FILOSOFIAS DA AFIRMAÇÃO E DA NEGAÇÃO - iPhi
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MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS<br />
ções só servem para extremar cada vez mais as posições contrárias.<br />
Não creio que dessas discussões surja a luz de que<br />
falou o Samuel. A única luz que eu conheço é a do sol e a<br />
dessa lâmpada. E ela surge apertando aquele botão. Não temos<br />
nenhum botão na cabeça... — e resmungou mais alguma<br />
coisa que ninguém entendeu.<br />
Quase todos riram. Pitágoras apenas fêz um sorriso em<br />
que havia muito de compaixão, mas de uma compaixão viril,<br />
amiga, para com Josias. Na verdade, apesar das diferenças<br />
tão grandes nas ideias, Pitágoras gostava de Josias, porque<br />
sempre que dele se referia era com palavras cheias de afecto.<br />
Costumava mesmo dizer: — Josias é uma espécie de chamada<br />
de consciência para mim. Seu pessimismo e sobretudo seu cepticismo<br />
me fazem bem. Quando me sinto tomado pelo entusiasmo,<br />
por haver descoberto algo novo que me ilumina e me<br />
enche de satisfações quase voluptuosas, logo me assoma a imagem<br />
de Josias. Aquele sorriso sem fé, aquele gesto de desprezo,<br />
aquelas palavras frias e arrastadas de descrença, desafiam-me<br />
a imaginação. Então, sentindo-me forte, meu primeiro<br />
gesto é o de afastar a imagem que me parece ridícula. Mas<br />
dura pouco essa indiferença. Josias torna a crescer dentro de<br />
mim. E sinto que preciso dele. Preciso da sua oposição, da<br />
sua dúvida, da sua descrença. E' nela que temperarei as minhas<br />
novas ideias e as novas vivências. Preciso dele... e então<br />
o procuro. Josias é assim uma necessidade para mim.<br />
E quando lhe perguntavam se isso não o aborrecia às vezes,<br />
êle costumava responder mais ou menos nestes termos:<br />
— Não... E sabem por que? Porque Josias, no fundo,<br />
é sincero. Sua dúvida não é uma atitude covarde. Josias não<br />
é covarde. E' o temperamento que o domina. E acrescentem-se<br />
as desilusões e experiências que teve. Quem passou<br />
pelo que êle passou não é de admirar que tenha a alma coberta<br />
de cinzas...<br />
E quando lhe perguntavam se era possível que um dia<br />
mudasse, Pitágoras permanecia sério por algum tempo, e notava-se<br />
que havia em seu rosto a passagem constante de uma<br />
dúvida e de uma esperança, porque êle se tornava ora sombrio,<br />
ora iluminado. E dizia:<br />
<strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 23<br />
— Talvez... talvez. — E depois de uma pausa, em que<br />
manifestava uma confiança num desejo há muito tempo acalentado,<br />
acrescentava: — tudo se há de fazer para que tal<br />
aconteça.<br />
"E' verdade, recordo-me agora, que uma vez Pitágoras,<br />
quando se falava sobre este assunto, dissera estas palavras que<br />
lhe brotaram sinceras e bem afectivas, vindas do peito, num<br />
tom quente que impressionou aos que o rodeavam:<br />
— Depois de um longo inverno, quem não pode compreender<br />
o anseio da luz do sol? Quem não pode compreender que<br />
há carnes que desejam despertar, esperanças dormidas que cansaram<br />
de seu longo sono? São como pássaros de quem as asas<br />
exigem liberdade, para quem as gaiolas são a sua grande inconformidade.<br />
Jamais a asa*que voa se conciliará com os espaços<br />
estreitos. Josias é uma asa que voa, mas asa partida.<br />
E que poderá sarar. E nesse dia, quem irá impedir que ela<br />
anseie pelas distâncias sem fim? Há brasas dormidas que, se<br />
não iluminam, aquecem, contudo. E nele há dessas brasas dormidas,<br />
à espera do sopro que as despertará em auroras de luz.<br />
Um dia verei essa aurora brilhar nos olhos de Josias. E, juro,<br />
nesse dia estará justificada mais uma vez a vida.<br />
Era assim Pitágoras. A amizade por Josias era evidente,<br />
e a oposição, em vez de afastá-los, parece que os unia mais.<br />
Mas é que Pitágoras aguardava uma ressurreição, e por amor<br />
a essa ressurreição nada o afastaria do amigo.<br />
Mas, certa ocasião, numa roda em que estavam Josias e<br />
Pitágoras, aquele disse:<br />
— Não há dúvida de que o que vocês defeejam é interessante,<br />
embora eu creia que tudo será inútil, quanto ao desejo<br />
de alcançar alguma certeza. Mas aceito colaborar nesse trabalho.<br />
— Não há dúvida — interrompeu Ricardo — que esse método<br />
ainda é o melhor. Do contrário, seremos borboletas que<br />
andam a aspirar todas as flores. Creio no diálogo, quando<br />
bem conduzido, e sob regras rigorosas. O homem de hoje não<br />
sabe mais conversar. Êle disputa apenas. E' um combate em<br />
que os golpes mais diversos e inesperados surgem. Mas num