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CHARLES BOVARY, OFFICIER DE SANTÉ À TOSTES ... - WWLivros

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<strong>CHARLES</strong> <strong>BOVARY</strong>, <strong>OFFICIER</strong> <strong>DE</strong> <strong>SANTÉ</strong> EM<br />

YONVILLE-L’ABBAYE NO SÉCULO XIX<br />

<strong>CHARLES</strong> <strong>BOVARY</strong>, <strong>OFFICIER</strong> <strong>DE</strong> <strong>SANTÉ</strong> <strong>À</strong><br />

YONVILLE-L’ABBAYE AU XIX e SIÈCLE<br />

Vanessa Costa e Silva Schmitt *<br />

1<br />

Robert Ponge **<br />

RÉSUMÉ: Élaboré à partir d’analyses présentées dans une thèse de doctorat en littératures<br />

francophones soutenue à l’UFRGS, conçu dans un groupe de recherches qui se penche sur les<br />

rapports entre la littérature, l’histoire et la science, reposant sur une méthodologie historique<br />

et thématique, cet article se propose d’étudier quelques éléments relatifs à la présence de la<br />

médecine dans la deuxième et la troisième parties de Madame Bovary (1857), roman de<br />

Gustave Flaubert. Après avoir rappelé quelques aspects de l’intrigue, du personnage de<br />

Charles et des débuts de son activité médicale à Tostes, son premier lieu d’exercice, de même<br />

que la place qu’il occupe dans la hiérarchie médicale, nous étudions ses habitudes de travail à<br />

Yonville, c’est-à-dire quels sont ses horaires, ses déplacements, les maladies et les lésions<br />

qu’il soigne, les traitements qu’il prescrit, ainsi que les malheurs qui lui arrivent dans son<br />

parcours médicale.<br />

MOTS-CLÉS: XIX e siècle; Madame Bovary; littérature et médecine.<br />

RESUMO: Elaborado a partir de análises apresentadas em tese doutoral em literaturas<br />

francófonas defendida na UFRGS, concebido em um grupo de pesquisa que se debruça sobre<br />

as relações entre a literatura, a história e a ciência, apoiando-se numa metodologia histórica e<br />

temática, este artigo propõe-se a estudar alguns elementos relativos à presença da medicina na<br />

segunda e terceira partes de Madame Bovary (1857), romance de Gustave Flaubert. Após<br />

* Vanessa Schmitt é graduada em Odontologia, mestre e doutora em Letras (especialidade de literaturas francesa<br />

e francófonas), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.<br />

** Robert Ponge é professor titular aposentado do Instituto de Letras da UFRGS, docente convidado e orientador<br />

do PPG em Letras da UFRGS.


levantar alguns aspectos da intriga, do personagem Charles e de seu começo de carreira em<br />

Tostes, primeiro local de exercício médico, assim como o lugar que ele ocupa na hierarquia<br />

médica, estudamos seu quotidiano de trabalho em Yonville, ou seja, quais são seus horários,<br />

seus deslocamentos, as doenças e lesões de que se ocupa, os tratamentos que prescreve, bem<br />

como os infortúnios que ocorrem em sua trajetória médica.<br />

PALAVRAS-CHAVE: século XIX; Madame Bovary; literatura e medicina.<br />

Partindo da preocupação em estudar as relações entre literatura/história/sociedade e<br />

baseando-se em elementos de análises apresentadas em tese de doutoramento (SCHMITT,<br />

2012) 1 , este artigo visa a examinar alguns elementos referentes à presença da medicina em<br />

Madame Bovary (1857), romance de Gustave Flaubert. Na sequência de trabalho anterior<br />

(SCHMITT, 2010) que se debruçou sobre o quotidiano do personagem Charles Bovary no<br />

vilarejo de Tostes (primeira parte do romance) 2 , procura-se aqui estudar as atividades e o<br />

comportamento médicos do mesmo personagem durante sua estada na pequena cidade de<br />

