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Quando o nosso mundo se tornou cristão - Livraria Martins Fontes

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<strong>Quando</strong><br />

o <strong>nosso</strong> <strong>mundo</strong><br />

<strong>se</strong> <strong>tornou</strong> <strong>cristão</strong>


Paul Veyne<br />

<strong>Quando</strong><br />

o <strong>nosso</strong> <strong>mundo</strong><br />

<strong>se</strong> <strong>tornou</strong> <strong>cristão</strong><br />

O livro de boa -fé de um descrente que<br />

procura compreender como o Cristianismo,<br />

obra -prima da criação religiosa,<br />

con<strong>se</strong>gue impôr -<strong>se</strong> a todo o Ocidente.


Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre<br />

– Ministère Français Chargé de la Culture –<br />

Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro<br />

– Ministério Francês da Cultura –<br />

Título Original: Quand notre monde est devenu chrétien (312-394)<br />

Autor: Paul Veyne<br />

Tradução: Artur Morão<br />

Grafismo: Cristina Leal<br />

Paginação: Vitor Pedro<br />

© Éditions Albin Michel, 2007<br />

Todos os direitos re<strong>se</strong>rvados para<br />

Edições Texto & Grafia, Lda.<br />

Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.<br />

1000-217 Lisboa<br />

Telefone: 21 797 70 66<br />

Fax: 21 797 81 03<br />

E-mail: texto -grafia@texto -grafia.pt<br />

www.texto-grafia.pt<br />

Impressão e acabamento:<br />

Papelmunde, SMG, Lda.<br />

1.ª edição, Janeiro de 2009<br />

ISBN: 978-989-95884-2-4<br />

Depósito Legal n.º 286921/09<br />

Esta obra está protegida pela lei. Não pode <strong>se</strong>r reproduzida<br />

no todo ou em parte, qualquer que <strong>se</strong>ja o modo utilizado,<br />

<strong>se</strong>m a autorização do Editor.<br />

Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor<br />

<strong>se</strong>rá passível de procedimento judicial.


C O L E C Ç Ã O<br />

O panorama das ideias, do pensamento e das transformações<br />

culturais avulta e recorta -<strong>se</strong>, rico e diverso, na mole de obras e de<br />

acontecimentos com que a humanidade foi deixando a sua incisão no<br />

corpo irrequieto da história.<br />

Neste contexto, a colecção PILARES publicará trabalhos que,<br />

além do <strong>se</strong>u valor intrín<strong>se</strong>co, encerrem uma garantia de perenidade<br />

temática que os possam inscrever no rol de textos fundamentais para<br />

a articulação e a conversação, cada vez mais urgente, dos saberes<br />

entre si.


Para Lucien Jerphagnon<br />

e em memória de Claude Roy


I.<br />

O salvador da humanidade:<br />

Constantino<br />

Um dos acontecimentos decisivos da história ocidental e mesmo<br />

mundial deu -<strong>se</strong> em 312 no imenso Império romano. O século IV<br />

da nossa era mal começara para a Igreja Cristã: de 303 a 311, ela<br />

suportara uma das duas piores per<strong>se</strong>guições da sua história, que fizera<br />

milhares de mortos. Em 311, um dos quatro co -imperadores que<br />

partilhavam o governo do Império tinha -<strong>se</strong> resignado a pôr -lhes fim,<br />

reconhecendo amargamente, na sua lei de tolerância, que per<strong>se</strong>guir<br />

de nada <strong>se</strong>rvia; de facto, os numerosos <strong>cristão</strong>s que haviam renegado<br />

a sua fé para salvar a vida não tinham voltado ao paganismo. Havia,<br />

pois (e nesta época era um motivo de inquietação para um chefe),<br />

lacunas no tecido religioso da sociedade.<br />

Ora, no ano <strong>se</strong>guinte, em 312, irrompeu o mais imprevisível<br />

dos acontecimentos: outro dos co -imperadores, Constantino, o herói<br />

desta grande história, converteu -<strong>se</strong> ao cristianismo no <strong>se</strong>guimento<br />

de um sonho (“com este sinal vencerás”). Nesta época, pensa -<strong>se</strong> que<br />

apenas cinco ou dez por cento da população do Império (talvez 70<br />

milhões de habitantes) eram <strong>cristão</strong>s 1 . “É preciso nunca esquecer”,<br />

escreve J. B. Bury 2 , “que a revolução religiosa feita por Constantino<br />

em 312 foi talvez o acto mais audacioso alguma vez levado a cabo<br />

por um autocrata, desafiando e desprezando o que pensava a grande<br />

maioria dos <strong>se</strong>us súbditos”.<br />

1) Ou o dobro em certas regiões amplamente cristianizadas, sobretudo na África<br />

e no Oriente grego, onde <strong>se</strong> pode supor uma difusão por “placas de vizinhança”<br />

e imitação de próximo para próximo. Cf. recentemente Klaus M. GIRARDET<br />

num bom livro, Die konstantinische Wende: Voraus<strong>se</strong>tzungen und geistige Grundlagen<br />

der Religionspolitik Konstantins des Großen, Darmstadt, 2006, p. 82 -83.<br />

2) A History of the Later Roman Empire, reed. 1958, New York, Dover Books, vol.<br />

I, p. 360. Citado por Peter BROWN, Society and the Holy in Late Antiquity,<br />

Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1982, p. 97 (La Société<br />

et le sacré dans l’Antiquité tardive, trad. fr. A. Rous<strong>se</strong>lle, Paris, Seuil, 1985, reed.<br />

2002).<br />

9


10<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

BANALIDADE DO EXCEPCIONAL<br />

Oitenta anos mais tarde, como mais à frente <strong>se</strong> descobrirá, noutro<br />

campo de batalha e ao longo de outro rio, o paganismo ver -<strong>se</strong> -á<br />

proibido e, <strong>se</strong>m ter sido per<strong>se</strong>guido, saber -<strong>se</strong> -á vencido. Durante<br />

todo o século IV a Igreja, deixando de <strong>se</strong>r per<strong>se</strong>guida, como o fora<br />

frequentemente desde há três séculos, terá sido amparada de todas as<br />

maneiras pela maioria dos Césares, convertidos ao cristianismo; de<br />

tal forma que, no século VI, o Império <strong>se</strong>rá qua<strong>se</strong> só povoado por<br />

