FILOSOFIAS DA AFIRMAÇÃO E DA NEGAÇÃO - iPhi
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120 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS<br />
tica foi tão penumbrosa e tão mesquinha, nunca valores tão<br />
baixos foram alçados a alturas tão elevadas. Também nunca<br />
se viram tombos mais descomunais, heróis tão rápidos, tão transeuntes,<br />
tão precários e tão caducos. Nunca se assistiu também<br />
a tanto cansaço pelo cansaço, tanta náusea pela náusea,<br />
tanto desprezo pelo desprezo. Deixai que caia até o fundo o<br />
que tem de cair. Nunca esqueço aquela bela frase de Nietzsche<br />
que dizia "que venha o vento quente do outono para que caiam<br />
mais depressa das árvores os frutos apodrecidos". Cito-o de<br />
memória, e por isso, não tão bem como êle dizia. Mas, vale<br />
para o momento que passa. O vento do outono já ameaça assoprar.<br />
Ai dos frutos apodrecidos!...<br />
Depois daquela reunião que relatamos, Vítor voltou, no<br />
outro dia, e, dirigindo-se a Pitágoras, sem manifestar qualquer<br />
ressentimento da véspera, disse-lhe estas palavras:<br />
— Pitágoras, você sabe que há muitos pontos de discordância<br />
entre nós. Mas não quero que me julgue obstinado. E<br />
também sei que você não é obstinado. Diga-me uma coisa:<br />
você pode negar que a ascendência do ateísmo é um facto observável<br />
em todo o mundo, e que o ateísmo cresce constantemente ?<br />
— Não nego — respondeu Pitágoras visivelmente preocupado.<br />
— Você mesmo reconhece que 90% dos professores das<br />
escolas francesas são ateus. E poderia dizer que em muitos<br />
outros países essa porcentagem não é muito menor. Você sabe<br />
que nos Estados Unidos, na Rússia, dá-se o mesmo, e, a não<br />
ser nos países em que a Igreja Católica tem muito poder, o<br />
ensino laico é quase totalmente dominado por ateus.<br />
— Sei disso.<br />
— E também não pode negar que o ateísmo não só se<br />
manifesta nas classes intelectuais. Êle se alastra de modo incontrolável<br />
no meio das camadas mais humildes da sociedade.<br />
Por que isso se dá? Por que tantos cientistas se afastam das<br />
ideias religiosas? Por que os templos vivem vazios e os cinemas<br />
cheios? Você nega tudo isso? Não creio que você queira<br />
negar uma evidência.<br />
<strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 121<br />
— Não nego evidências, e poderia até dizer mais: realmente<br />
essa tendência é por ora insopitável e, talvez, ainda se<br />
torne mais ampla. O que eu disse foi que o homem que se<br />
cansou de crer, também está cansado de não crer. Você sabe<br />
que eu sempre disse palavras como essas. Mas, note um ponto<br />
importante, Vítor: a descrença é sempre assinalável em certos<br />
períodos históricos, à semelhança do nosso. Se pusermos os<br />
olhos sobre os homens do campo, os agricultores, notaremos<br />
que as crenças religiosas são mais vivas neles do que nos homens<br />
das metrópoles babélicas. Sempre foi assim. As religiões,<br />
nos grandes centros citadinos e industriais, tendem a<br />
tornar-se mais um costume do que uma vivência profunda. No<br />
entanto, o inverso é o que se observa com os homens dos campos.<br />
Você sabe bem disso. O agricultor ainda convive com<br />
poderes que escapam à lógica e ao raciocínio. Poderes incontroláveis<br />
e imprevisíveis cercam a sua vida. E' natural que<br />
esse homem tenha uma esquemática muito mais afeita e acessível<br />
a crer no sobrenatural do que o homem da cidade, mais<br />
mecânico, que dispõe das causas per se e as faz contribuir com<br />
outras para alcançar efeitos previamente estabelecidos. Seu<br />
mundo revela uma legalidade de causação tal que as explicações<br />
meramente naturais podem lhe satisfazer. O mesmo já<br />
não se dá com o homem do campo, em que a imprevisão é maior,<br />
e os imprevistos, consequentemente, são mais comuns. E', portanto,<br />
compreensível que haja nas metrópoles maior descrença<br />
que nos homens que vivem no amanho da terra, e que se surpreendem<br />
ante os grandes mistérios da natureza.<br />
Todas as épocas de civilização metropolitana foram descrentes,<br />
e os deuses perdem seu significado profundo. As religiões<br />
passam a ser, apenas, exteriorizações, pseudo morfoses,<br />
que não possuem mais o conteúdo vivencial que o homem do<br />
campo lhes emprestou. Mas que tem tudo isso, que pode ser<br />
tão facilmente compreendido, como o fizemos agora, com a<br />
justificação filosófica de uma ou outra atitude? A meu ver,<br />
não dou tanto valor à religião que se funda apenas no que há<br />
de mais primário no homem, como também não dou valor à<br />
descrença que se funda numa apreciação precipitada e realmente<br />
inculta dos mesmos factos. Se aquela religião não é a que<br />
desejo e gostaria de pregar, essa descrença também me é ódio-