O Príncipe de Nassau - Unama
O Príncipe de Nassau - Unama O Príncipe de Nassau - Unama
www.nead.unama.br Antônio Cavalcanti lançou a João Fernandes um olhar de ódio. O madeirense, compreendendo-o, mandou-lhe um sorriso esmagante, perfidamente escarnecedor. Ficaram ambos, nesse instante, mais do que nunca, dois inimigos de morte... No dia seguinte, deixando o acampamento de Covas, o Exército Libertador tocou para o monte das Tabocas. João Blaar, nessa mesma hora, partiu ao encalço dos sublevados. Era fatal, nas Tabocas, o choque das duas massas. Manhã de agosto. A madrugada pincela o azul de ouro pálido. Esbate-se na altura um eco de porcelana, muito fresco. Vêm do mato cheiros úmidos de troncos. No monte histórico, entre as tábuas altas, vai grande cena emocionadora. Lá acima, no cocoruto do morro, ergue-se o altar. Sobre ele, todo verdejante de folhagens, abre o Cristo dolorosamente os seus braços pálidos, no crucifixo negro. Frei Manuel reza a missa... O Exército Libertador, ajoelhado, assiste compungido ao sacrifício sagrado. É a hora da bênção. O frade, virando-se, lança vasto gesto em cruz sobre aqueles homens ásperos. Todos persignam-se. Mas eis que um vulto, de repente, rompe por entre soldados. Aproxima-se desvairadamente do altar. É alto, ossudo, feio. O seu olhar fuzila. Revolto, com grande desespero dramático, o homem estranho atira-se ao chão, soluçando, entre brados: — Peccavi! Peccavi! Os soldados botam olhos idiotas no espetáculo. Que aquilo? Ninguém entende. E o homem, batendo furiosamente no peito, continua no seu desespero: — Peccavi! Peccavi! Abjuro a seita falsa! Abjuro para todo o sempre! Peccavi! Frei Manuel, com triunfante sorriso, reconhece imediatamente o miserável que se estorce, arrancando os cabelos, uivando com tanta angústia. É o padre Manuel de Morais. É o famigerado jesuíta apóstata. É o homem que retumbantemente escandalizara a Província com a sua vida de romance. Manuel de Morais nasceu na vila de S. Paulo. É um dos mais remotos paulistanos de que há lembrança na história de Piratininga. É o primeiro escritor brasileiro. Educado pelos jesuítas, o pequeno piratiningano entrou e recebeu ordens na Companhia de Jesus. Erudito e enérgico, falando e escrevendo o tupi com suprema perícia, confiaram-lhe os da Companhia a direção de uma das aldeias bugras de Pernambuco. Foi ai, entre o gentio, que veio surpreendê-lo a invasão holandesa. O padre alistou-se logo, decididamente, entre os mais tremendos matadores de batavos. Tão animoso se mostrou, destacou-se tanto pelos rasgos de valentia, que o General Arcisiewsky, ao sabê-lo preso entre um magote de soldados que mandara enforcar, poupou-lhe generosamente a vida e mandou-lhe até passar, em fé de oficio, a certidão da sua bravura. Mas os flamengos triunfaram. Manuel de Morais, alma de aventureiro, passou-se descaradamente para o campo dos hereges. Fez-se logo protestante. Um jesuíta feito protestante! Que escândalo... Os holandeses, exultando, fizeram-no partir para os Estados. Na Holanda, mal desembarcou, já o apóstata morria de amores, novelescamente, por loura flamenga de abundantes carnes, Margarida Vanderhait, filha de Arnoldo Vanderhait "arrematante do peso", na Gueldria. Da paixão ao casamento foi um passo. O jesuíta, pisando a roupeta, caiu voluptuoso nos braços da mulher amada. Partiu então para Amsterdam. Ai viveu dois anos combatendo 86
www.nead.unama.br formidavelmente a religião católica. Ao fim deles, a mulher morreu-lhe. O viúvo, deixando o filho único em poder do sogro, partiu para Leyde. Foi tentar aí, com o célebre editor Abraham Elzevir, a publicação de suas tão faladas obras literárias. Eram elas, entre outras, a História da América e o Dicionário da Língua Tupi, citadas pelo eminentíssimo Grotius. Em Leyde, nas vizinhanças da Universidade, morava certa criatura divina, mulher surpreendentemente bela. Era Adriana Smetz, filha de um corretor de bolsa, tida e havida como a mais formosa holandesa de seu tempo. O jesuíta apaixonou--se de novo pela moça. Casou-se. Um dia, não se sabe por que, fugiu para Amsterdam. Lá, muito às ocultas, procurou o agente do Papa, caiu-lhe aos pés, confessou os seus pecados, repudiou a sua vida, pediu-lhe a absolvição dos crimes. Obteve mais do que a absolvição: conseguiu um breve com poderes para de novo dizer missa. Depois disso, por estranha deliberação, embarcou para o Brasil. Aqui, sempre aguilhoado pelos estos lúbricos do sangue, atirou-se tropicalmente nos braços da mulata Beatriz. A Inquisição de Lisboa não o perdoou: queimou-o em estátua. Mas, o padre Morais, indiferente, meteu-se outra vez com os flamengos. E ajudado por eles, começou a explorar, com grandes proveitos, a indústria do pau-de-tinta. Estavam as coisas neste pé, quando deflagrou a rebelião. Manuel de Morais, com um faro divinatório, larga inesperadamente as suas toras de brasil e surge entre soluços, com espavento, na missa campal do Exército Libertador. No seu desespero, o rosto no chão, clama entre lágrimas desabaladas: — Perdoai-me! Eu abjuro a seita falsa! Perdoai-me! Eu renego