<strong>cristão</strong>s e, nos <strong>nosso</strong>s dias, há um bilião e meio de <strong>cristão</strong>s no <strong>nosso</strong><br />

planeta. Também é verdade que, depois dos anos 600, metade das<br />

regiões cristãs que tinham pertencido ao Império <strong>se</strong> tornará muçulmana<br />

<strong>se</strong>m dificuldade aparente.<br />

Que homem foi, pois, este Constantino cujo papel foi decisivo?<br />

Longe de <strong>se</strong>r o calculador cínico ou supersticioso, como ainda recentemente<br />

<strong>se</strong> dizia, foi, na minha opinião, um homem que pensava à<br />

grande; a sua conversão permitia -lhe participar no que ele tinha por<br />

uma epopeia sobrenatural, tomar a sua direcção e as<strong>se</strong>gurar assim<br />

a salvação da humanidade; tinha o <strong>se</strong>ntimento de que, para esta<br />

salvação, o <strong>se</strong>u reinado era, do ponto de vista religioso, uma época<br />

charneira, onde ele próprio tinha um imenso papel a de<strong>se</strong>mpenhar.<br />

Mal <strong>se</strong> <strong>tornou</strong> <strong>se</strong>nhor do Ocidente romano (devia ter então 35 anos),<br />

escreveu em 314 aos bispos, “<strong>se</strong>us queridos irmãos”, que “a santa<br />

eterna e inconcebível piedade do <strong>nosso</strong> Deus <strong>se</strong> recusa absolutamente<br />

a suportar que a condição humana continue por mais tempo a errar<br />

nas trevas” 1 .<br />

Constantino foi, decerto, sincero – o que é dizer muito pouco e,<br />

no <strong>se</strong>u caso, é preciso enfrentar o excepcional. Os historiadores estão<br />

menos habituados à excepção do que ao sadio método de “<strong>se</strong>riação”;<br />

além disso, têm o <strong>se</strong>ntido da banalidade, do quotidiano, au<strong>se</strong>nte em<br />

tantos intelectuais que acreditam no milagre em política ou que, pelo<br />

contrário, “caluniam o <strong>se</strong>u tempo por ignorância da história” (dizia<br />

Flaubert). Ora Constantino pensava ter sido escolhido, destinado<br />

por Decreto divino, para ter um papel providencial na economia<br />

milenar da Salvação; assim o dis<strong>se</strong> e escreveu num texto autêntico,<br />

que leremos mais à frente, mas tão excessivo que a maior parte dos<br />

historiadores, no <strong>se</strong>u embaraço, o desdenhou e não fala dele.<br />

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56.


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

Este exagero nada tem, no entanto, de inacreditável, inscreve -<strong>se</strong><br />

na série; pois acontece que um soberano, um pensador, um líder religioso<br />

ou político <strong>se</strong> julgam chamados a salvar a humanidade, a revolucionar<br />

o curso do <strong>mundo</strong>; o pior erro <strong>se</strong>ria duvidar da sua sinceridade.<br />

Esta é tanto mais incrível quanto em Roma o papel imperial era, por<br />

vezes, interpretado muito mais livremente do que o dos <strong>nosso</strong>s reis:<br />

nes<strong>se</strong>s tempos longínquos, quando a imaginação estava no poder não<br />

era entre os estudantes, era no soberano. Mas Constantino, potentado<br />

imaginativo e até megalómano, era também um homem de acção,<br />

modelado pela prudência e pela energia 1 ; alcançou pois os <strong>se</strong>us propósitos:<br />

o trono romano <strong>tornou</strong> -<strong>se</strong> <strong>cristão</strong> e a Igreja transformou -<strong>se</strong><br />

numa potência. Sem Constantino, o cristianismo teria permanecido<br />

uma <strong>se</strong>ita de vanguarda.<br />

BREVE RESUMO DOS FACTOS<br />

Comecemos por saldar em duas páginas o relato dos acontecimentos.<br />

A conversão de Constantino foi um episódio num des<strong>se</strong>s<br />

monótonos conflitos entre generais, <strong>se</strong>m outro fim a não <strong>se</strong>r a pos<strong>se</strong><br />

do trono, que preenchem uma boa metade da história política romana.<br />

Ora, no início do século IV, o Império romano estava dividido entre<br />

quatro co -imperadores que, supostamente, reinariam de modo fraternal;<br />

dois deles partilhavam o rico Oriente romano (Grécia, Turquia,<br />

Síria, Egipto e outros lugares), enquanto o vasto Ocidente (regiões<br />

do Danúbio, e ainda incluído o Maghreb) estava repartido entre um<br />

certo Licínio, de que voltaremos a falar, e o <strong>nosso</strong> Constantino que,<br />

por <strong>se</strong>u lado, governava a Gália, a Inglaterra e a Espanha.<br />

Deveria ter governado também a Itália, mas um quinto ladrão chamado<br />

Maxêncio entrara no jogo: usurpara a Itália e Roma. Mais tarde,<br />

os <strong>cristão</strong>s, para louvar Constantino, pretenderão falsamente que ele<br />

persistira como per<strong>se</strong>guidor. Foi para arrebatar a Itália a Maxêncio que<br />

Constantino entrou em guerra contra ele, e foi no decorrer desta campanha<br />

que <strong>se</strong> converteu, pondo a sua confiança no Deus dos <strong>cristão</strong>s<br />

1) “Um grande homem que tudo fez para realizar o que no <strong>se</strong>u ânimo determinara<br />

fazer” (vir ingens et omnia effi cere nitens quae animo simul praeparas<strong>se</strong>t), escreve<br />

EUTRÓPIO (X, 5), que é um patriota religiosamente indiferente entre Constantino<br />

e Juliano (X, 16).<br />

11


12<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

para ter a vitória. Esta conversão confluiu num sonho que ele teve na<br />

noite anterior à batalha e no qual o Deus dos <strong>cristão</strong>s lhe prometeu a<br />

vitória, <strong>se</strong> ele proclamas<strong>se</strong> publicamente a sua nova religião.<br />

