />
sugerem o uivo da onça: Hé ... Aarrâ Cê me arrhoôu ...Remuaci ... Rêiucàanacê ...<br />
Araaã ... Ui ...Ui ...Uh ...uh ...êeêê ... êê ... ê ... ê...(fl. 852)<br />
4.4) METAPLASMOS FUNCIONAIS E LITERÁRIOS.<br />
Entendemos como metaplasmos funcionais, aqueles que ocorrem nas variantes<br />
lingüísticas e que, portanto, caracterizam falantes diferenciados. E por metaplasmos<br />
literários, entendemos os que são construídos pelo autor, com o objetivo de dar cores<br />
mais fortes ao texto na caracterização de certo personagem ou cena.<br />
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Os metaplasmos que ocorrem no texto funcionam também como elementos<br />
indiciais da fala sonsa do onceiro: em aspra temos a síncope da vogal e, provocando o<br />
desaparecimento da sílaba postônica (áspera>aspra). No verbo preguntar e no adjetivo<br />
fromoso vemos a metátese em que a mudança de posição da vogal criou o grupo<br />
consonantal pr para perguntar e fr para formoso. O autor emprega também a forma<br />
verbal estralar como uma variante de estalar, que sofreu o acréscimo do fonema<br />
vibrante /r/, fenômeno denominado epêntese. Observa-se, a partir dos exemplos<br />
apresentados, que a mudança de posição do fonema vibrante, dando origem a grupos<br />
consonantais como pr, tr, fr contribuem para a ambientação sonoplástica das cenas<br />
narradas, produzindo a idéia de perigo iminente, movimento brusco, ruído inesperado e<br />
fuga. Fenômeno inverso ocorreu com a palavra percura; o grupo consonantal pr se<br />
desfez, motivando a transformação da vogal posterior fechada em anterior<br />
(procura>percura). Em aperceiando, que aparece com a variante apreceio, também se<br />
observa o mesmo fenômeno, sendo, porém, mantida a vogal e. Nesse verbo, temos outra<br />
alteração fonológica, comum em várias formas verbais presentes na narrativa: os verbos<br />
em –iar se apresentam flexionados como verbos com terminação em –ear (vareia,<br />
arrupeio, desarreia, principeia).<br />
A palavra cruz, no texto, aparece também na forma curuz, exemplo de anaptixe<br />
ou suarabácti, um tipo especial de epêntese, em que o grupo consonantal se desfez com<br />
a intercalação da vogal alta, fechada u, fazendo surgir uma outra sílaba na palavra. O<br />
emprego dessa forma como uma interjeição se justifica perfeitamente no contexto: Fui<br />
indo pra lá, fui vendo: curuz! De toda banda, ladeza da chapada, tinha rastro de onça...<br />
(fl. 850). A reação do personagem diante da cena se apresenta iconicamente ao leitor<br />
por meio da desse vocábulo. A intercalação do u, alongando graficamente a palavra,<br />
produziu o efeito expressivo de recriar o estado de estupefação do onceiro.<br />
Em ridico houve a queda de uma sílaba, passando a palavra de proparoxítona a<br />
paroxítona (ridículo>ridico). Esses metaplasmos observados são, na verdade, formas<br />
arcaicas da língua que ainda podem ser verificadas na linguagem simples do homem<br />
sertanejo, sendo, por isso considerados metaplasmos funcionais.<br />
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Paralelamente, o autor faz criações vocabulares por meio de operações<br />
semelhantes às que se verificam na língua em geral, produzindo um efeito bastante<br />
interessante no texto.<br />
Palavras como desonçar, destemece, despulo e repulo, não-dicionarizadas,<br />
foram criadas por meio de processo que ocorre na gramática da língua, em que os<br />
vocábulos se constróem a partir do acréscimo do prefixo –des e –re, conhecido como<br />
prótese, servindo para caracterizar a fala do personagem. Vejamos os efeitos que<br />
produzem na narrativa:<br />
Hum, o couro dela é custoso pra se firmar, escorrega que nem sabão, pepego<br />
de quiabo, destremece a torto e a direito...(fl. 834)<br />
Pula de lado, muda o repulo no ar. (fl. 830)<br />
Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo.<br />
(fl. 827)<br />
É interessante observar a originalidade da forma desonçar, em que, inicialmente,<br />
o substantivo onça transformou-se em verbo para receber o prefixo –des. Vemos que os<br />
prefixos são formados por consoantes oclusivas e vibrantes, acompanhadas de vogal<br />
fechada, compondo o cenário em que se ouvem ruídos violentos de batidas e rugidos,<br />
que produzem a sensação de temor.<br />
Além de produzirem todos os efeitos comentados, essas formas são<br />
absolutamente adequadas ao texto, pelo fato de contribuírem para reforçar a idéia de<br />
limitação vocabular do personagem, e a natureza quase telegráfica dos enunciados. Uma<br />
palavra como desonçar é capaz de substituir uma sentença, além de ser um índice para o<br />
leitor do caráter ingênuo do personagem, desprovido de qualquer sentimento ético ou<br />
moral.<br />
Outro exemplo interessante de metaplasmo é o que deu origem ao vocábulo<br />
alprecata.Temos, registradas no dicionário (cf Ferreira, 1986), as palavras alparcata,<br />
alpargata e alpergata. Guimarães Rosa preferiu a forma alprecata, em que se vê a<br />
metátese, ou seja, a transposição do fonema vibrante, provocando o surgimento do<br />
grupo consonantal –pr.<br />
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Vemos, portanto, que as inovações lingüísticas introduzidas por Guimarães Rosa<br />
podem ser observadas em vários níveis. Ele não só promove a revitalização à língua,<br />
empregando termos do português arcaico, como também submete o léxico disponível a<br />
mecanismos de transformação −metaplasmos− semelhantes àqueles pelos quais passou<br />
a língua. As transformações por metaplasmos por que passam as palavras numa obra de<br />
ficção, podem ser consideradas metaplasmos literários.<br />
4.5) A SIGNIFICAÇÃO FONÊMICA NO ÂMBITO DA NEOLOGIA.<br />
O fenômeno da neologia consiste na produção de novas formas lingüísticas com<br />
o objetivo de designar seres, entes e objetos mais ajustadamente do que o que permite o<br />
léxico até ali existente. A forma neológica, portanto, pode ocorrer, no plano<br />
morfofonêmico, no plano mórfico, no plano semântico, etc.<br />
O texto rosiano é um manancial de inovações lingüísticas. O autor não só cria<br />
vocábulos novos, como também renova o significado de itens lexicais preexistentes ao<br />
seu texto. Em Meu tio o Iauaretê, a neologia ganha uma aparência especial ao nascer de<br />
cruzamentos lingüísticos entre formas vernáculas e formas de língua indígena<br />
característica do sertão nacional.<br />
Podemos destacar do texto alguns exemplos de neologismos oriundos do<br />
cruzamento do português com a língua tupi, como, por exemplo, o vocábulo sejuçu que<br />
aparece na passagem: Sejuçu já tão alto, olha as estrelinhas dele... Eu vou dormir não,<br />
tá quage em hora d’eu sair por aí.. (fl. 836). Essa forma, segundo Nilce Sant’Anna<br />
(2001), criada a partir do tupi seixu entendida como constelação, sofreu uma<br />
sonorização da consoante palatal -x, formando um jogo de oposição de consoantes<br />
surdas e sonoras -s/-j / ç acompanhadas de vogais que se tornam altas e fechadas ê/u/u,<br />
sugerindo o uivo do animal que se dá na presença das estrelas.<br />
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Dentre os inúmeros neologismos onomatopaicos formados a partir da língua<br />
tupi, podemos citar a palavra ciririca, formada a partir do vocábulo tupi siriri, que<br />
significa deslizar. Vemos que o fonema linguodental surdo /s/ é representado pelo signo<br />
–c, que também representa o fonema oclusivo velar /k/, formador do radical do verbo<br />
ciriricar; Debaixo da zagaia, ela escorrega, ciririca, forceja (fl. 833). A escolha do<br />
signo –c pode ter sido, talvez, por questões de sentidos que a recorrência do grafema<br />
pode sugerir na apresentação icônica da palavra, já que ocorre a repetição do grafema –<br />
r. O fonema vocálico /i/, que sugere estreiteza, associado ao fonema linguodental dá<br />
idéia de uma ação realizada com certa delicadeza para ser concluída por meio da força,<br />
que está representada pelo fonema /k/, indicando uma ruptura com alargamento<br />
representado pela vogal aberta a, conforme o próprio enunciado revela.<br />
O metaplasmo também pode participar da construção neológica. Na passagem:<br />
Vi que ela tava secando leite, vi o cinhim dos peitinhos...(fl 835), a palavra cinhim, que<br />
pode ser associada a sino, do latim sinu ─ que significa curvatura, sinuosidade, seio (cf.<br />
Cunha, 1998) recebe o sufixo de diminutivo –im. Nesse vocábulo, a recorrência da<br />
vogal -i sugere a idéia de pequenez, estreiteza, delicadeza reforçada pela consoante<br />
bilabial –m.<br />
O ritmo, a musicalidade das construções inusitadas que aparecem na fala do<br />
onceiro dão uma característica especial ao texto. Até mesmo o absurdo de um fato<br />
relatado é amenizado, parecendo, muitas vezes, engraçado, graças ao tratamento<br />
especial que a palavra recebe:<br />
Ela põe a mão pra frente, enorme. Capim mexeu redondo, balançadinho,<br />
devagarim, mansim: é ela. Vem por dentro. Onça mão − onça pé − onça<br />
rabo... Vem calada, quer comer. Mecê carece de ter medo? Tem? Se ela<br />
urrar, eh, macanhemo, cê tem medo. Esturra-urra de engrossar a goela e<br />
afundar os vazios. Urrurru-rrrurru... Troveja, até. Tudo treme. (fl. 828)<br />
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Vemos, na segunda oração, a incidência da vogal nasal palatal fechada, em que o<br />
autor faz uso do registro popular da língua, com o emprego do sufixo de diminutivo -im,<br />
para efeito de rima: capim, balançadinho, devagarim, mansim; também explora o efeito<br />
produzido pela alternância de fonemas orais e nasais, abertos e fechados: vem/dentro,<br />
onça/mão, onça/pé, onça /rabo. Mais adiante ocorre a incidência da vogal anterior<br />
semifechada: mecê/ter/medo.<br />
Observa-se a preferência pelo sufixo im em detrimento de inh, como vemos em<br />
outras passagens: pouquim, dinheirim, devagarim, oncim, jaguaraim, cinhim e muitos<br />
outros.<br />
A preferência por esse sufixo se justifica, no texto, pelo fato de essa forma ser<br />
um índice da fala ingênua do homem do sertão, reforçando a dualidade que existe no<br />
texto, em que o personagem ora vela, ora revela, ora se apresenta como um ingênuo<br />
caipira, ora se revela astucioso matador de homens: ...Mas então agora pode me dar<br />
canivete e dinheiro, dinheirim. Relógio quero não, tá bom, tava era brincando. Pra quê<br />
que eu quero relógio? Não careço...(fl. 828)<br />
Segundo Haroldo de Campos (1991), que aproxima o estilo rosiano do estilo de<br />
Joyce, o autor mineiro consegue criar, da revolução que promove com a palavra, um<br />
fato novo, alimentado em latências e possibilidades peculiares da nossa língua,<br />
conseguindo, com isso, promover uma profusão de efeitos. Em Meu tio o Iauaretê, o<br />
escritor, além de inovar, manipulando a língua a partir de todas as possibilidades que<br />
oferece e resgatando as construções arcaicas, introduz um elemento que desempenha um<br />
papel não apenas estilístico, mas, sobretudo, fundamental para a composição do conto,<br />
que é o idioma tupi. Os tupinismos são os elementos indiciais que conduzem o leitor a<br />
perceber a identidade do onceiro com os animais. Sua fala é entremeada de interjeições<br />
e onomatopéias que revelam a estranha convivência do personagem com as onças da<br />
região. Sua fala é um misto de português com língua tupi. As palavras desse idioma,<br />
<strong>jun</strong>tamente com as onomatopéias que lembram os ruídos próprios da onça, revelam o<br />
outro lado do personagem.<br />
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O termo nhem, que, segundo Antenor Nascentes (1966), corresponde ao verbo<br />
falar em português, adquire inúmeras funções. O narrador inicia sua fala empregando o<br />
termo como uma interjeição, que poderia ser substituído pelo nosso hein: ...Assopro o<br />
fogo. Nhem? Se essa é minha, nhem? (fl. 825) Mais adiante esse termo aparece<br />
reduplicado com a mesma função: ...Nhenhem? Eu cacei onça, demais. Sou muito<br />
caçador de onça...(fl. 827)<br />
O mesmo elemento aparece no neologismo jaguanhém, que corresponderia ao<br />
vocábulo jaguaretê (onça) aglutinado à forma nhem, que tem uma variante com a<br />
duplicação dessa palavra: jaguanhenhém, imitando a fala da onça: ... Ela falava comigo<br />
jaguanhenhém, jaguanhém...(fl. 846) ; Mãe lambe, lambe, fala com eles,<br />
jaguanhenhém, alisa, toma conta.(fl. 844)<br />
É interessante observar que o personagem faz uma espécie de “tradução” da fala<br />
tupi ou da linguagem da onça para seu interlocutor:...Marido falava bobagem, em noite<br />
de lua incerta ele gritava bobagem, gritava, nheengava.(fl. 831)... Nessa forma, que se<br />
flexiona como verbo, parece que a vogal i funciona como uma desinência de pretérito<br />
perfeito, como aparece na passagem: Miei, miei, jaguarainhém, jaguaranhinhenhém...<br />
(fl. 839)<br />
Observa-se na fala do onceiro uma incidência de fonemas consonantais nasais,<br />
palatais, vibrantes e fonemas vocálicos nasais e fechados: manheceu, mecê, ‘manhã e<br />
nhor sofreram o processo de aférese para que sobressaísse o som nasal, semelhante ao<br />
barulho dos animais. O verbo pôr, por efeito estilístico, foi flexionado no pretérito<br />
perfeito com uma terminação palatal: ponhei. O neologismo munhamunhã, que, de<br />
acordo com Nilce Sant’Anna (2001), pode ter o sentido de pensar ou falar bobagem,<br />
pode ser empregada como um nome ou verbo: Ah, munhamunhã: bobagem! Tou<br />
falando bobagem, munhamunhando....(fl. 825) A consoante –j sofre palatalização em<br />
nomes como Nhuão e Nhoaquim .<br />
4.6) ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O FAZER DE G. ROSA<br />
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Sabemos que Guimarães Rosa, em toda a sua obra, deixa transparecer um certo<br />
deslumbramento pela palavra. Ele tinha a preocupação de um artesão ao fazer a uma<br />
verdadeira pesquisa filológica ao empregar expressões arcaicas e explorar todas as<br />
possibilidades da língua para criar vocábulos e construções inusitadas. Essa<br />
característica especial da obra rosiana levou o crítico Oswaldino Marques 7 a defini-la<br />
como um prosopoema (à moda de Guimarães Rosa) palavra que sugere a fusão das duas<br />
modalidades do texto: prosa e poema. O interesse maior de G. Rosa é a expressão do<br />
pensamento por meio da palavra exata, adequada.<br />
No conto Meu tio o Iauaretê o autor realiza uma verdadeira inovação, na<br />
medida em que a linguagem é responsável pela ambientação. A narrativa é entremeada<br />
de interjeições, onomatopéias, frases truncadas e telegráficas. Isso faz com que se<br />
produza o efeito de realidade na mente do leitor.<br />
Esse processo de narração faz com que o leitor tenha participação na construção<br />
do texto. Enquanto constrói o sentido na narração, tendo como referência suas<br />
experiências, acrescenta formas e significados aos vazios deixados pelo texto.<br />
5) CONCLUSÃO<br />
Cremos que esta pequena análise tenha podido mostrar a importância dos estudos<br />
fonológicos, que, combinados com a interpretação semiótico-estilística, demonstra<br />
infinitas possibilidades de criação oferecidas pela língua, além de propiciar descobertas<br />
prazerosas por parte do aluno. Essa nova forma de investigação considera a camada<br />
fônica da língua um signo. Portanto, o levantamento das qualidades sonoras dos signos<br />
verbais torna possível desvendar os valores comunicativos inscritos nos textos. Isto<br />
porque tais qualidades servem de ícone, e mais adiante evoluem em índices que<br />
conduzem o leitor à mensagem do texto.<br />
Essa forma de leitura, que possibilita o diálogo que os textos podem estabelecer<br />
com outras artes, permite uma apreensão total do texto, o que não é possível com as<br />
formas tradicionais de investigação.<br />
7 “Canto e plumagem das palavras”. In Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1968 p.<br />
83.<br />
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Destarte, nossa proposta de uma fonologia em nova chave é a associação dos<br />
estudos fonêmicos aos semiótico-estilísticos com vistas a envolver estudioso e objeto<br />
num processo de trocas significantes, por meio das quais os textos tornar-se-ão objetos<br />
comunicativos cada vez mais eficientes. Cremos que a tomada de consciência do valor<br />
da camada fônica da língua e dos efeitos resultantes de um uso mais cerebral deste<br />
material poder resultar num processo de produção textual mais emocionante em função<br />
de sua eficiência comunicativo-expressiva.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
CUNHA, Antônio Geraldo da. (1998). Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua<br />
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.<br />
MARTINS, Nilce Sant’Anna. (2001). O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1986). Novo Dicionário Aurélio da Língua<br />
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.<br />
NASCENTES, Antenor (1966). Dicionário Etimológico Resumido. Rio de Janeiro: INL/<br />
MEC.<br />
ROSA, João Guimarães (1995) Desenredo, in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova<br />
Aguilar.<br />
______ Meu tio o Iauaretê., in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.<br />
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A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL<br />
“Eles escrevem muito mal”<br />
Elizabeth Bessa de Mattos – <strong>UERJ</strong><br />
“Não vai se espantar. Eles escrevem muito mal. Erram muito. A professora da<br />
primeira série não fazia atividades de escrita espontânea com eles. Eles só escreviam as<br />
palavras e as frases da cartilha”.<br />
Essas foram as palavras que ouvi da professora a quem pedira alguns textos<br />
espontâneos de seus alunos da segunda série do Ensino Fundamental, que seriam usados<br />
como fonte de informações a respeito da escrita de crianças nessa fase escolar, já que<br />
ela me procurara anteriormente, solicitando ajuda, preocupada em solucionar os “muitos<br />
problemas”que, segundo ela, encontrava em seus escritos. Queria, em suma, subsídios<br />
para programar atividades futuras a partir das quais eles pudessem aprender a escrever<br />
“bem”.<br />
Típica representante de profissionais de magistério com sérios problemas de<br />
formação – concluiu seu curso em 1998, feito em colégio da rede pública estadual,<br />
deixava transparecer em seu comentário a falta de base, deixada por seu curso de nível<br />
médio, que lhe impedia de diagnosticar as possíveis falhas reveladas pelos educandos<br />
no que tange à língua escrita. Assustada, não conseguia pensar em exercícios que<br />
pudessem ajudá-los a resolver os “sérios problemas” encontrados.<br />
A declaração da professora não me causou espanto, pois todos sabemos das<br />
deficiências estruturais e pedagógicas pelas quais passam os cursos de formação de<br />
magistério em nível médio, advindas da falta de investimento dos governos estaduais<br />
num ensino de qualidade, ao longo dos tempos.<br />
Seu discurso expressou os muitos equívocos e confusões que muitos professores<br />
fazem quando focalizam o assunto escrever, principalmente em relação à fase em que se<br />
desenvolve o processo de aquisição da língua escrita nos alunos das séries iniciais.<br />
Reflete a aflição e a insegurança de quem está mais preocupado com a aparência da<br />
escrita do que com o que estes já conquistaram nessa área de aprendizagem. Afinal,<br />
ainda estão no início da escolarização!<br />
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O que é escrever mal? E quando não se tem boa caligrafia? Quando se cometem<br />
erros ortográficos?<br />
Com certeza ela não estava se referindo à análise discursiva do texto:<br />
estruturação, coesão, coerência, argumentação, organização de idéias, escolha de<br />
palavras – aspectos, entre outros, importantes a serem considerados na produção de um<br />
texto escrito.<br />
Demonstrou desconhecer a realidade lingüística de seus alunos. Não levou em<br />
conta o que eles haviam construído. Preocupou-se muito mais com o que eles ainda não<br />
sabem e que denomina de “erro”.<br />
Dentre as muitas informações que a professora ignora, encontram-se as<br />
pesquisas de Emília Ferreira e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita que<br />
já questionaram o conceito de erro elaborada pela concepção de ensino que não se<br />
preocupa com as hipóteses que as crianças constroem quando estão aprendendo a<br />
escrever.<br />
Não considerou a bagagem de conhecimentos inscritos naqueles pequenos<br />
textos, nem as hipóteses que as crianças constroem sobre a escrita, quando registram<br />
palavras que nunca foram estudadas, mas que fazem parte de seu universo lingüístico<br />
enquanto falantes de uma língua. Não sabia que os “erros” revelam uma lógica no uso<br />
dos recursos possíveis disponibilizados pelo sistema ortográfico.<br />
Assim, não detectar os níveis de conhecimento pelos quais os aprendizes passam<br />
(pré - silábico, silábico – alfabético e alfabético) e que caracterizam um processo de<br />
transformação que segue percurso semelhante ao da escrita, desde sua invenção. Esses<br />
são conceitos que alteram certas noções, outrora preconizadas pelos que discutiam a<br />
questão: descaracterizaram o erro, que passou a ser visto como elemento construtivo, de<br />
acordo com o nível de aprendizagem em que o aluno se encontra.<br />
O erro é necessário e inerente ao processo porque, na verdade, representa as<br />
hipóteses construídas por aqueles que se apropriam dos objetos na intenção de conhecê-<br />
los.<br />
Nossa professora sabe muito pouco sobre a escrita, seu funcionamento, e seus<br />
diferentes usos.<br />
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Ao analisar os textos dos alunos, verificamos que estes já dominam a maioria<br />
dos aspectos referentes ao sistema de escrita fonográfico, baseado no significante, que<br />
depende dos elementos sonoros da língua para poder ser lido numa padronização de<br />
ordem linear: escrevem da esquerda para a direita, de cima para baixo; registram formas<br />
maiúsculas e minúsculas, em letra cursiva – mais difícil de desenhar e ler que a letra de<br />
forma; separam as palavras, segmentando o vocábulo fonológico; dos sinais diacríticos,<br />
utilizam o til; dos sinais de pontuação, conhecem apenas o ponto final, demonstrando<br />
que estão num estágio muito avançado de uso da escrita e que sabem muito mais coisas<br />
que a professora imagina.<br />
O que salta aos olhos em sua escrita são problemas relativos à caligrafia e ao<br />
sistema ortográfico de nossa língua. E isso é muito mais natural aparecer na fase de<br />
aprendizagem em que os alunos se encontram.<br />
Todavia, não deveria ser natural a professora em questão não saber da distinção<br />
entre os dois sistemas citados, fato que explica a demasiada preocupação com a<br />
ortografia em detrimento da adequação daquilo que os educandos escrevem.<br />
Quando transcrevemos a fala, isto é, passamos um texto de sua realização sonora<br />
para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados,<br />
passamos as palavras pronunciadas para uma formatação escrita num sistema gráfico<br />
que segue a grafia padrão, num processo que vai do sonoro para o gramático, baseado<br />
na correspondência letra e som, já que a escrita se realiza, no nosso caso, do ponto de<br />
vista da sua tecnologia, por unidades alfabéticas.<br />
E é justamente nesse ponto que o problema se coloca e as dificuldades aparecem<br />
não só para os iniciantes da escrita, mas também para todos que escrevem uma língua<br />
natural como o português: não existe correspondência direta entre todas as letras do<br />
alfabeto e os sons dos significantes que pronunciamos: o sistema de escrita raramente é<br />
fonético nas línguas naturais. Além disso, a escrita tende a ser uniforme, constante e<br />
universal, e tem como objetivo principal permitir a leitura, enquanto a fala se caracteriza<br />
por ser bastante diversificada no tempo e no espaço.<br />
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O sistema de escrita do português utiliza vários tipos de alfabeto (letra<br />
maiúscula, letra minúscula, letra cursiva, letra de forma) e não é totalmente alfabético:<br />
além das letras, os sinais gráficos elementares existem outros caracteres, de natureza<br />
ideográfica (logotipos, marcas, algarismos, sinais diacríticos, pontuação), que<br />
contribuem para dificultar o processo de escritura.<br />
Além disso, poucas letras têm uso propriamente alfabético, mantendo a relação<br />
um a um entre símbolo e som. Uma letra pode corresponder somente a um segmento<br />
fonético: bata [ bata ], ou a uma sílaba: apta [ a-pi-ta ]; várias letras podem<br />
corresponder ao mesmo som: fixe / fique-se [ fi-ki-si ]; duas letras podem representar<br />
um som: gu [ g ], em guerra; uma letra pode não ter som nenhum: o h, em hora [ ora ];<br />
uma mesma letra pode representar diferentes sons: x / [ s ], [ z ] e [ ks ], em próximo,<br />
exame e táxi, respectivamente; um som pode ser representado por diferentes letras: [ k ]<br />
/ c e qu, em casa e queijo.<br />
O sistema ideal seria aquele que mantivesse a correspondência de um para um,<br />
para todas as letras e sons. Entretanto, na língua portuguesa, isso só acontece em poucos<br />
casos.<br />
No meio de tantas situações arbitrárias que compreendem relação biunívoca<br />
(uma letra representa um som e vice-versa), relações múltiplas posicionais (uma letra<br />
representa diferentes sons e um som é representado por diferentes letras) e relações de<br />
concorrência (duas ou mais letras podem representar o mesmo som, no mesmo ambiente<br />
fonético), os aprendizes apresentam falhas na escrita que denotam o estágio de<br />
desenvolvimento em que se encontram, em relação à aquisição da língua escrita.<br />
Num primeiro momento, em que estão elaborando a teoria da correspondência<br />
entre sons e letras, podemos encontrar, no que diz respeito às letras: repetição, omissão,<br />
troca na ordem e traço inseguro no desenho delas.<br />
No segundo, já construíram e generalizam a hipótese da relação biunívoca,<br />
realizando a transcrição fonética da fala.<br />
No terceiro estágio do saber ortográfico, fazem trocas entre as letras<br />
concorrentes, problema que será superado gradativamente e que os acompanhará pelo<br />
resto de suas vidas.<br />
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Outro fator que contribui para aumentar as dificuldades ortográficas de quem<br />
escreve é a distância, cada vez maior, na correspondência fonema-letra, quando se dá<br />
conta das variadas maneiras de pronunciar uma palavra. No entanto, esta apresenta<br />
apenas uma forma de ortografia, sempre muito conservadora. O que também é natural.<br />
Se assim não fosse, como poderíamos nos entender, com cada um escrevendo do seu<br />
próprio jeito?<br />
De qualquer maneira, a variação lingüística é uma realidade que faz parte da<br />
dinâmica de toda língua viva e deve ser encarada com naturalidade por todos que<br />
trabalham com o ensino-aprendizagem, numa atitude de respeito às variantes que não<br />
integram o registro padrão, embora a função da escola seja promover o acesso aos<br />
educandos a esta variante de prestígio social.<br />
Uma possibilidade de trabalho pedagógico mais condizente aos fenômenos<br />
variáveis da fala que interferem na correspondência som-letra seria aquela que tratasse<br />
dos problemas clássicos decorrentes da variação lingüística, e que se repetem sempre,<br />
sistematicamente, diacrônica (em todas as fases da evolução da língua) e<br />
sincronicamente (em todas as produções de uma só fase). Os fenômenos são previsíveis<br />
e controlados por fatores intra- e extralingüísticos. As marcas deixadas pelos falantes na<br />
escrita denotam, portanto, fatores estruturais, como regras diacrônicas que atuam em<br />
qualquer manifestação sincrônica da língua, por razões fonomorfossintáticas; ou fatores<br />
psicossociais, índices de alta, baixa ou nenhuma escolaridade, situação sócio-econômica<br />
ou formalidade / informalidade de uso.<br />
Dos problemas mencionados por MOLLICA (1998), selecionamos fatos<br />
relacionados ao dialeto carioca, pois os alunos em questão nasceram na cidade do Rio<br />
de Janeiro:<br />
• não realização da vibrante pós-vocálica em final da palavras nas formas<br />
infinitivas: mata (matar); cou pra (comprar); cicaza (se casar); faze<br />
(fazer); enfeita (enfeitar); molha (molhar); morre (morrer); voa (voar);<br />
• supressão da marca de plural: não registrado;<br />
• monotongação - cancelamento das semivogais /y/ e /w/ nos ditongos<br />
crescentes /ey/ e /ow/: madera (madeira);<br />
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• assimilação /Mb/ ~ /m/ (também ~ tamém) e /Mdo/ ~ /no/ (falando ~<br />
falano): não registrado;<br />
• rotacismo /l/ ~ /r/ (clube ~ crube): não registrado;<br />
• passagem de /r/ a Ø (problema ~ poblema): não encontrado;<br />
• elevação e abaixamento de pré-tônicas e de pós-tônicas: eliz (eles) e<br />
quiria (queria), em função doe debordamento (harmonização vocálica);<br />
• cancelamento e inserção de semivogal: féis (fez), bale (baile); naisceu<br />
(nasceu).<br />
• LEMLE (1990) acrescenta mais um tipo:<br />
• Passagem de /l/ a /w/ (anzol ~ anzou): não registrado.<br />
Em função da espécie de raciocínio lingüístico dedutível dos “erros” cometidos,<br />
SIMÕES (1997) distribui os fatos em três grupos:<br />
• da escrita fonética (quando tentam reproduzir na escrita a sua fala): au<br />
(ao); quiria (queria); mata (matar); incomendou (encomendou); infeitar<br />
(enfeitar); pitisa (pizza); feiz (fez); eliz (eles); cicaza (se casar); cisasou<br />
(se casou); sicasarão (se casaram); asulinda (a sua linda); ciapaixonar<br />
(se apaixonar); os cinco últimos, retratando como percebem o vocábulo<br />
fonológico;<br />
• da regularização sistêmica (quando fazem analogias que demonstram<br />
uma percepção estrutural da língua): acabarão (acabaram); ficarão<br />
(ficaram); morarão (moraram); sairão (saíram); viverão (viveram);<br />
tinhas pessoas (tinha as pessoas); ea (e a : reforço do padrão silábico<br />
binário); morel (morreu: transferência de formas como anel, sol); comera<br />
(comeram); casara (casaram); fora (foram); cepre e zenpre (sempre);<br />
matado (matando); nacedo (nascendo); lidos (lindos); judos (<strong>jun</strong>tos),<br />
siderela / ciderela (Cinderela); pricipe / prisipe / pricipi (príncipe) – uma<br />
das maiores dificuldades, a nasalidade é resolvida de forma sistêmica: ou<br />
não é marcada ou é marcada por qualquer travador nasal);<br />
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• da instabilidade gráfica (quando grafam de maneira imprecisa os<br />
fonemas): ciderela / siderela (Cinderela); pricipe, pricepe, prisipi,<br />
pricipi, prisipe, prinsipe; felises / felisez (felizes); moso (moço); naseu<br />
(nasceu).<br />
Uma aluna registrou: seipre (sempre), bou (bom), cou (com) e preseite (presente)<br />
– escrita fonética ou regularização sistêmica? De qualquer maneira, a repetição do<br />
mesmo fenômeno prova a lógica realizada ao pensar sobre a escrita, no momento em<br />
que foi desafiada a escrever um texto espontâneo, numa atitude comum a todos.<br />
A mesma aluna grafou: cou pra (comprar), revelando a hipercorreção resultante<br />
de uma pronúncia alfabética.<br />
Realizações de um aluno como vilho (filho), tepoi (depois) e vata (fada)<br />
demonstram problema de fonação, apenas quanto à vibração das cordas vocais na<br />
articulação de um mesmo par distintivo, caso de troca do /f/, surdo, pelo /v/, sonoro, e<br />
do /d/, sonoro, pelo /t/, surdo; já gravisa (grávida) e fetizes (felizes) configuram troca de<br />
um fonema por outro.<br />
Considerando-se apenas a ortografia, uma convenção imposta por legislação<br />
oficial, sujeita a ações extralingüísticas e problema menor da escrita na primeira fase de<br />
escolaridade, será que os alunos produziram textos tão mal escritos, como supunha sua<br />
professora?<br />
A resposta à questão só pode ser negativa, porque eles revelaram muitos<br />
conhecimentos do sistema lingüístico, devido sos progressos que já fizeram no percurso<br />
da aprendizagem da língua escrita e também porque escrever de acordo com a ortografia<br />
oficial demanda tempo de aprendizagem e muito treinamento, uma vez que é um saber<br />
artificial que deve ser internalizado durante o processo escolar. Mesmo assim, isso não é<br />
garantia de pleno sucesso: quem não tem dúvidas, ao longo de toda a sua vida, a<br />
respeito da grafia correta de determinadas palavras? Quem nunca recorre ao dicionário?<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BAGNO, Marcos (2001). Português ou brasileiro?: um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola.<br />
CAGLIARI, Luiz Carlos (1997). Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione.<br />
LEMLE, Miriam (1990). Guia teórico do alfabetizador. 4 a ed., São Paulo: Ática.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio (2001). Da fala para a escrita: atividades de Retextualização. São<br />
Paulo: Cortez.<br />
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MOLLICA, Maria Cecília (1998). Influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo<br />
Brasileiro.<br />
MORAIS, Artur Gomes (2000). Ortografia: ensinar e aprender. 4 a ed., São Paulo: Ática.<br />
SILVA, Myriam Barbosa da (1993). Leitura, ortografia e fonologia. 2 a ed., São Paulo: Ática.<br />
SIMÕES, Darcilia (1997). Estudos fonológicos: a língua portuguesa no plano dos sons e da<br />
grafia. Rio de Janeiro: <strong>UERJ</strong>, DEPEXT.<br />
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O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO<br />
COMO DESTRUIÇÃO EM A LUZ NO SUBSOLO, DE<br />
LÚCIO CARDOSO<br />
Fernando Monteiro de Barros (<strong>UERJ</strong>)<br />
Publicado em 1936 e reconhecido como o primeiro romance dentro da linha<br />
introspectiva a partir da qual seu autor é definido pela história da literatura brasileira<br />
(AYALA, 1986: 449), A luz no subsolo foi considerado por Mário de Andrade um<br />
romance “estranho e assombrado” (apud CARELLI, 1996: 628), chamando a atenção da<br />
crítica pelo seu “clima de mistério e alucinação” (ALMEIDA, 1996: 698). A luz no<br />
subsolo é o primeiro romance de atmosfera de Lúcio Cardoso. Em um clima<br />
fantasmagórico, ele cria personagens “extraordinários, portadores de questões cruciais”,<br />
afirma o crítico Mario Carelli em Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso<br />
(CARELLI, 1988: 166). O romance deixou Mário de Andrade desconcertado por seu<br />
desprezo pelas questões sociais e políticas no momento histórico conturbado que foi o<br />
final da década de 30 (CARELLI, 1988: 33). Em carta a Lúcio Cardoso, o escritor<br />
paulista afirma que, ao lê-lo, “não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado”<br />
(apud MARTINS, 1997: 12). Entretanto, apesar do traço universalista desta narrativa<br />
que transcendia o regionalismo para apresentar a busca do sujeito do século XX por<br />
uma “verdade” existencial, o substrato social e geográfico é inequívoco na apresentação<br />
de um etos patriarcal mineiro arruinado após o fim da Primeira República, o que nos faz<br />
refutar o “despaisamento” atribuído por Mário de Andrade à obra.<br />
A trama se passa numa casa-grande senhorial e decadente, soturna, presidida<br />
pelo casal Pedro e Madalena. Pedro despreza a mulher, que por ele sente uma atração<br />
irremediável. Por sua vez, Bernardo, amigo de Pedro, ama Madalena em segredo. O<br />
enredo se complica com a chegada de Emanuela, rapariga do interior que vem exercer a<br />
função de criada e se torna vítima da cupidez de Pedro, e com a vinda da mãe deste,<br />
Adélia, que se presta a ajudar o filho na tentativa de envenenar Madalena.<br />
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A crítica norte-americana Anne Williams, em seu livro Art of darkness: a poetics<br />
of Gothic, sustenta ser a família patriarcal a própria base do mito gótico (WILLIAMS,<br />
1995: 87). Com efeito, tais narrativas se passam em castelos medievais e têm como<br />
substrato social e político o etos do patriarcalismo. A autora, entretanto, propõe duas<br />
teses para a literatura gótica, a do “Gótico masculino”, escrito por homens, como por<br />
exemplo o romance pioneiro de Horace Walpole, e o Gótico feminino, de autoria de<br />
uma Ann Radcliffe ou de uma Emily Brönte.<br />
As narrativas góticas em sua vertente “masculina” apresentariam<br />
invariavelmente a queda do patriarcalismo decretada por potências do feminino,<br />
percebidas enquanto alteridade absoluta no mundo ocidental desde Aristóteles, citado<br />
por Anne Williams enquanto formulador de uma metafísica composta de antinomias.<br />
No livro I de sua Metafísica, no capítulo V, o filósofo grego efetivamente cita o<br />
paradigma atribuído aos Pitagóricos, a partir do qual a realidade consistiria de dez pares<br />
opostos (ARISTÓTELES, 1973: 222), que são, no texto de Williams, arrolados em duas<br />
colunas da seguinte forma (WILLIAMS, 1995: 18):<br />
Masculino Feminino<br />
Finito Infinito<br />
Ímpar Par<br />
Unidade Pluralidade<br />
Direito Esquerdo<br />
Quadrado Oblongo<br />
Quieto Movimentado<br />
Retilíneo Curvo<br />
Luz Escuridão<br />
Bem Mal<br />
Para Anne Williams, os elementos listados na “linha do mal” estão todos<br />
presentes na poética do Gótico (Idem: 19). As colunas “do bem” e “do mal” também<br />
sugerem, segundo a autora, vários outros pares binários inerentes ao pensamento<br />
ocidental (Ibidem):<br />
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Atividade Passividade<br />
Sol Lua<br />
Cultura Natureza<br />
Dia Noite<br />
Pai Mãe<br />
Cabeça Coração<br />
Inteligível Sensível<br />
Logos Pathos<br />
coluna do “feminino” agrega em si os elementos encarnadores por excelência da<br />
alteridade em relação ao domínio do masculino racionalista ocidental. O Gótico literário<br />
expressaria, assim, o feminino assustador e atraente ao mesmo tempo, alteridade da<br />
inconsciência perante a Razão predominante no século XVIII (Ibidem). Os aspectos da<br />
natureza caracteristicamente associados ao Gótico – a noite, a lua, as tempestades e toda<br />
sorte de violência e desordem – remetem todos ao princípio do feminino indomável,<br />
cujo maior terror de todos a ele associado é a morte (WILLIAMS, 1995: 86).<br />
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O feminino é da ordem do ctoniano e do dionisíaco. O próprio Dioniso,<br />
representação da totalidade, encarnação do paradoxo, era muitas vezes retratado com<br />
vestes femininas (PAGLIA, 1992: 92). O pensamento arcaico, não dicotômico, concebia<br />
a unidade da physis, natureza que trazia em seu bojo o que se entenderia hoje por<br />
sobrenatureza, já que o natural e o que hoje consideramos sobrenatural estavam<br />
interligados, conforme o pensamento de Tales de Mileto, citado por Aristóteles: “todas<br />
as coisas estão cheias de deuses” (ARISTÓTELES, 1973: 14). Segundo este<br />
pensamento originário, as colunas apontadas por Aristóteles e citadas por Anne<br />
Williams estariam entrelaçadas, formando a totalidade do Uno primordial, cindido pela<br />
metafísica platônica e aristotélica, que, ao privilegiar a linha do Logos, do masculino, do<br />
sol, do bem e do pai, teria decretado a demonização da linha matriarcal. Cumpre<br />
lembrarmo-nos de que as primeiras religiões eram cultos da natureza, agrários,<br />
presididos por deusas ancestrais ctonianas, grandes mães da Terra, substituídas mais<br />
tarde por deuses patriarcais do céu, habitantes dos cumes olímpicos (BRANDÃO, 1985:<br />
29).<br />
Assim como vários pensadores ocidentais, tais como Nietzsche, Freud e Walter<br />
Benjamin, Camille Paglia, outra crítica norte-americana, também vê, ao longo da<br />
história da arte ocidental, a sobrevivência residual da natureza em seu aspecto<br />
daimônico, ctoniano. A Ilustração setecentista equiparava a natureza à razão e à verdade<br />
(CANDIDO, 1981: 45), no que era entrevista apenas enquanto paisagem amena de<br />
superfície. O Barroco e o Romantismo, ao contrário, estavam cientes da dimensão<br />
violenta da natureza, que, segundo Paglia, “não é nenhum prado de verde promessa,<br />
mas uma espectral câmara gótica que não deixa nascer a história” (PAGLIA, 1992:<br />
6<strong>04</strong>). A literatura gótica inglesa do século XVIII contribui para a “desintegração do<br />
iluminismo apolíneo” (Idem: 270), no que ela, assim como seu contemporâneo francês,<br />
o marquês de Sade, subverte os postulados bem intencionados e edificantes de<br />
Rousseau, defensor da idéia da bondade da natureza:<br />
A reação inglesa a Rousseau assumiu forma assimilável: o romance gótico.<br />
Como a literatura inglesa tinha os precedentes arquetípicos de The faerie<br />
queene e Paraíso perdido, o romantismo inglês desde o início teve uma<br />
intensidade daimônica que o francês levou quarenta anos para adquirir. O<br />
gótico inglês da década de 1790 equivale à alquimia e ao ocultismo<br />
medievais de Fausto, em que Goethe trabalhava na época. As trevas e<br />
rudezas góticas opõem-se à luz, ao contorno e ao simbolismo apolíneos do<br />
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Iluminismo. O racionalismo protestante é derrotado pelo retorno gótico ao<br />
ritualismo e misticismo do cristianismo medieval, com seu paganismo<br />
residual. A arte retira-se para as cavernas, castelos, masmorras, túmulos,<br />
caixões. O gótico é um estilo de sensualidade claustrofóbica. Seus espaços<br />
fechados são úteros daimônicos. O romance gótico é sexualmente arcaico:<br />
retira-se para as trevas ctônicas, o reino goethiano das Mães. A mãe noite<br />
impregna o romantismo, de Coleridge e Keats a Poe e Chopin, com seus<br />
melancólicos noturnos. (Idem: 249)<br />
A citação acima, de Paglia, não deixa dúvidas quanto à vinculação do Gótico<br />
literário inglês às potências do feminino. Para Anne Williams, enquanto as narrativas<br />
góticas de autoria feminina se organizam a partir dos recursos do terror, ou seja, de uma<br />
ameaça imaginária e o processo pelo qual essa ameaça é dissipada, o Gótico de autoria<br />
masculina se especializa no horror, que vem a ser a reação do sujeito diante da<br />
violência e da catástrofe reais: a mortalha sangrenta, o cadáver putrefato (WILLIAMS,<br />
1995: 1<strong>04</strong>). E este horror das narrativas góticas “masculinas” nada mais é do que o<br />
horror da própria natureza, feminina, encarnação mor da alteridade para o logos<br />
ocidental (Idem: 106). O Gótico masculino percebe um mundo de crueldade, violência e<br />
horrores sobrenaturais fundamentados no feminino (Idem: 109). Assombrada pelo<br />
princípio feminino, a ordem simbólica patriarcal nos romances góticos estabelece o<br />
sofrimento da mulher como retaliação, apresentando contornos de sadismo (Idem: 106)<br />
e voyeurismo (Idem: 1<strong>04</strong>), ao pretender fazer com que o leitor sinta prazer com a<br />
vitimização das donzelas (Idem: 1<strong>04</strong>). Segundo Williams, este sadismo do Gótico<br />
masculino aproxima seus enredos dos escritos de Sade e da pornografia (Idem: 106).<br />
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O enredo gótico masculino por excelência descreve “as aventuras de uma jovem<br />