Yonville-l’Abbaye (trata-se da segunda e da terceira partes da obra).<br />

Começamos por uma enxuta apresentação da intriga de Madame Bovary, seguida das<br />

outras partes: debruçamo-nos sobre o status profissional de Charles (ele é officier de santé,<br />

oficial de saúde 3 ), sobre seus rendimentos e sobre o padrão de vida que levam os Bovary. Em<br />

seguida, esforçamo-nos para examinar de perto a prática médica de Charles (sua rotina de<br />

trabalho e os dois principais infortúnios de sua trajetória profissional).<br />

A intriga de Madame Bovary<br />

Madame Bovary é a história banal de Emma Rouault, senhora Bovary. Ela é, sem<br />

sombra de dúvida, o personagem central do romance. Mas seu marido, Charles Bovary, está<br />

longe de ser um personagem secundário: é ele que abre e encerra a narrativa, e seu papel é<br />

essencial.<br />

No começo do romance, ele estuda medicina, depois passa a exercer em Tostes e casa-<br />

se com uma mulher bem mais velha (achado de sua mãe), que se torna uma esposa tirana. Ela<br />

morre repentinamente após quatorze meses de casamento. Ele está livre para casar-se<br />

novamente.<br />

Escolhe por esposa a charmosa Srta Emma Rouault (filha de um paciente, fazendeiro)<br />

e encontra a felicidade nestas segundas núpcias. Para ela, no entanto, este marido com o qual<br />

2


tanto sonhou mostra-se bastante decepcionante. Sua vida é tão monótona quanto a conversa<br />

de Charles (“plate comme un trottoir de rue” 4 ). O quotidiano sem surpresa e sem paixão<br />

entedia a jovem nubente. O tédio agrava-se. Como sua mulher reclama o tempo todo de<br />

Tostes, Charles decide instalar-se em outro domicílio, após ter consultado seu antigo mestre<br />

em Rouen, segundo o qual é necessário mudar de ares (p. 128). A cidadezinha de Yonville-<br />

l’Abbaye é o lugar escolhido. Por ocasião da mudança, Emma está grávida.<br />

Lá, ela conhece Léon, um jovem ajudante de notário. Rapidamente, uma afeição<br />

mútua surge, mas ela permanece virtuosa e fiel a seu marido. O nascimento de sua filha,<br />

Berthe, não lhe traz felicidade alguma. Após a partida de Léon, que vai estudar direito em<br />

Paris, sua melancolia aumenta e ela passa a desprezar Charles, depois deixa-se seduzir por<br />

Rodolphe, um dos abastados proprietários de terras do local. Abandonada por seu amante, ela<br />

adoece gravemente. Após a convalescência, por acaso, em Rouen, os Bovary encontram Léon.<br />

Emma torna-se então sua amante. Charles não desconfia de nada.<br />

Presa numa rede de mentiras e de acumulação de dívidas, Emma vê-se sem saída.<br />

Léon e Rodolphe não lhe dão suporte financeiro. Desesperada diante da iminente perda por<br />

confisco judicial de todos os bens dos Bovary, Emma ingere arsênico.<br />

Charles assiste impotente à agonia e à morte de sua mulher. Completamente falido em<br />

virtude das dívidas contraídas por Emma, ele morre silenciosamente.<br />

Passemos agora à partes seguintes do trabalho. Começamos pela categoria profissional<br />

da medicina à qual Charles pertence.<br />

O officiat de santé<br />

O pai de Charles tinha uma patente de auxiliar de cirurgião no exército até o ano de<br />

1812; isto explica, talvez, por que seus pais decidem fazê-lo seguir a carreira médica: “à la fin<br />

de sa troisième, ses parents le retirèrent du collège pour lui faire étudier la médecine,<br />

persuadés qu’il pourrait se pousser seul jusqu’au baccalauréat” (p. 68). Seu objetivo é que ele<br />

se torne oficial de saúde. De que se trata?<br />

Na França, durante o Antigo Regime, as categorias médicas distribuíam-se grosso modo entre<br />

os médicos, os cirurgiões, os enfermeiros e enfermeiras, os farmacêuticos, as parteiras, bem<br />

como um vasto grupo compreendendo todos os empíricos sob denominações as mais diversas<br />

(GOUBERT, 1977, p. 908-927; LÉONARD, 1981, p. 7-66; MURPHY, 1979, p. 259-278). A<br />

formação que os médicos e os cirurgiões recebiam era bastante distinta: o ensino da medicina<br />

para os futuros doutores consistia no estudo e na interpretação exaustivas de autores antigos,<br />