Com efeito, no dia <strong>se</strong>guinte, no dia memorável de 28 de Outubro<br />

de 312, Deus concedeu -lhe nos arredores de Roma, ao longo do<br />

Tibre, a célebre vitória da Ponte Milvius; Maxêncio foi esmagado e<br />

morto pelas tropas de Constantino, que ostentavam a religião pessoal<br />

do chefe de que elas eram instrumento 1 : os <strong>se</strong>us escudos 2 estavam<br />

marcados por um símbolo novo 3 que, na véspera da batalha, fora<br />

revelado ao imperador durante o sono 4 e que ele mesmo trazia no<br />

<strong>se</strong>u capacete 5 ; era aquilo que <strong>se</strong> iria chamar o “crisma”, formado<br />

pelas duas primeiras letras do nome do Cristo, a saber, as letras gregas<br />

“X” e “P”, sobrepostas e cruzadas.<br />

E no dia <strong>se</strong>guinte, a 29, Constantino, à frente das suas tropas,<br />

fazia a sua entrada solene em Roma pela Via Lata, que é o actual Corso.<br />

É na data de 29 de Outubro de 312 (e não na do pretenso “édito de<br />

Milão” em 313) que <strong>se</strong> pode situar o marco -fronteira entre a antiguidade<br />

pagã e a época cristã 6 . Não nos enganemos: o papel histórico de<br />

Constantino não <strong>se</strong>rá pôr fim às per<strong>se</strong>guições (haviam cessado há dois<br />

anos, tendo o cristianismo sido reconhecido lícito, juntamente com o<br />

paganismo), mas fazer do cristianismo, a religião que adoptara, uma<br />

religião favorecida de todas as maneiras, ao contrário do paganismo.<br />

1) O crisma no escudo não implicava de forma alguma que o soldado, detentor<br />

des<strong>se</strong> escudo, fos<strong>se</strong> pessoalmente <strong>cristão</strong>; pelo contrário, o exército permanecerá<br />

durante muito tempo um foco de paganismo: Ramsay MACMULLEN,<br />

Christianizing the Roman Empire, A. D. 100 -400, New Haven/Londres, Yale UP,<br />

1984, p. 44 -47.<br />

2) In scutis, escreve Lactâncio, pouco depois de 312, no <strong>se</strong>u De mortibus per<strong>se</strong>cutorum,<br />

XLIV, 5. Na sua carta ao Xá da Pérsia, o próprio Constantino escreverá que<br />

“os <strong>se</strong>us soldados levam no ombro o sinal consagrado a Deus” (EUSÉBIO, Vida<br />

de Constantino, IV, 9).<br />

3) Sobre este sinal inventado por Constantino, ver Ch. PIETRI em Histoire du<br />

christianisme (dir. J. -M. MAYEUR, Ch. e L. PIETRI, A. VAUCHEZ e M.<br />

VENARD), Paris, Desclée, 1995, vol. II. Naissance d’une chrétienté (250 -430), p.<br />

194 -197; o crisma acabou por <strong>se</strong> tornar uma insígnia mais militar do que cristã:<br />

ver R. MACMULLEN, Christianizing the Roman Empire, op. cit., p. 48 e n.23.<br />

4) Ver Notas complementares, p. 181.<br />

5) EUSÉBIO, Vida de Constantino, I, 31, 4.<br />

6) Ver Notas complementares, p. 181.


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

RESUMO DA SUA ACÇÃO<br />

No resto do império, no ano <strong>se</strong>guinte, em 313, Licínio, que<br />

permaneceu pagão, mas <strong>se</strong>m <strong>se</strong>r per<strong>se</strong>guidor, venceu o co -imperador<br />

per<strong>se</strong>guidor que reinava no Oriente. Também ele tivera um sonho:<br />

na véspera da batalha, um “anjo” tinha -lhe prometido a vitória <strong>se</strong> ele<br />

dirigis<strong>se</strong> uma prece a um certo “deus supremo”; mandou, pois, o <strong>se</strong>u<br />

exército rezar a este deus supremo 1 . Alcançou a vitória, <strong>tornou</strong> -<strong>se</strong><br />

<strong>se</strong>nhor do Oriente e fez aí afixar um édito de tolerância, libertando<br />

assim os <strong>cristão</strong>s orientais do <strong>se</strong>u per<strong>se</strong>guidor. Postos frente a frente,<br />

o pagão Licínio e o <strong>cristão</strong> Constantino, que doravante partilhariam<br />

o reinado sobre o Império indivisível, tinham -<strong>se</strong> posto de acordo<br />

em Milão para tratar os <strong>se</strong>us súbditos pagãos e <strong>cristão</strong>s em pé de<br />

igualdade; era um compromisso, uma concessão contrária a todos os<br />

princípios, mas indispensável numa época que <strong>se</strong> queria futuramente<br />

pacífica (pro quiete temporis) 2 .<br />

Depois da vitória da Ponte Milvius, os pagãos poderiam supor<br />

que em relação ao deus que lhe dera a vitória, Constantino teria a<br />

mesma atitude que os <strong>se</strong>us predecessores: depois da sua vitória em<br />

Actium sobre António e Cleópatra, Augusto tinha pago a sua dívida a<br />

Apolo consagrando -lhe, como <strong>se</strong> sabe, um santuário e um culto local.<br />

Ora, o crisma que figurava nos escudos do exército de Constantino<br />

significava que a vitória fora con<strong>se</strong>guida graças ao Deus dos <strong>cristão</strong>s.<br />

Era desconhecer que entre este Deus e as suas criaturas a ligação era<br />

permanente, apaixonada, mútua e íntima, ao passo que entre a raça<br />

humana e a raça dos deu<strong>se</strong>s pagãos, que viviam sobretudo para si mesmos,<br />

as relações eram, por assim dizer, internacionais 3 , contratuais<br />

1) LACTÂNCIO, De mortibus per<strong>se</strong>cutorum (Morte dos per<strong>se</strong>guidores), XLVI, 3. Com<br />

este “deus supremo” que permanece indeterminado, Licínio evitava contrapor-<br />

-<strong>se</strong> ao deus <strong>cristão</strong>, e Lactâncio esquiva -<strong>se</strong> a mentir e a fazer de Licínio um<br />

<strong>cristão</strong>: todos, pagãos e <strong>cristão</strong>s, estavam de acordo sobre a existência de um<br />

deus supremo, no qual cada um podia reconhecer o <strong>se</strong>u deus preferido.<br />

2) LACTÂNCIO, Morte dos per<strong>se</strong>guidores, XLVIII, 6 (“édito” de Milão).<br />

3) Permito -me remeter para o meu Empire gréco -romain, Paris, Seuil, 2005, p.<br />