mulher que se encontra, em uma noite escura e tempestuosa, em um castelo pertencente<br />
a um homem poderoso e misterioso – um castelo, ela descobre, que esconde um segredo<br />
terrível” (WILLIAMS, 1995: 110) 8 . Esta jovem mulher é vista simultaneamente como<br />
vítima e como ameaça demoníaca, sendo, por conseguinte, enclausurada e molestada<br />
(Idem: 136), encarnando o clichê gótico da “donzela perseguida” (PRAZ, 1986: 14-15).<br />
No primeiro romance gótico da literatura inglesa, O castelo de Otranto (1764), de<br />
Horace Walpole, a personagem Isabella encarna este papel que, na narrativa de A luz no<br />
subsolo, é encarnado por três personagens femininas: Maria, Emanuela e Madalena.<br />
8 Minha tradução. No original: “It describes the adventures of a young woman who finds herself on a dark<br />
and stormy night in a castle belonging to a powerful and mysterious man – a castle, she discovers, that<br />
hides a terrible secret.”<br />
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O prólogo do romance de Lúcio Cardoso inicia-se sob o signo da aflição<br />
feminina: “Quase aturdida, percebia que um absurdo desfalecimento se apossava dos<br />
seus nervos” (ALNS, p. 9). Maria, prima de Madalena, parenta pobre agregada em sua<br />
casa, resolve partir, afligida pelo “terror” e pela “perturbação” (Ibidem) proporcionados<br />
por Pedro, marido de Madalena e “senhor do castelo”. Indagada por Madalena sobre o<br />
motivo de sua partida repentina, confessa ser “por causa ‘dele’” (ALNS, p. 18), que lhe<br />
causa “medo” (ALNS, p. 20), explodindo finalmente na seguinte confissão: “Não sei,<br />
não sei de nada! E não posso trabalhar, sinto que ‘ele’ está constantemente me<br />
vigiando... É um olhar que atravessa as próprias paredes!” (Ibidem). Após a confissão,<br />
Maria “ficou repetindo ‘não posso mais’ uma porção de vezes” (Ibidem), em uma<br />
evidente teatralização do paradigma do feminino enquanto fragilidade molestada. O<br />
clichê gótico dos olhos que espiam sorrateiramente, presente não apenas neste romance,<br />
mas em vários outros de Lúcio Cardoso, confirma o pastiche intratextual que permeia<br />
seus textos: Lúcio, como os escritores decadentistas (BOUÇAS, 1995: 7), é pasticheur<br />
de si próprio. Assim, do mesmo modo, confirma a personagem Madalena: “Por trás das<br />
capas amarelas ela se sentia espiada, vigiada, escarnecida... [...] Nada daquilo se<br />
exprimia por qualquer manifestação exterior, mas, logo que ela se voltasse, sentiria dois<br />
olhos implacáveis seguindo atentamente os seus movimentos” (ALNS, p. 26).<br />
Identicamente, o mesmo ocorre com a personagem Emanuela, jovem que vai trabalhar<br />
na casa de Pedro e Madalena e desperta a cupidez de seu patrão. A citação abaixo não<br />
deixa dúvidas quanto à vinculação do espaço e da atmosfera da narrativa cardosiana ao<br />
romance gótico inglês:<br />
[Emanuela, após estar com Adélia] Agora estava só no corredor escuro. Uma<br />
emoção estranha a assaltou. Ofegante, encostou-se à parede, sem forças para<br />
prosseguir a caminhada. Sentia-se ameaçada por perigos invisíveis. De uns<br />
dias para cá, perdia a tranqüilidade, julgando-se vigiada por alguém que não<br />
conseguia ver. Emanuela vinha sustentando essa luta há longo tempo – a<br />
cada hora, sentia esfacelar-se no seu espírito alguma coisa que a deixava<br />
aniquilada longos momentos. Era a sensação que lhe chegava, diante da<br />
escada escura, da casa imersa no silêncio. Tateando, continuou a caminhar,<br />
ganhou a escada, desceu, escutando a madeira estalar sob seus pés. Na sala<br />
encontrou uma lamparina acesa. Era verdade, pois – alguém estava<br />
acordado, alguém vigiava – dois olhos a seguiam insistentemente da sombra.<br />
Aproximou-se receosa e soprou a chama trêmula. No escuro, procurou o<br />
rumo da porta com o coração aos saltos. Quando segurou o trinco, ouviu um<br />
estalo; permaneceu quieta, até que novamente a madeira estalou. Alguém –<br />
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esse alguém que se escondera à sua aproximação – subia agora a escada.<br />
Emanuela sentiu-se desfalecer de terror. Fazendo um esforço sobre si<br />
mesma, rodou o trinco e mergulhou na escuridão do jardim.(ALNS, p. 149-<br />
150)<br />
Emanuela acaba sendo vítima da lubricidade de Pedro, que, byronianamente, a<br />
ama e a destrói. O senhor da casa, uma noite, entra em seu quarto, deixando-a<br />
“aterrorizada” (ALNS, p. 168). A moça implora “pelo amor de Deus” (ALNS, p. 170),<br />
mas Pedro comporta-se como legítimo vilão de romance gótico, algoz da donzela:<br />
Ele deixou escapar uma risada. Segurou-a pela cintura, enquanto a moça se<br />
esforçava para fugir ao seu abraço. Toda a sua carne se rebelava ao contato<br />
daquelas mãos incendiadas. Emanuela não ignorava que seria vencida, que<br />
rolaria nos braços daquele homem a quem não amava, mas que a dominava<br />
inteiramente, corpo e alma, pela sugestão de um sortilégio qualquer. Mas era<br />
repugnância que sentia, uma loucura que fazia o sangue turbilhonar na sua<br />
cabeça, enquanto dominava os nervos, cerrando os olhos como uma<br />
condenada. (Ibidem)<br />
Emanuela, como Maria, acaba comunicando a Madalena sua partida da casa,<br />
pelo mesmo motivo: medo de Pedro (ALNS, p. 183). A personagem, entretanto, ganha<br />
contornos de ambigüidade no que o prazer se mistura ao sofrimento de que foi vítima,<br />
como atestam suas próprias palavras: “Não compreendia nada daquilo – parecia que<br />
tinha descido um vento e eu delirava. Aquelas noites eram quentes e eu sentia o meu<br />
sangue arder” (ALNS, p. 261). Da mesma forma, Emanuela desperta em Pedro<br />
sentimentos ambivalentes: ele a deseja, mas ao mesmo tempo, “um ódio desmedido<br />
subia-lhe ao peito, diante daquela pobre criatura fraca, que não possuía forças para lutar<br />
sem pranto” (ALNS, p. 171), corroborando a visão dialética do feminino na literatura<br />
gótica masculina, ao mesmo tempo atraente (WILLIAMS, 1995: 19) e odioso (Idem:<br />
106).<br />
De volta à casa de sua família, Emanuela, grávida, recebe a visita do personagem<br />
espectral “mendigo resignado”, único elemento fantástico nesta narrativa. A citação<br />
abaixo poderia ter saído das páginas de Horace Walpole:<br />
Emanuela estava só. O calor parecia dar-lhe febre; lembrou-se de apagar a<br />
lamparina e dirigiu-se vacilante para o gancho de ferro onde as mariposas<br />
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inquietas voavam. Os dedos trêmulos seguraram a candeia – neste instante,<br />
alguém bateu na porta. Emanuela prestou atenção, admirada. Suas pupilas,<br />
extraordinariamente dilatadas, fixavam a chama débil. Seria realmente ali?<br />
Seu rosto impassível não denunciava nenhuma emoção. Mas devia ter se<br />
enganado, só as mariposas se debatiam contra a luz. Entretanto a porta<br />
rangera levemente – ela voltou-se de um salto e, pálida de terror, viu uma<br />
longa mão, descarnada e branca, que segurava a taramela da porta. “Quem é”<br />
– gritou. Um homem estava diante dela. Tinha entrado docemente e sorria.<br />
Trazia um xale escuro enrolado em torno do pescoço, o que dava relevo à<br />
sua extraordinária palidez. Um botão de metal luzia em seu colete. No ar<br />
havia um elemento novo, pesado e ameaçador. Emanuela passou a mão pelas<br />
têmporas, procurando afastar a visão. Uma estranha dormência paralisava<br />
seus movimentos. (ALNS, p. 265)<br />
Após pequeno diálogo entre Emanuela e a aparição, “o mendigo se desfigurava –<br />
não era mais o mendigo, mas uma grande sombra que se quebrava na parede” (ALNS,<br />
p. 268), que, mesmo imaterializado, “continuava a se insinuar” com sua “voz perversa”<br />
a destilar um discurso da desrazão e do devir metamorfoseante: “– Emanuela, venha ver<br />
da <strong>jan</strong>ela os campos de sua meninice... venha ver como tudo oscila, como tudo se<br />
revolve nas entranhas do tempo... Há muito que sua casa desapareceu e só resta o mar...<br />
tão perto daqui!” (Ibidem). A cena se consuma no melhor estilo das narrativas de terror,<br />
dramática e teatralmente:<br />
Uma rajada de vento escancarou a <strong>jan</strong>ela. A luz escarlate da lamparina<br />
tremeu e apagou-se de súbito – no silêncio, ouvia-se o rangido do gancho de<br />
ferro. Uma risada animal vibrou dentro da sala. Emanuela sentiu o mundo se<br />
abrir aos seus pés e as coisas oscilarem sobre a sua cabeça. Sacudida pelo<br />
vento, a <strong>jan</strong>ela estalava e, sentindo no rosto o hálito frio do abismo, correu e<br />
debruçou-se sobre a escuridão com um grito amargo de vitória. (ALNS, p.<br />
268)<br />
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O dado sobrenatural aqui da narrativa cardosiana, ao contrário dos quadros na<br />
parede em que as figuras riem e das estátuas ambulantes de O castelo de Otranto,<br />
parece se situar dentro da categorização que Tzvetan Todorov faz sobre o conceito de<br />
fantástico, que, segundo ele, recai na incerteza de os acontecimentos sobrenaturais<br />
terem realmente acontecido no âmbito diegético ou não passarem apenas de sonho ou<br />
alucinação dos personagens (TODOROV, 1975: 30-31). A velha Emília, parenta de<br />
Emanuela, ao sentenciar que “Emanuela jamais retornará de sua loucura” (ALNS, p.<br />
268), torna incerto para o leitor se o personagem do mendigo resignado trata-se de um<br />
fantasma sobrenatural ou de mera alucinação que teria acometido os personagens Pedro<br />
e Emanuela. De qualquer forma, contribui efetivamente para a criação da atmosfera<br />
gótica do romance. E sem contar que, tanto o sobrenatural quanto a loucura pertencem à<br />
linha da desrazão e do feminino, dionisíaca, contrária à razão cartesiana ocidental,<br />
apolínea. A causa da loucura de Emanuela também se inscreve na perspectiva das<br />
potências femininas desagregadoras: “Está grávida... e foi isto que a enlouqueceu...”<br />
(Ibidem), diagnostica mais uma vez a velha Emília, reconhecendo a correspondência<br />
entre Eros e desrazão.<br />
A personagem Madalena é um caso à parte. Segundo Anne Williams, o Gótico<br />
feminino, ou seja, a narrativa gótica escrita por mulheres, apresentaria enquanto enredo<br />
típico uma heroína desvalida que, ao chegar a um castelo presidido por um misterioso<br />
senhor, é assombrada por ameaças imaginárias que são dissipadas pouco a pouco no<br />
decorrer da trama, preservando sua integridade/virgindade e casando-se com o senhor<br />
do castelo no final. “O enredo do Gótico feminino é uma versão de ‘A Bela e a Fera’”<br />
(WILLIAMS, 1995: 145) 9 . Aqui o enredo trágico cede lugar à comédia, e o horror,<br />
explícito, suaviza-se no terror, imaginário. Enquanto no Gótico masculino o feminino é<br />
a encarnação absoluta da alteridade, no Gótico feminino, em contrapartida, o masculino<br />
é que é visto como o outro (WILLIAMS, 1995: 141), que pode parecer monstruoso no<br />
princípio, mas que acabará eventualmente por se transformar em um marido afetuoso<br />
através do amor (Idem: 145).<br />
9 “The Female Gothic plot is a version of “Beauty and the Beast”.”<br />
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A encarnação do masculino como alteridade se dará aqui no paradigma do<br />
homem fatal, apresentado por Mario Praz no segundo capítulo de seu A carne, a morte e<br />
o diabo na literatura romântica. Este foi um dos grandes arquétipos românticos,<br />
identificado com Byron, a partir do decalque feito do protagonista decaído do poema<br />
inglês do século XVII “Paraíso Perdido”, de John Milton (PRAZ, 1996: 73). Entretanto,<br />
antes de Byron, Ann Radcliffe, em seu romance gótico The Italian, de 1797, decretara o<br />
tom que nortearia o herói romântico byroniano a partir do personagem Schedoni, herói e<br />
vilão ao mesmo tempo:<br />
Vivia no convento dominicano do Espírito Santo, em Nápoles, um homem<br />
chamado padre Schedoni; um italiano, como seu nome demonstrava, mas<br />
cuja família era desconhecida, e a partir de algumas circunstâncias, assim<br />
parecia que ele desejava ocultar sua origem sob um véu impenetrável. Por<br />
qualquer que fosse o motivo, nunca o ouviram mencionar o nome de algum<br />
parente, ou o local de seu nascimento... [...] Havia circunstâncias, entretanto,<br />
que pareciam indicar que ele fosse um homem bem-nascido e de fortuna<br />
arruinada; seu espírito, como às vezes se deixava divisar sob o disfarce de<br />
sua conduta, parecia arrogante, não deixando transparecer, entretanto, as<br />
aspirações de uma mente generosa, mas sim o orgulho sombrio de uma<br />
mente desapontada. Algumas poucas pessoas no convento, que haviam<br />
ficado interessadas por sua aparência, acreditavam que a peculiaridade de<br />
seus modos, sua reserva severa e seu silêncio invencível, seus hábitos<br />
solitários e penitências freqüentes, traduziam o efeito do infortúnio se<br />
abatendo sobre um espírito altivo e desordenado, enquanto outros atribuíam<br />
sua conduta como sendo conseqüência de algum crime terrível atormentando<br />
a consciência perturbada. (RADCLIFFE, 1981: 34) 10<br />
Além disso, “a sua figura impressionava”, pois tinha “qualquer coisa de terrível<br />
em seu aspecto: algo de sobre-humano” (apud PRAZ, 1996: 75-76). E mais:<br />
10 “There lived in the Dominican convent of the Spirito Santo, at Naples, a man called father Schedoni; na<br />
Italian, as his name imported, but whose family was unknown, and from some circumstances, it appeared,<br />
that he wished to throw na impenetrable veil over his origin. For whatever reason, he was never heard to<br />
mention a relative, or the place of his nativity... [...] There were circumstances, however, which appeared<br />
to indicate him to be a man of birth, and of fallen fortune; his spirit, as it had sometimes looked forth from<br />
under the disguise of his manners, seemed lofty; it shewed not, however, the aspirings of a generous<br />
mind, but rather the gloomy pride of a disappointed one. Some few persons in the convent, who had been<br />
interested by his appearance, believed that the peculiarity of his manners, his severe reserve and<br />
unconquerable silence, his solitary habits and frequent penances, were the effect of misfortunes preying<br />
upon a haughty and disordered spirit; while others conjectured them the consequence of some hideous<br />
crime gnawing upon na awakened conscience.”<br />
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O seu capuz, também, ao fazer uma sombra sobre a lívida palidez de sua<br />
face, aumentava seu caráter severo, e produzia um efeito nos seus grandes<br />
olhos melancólicos, próximo do horror. Sua melancolia não era a de um<br />
coração ferido e sensível, mas aparentemente a de uma natureza soturna e<br />
feroz. Havia na sua fisionomia um não sei quê de extremamente singular,<br />
difícil de definir. Trazia as marcas de muitas paixões, que pareciam ter<br />
fixado os lineamentos que agora não mais animavam. Tédio e severidade<br />
habituais predominavam nas linhas profundas de sua face e seus olhos eram<br />
tão intensos que com um só olhar pareciam penetrar no coração dos homens<br />
e ler seus pensamentos secretos: poucos podiam tolerar o exame minucioso<br />
daqueles olhos, ou mesmo suportar vê-los uma segunda vez.<br />
(RADCLIFFE, 1981: 35) 11<br />
Mario Praz detecta na descrição do personagem gótico de Ann Radcliffe “certos<br />
elementos recorrentes nos homens fatais dos românticos: a origem misteriosa, que se<br />
supõe ser elevada, os traços de paixões extintas, a suspeita de uma horrível culpa, o<br />
hábito melancólico, a face pálida, os olhos inesquecíveis” (PRAZ, 1996: 76). Anne<br />
Williams destaca, neste paradigma, o olhar sempre intenso e penetrante (WILLIAMS,<br />
1995: 143), além do dado ambivalente, dual, de sua figura, no que nele se percebe a<br />
incongruência entre interior e exterior, presente e passado, em uma natureza paradoxal e<br />
ardilosa (Ibidem). Sua força e rudeza masculinas mascarariam uma capacidade<br />
convencionalmente ‘feminina’ por sentimentos intensos (Idem: 143-144). Citando o<br />
paradigma aristotélico, Williams sustenta que a dualidade do homem fatal, aliada ao seu<br />
caráter erotizado e misterioso, definitivamente o incluiriam na “linha do mal”,<br />
“feminina” (Idem: 144).<br />
11 “His cowl, too, as it threw a shade over the livid paleness of his face, encreased its severe character, and<br />
gave an effect to his large melancholy eye, which approached to horror. His was not the melancholy of a<br />
sensible and wounded heart, but apparently that of a gloomy and ferocious disposition. There was<br />
something in his physiognomy extremely singular, and that can not easily be defined. It bore the traces of<br />
many passions, which seemed to have fixed the features they no longer animated. Na habitual gloom and<br />
severity prevailed over the deep lines of his countenance; and his eyes were so piercing that they seemed<br />
to penetrate, at a single glance, into the hearts of men, and to read their most secret thoughts; few persons<br />
could support their scrutiny, or even endure to meet them twice.”<br />
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Em A luz no subsolo, vários traços do homem fatal podem ser vislumbrados no<br />
personagem Pedro, a partir da ótica em que é visto por Madalena, ao se lembrar de<br />
quando o vira pela primeira vez: “Fora então que o seu olhar caíra pela primeira vez<br />
sobre Pedro. Estava imóvel, encostado a uma árvore e fitava-a. Ao encontrar o seu<br />
vulto, estremecera e dissera num sussurro: “Está ali”...” (ALNS, p. 44). As descrições a<br />
seguir guardam inegáveis semelhanças com a do herói de Ann Radcliffe, no que Pedro<br />
também apresenta os traços de singularidade, fascínio e mistério:<br />
Aquele alguém que se apoiava de um modo tão displicente no velho tronco<br />
não se confundia com a massa escura e indistinta cujo vozerio enchia o ar<br />
dourado da manhã: fixando-o melhor, percebia em torno dele um brilho<br />
qualquer, um halo diferente, flutuando sobre sua pessoa e apartando-o da<br />
multidão como a uma criatura eleita. [...] Continuando a reparar, chegara<br />
entretanto à convicção de que estava realmente diante de um indivíduo<br />
estranho, inexplicavelmente fora de seu ambiente natural. Mais tarde,<br />
somente mais tarde, pudera compreender aquele sortilégio que o distanciava<br />
das demais criaturas, ser destinado a permanecer à parte, dentro de uma<br />
grandeza ou de uma miséria que não era a grandeza nem a miséria habitual<br />
dos homens. (ALNS, p. 44-45)<br />
[Madalena]... reconheceu subitamente o ser distanciado que estava encostado<br />
à árvore. Estava dentro de uma atmosfera impenetrável e, nele, as sensações<br />
se rompiam irremediavelmente. Nada resistia àquele rosto severo quase até o<br />
mau humor, àquela decisão diabólica marcada nos olhos, nos lábios, na sua<br />
pessoa inteira. (ALNS, p. 49)<br />
Também Pedro possui o característico olhar intenso e penetrante: “Ele a<br />
contemplara com aqueles olhos profundos, onde todas as coisas pareciam se perder,<br />
olhos sem vida, sem luz, mas poderosos e cheios de mistério” (ALNS, p. 57). Madalena<br />
percebe “seu estranho poder de dominar” (ALNS, p. 58) e o adivinha “caído como um<br />
anjo-mau” (ALNS, p. 60). A fala de Pedro a Madalena apresenta contornos de suposta<br />
maldição: “Lembre-se apenas de que você é uma alma pura e foi isso que me atraiu...<br />
Naturezas como a nossa...” (ALNS, p. 62).<br />
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Madalena comporta-se como heroína de romances góticos de autoria feminina,<br />
no que é ao mesmo tempo aterrorizada e fascinada por Pedro, deixando-se, porém,<br />
apaixonar, casando-se com ele. Mas só até aí. A partir do casamento, Pedro torna-se um<br />
marido indiferente e cruel, de modo que a personagem Madalena passa a se inscrever<br />
também no arquétipo da “mulher perseguida”, enclausurada, pois, em dado momento<br />
na narrativa “lembrava-se de que estava encerrada num quarto, separada de todos e que<br />
ninguém poderia penetrar nesse quarto” (ALNS, p. 228), e molestada, conforme a<br />
citação abaixo:<br />
[Pedro] Bruscamente adiantou-se como um felino, a lamparina entre as<br />
mãos, até o leito onde Madalena dormia. Um palor esverdeado, de chama<br />
que se extingue, brilhava nas suas pupilas. A mulher dormia profundamente,<br />
os cabelos palpitando no travesseiro branco. Uma onda de ódio subiu-lhe ao<br />
peito e flamejou impiedosamente na sua consciência... Ele não podia se<br />
livrar daquilo, era qualquer coisa mais forte do que a sua vontade, tão forte<br />
que chegava a ter medo de ser subjugado pelas forças perversas que o<br />
aprisionavam. Em certas noites, como aquela, sentia descer às suas entranhas<br />
um tão grande desejo do mal, que se erguia precipitadamente, procurando<br />
confundir no frio da noite a estranha inquietação que o envenenava.<br />
Lembrava-se do que acontecera há alguns dias – um homem, numa casa<br />
distante, estrangulara a mulher e enforcara o cadáver para simular que fora<br />
suicídio. A morta ficara sozinha no casarão; ele esquecera uma porta aberta e<br />
o vento da noite vinha balançar o corpo suspenso. Aquilo penetrava nas mais<br />
fundas camadas do seu ser e ele sentia, como um calor se derramando, o<br />
desejo tremendo de se libertar de alguma coisa que o subjugava. Na<br />
claridade hesitante, sentia as suas mãos se alongarem como duas aranhas<br />
ávidas. As têmporas latejavam; na sua cabeça gritos confusos despertavam<br />
de jornadas distantes, e ouvia como num sonho a corda da enforcada ranger<br />
na trave de ferro. O seu olhar descia novamente ao corpo adormecido, subia<br />
aos olhos largos, ao nariz afilado, parecia sugar a forma suave do rosto... E<br />
<strong>jun</strong>to à pele clara, as suas mãos mais claras ainda, desconhecidas e inquietas.<br />
Não sabia por que alimentava aquele horror pelas suas mãos... Tinha a<br />
impressão de que viviam uma vida autônoma, que não ignoravam o seu<br />
destino, cúmplices e criminosas. Estavam <strong>jun</strong>to à garganta de Madalena e<br />
pareciam gritar num rancor maior do que aquele que lhe transbordava no<br />
coração. (ALNS, p. 193-194)<br />
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As narrativas góticas masculinas são obcecadas eroticamente com a transgressão<br />
e a violação dos tabus (WILLIAMS, 1995: 172). Neste sentido concordamos com Paglia<br />
quando diz que são a contrapartida inglesa para a obra do marquês de Sade, que se<br />
compraz na perversão. Em A luz no subsolo o algoz sadeano não é outro senão o próprio<br />
Pedro, que, além de assombrar sua esposa com suas mãos durante a noite,<br />
prazerosamente acarretara a morte da menina Isabel durante a infância, jogando-a no<br />
poço de propósito, fazendo com que pegasse uma pneumonia. Nisto a narrativa<br />
inaugural do filão soturno da obra de Lúcio Cardoso procura o rompimento com os<br />
valores burgueses vigentes, que poderíamos afirmar como sendo identificados com a<br />
“linha do bem” aristotélica citada por Anne Williams. Pedro, personagem em busca do<br />
“absoluto” e da transcendência, arrisca na maldade encontrar a ligação com o sagrado<br />
perdido na modernidade. Afinal, a obra de Lúcio Cardoso prima pela busca de uma<br />
“verdade” perdida, segundo atesta Maria Teresinha Martins: “... aquilo que é a<br />
substância de sua obra: “a verdade” que revelará seu aspecto plural na estruturação e na<br />
filosofia da vida das personagens” (MARTINS, 1997: 15). E, sobre “a visão trágica do<br />
mundo” entrevista nos textos de Lúcio Cardoso, Maria Teresinha Martins corrobora<br />
nossa afirmativa acima ao vinculá-la a “uma forma de o autor recapturar, de um modo<br />
ou de outro, a unidade perdida do homem ante a massificação por que passava no século<br />
XX” (Idem: 23).<br />
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Segundo Roland Barthes, a “clausura sadiana”, além de sua função prática de<br />
“abrigar a luxúria das empreitadas punitivas do mundo”, manifesta também “uma<br />
qualidade de existência, uma volúpia de ser”, havendo sempre, neste espaço composto<br />
de “porões profundos, criptas, subterrâneos, escavações situadas na parte mais baixa dos<br />
castelos, dos jardins, dos fossos”, um “segredo” (BARTHES, 1990: 20). Este segredo,<br />
tanto em Sade, quanto no romance gótico inglês, como também em Lúcio Cardoso,<br />
geralmente é de ordem sexual. Na clausura dos corredores escuros e dos cômodos<br />
opressivos da casa-grande em que vivem, os personagens de A luz no subsolo são<br />
atormentados por seus desejos eróticos: “Não é a carne que é má. É a impossibilidade da<br />
carne” (ALNS, p. 206), sentencia Pedro a Bernardo. Bernardo deseja Madalena que<br />
deseja Pedro que deseja Emanuela que não deseja ninguém, tal é a ciranda de<br />
desencontros passionais que assolam os personagens atormentados da narrativa<br />
cardosiana. A volúpia da transgressão que acomete Pedro está bem sintetizada na fala<br />
do próprio personagem quando diz:<br />
... também eu sinto isso. É um diabólico desejo de se rebaixar, de descer ao<br />
mais fundo da ignomínia, de criar a vileza, se preciso for, contanto que se<br />
sinta vil, que se sinta a vergonha queimar e arder e que escorra nos lábios o<br />
gosto amargo da lama... Certas noites, percebo que alguma coisa espantosa<br />
se passa comigo – é necessário que eu vagueie e que eu sinta inteiramente o<br />
chamado sombrio que devora a minha alma... (ALNS, p. 210).<br />
O enredo trágico do gótico masculino (WILLIAMS, 1995: 103) consuma-se na<br />
queda do personagem que simbolicamente ocupa o lugar do senhor patriarcal, punido<br />
por sua desmedida, a violação da Lei. Ele se destrói, ou perdendo seu reino, como<br />
Manfred de O castelo de Otranto, ou morrendo (Ibidem), o que acontece com Pedro no<br />
final de A luz no subsolo. Pelo fato de que os elementos que decretam sua queda são<br />
todos relacionados na linha aristotélica do feminino (melancolia, incerteza, inação,<br />
loucura, paixão e morte), efetivamente somos obrigados a admitir que, embora<br />
apresentando a possibilidade de transcendência do jugo da natureza a partir da<br />
religiosidade católica, a narrativa cardosiana em questão corrobora a tese do feminino<br />
como agente destruidor do patriarcalismo, principal substrato das narrativas góticas<br />
inglesas de autoria masculina, apresentando, portanto marcas desta tradição mais<br />
profundas, além dos elementos mais óbvios do espaço e da atmosfera de terror, palavra,<br />
aliás repetida várias vezes ao longo das páginas de A luz no subsolo.<br />
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O feminino da catástrofe gótica, por sua vez, vincula-se à matriz dionisíaca da<br />
cultura grega, com toda sua carga de indiferenciação, propiciando assim, mesmo que<br />
desastrosamente, a quebra da individuação que enclausura os personagens. As páginas<br />
do romance de Lúcio Cardoso, no entanto, primam pelo rigor formal no uso da norma<br />
culta da Língua Portuguesa e pela plasticidade estetizante, o que faz com que<br />
“verdades” ctônicas sejam apresentadas a partir de belas máscaras apolíneas.<br />
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Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 45
INTRODUÇÃO<br />
REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE<br />
SENTENÇAS<br />
Sandra Pereira Bernardo (<strong>UERJ</strong> / PUC-Rio)<br />
Duas grandes questões subjazem às pesquisas sobre processamento de frases:<br />
que tipo de informação é usada pelo aparato mental processador (parser) de uma<br />
sentença? E como essa informação é utilizada durante o processamento? Essas questões<br />
são seminais no âmbito da Psicolingüística e das Ciências Cognitivas, porque<br />
configuram um divisor de águas para as duas concepções básicas sobre a capacidade da<br />
linguagem: aquela que postula a existência de módulos encapsulados responsáveis pelo<br />
processamento da linguagem e aquela que propõe um aparato cognitivo mais interativo,<br />
do qual o componente responsável pela capacidade da linguagem faz parte.<br />
No que concerne ao processamento de frases, o postulado de módulos<br />
encapsulados para processamento da linguagem pressupõe uma hierarquia e uma<br />
serialidade para atuação do parser, inviabilizando, por exemplo, a utilização de<br />
informação semântica no primeiro repasse do processamento de uma sentença (Frazier,<br />
1987; Clifton & Ferreira, 1989; Clifton & Frazier, 1989, entre outros). Nesse primeiro<br />
repasse, à medida que as palavras são acessadas, o processador as acomoda em um<br />
construto sintático hierarquicamente determinado pela função de cada palavra.<br />
Por outro lado, a concepção teórica que concebe uma ligação entre o aparato<br />
mental para capacidade da linguagem e outros componentes da cognição, postula a<br />
possibilidade de um processamento interativo, em paralelo, durante o qual o<br />
processador utilizaria informações semânticas e pragmáticas na compreensão de uma<br />
sentença. Tal concepção teórica subjaz aos modelos conexionistas.<br />
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Entretanto, a modularidade não exclui a possibilidade de um modelo modular<br />
paralelo em que diferentes módulos trocam informações distintas, como, por exemplo,<br />
os processadores concebidos por Steedman & Altmann (1989) e Tanenhaus, Carlson &<br />
Trueswell (1989), que processam informações semânticas e sintáticas simultaneamente<br />
no primeiro repasse do parser.<br />
Neste trabalho, pretende-se especular sobre a interferência de informação<br />
semântica no processamento de sentença, a partir de um estudo da compreensão do<br />
sujeito de orações reduzidas ambíguas. Orações com ambigüidade constituem uma<br />
fonte rica de perguntas acerca do processamento de frases, colocando em xeque a<br />
existência de um construtor de estruturas sintáticas automatizado que não leva em conta<br />
o significado lexical durante o primeiro acesso aos constituintes frasais.<br />
A motivação para este estudo preliminar originou-se de reflexões sobre as<br />
seguintes frases:<br />
(a) Pendurado no galho mais alto da árvore, o menino avistou um ninho de<br />
marimbondos.<br />
(b) Pendurado no galho mais alto da árvore, o pára-quedista avistou um ninho<br />
de marimbondos.<br />
Em situação de teste informal, foi solicitado a dois indivíduos que prestassem<br />
atenção à enunciação de uma frase, para que em seguida fosse respondida uma pergunta<br />
sobre a mesma. Expressa a sentença, perguntou-se quem estava pendurado no galho da<br />
árvore. Os dois sujeitos responderam um ninho de marimbondo. A um terceiro<br />
indivíduo foi enunciada a sentença (b), utilizando-se contextualização idêntica para<br />
solicitação da tarefa. Feita a mesma pergunta, o falante respondeu o pára-quedista.<br />
As respostas fornecidas pelos falantes propiciaram a postulação de problemas<br />
específicos para este estudo. Um pára-quedista seria um candidato mais plausível a<br />
estar pendurado na árvore do que um menino, em se tratando de (b)? Ao ter de<br />
responder sobre a sentença expressa oralmente, teriam os sujeitos sofrido um efeito de<br />
recência no caso de (a). Em ausência de um contexto para auxiliar a compreensão de<br />
frases ambíguas, o que está “pré-setado” em termos de processamento do sujeito? Que<br />
postulados teóricos estão relacionados a essas respostas? Assim, tais questões nortearão<br />
o presente trabalho.<br />
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Na segunda seção, abordam-se os pressupostos teóricos envolvidos no problema<br />
estudado. Tratar-se-á, na terceira seção, da descrição do experimento realizado. Na<br />
quarta seção, passar-se-á aos resultados e à discussão destes. Por último, apresentar-se-<br />
ão as considerações finais.<br />
Pressupostos teóricos<br />
O conceito de parsing foi introduzido em psicolingüística, e em disciplinas<br />
interessadas na descrição e explicação da compreensão da linguagem, para explicar a<br />
capacidade humana de processar sentenças, tornando psicologicamente real a postulação<br />
de construtos mentais que acomodam hierarquicamente os constituintes frasais durante<br />
o processamento. Assim, o parser seria o responsável pela atribuição de categorias<br />
gramaticais e pelas relações estruturais entre os constituintes de uma sentença,<br />
desconsiderando o significado dos mesmos.<br />
Diante dessa conceituação, surge uma questão fundamental para as pesquisas<br />
sobre a compreensão humana de sentenças: como se estabelecem as relações entre<br />
parsing e interpretação, visto que esta é a responsável pela integração das informações<br />
fornecidas pelos constituintes e suas dependências estruturais, mantendo-as em algum<br />
nível interno de representação para retratar os eventos expressos nas sentenças.<br />
Logo, encontram-se na literatura modelos de processador sintático, objetivando<br />
responder a essa pergunta, que ora descrevem uma interação entre informação<br />
semântica e parsing, ora uma independência entre as etapas de postulação dos<br />
marcadores frasais e de atribuição de sentido à sentença. Os primeiros constituem os<br />
modelos paralelos de processamento e, em alguns casos, se coadunam com uma visão<br />
interativa, ou seja, uma integração forte entre a capacidade da linguagem e outras<br />
capacidades cognitivas humanas; os últimos são seriais e se identificam com uma<br />
concepção modular da capacidade de linguagem humana.<br />
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As orações ambíguas constituem um interessante objeto de estudo porque<br />
requerem algumas vezes informações semânticas e pragmáticas para sua compreensão,<br />
o que coloca em xeque o encapsulamento dos módulos responsáveis pela linguagem,<br />
suscitando perguntas acerca das preferências do parser e, em geral, apresentando<br />
algumas limitações determinados modelos de processamento. Embora não exista um<br />
modelo consensual, a literatura tem apresentado resultados promissores no estudo da<br />
compreensão de sentenças, entre os quais serão resumidos, em seguida, os modelos<br />
considerados mais relevantes para o trabalho aqui exposto.<br />
Entre as teorias modulares seriais de processamento sintático, destaca-se a do<br />
garden-path (FRAZIER, 1987), cujo pressuposto básico é o da escolha da primeira<br />
análise disponível. De acordo com essa teoria (doravante TGP), também denominada<br />
teoria do labirinto, porque o parser cai em uma espécie de beco sem saída durante o<br />
processamento, o mecanismo processador de sentenças utiliza inicialmente apenas seus<br />
conhecimentos gramaticais, desconsiderando informações semânticas e pragmáticas.<br />
O princípio básico da escolha da primeira análise disponível realiza-se através de<br />
duas estratégias de parsing:<br />
a de Ligação Mínima (Minimal attachment, doravante MA), segundo a qual o<br />
parser deve postular o menor número de nós, ou seja, o menor número possível de<br />
sintagmas para acomodar as palavras que vão sendo percebidas; e<br />
a de Fechamento Tardio (Late Closure, doravante LC), de acordo com a qual, se<br />
for consistente com as regras da gramática, cada palavra que surge durante o input de<br />
uma sentença deve ser ligada ao sintagma em análise.<br />
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Tais estratégias, que explicariam a facilidade ou a dificuldade de compreensão de<br />
várias configurações sentenciais, constituem refinamentos do princípio da associação à<br />
direita, postulado por Kimball (1973: 24), para quem “símbolos terminais são<br />
otimamente associados ao nó não-terminal mais baixo”. Segundo Frazier (1987), a<br />
escolha da primeira análise, ou seja, realizar o MA, é um caminho “geral e<br />
psicologicamente motivado” a ser seguido pelo parser. As sentenças abaixo expressam,<br />
segundo Clifton Jr. & Ferreira (1989), a relevância das estratégias de MA e LC do<br />
parsing:<br />
(1a) Eu vi Maria.<br />
(1b) Eu vi Maria sair<br />
Em (1a), observa-se a interferência da estratégia de MA, que prediz a preferência<br />
pela aposição do SN ao SV; em (1b) o parser cairia em um garden-path e reanalisaria a<br />
sentença utilizando a estratégia de non-minimal attachment (doravante NMA).<br />
Face a uma oração com ambigüidade, esta seria resolvida somente com base na<br />
estrutura sintática. Rayner, Carlson & Frazier (1983) postulam a atuação de um<br />
processador temático para guiar o parser durante a reanálise, quando ocorre garden-<br />
path. Assim, primeiro é construído um marcador sintático, para, em seguida, serem<br />
computadas as informações semânticas, que apoiariam a interpretação de frases como:<br />
(2a) O espião viu o policial com o binóculo.<br />
(2b) O espião viu o policial com o revólver.<br />
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Em (2a), a análise preferida será, segundo os referidos autores, ligar com<br />
binóculo ao verbo ver, enquanto em (2b) tal ligação acarretaria um efeito de<br />
implausibilidade, que forçaria o parser a reanalisar a oração, guiado por um processador<br />
temático, apondo o SP com binóculo ao SN policial. O parser procederia de forma<br />
semelhante quanto à oração (3) Coloque a xícara sobre a mesa na pia: ao utilizar o MA,<br />
o parser ligaria inicialmente o SP sobre a mesa diretamente ao verbo coloque, caindo<br />
em um labirinto a partir da entrada de novo material na pia, percebido pelo processador<br />
com base nas análises sintática e semântica, respectivamente.<br />
A existência de estratégias de NMA é tomada por autores, como Taraban &<br />
McClelland (1988), Altmann & Steedmann (1988) e Tanenhaus, Carlson & Trueswell<br />
(1989), para a postular a atuação de um processador temático na primeira análise do<br />
parser, pois, segundo autores que advogam tal procedimento para o parsing, um<br />
processador eminentemente sintático não detectaria ambigüidades relacionadas a<br />
labirintos semânticos como em (5) Marcaram encontro em frente ao banco.<br />
Na concepção de Taraban & McClelland (1988), a aposição de SP a um SV, ao<br />
invés de a um SN, relaciona-se a fatores semânticos. Os Autores fundamentam seu<br />
argumento através do resultado de testes com leitura auto-controlada em que sentenças<br />
como (7a) apresentam um tempo de leitura menor que (7b), a qual teria sua<br />
processamento orientado por um MA. Segundo T. & M. (op. cit.), a preferência pela<br />
estratégia de NMA deve-se a expectativas temáticas suscitadas pelo verbo durante a<br />
análise inicial do processador.<br />
(7a) Os ladrões roubaram todas pinturas no museu.<br />
(7b) Os ladrões roubaram todas as pinturas à noite.<br />
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Entre as teorias contrárias a TGP destaca-se a proposta de Altmann & Steedman<br />
(1989), denominada Teoria Incrementacional Interativa (incremental-interactive theory,<br />
doravante TII), que trabalha com a noção de plausibilidade, advinda de bases<br />
referenciais e contextuais, as quais impediriam o surgimento garden-path, quando o<br />
parser estivesse diante de dois caminhos sintáticos. Nesse sentido, a estruturação das<br />
diversas configurações sentenciais poderia ocorrer simultaneamente; para os autores, a<br />
compreensão só é interrompida quando há relações de referência inapropriadas, o que<br />
ocorre na maioria das demonstrações em favor do MA.<br />
A TII tem o princípio do apoio referencial como um de seus pressupostos<br />
básicos. De acordo com esse princípio “a análise de um SN referencialmente baseado<br />
será favorecida em relação a um que não é”. Para que um referente esteja<br />
referencialmente baseado é necessário que todas as suas pressuposições referenciais<br />
sejam satisfeitas pelo um contexto, a presença de um SN simples como o livro<br />
pressupõe a existência de um único livro em um modelo de discurso relevante; enquanto<br />
um SN modificado, como uma oração relativa ou sintagma preposicional – o livro que<br />
eu comprei ou o livro na mesa, respectivamente –, pressupõem a existência de um<br />
exemplar, dentro de con<strong>jun</strong>to de entidades, que possui certas propriedades, as quais<br />
permitiram seu acesso durante o processamento.<br />
O princípio do apoio referencial é um subprincípio do princípio da parcimônia<br />
de Altmann & Steedman (1988), que favorece uma análise com menos pressuposições,<br />
ou seja, a preferência do parser, frente a um contexto indeterminado, será pelo SN<br />
simples.<br />
Altmann & Steedman (1989) ressaltam os seguintes caracteres da TII:<br />
a influência da interpretação e da referência sobre processamento sintático está<br />
limitada a um fraco processo de avaliação do encaixe do contexto das interpretações nas<br />
análises sintáticas produzidas autonomamente. Trata-se de um modelo modular<br />
paralelo com processamento semântico on line, que se opõe às teorias conexionistas, as<br />
quais postulam uma interação forte entre o componente responsável pelo processamento<br />
da linguagem e outras capacidades cognitivas ligadas ao conhecimento de mundo;<br />
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as interpretações em questão podem ser construídas incrementalmente, mais ou<br />
menos palavra por palavra, e analisadas como favoráveis ou não, antes dos constituintes<br />
estarem sintaticamente completos.<br />
O que subjaz à diferença entre um parsing serial (TGP) e um paralelo (TII) é o<br />
tempo, ou seja, se o parser atrasa o processamento até a sentença se completar, como<br />
ocorre com os modelos seriais, ou se as palavras vão sendo interpretadas no momento<br />
em que são percebidas, como ocorre nos modelos paralelos, segundo o princípio da<br />
imediaticidade de Just & Carpenter (1980, apud SINGER 1990).<br />
Em se tratando de sentenças ambíguas, esse princípio representa uma economia<br />
para a memória de trabalho, já que durante o input tem-se acesso às análises<br />
disponíveis, sem a necessidade de esperar o fim da sentença. No caso da sentença (8)<br />
João comprou flores para Suzana, em que há duas possíveis leituras – ‘as flores foram<br />
compradas para atender a um pedido de Suzana’ e ‘as flores foram compradas para<br />
presentear Suzana’ –, ao ouvir a preposição para, o compreendedor escolherá uma<br />
dessas interpretações e a manterá, a menos que nova evidência em contrário seja<br />
fornecida.<br />
A hipótese de atraso do processamento, concepção contrária à imediaticidade,<br />
assume as seguintes formas: (i) durante o processamento, a memória de trabalho<br />
acumula várias palavras antes de interpretá-las (KIMBALL, 1973; MARCUS, 1980;<br />
apud SINGER, 1990); (ii) o processamento em nível mais alto começa com o onset 12 de<br />
uma palavra, mas não pode se completar até que o compreendedor tenha acesso a outras<br />
palavras ao longo do discurso (EHRLICH & RAYNER, 1983; RAYNER, 1977; apud<br />
SINGER, 1990); (iii) as análises sintática e semântica procedem continuamente, porém,<br />
quando mais interpretações são possíveis, tudo é mantido na memória até que uma<br />
evidência decisiva seja encontrada. Uma vantagem do atraso do processamento é que<br />
este pode prevenir o parser quanto à possibilidade de decisões incorretas.<br />
12 Gorrell (1995) define onset como ponto de partida da ambigüidade, na sentença Ian knows Thomas is a<br />