3


ou seja, era essencialmente teórica. Por outro lado, o ensino recebido pelos cirurgiões visava à<br />

prática, valorizando os procedimentos operatórios (WIRIOT, 1970, p. 22).<br />

Durante a Revolução, são dissolvidas as faculdades e as organizações de ensino, bem<br />

como as corporações e as associações profissionais. Como consequência direta, a prática e o<br />

ensino médicos conhecem a desordem; patentes podem ser compradas, o que permite que<br />

pessoas sem formação exerçam a medicina.<br />

Porém, segundo Armelle Le Goff, o ano de 1803 corresponde ao começo de uma nova<br />

organização do corpo médico:<br />

“C'est sous le Consulat qu'est mis en place le système des grades<br />

nécessaires pour exercer les professions de santé. La loi du 19 ventôse an XI<br />

(10 mars 1803) instaure des écoles de médecine. La distinction est abolie entre<br />

médecins et chirurgiens. La médecine comporte désormais deux niveaux: celui<br />

des docteurs, issus des écoles de médecine devenues facultés en 1808 et dont le<br />

titre confère le droit d'exercer la médecine et la chirurgie sur tout le territoire;<br />

celui des officiers de santé, pratiquant une médecine restreinte après des études<br />

plus brèves. Jusqu’en 1855, les officiers de santé sont reçus par des jurys<br />

médicaux dans les départements. L’officier de santé ne peut exercer que dans<br />

les limites du département où il a été reçu. L’officiat de santé est aboli en<br />

1892.” (LE GOFF, 2005, p. 1)<br />

Em virtude desta lei, duas ordens de médicos passam a existir: os doutores, oriundos<br />

das escolas de medicina e com poder de exercer em todo o território, e os oficiais de saúde,<br />

praticando uma medicina restrita ao local de origem, após estudos mais breves 5 .<br />

Charles Bovary situa-se, logo, nesta escala inferior da hierarquia médica, este tipo de<br />

profissional preenchendo uma lacuna no sistema: não há médicos suficientes para o interior.<br />

Os rendimentos de Charles e o padrão de vida dos Bovary em Yonville<br />

Após tornar-se oficial de saúde, Charles instala-se em Tostes para exercer a medicina,<br />

onde adquire uma pequena reputação. Quatro anos depois de seu começo neste vilarejo,<br />

quando Bovary começava “à s’y poser” (p. 128, grifado por Flaubert), ele precisa mudar-se<br />

para agradar sua esposa, escolhendo Yonville-l’Abbaye como seu novo local de exercício.<br />

Em Yonville, Bovary e sua mulher instalam-se na casa anteriormente ocupada pelo<br />

antigo médico do lugar. Espaçosa e confortável, a casa comporta também o consultório,<br />

situado ao rés do chão (entre o galpão e a estrebaria), onde estão dispostas uma pequena<br />

biblioteca, uma poltrona e uma escrivaninha.<br />

4


O acerto de honorários não é necessariamente imediato, podendo ocorrer após o<br />

restabelecimento do doente. Assim como em Tostes, Emma encarrega-se de manter o registro<br />

das consultas e de escrever aos pacientes para lembrar os honorários devidos a seu marido,<br />

tarefa à qual se entrega com grande habilidade: “Elle envoyait aux malades le compte des<br />

visites, dans des lettres bien tournées qui ne sentaient pas la facture” (p.101).<br />

<strong>À</strong>s vezes, os honorários não são fixados pelo próprio profissional, o paciente<br />

decidindo, segundo a complexidade do caso ou os esforços do médico, quanto ele lhe deve.<br />

No episódio em que Charles realiza uma sangria em um empregado de uma fazenda, é o<br />

patrão deste, Rodolphe Boulanger, o responsável pelo pagamento, sem que haja qualquer<br />

referência aos honorários que o oficial de saúde deve receber: Rodolphe “déposa trois francs<br />

sur le coin de la table, salua négligemment et s’en alla” (p. 195).<br />

Os rendimentos de Charles são escassos. Oriundo de uma família de poucas posses,<br />

ele herdou da primeira esposa apenas a casa, em Tostes, e o mobiliário. Os bens do casal<br />

Bovary são, logo, limitados: um cavalo, instrumento de trabalho, uma égua e um tílburi usado<br />

que ele compra para agradar sua esposa (ele mesmo o conduz). Seu padrão de vida é modesto.<br />