421 -428. Dois exemplos: à morte de um príncipe muito estimado, Germanicus,<br />

a plebe romana destruiu os templos e derrubou os altares, como entre nós<br />

manifestantes assolam uma embaixada estrangeira; no fim da Antiguidade, um<br />

passadista, o imperador Juliano, indignado por ter sofrido uma derrota militar,<br />

recusou -<strong>se</strong> doravante a sacrificar a Marte.<br />

13


14<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

e ocasionais; Apolo não <strong>se</strong> tinha antecipado em relação a Augusto que<br />

a ele <strong>se</strong> dirigira e não lhe havia dito que venceria sob o <strong>se</strong>u sinal.<br />

Nada de mais diferente do que a ligação dos pagãos com as<br />

suas divindades e as dos <strong>cristão</strong>s com o <strong>se</strong>u Deus: um pagão estava<br />

contente com os <strong>se</strong>us deu<strong>se</strong>s <strong>se</strong> obtives<strong>se</strong> socorro pelas suas preces e<br />

pelos <strong>se</strong>us votos, enquanto um <strong>cristão</strong> agia antes de modo a que o <strong>se</strong>u<br />

Deus estives<strong>se</strong> contente com ele. Augusto não era o <strong>se</strong>rvo de Apolo,<br />

tinha -<strong>se</strong> dirigido a ele, e os <strong>se</strong>us longínquos sucessores pagãos também<br />

não <strong>se</strong>rão os <strong>se</strong>rvos do Sol Invencível, <strong>se</strong>u protector ou sua imagem<br />

celeste; ao passo que, no decurso dos vinte e cinco anos <strong>se</strong>guintes,<br />

Constantino não deixará de repetir que ele é o <strong>se</strong>rvo de Cristo, que<br />

o tomou ao <strong>se</strong>u <strong>se</strong>rviço e lhe concede <strong>se</strong>mpre a vitória.<br />

Sim, eram bem as iniciais do nome de Cristo que ele vira em<br />

sonho; enquanto Licínio havia escutado “o deus supremo” de um<br />

monoteísmo anónimo e santo -e -<strong>se</strong>nha, a cujo respeito todos os espíritos<br />

esclarecidos da época podiam estar de acordo. Com a vitória<br />

de 312, o discurso “religioso” do poder sofrera, pois, uma mudança<br />

plena. No entanto, Constantino não pretendia, nunca pretenderá, e<br />

também não os <strong>se</strong>us sucessores, impor aos <strong>se</strong>us súbditos pela força a<br />

nova fé. O cristianismo era ainda menos, aos <strong>se</strong>us olhos, uma “ideologia”<br />

para inculcar nos povos por cálculo político (voltaremos in fi ne<br />

a esta explicação aparentemente profunda, que emerge, de forma<br />

espontânea, no espírito de muitos de entre nós).<br />

Dez anos mais tarde, em 324, a religião cristã tomava de uma<br />

as<strong>se</strong>ntada uma dimensão “mundial” e Constantino revestia a estatura<br />

histórica que <strong>se</strong>rá doravante a sua: acabava de esmagar no Oriente a<br />

Licínio, outro pretenso per<strong>se</strong>guidor, de restabelecer em <strong>se</strong>u proveito a<br />

unidade do Império romano, de reunir as suas duas metades sob o <strong>se</strong>u<br />

ceptro <strong>cristão</strong>. O cristianismo tinha doravante, por carreira, o imenso<br />

império que era o centro do <strong>mundo</strong> e que <strong>se</strong> considerava como co -extensivo<br />

à civilização. Acabava de nascer o que, durante longos séculos,<br />

<strong>se</strong> chamará o Império <strong>cristão</strong>, a Cristandade. Constantino apressou -<strong>se</strong><br />

a tranquilizar os <strong>se</strong>us novos súbditos e a prometer -lhes, invertendo os<br />

termos de 312, que os pagãos do Oriente <strong>se</strong>riam tratados em pé de<br />

igualdade com os <strong>cristão</strong>s: que eles permaneçam estupidamente pagãos,<br />

“que possuam, <strong>se</strong> o de<strong>se</strong>jarem, os <strong>se</strong>us templos de mentira 1 ”, que<br />

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56.


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

nunca <strong>se</strong>rão destruídos. O tempo avançara: em 312 a religião tolerada<br />

era o cristianismo, em 324 era o paganismo 1 .<br />

Desde o primeiro ano da sua vitória, em 312, a política religiosa<br />

do imperador tinha -<strong>se</strong> tornado visível e não mais mudaria;<br />

pormenorizá -la -emos ao longo deste livro. 1.º Na parte do Império<br />

de que <strong>se</strong> <strong>tornou</strong> <strong>se</strong>nhor e que libertou da per<strong>se</strong>guição, todas<br />

as grandes decisões, “literalmente todas 2 ”, que ele toma desde o<br />

Inverno de 312 -313 visam preparar o <strong>mundo</strong> romano para um futuro<br />

<strong>cristão</strong>. 2.º Mas, demasiado prudente, demasiado pragmático, para<br />

ir mais longe, Constantino <strong>se</strong>rá o soberano pessoalmente <strong>cristão</strong> de<br />

um império que integrou a Igreja, continuando oficialmente pagão;<br />

o imperador não per<strong>se</strong>guirá nem o culto pagão nem a larga maioria<br />

pagã; limitar -<strong>se</strong> -á a repetir nos <strong>se</strong>us documentos oficiais que o paganismo<br />

é uma superstição desprezível. 3.º Como o cristianismo era a<br />

convicção pessoal do soberano, instalará fortemente a Igreja como que<br />

por um imperial capricho e porque ele <strong>se</strong> chamava leão: um César<br />

não <strong>se</strong> apoiava tanto, como os <strong>nosso</strong>s reis, numa tradição dinástica<br />

e em “leis fundamentais do reino”, e é por isso que houve célebres<br />

“Césares loucos”. Em contrapartida, ele não imporá a sua religião a<br />

ninguém. 4.º Excepto num ponto: por <strong>se</strong>r pessoalmente <strong>cristão</strong>, não<br />

tolerará paganismo algum nos domínios que tocam à sua pessoa, como<br />

o culto dos imperadores; igualmente, por solidariedade com os <strong>se</strong>us<br />

correligionários, dispensará estes do dever de executar ritos pagãos<br />

a título das suas funções públicas. 5.º Apesar do <strong>se</strong>u profundo de<strong>se</strong>jo<br />

de ver os <strong>se</strong>us súbditos tornarem -<strong>se</strong> todos <strong>cristão</strong>s, não <strong>se</strong> prenderá à<br />

tarefa impossível de os converter. Não per<strong>se</strong>guirá os pagãos, não lhes<br />

tirará a palavra, não os desfavorecerá na sua carreira: <strong>se</strong> estes supersticiosos<br />

qui<strong>se</strong>rem condenar -<strong>se</strong>, são livres de o fazer, é lá com eles;<br />

os sucessores de Constantino também não os contrariarão e deixarão<br />

o cuidado da sua conversão à Igreja, que recorrerá mais à persuasão<br />

do que à per<strong>se</strong>guição. 6.º O mais urgente, aos <strong>se</strong>us olhos, não <strong>se</strong>ria<br />

converter os pagãos, mas abolir os nefastos sacrifícios de animais aos<br />

falsos deu<strong>se</strong>s, simples demónios; prometerá um dia fazê -lo, mas não<br />