train, por exemplo, o onset da ambigüidade é o verbo know, porque pode selecionar um complemento<br />
nominal ou sentencial.<br />
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Pode-se interpretar, a partir de reflexões como as de Dillinger (1992), que os<br />
diferentes parsings, atrasado ou imediato, são manifestações do mesmo fenômeno<br />
observado em momentos diferentes no tempo, já que pesquisas vem revelando<br />
vantagens em tarefas específicas para cada um: procedimentos imediatos estariam<br />
relacionados ao processamento de constituintes sintáticos, enquanto os atrasados, à<br />
identificação de referentes.<br />
Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), seguindo a corrente teórica que<br />
concebe uma análise semântica inicial do parser, tratam da importância dos papéis<br />
temáticos dos verbos e de como estes se relacionam com o processador.<br />
Segundo os autores, os papéis temáticos 13 são importantes porque auxiliam as<br />
decisões do parsing, mediando as informações advindas do contexto discursivo ou<br />
conhecimento geral. Tais papéis são parte de um fenômeno semântico ou conceitual<br />
estreitamente associado à estrutura sintática/lexical de uma sentença; por isso, estão<br />
intimamente relacionados à estrutura da sentença, propiciando-lhe uma forma de<br />
representação para acesso a conceitos e significados dos elementos do discurso<br />
mapeados pela forma sintática. Devido a essa propriedade, os papéis temáticos devem<br />
ser extremamente úteis ao sistema de compreensão, coordenando diferentes tipos de<br />
informação.<br />
A informação temática, ao ser usada no processamento de sentenças para<br />
reconhecimento de um verbo, disponibiliza as seguintes informações: a representação<br />
semântica ou sentido do verbo; os papéis temáticos associados ao verbo; os tipos de<br />
constituintes que podem servir como complementos de um verbo; e como os papéis e<br />
constituintes são conectados um ao outro.<br />
13 Papel temático é definido pelos autores como “possíveis papéis semânticos que podem ser<br />
desempenhados por complementos subcategorizados (ou argumentos) pelos verbos” (p. 212).<br />
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Ao acessar as informações temáticas, sempre que um verbo é encontrado em um<br />
contínuo discursivo, o sistema de compreensão não só projeta expectativas sobre o tipo<br />
de elemento que pode figurar depois do verbo, mas também pode conferir um<br />
significado provisório para a sentença como um todo através da atribuição de<br />
identidades particulares aos elementos, temporariamente não especificados, que<br />
desempenham, por exemplo, os papéis de tema e de recipiente, esperando a denotação<br />
de sintagmas pós-verbais. O sistema de compreensão pode ainda atribuir os papéis de<br />
tema e de recipiente a uma entidade já introduzida no discurso, ou na mesma sentença,<br />
até que novas evidências em contrário sejam encontradas.<br />
A partir dessa hipótese de atuação da informação temática no<br />
parsing, Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989) analisam experimentos para validar<br />
esse procedimento em diferentes configurações sentenciais.<br />
Os autores analisaram os experimentos de Rayner et al. (1983), com sentenças<br />
do tipo de (2), repetido em (9), e verificaram a existência de um viés semântico na<br />
utilização da estratégia de MA, que prediz a aposição do SP ao SV para (9a), porque<br />
binóculos é interpretado como um coerente instrumento do verbo ver. Para (9b), essa<br />
leitura não é possível, devido à incoerência inerente à interpretação de com o revólver<br />
como instrumento do verbo ver.<br />
(9a) O espião viu o policial com o binóculo, mas o policial não o viu.<br />
(9b) O espião viu o policial com o revólver, mas o policial não o viu.<br />
Rayner et al. (1983) utilizaram o fato de os sujeitos testados não terem repetido a<br />
leitura de (9a), mas a de (9b), para postular a existência dois processadores: um sintático<br />
e outro temático, este analisaria o output daquele. Em caso de os outputs não<br />
coincidirem, o conflito seria resolvido com base nas informações do processador<br />
temático. Nesse sentido, ao contrário do postulado pela TII, o compreendedor cairia em<br />
garden-path.<br />
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Entretanto, como reportam Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), Taraban &<br />
McClelland (1988), argumentaram contra essa interpretação, alegando que a ausência de<br />
repetição de leitura de (9a) estava relacionada a fatores semânticos. Para corroborar a<br />
contra-argumentação, T. & M. (op. cit.) desenvolveram testes em que o viés também<br />
conduziria a aposição do SP ao SN e obtiveram tempos de leitura igualmente rápidos<br />
para ambas as ligações com presença de influência da informação semântica.<br />
Quanto ao processamento de orações relativas reduzidas em inglês, Tanenhaus,<br />
Carlson & Trueswell (op. cit.) analisam resultados que permitem verificar a influência<br />
do traço [+ animado] no processamento de frases como (10) The lawyer sent the memo<br />
arrived late, em que os sujeitos testados chegam a um labirinto, porque, devido a<br />
coincidência nas formas verbais do perfeito e do particípio passado, preferem interpretar<br />
the lawyer como sujeito de uma oração principal.<br />
Observa-se a tendência desse mesmo traço ser interpretado preferencialmente<br />
como agente também em fronteiras de oração com ambigüidade, como nas sentenças<br />
(11):<br />
(11a) Even before the police stopped the driver was getting nervous.<br />
(11b) Even before the truck stopped the driver was getting nervous.<br />
que conduziram os sujeitos ao garden-path em (11a), devido ao favorecimento de um<br />
leitura causativa quando sujeito é animado contra uma interpretação intransitiva para<br />
sujeito inanimados.<br />
Sentenças com dependência de relações a distância consistem em outro tipo de<br />
configuração sintática em que, segundo Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), as<br />
representações temáticas são usadas na interpretação. Nesse sentido, um sintagma<br />
interrogativo ou relativo deve estar associado a uma categoria vazia da oração seguinte,<br />
como nos exemplos (12):<br />
(12a) Wich customeri did the secretary call __i about the article?<br />
(12b) That’s de guy whoi Susanj wanted PROj to marry __i.<br />
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Sob uma explicação baseada na informação temática, assume-se que o<br />
preenchedor pode ser associado diretamente ao papel temático do verbo tão logo este<br />
seja reconhecido. Os autores referem-se a estudos, como o de Tanenhaus, Boland,<br />
Garnsey & Carlson (1989), que sugerem uma associação dos preenchedores de<br />
categorias vazias a representações temáticas ao invés de sintáticas, porque o verbo torna<br />
disponível um con<strong>jun</strong>to de papéis temáticos. Esse postulado se opõe ao de Frazier et al.<br />
(1983), que propõem um atraso no uso de informação semântica.<br />
Na acepção de Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), o significado da<br />
estrutura temática do verbo permite que leitor e ouvinte construam rapidamente um<br />
esquema de representação que inclua os componentes centrais da situação descrita pelo<br />
verbo. Tal representação desempenha um importante papel, propiciando ao sistema de<br />
compreensão o desenvolvimento de interpretações tão rápidas.<br />
A leitura desses Autores comprova a hipótese de que a informação temática<br />
permite desambiguação de uma sentença, na medida em que auxilia o parser a<br />
selecionar uma entre as possibilidades morfológicas vislumbradas. O paralelismo dessa<br />
concepção teórica não está relacionado à busca realizada por vários parsers completos<br />
em paralelo, mas a acessos paralelos morfológicos e, mais geralmente, ao acesso<br />
imediato e uso de informação lexical. Assim, os papéis temáticos fornecem um<br />
mecanismo para o conhecimento geral e contexto interagirem com o processamento<br />
sintático na resolução da ambigüidade sintática, eliminando o número de garden-paths,<br />
freqüentemente atribuídos a estratégias de aposições sintáticas (p. 231).<br />
Os Autores ressaltam que o processamento temático depende, pelo menos<br />
parcialmente, do output do processamento sintático, visto que avaliar o encaixe de um<br />
constituinte em um particular papel depende de um “parseamento” correto desse<br />
constituinte. Os processamentos temático e sintático de fato interagem, já que a<br />
informação sintática pode ser utilizada para evitar uma atribuição temática incorreta e<br />
vice-versa. Portanto, há evidências de que a informação temática pode ser usada na<br />
seleção entre duas análises sintáticas em competição, sob a hipótese de que existe um<br />
certo grau de paralelismo (talvez lexicalmente baseado) no sistema de compreensão<br />
(p.232).<br />
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Os modelos e hipóteses resumidos aqui encerram valiosos avanços nas pesquisas<br />
sobre processamento sentenças. A adequação de um em detrimento de outros<br />
dependerá do tipo de sentença produzida, visto que não há evidência categórica em<br />
favor de um modelo. A aplicação de tais modelos na compreensão de orações reduzidas<br />
em português com ambigüidade total será discutida adiante.<br />
DESENHO DO EXPERIMENTO<br />
Nesta seção, será apresentada a descrição dos testes informais realizados com<br />
alunos de graduação de uma universidade localizada no Rio de Janeiro. Trata-se de<br />
testes informais, porque não foi possível realizar experimentos com aparelhos capazes<br />
de medir o tempo de processamento e a presença de releitura das sentenças. Devido à<br />
sua natureza preliminar, esses testes informais podem apresentar falhas metodológicas.<br />
As sentenças que compuseram o teste foram extraídas ou adaptadas de um<br />
manual de redação (MORENO & GUEDES, 1991), com intuito de verificar se o<br />
conceito de ambigüidade fornecido pelo manual tem uma evidência psicológica, ou seja,<br />
se em termos de processamento essa ambigüidade é percebida. Foi testada a<br />
compreensão de orações reduzidas de gerúndio, de particípio e de infinitivo.<br />
Os sujeitos receberam um bloquinho com oito frases, uma em cada folha, na qual<br />
continha uma pergunta no verso, para evitar releitura e para explorar, ao máximo,<br />
respostas-reflexo. Nesse sentido, também solicitou-se que a tarefa fosse realizada o<br />
mais rápido possível. A pergunta do tipo QU- foi concebida com objetivo de indagar<br />
sobre o sujeito 14 da ação expressa pelo verbo da oração reduzida. Assim, os indivíduos<br />
liam a frase, viravam a folha e respondiam à questão: por exemplo, à sentença<br />
Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso seguia-se a pergunta Quem<br />
estava enterrado?. Não havia qualquer tipo de enunciado, a tarefa foi solicitada<br />
oralmente pelo pesquisador. Foram obtidos oito testes de cada grupo de sentenças, que<br />
podem ser verificados em anexo.<br />
14 Toma-se por sujeito uma entidade sobre a qual é veiculada alguma informação ou condição expressa<br />
pelo verbo, à qual pode ser atribuído papéis temáticos de agente,alvo, tema, recipiente etc.<br />
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Há diferentes tipos de ambigüidade em conformidade com a presença de<br />
referentes 15 candidatos a sujeito: (i) sentenças que apresentam explicitamente dois<br />
referentes aptos a sujeito da reduzida; (ii) aquelas que expressam um referente explícito<br />
e um indeterminado (em terceira pessoa) como possíveis sujeitos; e (iii) sentenças que<br />
só oferecem um provável sujeito indeterminado, em terceira pessoa.<br />
Alguns casos de ambigüidade que podem ser questionados, porque se relacionam<br />
à ordem em que as sentenças foram configuradas. As dúvidas surgidas na interpretação<br />
de algumas sentenças parece corroborar a inadequação de se ensinar construção de<br />
frases a partir de períodos descontextualizados. Entretanto, esses casos duvidosos<br />
foram mantidos no teste como sentenças para controle, servindo de contraponto para<br />
análise de outras ocorrências de ambigüidade.<br />
Em seguida, expõem-se as frases e observações acerca do objetivo a ser atingido<br />
com cada sentença, que estão arroladas conforme o valor sintático (adjetivas,<br />
adverbiais) e o tipo de forma verbal nominal da oração reduzida.<br />
(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de marimbondos.<br />
(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho de<br />
marimbondos.<br />
(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso.<br />
(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo.<br />
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo.<br />
(3b) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo.<br />
(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.<br />
(5) O quadro afixado na parede caiu.<br />
(6) Vimos várias reses, descendo a serra.<br />
15 O termo referente é utilizado para designar uma representação mental evocada por uma forma<br />
lingüística que ativa um con<strong>jun</strong>to de conhecimentos.<br />
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Carvalho.<br />
a pele.<br />
(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para Paulo<br />
(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo Carvalho.<br />
(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob<br />
(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob<br />
a pele de Pedro.<br />
(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida.<br />
(10a) Preso e jogado na prisão, o coração de sua mãe não agüentou.<br />
(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.<br />
(11a) Ressentido e humilhado pelo barão, um plano de vingança começou a<br />
surgir em sua mente.<br />
mente.<br />
(11b) Ressentido e humilhado, um plano de vingança começou a surgir em sua<br />
(12) Navegando com todas as velas ao vento, a ilha foi avistada.<br />
(13a) Depois de pôr minhoca no anzol, um peixe começou a beliscar.<br />
(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias iniciou a festa.<br />
(14) Vimos várias reses, ao descer a serra.<br />
(15) O anel foi encontrado pelo policial.<br />
(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.<br />
Busca-se, através das sentenças (1), (2), (8), (10) e (13), testar a interferência dos<br />
traços semânticos [± humano] e [± animado] na atribuição dos argumentos do verbo,<br />
pois a influência da informação semântica no parsing consiste na principal hipótese<br />
deste trabalho.<br />
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A sentença (3a), arrolada como ambígua no livro didático, não foi analisada<br />
como tal neste artigo. Seria incoerente um guarda portar jóias ao prender uma pessoa, a<br />
hipótese é que o contexto do período, devido ao papel temático do verbo prender da<br />
oração principal, encaminha a interpretação do sujeito da adjetiva reduzida. A frase<br />
(3b) foi elaborada para verificar, se a interpretação seria diferente da de (3a), caso a<br />
palavra guarda não figurasse na oração principal. Acredita-se que a classificação de<br />
ambígua dada ao período deva-se à posição da oração reduzida, a qual deveria ser<br />
expressa após a principal, como em (4), (5) e (6), inseridas no teste como distratoras.<br />
O con<strong>jun</strong>to de sentenças (11), do qual (11a) também foi classificada por Moreno<br />
& Guedes (1991) como ambígua, inclui-se no mesmo problema levantado em relação à<br />
(3), sendo que só podem apresentar sujeito em terceira pessoa.<br />
As frases (7), com as quais se visa observar a interferência de conhecimento de<br />
mundo na seleção para o sujeito, apresentam três tipos de referente: Machado de Assis,<br />
considerado um escritor conhecido do publico universitário; Murilo Rubião, também<br />
escritor, supostamente menos conhecido; e Paulo Carvalho, inventado. Espera-se que a<br />
atribuição de calouro ao sujeito da reduzida suscite menos escolhas de Machado de<br />
Assis como sujeito em relação aos demais.<br />
O período (9) talvez tenha sido apontado como ambíguo no manual devido à<br />
inversão das orações e por não haver um candidato explícito a sujeito; entretanto,<br />
acredita-se que, sem contexto mais amplo, pode-se atribuir um agente indeterminado<br />
para o verbo verificar, sem que haja problemas no processamento.<br />
A sentença (12), também analisada como ambígua, apresenta três referentes<br />
como possíveis sujeitos: indeterminado, tripulação [+ humano] e barco [-<br />
animado]. Supõe-se que o verbo navegar selecione preferencialmente barco como<br />
sujeito. Os períodos (14), (15) e (16) foram inseridos no teste como distratores.<br />
RESULTADOS E DISCUSSÃO<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 61
A discussão será apresentada subseqüentemente às tabelas com os resultados de<br />
cada frase. Assim, nas tabelas abaixo podem ser verificadas as ocorrências de cada<br />
sujeito das sentenças (1) a (3).<br />
Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />
(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de o menino<br />
marimbondos.<br />
7 / 8<br />
(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho pára-quedista<br />
de marimbondos.<br />
7 / 8<br />
um ninho de marimbondo<br />
1 / 8<br />
um ninho de marimbondo<br />
1 / 8<br />
Sujeito da or. reduzida<br />
Sentenças<br />
(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso. o cachorro o osso<br />
0 / 8<br />
8 / 8<br />
(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo. o cachorro o sapo<br />
1 / 8<br />
7 / 8<br />
Sujeito da or. reduzida<br />
Sentenças<br />
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo. o guarda<br />
Jerônimo<br />
0 / 8<br />
8 / 8<br />
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo. Sérgio<br />
Jerônimo<br />
0 / 8<br />
8 / 8<br />
Nas sentenças (1), os indivíduos escolheram a primeira análise disponível ao<br />
atribuir os marcadores sintáticos às orações, ligando primeiro o referente disponível,<br />
nesse caso, com o traço [+ humano], à posição de sujeito da reduzida. Registrou-se,<br />
entretanto, duas escolhas para um ninho de marimbondo, as quais representariam a<br />
postulação de uma estrutura com um nó a menos. Tal escolha pode ser devida a um<br />
efeito de recência para aqueles que ao responder a questão optaram pelo SN mais<br />
recentemente armazenado na memória.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 62
Cabe ressaltar que essas sentenças foram ligeiramente modificadas em relação às<br />
que motivaram este trabalho (cf. Introdução), quando em três sujeitos testados, também<br />
informalmente, foram obtidas duas escolhas para um ninho de marimbondo contra o<br />
menino, talvez em função do sintagma galho mais alto da árvore, o que teria deixado a<br />
sentença mais longa, conduzindo a escolha do último SN plausível (efeito de recência)<br />
ou a interpretação de que um menino não deveria estar em um galho mais alto. Devido<br />
a essas dúvidas, decidiu-se simplificar o SP. Contudo, em razão do resultado expressivo<br />
para o menino, caberia uma nova testagem para verificar se tal quadro seria mantido<br />
com o SP galho mais alto da árvore.<br />
Os resultados das sentenças (2) também apontaram para escolha que exprime<br />
uma estrutura com menor número de nós, já que o osso foi categoricamente selecionado<br />
em (2a) e o sapo, quase categórico, em (b), não obstante a diferença entre os traços<br />
animado e inanimado dos potenciais sujeitos. O registro de um caso de opção por o<br />
cachorro em relação a o sapo poderia estar ligado à implausibilidade de sapos estarem<br />
enterrados em quintais e a possibilidade de um cachorro ter cavado um buraco grande o<br />
suficiente para o engolir, embora em termos atribuição de marcadores sintáticos, a<br />
opção por o cachorro represente um nó a mais na estrutura frasal.<br />
É interessante refletir sobre a diferença entre as orações de (1) e (2), no que tange<br />
à posição dos referentes preferidos para sujeito, pois nas sentenças (1) há uma carga de<br />
processamento maior em razão dos SPs da árvore e de marimbondo em relação a<br />
(2). Em se imaginando um parsing imediato, que vai construindo hipóteses à medida<br />
que cada palavra vai sendo percebida, o primeiro candidato a sujeito da reduzida seria,<br />
de fato, um dos escolhidos; entretanto, frente a sentenças menores, o parsing teria<br />
construído os marcadores após o término das orações, aguardando um referente mais<br />
plausível que cachorro. Haveria uma relação entre o uso estratégias semânticas e carga<br />
de processamento, já que a percepção visual pode antecipar uma tarefa mais custosa<br />
para memória de processamento em caso de sentenças longas?<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 63
Embora não tenha sido possível medir o tempo de processamento das sentenças,<br />
é possível postular que o parsing foi construindo a análise incrementalmente e, ao<br />
interpretar um referente como um sujeito plausível para a reduzida, fez sua escolha. No<br />
caso de (2), a escolha preferida coincide com uma estrutura mais simples; em (1) ocorre<br />
o oposto, o que pode revelar a criação de um esquema de representação para as<br />
sentenças com base no contexto semântico.<br />
Os resultados de (3), utilizadas para controle, corroboram a influência das<br />
informações semânticas sobre o parsing, já que as duas sentenças apresentam a mesma<br />
quantidade de marcadores sintáticos (10 nós). Tal resultado reforça também o princípio<br />
cognitivo do parsing de Bever (1970), segundo o qual qualquer seqüência de nome-<br />
verbo-nome corresponde a ator-ação-objeto, relacionando a ordem da estrutura<br />
superficial à informação semântica. Essa relação poderia ser um recurso tomado pelo<br />
parsing, diante de dois possíveis temas para a oração reduzida. A questão da ordem<br />
entre a orações principal e subordinada reduzida também seria um objeto de estudo<br />
relevante para o processamento de sentenças, principalmente em se observando os<br />
resultados das sentenças seguintes.<br />
Sentenças Sujeito da or. reduzida Total<br />
(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.<br />
(5) O quadro afixado na parede caiu.<br />
(6) Vimos várias reses, descendo a serra.<br />
o rapaz<br />
o quadro<br />
várias reses<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 64<br />
8 / 8<br />
7 / 8<br />
6 / 8
As sentenças (4) a (6) podem ser interpretadas como evidência de que o<br />
ordenamento das orações deve ter relevância psicológica, pois no período (6), com<br />
ambigüidade, em que apenas dois testes apresentaram a resposta nós, observou-se um<br />
resultado próximo ao de (4) e de (5). Tal resultado também corrobora, em termos<br />
didáticos, a prescrição da ordem principal-subordinada em alguns contextos. Para a<br />
oração (5), foi computado um caso de ninguém como resposta, o que pode estar<br />
relacionado ao uso do pronome relativo quem na pergunta, porque, em outro teste, um<br />
indivíduo corrigiu a pergunta substituindo o quem por o que, ao dar a resposta quadro<br />
para essa frase. Esses “percalços” de experimento revelam a rapidez com que a reflexão<br />
atua nos testes, bem como as informações temáticas.<br />
de infinitivo:<br />
As sentenças (7) apresentaram a seguinte seleção para sujeito da oração reduzida<br />
Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />
(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para<br />
Paulo Carvalho.<br />
(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo<br />
Carvalho.<br />
Machado de Assis<br />
Tais períodos foram postulados para testar a interferência do conhecimento de<br />
mundo na seleção para o sujeito da oração infinitiva (PRO), já que em termos de<br />
estratégia processamento, nos dois casos há o mesmo número nós, assim a primeira<br />
análise disponível não seria influenciada por um menor custo de<br />
processamento. Devido ao PRO ser arbitrário, mesmo que a oração reduzida estivesse<br />
após a principal ter-se-ia a possibilidade de ligá-lo a Machado de Assis/Murilo Rubião<br />
e Paulo Carvalho. Outro dado que comprova a arbitrariedade desse PRO é o fato de<br />
um dos indivíduos ter selecionado ninguém como resposta à pergunta quem era<br />
calouro. Por outro lado, esse resultado também pode revelar a suposição de que Paulo<br />
Carvalho também é escritor, ou ainda o fato de a ambigüidade ter sido detectada.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 65<br />
3 / 8<br />
Murilo Rubião<br />
8 / 8<br />
Paulo Carvalho<br />
4 / 8<br />
Paulo Carvalho<br />
0 / 8
Portanto, ao não ser detectada a ambigüidade, um dos caminhos para processar<br />
essa frase seria coindexar o PRO ao primeiro SN encontrado na cadeia sintagmática<br />
com o traço [+ humano]; por isso, plausível. Tal estratégia pode ser evidenciada a partir<br />
dos resultados de (7a), em que a diferença entre Machado de Assis e Paulo Carvalho é<br />
praticamente irrelevante, e de (7b), cujo primeiro SN plausível foi selecionado<br />
categoricamente. Por outro lado, a seleção de Paulo Carvalho, em (7a), pode ser uma<br />
evidência da influência imediata do conhecimento de mundo no parsing, ou seja, em se<br />
tratando de um parser imediato, as respostas de (7b) evidenciariam uma mudança de<br />
escolha em relação a (7a), com base no conhecimento enciclopédico.<br />
Os resultados das sentenças (8), a seguir, também se relacionam à indexação de<br />
PRO e à interferência do traço [+ humano]:<br />
Sentenças Sujeito da or. reduzida<br />
(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico<br />
deve ser injetado sob a pele.<br />
(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico<br />
deve ser injetado sob a pele de Pedro.<br />
A presença de flexão em dessensibilizado na sentença (8b) deveria conduzir a<br />
coindexação do PRO ao SN o anestésico ou a um sujeito em terceira pessoa, dada a<br />
natureza genérica do sujeito do infinitivo, como ocorreu em (8a), para a qual foi<br />
postulado o SN o paciente como sujeito. O resultado obtido com (8a) parece evidenciar<br />
que se busca um referente [+ humano] para os papéis de tema ou de agente do verbo,<br />
mesmo quando o contexto não o fornece explicitamente, mas este é autorizado através<br />
de uma categoria vazia. Essa interpretação pode ser corroborada com os resultados de<br />
(8b), que oferece um candidato a alvo da ação verbal com os referidos traços, não<br />
obstante à concordância e à necessidade de acrescentar mais nós ao marcador<br />
frasal. Com a sentença (9), em que o contexto é menos rico e envolve um tema sobre<br />
referentes inanimados obteve-se as seguintes respostas:<br />
o anestésico<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 66<br />
1 / 8<br />
o anestésico<br />
1 / 8<br />
a pele<br />
1 / 8<br />
a pele de Pedro<br />
5 / 8<br />
o paciente<br />
6 / 8<br />
ninguém<br />
2 / 8
Sentença Sujeito da or. reduzida<br />
(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida. alguém<br />
Como pode ser observado, a partir dos resultados, os sujeitos que participaram<br />
do teste não revelaram uma preferência marcante para seleção do sujeito de (9). A<br />
pergunta que surge a partir dessas respostas é se os indivíduos que optaram por não sei,<br />
não se sabe, não diz teriam percebido a ambigüidade ou se estão se referindo a um<br />
sujeito genérico, permitido pelo contexto (PRO), em relação àqueles que responderam o<br />
mecânico/alguém.<br />
Essa sentença, incluída no teste para um confronto com processamento de<br />
sentenças com referentes [+ humanos], foi interpretada pelo pesquisador como uma<br />
sentença de fácil decisão sobre o sujeito da oração reduzida, dentro das opções<br />
oferecidas pelo contexto; entretanto, houve inclusive um teste em branco sobre essa<br />
sentença. Essa dificuldade seria advinda de seu contexto pobre? O fato é que não se<br />
pode deixar de considerar a influência de contextos que favorecem a atuação de uma<br />
entidade com traços [+ humano] sobre as aposições feitas pelo parser, facilitando sua<br />
decisão.<br />
processador.<br />
o mecânico<br />
Os resultados das sentenças (10) e (11) reforçam essa interferência sobre o<br />
3 / 8<br />
não se sabe<br />
não diz<br />
não sei<br />
3 / 8<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 67
Sentenças Sentenças Sujeito da or. Reduzida Sujeito da or. reduzida<br />
(11a) (10a) Ressentido Preso e jogado e humilhado na prisão, pelo o coração barão, de um sua aquele mãe não que agüentou. tramou o ele filho<br />
plano de vingança começou a surgir em sua<br />
mente.<br />
7 / 8<br />
alguém não mencionado<br />
2 / 8<br />
(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.<br />
2 / 8 3 / 8<br />
o irmão de sua mãe<br />
(11b) Ressentido e humilhado, um plano de uma pessoa<br />
vingança começou a surgir em sua mente<br />
3 / 8<br />
8<br />
ele<br />
/ 8<br />
3 / 8<br />
eu / o sujeito<br />
2 / 8<br />
As sentenças (10) podem evidenciar um processamento imediato e paralelo do<br />
parsing, que opta por uma interpretação tão logo perceba um referente plausível para<br />
ocupar uma posição sem argumento determinado na oração reduzida, mesmo no caso de<br />
(10a), em que esse referente está representado por um SN mais complexo – o coração<br />
de sua mãe –, levando o compreendedor a extrair o sujeito da reduzida do ad<strong>jun</strong>to<br />
adnominal da principal – de sua mãe.<br />
Pode-se estabelecer para os casos de orações reduzidas antepostas à principal um<br />
processamento similar ao que é utilizado no “parseamento” de sentenças com<br />
dependências de longa distância, incluindo-se as reduzidas de particípio ou<br />
gerúndio. Nesse contexto, o processamento ocorreria como se a oração reduzida tivesse<br />
deixado uma lacuna a ser preenchida à medida que as informações da oração principal<br />
fossem sendo percebidas, considerando as possibilidades de indexação do<br />
referente-sujeito para essa lacuna. Como os resultados vêm revelando, essa indexação é<br />
influenciada por fatores semânticos na seleção de sujeitos em contextos ambíguos.<br />
Os resultados de (11), que demonstram uma tendência a postular um executor da<br />
trama, serviriam como evidência de uma busca por informações semânticas plausíveis,<br />
para representação de um esquema capaz de auxiliar o sistema de compreensão, pois os<br />
sujeitos testados procuraram, através de várias formas, expressar essa representação<br />
esquemática, a despeito de um contexto mais pobre que o de (10).<br />
Seguem-se, abaixo os resultados das sentenças (12) e (13):<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 68
Sentenças Sentenças Sujeito da or. Sujeito Reduzida da or. Reduzida<br />
(13a) (12) Navegando Depois de com pôr todas minhoca as velas no anzol, ao vento, um a peixe ilha foi Alguém avistada. / o pescador o barco / o navio oculto ele / / indefinido não sei / não se<br />
começou a beliscar.<br />
sabe / não diz<br />
4 / 8<br />
2 / 8<br />
7 / 16<br />
9 / 16<br />
(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias<br />
iniciou a festa.<br />
Os resultados da sentença (12) consistem em uma espécie de controle para a<br />
tendência de se postular um sujeito com traço [+ humano] sempre que o contexto<br />
temático o permite. Observe-se que, apesar da presença do verbo navegar, o qual pode<br />
selecionar uma entidade [- humana] para executor da ação, nesse caso, explicitamente<br />
expresso na frase, aventou-se em um teste a tripulação como sujeito. Houve, ainda, um<br />
caso de escolha de todas as velas, opção que pode estar relacionada à necessidade desse<br />
processador apor o referente mais próximo ao verbo como sujeito, ou ao fato de em uma<br />
leitura rápida, o aluno não ter entendido a sentença. Os casos de não sei, não se sabe<br />
etc. podem representar a percepção da ambigüidade ou a postulação de um sujeito<br />
indeterminado, não nomeado.<br />
As sentenças (13), que figuraram cada uma em dois testes, consubstanciam mais<br />
uma evidência em favor de uma influência do contexto temático e da tendência em se<br />
atribuir a situação expressa a uma entidade personificada. Em (13b), cujo contexto<br />
favoreceria a seleção desse tipo de entidade, essa preferência foi corroborada, pois,<br />
mesmo aos sujeitos indeterminados imputou-se tal traço. Registrou-se um teste com a<br />
resposta “sujeito em terceira pessoa (?)”, que talvez esteja expressando uma percepção<br />
da ambigüidade, embora em nenhum teste tenha-se verificado respostas com duas<br />
possibilidades.<br />
o mestre de cerimônias<br />
13 / 16<br />
A sentença (14) Vimos várias reses, ao descer a serra, usada para controle das<br />
sentenças reduzidas teve o PRO categoricamente indexado a um pro. Ao se confrontar<br />
o processamento dessa sentença com o de (6) Vimos várias reses, descendo a serra, que<br />
teve seis respostas para várias reses como sujeito da reduzida, pode-se questionar sobre<br />
uma possível diferença entre o parsing de orações reduzidas de gerúndio e de infinitivo;<br />
e sobre uma possível distinção relacionada a presença de preposição.<br />
o instalador<br />
2 / 16<br />
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As sentenças (15) e (16), abaixo, colocadas no teste como distratoras<br />
apresentaram resultados praticamente categóricos, a exceção de uma resposta ninguém<br />
para (16), devido à pergunta ter sido iniciada pelo pronome interrogativo quem.<br />
(15) O anel foi encontrado pelo policial.<br />
(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.<br />
Para avaliar satisfatoriamente as tendências apontadas pelos testes, seria<br />
necessário utilizar experimentos de leitura autocontrolada, a fim de verificar o tempo de<br />
processamento de sentenças, aliado a uma checagem da presença de releitura. Mesmo,<br />
em se tratando de testes informais, considera-se que há alguns ajustes a serem feitos, no<br />
sentido de controlar efeitos inesperados que favoreçam a reflexão sobre as respostas.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Não obstante a natureza preliminar e as possíveis falhas metodológicas, as<br />
sentenças testadas revelaram questões interessantes sobre o processamento de orações<br />
reduzidas em língua portuguesa, e, acima de tudo, demonstram que há muito a ser feito<br />
nessa área de compreensão sentencial.<br />
Acredita-se que tenha sido possível observar a relação entre parsing e<br />
informação semântica. Quanto à indagação sobre como essa informação é utilizada,<br />
considera-se prematura qualquer tipo de posicionamento nesse sentido.<br />
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cognitive processes, 4. Lawrence Erlbaum/VSP Publications.<br />
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PASSOS, Claiz & PASSOS, Maria Emiliana (1990). Princípios de uma gramática modular.<br />
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Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 71
CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA<br />
CINEGRAFISTA<br />
Regina Silva Michelli (<strong>UERJ</strong>)<br />
(...) ó Cesário Verde, ó Mestre,<br />
Ó do "Sentimento de um ocidental"!<br />
FERNANDO PESSOA, Álvaro de Campos.<br />
“Dois Excertos de Odes” (Fins de Duas Odes,<br />
Naturalmente).<br />
Leio até me arderem os olhos<br />
O livro de Cesário Verde.<br />
FERNANDO PESSOA, Alberto Caeiro. Poema III, “O<br />
Guardador de Rebanhos”.<br />
Cesário Verde (1855-1886) insere-se, cronologicamente, no período do realismo<br />
português. As características de sua poesia projetam-no, entretanto, como poeta antecipador do<br />
modernismo e, por isso, incompreendido em sua época. O realismo de Antero de Quental<br />
configura-se através de uma poesia intelectualizada, caracterizando as dificuldades de a “nova<br />
idéia” sustentar-se em meio aos ataques românticos, conclamando à luta, à ação social. António<br />
José Saraiva e Óscar Lopes asseguram que “Cesário Verde é o único poeta do grupo tido como<br />
realista que consegue romper, de facto, com a herança romântica”, renovando completamente a<br />
estilística tradicional da poesia portuguesa (1996, p.926).<br />
Cesário derrama-se poeticamente entre o campo, mostrando o trabalho com as uvas e a<br />
dificuldade de exportação, em meio a um quadro familiar (Nós), e a cidade, o “bulício”<br />
característico de Lisboa. Em O Sentimento dum Ocidental, focaliza o entardecer, os<br />
trabalhadores saindo das construções e oficinas, às seis horas da tarde (Ave Marias), enquanto o<br />
eu-lírico vaga por ruas e becos da cidade. Diferente do cavaleiro medieval, que buscava<br />
cumprir sua “demanda”, o eu-lírico parece deambular sem um objetivo claro, voltado apenas<br />
para a visão da realidade, para as emoções que ela lhe provoca e o registro dessas observações<br />
sob a forma de poesia.<br />
Como afirma Massaud Moisés, Cesário Verde fez poesia fixando os aspectos da<br />
realidade considerados até então a-poéticos, lançando sua atenção sobre “o prosaico diário,<br />
inclusive nos seus aspectos julgados repelentes, grotescos ou ridículos” (1974, p.216). Sua<br />
poesia flagra a vida que pulsa nas pequenas coisas, registrando o corriqueiro, o banal, o<br />
cotidiano: a (teórica) visão de uma vendedora de hortaliças, quando se dirige para o trabalho, é<br />
suficiente para provocar-lhe o ensejo de escrever (Num Bairro Moderno), da mesma forma que<br />
a simplicidade de um “pic-nic” no campo é motivo para a pintura impressionista – “Pinto<br />
quadro por letras, por sinais” (Nós) – de uma “aquarela” em que realça a beleza feminina (De<br />
Tarde).<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 72
Sua linguagem é simples e coloquial, com vocabulário variado, expressando o dia-a-dia.<br />
Cesário Verde rebela-se contra o estilo requintado das estéticas clássicas, assumindo uma<br />
postura lingüística totalmente contrária aos padrões considerados ideais: “Acabou com a<br />
exigência de que as palavras viessem em traje de gala para poder figurar nas festas das letras”<br />
(PIRES,1966, p.135). Impossível admitir na poesia dessa época a presença de peixes podres<br />
gerando infecções (ainda que pareçam ressoar nos versos cesarianos as palavras com que<br />
Camões aborda o escorbuto n’ Os Lusíadas). A frase cesariana é curta, incisiva como um bisturi<br />
rasgando o verso: “Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.”(Contrariedades).<br />
A poesia e o fazer poético – a metapoesia – revelam-se preocupações de Cesário Verde,<br />
o que vai se consubstancializar efetivamente no modernismo. Em Contrariedades, Cesário<br />
desvela a sua condição de poeta (“Nas letras eu conheço um campo de manobras”), reflete sobre<br />
a forma (“apuro-me em lançar originais e exatos,/ Os meus alexandrinos...”, o que lhe granjeou<br />
a característica de parnasiano), afiançando sua preferência pela poesia (“não há questão que<br />
mais me contrarie/ Do que escrever em prosa.”): “De comum, entre Cesário Verde e os<br />
modernos, avulta a inquirição sobre as articulações do discurso, isto é, textos que se dobram<br />
sobre si mesmos fazendo da produção textual o objeto de indagação” (SILVEIRA, 1995a,<br />
p.299).<br />
A poesia cesariana assinala uma tensão entre o “fora” e o “dentro” do poeta: “Ao invés<br />
de retratar o objeto exterior, o poeta identifica-o com o seu mundo interior. A realidade objetiva<br />
funde-se, portanto, à realidade subjetiva, o que o afasta dos cânones realistas, onde predomina a<br />
“fotografia do real” (MOISÉS,1974, p.216). José Régio alerta para o fato de que a realidade é<br />
apenas um ponto de partida para o verdadeiro poeta, definindo a magnificência da obra de<br />
Cesário através da “luta amorosa entre um mundo exterior que poderosamente se impõe e um<br />
mundo interior que ao mesmo tempo assimila esse outro e lhe rege” (PIRES, 1966, p.140). A<br />
multiplicidade de planos e visões aparece em muitos de seus poemas:<br />
os acontecimentos e os temas surgem e desenvolvem-se em múltiplas direções, por<br />
vezes paralelas, por vezes divergentes, distanciando-se, reaproximando-se,<br />
entrecruzando-se para ao cabo se entrelaçarem ou interpenetrarem, vindo a constituir<br />
um con<strong>jun</strong>to poético harmonioso e completo. É o seu processo inédito das<br />
intercessões e entrecruzamentos de planos, panoramas, evocações e sentidos, na<br />
visão das coisas, o que caracteriza a quebra cesariana da unidade do assunto,<br />
ressalvada pela interpenetração dos temas e harmonia final do contexto. (MELO,<br />
1967, p.15)<br />
Em Contrariedades, observa-se o movimento de mergulhar em seu interior, conturbado<br />
pelas “contrariedades” do viver e pelas dificuldades do reconhecimento de seu valor pela crítica,<br />
e o vislumbrar “ali defronte” alguém em pior situação: a tísica, às voltas com o seu trabalho<br />
braçal, também ela abandonada, “devendo a conta à botica”.<br />
A poética cesariana adquire contornos que a aproximam do impressionismo. Tal<br />
característica já se observa nesse registro da impressão que a realidade provoca em seu espírito,<br />
com a interferência da subjetividade na captação da realidade visível, afastando o poeta dos<br />
cânones realistas. Segundo o professor Afrânio Coutinho, o objeto é apresentado pelas<br />
sensações e emoções que desperta na alma do artista, num dado momento, através dos<br />
sentimentos – em vez das coisas, as sensações das coisas (1997, p.325). A razão cede passo às<br />
sensações. Assim, “Uma cena é retratada por uma visão primeira, resultante de uma imagem<br />
que dentro dela se avultou e cuja impressão repentina e dominante passa a envolvê-la”<br />
(PIRES,1966, p.121). Sua arte é feita de impressões imediatas, de pinceladas, de sugestões<br />
diversas, compondo quadros de um autêntico pintor impressionista. O efeito produzido (as<br />
sensações) tem mais valor, artisticamente, que o próprio agente causador (“E fere a vista, com<br />
brancuras quentes,/ A larga rua macadamizada.”, Num Bairro Moderno).<br />
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Há o domínio do momento, do fragmentário, do instável, do móvel, do subjetivo, sobre<br />
a continuidade e a permanência, pois a realidade é um processo em curso, um vir-a-ser. Cesário<br />
percebe o real, o momento, sem contornos definidos, dando a idéia de fugacidade. É um artista<br />
de instantâneos, de impressões rápidas e fugidias, captando o movimento (daí o uso de<br />
gerúndios) e a sua sensação diante do espaço.<br />
A valorização da cor, dos efeitos tonais e da atmosfera revela a influência da pintura:<br />
“Foi quando tu, descendo do burrico,/ Foste colher, sem imposturas tolas,/ A um granzoal azul<br />
de grão-de-bico/ Um ramalhete rubro de papoulas.” (De Tarde).<br />
A técnica impressionista empregada é o “pontilhismo”. Segundo Afrânio Coutinho, o<br />
pontilhismo define-se como a “pintura com palavras, captando a realidade não em estado de<br />
repouso, mas nas impressões e no conhecimento afetivo de aspectos e partes do real” (1997,<br />
p.326). Acrescenta ainda:<br />
Arte de cunho pictórico, o Impressionismo literário acompanha a técnica dominante<br />
na pintura com o “pontilhismo”, o “divisionismo”, acumulando sensações isoladas,<br />
detalhes, para a captação de um mundo de aparências efêmeras, que o leitor<br />
apreende, depois sintetizando, somando os aspectos parciais. O impressionista<br />
