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FILOSOFIAS DA AFIRMAÇÃO E DA NEGAÇÃO - iPhi

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22<br />

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS<br />

ções só servem para extremar cada vez mais as posições contrárias.<br />

Não creio que dessas discussões surja a luz de que<br />

falou o Samuel. A única luz que eu conheço é a do sol e a<br />

dessa lâmpada. E ela surge apertando aquele botão. Não temos<br />

nenhum botão na cabeça... — e resmungou mais alguma<br />

coisa que ninguém entendeu.<br />

Quase todos riram. Pitágoras apenas fêz um sorriso em<br />

que havia muito de compaixão, mas de uma compaixão viril,<br />

amiga, para com Josias. Na verdade, apesar das diferenças<br />

tão grandes nas ideias, Pitágoras gostava de Josias, porque<br />

sempre que dele se referia era com palavras cheias de afecto.<br />

Costumava mesmo dizer: — Josias é uma espécie de chamada<br />

de consciência para mim. Seu pessimismo e sobretudo seu cepticismo<br />

me fazem bem. Quando me sinto tomado pelo entusiasmo,<br />

por haver descoberto algo novo que me ilumina e me<br />

enche de satisfações quase voluptuosas, logo me assoma a imagem<br />

de Josias. Aquele sorriso sem fé, aquele gesto de desprezo,<br />

aquelas palavras frias e arrastadas de descrença, desafiam-me<br />

a imaginação. Então, sentindo-me forte, meu primeiro<br />

gesto é o de afastar a imagem que me parece ridícula. Mas<br />

dura pouco essa indiferença. Josias torna a crescer dentro de<br />

mim. E sinto que preciso dele. Preciso da sua oposição, da<br />

sua dúvida, da sua descrença. E' nela que temperarei as minhas<br />

novas ideias e as novas vivências. Preciso dele... e então<br />

o procuro. Josias é assim uma necessidade para mim.<br />

E quando lhe perguntavam se isso não o aborrecia às vezes,<br />

êle costumava responder mais ou menos nestes termos:<br />

— Não... E sabem por que? Porque Josias, no fundo,<br />

é sincero. Sua dúvida não é uma atitude covarde. Josias não<br />

é covarde. E' o temperamento que o domina. E acrescentem-se<br />

as desilusões e experiências que teve. Quem passou<br />

pelo que êle passou não é de admirar que tenha a alma coberta<br />

de cinzas...<br />

E quando lhe perguntavam se era possível que um dia<br />

mudasse, Pitágoras permanecia sério por algum tempo, e notava-se<br />

que havia em seu rosto a passagem constante de uma<br />

dúvida e de uma esperança, porque êle se tornava ora sombrio,<br />

ora iluminado. E dizia:<br />

<strong>FILOSOFIAS</strong> <strong>DA</strong> <strong>AFIRMAÇÃO</strong> E <strong>DA</strong> <strong>NEGAÇÃO</strong> 23<br />

— Talvez... talvez. — E depois de uma pausa, em que<br />

manifestava uma confiança num desejo há muito tempo acalentado,<br />

acrescentava: — tudo se há de fazer para que tal<br />

aconteça.<br />

"E' verdade, recordo-me agora, que uma vez Pitágoras,<br />

quando se falava sobre este assunto, dissera estas palavras que<br />

lhe brotaram sinceras e bem afectivas, vindas do peito, num<br />

tom quente que impressionou aos que o rodeavam:<br />

— Depois de um longo inverno, quem não pode compreender<br />

o anseio da luz do sol? Quem não pode compreender que<br />

há carnes que desejam despertar, esperanças dormidas que cansaram<br />

de seu longo sono? São como pássaros de quem as asas<br />

exigem liberdade, para quem as gaiolas são a sua grande inconformidade.<br />

Jamais a asa*que voa se conciliará com os espaços<br />

estreitos. Josias é uma asa que voa, mas asa partida.<br />

E que poderá sarar. E nesse dia, quem irá impedir que ela<br />

anseie pelas distâncias sem fim? Há brasas dormidas que, se<br />

não iluminam, aquecem, contudo. E nele há dessas brasas dormidas,<br />

à espera do sopro que as despertará em auroras de luz.<br />

Um dia verei essa aurora brilhar nos olhos de Josias. E, juro,<br />

nesse dia estará justificada mais uma vez a vida.<br />

Era assim Pitágoras. A amizade por Josias era evidente,<br />

e a oposição, em vez de afastá-los, parece que os unia mais.<br />

Mas é que Pitágoras aguardava uma ressurreição, e por amor<br />

a essa ressurreição nada o afastaria do amigo.<br />

Mas, certa ocasião, numa roda em que estavam Josias e<br />

Pitágoras, aquele disse:<br />

— Não há dúvida de que o que vocês defeejam é interessante,<br />

embora eu creia que tudo será inútil, quanto ao desejo<br />

de alcançar alguma certeza. Mas aceito colaborar nesse trabalho.<br />

— Não há dúvida — interrompeu Ricardo — que esse método<br />

ainda é o melhor. Do contrário, seremos borboletas que<br />

andam a aspirar todas as flores. Creio no diálogo, quando<br />

bem conduzido, e sob regras rigorosas. O homem de hoje não<br />

sabe mais conversar. Êle disputa apenas. E' um combate em<br />

que os golpes mais diversos e inesperados surgem. Mas num

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