<strong>se</strong> atreverá e deixará es<strong>se</strong> cuidado ao <strong>se</strong>u devoto filho e sucessor. 7.º<br />

Por outro lado, este benfeitor e paladino leigo da fé, de<strong>se</strong>mpenhará,<br />

perante os “<strong>se</strong>us irmãos, os bispos”, com modéstia, mas <strong>se</strong>m hesitação,<br />

1) A. ALFÖLDI, The Conversion of Constantine, op. cit., p. 88.<br />

2) Aderimos à te<strong>se</strong> de Klaus M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 48.<br />

15


16<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

a função inédita e inclassificável, autoproclamada, de uma espécie de<br />

presidente da Igreja 1 ; imiscuir -<strong>se</strong> -á nos assuntos eclesiásticos e não<br />

agirá contra os pagãos, mas contra os maus <strong>cristão</strong>s, <strong>se</strong>paratistas ou<br />

heréticos.<br />

UMA TOLERÂNCIA INSINUANTE<br />

Converter os pagãos? Vasto programa. Constantino reconhece<br />

que a sua resistência (epanastasis) é tal que renuncia a impor -lhes a Verdade<br />

e continuará tolerante, apesar dos <strong>se</strong>us an<strong>se</strong>ios; depois das suas<br />

duas grandes vitórias, em 312 e em 324, tem o cuidado de tranquilizar<br />

os pagãos das províncias que acabara de adquirir: “Que aqueles que <strong>se</strong><br />

enganam gozem da paz, que cada um con<strong>se</strong>rve o que a sua alma quer<br />

ter, que ninguém atormente ninguém 2 .” Manterá as promessas, o<br />

culto pagão só <strong>se</strong>rá abolido meio século depois da sua morte e apenas<br />

Justiniano, dois séculos mais tarde, começará a querer converter os<br />

últimos pagãos, tal como os Judeus.<br />

Tal foi o “pragmatismo de Constantino 3 ”, que teve uma grande<br />

vantagem. Não obrigando os pagãos à conversão, Constantino evitou<br />

virá -los contra si e contra o cristianismo (cujo futuro estava bem<br />

menos as<strong>se</strong>gurado do que <strong>se</strong> crê e que qua<strong>se</strong> sossobrou em 364, como<br />

<strong>se</strong> verá). Frente à elite partidista que era a <strong>se</strong>ita cristã, as massas pagãs<br />

puderam viver na incúria, indiferentes ao capricho do <strong>se</strong>u imperador;<br />

só uma pequena elite de letrados pagãos sofria.<br />

1) Ver, por exemplo, a carta de Constantino ao concílio de Arles em 314, em H.<br />

VON SODEN, Urkunden zur Geschichte des Donatismus, Kleine Texte, CXXII,<br />

Bona, 1913, n.º 18; ou em Volkmar KEIL, Quellensammlung zur Religionspolitik<br />

Konstantins des Gros<strong>se</strong>n, über<strong>se</strong>tzt und herausgegeben, Darmstadt, 1989, p. 78.<br />

2) Em EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 56, 1 e 60, 1. Pelo que H. A. DRAKE<br />

pôde afirmar que o desígnio de Constantino era “criar um con<strong>se</strong>nso duradoiro<br />

entre pagãos e <strong>cristão</strong>s num espaço público religiosamente neutro” (Constantine<br />

and the Bishops: the Politics of Intolerance, Baltimore, Johns Hopkins University<br />

Press, 2000, p. XV e 401 -409). Talvez, mas o desprezo oficialmente alardeado<br />

pelo imperador em face da tolice do paganismo concilia -<strong>se</strong> mal com esta visão<br />

demasiado generosa.<br />

3) Segundo a expressão de Pierre CHUVIN, Chronique des derniers païens: la disparition<br />

du paganisme dans l’Empire romain, du règne de Constantin à celui de Justinien,<br />

Paris, Les Belles Lettres/Fayard, 1990, p. 37 -40.


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

Constantino, dizíamos nós, deixou em paz os pagãos e os <strong>se</strong>us<br />

cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação do Oriente e<br />

do Ocidente, sob o <strong>se</strong>u ceptro, o <strong>tornou</strong> todo -poderoso. Neste ano,<br />

dirige proclamações aos <strong>se</strong>us novos súbditos orientais e, em <strong>se</strong>guida,<br />

a todos os habitantes do <strong>se</strong>u império 1 . Escritas num estilo mais<br />

pessoal do que oficial, saem da pena de um <strong>cristão</strong> convencido que<br />

exprime em palavras a ignomínia do paganismo, que proclama que o<br />

cristianismo é a única boa religião, que argumenta neste <strong>se</strong>ntido (as<br />

vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não<br />

toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não <strong>se</strong>rá,<br />

por <strong>se</strong>u turno, um per<strong>se</strong>guidor, o Império viverá em paz. Melhor<br />

ainda, proíbe formalmente a quem quer que <strong>se</strong>ja de <strong>se</strong> dar mal com<br />

o <strong>se</strong>u próximo por motivos religiosos: a tranquilidade pública deve<br />

reinar – o que visava, <strong>se</strong>m dúvida, <strong>cristão</strong>s demasiado zelosos, prontos<br />

a arremeter contra as cerimónias pagãs e os templos.<br />

O papel do imperador romano era de uma ambiguidade de<br />

enlouquecer (três séculos antes de Constantino, arrastou para a paranóia<br />

o primeiro sucessor, Tibério, do fundador do regime imperial).<br />

Um César devia ter quatro linguagens: a de um chefe cujo poder<br />

civil é de tipo militar e que dá ordens; a de um <strong>se</strong>r superior (mas<br />