“inventa” paisagens, que parecem mais autênticas do que a realidade.<br />
(COUTINHO,1997, p.327-328).<br />
Pode-se afirmar que esta técnica, em Cesário, corresponde à multiplicidade de planos de<br />
sua câmera cinematográfica, que registra o deslocamento de seus olhos, sensações, sentimentos,<br />
trazendo para sua poesia um movimento, fruto da quebra de unidade temática, confirmada ainda<br />
por suas frases curtas, isoladas, fragmentárias.<br />
A própria sintaxe esquemática, oposta à sintaxe estruturada em que se abandonam a<br />
ordem lógica, as ligações con<strong>jun</strong>tivas coordenantes e subordinantes, é já característica do<br />
impressionismo. O modo imperfeito, que visa a dar ao leitor a impressão de que assiste ou<br />
testemunha os fatos descritos, bem como o emprego das formas perifrásticas, do gerúndio e do<br />
infinitivo regido por preposição (por expressarem o aspecto durativo da ação, como já foi<br />
apontado) são largamente encontrados nos poemas de Cesário.<br />
O poema O Sentimento dum Ocidental já evoca, a partir do próprio título, a presença de<br />
um sujeito que mostra, aqui, o seu sentimento de cansaço e de angústia, profunda melancolia a<br />
lhe corroer a alma. Apresenta a realidade como ela é, através de imagens que chocaram as<br />
“sensibilidades” daquela época e que valeram ao poeta a recomendação de Ramalho Ortigão<br />
para que fosse mais Cesário e menos Verde. O texto divide-se em quatro partes, focalizando a<br />
caminhada solitária do eu-lírico pela cidade de Lisboa, desde o entardecer (Ave-Marias) até a<br />
completa escuridão (Horas Mortas), entretecendo espaço e tempo com reflexões e sentimentos:<br />
Na história da poesia da cidade os poemas típicos de Cesário são algo inteiramente<br />
novo, pelo amor juvenil e constante à realidade concreta, vista com olhos de artista<br />
plástico, transposta em séries de instantâneos claros, exactos, flagrantes. (...) Em<br />
“Cristalizações”, “Num Bairro Moderno”, “O Sentimento dum Ocidental”<br />
descobrimos a figura integral de Lisboa. (PRADO COELHO, 1961, p.219)<br />
Analisando a primeira parte, observa-se na primeira estrofe que os elementos exteriores<br />
– cujas idéias são retomadas ao longo do poema – convergem para o interior: “as sombras, o<br />
bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”. Sensações visuais,<br />
auditivas e olfativas interagem com os sentimentos do eu-lírico.<br />
A segunda estrofe focaliza as sombras, mostrando o fechamento, a soturnidade de um<br />
espaço asfixiante, como se as nuvens pressionassem o homem restringindo-o à terra. Configurase<br />
um cenário em que a cidade adquire características londrinas, aproximação explicável pelo<br />
aspecto nebuloso e melancólico com que o eu-lírico percebe Lisboa.<br />
A terceira estrofe descreve a agitação de uma forma impressionista. Ilumina<br />
inicialmente o espaço exterior, observando a noção de perspectiva própria da pintura, com “os<br />
carros d’aluguer, ao fundo”. O foco converge depois para o interior do poeta, que reflete o<br />
descompasso de Portugal em relação aos outros países: sinaliza a felicidade dos que “ganham”<br />
mundo – o que se pode contrapor ao “desejo absurdo de sofrer” dos que permanecem –,<br />
enumerando várias cidades que lhe “ocorrem” sem que da série, em gradação, faça parte Lisboa.<br />
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A próxima estrofe exemplifica cabalmente o impressionismo. À abertura, o emprego do<br />
verbo “Semelham-se” assinala a ligação com esta estética, pois semanticamente acusa uma<br />
comparação que evidencia um olhar individualizador, ao aproximar elementos díspares. Da<br />
mesma forma, as construções em andamento, comparadas a gaiolas, evidenciam o<br />
aprisionamento de que se ressente o ser humano nesse espaço escurecido, asfixiado pelas<br />
sombras. Os dois últimos versos, marcados por sensações auditivas (“ao cair das badaladas”),<br />
cinestésicas (“saltam de viga em viga”) e visuais (os carpinteiros, animalizados, parecem<br />
morcegos, não só pela movimentação, como pela escuridão da noite), mostram um flagrante em<br />
que a realidade (carpinteiros, última palavra da estrofe) perde sua primazia para as sensações<br />
despertadas no poeta e que, por isso, lhe são anteriores sintagmaticamente.<br />
Homem imerso no seu tempo, Cesário percebe o cotidiano das pessoas simples do povo,<br />
como os calafates em sua rusticidade, caracterizando as ações humanas através de verbos no<br />
presente. Tal qual um cinegrafista (e não um fotógrafo), a câmara do poeta registra o momento,<br />
o fragmentário, a cena em seu dinamismo. O exterior, entretanto, atua sobre o interior e eis<br />
Cesário embrenhando-se também pelos “becos” da alma (abandonando as “nossas ruas”), “a<br />
cismar” em sua errância pelos cais de hoje e de ontem. O que “evoca” é a grandiosidade<br />
passada, que não encontra reflexo nesse “monótono” presente, restando apenas as “sombras” a<br />
asfixiar a existência. Ontem, crônicas navais, baixéis e soberbas naus, heróis, aventuras,<br />
conquistas e a literatura salva – Os Lusíadas –, ainda que à custa de muitas lutas. Hoje, “o<br />
sentimento dum ocidental” desencantado, carros d’aluguer, botes e couraçado inglês,<br />
carpinteiros, calafates e varinas, trabalho em que o homem é animalizado e a literatura<br />
destruída, epopéia morta no fundo da gaveta (Contrariedades). Os trabalhadores estão secos,<br />
sem sangue, sem vida, enfadados, arengando, mostrando o conformismo de uma época em que<br />
não há o que fazer e, quando alguém o faz, é sem vitalidade. O pessimismo presente ratifica-se<br />
através de advérbios que projetam a negação no tempo e de um verbo que assinala “o<br />
movimento do presente, indo em direção ao futuro” (SILVEIRA,1995, p.18): “não verei<br />
jamais”. Poucas saídas parecem se oferecer a esse homem, configurando-se antes como fugas ou<br />
amargas reflexões: de um lado, o mundo, através da via férrea; de outro, o passado, pela via da<br />
memória. A movimentação que ele está captando também se passa em seu interior: os bulícios<br />
que hoje apresentam um mundo sem grandes horizontes foram outrora positivos, numa clara<br />
crítica à época e ao espaço presentes pela exaltação do passado. Sobre a mudança do tempo<br />
verbal, devido ao emprego do futuro no verso “Singram soberbas naus que eu não verei<br />
jamais!”, o professor Jorge Fernandes da Silveira assegura que a mudança é também uma<br />
“estratégia de fazer com que um modo de estar no presente resulte em passagem para o futuro.<br />
Ao invés de reduzir a evocação do passado ao saudosismo ou ao fatalismo, o poeta adianta uma<br />
das mais inovadoras proposições de interlocução com o passado: minimizar no presente a<br />
monumentalização do passado (SILVEIRA,1995, p.18). No dizer do Professor José Carlos<br />
Barcellos, “Cesário Verde está muito preocupado com a decadência do Portugal do séc. XIX,<br />
em que lhe coube viver. Melhor dizendo, incomoda-o o contraste entre a grandeza passada,<br />
consignada fundamentalmente no texto de Camões, e a miséria presente, que parece obstruir<br />
qualquer possibilidade de futuro”(1996, p.29-30).<br />
Próximas cenas, o retorno ao bulício da realidade exterior atenua a angústia e o<br />
“incômodo” interiores. Deslocando a sua câmara pelo que vê em torno, registra, em períodos<br />
curtos, impressões auditivas (o “tinir de louças e talheres”, “arengam dois dentistas”), visuais<br />
(“Um trôpego arlequim braceja numas andas”, “Os querubins do lar flutuam nas varandas”, “Às<br />
portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas”) e cinestésicas (“Vazam-se os arsenais e as oficinas”,<br />
comparando as pessoas a líquidos, em um tom pejorativo, uma vez que não assinala qualquer<br />
alegria nessa captação). Visualiza-se a imagem cotidiana da classe humilde dos trabalhadores<br />
em seu movimento diário.<br />
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Chega-se, por fim, aos últimos elementos enumerados na primeira estrofe: o Tejo, a<br />
maresia. Acumulam-se sensações visual e tátil na percepção do rio, que reluz, viscoso: “Nas<br />
suas viagens em círculos pelas ruas de Lisboa, Cesário acaba sempre por chegar à beira dum rio<br />
fechado: o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a<br />
via da glória nacional” (SILVEIRA,1995, p.7). A figura das varinas é também mostrada de<br />
forma impressionista: o poeta apresenta de início a comparação com um “cardume negro”<br />
(entrecruzam-se, provavelmente, o elemento que elas portam em suas canastras, o peixe, com a<br />
cor de suas roupas de mulheres viúvas, pilastras da casa), seguindo-se a configuração heróica,<br />
mas masculinizada, dessas mulheres (“hercúleas”, “troncos varonis” como “pilastras”); elas<br />
trazem, no entanto, o traço da alegria na galhofa que caracteriza muitas vezes o alarido<br />
feminino. Se o presente é marcado pelo aspecto durativo do gerúndio, em uma ação que<br />
semanticamente acentua a força dessas mulheres, “Correndo com firmeza”, o futuro se lhes<br />
configura trágico na percepção do poeta: “embalam nas canastras/ Os filhos que depois<br />
naufragam nas tormentas”, reproduzindo-se no filho a história do pai, num determinismo<br />
característico do período: “Nas rimas das varinas, um sábio deslocamento de actantes é um<br />
valor forte na questão, agora inexorável, de nomear quem é sujeito nessa história de “varões<br />
valerosos” outrora assinalados, e hoje desempregados. (...) Com toda a certeza, as varinas de<br />
troncos varonis representam uma vontade outra de pôr em movimento a questão do ingresso de<br />
Portugal na modernidade.”(SILVEIRA,1995, p. 8-9).<br />
A última estrofe ratifica o desalento e o abandono das varinas, sem nada a se interpor<br />
entre elas e o chão áspero da realidade, sem nada a lhes proteger os pés: “Descalças!”. O último<br />
verso resume a miséria daquele contexto social, vulnerável às epidemias que se espalhariam por<br />
Lisboa (“Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/ E o Cólera também andaram na<br />
cidade”, Nós).<br />
José Carlos Barcellos atenta para o fato de que “Cesário parece vislumbrar uma<br />
possibilidade de recuperação da grandeza perdida, na reconstrução de um novo futuro por parte<br />
das camadas populares” (1996, p.30). Curioso, no entanto, é observar as marcas que trazem as<br />
configurações das personagens focalizadas. Os carpinteiros são comparados a morcegos; os<br />
calafates, aos magotes, aparecem “enfarruscados, secos; os lojistas enfadam-se e dois dentistas<br />
arengam, discurso provavelmente vazio de maior significação, enquanto que através de um<br />
“trôpego arlequim” metaforicamente denunciam-se os esforços de equilíbrio de um povo que<br />
mal caminha pelas próprias pernas, alçado a uma altura maior pelas “andas” (pernas de pau) que<br />
utiliza. Restam as crianças e as mulheres. As primeiras representam uma certa neutralidade e<br />
isenção face aos problemas vigentes, talvez devido à ingenuidade característica da faixa etária:<br />
são “querubins” flutuando ainda distantes desse contexto social, mas potencialmente capazes de<br />
uma ação futura (como o pequerrucho regando a trepadeira, no poema Num Bairro Moderno).<br />
Sobre as mulheres incide também o olhar diferente de Cesário, impregnado mesmo de carinho.<br />
As varinas trazem a marca da galhofa (tal como a tísica de Contrariedades, que canta) e da<br />
alegria, apesar da dor reinante. Contrapondo-se ao “arlequim” e ao eu-lírico, que erra pelos cais,<br />
correm com firmeza. São pilastras a sustentar a própria vida, sofrimento e graça conjugados:<br />
Ave Marias!<br />
Cesário Verde reflete sobre a sociedade de seu tempo e valoriza o cotidiano como forma<br />
de chamar a atenção aos menos favorecidos, percebendo-se em seus poemas uma acentuada<br />
solidariedade para com os humildes, os sofredores, os marginais da vida. Tal se observa Num<br />
Bairro Moderno. O poema evidencia, logo de início, as diferenças sociais: de um lado, a<br />
abundância presente nas casas apalaçadas, com jardins e porcelanas, pequerruchos regando<br />
trepadeiras, o sossego aconchegante de uma “vida fácil”; de outro, a escassez, presente na<br />
fragilidade de uma rapariga “magra”, com roupas rotas e “digestão desconhecida” (fome),<br />
obrigada a apregoar suas couves e hortaliças arrumadas em um gigo extremamente pesado para<br />
uma pessoa “pequenina”, com “bracinhos brancos”, “sem quadris”. Nas casas apalaçadas, a<br />
infância é preservada e registrada poeticamente: “Um pequerrucho rega a trepadeira/ Duma<br />
<strong>jan</strong>ela azul; e, com o ralo/ Do regador, parece que joeira/ Ou que borrifa estrelas; e a poeira/<br />
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.”<br />
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Como em um filme, o poeta focaliza a vendedora numa escada, sendo atendida por um<br />
criado que se sente investido da autoridade própria dos donos da casa, reproduzindo o mesmo<br />
discurso de poder dos que oprimem os menos favorecidos como ele: “Se te convém, despacha;<br />
não converses./ Eu não dou mais”. A desigualdade é reforçada pelo posicionamento espacial: a<br />
rapariga deve estar embaixo, ao pé da escada, enquanto o criado dirige-se a ela do “patamar”,<br />
atirando-lhe a moeda em paga do que comprara. Cesário desloca para o “cobre” adjetivos que<br />
caracterizam a rudeza do criado, enquanto os vegetais são humanizados, provável ponto de<br />
partida para a transfiguração que vão sofrer ao longo do poema (“um cobre lívido, oxidado,/<br />
Que vem bater nas faces duns alperces”).<br />
As hortaliças e legumes na cesta marcam a presença do campo – “um retalho de horta” –<br />
na cidade, na “larga rua macadamizada”. Os vegetais são assimilados à vida citadina, adquirindo<br />
forma humana segundo critérios plásticos (“por anatomia”, “Achava os tons e as formas”). O<br />
processo evidencia tanto o psiquismo do eu-lírico, quanto o fazer poético. O eu-lírico é tomado<br />
de um insight – “Subitamente – que visão de artista!” – e lança a hipótese da transformação,<br />
invocando a ajuda do sol, “o intenso colorista”, o que o aproxima do impressionismo.Volta-se<br />
para o real, captado através de diferentes sensações, inclusive sinestésicas (“Bóiam aromas”),<br />
como se necessitasse de tempo para as idéias amadurecerem. “Aos bocados”, vai efetivando a<br />
“recomposição” do real, sua transfiguração em linguagem poética.<br />
A figura criada apresenta traços femininos, com belas proporções carnais, seios, cabelos<br />
em tranças, colos, ventre, carnes tentadoras. A sensualidade transpira nas entrelinhas do texto. A<br />
fala da rapariga, que pede ajuda ao eu-lírico para levantar a cesta, parece interromper o fluxo de<br />
seus pensamentos. A realidade irrompe retardando e modificando o processo de transformação,<br />
que se opera no espaço do eu-lírico.<br />
O olhar do poeta novamente “deambula” pelo espaço exterior, reorganizando suas<br />
imagens internas. Tendo experimentado o peso do gigo, ele completa a transfiguração dos<br />
vegetais, realçando agora a masculinidade da figura, que passa a conduzir a rapariga: “E, como<br />
as grossas pernas dum gigante,/ Sem tronco, mas atléticas, inteiras,/ Carregam sobre o pobre<br />
caminhante,/ Sobre a verdura rústica, abundante,/ Duas frugais abóboras carneiras.”.<br />
O poeta apresenta-se como um alguém que porta uma filmadora, registrando realidades.<br />
De longe, em plano amplo, focaliza o bairro moderno, às dez horas da manhã, situando-se logo<br />
em seguida de forma avaliativa (judicativa) nesse contexto. Oferece um close da rapariga,<br />
mostrando sua atuação com o criado e a fala deste. Troca a visão do exterior pela “visão de<br />
artista” que interfere na captação da realidade. Escolhendo as imagens externas, mostra a<br />
movimentação de pessoas pela rua – a cidade acorda e toma seu café. O poeta corta a visão<br />
exterior e realiza seu projeto: fixando sua câmara na cesta, promove a transformação dos<br />
vegetais, no que é interrompido pela fala da rapariga. Como um narrador que se desdobra em<br />
personagem, direciona o foco para a sua aproximação da moça, que agora é tratada “sem<br />
desprezo”. Depois, seguindo “para o lado oposto”, como indicação cênica que perspectiva a<br />
distância necessária para retornar à transfiguração, o poeta desliza sua câmara pelo espaço<br />
circundante, até centrar o foco na cesta, completando a imagem criada.<br />
A figura feminina de classes menos favorecidas – representada na tísica de<br />
Contrariedade, nas varinas de O Sentimento dum Ocidental e na rapariga do gigo – conjuga<br />
tristeza e alegria, como se do ponto de vista do poeta essas figuras mal tivessem consciência da<br />
vida miserável a que estão condenadas. Cesário Verde, como elas, não faz apologia de reformas<br />
e ações sociais, como se “alienado” fosse; entretanto, denuncia com eloqüente precisão as<br />
desigualdades e as injustiças que apresenta em seus textos – “Que mundo! Coitadinha!” –,<br />
sentindo-se atingido por essa “desgraça alegre que me incita”, provavelmente a escrever.<br />
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Cesário Verde é ainda inovador ao criar “em toda mensagem lírica portuguesa a poesiareportagem,<br />
que iria florescer nos campos modernos” (PIRES,1966, p.142). O poeta mostra as<br />
transformações ocorridas em Lisboa, com as novas “edificações somente emadeiradas” e seu<br />
surto das novas classes, a burguesia e o operariado, expondo condições de vida contrastantes.<br />
Desastre é um poema que ilustra essa característica cesariana: relata o acidente envolvendo “um<br />
rapaz servente de pedreiro” que “Caíra dum andaime e dera com o peito,/ Pesada e secamente,<br />
em cima duns tapumes.”: “No primeiro verso, o servente de pedreiro, que caíra, está já às portas<br />
da morte. Esta abertura surpreendente, sem preparação descritiva, serve não só para comunicar<br />
o insolite quotidien, mas também, paradoxalmente, para sugerir a normalidade relativa dum<br />
desastre que prescinde de explicação prévia” (LAIDLAR,1986, p.51). O texto caracteriza a<br />
vítima, o “desastre” e a reação dos transeuntes, através de uma visão cinematográfica que<br />
quebra com a linearidade da “história narrada”, da reportagem. As diferenças sociais avultam.<br />
O “garoto” é descrito como “enjeitado”, “Não conhecera os pais, nem aprendera a ler”.<br />
Trabalhava excessivamente “para não morrer/ De bagas de suor tinha uma vida cheia”; desde os<br />
seis anos de idade vendia jornais, “criança escrava”. Seu salário – “oito vinténs ou menos” –<br />
provavelmente mal dava para sopas, como a tísica, o que justifica a fraqueza de seu “corpinho”,<br />
o “fato remendado e sujo da caliça”. Conseguiu suportar “a doença, as privações cruéis”, mas<br />
sucumbe por fim. Estonteado e fraco, sente-se atraído pelo mar – “que abismo!” – e pelo sol –<br />
“que labareda!” –, indicando a liberdade, o calor e a energia vital de que carece para sobreviver:<br />
“rolou nas atrações da queda”.<br />
O início do texto mostra-o numa maca, a caminho do hospital. Sua trajetória é costurada<br />
pelos comentários das pessoas: o sofrimento contrasta de início com o silêncio indiferente de<br />
dândis e cocotes, passageiros e cocheiros; ao silêncio ou ignorância, pela morte, sobrepõe-se o<br />
descaso social. Na figura de “um bom poeta”, que ri e se embebeda, Cesário critica o interesse<br />
de quem vê no acidente um “episódio”, uma “cena tão faceta”, esvaziada de seu conteúdo<br />
trágico. Somente um preto e “a gente da província” (e a natureza, representada pela brisa)<br />
condoem-se da sorte do rapaz. As pessoas da cidade mostram a corrosão dos sentimentos<br />
humanos: “Esta expressão da anonímia citadina e da alienação dos indivíduos uns dos outros é<br />
característica social que não se manifesta nos versos “realistas” dos poetas contemporâneos de<br />
Cesário” (LAIDLAR,1986, p.52).<br />
A aristocracia se faz representar pelo “fidalgote” (cujo diminutivo acentua o tom<br />
pejorativo) acompanhado não de senhoras, mas de “duas prostitutas”; a soberba desse homem –<br />
já condenado no Auto da Barca do Inferno – aflora em sua indignação com os murmurinhos<br />
sobre o acidente, como se “um servente de pedreiro” representasse absolutamente nada no<br />
contexto social.<br />
A crítica cesariana recai também sobre o poder político. Um democrata comenta as<br />
intenções de um ministro prostituído por seu egoísmo, envolvido em manobras eleitoreiras ou<br />
amorosas: "Aonde irás, ministro!/ Comprar um eleitor? Adormecer num seio?". O eu-lírico<br />
manifesta-se no poema ao insinuar a culpa dos poderosos na desgraça dos humildes, suspeitando<br />
que aquele homem “– Conservador que esmaga o povo com impostos –/ Mandava arremessar -<br />
que gozo! estar solteiro! –/ Os filhos naturais à roda dos expostos...”. A ironia realça o absurdo<br />
da situação, sobre a qual “Deite-se um grande véu...”. O clero aparece compactuando com esse<br />
poder, evidenciando uma atitude que beira à adulação, rejeitada por Cesário no poema<br />
Contrariedades: “E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.”<br />
O tempo atravessa o texto: há referências ao sol e à sesta, momento em que se dá a<br />
queda; quando o enterro acontece, “anoitecia”, como se o sol pudesse se apartar desse mundo,<br />
reforçando a escuridão, as trevas. A solidão e o desamparo desse “desgraçado” em vida se<br />
reduplicam na morte, reafirmando a miséria humana: é enterrado “sem o adeus dos rudes<br />
camaradas:/ Isto porque o patrão negou-lhes a licença,” pretextando atraso nas obras. Ao<br />
“soletrar a narração do fato”, que aparece num local insignificante de algum jornal, o patrão<br />
demonstra o seu parco letramento, a sua ignorância sobre letras e ternura humana. Irritado,<br />
macula a própria verdade de uma morte em que lhe cabe uma grande parcela de culpa:<br />
“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”.<br />
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Se o herói se configura pelo feito que ultrapassa a medida humana, aqui é a dor que se<br />
mostra imensa, ultrapassando a condição humana de suportá-la: “As lutas, afinal,/ Deixavam<br />
repousar essa criança escrava,”. A sociedade é caracterizada pela corrupção, pela<br />
insensibilidade, pelo materialismo; a honra reside no plano do rapaz, aparecendo como advérbio<br />
de modo ao modificar o verbo que caracteriza sua morte: “Findara honradamente.” Diferente de<br />
Sísifo, o rapaz não consegue empurrar todo dia sua pedra para o andaime de uma obra que,<br />
longe de dignificar o ser, antes o avilta. Prometeu sem correntes físicas, sucumbe à vertigem da<br />
queda imposta aos pequenos, não pelos deuses, mas pela ganância desumana do próprio homem.<br />
Segundo Leyla Perrone-Moisés,<br />
Em poemas como "Num bairro moderno", "Cristalizações" e, sobretudo, "O<br />
sentimento de um Ocidental", o poeta revela uma notável intuição (mais do que uma<br />
consciência) dos desacertos sociais e das dores advindas do "progresso". Mas<br />
descobre, ao mesmo tempo, as possibilidades de exploração poética dessa nova<br />
realidade desconcertada e desconcertante. Com uma ousadia de que nem ele mesmo<br />
parecia se dar conta (já que esperava o reconhecimento de seu meio), Cesário<br />
enveredou por um caminho que só os modernistas do século seguinte poderiam<br />
reconhecer como fértil: a poesia que capta a estranheza oculta na banalidade e a<br />
música latente na coloquialidade. (...) A novidade de Cesário, no ambiente português<br />
de seu tempo, não podia ser reconhecida. Por isso, ele tinha razão em dizer numa<br />
carta: «literariamente parece que Cesário Verde não existe». 19 Nesse sentido, ele foi<br />
um "astro sem atmosfera". Seu relógio poético estava adiantado. Embora o não<br />
reconhecimento de seus pares magoasse o poeta, ele não fez qualquer concessão<br />
para ser melhor recebido. Como ele, os poetas do século XX aceitarão a perda da<br />
aura e praticarão uma poesia da realidade cotidiana, assumindo a tarefa de dar<br />
dignidade poética a uma matéria despoetizada.<br />
A modernidade de Cesário Verde, portanto, é hoje inquestionável, rompendo com toda<br />
uma tradição normatizadora que asfixia um poeta de sua estirpe. Um dos primeiros a consagrar<br />
sua importância foi Fernando Pessoa. Segundo o professor Jorge Fernandes da Silveira, “No<br />
seu modo diferente de estar na linguagem, de escrever Portugal, Cesário Verde vê o outro, a si<br />
mesmo e o outro de si mesmo. Só isto já lhe garante o título de pioneiro do modernismo<br />
português quase seu contemporâneo,”(SILVEIRA,1995, p.11), afirmando ainda que “Cesário rise<br />
para dentro, sabe-se, pós-modernamente, um homem português.” (SILVEIRA,1995, p. 23).<br />
Os flagrantes filtrados por olhar de poeta fazem de Cesário Verde um exímio observador<br />
da realidade humana de sua época. Sua visão transfigura-se em poesia para todos os tempos.<br />
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O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL<br />
Junqueiro<br />
I<br />
AVE-MARIAS<br />
Nas nossas ruas, ao anoitecer,<br />
Há tal soturnidade, há tal melancolia,<br />
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia<br />
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.<br />
O céu parece baixo e de neblina,<br />
O gás extravasado enjoa-me, perturba;<br />
E os edifícios, com as chaminés, e a turba<br />
Toldam-se duma cor monótona e londrina.<br />
Batem os carros d’ aluguer, ao fundo,<br />
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!<br />
Ocorrem-me em revistas exposições, países:<br />
Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!<br />
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,<br />
As edificações somente emadeiradas:<br />
Como morcegos, ao cair das badaladas,<br />
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.<br />
A Guerra<br />
Voltam os calafates, aos magotes,<br />
De jaquetão de ombro, enfarruscados, secos;<br />
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,<br />
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.<br />
E evoco, então, as crônicas navais:<br />
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!<br />
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!<br />
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!<br />
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!<br />
De um couraçado inglês vogam os escaleres;<br />
E em terra num tinir de louças e talheres<br />
Flamejam, ao <strong>jan</strong>tar, alguns hotéis da moda.<br />
Num trem de praça arengam dois dentistas;<br />
Um trôpego arlequim braceja numas andas;<br />
Os querubins do lar flutuam nas varandas;<br />
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!<br />
Vazam-se os arsenais e as oficinas;<br />
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;<br />
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras.<br />
Correndo com firmeza, assomam as varinas.<br />
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Vêm sacudindo as ancas opulentas!<br />
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;<br />
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras<br />
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.<br />
Descalças! Nas descargas de carvão,<br />
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;<br />
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,<br />
E o peixe podre gera os focos de infecção!<br />
Porto, Portugal a Camões, publicação extraordinária do<br />
Jornal de Viagens, 10 de <strong>jun</strong>ho de 1880.<br />
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p.<br />
116-117)<br />
NUM BAIRRO MODERNO<br />
A Manuel Ribeiro<br />
Dez horas da manhã; os transparentes<br />
Matizam uma casa apalaçada;<br />
Pelos jardins estancam-se os nascentes,<br />
E fere a vista, com brancuras quentes,<br />
A larga rua macadamizada.<br />
Rez-de-chaussée repousam sossegados,<br />
Abriram-se, nalguns, as persianas,<br />
E dum ou doutro, em quartos estucados,<br />
Ou entre a rama dos papéis pintados,<br />
Reluzem, num almoço, as porcelanas.<br />
Como é saudável ter o seu conchego,<br />
E a sua vida fácil! Eu descia,<br />
Sem muita pressa, para o meu emprego,<br />
Aonde agora quase sempre chego<br />
Com as tonturas duma apoplexia.<br />
E rota, pequenina, azafamada,<br />
Notei de costas uma rapariga,<br />
Que no xadrez marmóreo duma escada,<br />
Como um retalho de horta aglomerada,<br />
Pousara, ajoelhando, a sua giga.<br />
E eu, apesar do sol, examinei-a:<br />
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;<br />
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,<br />
Se ela se curva, esguedelhada, feia,<br />
E pendurando os seus bracinhos brancos.<br />
Do patamar responde-lhe um criado:<br />
“Se te convém, despacha; não converses.<br />
Eu não dou mais”. E muito descansado,<br />
Atira um cobre lívido, oxidado,<br />
Que vem bater nas faces duns alperces.<br />
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Subitamente – que visão de artista! –<br />
Se eu transformasse os simples vegetais,<br />
À luz do sol, o intenso colorista,<br />
Num ser humano que se mova e exista<br />
Cheio de belas proporções carnais?!<br />
Bóiam aromas, fumos de cozinha;<br />
Com o cabaz às costas, e vergando,<br />
Sobem padeiros, claros de farinha;<br />
E às portas, uma ou outra campainha<br />
Toca, frenética, de vez em quando.<br />
E eu recompunha, por anatomia,<br />
Um novo corpo orgânico, aos bocados.<br />
Achava os tons e as formas. Descobria<br />
Uma cabeça numa melancia,<br />
E nuns repolhos seios injetados.<br />
As azeitonas, que nos dão o azeite,<br />
Negras e unidas, entre verdes folhos,<br />
São tranças dum cabelo que se ajeite;<br />
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,<br />
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.<br />
Há colos, ombros, bocas, um semblante<br />
Nas posições de certos frutos. E entre<br />
As hortaliças, túmido, fragrante,<br />
Como dalguém que tudo aquilo <strong>jan</strong>te,<br />
Surge um melão, que me lembrou um ventre.<br />
E, como um feto, enfim, que se dilate,<br />
Vi nos legumes carnes tentadoras,<br />
Sangue na ginja vívida, escarlate,<br />
Bons corações pulsando no tomate<br />
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.<br />
O sol dourava o céu. E a regateira,<br />
Como vendera a sua fresca alface<br />
E dera o ramo de hortelã que cheira,<br />
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:<br />
“Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...”<br />
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;<br />
E, pelas duas asas a quebrar,<br />
Nós levantamos todo aquele peso<br />
Que ao chão da pedra resistia preso,<br />
Com um enorme esforço muscular.<br />
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”<br />
E recebi, naquela despedida,<br />
As forças, a alegria, a plenitude,<br />
Que brotam dum excesso de virtude<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 82
Ou duma digestão desconhecida.<br />
E enquanto sigo para o lado oposto,<br />
E ao longe rodam umas carruagens,<br />
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,<br />
Descolorida nas maçãs do rosto,<br />
E sem quadris na saia de ramagens.<br />
Um pequerrucho rega a trepadeira<br />
Duma <strong>jan</strong>ela azul; e, com o ralo<br />
Do regador, parece que joeira<br />
Ou que borrifa estrelas; e a poeira<br />
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.<br />
Chegam do gigo emanações sadias,<br />
Oiço um canário – que infantil chilrada! –<br />
Lidam ménages entre as gelosias,<br />
E o sol estende, pelas frontarias,<br />
Seus raios de laranja destilada.<br />
E pitoresca e audaz, na sua chita,<br />
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,<br />
Duma desgraça alegre que me incita,<br />
Ela apregoa, magra, enfezadita,<br />
As suas couves repolhudas, largas.<br />
E, como as grossas pernas dum gigante,<br />
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,<br />
Carregam sobre o pobre caminhante,<br />
Sobre a verdura rústica, abundante,<br />
Duas frugais abóboras carneiras.<br />
Lisboa, Verão de1877 – Lisboa, brinde aos<br />
assinantes do Diário de Notícias (1877).<br />
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 96-99)<br />
DESASTRE<br />
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,<br />
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;<br />
Caíra dum andaime e dera com o peito,<br />
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.<br />
A brisa que balouça as árvores das praças,<br />
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,<br />
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,<br />
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.<br />
Um preto, que sustinha o peso dum varal,<br />
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"<br />
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,<br />
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 83
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,<br />
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros<br />
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,<br />
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.<br />
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,<br />
A rir e a conversar numa cervejaria,<br />
Gritava para alguns:"Que cena tão faceta!<br />
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.<br />
Findara honradamente. As lutas, afinal,<br />
Deixavam repousar essa criança escrava,<br />
E a gente da província, atônita, exclamava:<br />
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"<br />
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;<br />
Mornas essências vêm duma perfumaria,<br />
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,<br />
Numa travessa escura em que não entra o dia!<br />
Um fidalgote brada a duas prostitutas:<br />
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"<br />
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas<br />
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.<br />
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,<br />
De bagas de suor tinha uma vida cheia;<br />
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,<br />
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.<br />
Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,<br />
Sentira a exalação da tarde abafadiça;<br />
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco<br />
E o fato remendado e sujo da caliça.<br />
Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,<br />
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!<br />
"Os vultos, lá embaixo, oh! como são pequenos!"<br />
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.<br />
O mísero a doença, as privações cruéis<br />
Soubera repelir - ataques desumanos!<br />
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos<br />
Andara a apregoar diários de dez-réis.<br />
Anoitecia então. O féretro sinistro<br />
Cruzou com um coupé seguido dum correio,<br />
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!<br />
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"<br />
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,<br />
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 84
1.1 Referências bibliográficas<br />
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -<br />
Os filhos naturais à roda dos expostos...<br />
Mas não, não pode ser ... Deite-se um grande véu...<br />
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!<br />
Todos os figurões cortejam-no risonhos<br />
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.<br />
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,<br />
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:<br />
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,<br />
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.<br />
E antes, ao soletrar a narração do fato,<br />
Vinda numa local hipócrita e ligeira,<br />
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:<br />
"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"<br />
Lisboa. Porto, O Porto, 30 de Outubro de<br />
1875.<br />
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 90-92)<br />
BARCELLOS, José Carlos.“Camões, Cesário, Pessoa: permanência e ruptura”. Caderno<br />
Seminal. Rio de Janeiro: ED<strong>UERJ</strong>, ano 3, nº 3 , 1996.<br />
COUTINHO, Afrânio (direção) A literatura no Brasil – era realista, era de<br />
transição. v. IV, São Paulo : Global, 1997.<br />
FERRETTI, Regina Michelli. “Glória ao sempre verde Cesário”. In: Singularidades de uma<br />
cultura plural – XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura<br />
Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação<br />
Universitária José Bonifácio, Fundação Brasil-Portugal, 1992.<br />
LAIDLAR, John. “Na encruzilhada: “Desastre” de Cesário Verde”. Colóquio/ Letras, nº 93.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, set.1986. Volume especial sobre Cesário Verde.<br />
MELO, Martinho Nobre de. “Apresentação”. In: VERDE, Cesário. Cesário Verde,<br />
poesia. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1967, Coleção Nossos Clássicos.<br />
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1974.<br />
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Cesário Verde: um "astro sem atmosfera?" Sexto Congresso da<br />
Associação Internacional de Lusitanistas. http://www.geocities.com/ail_br/ail.html.<br />
PIRES, Orlando. Cesário Verde precursor e clássico. Rio de Janeiro: Imprensa Exército, 1966.<br />
PRADO COELHO, Jacinto do. Problemática da história literária. Lisboa: Ática, 1961.<br />
SARAIVA, António José e LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto:<br />
Porto, 1996.<br />
SILVEIRA, Jorge Fernandes. “Cesário – Duas ou Três Coisas”. In: VERDE, Cesário. Cesário<br />
Verde: todos os poemas. Org. e introdução de Jorge Fernandes da Silveira. Rio de Janeiro:<br />
Sette Letras, 1995.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 85
______. “Notas para um trabalho sobre a apreensão da realidade na poesia de Cesário Verde”.<br />
In: Gilda Santos, Jorge Fernandes da Silveira e Teresa Cristina Cerdeira da Silva (org.)<br />
Cleonice, clara em sua geração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995a.<br />
VERDE, Cesário. O Livro de Cesário Verde. Int. de António Capão. Porto: Paisagem, 1982.<br />
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FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA<br />
ORAÇÃO<br />
Manuel Ferreira da Costa 16 (<strong>UERJ</strong>)<br />
INTRODUÇÃO<br />
A idéia deste trabalho monográfico nasceu das leituras e discussões do curso Domínio<br />
lexical e representação da experiência através de textos, ministrado pela prof.dr. Darcilia M.<br />
Pinto Simões, curso de Doutorado, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2 º semestre<br />
de 2002.<br />
A partir da leitura de A gramática - história, teoria e análise, ensino, de Maria Helena<br />
de Moura Neves, em que faz uma abordagem funcional da gramática da língua portuguesa,<br />
pensamos em aplicar a teoria funcional da gramática ao tradicional estudo do “sujeito” como<br />
termo essencial da oração.<br />
TEMA E DELIMITAÇÃO<br />
Apresentamos esta monografia com um tema específico: as relações semânticas dos<br />
chamados termos essenciais da oração. Isto significa que analisaremos o que tradicionalmente<br />
se conhece por sujeito e predicado Para tal, nos valeremos de uma teoria funcional da<br />
linguagem ou ─ como também é conhecida ─ da gramática das valências.<br />
SITUAÇÃO PROBLEMA<br />
Já é consenso perguntar para que se ensina língua portuguesa a um falante nativo. O que<br />
tem predominado são atividades metalingüísticas de descrição da língua como um objeto<br />
abstraído de seu uso, fora de uma atividade discursiva.<br />
Segundo Neves 17 o que predomina nesse estudo tanto descritivo como prescritivo é uma<br />
análise das classes de palavras e suas funções sintáticas, com o objetivo da análise pela análise.<br />
O reconhecimento (e outras atividades meramente classificatórias ou de competência cognitiva<br />
indicial) de classes de palavras ocupa 39,71% das atividades pedagógicas, enquanto o<br />
reconhecimento (e outras atividades indiciais) das funções sintáticas chega a 35,85% do tempo<br />
gasto no ensino da língua portuguesa. Os exercícios de classes de palavras e funções sintáticas<br />
ocupam 75,56% do total.<br />
Percebe-se que há aí uma teoria gramatical subjacente. Trata-se de uma gramática<br />
prescritiva, com um con<strong>jun</strong>to de regras de bom uso (gramática normativa) e uma gramática<br />
descritiva, com a apresentação das entidades de uma língua e suas funções.<br />
Porque a gramática normativa foi tão combatida como se fosse uma forma de opressão,<br />
os professores, pressionados pelo mercado ou pela má orientação das aulas de lingüística nos<br />
cursos de formação, passaram a privilegiar a gramática descritiva, de base estruturalista. Ainda<br />
venho do tempo em que nos concursos públicos se exigia o conhecimento estruturalista da<br />
língua e que depois era repassado em sala de aula para os alunos.<br />
16 O autor é doutorando em Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong> e docente aposentado do Colégio Pedro II.<br />
17 NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.<br />
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Exatamente porque se privilegiam esses dois pontos de vista (além disso, aplicados de<br />
forma estanque), não surpreende “o desprezo pela atividade essencial da reflexão e operação<br />
sobre a linguagem” 18 , Na verdade, há muita atividade sobre a linguagem (operações<br />
metalingüísticas), mas quase nada de atividades de linguagem (operações lingüísticas) e<br />
atividades com a linguagem (operações epilingüísticas). Pouco, muito pouco, é o espaço<br />
reservado para a reflexão sobre os procedimentos em uso, sobre os propósitos do texto, sobre os<br />
efeitos de sentido da escolha desta ou daquela palavra, desta ou daquela construção sintática.<br />
De modo geral, a concepção vigente é de que a língua não passa de um instrumento de<br />
comunicação e não se levam em conta os sujeitos que a usam para interagirem e o contexto do<br />
momento da comunicação.<br />
Além disso, voltamos a frisar, que, de modo geral, e de forma repetida, são atividades<br />
que privilegiam o reconhecimento, indicação, classificação, definição (operação cognitiva<br />
indicial) desses elementos. Em verdade, tal pedagogia constitui, em vista de sua<br />
operacionalidade, um “adestramento” sob a máscara de que se ensinam esses conteúdos para<br />
levar o aluno à “falar e escrever melhor”, quando na verdade os professores reconhecem que o<br />
ensino de gramática “não serve para nada”.<br />
Diante disso, há outra atitude extrema: a abolição dos estudos de gramática na escola. A<br />
língua portuguesa virou desaguadouro de todas as matérias, lugar de uma interdisciplinaridade<br />
mal compreendida. Compete ao professor de português trazer material didático (jornais,<br />
revistas, letras de música, filmes etc.) e discutir com os alunos os temas transversais que estão<br />
na “onda”.dos meios de comunicação. O estudo de língua portuguesa perde seu objeto próprio e<br />
os alunos até já sabem que “português não precisa estudar”. Desgraçadamente, português está se<br />