Já era o caso em Tostes, e continua sendo em Yonville (à exceção das compras extravagantes<br />

que Emma se permite para ela mesma e, escondida, para seus amantes, despesas criadoras de<br />

dívidas).<br />

Mas, em Yonville, a modéstia de seu padrão de vida esconde suas preocupações<br />

financeiras. Eles continuam com uma criada a seu serviço. E a presença de dois animais no<br />

estábulo do genro leva o Sr. Rouault a deduzir que os negócios vão bem. Engana-se. Por um<br />

lado, todo o dote se foi em dois anos e as despesas de Emma aumentam progressivamente.<br />

Por outro lado, e, sobretudo, a realidade profissional de Charles em Yonville apresenta-se<br />

bem diferente daquela em Tostes. Ele continua a receber pacientes em consultas e a visitá-los<br />

nas redondezas, mas, embora seja o único médico da cidade, e talvez da região, os clientes são<br />

raros: “Charles était triste: la clientèle n’arrivait pas. Il demeurait assis pendant de longues<br />

heures, sans parler, allait dormir dans son cabinet ou regardait coudre sa femme” (p. 152).<br />

As rivalidades profissionais em Yonville<br />

Por que a clientela de Bovary é rara?<br />

Há a concorrência dos confrades da região (os outros oficiais de saúde e os doutores<br />

diplomados), o efeito das reticências e dos preconceitos dos camponeses em relação aos<br />

médicos, assim como a atividade de concorrentes ilegais do corpo médico: curandeiros,<br />

5


práticos e outros charlatães (LÉONARD, 1977, p. 154; GALÉRAND, 1988, p. 42). É preciso<br />

ainda considerar os farmacêuticos que exercem ilegalmente a medicina. É justamente o caso<br />

em Yonville (onde a farmácia é o estabelecimento “qui attire le plus les yeux”; seu letreiro<br />

“qui tient toute la largeur de la boutique, porte en lettres d’or: Homais, pharmacien”, p. 136):<br />

não se limitando a preparar loções, poções e todo tipo de medicamento, Homais entrega-se ao<br />

exercício ilegal da medicina nos fundos de sua farmácia, sobretudo em dias de mercado, ou<br />

seja, ele transgride a lei de 19 ventôse an XI que, no seu artigo primeiro, proíbe a todo<br />

indivíduo não portador de diploma o exercício da medicina (Décret, in CORLIEU, 1896, p.<br />

57).<br />

Assim, a prática ilegal da medicina por Homais é um dos fatores responsáveis, talvez<br />

mesmo o principal, pela fraca clientela de nosso oficial de saúde 6 !<br />

A rotina de trabalho de Charles em Yonville<br />

Que seja em Tostes ou em Yonville, o quotidiano de trabalho de Bovary divide-se<br />

entre as consultas em consultório e as visitas a domicílio. Estas ocorrem, sobretudo, fora da<br />

cidade, às vezes em locais exigindo fatigantes marchas a cavalo. Ele cavalga em longos<br />

percursos, examina pacientes em toda a região, prescrevendo tratamentos simples. Saindo<br />

frequentemente ao amanhecer, ele volta tarde para casa.<br />

No romance, são evocadas rapidamente a sua prudência (como uma qualidade<br />

profissional: “Craignant beaucoup de tuer son monde, Charles, en effet, n’ordonnait guère que<br />

des potions calmantes, de temps à autre de l’émétique 7 , un bain de pieds ou des sangsues”, p.<br />

121) e algumas de suas intervenções clínicas. Dentre estas, citam-se a drenagem de um<br />

abscesso bucal, extrações de dentes (pelas quais ele tem uma poigne d’enfer, p.122) e<br />

sangrias.<br />

No entanto, um caso bem sucedido e dois de infortúnio são relatados mais longamente:<br />

a redução de uma fratura, a operação de um pé disforme e o suicídio por ingestão de arsênico<br />

de sua mulher. A primeira intervenção, ainda em Tostes, é coroada de sucesso 8 . As duas<br />

outras, funestas, ocorrem em Yonville; elas marcam negativamente a trajetória profissional de<br />

nosso oficial de saúde, situam-se sob o signo do fracasso.<br />

O episódio do pé disforme<br />

6


Em Tostes, Charles gozava de certo renome, graças a seus esforços, à sua boa conduta<br />

pessoal e à sua prudência. Todavia, em Yonville, ele não consegue atrair a clientela.<br />