<strong>se</strong>m <strong>se</strong>r um deus vivo) em relação ao qual aumenta o culto da personalidade;<br />

a de um membro de um grande con<strong>se</strong>lho do Império, o<br />

Senado, onde ele é apenas o primeiro entre os <strong>se</strong>us pares, que nem<br />

por isso deixam de recear pela sua cabeça; a do primeiro magistrado<br />

do Império, que comunica com os <strong>se</strong>us concidadãos e diante deles <strong>se</strong><br />

explica. Nas suas ordenanças ou proclamações de 324, Constantino<br />

escolheu esta linguagem misturando -a a uma quinta, a de um príncipe<br />

<strong>cristão</strong> convicto, propagandista da sua fé e que vê no paganismo uma<br />

“superstição desvantajosa”, enquanto o cristianismo é a “santíssima<br />

Lei” divina 2 .<br />

Manteve igualmente as suas promessas de tolerância religiosa e de<br />

paz civil, que nenhuma per<strong>se</strong>guição ensanguentará; tão -só a perturbarão<br />

as querelas entre <strong>cristão</strong>s. Não força ninguém a converter -<strong>se</strong> 3 ,<br />

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, II, 24 -42 e 48 -60.<br />

2) Código Teod., XVI, 2, 5: aliena superstitio, sanctissima lex (em 323).<br />

3) R. MACMULLEN, Christianizing the Roman Empire, op. cit., p. 86 -101.<br />

17


18<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

nomeia pagãos para os mais altos cargos das funções do Estado 1 ,<br />

não faz nenhuma lei contra os cultos pagãos (mesmo depois dos <strong>se</strong>us<br />

triunfos de 324, embora por vezes tal <strong>se</strong> afirme) 2 e deixa o Senado<br />

de Roma continuar a atribuir créditos aos sacerdotes oficiais e aos<br />

cultos públicos do Estado romano, que permanecem como antes e<br />

perdurarão até cerca do final do século.<br />

Será a palavra tolerância a adequada? Com risco de <strong>se</strong> <strong>se</strong>r inutilmente<br />

didáctico, distingamos. Poderia <strong>se</strong>r -<strong>se</strong> tolerante por agnosticismo,<br />

ou ainda por <strong>se</strong> pensar que vários caminhos levam à pouco<br />

acessível Verdade 3 . Podemos tornar -nos tolerantes por compromisso,<br />

porque <strong>se</strong> está cansado das guerras de Religião ou porque a<br />

per<strong>se</strong>guição falhou. Pode também supor -<strong>se</strong>, como os France<strong>se</strong>s, que<br />

o Estado não tem de conhecer a eventual religião dos cidadãos, que<br />

é um assunto privado <strong>se</strong>u, ou, como os Americanos, que os Estados<br />

não devem reconhecer, proibir ou favorecer nenhuma confissão.<br />

Constantino, porém, acreditava na única Verdade, <strong>se</strong>ntia -<strong>se</strong> no direito<br />

e no dever de a impor 4 , mas, <strong>se</strong>m <strong>se</strong> arriscar a passar aos actos,<br />

deixava em paz aqueles que <strong>se</strong> enganavam, no interes<strong>se</strong>, escrevia<br />

ele, da tranquilidade pública; por outras palavras, porque embateria<br />

numa forte oposição. Por isso, o <strong>se</strong>u império <strong>se</strong>rá, ao mesmo tempo,<br />

<strong>cristão</strong> e pagão.<br />

Mas Constantino afirma, aliás, que existe a <strong>se</strong>u favor um domínio<br />

re<strong>se</strong>rvado: como o cristianismo é a sua religião pessoal (e, em<br />

<strong>se</strong>guida, tornar -<strong>se</strong> -á praticamente, sob os <strong>se</strong>us sucessores <strong>cristão</strong>s, a<br />

do trono), não permite que a sua própria pessoa <strong>se</strong>ja maculada pelo<br />

culto pagão 5 . Vem a Roma em 315 para celebrar o <strong>se</strong>u décimo ano<br />

1) Ver uma lista de nomes em A. ALFÖLDI, The Conversion of Constantine, op. cit.,<br />

p. 119.<br />

2) Entre 324 e a sua morte em 337, Constantino não promulgou nenhuma lei<br />

antipagã (K. M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 124).<br />

3) Só no fim do século é que o pagão Símaco alegará frente aos <strong>cristão</strong>s: “Não é<br />

possível, só por um caminho, chegar a tão grande mistério” (Relatio, III, 10).<br />

4) Porque o Senhor Jesus confiou aos <strong>se</strong>us discípulos a missão de converter toda<br />

a terra.<br />

5) Recordemos o texto muito discutido de Zósimo, II, 29, 5, onde <strong>se</strong> depara com<br />

a mesma conduta dupla: permitir aos pagãos realizar as suas cerimónias, não <strong>se</strong><br />

manchar a si mesmo; numa data muito discutida, Constantino “participou na<br />

festividade (heortê)”, mas “manteve -<strong>se</strong> apartado do santo sacrifício (hierá hagisteia)”.<br />

Ver a erudita nota de Fr. PASCHOUD na sua edição, vol. I, p. 220 -224,


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

de reinado. Estas festas decenais eram celebrações patrióticas onde,<br />

após dez anos do mais feliz dos reinos, <strong>se</strong> cumpriam, mediante sacrifícios,<br />

os “contratos” de votos concluídos dez anos antes pela salvação<br />

do soberano e <strong>se</strong> renovava, por meio de outros sacrifícios, a garantia<br />

para os dez felizes anos vindouros; Constantino deixou o povo alegrar-<br />

-<strong>se</strong> em grandes festas, mas proibiu todo o sacrifício de animais 1 ,<br />

desinfectando assim (como diz Alföldi) os ritos pagãos.<br />

Por brevidade, atenhamo -nos a um documento célebre onde <strong>se</strong><br />

encontra o mesmo paganismo desinfectado e o mesmo horror sagrado<br />

pelo sangue dos sacrifícios. A cidade de Spello, na Úmbria, pediu a<br />

Constantino autorização para ali instituir uma grande festa anual,<br />

cujo pretexto obrigatório <strong>se</strong>ria o culto dos imperadores; chegava até a<br />

