O Príncipe de Nassau - Unama

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19.04.2013 Views

www.nead.unama.br Ao longe, sob a poeira, estronda o fragor da marcha. De súbito. coalhando o horizonte de piquês e de arcabuzes surge na estrada a linha inimiga. Os soldados sentem o coração apertar-se. Fincou-se-lhes na alma, agoniando-lhes, dorida pua: são irmãos que vão bater-se contra irmãos. Os da Bahia marcham airosamente. Vem estrepitosos, entre rufos e toques, com galhardia. É belo! João Fernandes, imperturbável não dá ordem alguma. Sorri apenas um sorriso fugaz, esquisito. Já estão os atacantes a tiro de mosquete... Já se divisam nitidamente os soldados... João Fernandes, correndo pelo campo os seus óculos de cana, continua imperturbável, a sorrir o seu sorriso fugaz, enigmático. De repente, a uma ordem seca, o exército invasor estaca. Então, sob o sol radiante, em plena campanha, as duas hordas brasileiras contemplam-se frente a frente. Eis que, com espanto de toda a gente, tremula pelas fileiras opostas uma bandeira branca. O comandante inimigo, seguido por um clarim, avança em pessoa até o meio do campo. João Fernandes, esporeando o ginete, também parte em pessoa, inesperadamente, ao encontro do chefe contrário. Os dois exércitos vêem aquilo com surpresa. E ali, naquele instante único, diante dos soldados atônitos, os dois cabos de guerra saudaram-se rasgadamente: — Deus o salve e guarde, João Fernandes Vieira! — Deus o salve e guarde, André Vidal de Negreiros! João Fernandes Vieira, muito airoso e composto, o aspecto grave, exclama: — Vosmecê, André Vidal, conhece as nossas desditas. Conhece os agravos que temos sofrido. Conhece os menoscabos à nossa Religião. Conhece as atrocidades incontáveis dos hereges. Pois bem! Será Vosmecê, diante de tudo isso, que virá sufocar esta guerra santa? Será Vosmecê, Vidal, que virá trucidar os seus irmãos? André Vidal de Negreiros escuta a arenga do madeirense. Depois, a fronte erguida, simpaticamente galhardo, responde alto, a voz firme e vibrante: — João Fernandes Vieira! Eu sei bem das pesadas tiranias que vos apertam. Eu sei bem do que tem feito herege nesta terra cristã. Vosmecê não carece, ó nobre chefe, rememorá-las aqui! É por isso que eu, com os meus soldados, não vimos da Bahia para trucidar os nossos irmãos. Nós vimos, João Fernandes, para pelejar debaixo da bandeira de Vosmecê. Nós vimos para combater com Vosmecê pela Liberdade de Pernambuco! Ambos abraçaram-se... Os saldados. pasmados, contemplam a cena incrível. E ao ver aquele grande abraço de paz, todos eles, num assomo, sacudidos, disparam os mosquetes no ar. Estruge surriada fragorosa. As cometas vibram. Rompem as caixas, um delírio! Os dois exércitos precipitaram-se um no outro. E é um explodir de alegrias, abraços fraternais, risos, vivas, toda uma festa enternecedora! Mas o júbilo não parou aí. Foi além. O Exército Libertador, naquele dia, teve a ma grande bebedeira de felicidade. Ainda ribombavam pelo ar disparos furiosos de mosquetes, quando ecoou de súbito um alarido longínquo, vozerio confuso, alarmante... Que será? Os oficiais e soldados ficam à escuta. E o rumor ia 94

www.nead.unama.br crescendo, ia destacando-se pouco a pouco. Bem claros e nítidos, agora, começava a distinguir-se os estranhos ruídos. E logo, enchendo os ares, retumbantes berros, pateado de danças, buzinas, gritos roucos e medonhamente selvagens. O exército, com um estremeção de alegria, rompeu num grito de festa: — Henrique Dias! — Camarão! Eram os dois formidáveis capitães do mato que chegavam. O Chefe negro, com o seu desempeno garrido, um belo sorriso jovializandolhe a cara retinta, vinha pimponamente repoltreado num zaino vistoso, os arreios de prata fuzilando ao sol. Felipe Camarão, cacique de alto renome, bugre latinista que o Rei afidalgara com o título de Dom, marchava a pé, carrancudo e grave, a aljava ouriçada de flechas, o arco emplumado trepidando ao ombro. Seguia-lhe os passos, armada curiosamente de espada e bacamarte, uma indiazinha ligeira, enfeitada de penas, o batoque no beiço. Era D. Clara Camarão. Era a bugra guerreira a mulher heróica da campanha, aquela que se batia assanhadamente, onça ferocíssima, valente como o guerreiro mais valente da tribo. João Fernandes recebeu-os com quente cordialidade. Tudo nele era festa. Tudo riso. E foram abraços, novos estrondos de morteiros. entusiasmos loucos, inenarráveis. André Vidal o herói modestíssimo, aquele que se apagava nas horas trombeteantes de exibição distanciou-se furtivamente do grupo. De longe, a alma entumescida de legítimo orgulho, contemplou em silêncio, radiosamente, a obra imensa que realizara: João Fernandes Vieira, Henrique Dias, Dom Felipe Camarão... Ah, mal sabia o paraibano que aqueles três homens, coligados ali, coligados tão vibrantemente em torno duma só bandeira, não eram apenas os três grandes chefes da rebelião. Eram mais do que isso. Os três homens, naquele instante, encarnavam alguma coisa mais alta: eles eram um símbolo. Eles significavam, na sua solidariedade épica, a pátria nova que despontava. Eles eram o Brasil que nascia. Ali estava o Português. Ali estava o Negro. Ali estava o Bugre. Ali estavam as Três Raças. Ali estavam, no momento do perigo, unidos pelo mesmo assomo bravio, os três sangues que iam se caldear ao sol dos trópicos; que iam se fundir, neste rude laboratório da América, para formarem um dia a nacionalidade nova. André Vidal, de longe, contemplava-os com vaidade, eis que alguém veio despertá-lo do seu enleio. Era o Bastião. O negro, com ar de mistério, aproxima-se dele matreiramente: Sinhô! Tudo que é mulher do Arrecife foi hoje preso... André Vidal estremeceu: — Que é que você está resmungando aí negro? — A mulherada do Arrecife foi preso, sinhô! João Blaar carregô as tar pr'o engenho de D. Ana. Aquilo vai tudo espichá na forca! André Vidal branqueou. Fitou o escravo com um pavor angustioso: — Você está louco, negro? — Não tô louco, não! A mulher de António Cavalcanti já tá lá. A de Antonio Bezerra também. A de... — E Carlota, atalhou Vidal tremulo; e Carlota? 95