Persuadido pelo farmacêutico Homais e por Emma a operar o pé disforme de Hippolyte, o<br />

claudicante ajudante da estalagem Lion d’or, Charles pensa que esta cirurgia permitirá que ele<br />

adquira reputação, que ele seja tido pelo povo e pela comunidade científica como um grande<br />

médico! A reparação desse pé disforme poderia assim aumentar sua magra clientela em<br />

Yonville.<br />

Bovary põe-se a estudar em profundidade (num livro!) o universo dos pés tortos.<br />

Chegado o grande dia, consciente de que se encontra diante da intervenção mais difícil de sua<br />

carreira, Bovary está tomado de pavor:<br />

“Ni Ambroise Paré [XVI e siècle], appliquant pour la première fois<br />

depuis Celse, après quinze siècles d’intervalle, la ligature immédiate d’une<br />

artère; ni Dupuytren [XVIII e -XIX e siècle] allant ouvrir un abcès à travers une<br />

couche épaisse d’encéphale; ni Gensoul [XVIII e -XIX e siècle], quand il fit la<br />

première ablation de maxillaire supérieur, n’avaient certes le cœur si palpitant,<br />

la main si frémissante, l’intellect aussi tendu que M. Bovary quand il approcha<br />

d’Hippolyte, son ténotome entre les doigts.” (p. 244, grifado por Flaubert)<br />

Charles perfura a pele, corta o tendão: finda a cirurgia! O membro operado é contido<br />

num motor mecânico, concebido e elaborado (novamente a partir de um livro!) especialmente<br />

para a ocasião.<br />

Mas, cinco dias após o ato operatório, Charles é chamado com urgência porque<br />

Hippolyte retorce-se em convulsões atrozes. As formas do pé haviam desaparecido em meio a<br />

um tamanho inchaço que toda a pele parecia estar a ponto de romper-se, coberta de equimoses<br />

ocasionadas pela máquina fixadora. Apavorado, Bovary vê seu paciente a toda hora, o tempo<br />

todo, sempre recomendando-lhe uma dieta. Na sequência, ele põe-se a variar as poções e a<br />

mudar os cataplasmas, adoecendo ele mesmo de preocupação. Contudo, a gangrena está<br />

instalada e a podridão sobe irremediavelmente a cada dia.<br />

Finalmente, Charles consente fazer vir o Dr. Canivet, doutor em medicina, célebre na<br />

região. Jactante, este não hesita em rir diante da perna gangrenada, declarando firmemente<br />

que é necessário amputá-la. A amputação que salva a vida de Hippolyte é uma cruel<br />

humilhação para Bovary e um desastre para sua reputação 9 . A situação é ainda mais grave,<br />

pois Charles é incapaz de compreender que errou gravemente ao ousar realizar tal<br />

procedimento (para o qual não estava legalmente habilitado nem tecnicamente preparado),<br />

bem como de entender quando e em que pecou no ato cirúrgico. Todavia, ele ainda não<br />

recebeu o golpe mais duro de sua vida.<br />

7


O suicídio de Emma<br />

Ao fim da narrativa, Madame Bovary está desesperada. Sem dinheiro, atolada em<br />

dívidas cuja existência Charles ignora, perturbada pelo anúncio do confisco judicial dos bens<br />

familiares, e bastante desapontada ao perceber que Léon e Rodolphe (o amante atual e o<br />

precedente, respectivamente) recusam-se a prestar socorro, Emma ingere arsênico. Quando<br />

entra em casa, o marido, desconcertado, faz-lhe perguntas às quais se nega a responder.<br />

Ingênua, deita-se na espera de uma calmaria que colocará fim às suas inquietações e à sua<br />

mágoa. Na verdade, é o começo do calvário.<br />

Assim que é informado por Emma que esta acaba de envenenar-se, Charles desespera-<br />

se, abandona-se à emoção, depois cai em prostração.<br />

O sofrimento de Emma é atroz. Aos momentos de paroxismo sucedem períodos de<br />

remissão em que ela parece menos agitada.<br />

Chamado a intervir, o doutor Canivet não oferece nenhum remédio efetivo. De Rouen<br />

chega então o Dr. Larivière (também chamado por Charles) cuja autoridade é<br />

indiscutível. Após analisar o caso, ele formula seu diagnóstico esforçando-se por reconfortar<br />