propor -<strong>se</strong> erigir um templo aos imperadores mortos e divinizados da<br />

dinastia reinante (incluindo o próprio pai de Constantino) 2 . Como<br />

toda a festa de culto imperial, comportava combates de gladiadores,<br />

prazer supremo, raro, custoso e puramente <strong>se</strong>cular.<br />

Constantino autoriza a festa, os gladiadores (que ele hesitou<br />

<strong>se</strong>mpre em proibir, tanto os <strong>se</strong>us combates eram populares), o templo<br />

dinástico, o sacerdote imperial, mas proíbe a este último infligir à sua<br />

dinastia a mácula dos sacrifícios: <strong>se</strong>rá culto imperial, <strong>se</strong>m o sangue das<br />

vítimas. Já que o sacerdote imperial, pela sua função, depende do próprio<br />

imperador, Constantino <strong>se</strong>rve -<strong>se</strong> deste laço pessoal para proibir<br />

um culto pagão. Só proíbe o paganismo e favorece o cristianismo na<br />

e a discussão de K. M. GIRARDET, Die konstantinische Wende, op. cit., p. 61, n.<br />

77 (e todo o contexto deste sábio).<br />

1) EUSÉBIO, Vida de Constantino, I, 48, cuja linguagem rebuscada não é clara,<br />

decerto propositadamente. Será preciso supor que Constantino fez celebrar<br />

os <strong>se</strong>us dez anos de reinado com uma eucaristia cristã, como parecem pensar<br />

Cameron e Hall no <strong>se</strong>u comentário da Vida de Constantino? Mas Eusébio <strong>se</strong>ria<br />

menos arrevesado em dizê -lo. Suponho antes que Constantino autorizou ritos<br />

pagãos, mas reduzidos a grinaldas, libações e incenso, <strong>se</strong>m imolação de animais<br />

(“<strong>se</strong>m fogo nem fumo”, escreve Eusébio). Ver -<strong>se</strong> -á, com efeito, que o sangue<br />

do sacrifício é que era, para um <strong>cristão</strong>, a abominação da desolação. Quanto<br />

às festas dos vinte e trinta anos de reino, <strong>se</strong>rão celebradas respectivamente em<br />

Niceia e até em Jerusalém (onde então <strong>se</strong> encontrava Constantino), decerto <strong>se</strong>m<br />

o menor rito pagão. Em contrapartida, a festa dos dez anos de reino oferecera<br />

menos facilidades, porque tinha sido celebrada na própria Roma, que era então<br />

“o Vaticano do paganismo”.<br />

2) Constâncio Cloro tem o título de divus em certas moedas póstumas.<br />

19


20<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

esfera (ampla, é verdade) que rodeia a sua pessoa; do mesmo modo,<br />

recorde -<strong>se</strong>, fez gravar o crisma nos escudos dos <strong>se</strong>us soldados, porque<br />

o exército é o instrumento do imperador, <strong>se</strong>u chefe directo.<br />

Por solidariedade com os <strong>se</strong>us correligionários, teve o cuidado<br />

de os poupar, como a si mesmo, ao contacto impuro do sangue das<br />

vítimas sacrificiais: os magistrados <strong>cristão</strong>s são dispensados de cumprir,<br />

como o exigiam as suas funções, o rito pagão das lustrações<br />

que terminavam num sacrifício; a lei ameaça com bastonadas ou com<br />

multa quem quer que forças<strong>se</strong> os con<strong>se</strong>lheiros municipais <strong>cristão</strong>s a<br />

cumprir esta “superstição 1 ”. Duplo e até triplo benefício: os <strong>cristão</strong>s<br />

ricos ficavam assim privados deste pretexto, para recusar os custosos<br />

encargos municipais 2 , e a <strong>cristão</strong>s pouco escrupulosos sugeria -<strong>se</strong> ter<br />

uma conduta mais conforme à sua fé.<br />

Constantino poupa assim aos <strong>cristão</strong>s, fos<strong>se</strong>m eles criminosos,<br />

a obrigação legal de pecar. Alguns culpados eram condenados a combater<br />

como gladiadores forçados. Ora, a Lei divina diz “não matarás”<br />

e, desde <strong>se</strong>mpre, os gladiadores não eram admitidos na Igreja. Constantino<br />

decidiu que, no futuro, as condenações aos combates da arena<br />

<strong>se</strong>riam substituídas, para os <strong>cristão</strong>s, pelo trabalho forçado nas minas<br />

e pedreiras, “de modo que os condenados experimentem o castigo dos<br />

<strong>se</strong>us crimes <strong>se</strong>m derramamento de sangue”; os sucessores do grande<br />

imperador ob<strong>se</strong>rvarão a mesma lei 3 .<br />

Convém precisar que os condenados à morte, aos trabalhos forçados<br />

ou à arena <strong>se</strong> tornavam propriedade do Fisco imperial 4 e, neste<br />

<strong>se</strong>ntido, do próprio imperador; Constantino respeita, pois, o <strong>se</strong>u<br />

princípio de impor a sua religião só no interior da sua esfera pessoal.<br />

Em virtude do mesmo princípio, o <strong>se</strong>u filho Constâncio II proibirá aos<br />

altos magistrados pagãos, que continuam a dar a Roma espectáculos<br />

1) Código Teod., XVI, 2, 5, em 323.<br />

2) Ch. PIETRI, “Constantin en 324”, in Cri<strong>se</strong>s et redres<strong>se</strong>ments dans les provinces<br />

européennes de l’Empire, Actes du colloque de Strasbourg édités par E. Frézouls,<br />

Estrasburgo, AECR, 1983, p. 75.<br />

3) São as leis, Código Teod., IX, 40, 8 e 11 (em 365 e 367).<br />

4) O Fisco pertencia ao imperador. As minas e as pedreiras eram também pertença<br />

do imperador e dependiam do Fisco; os condenados eram nelas escravos do<br />

Fisco, uma espécie de Gulag, que possuía campos de trabalho e não era apenas<br />

uma administração dos impostos.