tornando a mais interdisciplinar (!) das disciplinas. Qualquer um (penso também em qualquer<br />
professor de outra área) dá sua opinião. Melhor: palpite. O professor Evanildo Bechara tem<br />
levantado sua voz contra esse estado de coisas dizendo que qualquer aluno (até um estrangeiro<br />
que tem o português como língua instrumental) tendo uma boa capacidade de interpretação, não<br />
precisa saber português.<br />
3) JUSTIFICATIVA<br />
Tendo em vista este problema (conhecido como o fracasso do ensino da língua)<br />
apontamos para a hipótese de que uma redefinição do objeto, um novo ponto de vista pode<br />
oferecer algumas soluções. Desde já, porém, acreditamos que sejam provisórias, porque em<br />
ciência nada é definitivo. Mas se provisórias, isto não quer dizer que não sejam mais adequadas<br />
para o momento.<br />
Um outro motivo que nos leva a esta monografia foi a recente experiência que tivemos<br />
ao fazer parte da banca de seleção do concurso público para professores do Colégio Pedro II.<br />
Colocados diante do tema “o sujeito - seus papéis temáticos ou funções semânticas”, foram<br />
muito poucos os candidatos que conseguiram desenvolver a contento tal tema. De modo geral,<br />
limitaram-se a um comentário superficial do “sujeito como aquele de quem se diz alguma coisa”<br />
ou “sujeito como o ser que pratica a ação”. Mesmo criticando essas definições, a maioria passou<br />
à tradicional classificação de sujeito simples, composto, indeterminado ou inexistente. Sem<br />
perceberem o alcance do tema, essa grande maioria ficou rodando em torna da identificação<br />
sintática de sujeito como elemento que concorda com o verbo. Se uma instituição tiver como<br />
orientação pedagógica um ensino funcional da língua, o referido concurso revelou que é pouca a<br />
mão-de-obra disponível.<br />
Foi, sobretudo, esta experiência que nos levou a pensar esta monografia. Ao contrário<br />
de teóricos encastelados e coroados nas suas academias, nós, trabalhando com o ensino<br />
fundamental e médio, sentimos, na prática as dificuldades do problema. Esta monografia,<br />
podemos dizer, “vem da grande tribulação” e esperamos que possa contribuir para aqueles que<br />
estão nessa mesma “tribulação”.<br />
18 NEVES, opus cit. p. 41.<br />
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4) Fundamentação teórica<br />
Para fazer esta abordagem do tema, vamos nos valer da teoria da gramática das<br />
valências. Cumpre esclarecer que apesar de não possuirmos vasta bibliografia sobre o assunto, o<br />
que aqui vamos expor tem muito de prática de sala de aula.<br />
A primeira coisa a salientar é o fato de que tomamos o verbo como elemento central de<br />
nossas análises. Isto já vem de longe, desde o ensinamento de Carone 19 . Segundo a lógica da<br />
gramática tradicional o SN (sujeito - tema) teria de ser o ponto de partida, seguido do SV, como<br />
rema, comentário desse tema. Partir-se-ia do conhecido para o desconhecido. Porém, a autora<br />
advoga que “os conceitos lógicos de sujeito e predicados transcendem a gramática da língua,<br />
pertencem à outra faixa de cogitações” (p.61). Devemos separar a análise lingüística da análise<br />
lógica. Citando Tesnière 20 , o “verbo [é a palavra] à qual todas [as outras palavras] se prendem,<br />
(...) constitui o ‘o nó dos nós’”. Isto dito em 1991 por Carone é confirmado, doze anos mais<br />
tarde, por Neves 21 , quando nos diz que “o conceito de valência se vincula à consideração da<br />
centralidade do verbo na análise da frase” .<br />
Neves advoga que a proposição (o juízo) só se forma quando ao tema (um ‘ónoma’) se<br />
acrescenta um rema (um verbo). Essa teoria bipartida é antiga. Vem de Aristóteles, que definia<br />
uma proposição (juízo) como a relação entre dois termos: um ónoma (nome) e um rhêma<br />
(verbo), o que originou a famosa estrutura lógica conhecida como S é P (sujeito / predicado). Na<br />
posição de predicado ficariam os termos universais, de maior extensão. Foi esse ponto de vista<br />
que gerou todo o estudo tradicional de uma teoria gramatical.<br />
Diferente de Aristóteles temos os estóicos. Segundo estes, não se bipartem os termos (S<br />
é P). Não temos uma lógica de termos, mas do predicado, entendido este como um<br />
acontecimento, um dizível (lékton). Este “dizível” pode ser esclarecido pela diferença que, mais<br />
tarde, se fez entre o “referente” e a “referência”. O primeiro é o que está fora da língua. O<br />
segundo é o modo de dizer o primeiro. No dizível “a mãe lava roupa”, há uma transformação<br />
corporal no plano dos referentes, mas no plano do “lékton” temos transformações incorporais.<br />
Sendo planos diferentes, os nós do dizível são diferentes do mundo dos objetos.<br />
No plano do dizível forma-se, segundo Tesnière, um pequeno drama (ação verbal) em<br />
que o verbo figura como o “enredo” e dele participam personagens num determinado cenário ou<br />
circunstâncias.<br />
Assim como no mundo dos corporais os objetos estabelecem relações entre eles, no<br />
mundo dos incorporais, da ação verbal, as palavras também formam um tecido de relações em<br />
que o verbo é, numa linguagem bíblica, a ‘pedra angular’ ou, o ‘nó dos nós’. Em termos de<br />
análise lingüística chama-se essa ‘pedra angular’ de predicador, o hierarquizante de nível<br />
superior. Os ‘personagens’ são denominados de actantes, obrigatórios ou facultativos<br />
(circunscritantes).<br />
Segundo Charaudeau 22 ,entende-se por actante “um ser, humano ou não, relacionado com<br />
uma ação e dentro da qual desempenha um certo papel em função de sua relação com o<br />
processo acional e outros actantes”. Mas o autor é um pouco confuso, porque na p.381, diz<br />
expressamente que “não se confundirá actante e ser”. O último é um elemento extralingüístico,<br />
enquanto que o primeiro se define e não existe senão na relação com um predicador.<br />
Dessa forma, o actante relaciona-se com o processo e com outros actantes. Além disso,<br />
para entendê-lo é preciso levar em conta seu papel e a qualificação (os traços semânticos) do<br />
elemento que o exerce.<br />
19<br />
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1991 (Fundamentos)<br />
20<br />
TESNIÈRE, Lucien. Eléments de syntaxe structurare. Paris: Klincksiek, 1969, p. 14-15.<br />
21<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática- história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp,<br />
2002<br />
22<br />
CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression.. Paris: Hachette Livre, 1992, p.380-381<br />
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O número de actantes ou argumentos obrigatórios (constituintes indispensáveis) que um<br />
verbo pode reger constitui, segundo Tesnière, a sua valência. Os argumentos de um verbo são<br />
em número limitado, enquanto os circunstantes são em número ilimitado. Estes não são<br />
determinados pela valência do verbo. São os chamados, tradicionalmente, de ad<strong>jun</strong>tos<br />
adverbiais.<br />
Segundo os autores da teoria, um verbo apresenta no máximo três valências<br />
(predicadores). Porém se considerarmos que Ǿ também é uma valência, podemos dizer<br />
que, na verdade, são quatro. Assim, há verbos de valência Ǿ, (avalentes) de valência 1,<br />
(monovalentes) de valência 2 (bivalentes) e de valência 3 (trivalentes).<br />
De acordo com Neves (2002: 105), “semanticamente, o primeiro actante realiza a ação,<br />
o segundo a completa e é por ela afetado, e o terceiro recebe algo em proveito ou prejuízo”. O<br />
modalizador, semanticamente, já está apontando para os papéis semânticos dos termos da<br />
oração (sujeito, CD e CI).<br />
Embora se possa fazer uma separação entre actantes (argumentos) como elementos<br />
obrigatórios e circunscritantes como elementos facultativos, porque há circunscritantes também<br />
obrigatórios (verdadeiros complementos integrantes), de qualquer forma, a teoria tem a grande<br />
vantagem de equiparar o sujeito aos demais complementos e de considerar a frase não como<br />
uma construção linear de termos justapostos, mas hierarquizados, isto é, “amarrados” a um<br />
verbo predicador.<br />
Não desconhecemos que além do verbo, os nomes e os adjetivos dos chamados verbos<br />
de “ligação” ou “estativos” também podem ser predicadores.<br />
Mas, como prática geral, a partir do verbo há casas vazias que são preenchidas com<br />
argumentos. Na nossa prática didática temos mostrado essa hierarquia de funções por meio de<br />
uma visualização da construção da frase. Antes dessa visualização, aplicamos sinais<br />
matemáticos (chaves, colchetes e parênteses) para que os alunos percebam os nós sintagmáticos<br />
entre as palavras. O verbo vem sempre entre chaves. Logicamente que iniciamos com<br />
proposições simples até chegar às mais complexas<br />
(1) IMAGINAÇÃO DÁ FORMA A PRESÉPIO<br />
(Globo Baixada,22, dez.02, p. 23)<br />
A primeira operação é separar os termos por meio dos sinais matemáticos:<br />
[Imaginação] {dá} [forma] a [presépio]]<br />
Como se percebe, o verbo representa o predicador entre chaves e três actantes<br />
(argumentos), sendo que o último é regido por preposição.<br />
Após este primeiro passo, fazemos uma espécie de árvore das hierarquias<br />
dá<br />
imaginação forma a presépio<br />
(2) COMÉRCIO FUNCIONA EM HORÁRIO ESPECIAL<br />
(idem, p. 13)<br />
[Comércio] {funciona} [em (horário) especial]<br />
funciona<br />
comércio em horário<br />
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especial<br />
Percebe-se, no enunciado, o predicador verbal com dois argumentos (sujeito e um<br />
ad<strong>jun</strong>to adverbial). Esse último, devido à situação comunicativa, não parece assim tão<br />
facultativo. De modo que se não o podemos chamar de “complemento relativo”, é, pelo menos<br />
um complemento ou um ad<strong>jun</strong>to verbal. Observe-se, também que o termo horário serve como<br />
predicador do termo especial, argumento de horário. É a situação comunicativa que determina<br />
o preenchimento das casas vazias. A situação comunicativa (o contexto, a perspectiva<br />
determinada pelas necessidades e intenções comunicativas) determina a quantidade e a<br />
qualidade dos argumentos.<br />
É possível, nesse nível, já trabalhar as preposições como “elementos transpositores” de<br />
classes de palavras. Assim, o con<strong>jun</strong>to [(horário) especial] passa a funcionar como uma locução<br />
adverbial, tendo como núcleo o termo superior.<br />
(3) DRAGAGEM DE RIOS, CANAIS E VALÕES FAZ PARTE DO PLANO<br />
DE EMERGÊNCIAS. (idem, p.3)<br />
A esta altura, já se focalizou a con<strong>jun</strong>ção (soma) de elementos. Como só se podem<br />
somar elementos do mesmo valor, então eles pertencem a um mesmo con<strong>jun</strong>to. Como já se<br />
dispõe da con<strong>jun</strong>ção como conector, é, relativamente, fácil para o aluno fazer o agrupamento<br />
dos con<strong>jun</strong>tos.f<br />
[(dragagem) de rios +canais + valões] {faz} [(parte) do ((plano)) de emergências]<br />
Numa visualização teríamos:<br />
Faz<br />
Dragagem parte<br />
de rios, canais, valões do plano<br />
de emergências<br />
A visualização das hierarquias mostra que o elemento superior é predicador<br />
(subordinante) em relação ao inferior (subordinado). A esta relação de subordinante /<br />
subordinado, os autores se valem do termo reccção (regência). Como se percebe a recção<br />
aplica-se tanto a verbos como a nomes (ou pronomes).<br />
Também colocamos os argumentos em duas caixas (contêineres) de modo que nos<br />
parece mais fácil pereceber os dois actantes (supeito e CD) e suas recções.<br />
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É bom que se diga que isto é apenas um recurso pedagógico para a percepção do aluno.<br />
Compete ao professor saber fazer essa montagem. Não exigimos isso do aluno, mas se ele<br />
souber fazê-lo, será um grande avanço na percepção da hierarquia sintagmática dos elementos<br />
da frases. O leitor pode questionar<br />
que existem construções de frases muito mais complexas do que estas. É verdade. Mas a<br />
orientação deste modelo é ir do mais simples para o mais complexo, quando são necessárias<br />
outras operações. Para terminar, tomamos uma sentença de complexidade de nível médio,<br />
aplicando-lhe a teoria das valências.<br />
(4) ESQUEMA DE AMPARO A DESABRIGADOS INCLUI ALIMENTOS,<br />
COLCHONETES E ROUPAS. (idem, p. 6).<br />
Este enunciado, apesar de já bastante complexo, não oferece grande dificuldade para o<br />
reconhecimento de sua hierarquização sintagmática.<br />
[(Esquema) de ((amparo)) a desabrigados] {inclui} [alimentos] +[colchonetes] +<br />
[roupas]<br />
Inclui<br />
Esquema alimentos colchonetes roupas<br />
de amparo<br />
a desabrigados<br />
O gráfico mostra, com clareza, que o verbo incluir possui duas valências (sujeito) e<br />
complemento direto (CD), sendo este último formado por três elementos coordenados.<br />
Para encerrar este assunto, convém acrescentar que além da quantidade da valência de<br />
um predicador, há que se considerar também a qualidade. Em outras palavras: cada argumento<br />
apresenta suas restrições semânticas em relação aos actantes regidos. Assim, por exemplo, o<br />
verbo criticar exige que o actante sujeito tenha os semas [+humano], [+animado]. Já os actantes<br />
que funcionam como CD podem ser [±humano], [± animado]. O verbo incluir pode ser<br />
colocado dentro do hiperônimo ter (verbos em que há uma “relação de posse”). No caso, o<br />
ponto de chegada de algum agente (no texto é a prefeitura de Duque de Caxias) e esse ponto<br />
contêm, como resultado de ação, os CD alimento, colchonetes, roupas. Como se vê, estes<br />
últimos, em decorrência da significação do verbo, não uma ação, mas muito mais resultado de<br />
um processo, não são também “pacientes” da “ação” verbal. Tanto assim que embora seja<br />
gramatical a transformação na voz passiva: “alimentos, colchonetes e roupas são incluídos na<br />
estratégia de amparo a desabrigados”, talvez o mais esperado seria: “alimentos, colchonetes e<br />
roupas estão incluídos na estratégia de amparo a desabrigados”, marcando o resultado da ação.<br />
O aspecto verbal aqui é fundamental para a construção do sentido.<br />
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Um leitor que compartilhe deste conhecimento pode alegar que isto não passa das<br />
conhecidas “árvores” da gramática transformacional. Como já frisamos, não faz parte de nossa<br />
prática que os alunos montem as tais árvores. Além disso, não nos interessam aqui as estruturas<br />
superficiais e profundas, os esquemas cognitivos da linguagem humana. O objetivo é tão<br />
somente levar o aluno a perceber a hierarquização, a tessitura dos elementos da frase. Pode-se<br />
alegar também que ficamos no nível da frase e que, como todos sabem, a unidade de ensino é o<br />
texto. Isto é verdade, mas quando passarmos para a análise semântica dos componentes<br />
actanciais dos termos da oração, o leitor perceberá, de acordo com o gênero textual, que o valor<br />
semântico de um termo advém de sua inserção no texto. Além disso, convém atentar para a<br />
observação de Vilela 23 de que já é consenso que qualquer gramática tem como objeto o<br />
tratamento de unidades mais amplas que as frases e palavras. Mas, diz o autor, “a gramática<br />
não poderá falar de textos, frases e grupos de palavras sem ter bem presente as ‘palavras’”.<br />
Concluindo, podemos perceber que existe uma relação lógico-semântica entre um<br />
predicador e seu argumento. Os papéis argumentativos preenchem, segundo Neves (2000: 111)<br />
“os lugares lógico-conceptuais vazios que o predicado abre à sua volta”.<br />
A idéia de uma relação lógico-semântica entre predicadores verbais e o argumento<br />
sujeito é objeto básico desta monografia.<br />
5) Objetivo básico e questões a investigar<br />
Nosso objetivo é mostrar ─ ainda que analisando apenas o argumento sujeito ─ que<br />
numa abordagem funcional da gramática não basta que o aluno saiba identificar os elementos<br />
sintáticos da frase, mas pensar os papéis semânticos que tais elementos exercem dentro de um<br />
texto, na construção do sentido.<br />
Para isto, propomo-nos investigar as seguintes questões:<br />
5.1) Uma classificação semântica dos verbos.<br />
5.2) Os papéis temáticos do sujeito<br />
Um estudo semântico dos verbos<br />
Os manuais escolares costumam brindar-nos com dois tipos de verbos: verbos de ação e<br />
verbos de ligação. Como se percebe, há aí uma mistura de critérios. Os primeiros se definem<br />
semanticamente, enquanto os segundos apontam para um papel interno e, geralmente, são<br />
considerados como “semanticamente esvaziados”. São também conhecidos como “portatempo”,<br />
cuja função é fazer a ligação (cópula) entre um sujeito e um predicativo (predicador<br />
nominal ou adjetival, segundo a gramática funcional).<br />
Um estudo mais profundo vê nessa teoria uma simplificação, porque a categoria verbo é<br />
complexa não apenas em termos morfológicos, mas, sobretudo, semanticamente. Por isso,<br />
vamos aprofundar nosso estudo do papel semântico dos verbos. Desde já alertamos o leitor que<br />
são os traços semânticos do verbo que vão determinar a recção não só da quantidade, mas<br />
também da qualidade dos actantes e circunstantes.<br />
2. Classificação dos verbos segundo Charaudeau 24<br />
Para este autor, nenhuma definição de verbo pode ser plenamente satisfatória. Se se<br />
define verbo como a palavra que exprime ação feita ou sofrida por um sujeito, como existência<br />
ou estado de um sujeito, então teremos que perguntar se dormir, custar, sonhar, restar,<br />
concernir são ações.<br />
Se se diz que o verbo tem por papel situar no tempo as ações ou os acontecimentos,<br />
então temos que enquadrar ontem, hoje, amanhã, logo, imediatamente, agora, depois como<br />
verbos.<br />
Se se admite que os verbos estabelecem uma relação de predicado (rema informativo)<br />
em relação a outro termo, outras palavras (como os adjetivos e nomes) também desempenham<br />
esse papel.<br />
23 VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação.Coimbra: Almedina, 1992, p. 29<br />
24 Opus cit. p. 28-35<br />
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Para este autor (p.35), os verbos são classes de palavras que, tradicionalmente,<br />
exprimem um processo. Isto é: o processo descreve o que acontece no universo, o que se produz<br />
no tempo e que modifica um estado de coisas.<br />
Ainda de acordo com o autor (p.30), existem duas classes de processos:<br />
As ações: atos ou atividades que estão sob o controle de um ser capaz de ser<br />
responsabilizado por eles em virtude de um projeto ou intenção de ação.<br />
Os fatos: representam igualmente atividades que modificam um estado de coisas e<br />
implicam seres, mas não se pode atribuir a estes nenhuma responsabilidade pelo acontecimento.<br />
O fato é o que surge, o que se produz sem a intervenção de um agente. Assim, chover, nevar,<br />
cair são verbos de fatos.<br />
O autor volta ao assunto nas p. 378-379, explicitando que “ação” implica que a atividade<br />
se encontra sob a responsabilidade de um “agente” mais ou menos engajado. O “fato”<br />
representa (...) apenas uma atividade que se produz (ou é produzida) fora da responsabilidade de<br />
um ser-agente”. E propõe (p.379), o seguinte esquema:<br />
processos<br />
Ação<br />
Atividade sob a responsabilidade e<br />
intencionalidade de um agente [±engajado]<br />
Fato<br />
Atividade sem a responsabilidade nem a<br />
intencionalidade<br />
Isto nos permite classificar os verbos em dois tipos: verbos de ação e verbos de<br />
acontecimentos. Assim se entende que verbos ditos auxiliares ou de ligação, como ser, parecer,<br />
estar, continuar, ficar, permanecer, andar etc. não correspondem a processos, mas servem para<br />
exprimir vários tipos de relação: qualificação, existência, dependência. Devido ao fato de<br />
revelarem o aspecto dos processos em curso (exceto o verbo ser), podem ser qualificados como<br />
“estativos”.<br />
Classificação dos verbos segundo Costa. 25·.<br />
Esta nos fala em três blocos de verbos:<br />
De atos e atividades: quebrar, ler. Implicam o traço [+humano], [+agente], [+dinâmico]<br />
De processos e acontecimentos: crescer, cair. Implicam os traços: [±humano], [-<br />
agente], [+dinâmico]<br />
De estados: continuar, parecer. Implicam os traços [+durativo], [-agente], [-dinâmico]. É<br />
esta autora que coloca os verbos de “ligação” entre os verbos “estativos”.<br />
Este estudo dos traços verbais já nos leva a uma primeira conclusão: as categorias de<br />
Agente e Paciente só existem com verbos que exprimem atos e atividades. Assim, o sujeito é<br />
agente quando se trata de verbos de ação ou de atividade. Do mesmo modo se pode falar em CD<br />
(complemento direto) como paciente quando o termo tiver os traços [+vivente], [+ humano]<br />
relacionados com verbos que exprimem atos ou atividades.<br />
Assim, em:<br />
O garoto quebrou a planta.<br />
O garoto abriu a porta com a chave..<br />
A chave abriu a porta.<br />
A porta abriu.<br />
A chuva derrubou a árvore.<br />
As plantas morrem com o calor.<br />
O calor mata as plantas.<br />
25 COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1990, p.14-15<br />
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A noite está fria.<br />
A noite esfriou.<br />
Esfriou.<br />
Só em (1) podemos atribuir ao sujeito o papel de Agente e ao CD, o de Paciente, mas em<br />
sentido lato, porque lhe falta o sema [+humano]. Em (2) o sujeito é Agente, mas o CD não é<br />
paciente, mas resultado do ato. Em (3), o sujeito tem o papel de Instrumento, enquanto que o<br />
CD é o Resultado do acontecimento. Em (4) o sujeito é o Resultado do acontecimento. Em (5) o<br />
sujeito é a Causa do acontecimento, enquanto o CD é o Conseqüente. Em (6), o sujeito é o<br />
Conseqüente de um processo cuja Causa é o calor. Em (7) o sujeito desempenha o papel<br />
semântico de Causa, enquanto o CD, o de Conseqüente. Em (8) o papel do sujeito parece ser<br />
muito mais o de Referente de um estado. Já em (9) o sujeito não é Agente, nem Paciente. Sem<br />
outro nome, parece-nos mais o tema ou, como diziam os gregos, o suporte do rema. Pode ser<br />
também interpretado o ser afetado (transformado) pelo processo (ou, como dizem alguns<br />
autores, trata-se de um locativo temporal). Em (10) o verbo indica um processo e não tem<br />
valência, porque é semanticamente pleno. Desse modo, não apresenta casa vazia para ser<br />
preenchida.<br />
Charaudeau 26 classifica “agente” e “paciente” como “actantes de base”. Segundo esse<br />
autor, entende-se por “agente” um “actante humano que é o iniciador-responsável pela ação<br />
que efetua, voluntariamente ou não”. O “agente” é sempre humano. Isto significa dizer que lhe<br />
é atribuída uma intenção (um projeto de fazer) mesmo que às vezes seja descrito como agindo<br />
involuntariamente (p.381). Quanto aos animais ou a outro ser se atribui o traço [+humano], estes<br />
também podem ser considerados agentes. Desta forma, “sujeito” e “agente” só coincidem<br />
quando o actante que efetua a ação é humano (p.382).<br />
Mais difícil é a explicação para o actante “paciente”. Segundo Charaudeau, trata-se de<br />
“actante não humano ou humano que representa o termo ou o suporte da ação: ou que a<br />
padece ou é, pelo menos afetado por ela” (p.383). A seguir faz a diferença entre “paciente”<br />
humano e não humano:<br />
“O actante não-humano representa o ponto de impacto de uma ação, de modo que seu<br />
estado inicial se encontra modificado. Recebe os efeitos de uma ação, sem um estado de alma.<br />
Já o humano suporta de maneira positiva ou negativa a ação. Encontra-se atado a um agente<br />
humano através de uma relação de interesses humanos, relação que o afeta de maneira<br />
negativa.”(p.383)<br />
A nós parece-nos que o actante “paciente” constitui um hiperônimo. O melhor seria<br />
restringi-lo a um predicador [+vivente] de um verbo de ação [que supõe um “agente<br />
intencionado”].<br />
Dessa forma, observemos as frases:<br />
(1) O vento derrubou a casa.<br />
(2) O lutador derrubou o adversário.<br />
(3) O menino encheu o copo.<br />
(4) O pai elogiou o filho.<br />
(5) O pai salvou o filho.<br />
26 Opus cit. 380-382<br />
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Se em (1) o sujeito não é humano, não temos uma ação, uma intencionalidade. Então,<br />
não é um “agente”, mas muito mais uma “causa”. Não se pode negar que “casa” recebe o<br />
impacto da ação. Se lhe aplicarmos a categoria de “paciente”, certamente será mais por<br />
hiperônimo, uma vez que nos parece muito mais o “conseqüente”. Em (2), não há dúvida de que<br />
o sujeito é “agente” e o CD, por também ser humano, é “paciente” no sentido estrito da palavra.<br />
Em (3) temos um sujeito agente, mas o CD, opinião nossa, só é “paciente” por hiperonímia,<br />
porque não se trata de humano. Trata-se do resultado do processo. Em (4) é difícil ver no CD a<br />
categoria de “paciente”. Salvo melhor interpretação, está nos parecendo mais o “beneficiário”.<br />
Por isso, se transformada na voz passiva: “O filho foi elogiado pelo pai”, não vemos no sujeito<br />
um actante “paciente”. O mesmo se pode dizer em (5). É difícil ver no CD um actante passivo.<br />
Para terminar esta explanação, observe-se um último exemplo:<br />
(6) O pai deu um presente ao filho.<br />
Observa-se que o CI é, claramente, o beneficiário da ação do agente. Se, então,<br />
parafraseássemos, teríamos:<br />
(7) O pai presenteou o filho.<br />
O termo “filho” mudou de função sintática, mas não de função semântica.<br />
Não nos estenderemos mais neste assunto, porque não é nosso objeto a análise das<br />
funções semânticas do CD. Só o fizemos, porque com certas classes de verbos transitivos, o CD<br />
passa a ser SU (sujeito) da voz passiva.<br />
4) Classificação segundo Vilela<br />
Podemos falar ainda de outras classificações de verbos, tendo em vista a quantidade e as<br />
restrições que impõem aos actantes. Vilela 27 aponta duas classes de verbos:<br />
Verbos semanticamente motivados. Entre eles estão os verbos de ação, de estado, de<br />
processo que impõem condições (restrições) de uso do sujeito e complemento. Neste con<strong>jun</strong>to<br />
há verbos de natureza:<br />
física: chover, esfriar, trovejar, etc.<br />
fisiológica: dormir, morrer, nascer, etc.<br />
sensorial: amar, odiar, gostar de, etc.<br />
intelectual: decidir, planejar, etc.<br />
Uma outra classificação pode ser a de:<br />
verbos dinâmicos / de atividade<br />
verbos de processo<br />
verbos de sensações corporais<br />
verbos de transação de eventos (vender, comprar, adquirir, etc)<br />
verbos de momentos<br />
verbos estativos<br />
verbos de movimento<br />
verbos de posse<br />
verbos de percepções e cognições experiências.<br />
verbos relacionais.<br />
Isto tudo parece muito exaustivo, mas tem a vantagem funcional de fornecer:<br />
“informações acerca da forma léxica, do número de argumentos e dos traços sintáticosemânticos<br />
dos elementos que ocupam os espaços destinados aos argumentos e as funções<br />
semânticas realizadas pelos argumentos no con<strong>jun</strong>to frásico.(p.22)<br />
De posse de alguns desses conceitos podemos, então, falar de predicados “estativos”,<br />
“posicionais”, “processuais”, e “acionais”.(p.23)<br />
Verbos pragmaticamente motivados. Neste grupo, estão os verbos que constituem atos<br />
de fala, quando “dizer é fazer”. São os verbos performativos. Entre eles, temos:<br />
verbos de asserção: dizer, acusa, declarar<br />
27 Opus cit. p. 19-25<br />
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verbos de avaliação: julgar, analisar, condenar<br />
verbos de atitude do falante: aclamar, aceitar, prometer<br />
E outros, que não citaremos para não nos alongarmos por demais. Mesmo assim,<br />
convém ter em mente os chamados:<br />
verbos dicendi<br />
verbos dandi<br />
verbos tollendi.<br />
Tais verbos são importantes porque exigem como<br />
Complemento indireto (CI): a entidade a quem é “dado”, “tirado” ou “transmitido” algo,<br />
de acordo com o significado implicado no lexema verbal. Esta entidade situa-se, normalmente,<br />
na classe semântica (classema) [+humano]<br />
Complemento direto (CD): a entidade “dada” e “tirada” situa-se, normalmente, na<br />
categoria semântica (classema) [-humana]. A entidade “transmitida” situa-se na classe<br />
semântica [+abstrato].<br />
5) Classificação segundo Mateus et al. 28<br />
A leitura, em Mateus, sobre a predicação (p.46) nos remete ao “dizível” dos estóicos,<br />
porque predicar “visa, fundamentalmente, descrever estados de coisas relativos a um dado<br />
universo de referência”. Dada essa idéia básica, as autoras passam a descrever não só uma<br />
tipologia dos estados de coisas, como também uma tipologia dos predicadores. Para nosso<br />
propósito, tentaremos fazer um resumo desses dois tópicos.<br />
5.1) Tipologia dos estados de coisas<br />
Segundo as autoras, há três tipos de “estados de coisas” ou três tipos de predicadores<br />
(p.47-51):<br />
a) ESTADO. Quando entidades envolvidas numa descrição não sofrem qualquer<br />
alteração ou transição durante um intervalo de tempo, a essa descrição chamamos de estado.<br />
Como se percebe, o sema básico é o [- dinâmico].<br />
Exemplos: João anda triste<br />
A casa fica no alto do morro.<br />
b) EVENTO. Quando as entidades envolvidas numa descrição sofrem uma<br />
transformação, alteração, uma passagem de um estado para outro, esse “dizível” contém um<br />
evento e seu sema básico é o [+dinâmico].<br />
Exemplo: O garoto quebrou a vidraça.<br />
O gato comeu o rato.<br />
João ama Maria.<br />
Os dois exemplos mostram que nos eventos há um “fazer” de natureza física ou<br />
psíquica.<br />
c) PROCESSO. Quando no “fazer” não há uma transformação, alteração das entidades<br />
envolvidas, mas um evento realizado entre dois espaços de tempo. A esse “dizível” ou<br />
“predicação” chamamos de processo e seu sema básico também é [+dinâmico]<br />
Exemplo: As aves cantam<br />
Os pilotos controlam a máquina.<br />
Além dessa classificação, podemos analisar se os “actantes” dos “dizíveis” são ou não<br />
controladores da predicação. Levando-se em conta esse traço [+controlador] ou [+intencional]<br />
podemos classificar, respectivamente<br />
• estados como posições.<br />
• eventos como ações.<br />
• processos como atividades.<br />
5.2) Tipologia dos predicadores (52-66)<br />
28 MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 1983.<br />
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Se, por um lado, o “lékton” determina a classe sintático - semântica do predicador, por<br />
outro lado, este determina não só o número dos argumentos, mas também a relação semântica<br />
que cada um deles mantém com esse predicador. E, como os outros autores da “gramática das<br />
valências.” concluem que “o predicador é o núcleo em torno do qual se organiza uma<br />
predicação” (p.52).<br />
Também como mostramos acima nas nossas “árvores” os autores nos informam que<br />
“ocorrem predicadores pertencentes a diferentes categorias sintáticas: “verbais, nominais,<br />
adjetivais” e que tais predicadores exigem um determinado número de argumentos. Aos<br />
argumentos obrigatórios (actantes) denominam “argumentos nucleares” do predicador. Os nãoobrigatórios<br />
são os “argumentos opcionais”. Assim, cada predicador tem seu esquema<br />
predicativo (p.53) que determina:<br />
a categoria sintática do predicador;<br />
o número de lugares do predicador;<br />
a função semântica de cada um dos argumentos. Isto é: a relação semântica que cada um<br />
dos argumentos nucleares mantém com o predicador.<br />
As autoras apresentam uma lista de nove funções semânticas dos argumentos que<br />
podemos aplicar perfeitamente ao nosso objeto de investigação (o argumento sujeito). Não<br />
vamos, aqui, nos deter na explicação e definição de cada uma dessas funções semânticas. Bastanos<br />
apenas enumerá-las e tentar aplicá-las na análise de textos. Eis, pois, uma tabela das funções<br />
semânticas:<br />
Paciente Objeto Locativo<br />
Neutro Experienciador Agente<br />
Origem Recipiente Posicionador<br />
Como o estudo é bastante complexo e nos faltam maiores experiências sobre ele, vamos<br />
nos ater aos dados acima, que podem, perfeitamente, servir de crítica para quem melhor<br />
conhecer o assunto.<br />
6) Conclusão<br />
Como esta monografia tem limites de espaço e, sobretudo, de tempo, apressamo-nos em<br />
concluir que uma proposta de classificação completa pertence ao mundo dos “impossíveis”<br />
(Vilela, p. 26). Mas, de qualquer forma, pode-se reter que uma classificação do verbo deve levar<br />
em conta além dos aspectos morfológicos e sintáticos, também os aspectos semânticos e<br />
pragmáticos. E, sobretudo, convém levar em conta que “há sempre outra grandeza com a qual<br />
o verbo é confrontado para ser classificado” (id.ib.).<br />
Se nos detivemos na classificação dos verbos foi porque são eles que ocupam o “nó dos<br />
nós” na gramática das valências e determinam a quantidade e a qualidade dos argumentos.<br />
Então, por isso, a seguir, passaremos a analisar a relação verbo / actante sujeito.<br />
Verbo e papéis semânticos do sujeito<br />
Azeredo 29 ensina que “o verbo pode atribuir diferentes papéis semânticos a seu sujeito -<br />
agente, paciente, instrumento, lugar, neutro ─ em virtude tão ─ só de natureza de sua<br />
significação. Outras vezes, porém, esses papéis são indicados pela estrutura sintática do<br />
predicado” (p.174 § 353) [voz ativa, passiva, média ou reflexa].<br />
29 AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos da gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />
Editor, 2000, p. 173-174.<br />
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No § 350, p. 173, diz que os verbos transitivos que denotam ação envolvendo um sujeito<br />
e um objeto direto referentes a seres animados atribuem ao primeiro o papel de agente e ao<br />
segundo, o de paciente. Mas logo no seguinte parágrafo acrescenta que um verbo transitivo de<br />
ação que não se refira a um ser animado, o sujeito não desempenha o papel de “agente”. Cita<br />
como exemplo: A chuva [causa] alagou a cidade [conseqüente]. A corrente do relógio<br />
[instrumento] feriu meu pulso [resultado da ação]. O cofre [lugar continente] guardava os<br />
documentos mais preciosos [conteúdo]. Mesmo com certos verbos transitivos de sujeito<br />
animado, este não é agente, mas ser afetado pelo acontecimento a que a frase se refere. Por<br />
exemplo: Pedro quebrou o braço. O sujeito, segundo Azeredo, representa o todo, enquanto o<br />
CD, a parte.<br />
Isto significa dizer que não se pode definir que “sujeito é o ser que pratica a ação”.<br />
Mesmo a idéia de que seja o “ser de quem se afirma ou nega alguma coisa” fica muito vaga e<br />
não serve. Basta ver, por exemplo, a frase de Genouvrier & Peytard 30 No começo do século, os<br />
bondes eram puxados por burros. O sujeito lógico (autor da ação) seria os “burros”. O sujeito<br />
gramatical (o termo com quem o verbo concorda) seriam os “bondes”, mas o sujeito informativo<br />
(o tema ─ ser de quem se diz alguma coisa) seriam tanto “os bondes”, como “começo do<br />
século” e até mesmo “burros”.<br />
Quanto à classificação entre sujeito simples e composto, isto são critérios sintáticos. De<br />
modo geral são aprendidos mecanicamente sem que se remeta ao seu papel semântico no texto.<br />
Quando se fala em sujeito indeterminado ou oração sem sujeito, aí sim, temos critérios<br />
funcionais e podemos recorrer à gramática das valências.<br />
Mesmo com toda essa teoria, é necessário que o analista não fique apenas no nível da<br />
frase. O mais importante é perceber as recorrências das funções semânticas de um determinado<br />
argumento dentro de um texto.<br />
2) Texto e papéis semânticos do sujeito<br />
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que os papéis semânticos do sujeito dependem do<br />
gênero de texto. Um texto, por exemplo, de informação científica não terá o mesmo tipo de<br />
sujeito de um texto argumentativo ou de um texto narrativo. Dependendo do texto, haverá uma<br />
predominância de uma ou outra função semântica do sujeito.<br />
Observe-se, por exemplo, o texto:<br />
A oferta da viúva<br />
Levantando os olhos, viu os ricos lançando ofertas no Tesouro do Templo.<br />
Viu também uma viúva indigente que lançava duas moedinhas, e disse “De<br />
fato, eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos<br />
aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas. Esta, porém, na sua<br />
penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver”.<br />
(Lucas, 21, 1-3).<br />
Fazendo um levantamento dos predicadores verbais, temos:<br />
Levantar(1 vez) Dizer (1 vez)<br />
Sobrar (1 vez)<br />
Ver (duas vezes)<br />
Dar (1 vez)<br />
Lançar (3 vezes) Oferecer (1 vez)<br />
Possuir (1 vez)<br />
Viver (1 vez)<br />
O texto apresenta vários tipos de verbos: de movimento (levantar, lançar) de sensação<br />
corporal (ver), verbos dandi (dar, oferecer), verbo dicendi (dizer), verbo de posse (possuir).<br />
30 GENOUVRIER, Emile & PEYTARD, Jean. Lingüística e ensino de português. Coimbra: Almedina,<br />
1973, p.133.<br />
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Os verbos levantar, ver, dizer possuem o mesmo sujeito (no contexto, Jesus). Os dois<br />
primeiros podem ser qualificados como verbos dinâmicos, de acontecimentos. Embora o sujeito<br />
tenha os traços [+vivente], [+humano], pode-se perceber que a definição de “agente” pode ser<br />
tomada se o considerarmos um hiperônimo. No verbo “levantar” Jesus é o sujeito afetado pelo<br />
seu ato, e olhos é a parte, como ensina Azeredo. Quanto ao verbo “ver”, o sujeito (Jesus) é<br />
“agente”, mas como experienciador de uma cognição, quase no papel de sujeito sentiendi.<br />
Quanto ao verbo “dizer” (um dicendi), o sujeito “agente” é, na verde, emissor, o ponto de<br />
partida do discurso. Neste caso, seu papel actancial poderia ser o de “origem”.<br />
Os verbos “lançar” têm como sujeito os termos “ricos” e “uma viúva indigente”. Se o<br />
que eles lançam (moedas) não pode ser tomado como “paciente” no sentido estrito da palavra,<br />
pois não tem os semas [+animado], [+humano], então também não se pode dizer que os sujeitos<br />
sejam “agente”, igualmente no sentido estrito.<br />
Porém, há uma diferença: os ricos lançam por lançar; o gesto deles é mais uma<br />
atividade. Então poderíamos considerá-los como “atores”, força causadora de um processo. Já a<br />
pobre viúva, como lança o que lhe ia faltar, há nela um alto grau de intencionalidade, controle.<br />
Por isso, ela é muito mais que a força causadora do processo e se torna “agente” de um ato<br />
calculado, visando a um fim. Por isso mesmo, ousamos dizer que os sujeitos do verbo lançar<br />
não têm o mesmo papel semântico.<br />
Quanto aos verbos “dar, oferecer” têm como sujeitos não agentes, mas possuidores que<br />
fazem transferência de algo seu. Sem outra nomenclatura, arrisco chamá-los de sujeitos<br />
“possuidores” ou “recipientes”, conforme Mateus et al.. Porém, um leitor atento pode observar<br />
que os ricos dão e a viúva indigente oferece. Deste modo, a relação de transferência que se<br />
efetua não é a mesma. Esta é a razão porque dissemos acima que o “agente” do verbo “lançar”<br />
tem conotações ou semas diferentes.<br />
Os ricos deram o que sobrava e isto não lhes custou nada. Assim, não são em nada<br />
agentes e pacientes. São muito mais “origem”. A viúva ofereceu não as sobras, mas tudo o que<br />
possuía para viver. Os primeiros são doadores e retentores ou, origem do processo. Trata-se<br />
mais de uma atividade.<br />
A segunda, ao ofertar é um agente, mas ao ficar sem nada, torna-se paciente de seu ato.<br />
Por ser uma doadora completa, houve nela uma transformação incorporal ou, como se diz, uma<br />
transformação de papéis jurídicos: de possuidora passou a despossuída. Em resumo, os ricos são<br />
sujeitos possuidores e permanecem nesse papel. Conforme Mateus et al., estamos diante de um<br />
predicador de processo. A viúva, de possuidora passa a sujeito despossuidor. Apresenta,<br />
portanto, dois papéis semânticos: agente e paciente. Estamos diante de um quadro de uma ação<br />
controlada.<br />
A seguir, vamos tomar outro gênero de texto para perceber como se comportam<br />
semanticamente os sujeitos.<br />
Os fungos<br />
“Os fungos incluem diversos tipos de organismos, com forma e tamanhos<br />
variados. Não possuem clorofila e por isso não fabricam o próprio alimento.<br />
Dessa forma, dependem do alimento do ambiente. Não dizemos, entretanto,<br />
que os fungos comem, mas sim que absorvem alimento do meio e depois o<br />
utilizam como fonte de energia. Os fungos crescem em lugares úmidos como<br />
troncos de árvores caídas e restos vegetais, estrume de animais, frutas<br />
apodrecidas”.<br />
(Fonte: GODWAK & MARTINS. Natureza & Vida. São Paulo: FTD, 1993,<br />
p. 63, v. 2.)<br />
Como fizemos anteriormente, vamos listar os verbos:<br />
Incluir<br />
Depender Absorver<br />
(Não) possuir<br />
(Não) dizer Utilizar<br />
(Não) fabricar (Não) comer Crescem<br />
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Percebe-se, com clareza, que se trata de um texto descritivo de uma informação científica. A<br />
não ser o verbo dizer, todos os outros têm como sujeito o termo “fungos” cuja classificação<br />
como ser oferece dificuldades mesmo para os especialistas. Por isso, vamos tomá-los como [±<br />
vivente], [± animado], tendo em vista os semas dos verbos predicadores.<br />
A primeira coisa a analisar é o verbo dizer. Se está na 1ª pessoa do plural, logo a<br />
gramática tradicional nos imporia que se trata de um sujeito determinado “nós”. E realmente, o<br />
sujeito gramatical é “nós”. Acontece, porém, que é um “nós” não especificado, que pode ser<br />
parafraseado como “não se diz”, claramente indeterminado. O “nós” não se refere ao sujeito da<br />
enunciação, mas a uma voz indeterminada dos cientistas, da ciência. Uma voz não<br />
comprometida com o que diz. Semanticamente é um sujeito indeterminado e por isso mesmo<br />
não se pode apontar qual o responsável direto pela origem da informação.<br />
Para o verbo incluir, o sujeito “fungos” tem o papel semântico de elemento de uma<br />
classe. É um entre outros tipos de organismos. Podemos dizer que tem a função semântica de<br />
recipiente.<br />
A negação dos verbos possuir e fabricar faz dos fungos seres sem capacidade de<br />
transferências e de serem agentes de atividade. Estão mais para receptores (parasitas). Também<br />
não podem ser considerados como simples pacientes. Em lugar disso, podemos classificá-los<br />
como “dependentes”.<br />
O caráter de [±viventes], [±animados] faz deles que não comam, não fabriquem, mas<br />
absorvam o alimento e o utilizem como fonte de energia. Em lugar de agentes ou origem de<br />
processos, teríamos “utantes” e até “mutantes. Por isso, o texto conclui que eles “crescem”, em<br />
virtude de um processo de mutação. Teriam, talvez, a função semântica de “neutros.?<br />
Concluindo, podemos dizer que no primeiro texto predominam predicadores de eventos<br />
que determinam as funções semânticas dos sujeitos: tranferenciais (origem, agente,<br />
experienciais).<br />
No segundo predominam predicadores de processos. No entanto, como esses sujeitos<br />
não apresentam o traço semântico [+controlador] então não são “causativos” do processo. Por<br />
isso, neles predomina a função semântica de origem do processo.<br />
