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ANEXO 2 - Tema 2013: Cuidar-se para poder cuidar<br />

1<br />

Em 10/12/12<br />

(texto retirado parcialmente do livro: Por uma ética do cuidado / organização de Marisa<br />

Schargel Maia. RJ: Garamond, 2009. p. 29-51)<br />

A fábula de Higino em Ser e tempo:<br />

das relações entre cuidado, mortal idade e angústia<br />

Alexandre Costa<br />

É muito comum, e talvez até inevitável, que lembremos da célebre fábula de Higino quando temos a<br />

questão do "cuidado" como tema. Longe de ter que evitá-la por essa sua recorrência, essa lembrança<br />

reincidente atesta sua valia e pertinência. Mais do que isso, ela toma explícita a força com que os mitos<br />

pairam sobre nós, fincando seu conteúdo alegórico em nossas cabeças como se nenhuma outra forma de<br />

linguagem pudesse ser tão significativa e poderosa.<br />

Ao filósofo alemão Martin Heidegger também não escapou essa lembrança enquanto escrevia, em<br />

sua obra Ser e tempo, a respeito do cuidado (Sorge).<br />

Pretendo neste ensaio desenvolver uma interpretação acerca dessa fábula, conhecida comumente<br />

como "o mito do cuidado", dela extraindo tanto o que nos oferece "diretamente" a esse respeito, como o que<br />

se pode desdobrar a partir dela na qualidade de uma série de reflexões sobre a vida humana que ela, a<br />

fábula, provoca ou mesmo impõe. Para que esses desdobramentos se enriqueçam e possam ser entendidos<br />

a contento, tomarei como interlocutor privilegiado as já mencionadas considerações que Heidegger elabora<br />

em Ser e tempo sobre o presente assunto.<br />

A fábula de Higino: o cuidado como condição do humano<br />

Higino, autor latino que viveu em Roma entre os séculos I a.C. e I d.C., sintetizou a partir de<br />

mitos gregos e latinos uma fábula sobre o cuidado, conforme relato a seguir:<br />

Certa vez, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa. Ocorreu-lhe então a ideia<br />

de moldá-lo, dando-lhe forma. Enquanto pensava sobre o que acabara de criar, interveio Júpiter. Cuidado<br />

pediu-lhe que ...<br />

A decisão de Saturno tenta conciliar a vontade de todos os três e é geralmente considerada<br />

justa. O caráter equitativo de sua sentença, porém, não deve deixar passar despercebida uma<br />

diferença fundamental: Júpiter e Terra somente terão o "homem" de volta após a sua morte. O mito<br />

estabelece assim uma interpretação clara a respeito do destino do homem após a dissolução do<br />

seu corpo, interpretação esta que, de fato, pretende equivaler à descrição da sua realidade. Uma<br />

vez sem ânimo, esse corpo volta à Terra, indiferenciando-se. É a parte retomando ao todo de que<br />

surgiu. Já o espírito, que não se corrompe, volatiliza-se ao domínio das almas, dos vapores, reino<br />

de Júpiter por excelência. Cuidado, entretanto, possuirá o homem "enquanto viver". Enquanto<br />

houver vida, o homem pertencerá ao cuidado, a cada hora, minuto e instante. Com isso se quer<br />

dizer que não há distinção entre cuidado e vida humana. Ambos entrelaçam-se, confundem-se<br />

numa só unidade: o homem, vivendo, cuida; cuidando, vive.<br />

Mas por que haveria aqui um elemento pelo qual se pode pensar que a decisão de Satumo,<br />

justa em termos gerais, privilegia, ainda assim e de alguma forma, Cuidado? É que ao homem<br />

pertence radical e impulsivamente o desejo de vida. Situar Júpiter e Terra no âmbito de sua morte<br />

significa entregar-lhes o homem quando este já não é mais o que quer ser, quando já não é<br />

homem. Sua inteireza e integridade ficam com Cuidado. Vivo, ele é trino e, trino, inteiro: ânimo,


corpo e cuidado. Morto, ele se decompõe em partes distintas, partes estas que já não mais<br />

conformam o humano. Com efeito, Júpiter e Terra jamais terão o homem. Saturno entrega o<br />

homem ao Cuidado e apenas a ele.<br />

O homem deseja manter-se vivo, preservando a sua vida. Por isso mesmo, sua vida se<br />

caracteriza pelo cuidado que toma para não perdê-Ia. Não há distinção entre um e outro. Pois, para<br />

ele, o seu desejo permanece com aquele que o possui enquanto viver. Só o possui na qualidade de<br />

cuidado porque o homem cuida de não morrer, isto é, empenha-se por aquilo que evita a sua<br />

morte, luta por aquilo que mantém o seu interesse mais radical. Nesse confronto, sua arma<br />

primordial é o cuidado.<br />

Parece-me justo considerar que a mortalidade do homem é o fundamento a partir do qual o<br />

cuidado se instaura como seu elemento e caráter mais próprio. Efetivamente, a morte não é<br />

esquecida pela fábula: na morte o homem já não é homem e, uma vez consumada a sua<br />

destinação última, extingue-se igualmente o cuidado, porque o cuidado é a sua condição de vida,<br />