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crescendo, ia <strong>de</strong>stacando-se pouco a pouco. Bem claros e nítidos, agora, começava<br />

a distinguir-se os estranhos ruídos. E logo, enchendo os ares, retumbantes berros,<br />

pateado <strong>de</strong> danças, buzinas, gritos roucos e medonhamente selvagens. O exército,<br />

com um estremeção <strong>de</strong> alegria, rompeu num grito <strong>de</strong> festa:<br />

— Henrique Dias!<br />

— Camarão!<br />

Eram os dois formidáveis capitães do mato que chegavam.<br />

O Chefe negro, com o seu <strong>de</strong>sempeno garrido, um belo sorriso jovializandolhe<br />

a cara retinta, vinha pimponamente repoltreado num zaino vistoso, os arreios <strong>de</strong><br />

prata fuzilando ao sol. Felipe Camarão, cacique <strong>de</strong> alto renome, bugre latinista que o<br />

Rei afidalgara com o título <strong>de</strong> Dom, marchava a pé, carrancudo e grave, a aljava<br />

ouriçada <strong>de</strong> flechas, o arco emplumado trepidando ao ombro. Seguia-lhe os passos,<br />

armada curiosamente <strong>de</strong> espada e bacamarte, uma indiazinha ligeira, enfeitada <strong>de</strong><br />

penas, o batoque no beiço. Era D. Clara Camarão. Era a bugra guerreira a mulher<br />

heróica da campanha, aquela que se batia assanhadamente, onça ferocíssima,<br />

valente como o guerreiro mais valente da tribo.<br />

João Fernan<strong>de</strong>s recebeu-os com quente cordialida<strong>de</strong>. Tudo nele era festa.<br />

Tudo riso. E foram abraços, novos estrondos <strong>de</strong> morteiros. entusiasmos loucos,<br />

inenarráveis.<br />

André Vidal o herói mo<strong>de</strong>stíssimo, aquele que se apagava nas horas<br />

trombeteantes <strong>de</strong> exibição distanciou-se furtivamente do grupo. De longe, a alma<br />

entumescida <strong>de</strong> legítimo orgulho, contemplou em silêncio, radiosamente, a obra<br />

imensa que realizara: João Fernan<strong>de</strong>s Vieira, Henrique Dias, Dom Felipe Camarão...<br />

Ah, mal sabia o paraibano que aqueles três homens, coligados ali, coligados tão<br />

vibrantemente em torno duma só ban<strong>de</strong>ira, não eram apenas os três gran<strong>de</strong>s chefes<br />

da rebelião. Eram mais do que isso. Os três homens, naquele instante, encarnavam<br />

alguma coisa mais alta: eles eram um símbolo. Eles significavam, na sua<br />

solidarieda<strong>de</strong> épica, a pátria nova que <strong>de</strong>spontava. Eles eram o Brasil que nascia.<br />

Ali estava o Português. Ali estava o Negro. Ali estava o Bugre. Ali estavam as Três<br />

Raças. Ali estavam, no momento do perigo, unidos pelo mesmo assomo bravio, os<br />

três sangues que iam se cal<strong>de</strong>ar ao sol dos trópicos; que iam se fundir, neste ru<strong>de</strong><br />

laboratório da América, para formarem um dia a nacionalida<strong>de</strong> nova.<br />

André Vidal, <strong>de</strong> longe, contemplava-os com vaida<strong>de</strong>, eis que alguém veio<br />

<strong>de</strong>spertá-lo do seu enleio. Era o Bastião. O negro, com ar <strong>de</strong> mistério, aproxima-se<br />

<strong>de</strong>le matreiramente:<br />

Sinhô! Tudo que é mulher do Arrecife foi hoje preso...<br />

André Vidal estremeceu:<br />

— Que é que você está resmungando aí negro?<br />

— A mulherada do Arrecife foi preso, sinhô! João Blaar carregô as tar pr'o<br />

engenho <strong>de</strong> D. Ana. Aquilo vai tudo espichá na forca!<br />

André Vidal branqueou. Fitou o escravo com um pavor angustioso:<br />

— Você está louco, negro?<br />

— Não tô louco, não! A mulher <strong>de</strong> António Cavalcanti já tá lá. A <strong>de</strong> Antonio<br />

Bezerra também. A <strong>de</strong>...<br />

— E Carlota, atalhou Vidal tremulo; e Carlota?<br />

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