Ditas estas coisas, não nos alongaremos mais porque precisamos de maiores pesquisas e,<br />
para isso, nos falta tempo. Mesmo assim, ao se tratar das funções semânticas do sujeito não se<br />
pode deixar de fora a questão da “voz verbal”.<br />
3) Voz verbal e papéis semânticos do sujeito<br />
A tradição gramatical é explicita quanto aos papéis temáticos do sujeito quando se<br />
refere à “voz verbal”. O conceito geral é que na “voz ativa” o sujeito pratica a ação; na<br />
“passiva”, sofre e na “reflexiva” pratica e sofre.<br />
Como já abordamos, é preciso precaução quanto a essas reduções. Só se pode dizer que<br />
o sujeito é “agente” quando houver os semas de [+humano] [+intencionalidade], [+controle<br />
dinâmico]. No mais, a categoria “agente” é usada como um hiperônimo. Assim, em: o pássaro<br />
voa, não teríamos, propriamente um agente, uma voz ativa, mas um processo. Não uma ação,<br />
mas uma atividade. Por isso, os antigos não classificariam a construção da frase como “voz<br />
ativa”, mas “média”.<br />
Outra coisa também que os fatos desmentem é dizer que na “voz passiva” o sujeito é<br />
paciente. Depende dos semas do predicador, como já analisamos. Para melhor ilustrar isso, a<br />
frase “Mulher estuprada será indenizada”, título de uma manchete da Folha de São Paulo, foi<br />
aplicada como exercício para turmas de 7ª série. Levantou-se a questão de que apesar da forma<br />
passiva, o sujeito “mulher” apresentava dois papéis semânticos: era “paciente” em relação ao<br />
estupro, mas “beneficiária” em relação à indenização. Isto significa então, de acordo com<br />
Mateus (p.321), que a noção de passiva é muito mais uma noção sintática. E há na manchete<br />
dois predicadores, um “adjetival” e outro “verbal”.<br />
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Se na voz ativa tivéssemos “mulher receberá indenização da justiça” o sujeito continua<br />
sendo o beneficiário recipiente, enquanto o CD será o benefício e o CI será o agente ou<br />
beneficiador. Se parafrasearmos, “Justiça dará indenização à mulher”, mudam-se os valores<br />
sintáticos, mas permanecem os papéis semânticos.<br />
Se isso foi uma novidade, já é consenso no ensino a diferença entre voz passiva (forma<br />
sintática passiva) e passividade. Poucos são os professores que confundem como voz passiva<br />
uma frase como “o garoto apanhou do pivete”, cujo processo reflexo seria “o pivete bateu no<br />
garoto”. Os termos “garoto” e “pivete” teriam funções sintáticas diferentes (sujeito e CI), mas o<br />
mesmo papel semântico.<br />
Sabemos que existe outra forma sintática de passiva, mas não vamos explorar o assunto,<br />
porque nossa intenção é, sobretudo, desmistificar que a função do sujeito da voz passiva é de<br />
“paciente”. Como já dissemos, tudo depende do predicador.<br />
Conclusão<br />
Com estas observações, cremos ter atingido nossos propósitos de ver os papéis<br />
temáticos do sujeito dentro do texto, ou como advoga Neves (2002) dentro da língua em uso.<br />
Para concluir podemos tecer algumas considerações gerais do que se deve ter em mente<br />
a respeito do sujeito, quando formos fazer a “ponte” entre a academia e as salas de aula.<br />
De modo geral, não se pensa o sujeito em termos semânticos. Estamos habituados a<br />
caracterizá-lo como o termo que está em relação de concordância com o verbo. Mas se for<br />
levada em consideração a diversidade dos papéis semânticos do sujeito - como fizemos acima -<br />
o hábito da explicação sintática (embora possa ser o ponto de partida) não esclarece a verdadeira<br />
função do sujeito. Conforme vimos, é possível declarar que as características dos predicadores<br />
vão selecionar os papéis semânticos dos sujeitos a eles correspondentes.<br />
Como há diferentes predicadores, há também diferentes papéis semânticos do sujeito.<br />
Podemos então listar os predicadores:<br />
Predicadores identificadores: o sujeito é tem o papel de ser identificado. Exemplo:<br />
A viúva do Evangelho era pobre<br />
Predicadores classificadores: o sujeito é enquadrado dentro de uma classe. Exemplo: Os<br />
fungos incluem diversas classes de organismos.<br />
Predicadores experienciais: o sujeito tem o papel de experienciador do processo.<br />
Exemplo: Os ricos gostam de lançar moedas ao Templo.<br />
Predicadores transferenciais: o sujeito tem o papel de transferidor ou receptor<br />
(benficiário) Exemplo: A viúva ofertou duas moedinhas ao Templo. E numa operação conversa,<br />
podemos dizer que “o Templo recebeu duas moedinhas da viúva”.<br />
Predicadores locativos: o sujeito apresenta o papel de lugar.Exemplo: O templo ficava<br />
no centro da cidade.<br />
Predicadores de atividade física: o sujeito tenderia a ser um “agente”, considerado como<br />
hiperônimo. Exemplo: Lançavam ofertas ao Tesouro do Templo. Estes predicadores podem<br />
referir-se a um movimento controlado pelo sujeito, isto é, um movimento voluntário, realizado<br />
por um ser animado. Nesse caso, o papel semântico do sujeito será o de “agente”. Mas, como<br />
observamos, há graus diferentes de movimento voluntário.<br />
Em contrapartida, se o movimento realizado por um ser animado não for controlado,<br />
voluntário, o papel semântico do sujeito será o de origem do processo. No caso dos textos<br />
acima, pudemos perceber que os “ricos” e os “fungos” são muito mais origem do que agentes do<br />
processo. E, concluindo, se o predicador exprimir um movimento não-controlado e realizado<br />
por um ser não-animado, o papel semântico do sujeito será o de objeto, como por exemplo: a<br />
moeda caiu no cofre do Templo.<br />
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Ao término desta monografia, estamos nos lembrando daquela situação de perplexidade<br />
do mestre Serafim da Silva Neto 31 que ─ já em 1956 ─ constatava que se ao final de pelo menos<br />
7 anos de estudo de língua portuguesa, “saem os alunos na mais lamentável ignorância da língua<br />
pátria [então] é um curso absolutamente inútil. (...) Fora da linguagem comum, trivial, rasteira,<br />
tudo para eles é um abismo” (p.189).<br />
E verificava que de ano para ano caía o nível. Examinadas as causas, chega à conclusão<br />
de que, depois das causas políticas e sociais, o problema está na falta de leitura. Imagina que se<br />
um aluno lesse 1 hora que fosse por dia, no final do ano já seriam 365 horas e ao final de 7 anos,<br />
2.555. “Hoje - lamentava-se ─ desgraçadamente, nossos jovens, em geral, não lêem coisa<br />
nenhuma. Limitam-se a olhar histórias em quadrinhos e a soletrar as linhas que as explicam.<br />
Sofrem, pois, de verdadeira inanição intelectual” (id.p.192).<br />
Pobre do mestre, se ainda estivesse entre nós... Com mais amargura verificaria a política<br />
de facilitação ou, como dizia, vantagem fácil da época, com uma clientela, queixava-se citando<br />
Gladstone Chaves de Melo, cuja<br />
“preocupação máxima, e quase sempre única, na aula, é descobrir e ‘gozar’ o ridículo do<br />
professor (...) atucanar-lhe a paciência com mil diabruras e insolências, reduzi-lo à condição de<br />
Polícia Especial, ou antes, domador de feras. Realmente, é dificílimo ensinar a uma classe onde<br />
80 por cento dos alunos não prestam a menor atenção; olham atrevidos para o mísero” (p. 191-<br />
192).<br />
Numa visão quase que profética, constatava que se ensinava muito a gramática e pouco<br />
a língua. Ainda não se falava numa gramática funcionalista, mas o mestre já advertia que “a<br />
gramática estuda palavras e construções, mas esquematiza-as, enquanto a língua real, a língua<br />
viva [grifo do autor] nos mostra essas mesmas palavras e construções intimamente entrosadas”<br />
(id.ib.). Já proclamava que se devia ensinar a língua como um fim e a gramática como um meio.<br />
Mas, e isto é espantoso, sábio foi também ao denunciar a campanha que se fazia contra<br />
ela. Isso, finalizamos, “prejudicou o estudo da língua, porque, afinal, não se podem estudar<br />
apenas textos e mais textos, sem codificação e sistematização dos fatos neles exemplificados”<br />
(id. p. 197). Parece-nos que hoje, nós, no século XXI, voltamos à mania dos “textos e mais<br />
textos”, de fazer das aulas de língua portuguesa uma discussão de temas transversais, numa<br />
febre de “interdisciplinaridade” que - como ao mestre Serafim - nos assusta.<br />
Perdemos o nosso objeto de ensino. Trazemos, para o começo deste século XXI, sua voz<br />
(profética) quando nos diz que “muito se exagerou, nos fins do século passado e no começo<br />
deste, o refrão de que uma língua se aprende nos textos” (id.ib.). Cuidadoso, porém, adverte e<br />
reconhece que uma língua se aprende, sobretudo, na minuciosa e atenta leitura de textos de<br />
todas as épocas. Não como fazemos hoje: damos aos alunos apenas textos do dia, quando muito<br />
da semana. E os clássicos? E os textos literários?<br />
Além disso, os textos não são para serem estudados, num trabalho de minuciosa e atenta<br />
leitura. São apenas pretextos para serem discutidos temas transversais, inter, transdisciplinares e<br />
outros modismos. Acabamos dando aula de história, filosofia, sociologia, geografia, ciências,<br />
códigos de trânsito, receitas, etc. e nos esquecemos que nosso objeto é língua portuguesa.<br />
Isto que agora denunciamos, o mestre Serafim já o fazia naquela época quando alertava<br />
que uma língua não se aprende “somente nos textos, pois as língua, com serem expressões de<br />
arte, possuem um arcabouço gramatical que precisa ser conhecido” (id.ib).<br />
Concluindo, voltamos a advertir que o tema (funções semânticas do predicado e sujeito)<br />
desta pesquisa, neste rumo de um ensino efetivo da língua viva, é apenas um primeiro estudo e,<br />
por isso, assumimos as lacunas e as insuficiências (talvez até mesmo incoerências) que nele<br />
houver. Mas, mesmo assim, já nos pareceu um grande passo.<br />
31 NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da filologia portuguesa. São Paulo: Cia.<br />
Ed.Nacional,1956.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 103
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AZEREDO, José Carlos de.Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar Editor, 2000.<br />
CARONE, Flávia de Barros.Morfossintasse. São Paulo: Ática, 1991 (Princípios).<br />
CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992..<br />
COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1997.<br />
ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica - brincando com a gramática. São Paulo: Contexto,<br />
200l.<br />
______ & GERALDI, João Wanderley. Semântica.São Paulo: Ática, 1994 (Princípios)<br />
MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,<br />
1996.<br />
MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina,<br />
1983.<br />
NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da filologia portuguesa. São Paulo: Cia.Ed.<br />
Nacional, 1956.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 200l.<br />
______ A gramática - história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp, 2002.<br />
______.Gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.<br />
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática<br />
no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.<br />
VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação. Coimbra: Almedina, 1992.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 1<strong>04</strong>
A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC<br />
Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ <strong>UERJ</strong>)<br />
Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da<br />
cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o<br />
sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. (...) Estamos<br />
falando do Ourives do Palavreado. Estamos falando de poesia<br />
verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca<br />
mesmo.<br />
Versátil - que se move facilmente; que está em movimento.<br />
Propenso à mudança, volúvel, inconstante, mutável.<br />
(Koogan/Houaiss s. u)<br />
O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma breve apreciação dos<br />
caminhos lingüísticos percorridos pelo poeta e letrista Aldir Blanc, colocando em foco a<br />
seleção vocabular e a especialização lexical. Procuraremos mostrar de que modo a<br />
temática brasileira é explorada e como é feita a representação de uma visão de mundo<br />
bastante aproximada da realidade das classes populares, especialmente ao tratar de<br />
temas como o amor e o futebol. Numa abordagem estilístico-semântica que busca o<br />
concurso da Semiótica, procuraremos identificar a iconicidade lexical na construção dos<br />
campos semânticos que orientam a coesão e a coerência dos textos em análise,<br />
verificando como se atualiza sua identidade como sujeito em seu vínculo com a<br />
realidade essencialmente brasileira e especificamente carioca.<br />
A escolha de Aldir Blanc se justifica exatamente por sua versatilidade. Como se<br />
encontra no verbete, ser versátil é ser propenso à mudança, é estar em movimento. De<br />
que forma se detecta, entretanto, qualquer movimento? Deve-se ter um referencial fixo,<br />
em relação ao qual um objeto se mova. Sabemos que a linguagem de Aldir está em<br />
movimento, assim como ele próprio, em sua vida, porque há elementos fixos a<br />
denunciar uma energia cinética inquieta, a mesma que o fez abandonar a carreira de<br />
médico psiquiatra para abraçar incondicionalmente a criação poética. Os elementos<br />
fixos são exatamente sua identidade como brasileiro, carioca, plenamente enraizado na<br />
zona norte do Rio (ocupada, em geral, pela classe média e por camadas populares), onde<br />
nasceu e mora.<br />
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Segundo Aldir, as vivências de infância e juventude em Vila Isabel, Estácio,<br />
Tijuca, pontuadas sempre pela boemia e pela música, que chegava de casas vizinhas no<br />
vento, determinariam suas opções de vida: “A Zona Norte se entranhou em mim de vez,<br />
com seus vitrolões, seus álbuns de 78 rotações” (Blanc, 2001, p6). A vida do povo, o<br />
trabalho, o morro, o samba, a boemia, o bar, o futebol, as crendices e as dores populares<br />
foram-se reunindo, nas vivências do poeta, a uma riqueza intelectual vinda do gosto<br />
pela literatura, em especial pelas obras de Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge<br />
Amado, Carlos Heitor Cony. Na música, canções “antigas” de Ismael Silva, Wilson<br />
Batista e Noel Rosa estavam na lista de suas “cantorias” de bar, mas foi em Vinícius de<br />
Moraes que constituiu sua grande referência. De modo irreverente, Blanc dimensiona o<br />
peso de nomes da literatura universal em seu perfil de poeta: “Claro que houve também<br />
Pound, Llorca e Maiacovsky, mas creio que a influência da sinuca foi maior”. Em<br />
torno deste eixo, sua poesia rodopia, criativa, genética, desdobrando-se em signos de<br />
diferentes tipos: ora mais especificamente icônicos, ora mais notadamente indiciais, ora<br />
simbólicos.<br />
Para melhor esclarecermos os pressupostos teóricos que sustentam esta<br />
investigação, recuperemos os conceitos de ícone, índice e símbolo, como formulados<br />
por Peirce (2000) em sua Semiótica:<br />
“Um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que<br />
possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não<br />
existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha<br />
geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o<br />
torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse<br />
caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um<br />
molde com buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria<br />
havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou não a<br />
capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o<br />
caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso<br />
de qualquer elocução de discurso que significa apenas por força de<br />
compreender-se que possui essa significação”. (Peirce, 2000: 74)<br />
Relembremos, igualmente, que, segundo este autor, o processo de semiose se<br />
estrutura numa tríade, que envolve Signo/Objeto/Interpretante, cuja relação é assim<br />
apresentada por Darcilia Simões (1999):<br />
“Nessa tríade, o filósofo retoma um esquema aristotélico e nos mostra um<br />
processo de inter-relações por meio das quais a consciência humana dialoga<br />
com o exterior. Em outras palavras: o que Peirce designa como signo é aqui<br />
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tomado como um fato ou fenômeno (aquilo que sensibiliza a consciência─ a<br />
que ele designou phaneron) que estimula a ação da consciência. Esta, por<br />
sua vez, reage ao lampejo da idéia-mensagem e a associa a um objeto<br />
imediato de natureza sígnica (representâmen) que processa os dados em<br />
forma de pensamento com base no interpretante ─“tradução” do phaneron<br />
em juízo verbal.”(Simões, 1999, p.91)<br />
Através de levantamentos dos campos semânticos trabalhados pelo poeta em alguns de<br />
seus textos, procuraremos surpreender a construção da semiose na relação entre elementos<br />
essencialmente ideológicos que lhe servem de eixo e elementos lingüísticos mutáveis.<br />
NÍVEIS DE SOFISTICAÇÃO NO TRATO LINGÜÍSTICO<br />
Este carioca “com Vila Isabel no DNA”─ conforme nos diz Roberto Moura na<br />
apresentação do songbook do artista ─, despeja em poemas, contos e crônicas tanto a<br />
crueza da vida do povo como o seu lado engraçado, sem deixar de visitar os recantos da<br />
alma humana, complexa em sua natureza. Revela-se, então, toda a versatilidade que<br />
colocamos em foco neste trabalho ─ sua linguagem transita da expressão mais popular<br />
aos elementos mais sofisticados.<br />
1.1) A VOZ DO POVO<br />
Uma das características de Blanc é fazer-se meio para a expressão popular,<br />
usando seus temas, seu palavreado:<br />
Veio a comadre bater no portão lá de casa<br />
pra contar que meu cumpadre nem começou, já acaba...<br />
Esse cara precisa de um chá de mastruço e catuaba.<br />
Disse que faz uns seis meses<br />
que o fuque-fuque anda ruço:<br />
esse cara precisa de um chá<br />
de catuaba e mastruço.<br />
(Claudio Cartier e Aldir Blanc, “Mastruço e Catuaba” -<br />
fragmento. In: Blanc, 1996)<br />
Neste refrão de uma letra de samba, Blanc utiliza vocábulos e expressões<br />
essencialmente populares para abordar de modo “caseiro” e bem-humorado a questão da<br />
sexualidade. A marca da oralidade carioca está na seleção lexical: cumpadre, esse cara,<br />
anda ruço (=está difícil). Mesmo numa relação de amizade, entre compadre e comadre,<br />
com liberdade inclusive para falar de intimidades, cabe uma certa reserva ao se tratar de<br />
sexo. É aí, que surge o termo popular fuque-fuque, uma espécie de onomatopéia alusiva<br />
ao coito.<br />
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O texto conta com uma cumplicidade do leitor/ouvinte para construir sentidos<br />
através do preenchimento de lacunas discursivas como a do segundo verso,<br />
graficamente assinalada pelas reticências.<br />
Assim, fazendo graça de assuntos sérios, muitas vezes ainda tratados “como<br />
tabus”, Aldir monta, ao longo de várias de suas letras, uma autêntica colagem de cenas<br />
da vida do povo.<br />
1.2) JOGO SEMIÓTICO<br />
O mesmo tempo ─ o sexo ─ está presente em “Maçã Tatuada” (Blanc, 1996), já<br />
numa abordagem diferente:<br />
Numa esquina de Copa ficava parada,<br />
alvejada pelas setas do vício,<br />
e o início tinha sido divino:<br />
um amante latino<br />
Sua boca vermelha, a maçã tatuada<br />
sobre o ombro (a sombra de veludo),<br />
a pele onde um homem que é nada<br />
pensa que é capaz de tudo. (...)<br />
Toda vez que as pestanas castanhas batiam,<br />
o olhar trocava mil slides:<br />
na praia, na lambada,<br />
com a amiga que já faleceu de Aids...<br />
e na bolsa, quando ia ao toalette,<br />
a gilete, o sempre-livre,<br />
e o chiclete importado,<br />
o velho exemplar do despertar de algum mago.. (...)<br />
Através da seleção vocabular, Aldir Blanc define um campo semântico relativo à<br />
atmosfera da vida de prostituição, da rua (esquina, setas do vício, boca vermelha, maçã<br />
tatuada, sombra de veludo, pestanas castanhas). Os objetos portados pela mulher<br />
funcionam, aqui, como signos indiciais de sua vida e atividade ─ bolsa, gilete, sempre-<br />
livre, chiclete importado, exemplar do despertar de algum mago. Para Peirce, índice<br />
seria.<br />
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“um signo ou representação que se refere ao seu Objeto não tanto em virtude<br />
de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar<br />
associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar<br />
numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o Objeto” (apud Santaella,<br />
2000, p.122).<br />
Assim, os objetos da bolsa, sendo individuais e estando dinamicamente<br />
conectados à vida daquela prostituta, funcionam como seus índices.<br />
A contundência deste texto, no entanto, reside na forma pela qual a noção de<br />
tempo é trabalhada. A escolha do imperfeito dilata os processos verbais e sinaliza a<br />
passagem do tempo (ficava, batiam, trocava); no verso “o início tinha sido divino: / um<br />
amante latino...”, mais uma vez se sugere um razoável decurso de tempo, com a<br />
referência ao “início”, o que é confirmado pelas alusões às lembranças da personagem:<br />
os mil slides trocados - pedaços de sua memória -, a experiência da morte de uma<br />
amiga. Imagens que, inter-relacionadas, significam uma história de vida muito peculiar<br />
e lhe conferem um certo peso, uma nostalgia. Os signos utilizados representam uma<br />
mulher vivida, experiente, sofrida e sugerem que seja uma adulta, não apenas em seu<br />
emocional, mas também em termos de faixa etária.<br />
ao primeiro:<br />
A partir daí, o poeta inaugura um novo campo semântico oposto conceitualmente<br />
Prostituta Mulher Pura<br />
esquina, setas do vício, boca vermelha,<br />
maçã tatuada, sombra de veludo,<br />
pestanas castanhas,Duvivier<br />
Jezebel, Moema, treze anos.<br />
Reunindo alguns desses elementos em paradoxos, o poeta provoca uma releitura da<br />
personagem e prepara o clímax do poema.<br />
(...) o apelido que não posso esquecer:<br />
a Jezebel da Duvivier,<br />
saiu assassinada na manchete,<br />
entre a greve e os motins urbanos,<br />
chamava-se Moema, era morena,<br />
e tinha apenas treze anos.<br />
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Vejamos como ele operacionaliza isto.<br />
Primeiro faz a revelação do nome de guerra da prostituta, “Jezebel da Duvivier”,<br />
paradoxal em si por reunir um nome bíblico 32 ao de uma rua de Copacabana, num jogo<br />
que evoca a dicotomia entre a mulher santa e a mulher da vida, aqui reunidas numa só:<br />
era da vida porque prostituta, era santa, por ser menina e mártir. Trabalhando ainda com<br />
contrastes, coloca este nome como inesquecível, elevando a personagem a uma posição<br />
de destaque, mas dissolve a notícia do assassinato da moça, “entre a greve e os motins<br />
urbanos”.<br />
Em seguida, revela o nome verdadeiro da garota, mostrando a sua face de moça<br />
sob a máscara da mulher: Moema (usada, preterida pelo homem, tragada, ingênua, para<br />
as profundezas do mar). Por fim, aponta sua idade – treze anos –, sublinhando-a com<br />
um “apenas” e fazendo essa flagrante adolescência contrastar com todas as informações<br />
e sugestões anteriores.<br />
Segundo Peirce (2000), “tudo o que atrai a atenção é índice. Tudo o que nos<br />
surpreende é índice, na medida que assinala a <strong>jun</strong>ção entre duas porções de<br />
experiência”. Ao longo do texto, signos indiciais são utilizados para desenhar a<br />
personagem e trabalhar a atenção do leitor, proporcionando-lhe uma surpresa ao final.<br />
No entanto, a partir daí, a personagem é redimensionada e ressignificada, tornando-se,<br />
em si, um signo simbólico que representa a questão da prostituição infantil. Nos dizeres<br />
de Lúcia Santaella, o símbolo seria “um meio geral para o desenvolvimento de um<br />
interpretante”. Nota-se que, calando sua fala nesse ponto, o poeta projeta o leitor em<br />
reflexões sobre o tema, deixando-lhe a possibilidade de tomar a personagem como signo<br />
e, vinculando-a a elementos de sua experiência particular, fazer associações entre idéias<br />
e penetrar, assim, numa dimensão crítica. O símbolo realiza, portanto, sua função.<br />
1.3) NEOLOGISMOS<br />
O estilo caleidoscópico de Aldir Blanc, que salpica substantivos e deixa que o<br />
leitor os movimente para formar novas e variadas imagens, fica nítido em “Querelas do<br />
Brasil” (Maurício Tapajós e Aldir Blanc):<br />
32 “Jezabel - esposa de Acab, Rei de Israel, e mãe de Atalia. Foi morta por ordem de Jeú e devorada por<br />
cães” (s.u. Koogan/Houaiss, p. 1285).<br />
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o brazil não merece o brasil<br />
o brazil tá matando o brasil<br />
jereba-saci<br />
caandrades cunhãs ariranharanha<br />
sertõesguimarães bachianaságuas<br />
imarionaíma ariraribóia<br />
na aura das mãos de jobim-açu, ô,ô,ô<br />
pererê camará tororó olerê<br />
piriri ratatá karatê olará<br />
jererê sarará cururu olerê<br />
blá-blá-blá bafafá sururu olará<br />
do brasil s.o.s. ao Brasil<br />
Nesse poema o autor exercita um nacionalismo crítico, aliado a um manejo<br />
vocabular, que penetra a intimidade mórfica e mesmo fonética das palavras para<br />
produzir neologismos e registrar coloquialismos capazes de recuperar as riquezas<br />
naturais e culturais do país, feste<strong>jan</strong>do nomes e obras do nosso modernismo com<br />
recursos tão bem utilizados por esta mesma estética: “caandrades”, “sertõesguimarães”,<br />
“bachianaságuas”, “imarionaíma” – vocábulos com segredos por desvendar.<br />
“Caandrades” – Carlos/Andrade? Os Andrades de cá? Talvez mais desvendável seja<br />
“sertõesguimarães”, que definitivamente funde o lugar da seca com Guimarães Rosa,<br />
que tão bem o retratou; ou “bachianaságuas”, numa referência aos poemas musicais de<br />
Heitor Villa-Lobos; ou, ainda, “imarionaíma”, em que autor/obra/personagem se<br />
confundem. Coerente com sua identidade musical inclui uma homenagem a Tom Jobim,<br />
visto como um indígena (no sentido etimológico do termo) de grandes proporções<br />
criadoras, um compositor grande, como marca o sufixo tupi (“na aura das mãos de<br />
jobim-açu”). Por fim, a denúncia e a crítica configuradas na oposição “brazil” / “brasil”,<br />
apresentadas no início do poema, são substituídas por um pedido de socorro dramático<br />
aos seus iguais: “do brasil s.o.s. ao brasil”. A opção pelo uso do substantivo comum ao<br />
mencionar o país, deixa claro que o poeta não se refere às entidades políticas que são os<br />
países, mas à realidade ideológica que neles se encontra.<br />
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1.4) ECONOMIA VOCABULAR<br />
O exercício crítico e a expressão ideológica marcaram e marcam o trabalho de<br />
Blanc. Por esta característica, todo o povo o conheceu, através de letras como “O<br />
mestre-sala dos mares” e “O bêbado e a equilibrista” (Blanc,2001). Em “O ronco da<br />
cuíca”, mais uma vez, é lançado um olhar crítico sobre a realidade do povo e sobre as<br />
relações de poder que regem o comportamento político-social. No plano da seleção<br />
vocabular, todo um jogo semântico é elaborado com base em apenas alguns lexemas.<br />
O Ronco da cuíca<br />
(BOSCO, João e BLANC, Aldir. In: MPB4, 2000)<br />
a fome tem que ter raiva pra interromper<br />
a raiva é a fome de interromper<br />
roncou, roncou<br />
roncou de raiva a cuíca<br />
roncou de fome<br />
alguém mandou<br />
mandou parar a cuíca<br />
é coisa dos home<br />
a raiva dá pra parar, pra interromper<br />
a fome não dá pra interromper<br />
a raiva e a fome é coisa dos home<br />
a fome tem que ter raiva pra interromper<br />
a raiva é a fome de interromper<br />
a fome e a raiva é coisa dos home<br />
é coisa dos home, é coisa dos home<br />
a raiva e a fome, mexendo a cuíca<br />
vai ter que roncar<br />
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No texto, Blanc “joga” com alguns lexemas e o faz de modo tão flagrante que<br />
mesmo um leitor menos avisado tem condições de perceber, ao menos, a persistência<br />
em alguns vocábulos.<br />
Um levantamento inicial permite identificar palavras-chave deste texto:<br />
• raiva fome cuíca roncar interromper home<br />
Das palavras destacadas, três são substantivos e duas são verbos. Passando a<br />
organizar esse con<strong>jun</strong>to de vocábulos em dois subgrupos, conforme sua classe, teremos<br />
em um grupo, raiva, fome, cuíca e home e em outro as ações de interromper e roncar.<br />
Como suporte para as reflexões que serão feitas, buscou-se o sentido<br />
dicionarizado de cada vocábulo. Em cada verbete transcrito, destacaram-se, desde já,<br />
trechos que parecem vincular-se pelo sentido ao contexto em que os lexemas aparecem.<br />
1.4.1) OS SUBSTANTIVOS: RAIVA, FOME, CUÍCA, HOME<br />
Blanc inaugura seu texto com a tríade que irá sustentar o restante do poema:<br />
fome/raiva/ronco. Nos dois primeiros versos, fome e raiva aparecem em relação de<br />
oposição – a raiva “dá pra parar, pra interromper”, já a fome “não dá pra interromper”.<br />
Logo a seguir, os dois lexemas se aproximam quanto ao efeito por eles produzido, o<br />
ronco, que pode ser “de raiva” ou “de fome”.<br />
Examinando o significado dicionarizado para estes lexemas, tem-se que raiva<br />
corresponde a “violento acesso de ira, com fúria e desespero; ânsia veemente; desejo<br />
irresistível; grande apetite; paixão ardente; aversão, ódio” Fome, por sua vez,<br />
corresponde a “sensação causada pela necessidade de comer; falta, míngua de<br />
víveres; miséria, penúria; avidez, sofreguidão, desejo insaciável” (Michaelis, s.u). Vê-<br />
se que ambos os vocábulos comportam os traços semânticos de ânsia, sofreguidão e<br />
desejo. Igualmente, encontra-se neles o sema da nutrição (raiva=grande apetite;<br />
fome=míngua de víveres).<br />
Entre esses lexemas se estabelece uma forte imbricação, explicitada na<br />
circularidade dos seguintes versos:<br />
• “a fome tem que ter raiva pra interromper”<br />
• “a raiva é a fome de interromper”<br />
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Assim, a fome (que “não dá pra interromper”), reunida à raiva, que traz o traço<br />
“dá pra interromper”, assimila a possibilidade da interrupção. Tem-se, então que:<br />
• Fome + raiva= possibilidade de interromper<br />
Por sua vez, a raiva é definida como “fome de interromper”, ou seja;<br />
• Raiva = fome + interromper<br />
O sentido será completamente tautológico e, portanto, estéril, se exatamente os<br />
mesmos semas participarem da construção dos sememas de raiva e de fome. Façamos<br />
um exame destes semas, comparando-os com os que participam dos sememas cuíca e<br />
home. Antes, porém, vejam-se os verbetes para estes dois termos:<br />
• cuíca (tupi Kuika) – “instrumento musical rústico, de origem africana,<br />
feito de um barrilete ou tronco oco, com uma das bocas tapada por<br />
uma pele bem esticada, em cujo centro há preso por dentro um bastão, o<br />
qual, quando friccionado com a mão, produz um ronco cavo (escavado,<br />
côncavo, cavernoso, rouco)”. (Michaelis, s.u)<br />
• home (corruptela de homem)- “mamífero da ordem dos primatas, único<br />
representante vivente do gên. Homo, da espécie Homo sapiens,<br />
caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis,<br />
inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e<br />
capacidade para produzir linguagem articulada; a espécie humana; a<br />
humanidade; o ser humano considerado em seu aspecto morfológico, ou<br />
como tipo representativo de determinada região geográfica ou época”<br />
(Houaiss, 2000)<br />
LEVANTAMENTO DOS SEMAS DAS PALAVRAS-CHAVE DO TEXTO “O RONCO DA CUÍCA”<br />
desejo ,<br />
ânsia<br />
nutrição dá pra<br />
interrompe<br />
r<br />
saciáve<br />
l<br />
voluntári<br />
o<br />
Causa de<br />
ronco<br />
Consciente Humano<br />
Raiva + + + + + + + +<br />
Fome + + - - - + - +<br />
Cuíca + - + - + + + -<br />
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Retornando aos registros lexicográficos, descobre-se que raiva é definida como<br />
“desejo irresistível, grande apetite”. Irresistível é aquilo a que não se pode fazer frente,<br />
diante do que se está passivo. Apetite evoca a idéia de vontade, de ato voluntário. O que<br />
depende da vontade, “dá para parar, para interromper”; o que é desejo irresistível, não.<br />
Por isso, a fome “não dá pra interromper”, já que se caracteriza pela avidez, pela<br />
sofreguidão, sendo um desejo insaciável, uma necessidade, afastando-se do caráter<br />
voluntário da raiva.<br />
A raiva, no plano do consciente, tem força irresistível, mas pode ser controlada.<br />
A fome, no plano do orgânico, está fora de controle, não tem direção certa, não tem<br />
vontade.<br />
Ao dizer que a fome tem que ter raiva pra interromper, busca-se uma transição<br />
do primeiro elemento do plano orgânico - não-consciente - para o plano do consciente,<br />
voluntário. A raiva empresta à fome os traços +voluntário, +consciente, inaugurando<br />
um novo sentido para o vocábulo, bem como, gerando novas possibilidades de<br />
interromper. “A raiva é a fome de interromper” ─ a raiva, aí, ganha um aspecto de<br />
agente, aquele que vai realizar algo.<br />
A fome consciente pode interromper (no sentido ativo, de fazer parar). A raiva,<br />
acrescida do traço ─ saciável da fome, ganha força para interromper. A leitura passa<br />
então, de uma visão de raiva e de fome, como coisas interruptíveis, para agenciadores<br />
aptos a interromper algo.<br />
Vejamos agora, como se encaixa a cuíca neste raciocínio. A cuíca é um duto com<br />
duas bocas, uma aberta, outra fechada; uma roncando, outra calada. É a boca a boca da<br />
fome, da carência e também a boca do ronco, da raiva. A cuíca dá expressão tanto à<br />
fome quanto à raiva.<br />
No entanto, a cuíca “dá pra interromper”, ou seja, é voluntária e pode ser<br />
interrompida por quantos consigam vetorizar sua raiva, por se sentirem incomodados<br />
pela expressão da cuíca. Entram em cena os “home” ─ aqueles que mandam calar a<br />
cuíca. Dentro do conhecimento partilhado da cultura brasileira, sabe-se que o elemento<br />
home é +voluntário, +consciente e vincula-se ao exercício do poder, da imposição,<br />
sendo capaz de “calar a cuíca”, colocando-a como paciente de sua ação.<br />
1.4.2) Os verbos: roncar, interromper<br />
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Tanto a raiva quanto a fome têm o traço “produtor de ronco”, comum também à<br />
cuíca, que ronca “de raiva” e “de fome”. A raiva e a fome, mexendo a cuíca, vão fazê-la<br />
roncar, não só para expressar a dor, a necessidade, mas para protestar contra a sua<br />
causa, quem sabe até, na tentativa de interromper a opressão. Segundo o verbete, ronca,<br />
do latim Rhonchare, é “produzir som áspero, cavernoso e forte; estrondear, restrugir,<br />
dizer em tom de provocação; blasonar, bravatear” e interromper do latim Interrumpere;<br />
corresponde a “fazer cessar por algum tempo, cortar ou romper a continuidade, destruir,<br />
extinguir, calar-se, falar de coisa diversa do que vinha dizendo, não continuar a fazer o<br />
que estava fazendo; cortar a palavra a” (Michaelis, s.u).<br />
Os home, com raiva, com fome de interromper uma expressão incômoda, que<br />
grita, que “ronca” a fome, a carência, a dor de uma parcela da população; interrompem,<br />
mandam calar a cuíca, fecham-lhe a boca, impedem-lhe o ronco, silenciam-na.<br />
Aldir Blanc, neste jogo de substantivos e verbos, reproduz a rede que prende<br />
uma sociedade caracterizada pela carência, pela necessidade de expressão e pelo<br />
encontro constante com a opressão. Faz da letra do samba uma denúncia acerca das<br />
relações sócio-políticas da sociedade brasileira, especialmente da comunidade carioca,<br />
caracterizada pelo samba e simbolizada pela cuíca. Esta, com suas bocas, sua carência e<br />
sua expressão, mas também com sua submissão involuntária ao poder. É o signo<br />
simbólico de uma sociedade sob regime autoritário, mas a raiva, é esta, sim, o motor de<br />
todas as ações desenvolvidas. A raiva empresta consciência e dá vetor à fome; a raiva<br />
motiva a expressão da cuíca, fazendo-a roncar; a raiva dispara a ação opressora de<br />
mandar calar, de interromper. Ela é o arquissemema do texto de Blanc, capaz de<br />
costurar homens em dois lados, separados pelas suas ideologias, mas iguais na raiva,<br />
numa brigam viril para definir quem, por fim, será interrompido, se a cuíca, se os home.<br />
1.4.3) METÁFORAS: INTIMISMO E EXISTENCIALISMO<br />
Finalmente, após vermos a face descontraída, a face crítica e a engajada de Aldir<br />
Blanc, através de suas letras, vejamos como aparece seu lado existencial, em “Carta de<br />
Pedra”, composição que tem música de Guinga:<br />
CARTA DE PEDRA (Igreja da Penha)<br />
Prezado amigo, escrevo pra esclarecer<br />
que, mesmo antes de nascer,<br />
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meu coração se fez humano por ser suburbano<br />
e o HIV<br />
deu positivo porque meus irmãos<br />
padecem de doença igual<br />
e um degrau atrás de outro degrau<br />
me leva de joelhos à Igreja onde Deus me diz<br />
que o Humano me é estranho, sim,<br />
porque é meu pai e, ai de mim,<br />
nós nos desentendemos sempre<br />
e é assim que se faz<br />
canções, estradas, catedrais<br />
que depois não visitamos mais<br />
dão de nós o melhor testemunho,<br />
Prezado amigo, eu vi sair do papel<br />
A pedra e o fogo que há no céu<br />
E tudo parecia letra de chorinho<br />
E então também chorei...<br />
Os meus avós e o pai são os degraus<br />
Aonde eu piso em direção ao caos<br />
Mas posso ver na beira goiabeiras,<br />
Limoeiros, pés de sapoti<br />
E a Penha volta aqui<br />
Feito o mito de uma Ressurreição.<br />
A hóstia é pedra – hei de ralar!<br />
A Santa não pode cumprir o que não me crismar:<br />
O pai que eu amo não demora,<br />
A valsa chora e eu sei que chora<br />
Pelas Penhas que eu vou inventar<br />
Até que a própria Virgem<br />
Mande eu descansar...<br />
(Guinga & Blanc. In: Aldir Blanc- 50 anos. Rio de<br />
Janeiro: Alma Produções Ltda., 1996)<br />
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Neste poema, em que a escrita surge como elemento capaz de esclarecer a vida,<br />
Blanc trabalha, basicamente, com dois campos semânticos: o da pedra e o da<br />
pacificação.<br />
No campo de pedra, entram todas as referências ao seu sacrifício e às suas dores:<br />
penha, pedra, degrau, hóstia, humano, caos, canções, escadas, catedrais, chorinho. No<br />
campo da pacificação, estão: igreja, goiabeiras, limoeiros, pés de sapoti, virgem, valsa.<br />
A negociação entre esses dois campos é feita pela crisma – sacramento da confirmação<br />
da fé, mudança de nome. Assim, só pela transformação – escolhida pessoalmente –<br />
poderá ele receber a autorização da virgem para descansar.<br />
Mas note-se que as penhas inventadas são motivos para maiores escritas, maiores<br />
construções ...o fazer do poeta não pára. Não é apenas o eu-lírico que se transmuta; as<br />
penhas, as dores, as marcas da vida igualmente se transmutam em versos, em matéria<br />
poética.<br />
Aqui, Blanc trabalha com símiles e metáforas para criar um cenário que o<br />
represente como ser humano, estranho, sofrido, mas a caminho de esclarecimento pela<br />
poesia, numa relação religiosa com as palavras, tijolos lexicais que sustentam catedrais<br />
de sentido – um sentido revelador.<br />
2) A POESIA DE BLANC E A SALA DE AULA<br />
Muitas são as letras de Blanc que podem ser discutidas e aproveitadas em sala de<br />
aula, para deflagrar um processo perceptivo, qualificado em nossos alunos.<br />
Descortinando <strong>jun</strong>to com eles os véu que inicialmente parecem esconder o poético, é<br />
possível inaugurar novos sentidos, colocar os discentes em atitude de parceria e de<br />
cumplicidade com o texto.<br />
Partindo de letras com vocabulário popular, seguindo para outras mais<br />
sofisticadas, pode-se, ao mesmo tempo, desenvolver num crescendo a capacidade de ler<br />
– não no sentido estritamente alfabético, mas na acepção mais ampla de decifrar o<br />
mundo. Lendo a realidade através de outras palavras, de imagens originais, o aluno<br />
cresce e enriquece seu repertório, familiariza-se com outras formas de dizer, ver e<br />
enxergar.<br />
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Num tempo em que letras de música escorregam para discursos fragmentários, é<br />
mais que urgente, investir num trabalho que apresente qualidade poética e criativa aos<br />
nossos alunos, mostrando que um mesmo poeta pode ser versátil e passear entre a<br />
expressão popular e alguma erudição, sem se perder de si mesmo e sem se afastar de um<br />
compromisso com a música brasileira de qualidade.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BLANC, Aldir (1996). 50 anos (CD). Rio de Janeiro: Alma.<br />
__________ (2001). A poesia de Aldir Blanc: melodias e letras cifradas para guitarra, violão e<br />
teclados. Coord. edit. Roberto Mora; prod. Luciano Alves. São Paulo: Irmãos Vitale.<br />
KOOGAN/HOUAISS(1993). “Enciclopédia e dicionário ilustrado”. Rio de Janeiro: Ed. Delta.<br />
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (v 1.0). Ed. Objetiva,<br />
2001<br />
MPB4 (2000). MPB4 VIVO – Melhores momentos. Rio de Janeiro: Cid<br />
PEIRCE, Charles Sanders (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.<br />
Revista Letristas Brasileiros (n º 1, 1996). Aldir Blanc e amigos.Rio de Janeiro: Alma.<br />
SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São<br />
Paulo: Pioneira, 2000.<br />
SIMÕES, Darcília. “Leitura e produção de textos: subsídios semióticos”. In: Valente, A. (org.).<br />
Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis, RJ:Vozes, 1999.<br />
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1) INTRODUÇÃO<br />
UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO<br />
Cláudio Artur de O Rei (<strong>UERJ</strong>-UNESA) 33<br />
Estilo é a linguagem que transcende do plano intelectivo para<br />
carrear a emoção e a vontade. (Mattoso Câmara, 1988:13)<br />
A Retórica, velha ciência da persuasão definida como uma arte do discurso eficaz (ars<br />
bene discendi), embora tenha sido suprimida como disciplina do currículo escolar, jamais<br />
cessou de reaparecer. Às vezes, fragmentada e camuflada, recebeu denominações diversas ao<br />
sabor da moda: Teoria da Composição, Arte Oratória, Teoria das Figuras, Estética, Poética,<br />
Estilística... E é exatamente com essa denominação Estilística que nosso trabalho será enfocado.<br />
Entretanto, sabemos que a Estilística sempre fora vista como a “irmã pobre” dentre os<br />
ramos da lingüística, tendo nesta mesma havido uma tendência que se recusava a inserir nos<br />
seus limites o problema da expressividade individual ou mesmo coletiva.<br />
Nossa proposta em desenvolver um trabalho em Estilística se dá pelo fato de ser ela<br />
uma ciência bastante abrangente o que nos permite utilizar como corpus um texto literário como<br />
o conto O Búfalo, de Clarice Lispector, e desmembrá-lo em uma análise que passa pelos níveis<br />
gramaticais, lingüísticos e literários, visto que a Estilística não é um estudo centrado em si<br />