O SALVADOR DA HUMANIDADE: CONSTANTINO<br />

de arena, utilizar como gladiadores soldados (o exército é coisa do<br />

príncipe) ou oficiais do Palácio imperial 1 .<br />

Em suma, Constantino respeitou, mais ou menos, o <strong>se</strong>u princípio<br />

pragmático de tolerância. No entanto, aconteceu -lhe, em 314,<br />

“esquecer -<strong>se</strong>” de celebrar 2 os muito solenes jogos Seculares que, uma<br />

vez em todos os cento e dez anos, festejavam, durante vários dias e<br />

noites de cerimónias pagãs e de sacrifícios, a data lendária da fundação<br />

de Roma. Aconteceu -lhe igualmente tomar algumas medidas muito<br />

astuciosas, tais como instituir o repouso dominical, o que pormenorizaremos<br />

mais à frente; ver -<strong>se</strong> -á também que uma lei onde Constantino<br />

impunha a abolição total dos sacrifícios pagãos não foi aplicada.<br />

O culto pagão só começará a res<strong>se</strong>ntir -<strong>se</strong> com o <strong>se</strong>u sucessor.<br />

Constantino violou em parte o equilíbrio entre as duas religiões,<br />

não por atacar o paganismo, mas por favorecer os <strong>cristão</strong>s: mostrava<br />

a todos os <strong>se</strong>us súbditos que o <strong>se</strong>u soberano era <strong>cristão</strong>, apodava o<br />

paganismo de baixa superstição nos <strong>se</strong>us textos oficiais e re<strong>se</strong>rvava<br />

as tradicionais liberalidades imperiais para a religião cristã (mandou<br />

construir muitas igrejas e nenhum templo). Embora o paganismo<br />

continue a <strong>se</strong>r uma religio licita e Constantino <strong>se</strong>ja, como todo o<br />

imperador, o Sumo Pontífice do paganismo, conduz -<strong>se</strong> em todos os<br />

domínios como protector dos <strong>cristão</strong>s, e somente deles.<br />

Graças a ele, a lenta mas completa cristianização do Império<br />

pode começar; a Igreja, de “<strong>se</strong>ita” proibida que fora, era agora mais<br />

do que uma <strong>se</strong>ita lícita: estava instalada no Estado e acabará, um dia,<br />

por suplantar o paganismo como religião costumeira. Durante os três<br />

primeiros séculos, o cristianismo permanecera uma <strong>se</strong>ita, no <strong>se</strong>ntido<br />

nada pejorativo que os sociólogos alemães dão a esta palavra: um<br />

grupo, onde indivíduos decidem entrar, um conjunto de crenças a que<br />

alguns <strong>se</strong> convertem, por oposição a uma “igreja”, a um conjunto de<br />

crenças nas quais <strong>se</strong> nasce e que são as de todos. “Tornamo -nos <strong>cristão</strong>s,<br />

não <strong>se</strong> nasce <strong>cristão</strong>”, escrevia Tertuliano 3 em 197. Esta lenta<br />

passagem da <strong>se</strong>ita ao costume <strong>se</strong>rá a obra do enquadramento clerical<br />

da população, tornado possível porque a Igreja <strong>se</strong>rá apoiada e favorecida<br />

fiscalmente pelos imperadores, e também porque o cristianismo<br />

1) Código Teod., XV, 12, 2.<br />

2) ZÓSIMO, II, 7.<br />

3) TERTULIANO, Apologético, XVIII, 4.<br />

21


22<br />

QUANDO O NOSSO MUNDO SE TORNOU CRISTÃO<br />

era a religião do próprio governo, que desprezava publicamente o<br />

paganismo.<br />

Um <strong>cristão</strong> poderá assim, cerca do ano 400, ter um <strong>se</strong>ntimento<br />

de triunfo iminente: “A autoridade da Fé expande -<strong>se</strong> no <strong>mundo</strong><br />

inteiro 1 .” Mas onde é que a nova religião ia buscar o <strong>se</strong>u poder sobre<br />

os espíritos? A sua superioridade espiritual sobre o paganismo era<br />

irrecusável, como <strong>se</strong> verá, mas só uma elite religiosa podia <strong>se</strong>r <strong>se</strong>nsível<br />

a isso. E porque é que o Imperador em pessoa <strong>se</strong> tinha convertido?<br />

<strong>Quando</strong> Constantino veio ao <strong>mundo</strong>, o cristianismo tinha -<strong>se</strong><br />

tornado “a questão quente do século 2 ”; quem possuís<strong>se</strong> alguma<br />

<strong>se</strong>nsibilidade religiosa ou filosófica estava preocupado com isso e<br />

vários letrados já <strong>se</strong> haviam convertido. É preciso pois, com temor<br />

e tremor, tentar esboçar um quadro do cristianismo ao longo dos<br />

anos 200 -300, para enumerar os motivos muito diversos que podiam<br />

tornar tentadora uma conversão. O motivo da conversão de Constantino<br />

é simples, diz -me Hélène Monsacré: aquele que queria <strong>se</strong>r um<br />

grande imperador carecia de um deus grande. Um Deus gigantesco<br />

e amante que <strong>se</strong> apaixonava pela humanidade despertava <strong>se</strong>ntimentos<br />

mais fortes do que a grei dos deu<strong>se</strong>s do paganismo, que viviam só<br />

para si; este Deus de<strong>se</strong>nrolava um plano não menos gigantesco para<br />

a salvação eterna da humanidade; imiscuía -<strong>se</strong> na vida dos <strong>se</strong>us fiéis,<br />

exigindo deles uma moral estrita.<br />

1) SANTO AGOSTINHO, Confi ssões, VI, XI, 19.<br />

2) Como escrevia em 1887 V. SCHULTZE, citado por A. ALFÖLDI, The Conversion<br />

of Constantine, op. cit., p. 10.


Índice<br />

I. O salvador da humanidade: Constantino ....................... 9<br />

II. Uma obra -prima: o cristianismo ................................. 23<br />

III. Outra obra -prima: a Igreja ........................................ 41<br />

IV. O sonho da Ponte Milvius,<br />

a fé de Constantino, a sua conversão ............................ 55<br />

V. Pequenos e grandes motivos da conversão de Constantino ... 69<br />

VI. Constantino “presidente” da Igreja ............................... 83<br />

VII. Um século duplo: o Império pagão e <strong>cristão</strong> .................. 93<br />

VIII. O cristianismo vacila, em <strong>se</strong>guida triunfa ...................... 107<br />

IX. Uma religião de Estado e mesclada. A sorte dos Judeus .... 115<br />

X. Existe a ideologia? ................................................... 129<br />

XI. Tem a Europa raízes cristãs? ...................................... 143<br />

Apêndice .............................................................. 157<br />

Notas complementares ............................................. 181

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