Charles: “Allons, mon pauvre garçon, du courage! Il n’y a plus rien à faire” (p. 396).<br />

O padre Bournisien administra a extrema-unção. Logo após o rito, Emma não parece<br />

mais “aussi pâle, et son visage avait une expression de sérénité, comme si le sacrement l’eût<br />

guérie” (p. 399). No entanto, uma última convulsão a leva.<br />

Charles, vítima de seus próprios erros<br />

Como médico, Bovary é caracterizado sem cores, ou quase, a platitude sendo sua<br />

tonalidade principal. Praticando a medicina “à la manière d’un cheval de manège […]” (p.<br />

68), não passa de um medíocre, incapaz de sobressair-se no seu ofício.<br />

Sua qualidade mais notável é a prudência. Contudo, é justamente quando a abandona<br />

(na cirurgia do pé disforme de Hippolyte) que ele comete um erro capital cujas consequências<br />

são gravíssimas: tendo empreendido uma intervenção ilícita que estava acima de suas<br />

capacidades teóricas e técnicas, Charles acumulou erro sobre erro. O feitiço virou contra o<br />

feiticeiro, ou seja, a operação que deveria conduzi-lo ao sucesso resulta em catástrofe,<br />

expondo-o às críticas, à maledicência, às reprovações, à acusação justificada de<br />

incompetência, cobrindo-o de opróbrio e ocasionando seu infortúnio.<br />

8


No episódio do envenenamento de Emma, Charles demonstra total ausência de<br />

curiosidade e espírito de investigação médicos. Em nenhum momento ele assume a posição de<br />

médico. Pode-se dizer mesmo que sua postura resume-se ao ridículo quando propõe ao doutor<br />

Larivière a aplicação de sinapismos na tentativa de salvar Emma. Com ironia extremamente<br />

corrosiva, Flaubert dá assim o tom da incompreensão de Charles em relação ao estado de sua<br />

esposa.<br />

Uma morte seguida de outra<br />

Com Emma morta, nada mais resta a Charles a não ser cuidar da pequena Berthe e<br />

pagar as dívidas sem fim que lhe deixou sua esposa:<br />

“<strong>À</strong> chaque dette qu’il payait, Charles croyait en avoir fini. Il en<br />

survenait d’autres, continuellement. […]. Il fut obligé de vendre l’argenterie<br />

pièce à pièce, ensuite il vendit les meubles du salon. Tous les appartements se<br />

dégarnirent […]”. (p. 416, 418)<br />

Para coroar o infortúnio: “Il ne sortait plus, ne recevait personne, refusait même<br />

d’aller voir ses malades” (p. 423, grifo nosso). Vê-se forçado a vender o cavalo. É o fim.<br />

Na página seguinte, narra-se a sua morte, sobre o banco no jardim; súbita, mas serena.<br />

O romance abre-se com o personagem Charles, que é ainda o centro do último<br />

capítulo. Sua morte permite encerrar a narrativa. Porém o farmacêutico Homais, principal<br />

concorrente e responsável pela magra clientela de Charles, ocupa algumas das páginas<br />

derradeiras e, sobretudo, as últimas linhas. Homais (que Flaubert detesta) triunfa em vencedor<br />

sem escrúpulos, tendo recebido a tarefa de levar o romance ao seu ponto final – o que nos<br />

parece sintomático e irônico, mas não constitui assunto de discussão do presente artigo.<br />

1 SCHMITT, Vanessa Costa e Silva. Littérature et histoire des sciences: la médecine dans trois romans français du XIX e<br />

siècle. 2 v. Tese (doutorado). Orientador: Robert Ponge. PPG em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

Porto Alegre, 2012. Durante o período de doutoramento, Vanessa contou com bolsa CAPES, a qual agradece o apoio<br />

financeiro.<br />

2<br />

SCHMITT, Vanessa Costa e Silva; PONGE, Robert. “Charles Bovary, officier de santé à Tostes. In: Actes du XVème<br />