mesmo, pois tal estudo nos permite “passear” por outros ramos de estudo.<br />
O corpus será analisado conforme a proposta do livro Iniciação à Estilística, de Nilce<br />
Sant’Anna, respondendo às perguntas por ela elaboradas as quais direcionarão o estudo<br />
estilístico que nos propomos.<br />
Nossa análise do conto O Búfalo tentará comentar os níveis de estruturação estilística<br />
do texto, num percurso dedutivo, o que nos oferece um leque de diferentes caminhos para<br />
análise, da mesma forma que sabemos da impossibilidade de esgotar aqui toda a riqueza dessa<br />
produção textual, devido às inúmeras possibilidades ou potencialidades existentes no corpus.<br />
Assim, partindo dos grandes núcleos significativos do conto (eixos semânticos),<br />
tentaremos levantar, comentar e classificar palavras, expressões e estruturas nominais e orações<br />
que participem da trama metafórica do conto. Além das estruturas das palavras, analisaremos,<br />
também, seu aspecto fonético, a expressividade de certas vogais e consoantes de acordo com as<br />
propostas da Fonoestilística.<br />
Mais adiante,tomaremos os determinantes — artigos e adjetivos — como alvo de<br />
análise com o objetivo de apontar-lhes os efeitos de sentido emergentes de sua posição nos<br />
enunciados, isto é, os valores expressivos de certas anteposições e posposições de adjetivos e a<br />
escolha no uso de alguns deles. Faremos, também, um levantamento do uso dos artigos<br />
definidos e indefinidos e as implicações no uso de cada um deles ou mesmo em sua omissão.<br />
Outro aspecto que também será abordado por nós é a questão da função poética em<br />
prosa que se apresenta no conto e de que forma Clarice Lispector consegue subverter esses<br />
valores poéticos mais simples em uma linguagem em prosa em prol de uma riqueza expressional<br />
ímpar.<br />
33 O autor é doutorando em Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong>, é docente da Universidade Estácio de Sá e da<br />
rede municipal de ensino.<br />
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Por fim, para não frustrar o leitor de qualquer estudo estilístico, apresentaremos breve<br />
quadro das figuras presentes no texto — sejam de substância fônica, sintática ou semântica —<br />
seguidas de breve exemplário.<br />
Todavia, é indiscutível que temos uma meta além da análise do conto O Búfalo: a de<br />
mostrar que a Estilística não está presente apenas nos livros de Retórica do passado, mas que ela<br />
é uma ciência com vezo semiótico-pragmático, constante em nosso uso diário, mesmo que por<br />
muitos não seja vista como tal.<br />
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA<br />
E aqui tocamos no ponto crucial: a escolha. Aí está a alma do<br />
estilo. A língua oferece possibilidades: o sujeito elege uma e<br />
rejeita a outra. (Chaves de Melo, 1976:23)<br />
A Estilística é uma disciplina lingüística que se fundamenta nos fatores de<br />
expressividade e afetividade; e seu papel é depreender todos os processos lingüísticos que<br />
permitem a atuação da manifestação psíquica e do apelo dentro da língua intelectiva. (Mattoso,<br />
1975: 137), e baseado nessa assertiva, ousamos dizer que a Estilística é uma espécie de<br />
"psicologia lingüística", destarte, a moderna noção de estilo, envolvendo a compreensão do<br />
autor e da obra, deixou de ser formal, retórica ou gramatical, para ser psicológica. Assim, a<br />
Estilística ocupa-se, primordialmente, da função afetiva da linguagem.<br />
Outrossim, o estilo é visto como um processo que exige conhecimento, gosto, requinte,<br />
senso de proporção e adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa e constante<br />
reinvenção. Cremos pertencer a Sílvio Elia uma das melhores caracterizações de "estilo",<br />
quando diz: Estilo significa o máximo de efeito expressivo que se consegue obter dentro das<br />
possibilidades da língua. (apud: Chaves de Melo, 1976: 24).<br />
Do ponto de vista cronológico, a Estilística é uma ciência bastante recente. Foi<br />
inaugurada em 1902 por Charles Bally, e como bem assinalou Chaves de Melo (1976: 15) até<br />
hoje está procurando seus direitos de cidadania, ou seu foral, no reino das disciplinas<br />
lingüísticas. No entanto, foi efetivamente a partir da Estilística idealista de Leo Spitzer, seguida<br />
então por Dámaso Alonso, Amado Alonso — que se distinguiam dos princípios de Bally,<br />
Vossler e Auerbach pela modernidade — que os estudos da expressão literária começaram a<br />
tomar impulso, dando início a uma reformulação crítica no processo literário, isto é, a velha<br />
retórica cede lugar a uma nova retórica (Estilística), em cujas premissas já não se exige o uso de<br />
uma "língua bonita", congelada pelas regras dos gramáticos. A língua, sendo uma expressão do<br />
homem, evolui com o homem, com os costumes, os ideais e os usos que ela exprime. Essa nova<br />
retórica implica a alteração conceitual de linguagem e estilo.<br />
Infelizmente, porém, há um grande ressentimento em nossa cultura lingüística, tomada<br />
essa palavra no sentido amplo de estudo das Letras, pela ausência de uma tradição de pesquisas<br />
estilísticas, seja da Estilística como ciência da expressão, seja da crítica estilística que aponta<br />
para a escrita literária.<br />
Tal desinteresse por esse tipo de estudo ocorre devido a dois conceitos falhos. O<br />
primeiro deles é que durante muito tempo prevaleceu entre nós as noções da antiga retórica,<br />
confundindo a Estilística com a parte da gramática que estuda as figuras de linguagem e os<br />
recursos poéticos. O segundo conceito falho é que os raros estudos acerca da expressão<br />
estilística literária têm-se limitado ao círculo restrito do meio universitário, distantes, portanto,<br />
do público maior interessado em Letras.<br />
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Dessa forma, tentando contribuir para o desfazimento desses antigos conceitos, optamos<br />
por trabalhar com um corpus literário, porém com diretrizes bastante diferentes daquelas a que<br />
estamos acostumados ver como modelo de análise estilística. Assim sendo, dentro do vasto<br />
campo da Estilística, optamos pela Estilística literária para a abordagem e elaboração deste<br />
trabalho.<br />
Não seguiremos, entretanto, uma linha de análise centrada em um único estilisticista,<br />
trabalharemos com concepções variadas de diferentes correntes que sejam pertinentes ou que se<br />
encaixem à proposta do trabalho. Aplicaremos modelos e conceitos de Spitzer, Vossler,<br />
Auerbach, Amado Alonso, Guiraud, Castagnino entre outros, por serem estudiosos da Estilística<br />
com visões diferentes, mas que se complementam em nossa proposta. Tal fato procede em<br />
virtude da grande maleabilidade com que Clarice Lispector trabalha as palavras nesse conto;<br />
logo, não nos podemos ater a uma única análise, ou a um único teórico.<br />
Seguindo a definição de que Estilística literária examina como é constituída a obra<br />
literária e considera o prazer estético que ela provoca no leitor; temos que o que interessa é a<br />
natureza poética do texto. Traços lingüísticos, dados históricos, ideológicos, sociológicos,<br />
psicológicos, geográficos, folclóricos etc., a visão de mundo do autor, tudo se engloba no valor<br />
estético da obra, que está impregnado do prazer do autor de criá-la e que vai suscitar no leitor<br />
um prazer correspondente, e tal conceituação corresponde bem ao que pretendemos fazer.<br />
O nosso trabalho será de pesquisa bibliográfica, sendo o corpus formado por um conto<br />
específico de Clarice Lispector cuja análise será norteada por perguntas específicas, então a<br />
leitura proposta não poderá ser concebida como a única possível; pois não teremos tempo hábil<br />
nem pretensão de dizer que esgotaremos todas as possibilidades do corpus.<br />
Porém, um enfoque estilístico mais profundo pode levar-nos a conclusões finais até<br />
então não supostas ou levantadas.<br />
3)ANÁLISE DO CORPUS<br />
3.1)UMA PROPOSTA DE LEITURA<br />
Não se preocupe em entender; viver ultrapassa todo o<br />
entendimento. (Clarice Lispector, in: A Hora da Estrela)<br />
Após a leitura do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, optamos por iniciar a nossa<br />
análise pelo narrador. A história é contada em terceira pessoa por um narrador onisciente neutro,<br />
que cede, às vezes, à personagem principal da história o direito da fala: Mas não o camelo de<br />
estopa. “Oh Deus, quem será o meu par neste mundo?”<br />
O tempo é marcado, no texto, por uma seqüência natural e ordenada, os fatos se<br />
justapõem. Embora haja uma situação de tempo: Mas era Primavera, nós não conseguimos<br />
captar no texto nenhum outro marcador temporal, isto é, nem o dia da semana, nem o mês, nem<br />
o ano. Isto é bastante interessante, pois a temática do texto é algo que pode acontecer em<br />
qualquer época.<br />
Um dos tópicos que mais nos chamou a atenção foi a questão da personagem<br />
protagonista da história, que nós sabemos apenas ser uma mulher. Ocorre uma anonímia no<br />
conto, ou como mesmo disse o narrador: a assassina incógnita. Acreditamos que tal fenômeno<br />
ocorra por não ser algo específico, mas passível de ocorrência a qualquer um.<br />
A história gira em torno da frustração amorosa de uma mulher e a manifestação latente<br />
da busca do prazer sexual: (...) deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro<br />
gemido., ou sua vida estava perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se<br />
(...), ou A brisa arrepiou os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, (...), ou ainda Gemeu<br />
de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado ferro<br />
frio.<br />
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A conotação sexual no conto é bastante expressiva, (...), por enquanto apenas a vontade<br />
atormentada de ódio como desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de<br />
amor, a vontade de ódio como se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea espiritualizarase<br />
na grande esperança. Percebemos que ela tem o desejo, que é a falta, é a necessidade do<br />
outro, do par, do complemento, visto que ela está só e está à procura do objeto "a", que é o<br />
representante do desejo, ou da "coisa", que é o impossível 34 . O marcador temporal Mas era<br />
Primavera relaciona-se diretamente com essa questão, pois é o tempo do acasalamento dos<br />
animais: O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas<br />
que arranham mas não dói ... Interessante de se ressaltar, nessa passagem, o uso do verbo<br />
“cristianizar” numa alusão ao conceito do crescei-vos e multiplicai-vos, ainda mais sendo de<br />
nosso conhecimento as origens judaicas da autora do conto.<br />
Em seu passeio ao zoológico, a personagem procura a identificação do objeto amado<br />
nos animais, talvez por se sentir como um animal, no cio, tentando acasalar-se, e em algumas<br />
passagens do texto, sente-se como se estivesse presa, enjaulada: "(...) rodeada pelas jaulas,<br />
enjaulada pelas jaulas fechadas, ou (...) A jaula era sempre do lado onde ela estava: (...), ou<br />
ainda A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava<br />
enjaulada e que um quati livre a examinava.<br />
Em sua procura, num misto de amor e ódio, a personagem observa os animais, e<br />
associa-os começando pelo leão, pelo rei, cujo apetite sexual faz com que consiga copular até<br />
setenta e duas vezes por dia, sentiu o cheiro quente. Já a girafa e o camelo não lhe inspiraram<br />
grandes sentimentos, talvez por serem ruminantes, e ficarem como ela própria "ruminando" a<br />
vida e na vida, era uma semelhança não o confronto que ela buscava.<br />
O hipopótamo despertou nela algo estranho, ousamos mesmo dizer algo fálico, como na<br />
passagem O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda.<br />
Seu grande e primeiro confronto, no entanto, foi com os macacos. Os primatas. Os semelhantes<br />
no mundo animal. Ao observá-los, começou a sentir o ódio pela possível identificação, mas isto<br />
foi exatamente o fator que a repeliu, pois o que ela queria era algo mais próximo da "besta fera"<br />
e não do homem. Se ela quisesse matar um homem, ela teria matado aquele que não a quis: “Eu<br />
te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse<br />
muito apressada. ou Eu te amo, disse ela então com ódio, para o homem cujo grande crime<br />
impunível era o de não querê-la., é de ressaltar o uso das aspas em "Eu te odeio" e o não uso em<br />
Eu te amo, percebemos mais uma vez a estreita relação e aproximação entre amor e ódio<br />
conflitantes que co-habitam dentro da personagem.<br />
Mas não o macaco, muito próximo! Há, ainda, a constatação de que o macaco era velho,<br />
logo sua capacidade de reprodução já estaria no fim. Tal fato também pode ser aplicado ao<br />
elefante, que lhe lembra um velho dócil; não esquecendo que o referido animal é uma raça em<br />
extinção. Animais estes não compatíveis com seu intuito. O mesmo pensamento ocorreu com o<br />
quati. Ele era a inocência, aquela sensação infantil de quem ainda não despertou para o amor ou<br />
para o cio.<br />
34 Apontamentos de aulas do curso de Literatura Portuguesa III, ministrado pela professora Nadiá Ferreira<br />
em 1987 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />
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Em suas reflexões, a personagem vai-se deparando com conflitos psicológicos<br />
subconscientes que lhe causam verdadeiras ansiedades neuróticas. O conflito amor e ódio não<br />
assume uma relação antitética, mas sim uma "perfeita" sinonímia. A tênue linha que separa<br />
amor e ódio é rota, o que os aproxima paradoxalmente, e ela tem a necessidade de amar para<br />
odiar ou de odiar para a amar: O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em dor ela não<br />
alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? ou Só sabia perdoar, que só<br />
aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, amar. Imaginar que<br />
talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração<br />
gemer sem pudor, ou ainda, Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo, já antecipando que a<br />
culminância de seu conflito será a morte. Afinal, durante a leitura do conto o narrador vai-nos<br />
dando pistas desse conflito: encolheu-se como uma velha assassina solitária, ou a assassina<br />
incógnita, ou ainda, E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. E é<br />
exatamente nessa esteira de análise, que vamos notando mais pistas em relação à morte, sendo<br />
que só temos a conclusão desse ato no desfecho da narrativa, quando descobrimos, finalmente,<br />
porque a personagem sempre punha a mão no bolso quando via um animal, ali estava o punhal<br />
que ela usaria para matar: Com os punhos nos bolsos do casaco, ou (...) apertando o punho no<br />
bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos (...), ou ainda, os punhos de novo fortificados nos<br />
bolsos.<br />
Inferimos, ainda, nessa questão do casaco, a ênfase dada ao adjetivo marrom, quando o<br />
narrador descreve a personagem com o casaco: A mulher do casaco marrom, ou quieta no<br />
casaco marrom, ou ainda, Dentro de um casaco marrom. Cremos que tal ênfase seja uma<br />
associação à idéia de transformação da personagem, isto é, como se ela vestisse, através do<br />
casaco, uma pele ou uma pelagem de animal, visto que ela está no zoológico à procura do seu<br />
par, mesmo que seja entre os irracionais: “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”<br />
Percebemos que o narrador faz, no decorrer do conto, quatro alusões à fome: (...), há<br />
dias mal comia, contraiu-se em cólica de fome, (...), fazia o possível para que não percebessem<br />
que estava fraca e difamada, (...), Mas o céu lhe rodava o estômago vazio; (...). Associamos tais<br />
alusões ao fato de que as fêmeas no cio mal se alimentam, pois a fome é tida como um dos<br />
maiores afrodisíacos naturais que existe (fato constatado em qualquer país de economia<br />
miserável).<br />
O narrador em dois momentos distintos e opostos faz referência à palavra Igreja:<br />
Separadas de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. e Pálida, jogada fora de<br />
uma Igreja, (...) Na primeira referência, vemos a aproximação do desejo do casamento (ou do<br />
acasalamento), porém, na segunda referência, vemos que o afastamento de tal objetivo é bem<br />
marcado, o que faz com que ela retorne à realidade, ou seja, à busca do "objeto" amado, visto<br />
que a manifestação do desejo sexual já a está extasiando: Levantou-se do banco estonteada<br />
como se estivesse se sacudindo de um atropelamento.<br />
Então, após longa procura ela se depara com o búfalo, que, como ela, também estava só<br />
em plena primavera; ocorrendo, assim, uma perfeita identificação entre eles, pois o búfalo vai<br />
tornar-se o objeto de seu desejo. E com o encontro vem o confronto, uma soturna rivalidade que<br />
culmina com a morte dos dois: (...), sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato.<br />
Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara.<br />
Sutilmente, o narrador nos mostra isto através do adjetivo mútuo, e também a grande fixação<br />
que a personagem tem pelos olhos. Ao analisar os macacos, ela já sugere que seria entre os<br />
olhos do macaco que ela o mataria. Chegamos à conclusão de que é exatamente neste ponto<br />
(local) em que ela crava o punhal, ao mesmo tempo em que o chifre do búfalo também se crava<br />
nela, como um símbolo fálico de complementação do vazio: a realização do desejo.<br />
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3.2) SUGESTÃO DE ESTUDO<br />
3.2.1) OBSERVAR O EMPREGO EXPRESSIVO DE PALAVRAS GRAMATICAIS. COMO A<br />
CONJUNÇÃO MAS E O ARTIGO DEFINIDO.<br />
A con<strong>jun</strong>ção mas é empregada largamente no texto, é, inclusive, a primeira palavra do<br />
mesmo, porém tal palavra é empregada com uma acepção diferente da que lhe é comum.<br />
Sabemos que essa con<strong>jun</strong>ção possui valor de oposição, adversidade; entretanto, no texto, ela<br />
apresenta um caráter mais subjetivo, introspectivo, não conhecemos a idéia anterior para saber<br />
se ocorre ou não a oposição.<br />
Podemos, então, analisar a palavra mas em momentos distintos: como con<strong>jun</strong>ção<br />
operando como sinalizador de relações opositivas, como operador argumentativo, pois além do<br />
caráter de oposição também direciona a linha argumentativa do discurso, e como marcador,<br />
onde não terá uma atuação no nível sintático nem denotará relações de adversidade entre<br />
orações, servirá como seqüenciador e organizador do discurso.<br />
Em nossa pesquisa estatística no texto, achamos a palavra mas em vinte e quatro<br />
passagens, as quais esquematizamos no quadro abaixo.<br />
CLASSIFICAÇÃO EXEMPLO COMENTÁRIOS<br />
C<br />
O<br />
N<br />
J<br />
U<br />
N<br />
Ç<br />
Ã<br />
O<br />
O<br />
P<br />
E<br />
R<br />
A<br />
D<br />
O<br />
R<br />
A<br />
R<br />
G<br />
U<br />
M<br />
E<br />
N<br />
Aquele elefante inteiro a quem fora dado com<br />
uma simples pata esmagar. Mas que não<br />
esmagava<br />
(...), o prazer percorreu suas costas até o malestar,<br />
mas não ainda o mal-estar que ela viera<br />
buscar.<br />
O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em<br />
dor ela não alcançava?<br />
(...) o mundo das bestas que na primavera se<br />
cristianizam em patas que arranham mas não<br />
dói ...<br />
A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era<br />
bom no cair da tarde.<br />
Talvez não a tivesse olhado Não podia saber,<br />
porque das trevas da cabeça ela só distinguia os<br />
contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto<br />
ou sentido.<br />
Sua força estava ainda presa entre as barras,<br />
mas uma coisa incompreensível e quente (...)<br />
Mas de costas para ela o búfalo totalmente<br />
imóvel.<br />
“Mas isso é amor, é amor de novo.”<br />
(...) encontrar-se com o próprio ódio mas era<br />
primavera e dois leões (...)<br />
Mas não diante da girafa que (...)<br />
Mas não era no peito que ela mataria, (...)<br />
Mas não sabia sequer como se fazia.<br />
T Mas não o camelo de estopa.<br />
A adversidade encerra também uma idéia<br />
de restrição. 35<br />
A adversativa encerra uma idéia de<br />
retificação.<br />
A adversativa encerra uma idéia de<br />
indignação.<br />
A adversativa encerra uma idéia de<br />
exceção<br />
A adversativa encerra uma idéia<br />
de compensação.<br />
A adversativa encerra uma idéia de<br />
insistência.<br />
A adversativa encerra uma idéia de<br />
restrição.<br />
Encerra uma idéia de indignação,<br />
pelo próprio teor do parágrafo.<br />
Chamamos a palavra mas, nessa análise,<br />
de operador argumentativo por conduzir<br />
uma orientação argumentativa ao<br />
discurso,já que notamos a possibilidade de<br />
alcance da interrogação, isto é, possibilitase<br />
a articulação por sobre os limites da<br />
conversa, como se o narrador “dialogasse”<br />
com os leitores e expusesse suas<br />
35 Para tais conceituações indicamos conferir:<br />
SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro (1999). “Um estudo do item MAS na gramática e no discurso”. In:<br />
Caderno Seminal, Ano 5 – Nº 6. Rio de Janeiro: Publicações DIALOGARTS.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 125
M<br />
A<br />
R<br />
C<br />
A<br />
D<br />
O<br />
R<br />
A<br />
T<br />
I<br />
V<br />
O<br />
Mas como se tivesse engolido o vácuo, o<br />
coração surpreendido.<br />
Mas onde, onde encontrar o animal que lhe<br />
ensinasse a ter o seu próprio ódio?<br />
Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a<br />
alegria de andar descalça?<br />
Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela<br />
escorria enfim o primeiro fio de sangue negro.<br />
Mas era primavera<br />
Mas a girafa era uma virgem de tranças recémcortadas.<br />
Mas era primavera, e, apertando o punho no<br />
bolso do casaco, (...)<br />
Mas o elefante suportava o seu próprio peso.<br />
Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, (...)<br />
Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; (...)<br />
com os leitores e expusesse suas<br />
argumentações para justificar as intenções<br />
da personagem, ou mesmo questioná-las 36 .<br />
Não existe, ainda, um conceito sistema-tico<br />
para a classificação marcador, todavia,<br />
sabemos que ele funciona como um<br />
organizador e seqüenciador de partes<br />
maiores do discurso: as relações tópicas,<br />
uma vez que ele organiza o discurso,<br />
contribui para a interação dialógica e<br />
promove a ligação entre as partes do<br />
discurso, retomando ou iniciando o turno.<br />
Ainda em relação à expressividade do mas, analisando as palavras de LAPA Sempre que<br />
vemos o homem revoltar-se contra o seu destino, encontramos a con<strong>jun</strong>ção mas, (1991: 201)<br />
parece-nos haver aí uma grande relação bastante pertinente com o conto, na medida em que<br />
sabemos que a personagem é um ser amargurado com o seu destino, daí a necessidade dela de<br />
amar para odiar e de odiar para amar, ou como vemos no desfecho da narrativa de matar para<br />
morrer e de morrer para matar. E, além disso, não podemos também nos furtar de admitir que<br />
todo movimento de surpresa pressupõe um mas (Lapa, 1991: 201), como na passagem: Mas de<br />
repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar,<br />
aquele espanto (...).<br />
Em relação à abundância de artigos definidos no texto, cremos que esteja ligada à<br />
questão da totalidade que o uso do referido artigo encerra. O artigo definido tem um efeito de<br />
representação que acentua o aspecto visual e familiar com os substantivos a que se direcionam.<br />
No texto, a personagem principal está à procura de algo que lhe falta, preencher o vazio,<br />
por isso é usado o artigo com valor totalitário, já que a cada momento ela pode deparar-se com o<br />
que procura.<br />
Destarte, em relação ao uso do artigo, podemos perceber que, no conto, o emprego dos<br />
indefinidos é bastante incomum; porém, há um emprego que é de grande importância salientar.<br />
Percebemos que o título é O Búfalo, com o artigo definido, e durante a narrativa o emprego<br />
continua sendo o mesmo: o búfalo, o animal específico com o qual a personagem se identificou.<br />
Curiosamente, a última palavra do texto também é búfalo, sendo que é a única passagem em que<br />
ele é empregado (precedido) por um artigo indefinido. Entendemos isso como o fim da<br />
expectativa da personagem: a mulher viu o céu inteiro e um búfalo; vemos que a mulher é<br />
específica (a personagem), e que ela também atingiu o seu objetivo: o céu (metaforicamente<br />
indicando a morte da personagem) e que o agente causador não importa mais: um búfalo, não<br />
mais aquele búfalo que ela escolheu para os seus propósitos. Como ele poderia ter sido qualquer<br />
outro. O búfalo representa agora uma imprecisão, uma indeterminação, algo vago; ou, também,<br />
a idéia de que o búfalo que ela vê no céu seja a Constelação de Touro, uma vez que,<br />
anatomicamente, são parecidos pois pertencem à mesma classe de animais. Astrologicamente,<br />
as pessoas sob a influência de tal constelação são determinadas em seus propósitos, o que vem a<br />
corroborar a noção de que a personagem tenha atingido a sua meta, a sua determinação.<br />
36 Idem.<br />
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Além dessa passagem, uma outra similar ocorre com a palavra homem em duas<br />
situações distintas:“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amála.<br />
“Eu te odeio”, disse muito apressada e em Eu te amo, disse ela então com ódio, para o<br />
homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la, vemos então que na relação<br />
antitética entre amar e odiar, a personagem altera o uso do artigo. No que tange ao amor, é o<br />
homem, específico, aquele quem ela ama; já em relação ao ódio, é um homem, qualquer<br />
homem, algum homem, como se ela houvesse generalizado o ódio para toda a raça masculina,<br />
por isso o indetermina.<br />
Notamos que a reiteração constante do artigo marca o processo gradativo da narrativa<br />
evitando possíveis equívocos de compreensão, devido à ambigüidade causada, em certos casos,<br />
pela elipse do mesmo.<br />
Porém, percebemos que na dicotomia amor/ódio presente, no texto, a palavra amor,<br />
freqüentemente, não é precedida por artigo, e fator inverso ocorre com a palavra ódio: Mas isso<br />
é amor, é amor de novo., ou por amor, amor, amor (...), (...) não era o ódio ainda, ou o ódio<br />
que lhe pertencia. A omissão do artigo, neste contexto, possui uma concisão enérgica, até<br />
mesmo, dramática, que acentua expressivamente o valor daquilo que ela não tem: amor, como<br />
que se a ausência do artigo sugerisse a incerteza da própria existência desse sentimento.<br />
3.2.2) EXAMINAR OS ASPECTOS VARIADOS DO LÉXICO — A ADJETIVAÇÃO, OS<br />
EMPREGOS FIGURADOS.<br />
O emprego estilístico do adjetivo no conto é bem articulado e intencionalmente<br />
empregado. Todos os animais citados são adjetivados; tudo a que ela se refere, olha ou pensa<br />
vem seguido de adjetivo, como se quisesse qualificar/caracterizar ou até mesmo justificar seus<br />
objetivos, propósitos.<br />
Os adjetivos empregados para os animais são bastante sugestivos devido à sua carga de<br />
significação: leões — glabra (adjetivo digno de uma "rainha"), louros, enjubado; girafa —<br />
aérea, virgem; hipopótamo — úmido, roliço; macaco — velho; elefante — inteiro, oriental;<br />
camelo — corcunda; quati — curioso, livre; búfalo — negro, preto, calmo, tranqüilo. Ainda<br />
percebemos que ao ver o camelo ela sentiu ódio, um ódio seco, adjetivo que está ligado ao<br />
campo semântico de camelo.<br />
Quanto à posição do adjetivo, tanto aparece anteposto ao substantivo quanto posposto,<br />
dependendo da carga afetiva depositada no adjetivo. Assim, temos: onde por puro amor<br />
nasciam entre os trilhos ervas de um verde (...) e aspirou o pó daquele tapete velho, é de se<br />
apreciar que, no primeiro exemplo, o adjetivo puro denota a idéia de matização afetiva,<br />
enquanto que, no segundo exemplo, o adjetivo velho conserva o seu valor próprio, sem<br />
impregnação de sentimentos.<br />
A linguagem no conto é bastante figurada. O cunho metafórico é predominante na<br />
narrativa. Há várias seqüências de imagens sutis que encobrem a rudeza da realidade.<br />
Entretanto, além da metáfora propriamente dita, podemos reconhecer outros exemplos de<br />
linguagem figurada. Abaixo, enumeramos algumas delas em tabela:<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 127
FIGURA DEFINIÇÃO EXEMPLO<br />
Fusão de diversas impressões sensoriais na expressão lingüística; (...) onde só com cheiro<br />
associação de sensações: a percepção própria de um sentido quente lembrava (...)<br />
Sinestesia desencadeia reações em outros. Somente o cheiro da poeira do<br />
camelo (...)<br />
Epizeuxe<br />
Paradoxo<br />
Oxímoro<br />
Símile<br />
É o enfileiramento de palavras repetidas (iguais).<br />
A paciência, a paciência, a<br />
paciência,<br />
encontrava<br />
só isso ela<br />
e só aprendera a amar, a<br />
amar, a amar.<br />
Contraste que ocorre em um mesmo determinante. ,diante daquele silencioso<br />
Consiste na ligação entre duas idéias ou pensamentos que, na<br />
realidade, excluem-se.<br />
Confronto claro entre coisas e seres, geralmente usando termos<br />
marcadores de comparação.<br />
pássaro sem asas.<br />
,tal doce martírio em não<br />
saber pensar.<br />
,nos olhos a doçura da<br />
doença,<br />
FIGURA DEFINIÇÃO EXEMPLO<br />
Apóstrofe<br />
Diácope<br />
Anadiplose<br />
Catacrese<br />
Quiasmo<br />
Antítese<br />
(...) a ter a doçura da<br />
infelicidade,<br />
Macacos felizes como ervas<br />
(...), branca como papel, fraca<br />
como papel,<br />
(...), viscosa como uma saliva.<br />
Consiste em dirigir-se o orador ou escritor, interrompendo-se em “Deus, me ensine somente a<br />
tom patético ou pungente, a seres, pessoas ou coisas reais, fictícios odiar”.<br />
ou ausentes. “Oh Deus, quem será meu par<br />
neste mundo?”<br />
É a separação de palavras repetidas.<br />
É o emprego da mesma palavra ou expressão no final de uma frase<br />
ou verso e no início da frase ou verso seguinte.<br />
Uma das variedades da Metáfora é a mudança do significado natural<br />
de uma palavra, geralmente pela defecção, no idioma, de termo<br />
mais apropriado.<br />
É um cruzamento de termos efetuados por meio de uma mera<br />
repetição simétrica.<br />
É uma oposição de idéias.<br />
O chão onde simplesmente por<br />
amor – amor, amor, não o<br />
amor! –<br />
(...) ingenuidade do quati. O<br />
quati<br />
curioso lhe fazendo uma<br />
pergunta (...)<br />
(...) a ter o seu próprio ódio? O<br />
ódio que lhe (...)<br />
Enterrar a cara entre a dureza<br />
das grades.<br />
(...) ninguém interessado nela,<br />
e ela não<br />
interessada em ninguém.<br />
Os olhos vindos de sua própria<br />
escuridão na<br />
desmaiada luz da tarde.<br />
Sobre o negror a alvura<br />
erguida dos cornos.<br />
Polissíndeto Repetição do mesmo conectivo no início do período, verso ou frase. (...) é grande e leve e sem<br />
Metonímia<br />
Consiste no emprego de uma palavra em virtude de haver entre elas<br />
algum relacionamento.<br />
culpa (...)<br />
Ela mataria a nudez dos<br />
macacos. (O abstrato pelo<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-20<strong>04</strong>] — ISSN 1806-9142 128
Metáfora<br />
Aliteração<br />
Hipálage<br />
Pleonasmo<br />
Anáfora<br />
É a comparação direta sem o uso de conectivos, uma ação mental<br />
de associação de idéias.<br />
É a repetição do mesmo som consonantal<br />
Consiste em atribuir a um termo da frase qualificações pertencentes<br />
a outro ou outros termos<br />
Repetição de palavras ou de idéias que têm o mesmo sentido.<br />
Muitas vezes, repete-se um elemento da oração ou preposição, ou<br />
se empregam palavras que, embora desnecessárias para a perfeita<br />
expressão do pensamento, servem para dar à elocução mais<br />
energia, graça, força ou elegância.<br />
É a repetição da mesma palavra no início de frases, períodos ou<br />
versos.<br />
concreto: nudez = órgão<br />
sexual)<br />
(...) reconstituiu sobre as patas<br />
estendidas a cabeça de uma<br />
esfinge.<br />
O rolo roliço de carne, carne,<br />
redonda (...)<br />
(...) quente no enferrujado frio<br />
do ferro.<br />
E no silêncio do cercado, os<br />
passos vagarosos, a poeira<br />
seca sob os casacos secos.<br />
Somente o cheiro de poeira do<br />
camelo vinha de encontro ao<br />
que ela viera: ao ódio seco (...)<br />
Inocente, curiosa, entrando<br />
cada vez mais fundo dentro<br />
daqueles olhos (...)<br />
(...) ...oh não mais esse mundo!<br />
Não mais esse perfume, não<br />
esse arfar cansado, não mais<br />
esse perdão (...)<br />
Conforme já dissemos, a metáfora predomina em todo o texto, porém optamos por<br />
apresentar apenas um ou dois exemplos de cada, por não ser o objetivo principal de nossos<br />
estudos. Outro recurso também notado é o uso da anástrofe, que difere dos outros recursos de<br />
inversão (hipérbato e sínquise) por antecipar o termo regido de preposição pelo termo regente.<br />
Estilisticamente, as inversões, em geral, estão ligadas à emotividade, a uma participação direta<br />
no campo emocional. A ênfase na antecipação de um termo atribui-lhe um cunho mais afetivo,<br />
no caso em questão, a palavra amor: (...) — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas<br />
de um verde tão tonto (...).<br />
3.2.3) DESTACAR AS REPETIÇÕES DE FONEMAS, PALAVRAS, ESTRUTURAS SINTÁTICAS.<br />
A repetição em todos os níveis — fônicos, lexicais e sintáticos — é um dos recursos<br />
mais expressivos na estilística do texto. A cada passagem, este recurso vai-se tornando mais e<br />
mais perceptível.<br />
Há inúmeros casos de aliteração e assonância, às vezes, ocorrendo simultaneamente<br />
como no exemplo: 0 rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça<br />
e muda. Constatamos que todas as palavras (exceção: muda) possuem o grafema [r], ora com<br />
valor fonético de uma alveolar /r/ , outra, esperando, ora com fonema velar /R/, rolo, roliço,<br />
redonda, roliça, carne. Tais fonemas remetem à idéia de aspereza, atrito, idéias estas bastante<br />
pertinentes ao contexto; pois, sendo um hipopótamo um paquiderme, temos a sensação táctil de<br />
que o roçar de suas carnes duras no ato sexual deve provocar vibrações auditíveis, o que vem<br />
corroborar o uso dos fonemas vibrantes. Em relação à assonância, nesta passagem, a vogal<br />
posterior média /o/ nos dá a noção de formas arredondadas, o que muito se pode inferir neste<br />
contexto, pela forma grande e gorda dos hipopótamos, ou mesmo, uma alusão à forma dos<br />
órgãos sexuais, que possuem formas, aproximadamente, redondas. Como era primavera,<br />
podemos deduzir que a espera de outra carne, seja a vinda do(a) parceiro(a) .<br />
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Um outro exemplo interessante no que tange à questão de repetição de fonemas é a<br />
passagem E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os casacos secos.,<br />
notamos aí uma aliteração bem acentuada com a repetição do fonema oral, constritivo, fricativo,<br />
alveolar, surdo /c/. Esse é o momento, no conto, em que a mulher encontra o búfalo num final<br />
de tarde com a brisa mexendo nos seus cabelos, como sabemos que as constritivas, pelo seu<br />
caráter contínuo, sugerem sons de certa duração, bem como as coisas e fenômenos que os<br />
produzem, relacionamos que é nesse exato momento que começa a mútua observação entre o<br />
búfalo e a mulher por isso os passos vagarosos, eles estão se estudando no silêncio do fim de<br />
tarde. E essa idéia é reforçada, visto que a alveolar /c/ transmite a sensação táctil de suavidade,<br />
ou mesmo, pressupõe um sopro, vento acompanhado de um silvo longo ou violento que é<br />
determinado pela vogal sobre a qual se apóia o fonema sibilante, isto é, acompanhado de vogais<br />
agudas a sibililação é menor, e de vogais graves já é maior.<br />
E, por fim, temos, ainda, a aliteração (...) encostou o rosto quente no enferrujado frio do<br />
ferro, onde vemos que a fricativa labiodental /f/ nos transmite uma sensação cinética com idéia<br />
de fuga, escapamento, além, é claro, da sensação táctil de aspereza da vibrante velar /R/. Como<br />
assinalamos anteriormente, a personagem protagonista do conto sempre se sente presa às jaulas,<br />
daí urgir a vontade de escapar, de fugir. Notamos o conflito da personagem nesta passagem até<br />
pela própria antítese entre rosto quente e frio do ferro.<br />
Quanto à repetição de palavras, vemos que tal procedimento é enfático. Existem<br />
palavras que são ''chaves'' neste processo: ódio, amor, olhos. São, a bem da verdade, recursos<br />
estilísticos bastante expressivos, que podem ser vistos como marcadores isotópicos do texto,<br />
pois demonstram a trajetória conflituosa da personagem e de que forma se direcionam ao<br />
clímax.<br />
Em relação às estruturas, notamos haver um grande número de construções com<br />
seqüências nominais. Associamos isso à noção que se tem de que as categorias dos nomes são<br />
signos de representação estática, amplamente usadas em descrições impressionistas, para causar<br />
impacto, como se cada palavra tivesse que atingir o seu objetivo individualmente, para, então,<br />
ter-se o efeito ''coletivo'', total.<br />
No texto, percebemos que existe a intercalação de seqüências nominais com as<br />
seqüências verbais. Isto é uma técnica bem comum, pois visa a aguçar a capacidade<br />
imaginativa, fazendo-nos visualizar mais nitidamente a descrição do objeto destinado, como nas<br />
seguintes passagens: Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher<br />
desviou os olhos da jaula, (...); ou Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O<br />
hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando<br />
outra carne roliça e muda.; ou A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu.<br />
Ela mataria a nudez dos macacos.; ou ainda, E agora esse silêncio também súbito. Estavam de<br />
volta a terra. A maquinaria de novo inteiramente parada.<br />
Contudo, notamos haver, no texto, uma certa não-estruturalização dos períodos. O texto<br />
apresenta além das seqüências nominais, processos de parataxe e hipotaxe, sem que haja uma<br />
predileção para qualquer um deles, embora percebamos um uso mais freqüente de períodos com<br />
orações absolutas. Ressaltamos, então, o fato dos valores estilísticos em orações absolutas ser<br />
caracterizado pela natureza do verbo, já que o verbo pode, teoricamente, ser o responsável,<br />
usado pelo autor, pela determinação de toda a realidade física, psíquica ou social no desenrolar<br />
da trama.<br />
Dessa forma, temos que orações com predicado nominal têm valor expressivo quando<br />
se direcionam a julgamentos de valor ou quando se veiculam imagens que constituem definições<br />
fantasiosas, modos pessoais de interpretar a realidade: “Oh Deus, quem será meu par nesse<br />
mundo?”, Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Já em relação ao predicado<br />
verbal, a expressividade é mais complexa, pois dependerá da transitividade verbal. Salientamos,<br />
apenas, o fato de que os verbos intransitivos têm muito em comum com os predicados nominais,<br />
pois ambos são voltados para o sujeito: Ficou respirando.<br />
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Em sua grande maioria, as palavras repetidas possuem a mesma função sintática,<br />
não se usando nenhuma substituição por pronomes. O que ocorre, neste caso, é a anáfora<br />
retórica, não a anáfora lingüística.<br />
3.2.4) RESSALTAR COMO A FUNÇÃO POÉTICA É PREDOMINANTE NESTE TEXTO EM<br />
PROSA.<br />
A função poética tem por objetivo destacar os aspectos expressivos da mensagem, seja<br />
em prosa, seja em verso, pois há muito se deixou de associar que a função prosa estaria ligada à<br />
denotação e a função poética, à conotação.<br />
Podemos dizer que o efeito da função poética no texto em prosa resulta da combinação<br />
de duas estruturas: a análise da mensagem não sobrepu<strong>jan</strong>do a análise do código, já que o efeito<br />
expressivo de um vocábulo não se encontra apenas na frase ou no contexto em que ele está<br />
inserido, mas sim na totalidade significativa, no confronto com os outros vocábulos<br />
equivalentes.<br />
Baseados nisso, vemos que o texto apresenta muitas características poéticas, tais como:<br />
a predominância da linguagem figurada; o uso da linguagem inusitada; o ritmo frasal; o insólito<br />
da sintaxe; a plurisignificação; e, entre outras mais, a ênfase do significante na significação e a<br />
ênfase na enunciação. Assim, a função poética vem ratificar as idéias já levantadas no decorrer<br />
da análise.<br />
No texto, percebemos que a função poética tem por objetivo "costurar" os elementos<br />
ligados à ruptura com o enredo factual e à entrega do fluxo de consciência que são caraterísticas<br />
bem comuns na obra de Clarice Lispector.<br />
Destarte, notamos que a função poética, no texto, dirige sua atenção para os elementos<br />
da mensagem efetivamente utilizados. Tal fato procede porque vemos que a função prática da<br />
mensagem não está tão-somente na descrição, mas nas possibilidades significativas da<br />
mensagem, tornando ela o próprio foco da atenção por si mesma, isto é, ela provoca reação no<br />
leitor pelo que é e não por aquilo que serve.<br />
No conto O Búfalo, percebemos que a mensagem, numa acepção totalitária, volta-se<br />
para si mesma; passando, então, a focalizar os próprios signos, pondo em destaque a sua<br />
integralidade de significante e significado. Afetiva, sugestiva, conotativa, reveladora de<br />
recursos imaginativos criados pelo emissor, a função poética é metafórica e possibilita leituras e<br />
visões diversas de uma mesma mensagem ou signo isolado, pois propicia ao leitor associações e<br />
equivalências de idéias. E são essas reconfigurações propiciadas pelo princípio da equivalência<br />
que fazem a mensagem voltar-se para si mesma, tornando-se multissignificativa, como tentamos<br />
demonstrar, através de nossas diferentes análises, no decorrer desse estudo.<br />
Podemos concluir que a função poética, seja na poesia, seja na prosa, executa, portanto,<br />
uma ruptura das expectativas, fornecendo uma possível resposta não antecipada<br />
automaticamente na língua, que é capaz, por isso mesmo, de atrair uma atenção especial para os<br />
próprios signos, uma certa persistência da atenção. E a mensagem, desse modo, se autocentra,<br />
para verificar o arranjo dos seus próprios constituintes lingüísticos.<br />
3.3) UM BREVE PASSEIO PELA SEMIÓTICA<br />
3.3.1) OS OBJETIVOS DA ANÁLISE<br />
Quando Peirce, em 1867, tornou públicos seus estudos sobre o signo, deu abrangência<br />
àquilo que, até então, numa perspectiva saussureana, era direcionado apenas ao signo verbal.<br />
Hoje, no início do século XXI, não seria absurdo afirmar que tal estudo ainda é dominante.<br />
Nesse sentido, a proposta de nosso trabalho é, ao contrário do muito que se tem visto,<br />
apresentar com uma visão menos limitada as flexibilidades do signo lingüístico, desde de sua<br />
origem na mente (ícone) até às suas várias concepções significativas (símbolo).<br />
