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O assunto era escabroso. Tombou na sala rápido silêncio Gaspar Dias,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> revirar o seu caneco <strong>de</strong> vinho, reatou com mais perfídia a urdidura<br />
daquela malícia:<br />
— De alguém sei eu, D. Ana Pais, <strong>de</strong> alguém muito principal neste Arrecife,<br />
que só cuida em atraiçoar os <strong>de</strong> Holanda. É homem <strong>de</strong> se temer! Homem perigoso.<br />
Alisa pela frente mas apunhala pelas costas. Homem <strong>de</strong> maus bofes...<br />
— Isso, bradou com um berro João Blaar, em cujos olhos faiscava um brilho<br />
avinhado; isso, Gaspar Dias! Isso mesmo! É homem péssimo. Conheço-o como a<br />
palma <strong>de</strong> minha mão: é João Fernan<strong>de</strong>s Vieira.<br />
Sebastião <strong>de</strong> Carvalho, aquele pernambucano sombrio, <strong>de</strong> poucas falas,<br />
grunhiu entre <strong>de</strong>ntes, do seu canto:<br />
— Tem razão, João Blaar! É João Fernan<strong>de</strong>s Vieira. Homem ruim!<br />
Carlos Tourlon, que ainda não houvera pronunciado palavra, atalhou<br />
severamente aquelas invectivas:<br />
— Vosmecês são peçonhentos, meus senhores! Que botes! Por quê hão <strong>de</strong><br />
Vosmecês lançar tanta pecha em pessoa <strong>de</strong> tanto quilate? Todos esses mexericos<br />
já foram soprados aos ouvidos do <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong> <strong>Nassau</strong>. E o <strong>Príncipe</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
averiguar as coisas, repudiou tudo isso, toda essa maquinação, como sendo a<br />
falsida<strong>de</strong> mais refalsada. Vosmecês sabem disso, não sabem? E como é que estão<br />
ainda aí, com tanto <strong>de</strong>splante, a marear o nome <strong>de</strong> tal homem?<br />
D. Ana Pais olhou para Carlos Tourlon com iroso <strong>de</strong>sdém.<br />
Aquela morena <strong>de</strong> olhos pretos, todo o mundo o sabia, era uma<br />
pernambucana <strong>de</strong> vida escandalosa. Fora ela quem tivera o cínico arrojo — a<br />
primeira no Brasil! — <strong>de</strong> se casar com um holandês e herege. E era ela, a dama<br />
enlaçarotada que ali estava, ela, nem mais nem menos, a mulher legítima do próprio<br />
Carlos Tourlon! Por isso, com esbraseada cólera, medindo o marido <strong>de</strong> alto a baixo,<br />
D. Ana Pais respon<strong>de</strong>u acrimoniosa:<br />
— Eis aí! Eis aí um homem que causa dó! Um homem ridículo! Sempre a<br />
bater-se por João Fernan<strong>de</strong>s. Sempre a fazer-lhe discursos. Como se João<br />
Fernan<strong>de</strong>s não fosse o mais <strong>de</strong>sbriado biltre <strong>de</strong> Pernambuco!<br />
Carlos Tourlon fulminou a mulher com os olhos. O rosto afogueou-se-lhe.<br />
Franziu o cenho, indignado. E com a voz trêmula:<br />
— Eu já disse a Vosmecê, D. Ana, eu já lhe disse mil vezes o quanto é vil<br />
esse <strong>de</strong>sbocamento! Nem vejo razão para um palavreado tão bruto...<br />
A borrasca entre os dois esposos fez esfriar a conversa. Calaram-se todos<br />
por um instante. Carlos Tourlon, porém, tornou-se, fremindo, para os comensais:<br />
— João Fernan<strong>de</strong>s é homem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s brios. É pessoa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
fazendas. É senhor-d'engenho. É escabino <strong>de</strong> Arrecife. É amigo querido do <strong>Príncipe</strong>.<br />
E ainda — o que é mais — o colono da confiança <strong>de</strong> Jacob Stachouver, membro do<br />
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