FILOSOFIAS DA AFIRMAÇÃO E DA NEGAÇÃO - iPhi
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62 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS<br />
se revelava em seus olhos, e um sorriso cheio de bondade e até<br />
de amor brilhava em seu rosto. E com uma voz bem cálida<br />
e suave, respondeu:<br />
— Nem todas as conclusões da ciência são obscuras ou se<br />
tornam obscuras. A ciência esclarece, e muitos pontos tornam-se<br />
simples. Onde a ciência nada consegue esclarecer (e<br />
este é um aspecto importante e que vem a meu favor), é quando<br />
ela se refere aos primeiros princípios e às primeiras conclusões.<br />
Estas escapam ao seu âmbito e pertencem à filosofia.<br />
Aí, só esta é hábil para examiná-los. Mas tal facto não pode<br />
negar o progresso da ciência enquanto tal, apenas revela que<br />
o seu âmbito é proporcionado aos seus métodos. Há outro âmbito<br />
que a transcende. E esse é o da filosofia.<br />
— Mas há afirmações da ciência que se opõem às da filosofia,<br />
alegou Vítor. Vimos muitas vezes, na história, os filósofos<br />
digladiarem-se com os cientistas. O exemplo de Galileu<br />
é um deles.<br />
— Realmente. Seria estultícia negar tal coisa. Mas é<br />
preciso fazer justiça aos adversários de Galileu. Que afirmava<br />
este? As suas afirmações fundamentais eram de que a Terra<br />
se movia, que o Sol permanecia estático, e que era este o centro<br />
do universo. Contrariava, assim, as afirmações dos estagiritas,<br />
seguidores que eram de Aristóteles. Na verdade, a<br />
Terra é movida e não se move, ela não se move por uma força<br />
intrínseca, mas extrínseca. Negavam os adversários de Galileu<br />
que a Terra fosse semovente, ou seja, que tivesse um princípio<br />
imanente de seu movimento. A Terra é um móvel, e um móvel<br />
exige uma causa eficiente extrínseca que o mova. A Terra é<br />
movida e não se move. Dizer-se que o Sol é estático, era absurdo,<br />
e o é. Afirmar, afinal, que o Sol é o centro do universo,<br />
não tinha a seu favor nenhuma base. Não julguem que justifico<br />
os adversários de Galileu, mas tanto este, como aqueles,<br />
não conheciam plenamente os factos. Mas, note-se que os adversários<br />
de Galileu fundavam-se apenas no facto de serem temerárias<br />
as suas afirmações, por não terem a seu favor factos<br />
suficientes que as justificassem. E, ademais, por seu espírito<br />
polémico, Galileu fora além do âmbito da ciência, e fazia afirmações<br />
precipitadas.<br />
<strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 63<br />
— Mas os antigos, ou pelo menos os dessa época, não<br />
admitiam que a Terra fosse esférica, alegou Vítor.<br />
— Tal não é verdade, Vítor. A esfericidade da Terra já<br />
fora afirmada por Pitágoras, e os escolásticos, antes de Galileu,<br />
já sabiam disso. Leia Tomás de Aquino, e lá encontrará, na<br />
Suma Teológica, várias passagens em que se afirma a esfericidade<br />
da Terra, os antípodas etc. Esta é uma das tantas<br />
afirmações sem fundamento que é costume fazer-se.<br />
— Vejo que você gosta de defender sempre os escolásticos!,<br />
afirmou Vítor.<br />
— Defendo todas as ideias quando justas. Não pertenço<br />
a nenhuma delas, pois penso por mim, e sempre que minhas<br />
ideias encontram semelhança com uma posição filosófica, faço-lhe<br />
justiça. Procuro saber o pensamento de todos, mas não<br />
me submeto a nenhum. Mas peço a todos que convenham numa<br />
coisa. Nossa conversação está-se afastando das normas acei-"<br />
tas, e tomando rumos accidentais. Prometo um dia justificar<br />
a minha admiração pela escolástica, mas prefiro que, por ora,<br />
permaneçamos no terreno do relativismo e da refutação que<br />
lhe estou fazendo. Há tempo para tudo o mais. Concordam<br />
com a minha proposta?<br />
— Sem dúvida, Pitágoras, alegou Artur. Há tempo depois<br />
para examinar esse e outros pontos. Prossiga de onde<br />
estava, pois, do contrário, perde-se o fio da meada.<br />
Todos concordaram, apoiados pelo silêncio de Ricardo,<br />
Vítor e Josias. Pitágoras prosseguiu então:<br />
— A mutabilidade das coisas que pertencem à ciência não<br />
impede que esta fundamente seus conhecimentos, porque nessa<br />
mutabilidade há sempre algo que se estabiliza e que revela uma<br />
necessidade. Nem se pode alegar que a ciência não possa progredir,<br />
pois o terreno, no qual ela exerce suas experimentações,<br />
é um terreno movediço, porque esse movediço é accidental<br />
e não substancial. E do que se move, do que se muda e transmuta,<br />
o espírito humano pode abstrair noções essenciais e fixas,<br />
e com elas construir juízos seguros, que são deduzidos e<br />
induzidos.