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A proposta deste ensaio é apresentar à luz da teoria semiótica de Peirce, uma análise do<br />
conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector.<br />
Para esse pesquisador, o fundamental para um estudo de signos seria a observância da<br />
divisão dos símbolos em diversas tríades. Nesse sentido, uma vez que os textos de Clarice<br />
Lispector, devido ao fluxo de consciência muito presente em sua obra, apresentam-se sequiosos<br />
de estudos analíticos, optamos por levantar aqui como os conceitos peirceanos de signo se<br />
manifestam.<br />
Com esse intuito, dividimos esse enfoque semiótico em duas partes: a primeira é uma<br />
proposta de leitura para melhor compreendermos as intenções do texto e direcionar, também,<br />
nossas intenções para a segunda parte que é relacionar os conceitos semióticos de Peirce no que<br />
tangem à imagem do búfalo conto.<br />
Claro que nos limitaremos apenas às questões de ícone, índice e símbolo devido à<br />
grande nomenclatura estabelecida por Peirce para análise e compreensão dos signos. Com isso,<br />
nosso trabalho será bastante limitado deixando em aberto outras possibilidades de classificação<br />
que existem no corpus.<br />
Tal como Saussure, Peirce estabelece uma distinção entre as “qualidades materiais” — o<br />
significante do signo — e seu “interpretante imediato” — o significado. Das relações entre os<br />
dois elementos, discernem-se três variedades fundamentais de signos (que representam, segundo<br />
sua terminologia): 1) o ícone opera pela similitude de fato entre o significante e o significado;<br />
por exemplo, entre a representação de um animal e o animal representado: a primeira vale para<br />
o segundo por semelhança; 2) o índice opera pela contigüidade de fato, vivida, entre significante<br />
e significado; por exemplo: a fumaça é índice de fogo; Robinson Crusoe encontrou um índice:<br />
seu significante eram marcas de pé, donde inferir como significado a existência de ser humano<br />
na ilha; a aceleração do pulso como sintoma de febre é também índice, e nesse caso a semiótica<br />
de Peirce conflui com o estudo médico sobre os sintomas de doença, chamado semiótica,<br />
semiologia ou sintomatologia; 3) o símbolo opera pela contigüidade instituída entre significante<br />
e significado. Essa conexão forma uma regra, através da qual exclusivamente será interpretado<br />
o signo. O termo símbolo, semelhante utilizado por Saussure, é por este substituído, para evitar<br />
ambigüidades, pelo de sema — termo que Peirce reserva uso inteiramente diferente.<br />
3.3.2) APLICAÇÃO SEMIÓTICA NA LEITURA DE O BÚFALO<br />
Seguindo a nossa proposta de trabalho, ao enforcarmos a aplicação do conceito de ícone,<br />
índice e símbolo na análise desse conto, notamos que o búfalo (personagem da história) se<br />
aplica às categorias dessa tríade perfeitamente.<br />
A primeira noção que podemos inferir aí é a questão de o búfalo ser um ícone puro, pois<br />
está vinculado à mente da personagem, e irá sair do plano do objeto mediato para o objeto<br />
imediato, à medida que ele deixa de ser ícone puro e passa a ícone atual, pois passará do<br />
imaginário para o real devido a uma possível associação por semelhança (como enfocamos em<br />
nossa proposta de análise). Tornando-se, então, um signo icônico, o búfalo corresponderá a três<br />
estágios desse signo: 1) à imagem (a visualização mental do animal); 2) ao diagrama (a mental<br />
representação física dele); e 3) à metáfora (nesse caso representando o objeto da vingança da<br />
personagem, pois ela fará com o búfalo o que teve vontade de fazer com quem a desprezou, o<br />
búfalo representa, nesse momento, a solução da angústia).<br />
No entanto, porque não representam efetivamente nada, senão formas e sentimentos<br />
(visuais, tácteis, viscerais...), os ícones têm um alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,<br />
por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ela se assemelhe. Daí que, no<br />
universo das qualidades, as semelhanças se proliferaram na mente da personagem do conto,<br />
produzindo na mente dela as mais imponderáveis comparações, por uma simples questão de<br />
sugestão.<br />
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A partir do momento em que a personagem se direciona ao búfalo, tendo-o como um<br />
referencial real, ele deixa de ser ícone e passa a ser índice, visto que é o objeto imediato da<br />
personagem e representa, também, uma simples possibilidade do efeito de impressão, pelo valor<br />
qualitativo, que o búfalo está apto a produzir ao excitar os sentidos da personagem. Eis uma<br />
razão pela qual a personagem ficou parada diante dele, a observá-lo numa pura absorção<br />
contemplativa, pois o ícone nos dá essa capacidade de absorver possibilidades qualitativas, pois<br />
todo índice está habitado de ícones. Estes são peculiares àqueles e também estão inerentes ao<br />
índice (não podemos nos esquecer de que a secundindade pressupõe a primeiridade).<br />
O búfalo é visto, neste momento, como índice porque ele é uma existência concreta e<br />
real para a personagem. É infinitamente determinado como parte do universo a que pertencem<br />
— a personagem e o búfalo. Desse modo, concluímos que o índice, como seu próprio nome já<br />
diz, é um signo que como tal funciona porque indica uma outra coisa com a qual está<br />
factualmente ligado.<br />
Chegamos, então, ao momento em que o búfalo representará um signo de terceiridade,<br />
isto é, será um símbolo. O símbolo não representa seu objeto em virtude do caráter de sua<br />
qualidade (ícone), nem por manter em relação ao seu objeto uma conexão de fato (índice), mas<br />
extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que por convenção ou pacto<br />
coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto. Ao final do conto, depois que a<br />
personagem mata o búfalo e é morta por ele, ele assume uma função de símbolo, pois deixa de<br />
ser específico e passa a ser genérico. No texto, isso fica bem marcado pela mudança do artigo<br />
precedente que, durante a narrativa, era o definido e após a morte passou a ser indefinido.<br />
O símbolo é, pois, o deslanche da remessa de signo a signo, remessa esta que só não é<br />
para nós infinita porque o búfalo morre, e devemos nos limitar às perigosas associações de<br />
idéias. Mas, mesmo assim, ainda o associamos à Constelação de Touro.<br />
3.3.3) CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Realmente, ao fim do trabalho, percebemos que numa análise semiótica as<br />
compreensões a que podemos chegar no desencadeamento das interpretações dos signos, visto<br />
que um signo remete a um outro e este a um outro e assim indefinidamente, podem apresentar<br />
dois tipos de conclusão: uma real e outra carregada de emotividade. Isso decorre em virtude do<br />
fato de o signo poder ser um pensamento, uma imagem, um gesto, uma palavra ou seqüência<br />
(como uma frase, p. ex.), e o que entendermos dele ser, também, um novo signo. Devemos,<br />
entretanto, ter cautela para não quebrarmos os elos sígnicos que vão formando essa cadeia<br />
significativa.<br />
Isso significa que, por mais que a cadeia semiótica se expanda, em signos-interpretantes<br />
gerando signos-interpretantes, o vínculo com o objeto não é nunca perdido, uma vez que o<br />
objeto é justamente aquilo que existe e resiste na semiose ou ação do signo.<br />
Além dessa limitação lógica nos estudos semióticos, outro fato chamou nossa atenção: o<br />
fato das tríades. Peirce embasou todos os seus estudos semióticos sobre o signo na divisão do<br />
mesmo em diferentes tríades, algumas mais, outras menos complexas.<br />
Sabemos que o número três é amplamente usado na história do pensamento por vários<br />
filósofos e estudiosos: Hegel, Freud, Marx, Kant. Inferimos nesse ponto, a questão de que o<br />
número três, para a Cabala, representa o equilíbrio cósmico, e a noção de que tudo que está em<br />
harmonia na natureza está regido pelo número três: três partes do dia (manhã, tarde e noite), três<br />
partes do corpo (cabeça, tronco e membros), três partes da vida (nascimento, vida e morte /<br />
infância, maturidade e velhice), três estados naturais (sólido, líquido e gasoso), três estações<br />
férteis do ano (verão, outono e primavera), Santíssima Trindade em diversas religiões (no<br />
Taoísmo, no Cristianismo e no Candomblé), e até mesmo o triângulo que é tido como o símbolo<br />
da perfeição geométrica, daí a definição de Pitágoras de que Deus geometriza a partir do<br />
número três.<br />
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Acreditamos que o desejo e a vontade de Charles Sanders Peirce em estabelecer para os<br />
signos critérios classificatórios em tríades se deva ao fato de se tentar achar um equilíbrio lógico<br />
para os seus estudos, a fim de que se pudesse chegar à perfeição na compreensão dos mesmos<br />
num processo gradativo e coerente, respeitando-se, evidentemente, a hierarquia da primeiridade,<br />
da secundidade e da terceiridade.<br />
CONCLUSÃO<br />
Conforme informamos na introdução, o nosso roteiro de estudo basear-se-ia nas<br />
sugestões para análise do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, encontradas no Livro Iniciação<br />
à Estilística, de Nilce Sant’Anna. Assim, procuramos seguir uma linha de raciocínio que não<br />
fugisse às propostas iniciais, embora tenha-nos parecido bastante difícil por dois aspectos.<br />
O primeiro deles é a grande dificuldade em tentar responder de forma satisfatória as<br />
propostas, em virtude do grande leque de opções que elas oferecem ao iniciarmos a análise.<br />
Contudo, procuramos desenvolvê-las de forma precisa, embora saibamos que nem todos os<br />
aspectos pertinentes que existem no corpus foram ressaltados. Também ficamos bastante<br />
receosos quanto à questão de falhas em nossa análise, conseqüentes de alguma imprecisão na<br />
classificação dos dados.<br />
O outro aspecto foi o cuidado para não nos enveredarmos por outros caminhos devido à<br />
riqueza lingüística do texto. Receamos que tal desvio poderia conduzir a análise para caminhos<br />
tortuosos e permeáveis às subjetividades, às vezes bastante perigosas, como em nossa proposta<br />
de leitura do conto, e fugíssemos da proposta que nos propusemos: uma análise estilísticosemiótica.<br />
Analisar estilística e semioticamente o conto O Búfalo foi, a um só tempo, um estudo<br />
hercúleo e prazeroso, pois pudemos descobrir/levantar possibilidades que em nossa primeira<br />
leitura não percebemos e contribuir para o desfazimento de que a Estilística é uma ciência<br />
ultrapassada e não credora de maiores atenções. No entanto, a linguagem hermética de Clarice<br />
Lispector, em muitos momentos, deixou-nos em situações delicadas de entendimento no que<br />
tange à veracidade/viabilidade de nossas conclusões, mas a cada linha tínhamos a sensação de<br />
estarmos descobrindo algo inusitado e que poderia ser associado a algo que fora visto<br />
anteriormente.<br />
Por fim, gostaríamos de salientar que tivemos um imenso prazer na elaboração desse<br />
estudo e esperamos, também, que a expectativa decorrente da conclusão dessa análise, suscite<br />
em nosso leitor o mesmo prazer que nos causou durante todo o caminho que trilhamos para<br />
chegarmos até aqui. Não podemos nos esquecer também de ratificar que não foram esgotadas<br />
todas as possibilidades interpretativas ou significativas existentes no corpus. Afinal, seria muito<br />
pretensioso de nossa parte afirmamos que esgotaríamos todas as potencialidades lingüísticoestilístico-semióticas.<br />
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INTRODUÇÃO<br />
A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE<br />
TRABALHO PARA O PROFESSOR 37<br />
Claudia Moura da Rocha 38 (<strong>UERJ</strong>)<br />
Quem fala uma língua sabe muito mais do que aprendeu.<br />
Chomsky<br />
Um dos maiores desafios para os educadores de hoje é despertar o interesse de<br />
seus alunos. Quando o assunto é língua portuguesa, não importa o grau de ensino —<br />
Fundamental, Médio, Superior, parece que o desafio é maior ainda. Por que tantos<br />
alunos se ressentem de ter de estudar sua própria língua? Como podem ter tanta<br />
dificuldade e, às vezes, tanto desinteresse pelo idioma por meio do qual se comunicam,<br />
pensam, escrevem bilhetinhos de amor, cantam, namoram, brincam?<br />
Um dia de espantos, hoje. Conversando com uma rapariga em flor,<br />
estudante, queixa-se ela da dificuldade da língua portuguesa, espanto-me:<br />
—Mas como pode ser difícil uma língua em que você está falando comigo<br />
há dez minutos com toda a facilidade?<br />
Ela ficou espantada. (Mario Quintana apud Ramos Filho, J. et al. (1995).<br />
Caderno de atividades em língua portuguesa. Rio de Janeiro: JOBRAN.)<br />
Como no texto de Mario Quintana, nós, professores, também nos espantamos ao<br />
constatar este paradoxo. O aluno, que é um falante fluente do português, se queixa por<br />
julgar não dominá-lo. Para o estudante, a língua portuguesa ensinada na escola é algo<br />
completamente distanciado de seu cotidiano, de sua vida, considerando sua própria<br />
língua algo enfadonho e a gramática servindo apenas para ditar regras. Na verdade, o<br />
aluno sabe sua língua; o que ele não domina é a norma culta, a variante culta que cabe à<br />
escola ensinar.<br />
37<br />
O presente ensaio teve origem na disciplina Tópicos de Fonologia ministrada pela Profa. Dra. Darcilia<br />
Simões no semestre 2003/1.<br />
38<br />
A autora é mestranda de Língua portuguesa na <strong>UERJ</strong> e docente da rede municipal de ensino.<br />
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Mas, o que pode o professor de língua portuguesa fazer por seus alunos? E pelo<br />
seu próprio ofício? Como transpor os obstáculos que impedem a apropriação, por parte<br />
de seus alunos, da língua portuguesa?<br />
Talvez a solução esteja em mostrar ao aprendiz que a língua portuguesa (seu<br />
objeto de estudo) não está tão dissociada de sua vida, ao contrário, faz parte dela: é por<br />
meio da língua que o aluno interage com o outro, comunica suas idéias, seus desejos,<br />
obtém informações, convence seus interlocutores...<br />
O objetivo deste trabalho é demonstrar que o professor, ao fazer um pequeno<br />
levantamento de fatos lingüísticos que podem ser encontrados em seu dia-a-dia (em<br />
jornais, revistas, propagandas, músicas de sucesso, programas de televisão, piadas),<br />
pode estimular seus alunos e levá-los a um resultado mais animador em sala de aula.<br />
Outro intento do professor deve ser o de mostrar ao aprendiz de língua<br />
portuguesa que qualquer falante possui um grande conhecimento de sua língua materna,<br />
a ponto de utilizá-la como matéria-prima para produzir trocadilhos, rimas, ambigüidades<br />
em piadas, textos publicitários, editoriais, músicas, charges, entre outros exemplos de<br />
textos cotidianos.<br />
No presente texto, especificamente, faremos um apanhado de fenômenos (fatos)<br />
fônicos que ocorrem em nossa linguagem cotidiana, demonstrando que não podemos<br />
(nem devemos) pensar em língua portuguesa dissociada da realidade do falante.<br />
1. A FONOLOGIA EM SALA DE AULA<br />
Abordar assuntos fonológicos em sala de aula é relevante, principalmente porque<br />
as aulas de Fonologia sempre ficam restritas à contagem de fonemas, classificação de<br />
vogais e consoantes, estudo de encontros vocálicos e consonantais, ficando relegado a<br />
segundo plano um enfoque mais voltado para a aplicação prática da Fonologia.<br />
No primeiro segmento do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série), os fatos fônicos se<br />
resumem à contagem de sílabas (quando é feita uma mistura de critérios, e começa a<br />
confusão entre translineação e divisão silábica), dígrafos, encontros consonantais,<br />
ditongos, tritongos, hiatos. Não que isto não seja importante, mas o que vemos é que aí<br />
se inicia, na cabeça do aluno, uma verdadeira “salada” terminológica, cuja<br />
aplicabilidade este não domina.<br />
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No segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), restringe-se à<br />
contagem de fonemas, diferença entre fonema e letra, numa abordagem, por vezes,<br />
abstrata, faltando ao aluno um contexto que o permita concretizar esses conceitos. Não<br />
podemos esquecer que todos aqueles temas vistos no primeiro segmento são revisitados.<br />
No Ensino Médio, retorna-se à contagem de fonemas, diferença entre fonema e<br />
letra, enveredando pelas vogais (orais & nasais), consoantes (oclusivas, constritivas...)<br />
Além do que foi dito anteriormente, o ensino (que vai do nível Fundamental ao<br />
Superior) tem dado mais espaço à morfologia, sintaxe e semântica, desconhecendo que<br />
o domínio dos fenômenos fônicos auxilia na compreensão e na produção textual.<br />
Entretanto, a experiência — oriunda da prática obtida na produção ou<br />
realização de cursos avançados de Tópicos de Fonologia (pós-graduação lato<br />
e stricto sensu) e da disciplina Fonologia da língua portuguesa na graduação<br />
— demonstra que o domínio dos fatos e fenômenos do plano fônico da<br />
língua subsidiam o entendimento dos outros planos da descrição lingüística;<br />
e que, uma vez compreendida a inter-relação entre os vários planos, a<br />
compreensão dos esquemas da língua atualizados na produção de textos se<br />
realiza de uma forma mais firme, visto ser sustentada em bases múltiplas: a<br />
fonologia explica a morfossintaxe e abre espaços para requintes estilísticos.<br />
E estas, morfossintaxe e estilística, por sua vez, orientam a elaboração<br />
semântica, a produção do sentido textual. (Simões, 2003: 48)<br />
Os exemplos aqui elencados são oriundos de jornais, revistas, propagandas,<br />
músicas e podem ser aplicados em sala de aula, feitas, obviamente, as adaptações<br />
necessárias à faixa etária, grau de ensino, nível de interesse, dentre outros aspectos a<br />
serem considerados.<br />
Nem sempre o professor consegue fazer uma ponte entre os conhecimentos<br />
fonológicos e a realidade; nem sempre demonstra ao aluno que as assonâncias e<br />
aliterações não estão presentes apenas nos textos literários, nos clássicos, mas também<br />
na MPB ou num forró; nem sempre consegue apontar a paronomásia ou a homonímia<br />
presentes nas piadas e não somente abordá-las como conhecimentos estanques e<br />
distantes da realidade do falante. A análise da matéria fônica, por exemplo, quase<br />
sempre fica restrita à versificação, e não é mostrada ao aluno a sua presença nos<br />
trocadilhos, nos jogos de palavras, nas piadas, nos jingles comerciais.<br />
2. A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O PROFESSOR<br />
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Passemos à análise do corpus retirado de jornais, revistas, internet, novas fontes<br />
de textos para o professor utilizar em suas aulas. Os mais recentes livros didáticos já<br />
vêm dando preferência a esse tipo de material.<br />
Mulheres Apaixonadas, o título da novela das oito horas da TV Globo, tornou-se<br />
mote para vários trocadilhos e jogos de palavras. Aparentemente um sintagma usual,<br />
banal até, fruto de um arranjo normalíssimo da língua, mas que caiu nas graças do<br />
público e dos humoristas.<br />
O sintagma formado pelo núcleo (determinado) mulheres e pelo ad<strong>jun</strong>to<br />
adnominal (determinante) apaixonadas é reaproveitado em três reportagens da revista<br />
Veja. Mulheres Desesperadas (26/02/2003) é uma reportagem sobre a estréia da novela<br />
e sobre suas personagens femininas, as tais mulheres que estariam desesperadas pelos<br />
galãs. Ao núcleo mulheres é acrescido um novo atributo, desesperadas, que tem um<br />
valor semântico pejorativo em relação ao atributo original (apaixonadas).<br />
Na segunda reportagem, Mulheres Descerebradas (19/03/2003), o assunto<br />
principal é a qualidade dos diálogos da referida novela (segundo a matéria, “diálogos<br />
que saem do nada e vão para lugar nenhum”). Novamente o determinante apaixonadas<br />
é substituído; agora temos descerebradas, fazendo referência ao “papo cabeça” de<br />
algumas personagens.<br />
A terceira e última matéria de Veja analisada é Mulheres Exploradas<br />
(09/<strong>04</strong>/2003), cujo tema são as empregadas domésticas da trama; é feita uma crítica ao<br />
tratamento que lhes é dado pela novela (trabalham de 2ª a 2ª, estão sempre a postos,<br />
entre outras “irrealidades”).<br />
Podemos observar que, nos três títulos, ocorreu a apropriação do sintagma<br />
original e sua posterior desconstrução. O recurso empregado foi a permanência do<br />
vocábulo mulheres e a substituição de apaixonadas por outros vocábulos com algo em<br />
comum: a terminação –adas. Esta opção por palavras que tenham a mesma terminação<br />
(no plano morfológico, o sufixo derivacional –ad + a desinência de gênero –a + a<br />
desinência de número –s; no plano fônico, a seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/),<br />
produz um eco, fruto de uma semelhança fônica, de uma identidade sonora e que<br />
permite ao leitor/falante se lembrar do sintagma original. Numa frase popular: — Olha a<br />
rima que dá!<br />
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Outras alterações nesse título foram realizadas pelo grupo Casseta & Planeta em<br />
seu programa de televisão. A paródia da novela é intitulada Mulheres Recauchutadas,<br />
fazendo óbvia referência às mulheres adeptas de plásticas e do uso de silicone. Em outro<br />
momento do programa, nova sátira à novela é apresentada: Mulheres Desgovernadas,<br />
cujos personagens principais são a governadora do Rio de Janeiro e seu marido, o ex-<br />
governador do mesmo Estado, fazendo uma alusão à situação de desgoverno em que o<br />
Rio de Janeiro se encontra. Recentemente, foram criadas as versões Mulheres<br />
Assassinadas, em referência à morte da personagem Fernanda, vítima de uma bala<br />
perdida, e Mulheres Enraquetadas, em referência às raquetadas com que o marido da<br />
personagem Raquel a agride. Notemos que o vocábulo enraquetadas evoca o nome da<br />
personagem agredida, pela sugestão sonora (grifamos o elemento comum entre o nome<br />
da personagem — Raquel — e o adjetivo neológico).<br />
É importante salientar que a escolha do atributo (do ad<strong>jun</strong>to adnominal) é sempre<br />
calcada na semelhança fônica da terminação (seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/), na<br />
repetição desta terminação. A repetição, entre outros fenômenos do plano fônico, tem<br />
valor expressivo:<br />
Não há dúvida de que na matéria fônica se escondem possibilidades<br />
expressivas. Deve-se entender como tal tudo que produza sensações<br />
musculares e acústicas: sons articulados e suas combinações, jogos de<br />
timbres vocálicos, melodia, intensidade, duração dos sons, repetição,<br />
assonância e aliterações, silêncios, etc. (Martins, 2000: 26)<br />
Não é raro encontrarmos outras construções empregando o atributo apaixonadas<br />
e alterando, desta vez, o núcleo original mulheres:<br />
• Convivas Apaixonados (nota da coluna Controle Remoto, do jornal O Globo,<br />
do dia 20/05/2003, sobre a popularidade do autor da novela, Manoel Carlos);<br />
• Mães Apaixonadas (manchete do jornal do Club Municipal, de maio de 2003,<br />
em homenagem ao Dia das Mães; normalmente o adjetivo apaixonadas seria atribuído à<br />
mulher, esposa ou namorada, fugindo do campo associativo de mãe, mais relacionado à<br />
proteção, cuidados.).<br />
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Nestes casos, a escolha do vocábulo não é baseada no plano fônico. O efeito<br />
produzido não é tão forte, nem tão significativo quanto nos exemplos onde existe a<br />
semelhança sonora da terminação. Os novos sintagmas remetem ao original (mulheres<br />
apaixonadas), sugerem ao ouvinte a lembrança do sintagma primitivo, mas a graça e a<br />
sensação de inusitado, gerados pela mudança, são menores.<br />
No entanto, em Colheres Apaixonadas, mais uma sátira dos humoristas do<br />
Casseta & Planeta à novela (nesta versão, as personagens são colheres), novamente há a<br />
substituição do núcleo calcada na semelhança fônica entre mulheres e colheres: palavras<br />
que possuem igual terminação.<br />
Outro fato que reforça a identidade/semelhança sonora entre as palavras acima é<br />
que a vogal /o/ de colheres é realizada por muitos falantes como /u/: /kuereS/. As<br />
vogais /o/ e /u/ se aproximam quanto ao movimento da língua que ocorre no momento<br />
da produção dessas vogais: ambas são vogais posteriores (há em ambas um movimento<br />
da língua para trás).<br />
Recentemente, na internet, começaram as sátiras à novela. No site de humor<br />
Humortadela (o próprio nome do site é um cruzamento vocabular entre humor e<br />
mortadela, calcado na existência de uma sílaba em comum, produzindo um trocadilho),<br />
vamos encontrar a abertura da novela sendo exibida e as várias versões do título, de<br />
acordo com os personagens que aparecem e suas características: Mulheres Mal-Criadas<br />
(em referência à personagem que briga com os pais e os avós), Mulheres Apadrinhadas<br />
(alusão à irmã de dois famosos cantores sertanejos, a qual participa da novela),<br />
Mulheres Todas Peladas (o alvo agora é a atriz que posou nua para uma revista<br />
masculina), Mulheres Embriagadas (referindo-se à professora alcoólatra), Mulheres<br />
Enrugadas (sátira à mulher mais velha que namora um homem mais jovem), Mulheres<br />
Estapeadas (alusão à personagem que apanha do marido), Mulheres Que São Espadas<br />
(as personagens citadas são lésbicas). É relevante salientar que os autores da paródia da<br />
internet também demonstram uma preocupação em manter a identidade sonora com o<br />
título original.<br />
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Empregar palavras com finais semelhantes é um recurso muito comum na<br />
propaganda. Este procedimento é chamado homoteleuto e é definido como “o<br />
aparecimento de uma terminação igual em palavras próximas, sem obedecer a um<br />
esquema regular, ocorrendo ocasionalmente numa frase ou num verso”. (MARTINS,<br />
2000: 40)<br />
• Abuse e use: C&A.<br />
• Tomou Doril, a dor sumiu. (A forma ortográfica é divergente mas há<br />
identidade sonora entre Doril /iw/ e sumiu /iw/. Esta é uma boa oportunidade para<br />
abordar as variantes regionais, pois a identidade sonora é maior entre os falantes<br />
cariocas, que realizam “a vocalização da lateral em posição final de sílaba e neste caso<br />
temos um segmento com as características articulatórias de uma vogal do tipo [u] que é<br />
transcrito [w].” (SILVA, 2002: 39)<br />
• Todo dia uma alegria. (propaganda do Hiperfundo Bradesco)<br />
• Mandou, chegou. (slogan do SEDEX)<br />
Este recurso também é muito produtivo em campanhas institucionais como a<br />
campanha de combate à fome, o Programa Fome Zero:<br />
• O Brasil que come, ajudando o Brasil que tem fome.<br />
Analisando charges, encontraremos a utilização de outro recurso, o de<br />
desconstruir expressões consolidadas pelo uso (citações bíblicas, provérbios, expressões<br />
populares) e reconstruí-las posteriormente, sempre empregando recursos fonológicos.<br />
Em duas charges de Chico Caruso, ocorre a substituição da palavra original, que<br />
integrava uma expressão cristalizada, por outra com a qual guarda semelhança sonora:<br />
• Em Lulinha mete os pleitos (05/06/2003), há alusão à expressão popular meter<br />
os peitos (ser corajoso, tomar uma atitude) e aos seios da modelo Gisele Bündchen, que<br />
aparece na charge ao lado de José Graziano, responsável pelo Fome Zero, programa de<br />
erradicação da fome, ao qual a modelo doou seu cachê; o vocábulo peitos é substituído<br />
por pleitos, em referência às eleições.<br />
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Em peitos e pleitos ocorre paronomásia, “figura pela qual se aproximam, na<br />
frase, palavras que oferecem sonoridades análogas com sentidos diferentes”<br />
(MARTINS, 2000: 45). A palavra escolhida como substituta possui semelhança com a<br />
original no tocante à terminação, sugerindo graça pelo inusitado do trocadilho.<br />
• Em Paz na Terra aos homens com boas amizades (02/05/2003), ocorre a<br />
apropriação da frase bíblica Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14) e a<br />
alteração de vontade por amizade. A charge remete à amizade entre os senadores José<br />
Sarney e Antônio Carlos Magalhães, justificando a escolha do vocábulo amizades, outro<br />
exemplo de substituição de vocábulo calcada na coincidência dos sons finais.<br />
Vejamos dois anúncios de um curso preparatório:<br />
• Entre para o clube dos bem-empregados.<br />
• Entre para o clube dos bem-preparados.<br />
Feita a apropriação da expressão entrar para o clube dos desempregados,<br />
produziu-se o clube dos bem-empregados e o clube dos bem-preparados. Este é mais<br />
um exemplo de semelhança fônica entre o vocábulo original e o substituto.<br />
O humor é um terreno mais que propício a essas desconstruções de frases feitas,<br />
expressões populares, títulos de obras. Analisando a produção do grupo Casseta &<br />
Planeta, um olhar mais atento sobre a coluna Agamenon nos fornecerá alguns bons<br />
exemplos destas desconstruções de sintagmas cristalizados pelo uso. Em Olhai os<br />
colírios do campo (22/06/2003), há o reaproveitamento do título de uma famosa obra da<br />
literatura brasileira, Olhai os lírios do campo, do escritor Érico Veríssimo. A forma<br />
gráfica lírio está contida em colírio, ou sob outro ponto de vista, colírio é formado pelo<br />
acréscimo da sílaba [co] a lírio. O texto faz uma alusão a um colírio que causou<br />
problemas aos seus usuários. Olhai (verbo olhar) e colírios pertencem ao mesmo campo<br />
associativo, justificando a sua presença neste contexto e alterando o título original.<br />
Outra vez há semelhança sonora entre a palavra original e a substituta.<br />
(29/06/2003).<br />
Na seção Pensamento do dia, encontramos mais um exemplo:<br />
• A seleção é a pátria de bobeira por A seleção é a pátria de chuteiras<br />
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Neste exemplo, é a semelhança fônica que endossa a escolha de bobeira.<br />
Chuteira/bobeira têm a terminação composta pela mesma seqüência de fonemas /e/, /y/,<br />
/r/, /a/.<br />
Nomes de pessoas (prenomes e sobrenomes) também são sintagmas<br />
cristalizados. Desde que nascemos os carregamos e temos poucas chances de alterá-los,<br />
salvo casamento ou a adoção de nomes artísticos. Os humoristas do citado grupo<br />
Casseta & Planeta realizam um trabalho com os nomes próprios de políticos famosos: o<br />
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já foi chamado no programa de Fernando<br />
Henrique Invejoso, Ficando Henrique Nervoso. Atentemos para Cardoso, o sobrenome<br />
alterado, que possui a mesma terminação dos vocábulos substitutos (invejoso, nervoso).<br />
Deste modo, fica mais fácil para o ouvinte lembrar o sobrenome original do presidente,<br />
confirmando a associação entre a paródia e o parodiado.<br />
O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva também já foi vítima de algumas<br />
sátiras. Na coluna Agamenon, foi chamado de:<br />
• Luiz Inéscio Lula da Silva (11/05/2003; 15/06/2003);<br />
• Luiz Inércio Lula da Silva (01/06/2003);<br />
• Luiz Ignorácio Lula da Silva (06/07/2003);<br />
• Luiz Galináceo Ejacula da Silva (06/07/2003);<br />
• Luiz Inácio Rola da Silva (06/07/2003);<br />
• Juiz Inácio da Silva, o Amarelula (13/07/2003).<br />
No programa de televisão, o presidente também teve seu nome alterado:<br />
• Luiz Entrevistácio Lula da Silva (26/08/2003);<br />
• Luiz Anúncio Lula da Silva (26/08/2003).<br />
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Verifica-se uma preocupação em manter a estrutura do nome do presidente,<br />
fazendo a alteração em algum ponto que seja favorável à substituição. Nos quatro<br />
primeiros exemplos, é o segundo nome do presidente que sofre modificações: Inácio<br />
transforma-se em Inéscio (em alusão a néscio, pessoa tola, ignorante), em Inércio<br />
(fazendo referência à inércia, pela falta de exercícios físicos e a conseqüente obesidade<br />
do presidente, e também a uma possível inércia política), em Ignorácio (remete à<br />
ignorante, fazendo referência à falta de cultura acadêmica do presidente), em Galináceo<br />
(no lugar de galinha, homem que “paquera” muito, em referência ao episódio em que o<br />
presidente conheceu uma das dançarinas de um grupo popular. A forma galináceo existe<br />
na língua e por isso foi mantida a grafia com –e). Em comum à maioria dos exemplos<br />
anteriores, a opção pelo fonema inicial /i/ e pela terminação –ácio (-áceo). Há<br />
necessidade de manter a semelhança sonora com o nome verdadeiro do presidente, para<br />
que o leitor reconheça quem está sendo alvo da paródia. Partindo destes exemplos,<br />
pode-se salientar para o aluno a importância de se ter um amplo vocabulário. Os<br />
produtores destes trocadilhos com os nomes próprios possuem um amplo domínio do<br />
léxico português para fazer tais trocas. Néscio é um exemplo de vocábulo que não é<br />
comum na linguagem coloquial; vocábulo de uso não-corrente, e do qual se apropriaram<br />
para criar o neologismo Inéscio.<br />
No último exemplo, Juiz ocorre no contexto onde se esperaria Luiz. O vocábulo<br />
inserido remeterá ao episódio dos juízes na Reforma da Previdência. Ocorre uma<br />
substituição calcada na troca de apenas um fonema.(Mais adiante veremos outros<br />
exemplos que podem ser aproveitados para tratar do papel distintivo do fonema.)<br />
Outros políticos e pessoas famosas foram alvo deste tipo de paródia, sempre<br />
mantendo a semelhança sonora com o nome original e uma relação semântica com<br />
alguma característica do satirizado:<br />
• Fernando Cóllon (03/08/2003);<br />
• Rosquinha Garotinho, Rosquinha Molequinha (27/<strong>04</strong>/2003; 22/06/2003);<br />
• Anthony Molequinho (22/06/2003) - o uso do diminutivo nos nomes do casal é<br />
mantido, preservando a identidade sonora entre o nome verdadeiro e o fruto da<br />
paródia.);<br />
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• Mário Jorge Lobo Gagállo (29/06/2003), em alusão ao técnico de futebol<br />
Mário Jorge Lobo Zagallo, insinuando sua velhice (gagá);<br />
• o vice-presidente José de Alencar virou José de Amargar (08/06/2003), devido<br />
às suas opiniões dissonantes e às suas reclamações;<br />
• Bill Pinton (08/06/2003) - o presidente norte-americano Bill Clinton,<br />
conhecido por sua fama de conquistador;<br />
• César Guggenmaier (13/07/2003) - cruzamento vocabular de Guggenheim,<br />
nome do museu que o prefeito pretende trazer para a cidade do Rio de Janeiro, e do<br />
sobrenome do próprio prefeito, Maia;<br />
• Marta Chuplicy (13/07/2003) e José Gaynoíno (29/06/2003), trocadilho<br />
sugerindo preferências sexuais.<br />
Outro tema que pode ser abordado e melhor contextualizado através de exemplos<br />
do dia-a-dia é o conceito de fonema. Vejamos algumas sugestões.<br />
O título da coluna do dia 29/06/2003, A bicha vai pegar, é uma apropriação da<br />
expressão popular o bicho vai pegar. A inserção do vocábulo bicha remete à Parada<br />
Gay, que ocorreria no Rio de Janeiro no mesmo dia.<br />
Bicha e bicho diferem pela alternância dos fonemas /o/ e /a/. É um bom exemplo<br />
da função distintiva do fonema, como se pode comprovar pela seguinte definição: “Os<br />
fonemas são unidades mínimas não-significativas, mas distintivas, ou seja, unidades que<br />
distinguem as formas da língua”. (Simões, 2003: 24) A alteração fonológica gerou<br />
alteração de sentido, reforçando a função primária do fonema: a distinção.<br />
• Mamar: verba intransitiva por Amar: verbo intransitivo (11/05/2003).<br />
Neste segundo exemplo, ocorre uma paródia do título do livro de Mário de<br />
Andrade Amar: verbo intransitivo; os dois vocábulos mamar e amar diferem pelo<br />
fonema nasal dental no início do vocábulo. Em verba/verbo, a alteração do fonema /o/<br />
para /a/, gera um novo significante e, conseqüentemente, um novo significado,<br />
reforçando o conceito de fonema como um traço distintivo das palavras.<br />
Em mais dois anúncios publicitários podemos encontrar exemplo do papel<br />
distintivo do fonema, sendo empregado para fortalecer o trocadilho:<br />
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• Limpol acaba com a gordura sem acabar com as mães. Desculpe, com as<br />
mãos. (Trocadilho apoiado na troca intencional do fonema).<br />
• Sente-se bem, sinta-se melhor ainda. (Propaganda de uma loja de cadeiras).<br />
A questão da nasalidade pode ser abordada através do exemplo abaixo, proferido<br />
por Silvio Pereira, Secretário de Organização do PT, e conhecido por soltar algumas<br />
pérolas como essa:<br />
• Desculpe por estar pegando o bode andando.(18/05/2003)<br />
A expressão original é pegar o bonde andando. Bonde e bode são um bom<br />
exemplo do valor distintivo da nasalidade.(cf. Câmara Jr.), pois o sentido da expressão<br />
popular foi completamente modificado com a alteração fonológica.<br />
3. ALGUMAS CONCLUSÕES<br />
Após analisar atentamente o exemplário fornecido por charges, propagandas e<br />
textos humorísticos, podemos elencar algumas conclusões:<br />
• aparentemente, essas alterações geram o riso e a graça pelo seu despropósito.<br />
Despropósito intencional e que demonstra um amplo domínio dos recursos expressivos<br />
da língua portuguesa. Quem as produz (redatores de programas humorísticos,<br />
publicitários, chargistas) possui um bom conhecimento de sua língua materna, para dela<br />
se apropriar como matéria-prima para seus trocadilhos e jogos de palavras. Engana-se<br />
quem pensa que essas alterações são resultado da falta de compreensão da língua; ao<br />
contrário, elas demonstram usuários que detêm conhecimento sobre a matéria fônica da<br />
língua, sobre seu vocabulário e sua estrutura morfossintática. O aluno perceberá que<br />
também ele necessita conhecer sua língua para melhor utilizá-la no dia-a-dia ou mesmo<br />
trabalhá-la artisticamente;<br />
• ao recolher este tipo de corpus para trabalhar com os alunos, fica patente a<br />
relação entre conhecimento e realidade, entre teoria e prática, contextualizando o<br />
ensino;<br />
• o ensino de língua portuguesa não é, nem precisa ser, desconectado da<br />
atualidade. Podemos e devemos trabalhar os clássicos com os alunos, mas nada melhor<br />
que exemplos atuais para ilustrar a teoria;<br />
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• as aulas de Fonologia não mais se resumirão à contagem de sílabas ou<br />
identificação de encontros vocálicos, consonantais, nem tampouco à versificação (rimas,<br />
assonâncias, aliterações). Um leque de opções se abre para o aluno e para o professor:<br />
charges, músicas, quadrinhos, comerciais, internet, entre outros exemplos de aplicação<br />
de fenômenos fônicos.<br />
Ao optar por este tipo de trabalho, o professor se coaduna com as novas<br />
tendências ou exigências educacionais. Vários estudiosos pregam um ensino<br />
contextualizado, ancorado na realidade do aluno, sendo este o agente de construção do<br />
seu próprio conhecimento (cf. Piaget, Freinet, Vygotsky). Ao selecionar tal sorte de<br />
corpus para o trabalho em sala de aula, além de proporcionar um ensino mais dinâmico<br />
e próximo da realidade de seus alunos, o professor produz seu próprio material didático,<br />
desvinculando-se de livros didáticos que nem sempre atendem às necessidades dos seus<br />
educandos, de tal forma que sua prática demonstre maior coerência e visão crítica de<br />
sua própria língua.<br />
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
Bíblia Sagrada (1985) São Paulo: Editora Ave Maria.<br />
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. (1991) Rio de Janeiro: Vozes.<br />
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa.<br />
(2000) São Paulo: T. A. Queiroz.<br />
MONTEIRO, José L. Morfologia Portuguesa. (1991) São Paulo: Pontes.<br />
RAMOS FILHO, João et al. Caderno de atividades em língua portuguesa. (1995) Rio de<br />
Janeiro: JOBRAN.<br />
SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de<br />
exercícios. (2002) São Paulo: Contexto.<br />
SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave: considerações metodológicas sobre a fala e a<br />
escrita. (2003) Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora.<br />
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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS<br />
Os textos deverão ser encaminhados exclusivamente pela INTERNET (em forma<br />
de anexo a mensagem eletrônica), para o seguinte endereço eletrônico:<br />
dialogarts@uol.com.br<br />
Os volumes não são temáticos, apesar de priorizarem as áreas: Letras,<br />
Lingüística e Semiótica.<br />
A língua oficial da publicação é o português.<br />
O fluxo de recebimento de artigos e publicação é contínuo (exceto quando haja<br />
chamadas especificando datas), ficando sujeito à quantidade de textos aprovados pelo<br />
Conselho Editorial e às condições de produção disponibilizadas pela <strong>UERJ</strong>.<br />
AS INSTRUÇÕES DE DIGITAÇÃO SÃO AS SEU SEGUINTES<br />
Digitado em Word (com aplicação de estilos do próprio editor de textos),<br />
gravado em formato RTF; página tamanho A4, com as seguintes configurações:<br />
margens de 3cm; cabeçalho e rodapé com 1cm; orientação do papel na posição retrato,<br />
com o mínimo de 8 (oito) e o máximo de 25 (vinte e cinco) laudas.<br />
Não hifenizar.<br />
Não produzir espaços com o uso da tecla ENTER.<br />
Não incluir figuras, gráficos e tabelas no arquivo texto. (vide item 3.3)<br />
ESTILOS A SEREM CRIADOS E USADOS PELO AUTOR<br />
• Título: fonte Times New Romam 12, negrito, caixa de frase, parágrafo<br />
simples, centralizado, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois,<br />
• Autor: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento à<br />
direita, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois, seguido do nome<br />
da(s) instituição(ões) que representa;<br />
• Corpo do “Texto: fonte Times New Roman 12; parágrafo 1,.5, com<br />
alinhamento justificado, recuo especial na primeira linha de 0,75cm, 3<br />
espaços antes e 3 espaços depois;<br />
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• Citação: fonte "Mimes New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento<br />
justificado, sem recuo especial na primeira linfa, com recuo de 3cm à<br />
esquerda e 1 cm à direita, 3 espaços antes e 0 espaços depois,<br />
• Bibliografia: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com<br />
alinhamento justificado, recuo especial de deslocamento de 0,8cm; 3 espaços<br />
antes e 3 espaços depois,<br />
• Notas: apenas notas de referência direta (em estilo americano), conforme o<br />
exemplo: (SIMÕES, 2003: 37). Não publicaremos textos com notas de<br />
rodapé ou de fim.<br />
CRITÉRIOS ADICIONAIS:<br />
• palavras ou expressões-objeto cm itálico, termos estrangeiros (inclusive<br />
latim ou grego) sublinhados, não usar negrito;<br />
• evitar figuras, gráficos e tabelas;<br />
• quando as figuras (usar formato JPEG para WEB), tabelas e gráficos forem<br />
indispensáveis, mandá-los em arquivos independentes e numerados. (Indicar<br />
no texto a localização de cada figura, gráfico ou tabela).<br />
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