FILOSOFIAS DA AFIRMAÇÃO E DA NEGAÇÃO - iPhi
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230 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS<br />
Pitágoras não respondeu logo. Apenas disse:<br />
— Espere mais um pouco. Há muitas coisas de que precisamos<br />
falar antes. Tenho um compromisso com você que<br />
ainda não cumpri. Espere que eu cumpra o primeiro, para<br />
cumprir depois o outro. Prometo que também cumprirei este<br />
segundo compromisso.<br />
— Saberei esperar, respondeu Ricardo. Artur ia dizer<br />
alguma coisa, mas preferiu dominar-se para ter outra oportunidade.<br />
Foi quando Ricardo, como se mudasse de assunto,<br />
perguntou:<br />
— Sem querer fugir do assunto, gostaria de lhe fazer uma<br />
pergunta sincera, e pedir-lhe uma resposta também sincera.<br />
Que julga de Vítor?<br />
Pitágoras não respondeu logo. Revelava certa indecisão.<br />
Mas finalmente falou:<br />
— Pois serei sincero. Uma velha amizade me prende a<br />
Vítor, mas reconheço que entre nós há uma distância difícil<br />
de vencer. Vítor é um literato sistemático e eu não o sou.<br />
Vítor é o homem que se extasia na realização das pequeninas<br />
e medíocres coisas, desde que surjam com a auréola da falsa<br />
originalidade. E' o intelectual da nossa época, que quase nada<br />
realiza e se julga um superador de tudo quanto o passado fêz<br />
de maior. Não há nada de mais prejudicial, na história do<br />
pensamento humano, do que a sanha do literato sistemático.<br />
Com a sua audácia inaudita, quase sempre dominou os postos<br />
publicitários, e foi juiz das obras humanas, porque consegue,<br />
com astúcia e manha, galgar as posições que um homem de<br />
real valor não iria disputar. E depois perseguem os Dantes,<br />
os Cervantes, os Camões, os Bach, os Beethoven, os Mozart,<br />
enfim todos os valores realmente grandes para proclamarem<br />
apenas o valor das mediocridades irmãs. Pois bem, Vítor sempre<br />
quis ser um desses. Ver o seu nome nos jornais, deitar<br />
entrevistas, escrever crónicas, artigos, vê-los publicados, e gozar,<br />
assim, a imortalidade de algumas horas, de alguns dias,<br />
que é a que oferecem tais meios. O trabalho sério, silencioso,<br />
anónimo, e sobretudo independente, afastado dos âmbitos dos<br />
intelectuais sistemáticos, foi sempre para êle uma tortura.<br />
<strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 2'M<br />
Nunca teve a coragem de enfrentar sozinho e realizar o quo<br />
tinha de fazer com suas próprias mãos, sem mendigar aplausos.<br />
Temia perder tempo e não conquistar uma posição que êle julga<br />
invejável. Hoje seu nome aparece em suplementos literários,<br />
e é citado pelos amigos. Julga-se já definitivamente célebre,<br />
e acha que já conquistou um pedestal na história. Como<br />
se os suplementos não fossem lidos apenas pelos autores e uma<br />
meia dúzia de leitores; como se a maioria, a quase totalidade<br />
dos leitores independentes se preocupassem com suplementos,<br />
como se a notoriedade alcançada entre os grupelhos de literatos<br />
sistemáticos assegurasse a celebridade entre os leitores, e<br />
uma posição já ganha na literatura. Tudo isso se esfarela com<br />
o tempo. Esses jornais viram lixo desde logo, os elogios, se<br />
não são esquecidos, são considerados apenas favores ou troca<br />
de favores, e o que fica realmente, se há, é a obra. Pois é essa<br />
obra para que sempre lhe chamei atenção. "Vítor, dizia-lhe<br />
sempre, cuide de realizar a sua obra. Não se preocupe com<br />
o silêncio que fazem à sua volta. Se o que fizer fôr grande,<br />
romperá todos os silêncios sistemáticos. Assim aconteceu com<br />
todas as grandes obras da humanidade. Todas elas foram cercadas<br />
pelo silêncio, mas o venceram, e ficaram na história, enquanto<br />
os seus adversários, se ainda obtêm um nome, é apenas<br />
com o título de adversários incompetentes ou maldosos, que<br />
não souberam reconhecer os que têm realmente valor". Mas<br />
Vítor não me quis ouvir. Adorava o sucesso fácil, o renome<br />
passageiro, a tempestade de verão. E adquiriu todos os vícios<br />
mentais dessas rodas, inclusive esse nihilismo em que hoje está<br />
imerso, e que terminará por devorá-lo totalmente.<br />
— Mas você gosta dele, afirmou Ricardo.<br />
— Sim, gosto. Tenho grande simpatia por êle. Mas já<br />
nos distanciamos tanto que às vezes o julgo tão estranho, tão<br />
outro, que me parece até um desconhecido. Você sabe que sigo<br />
outro rumo, busco outras veredas, e tenho confiança no que<br />
faço.<br />
— Confesso, Pitágoras, que comungo com muitas das<br />
ideias de Vítor, de Paulsen, de Josias. E tenho discutido com<br />
você, mas sobretudo com o intuito de instruir-me. E se aceito,<br />
por ora, certas ideias, não me aferro a elas, porque não mo