não de morte. A morte, por sinal, é a própria ausência de condicionamento. A morte é o lugar em<br />

que o homem já não é e, portanto, não cuida. Se o seu temor mais radical e inevitável já se<br />

cumpriu e se ele mesmo já não existe, como permanecer cuidando? Mas, por outro lado, é<br />

igualmente irrecusável observar que a morte é o fator que provoca esse zelo no homem. Por isso o<br />

mito diz que o homem pertence ao cuidado enquanto viver. Mas tão-somente enquanto viver. O<br />

cuidado é uma presença contínua e irremissível da vida humana porque a morte significa para ela,<br />

igualmente, uma ameaça constante.<br />

Não é por acaso, portanto, que a fábula deponha nas mãos de Saturno, deus do tempo, a<br />

decisão sobre a contenda. Saturno pontua no mito como o defini dor. Ele define o que é vida e<br />

morte para o homem, distingue o seu liame, o seu "ser homem" e o seu "não mais poder ser<br />

homem". A vida dos entes, e também do ente humano, é duração. A vida dura. Tudo que é se<br />

encontra laçado à temporalidade, configurando, assim, uma orientação. Se a existência possui um<br />

sentido forçoso e imperativo, necessário e inevitável, esse sentido é a morte. Somos seres<br />

orientados para a morte e a flecha que nos lança a esse alvo tem o nome de tempo. Ou Saturno.<br />

Ou Cronos, que, tal como nos conta o mito grego, devora os próprios filhos. lmpiedosamente: por<br />

ser uma regra, uma lei inviolável, uma condição a não ser burlada.<br />

Entregar o cuidado ao homem significa, então, determinar a sua condição. Não haverá<br />

poder ou artifício capaz de transgredir ou superar esse condicionamento fundamental. Entregar o<br />

cuidado ao homem é atirá-lo às garras do tempo, é definir, para ele, que sua vida tem como<br />

horizonte a temporalidade. Quando esse horizonte se desfaz, o homem se desmancha, já não é.<br />

Com essa entrega, Saturno condena o homem à transitoriedade do tempo, determinando que sua<br />

vida é uma duração. Trata-se, pois, de uma vida que pode findar a qualquer momento. Se,<br />

consequentemente, o interesse do homem é viver, terá que cuidar para prolongar esse seu estado.<br />

A iminência continua da morte, sua perpétua pendência e a possibilidade da efetivação do risco e<br />

da ameaça que ela representa conferem à vida uma fragilidade quase constrangedora. A vida dura.<br />

E é frágil. Por isso o homem há de carregá-Ia em suas mãos com o zelo e a singeleza de quem<br />

manuseia delicadas peças da mais fina porcelana. Para qualquer gesto em falso, a morte estará<br />

sempre de prontidão para apossar-se dele,corrompendo-o e entregando os seus despojos à terra e<br />

aos céus.<br />

É o tempo, portanto, quem determina a finitude do homem. Viver é perder tempo. Mas o<br />

quanto pudermos deter essa perda, o quanto pudermos frear essa inclinação e essa pendência<br />

constitutivas, tanto ou maior será o nosso empenho nessa luta. Esse "quanto" será função do<br />

cuidado e dos seus artifícios em sua intenção de conter essa marcha.<br />

Paradoxalmente, o tempo, esse tambor da morte a ditar o seu ritmo, é também a vida. Vida<br />

e morte encontram-se na temporalidade. Bem pensado, posso formular de forma arrojada que só<br />

há uma forma de viver, que é morrer. E, do mesmo modo, só há uma forma de morrer - viver. O<br />

tempo resume-as num mesmo. Note-se o uso da forma infinitiva do verbo. A rigor, dizer "vida" ou<br />

2


"morte", isto é, adotar substantivos para algo que, alfim, constitui um único e mesmo fenômeno<br />

processual, significa artificializá-lo ao extremo. A substantivação cristaliza, imobiliza um vivermorrer<br />

que é movimento contínuo e perpétuo.<br />

......................................................................<br />

Posso afirmar que "enquanto viver", tal como a fábula, ou que "enquanto morrer", tal como o<br />

poema, o homem cuida. Enquanto houver esse processo ele será o próprio cuidado. Mas, contudo,<br />

essa dialética, essa copertinência entre viver e morrer encontra termo. A morte fática e final é fim<br />

não só do viver, mas do morrer também. É fim de partida, fim de processo, é fim do cuidado e é,<br />

também, fim da linguagem. A morte é terreno do silêncio e do impossível. É este silêncio, essa<br />

extinção, que o homem teme: a sua negação última e extrema. E, lamentavelmente para ele, essa<br />

negação extrema e última é também inelutável.<br />

Ainda que inelutável, o homem cuida para que essa morte não aconteça. Eis aqui o<br />

paradoxo central da vida humana: o seu mais ardente e visceral desejo - e o homem o sabe de<br />

antemão - sairá frustrado. Ainda assim ele luta por sua duração, ele cuida. É que o caráter<br />

inelutável dessa morte fática, por mais forte e coesa seja essa orientação, não ultrapassa aquilo<br />

que no homem é tão forte quanto: sua mania em manter-se vivo.<br />

3

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