os hereges! Eu abrenuncio os flamengos! Perdoai-me! Perdoai-me! Chora convulsivamente. Frei Manuel com um júbilo borbulhante, ilumina-se: — Deus apiedou-se de Vosmecê, meu filho! Deus abriu os olhos do cego! Vosmecê arrependeu-se a tempo. E essa contrição é uma glória para nós. Seja benvindo, Padre Manuel! Eu abençôo a Vosmecê... Agarra no hissope, mergulha-o na caldeirinha, borrifa o apóstata de águabenta. João Fernandes ergue-se. Toma duma espada e entrega-a solenemente ao jesuíta: — Padre Manuel de Morais, seja benvindo! A conversação de Vosmecê é augúrio propício. Ela quer dizer que Deus está conosco. Tome desta espada, Manuel de Morais, faça dela um raio, que ela o redima dos seus erros! Manuel de Morais levanta-se. Cinge a espada. E alto, com uma energia vibrante: — Vosmecê é nobre e generoso, João Fernandes! Pois bem! Vosmecê há de ver quem é Manuel de Morais! Eu quero ser o mais infame dos homens — digo-o diante de todo o exército — se embainhar a espada enquanto houver um só flamengo na Capitania... Que festa! Os soldados todos, diante do apóstata reconvertido, sentiram supersticiosamente que Deus estava com eles. E começaram, com grandes alaridos de júbilo, os aprestos da batalha. 87
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formidavelmente a religião católica. Ao fim <strong>de</strong>les, a mulher morreu-lhe. O viúvo,<br />
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célebre editor Abraham Elzevir, a publicação <strong>de</strong> suas tão faladas obras literárias.<br />
Eram elas, entre outras, a História da América e o Dicionário da Língua Tupi, citadas<br />
pelo eminentíssimo Grotius. Em Ley<strong>de</strong>, nas vizinhanças da Universida<strong>de</strong>, morava<br />
certa criatura divina, mulher surpreen<strong>de</strong>ntemente bela. Era Adriana Smetz, filha <strong>de</strong><br />
um corretor <strong>de</strong> bolsa, tida e havida como a mais formosa holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> seu tempo. O<br />
jesuíta apaixonou--se <strong>de</strong> novo pela moça. Casou-se. Um dia, não se sabe por que,<br />
fugiu para Amsterdam. Lá, muito às ocultas, procurou o agente do Papa, caiu-lhe<br />
aos pés, confessou os seus pecados, repudiou a sua vida, pediu-lhe a absolvição<br />
dos crimes. Obteve mais do que a absolvição: conseguiu um breve com po<strong>de</strong>res<br />
para <strong>de</strong> novo dizer missa. Depois disso, por estranha <strong>de</strong>liberação, embarcou para o<br />
Brasil. Aqui, sempre aguilhoado pelos estos lúbricos do sangue, atirou-se<br />
tropicalmente nos braços da mulata Beatriz. A Inquisição <strong>de</strong> Lisboa não o perdoou:<br />
queimou-o em estátua. Mas, o padre Morais, indiferente, meteu-se outra vez com os<br />
flamengos. E ajudado por eles, começou a explorar, com gran<strong>de</strong>s proveitos, a<br />
indústria do pau-<strong>de</strong>-tinta.<br />
Estavam as coisas neste pé, quando <strong>de</strong>flagrou a rebelião. Manuel <strong>de</strong> Morais,<br />
com um faro divinatório, larga inesperadamente as suas toras <strong>de</strong> brasil e surge entre<br />
soluços, com espavento, na missa campal do Exército Libertador. No seu <strong>de</strong>sespero,<br />
o rosto no chão, clama entre lágrimas <strong>de</strong>sabaladas:<br />
— Perdoai-me! Eu abjuro a seita falsa! Perdoai-me! Eu renego os hereges!<br />
Eu abrenuncio os flamengos! Perdoai-me! Perdoai-me!<br />
Chora convulsivamente. Frei Manuel com um júbilo borbulhante, ilumina-se:<br />
— Deus apiedou-se <strong>de</strong> Vosmecê, meu filho! Deus abriu os olhos do cego!<br />
Vosmecê arrepen<strong>de</strong>u-se a tempo. E essa contrição é uma glória para nós. Seja<br />
benvindo, Padre Manuel! Eu abençôo a Vosmecê...<br />
Agarra no hissope, mergulha-o na cal<strong>de</strong>irinha, borrifa o apóstata <strong>de</strong> águabenta.<br />
João Fernan<strong>de</strong>s ergue-se. Toma duma espada e entrega-a solenemente ao<br />
jesuíta:<br />
— Padre Manuel <strong>de</strong> Morais, seja benvindo! A conversação <strong>de</strong> Vosmecê é<br />
augúrio propício. Ela quer dizer que Deus está conosco. Tome <strong>de</strong>sta espada,<br />
Manuel <strong>de</strong> Morais, faça <strong>de</strong>la um raio, que ela o redima dos seus erros!<br />
Manuel <strong>de</strong> Morais levanta-se. Cinge a espada. E alto, com uma energia<br />
vibrante:<br />
— Vosmecê é nobre e generoso, João Fernan<strong>de</strong>s! Pois bem! Vosmecê há<br />
<strong>de</strong> ver quem é Manuel <strong>de</strong> Morais! Eu quero ser o mais infame dos homens — digo-o<br />
diante <strong>de</strong> todo o exército — se embainhar a espada enquanto houver um só<br />
flamengo na Capitania...<br />
Que festa! Os soldados todos, diante do apóstata reconvertido, sentiram<br />
supersticiosamente que Deus estava com eles. E começaram, com gran<strong>de</strong>s alaridos<br />
<strong>de</strong> júbilo, os aprestos da batalha.<br />
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