DIÁLOGO SOBRE A VER<strong>DA</strong>DE Foi Ricardo quem, no entanto, desejou apresentar algumas objecções, e começou assim: — Uma adequação parcial seria a mesma coisa que uma adequação inadequada, o que seria contraditório. E como você afirma que há uma adequação, que é inadequada, a contradicção surge de modo evidente no que diz. Pitágoras sorriu. Revelava pleno domínio. Respondeu: — Você teria razão, Ricardo, se a adequação fosse física. Mas lembre-se de que a adequação de que falo é a conformidade de um termo formal. O objecto é formal e não material. — Para quem aceita a existência do espírito e afirma que a alma humana é espiritual não pode deixar de reconhecer que não há nenhuma adequação entre o espiritual e o material. Ora, sendo o material objecto de um conhecimento e o acto deste espiritual, qual a adequação que pode haver?, perguntou Reinaldo. — A mesma resposta, caro Reinaldo. Não se trata de adequação física, pois bem o mostrei. Se fosse física, tanto a sua objeção como a de Ricardo teriam procedência. A adequação dá-se intencionalmente e analogicamente. E' isso que não devem esquecer. A assimilação, que se processa por nossa mente, não é física. Ao conhecermos um objecto do mundo exterior, há uma acomodação de toda a nossa esquemática sensitiva ao facto, que é assimilado por semelhança que tenha com os esquemas previamente dispostos. Quando realizamos uma assimilação biológica, incorporamos os bens do mundo exterior, que são assemelhados aos que compõem o nosso corpo e, nele, se tornam sangue, carne, ossos. Na assimilação psicológica,
gg MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS não há essa assemelhação, nenhum processo de modificação do bem exterior, que se irá assemelhando ao que é do corpo. Não há incorporação física. Apenas nossos esquemas assimilam do ser exterior o que é semelhante aos mesmos esquemas. As primeiras assimilações são naturalmente psíquicas. E' o que os gregos chamavam o phántasma da coisa, e a representação interior, por assemelhação, que se dá no Imago de nós mesmos, realiza uma imagem com representação, uma imagem com a repetição do que é extrínseco da coisa, da sua figura, das suas cores; em suma, de tudo quanto sensorialmente somos capazes de captar. Se me permitem, para melhor esclarecimento, recordar uma passagem importante da filosofia grega, creio que ela servirá otimamente para esclarecer este ponto, com bastante segurança. Platão dava como uma das definições do homem o ser um bípede implume. Um adversário, para ridicularizá- -lo, entrou um dia numa das aulas de Platão, e dirigindo-se aos discípulos, ao mesmo tempo que punha sobre um banco um galo depenado, disse: "eis o homem de Platão". Mas se o galo é um bípede, por ser depenado não é implume, mas desplumado . Não é da natureza do galo ser implume, mas o é do homem, que, como bípede, é o que nos apresenta como implume. A piada do filósofo piadista grego, (e já os havia nessa época), só vale como tal, e só impressiona, filosoficamente, a tolos da sua estirpe. Mas a definição de Platão era uma definição supinamente empirista, pois empiricamente se nota que é o homem um bípede, que se distingue de todos os outros por ser implume. Temos, aqui, uma operação que a mente realiza, fundada na experiência, na empíria do nosso conhecimento. E essa era uma definição do idealista Platão, que na verdade não o era. No entanto, Aristóteles, que é um empirista-racionalista, dava do homem outra definição: tomava-o pela generalidade animal, o que é revelado através da empíria, porque empiricamente o homem se revela, em todo o seu físico, em todo o phántasma que apresenta, as características de um animal, mas a diferença específica ia encontrá-la, não no que se revela através dos sentidos, como o implume de Platão, mas pelo que é captado pela mente, o ser racional, a rationalitas dos escolásticos, o entendimento, a intelectualidade, que faltava nos animais, enquanto o ser implume não falta aos animais, pois todos, parece, <strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 89 mamíferos são implumes. Na primeira definição, temos a captação dos aspectos predominantemente sensíveis do homem; na segunda, temos já o que ultrapassa os sentidos e exige uma operação mental para achá-lo, que não é mais uma operação dos sentidos, mas da inteligência. — Há, então, duas assimilações da mente humana: a do phántasma e, posteriormente, a da intelectualidade que classifica. E' isso, Pitágoras?, perguntou Paulsen. — Em parte, é isso mesmo. E podemos permanecer apenas nessas duas operações, porque elas nos explicam bem o funcionamento da nossa mente, e poderão servir de base para justificar a validez do conhecimento humano quando realmente é válido; ou, seja, permitir que alcancemos ao kriterion, a pedra de toque, capaz de avaliar se são ou não verdadeiros os nossos juízos e os nossos raciocínios. Os sentidos recebem o estímulo exterior, mas recebem sempre proporcionadamente à esquemática que possuem. Assim, os ouvidos ouvem na gama das vibrações moleculares do ar, dentro da faixa que vai de um mínimo de 16 vibrações a 32 mil no máximo, e os olhos vêem na gama do que chamamos a luz, de 400 trilhões a 800 trilhões de vibrações electrónicas, se não me engano. As imagens são reproduções do que oferecem os factos do mundo exterior dentro dessas gamas, e algo semelhante se dá com outros sentidos. Deste modo, a esquemática dos nossos sentidos limita o conhecimento sensível das coisas, pois só as conhece dentro dos limites dessa gama. Mas esse conhecimento pode ser verdadeiro dentro dessa gama. O que se nos escapa aos sentidos não nega validez ao que sentimos. Só que, por sabermos, depois, que há vibrações, para as quais não possuímos órgãos, sabemos que o conhecimento sensível das coisas, que temos, não esgota a possibilidade cognoscitiva sensível da coisa. Há algo alheio às nossas possibilidades, mas possível de ser captado por seres que disponham de outras gamas sensíveis, como é de presumir que se dê com outros animais, insetos, etc. Por acaso, é falso o conhecimento sensível que temos das coisas pelo simples facto de não conhecermos, sensivelmente, tudo quanto é cognoscível delas?