SEDIFRALE 2010 - 15ème Congrès latino-américain de professeurs de français, organisé par la Comission Amérique latine<br />

de la Fédération internationale des professeurs de français (Copalc/FIPF) et la Fédération argentine des professeurs de<br />

français (FAPF). Clé-USB/Pendrive. ISBN: 9789871315888. Rosario (Argentina): Laborde Libros Editor/Clé<br />

international/FIPF/FAPF, 2010. p. 1-6<br />

3<br />

A categoria do offficier de santé, que apresentamos a seguir, não existiu no Brasil, não havendo tradução consagrada para o<br />

termo. Optamos por recorrer à tradução literal da expressão para designá-la.<br />

4<br />

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. (1857). Edição, introdução, notas, apêndice, cronologia e bibliografia por Bernard<br />

Ajac. Paris: Flammarion, col. “GF”, 1986. p. 101. Todas as citações do romance de Flaubert são extraídas dessa edição.<br />

Doravante a referência das páginas será indicada diretamente no texto, entre parênteses, imediatamente após a citação.<br />

5<br />

Para mais informações sobre o oficial de saúde, ver SCHMITT, 2012, p. 310-312 ou, ainda, LE GOFF, Op. Cit.<br />

6<br />

Sobre esse assunto que ultrapassa as fronteiras do presente trabalho, ver as páginas 418-422 do romance e, sobretudo, 425;<br />

ver também SCHMITT, 2012.<br />

7<br />

Emétique (em português, emético): substância vomitiva.<br />

8<br />

Para maiores informações acerca do episódio bem-sucedido de Charles Bovary, consultar SCHMITT, PONGE, 2010, p. 4-5<br />

9<br />

Para uma análise mais detalhada da frustrada operação da deformidade de Hippolyte, consultar capítulo 13 de SCHMITT,<br />

2012, p. 308-332.<br />

9


BIBLIOGRAFIA<br />

“Décret du 19 ventôse an XI”. In: CORLIEU, A. Centenaire de la Faculté de médecine de<br />

Paris (1794-1894). Paris: Imprimerie nationale, 1896. p. 57-63<br />

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. (1857). Edition, introduction, notes, appendice,<br />

chronologie et bibliographie par Bernard Ajac. Paris: Flammarion, col. “GF”, 1986.<br />

GALÉRANT, Germain. Médecine de campagne : de la Révolution à la Belle Époque. Paris:<br />

Plon, 1988.<br />

GOUBERT, Jean-Pierre. “L’art de guérir : médecine savante et médecine populaire dans la<br />

France de 1790”. Annales Économie, Sociétés, Civilisations. v. 32. n. 5. Set-out. 1977. p.<br />

908-927.<br />

LE GOFF, Armelle. “Recherches sur un médecin ou un officier de santé au XIX e siècle”.<br />

Archives nationales françaises, 2005. p. 1-4. Disponible sur:<br />

http://www.archivesnationales.culture.gouv.fr/chan/chan/pdf/caran/61_medecinXIX.pdf<br />

LÉONARD, Jacques. La Médecine entre les savoirs et les pouvoirs: histoire intellectuelle et<br />

politique de la médecine française au XIX e siècle. Paris: Aubier Montaigne, 1981.<br />

LÉONARD, Jacques. La Vie quotidienne du médecin de province au XIX e siècle. Paris:<br />

Hachette, 1977.<br />

MURPHY, Terence. “The french medical profession’s perception of its social function<br />

between 1776 and 1830”. Medical History. v. 23, 1979. p. 259-278.<br />

SCHMITT, Vanessa Costa e Silva. Littérature et histoire des sciences: la médecine dans trois<br />

romans français du XIX e siècle. 2 v. Tese (doutorado). Orientador: Robert Ponge. PPG<br />

em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.<br />

SCHMITT, Vanessa Costa e Silva; PONGE, Robert. “Charles Bovary, officier de santé à<br />

Tostes”. In: Actes du XVème SEDIFRALE 2010 - 15ème Congrès latino-américain de<br />

professeurs de français, organisé par la Comission Amérique latine de la Fédération<br />

internationale des professeurs de français (Copalc/FIPF) et la Fédération argentine des<br />

professeurs de français (FAPF). Clé-USB/Pendrive. ISBN: 9789871315888. Rosario<br />

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