DIÁLOGO SOBRE A FENOMENOLOGIA No outro dia, à hora marcada, todos os que anteriormente haviam tomado parte na conversação estavam presentes. Pitágoras fora um dos primeiros a chegar e falava sobre diversos assuntos. Quando chegou Reinaldo, que fora o último, este começou logo dizendo estas palavras: — Espero que não tenham começado a tratar do assunto que ficou pendente. — Esperávamos apenas a sua chegada, disse-lhe Artur. — Então, aproveitemos o tempo, já que estão todos. Pitágoras que comece. Se não me engano, prometeu-nos hoje tratar da fenomenologia, sobre a qual Paulsen tanto se interessa. — Realmente, foi o prometido. Não serei muito longo, pois julgo que essa posição, do ângulo gnoseológico, é bem fácil de ser tratada. Vamos, então, começar. Todos sabem que a palavra fenómeno significa em grego o que aparece, o que é manifesto. Na linguagem clássica, significa o que surge na experiência objectiva. No entanto, também entre os antigos, em oposição a Aristóteles, esta palavra tomava, sobretudo entre os cépticos, o sentido do que aparece de modo meramente subjectivo. Na filosofia moderna, o termo fenomenologia, que seria a ciência dos fenómenos, toma diversos sentidos. Em Kant, por exemplo, significa a parte da metafísica da natureza que trata do que pode ser objecto da experiência. Para Hegel, significa a parte em que o espírito, partindo das experiências sensíveis, consegue alcançar a plena consciência de si mesmo. Mas o conceito mais usado modernamente é o de Husserl, que
80 MÁRIO FERREIRA DOS SALTOS segue o de Hamilton, para o qual a fenomenologia é a parte da psicologia empírica, que considera os factos psíquicos como contingentes e dados empiricamente. Husserl quer partir de baixo e não de cima, quer partir das próprias coisas, dos dados imediatos da consciência. Para êle, há dados imediatos indubitáveis, mas suspende o julgamento, e êle aproveita o termo grego epohhê, que significa suspensão, quando se trata do ser real ou, seja, das essências universais. Heidegger emprega a fenomenologia num sentido metódico. O fenómeno não é o que subjectivamente aparece, mas a realidade manifestada da coisa. Para Husserl, a fenomenologia é a doutrina que afirma que o intelecto humano intui, imediata e absolutamente, uma certeza sobre a essência das coisas, e deseja, fundado nessas essências, iniciar sobre elas toda e qualquer ciência. A fenomenologia, desse modo, é pré-teorética, antecede a toda experiência empírica. Ela não pretende explicar o conhecimento, mas torná-lo claro ou, pelo menos, tornar clara a ideia da cognição. Afirma essa doutrina, deste modo, que podemos alcançar a essência das coisas em si, afirmando, portanto, uma transcendência da cognição puramente sensitiva, como querem afirmar os sensistas e empiristas. Afirma que o objecto do conhecimento é, de certo modo, independente da própria cognição, e que a mente humana é capaz de conhecer objectivamente as coisas. Neste ponto, opõe-se aos subjectivistas e cépticos. Estes aspectos são positivos. Para ela, as essências universais não podem estar, enquanto tais, nos seres singulares, e, neste caso, a sua posição é semelhante à platónica. Peca ao afirmar que temos uma intuição cognoscitiva das essências, o que é afirmar um conhecimento imediato de tais essências, o que é sumamente discutível. Afirma uma certa infalibilidade da intuição eidética, da intuição das essências, o que tem levado alguns fenomenólogos a cair nos malefícios do anti-intelectualismo. Na verdade, nota-se na obra de Husserl, que êle jamais compreendeu bem a teoria da abstracção de Aristóteles. Salvante os defeitos que a fenomenologia tem oferecido, é ela, contudo, positiva naqueles aspectos. E eu gostarei muito de poder analisar tais aspectos, se me permitirem que faça agora a demonstração da minha posição; ou seja, do fundamento que dou à minha posição gnoseológica. <strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 81 De antemão, quero dizer que ela não é original. Sei que não satisfarei assim aos que, movidos pelo espírito mercantilista de nossa época, tanto gostam dos novos produtos, que nada mais são que velhas fórmulas com novos rótulos e novas embalagens, e precedidos da fanfarra de uma propaganda desenfreada que os torna aparentemente inéditos, inauditos, imprevisíveis. Perdoem-me se, apesar de trabalhar em propaganda comercial, não seja aqui um propagandista, e não use nenhum dos métodos que a propaganda ensina para se tornar mais interessante um produto. De antemão afirmo que a minha posição é uma velha posição que já muitos assumiram, e muitos ainda' assumem. Mas é uma posição que se justifica, e que tem a vantagem de não cair nas dificuldades insolúveis das outras, oferecendo uma solução mais clara e justa dos factos, demonstrada afinal pelos próprios factos. Quando tiver ocasião de fazer a defesa da minha posição, não deixarei de, num ponto ou noutro, criticá-la, ou aceitar objecções. Eu mesmo mostrarei os pontos que me parecem fracos, e ficarei imensamente satisfeito se me objectarem quanto puderem, pois só assim poderei desenvolver melhor as minhas demonstrações. — Pitágoras, é isso o que esperamos agora de você. Você já examinou as ideias dos outros, e concordo que você o fêz com bastante brilho. Mostrou o defeito das doutrinas alheias. Agora chegou a hora de mostrar a sua. E com a mesma energia, dentro das minhas forças, prometo objectar tudo quanto puder. E assim como eu, creio que Josias, Vítor, Reinaldo e outros também o farão. Não é? — Ricardo voltou-se para todos, que afirmaram em palavras e gestos que o acompanhavam. Pitágoras, ao ver o ânimo de que todos estavam possuídos, não manifestou nenhum receio. Ao contrário, sorriu com segurança. E disse com uma solene dignidade: — Não esperava outra coisa de vocês, e desde já agradeço o esforço que farão. Sei que a luta será árdua, mas tenho confiança, não em minhas forças, mas nas ideias que adoto. Pode ser que uma ou outra vez fraqueje, mas hei de apelar para tudo quanto há de positivo em mim para que não me falhe no momento mais precioso, e que eu cumpra aqui o meu dever