O Príncipe de Nassau - Unama

O Príncipe de Nassau - Unama O Príncipe de Nassau - Unama

nead.unama.br
from nead.unama.br More from this publisher
19.04.2013 Views

www.nead.unama.br tremendo! Ordenou o bruto que abrissem o homem vivo, que lhe rasgassem as carnes, que lhe despregassem as entranhas. E enquanto o miserável uivava, lancetado pelos pontaços do facão, o tigre enchia-lhe a barriga com um montão de brasas acesas. De brasas acesas, João Fernandes? Hein? Brasas acesas! Onde viu Vosmecê, em toda a sua vida, relato de façanha mais brutal? Onde? 12 . João Fernandes ouvia, o cenho fechado, murmurando casmurro: — É de arrepiar os pêlos! É mesmo de uma pessoa não acreditar. E sacudindo a cabeça, desconsolado: — Obra de hereges, frade. Obra de hereges! — Ah, eis o ponto, exclama o religioso com grande vivacidade. Isso é que é tocar na chaga! Estes flamengos, aqui pelos brasis, outra coisa não fazem senão obra de hereges. Obra de huguenotes. Veja o próprio Maurício de Nassau. Começou tolerante. Permitiu a liberdade dos cultos. Mas terminou agora, forçado pelas ordens de Holanda, expulsando os padres, fechando as igrejas, proibindo até os sacramentos! João Fernandes, homem calculista e frio, tortuoso parceiro dos holandeses, era, como português, um bom católico. Por isso, muito às escondidas, clamava contra as imposições religiosas: — Que os belgas obriguem uma pessoa a falar flamengo, vá; que mandem vigorar na Capitania leis e usanças de Flandres, vá; tudo isso ainda passa. Mas trazerem para aqui a heresia! Obrigarem uma pessoa a ser protestante! Menoscabarem nossa Religião como eles menoscabam, ah, isto é, que remói o coração da gente! — Tal qual, bradou o frade com fúria; tal qual! É isso também o que me rala. É ver esses renegados a ridicularizarem a nossa fé. Quando me lembro da tomada de Olinda, no desenfreio desses malditos, o sangue ainda me ferve nas veias! Que cães! Pilhavam tudo. Nem sequer se arrefeciam diante das igrejas. Metiam-se por elas a dentro, surrupiavam os adornos, esmigalhavam as imagens às espadeiradas, profanavam os cálices, carregavam as alfaias, os oiros, os candelabros, as lâmpadas, tudo! E ainda por cima, para escarnecerem, saiam à rua vestidos com os paramentos dos padres, e lá iam, como se fosse entrudo, emborrachar-se patuscamente nas tavernas! Que dia de juízo! Ah, o que os meus olhos viram... João Fernandes, ao ouvir aquelas profanações, sentia calefrios arrepiaremlhe os nervos. Mas o frade, com surda cólera, continuava incendido: — Ah, João Fernandes, Vosmecê mal imagina o espinho que se me afinca no coração ao ver por aí, nas mãos de toda gente, esses livrinhos excomungados que os predicantes derramaram por toda a Capitania! É esse tal Católico Reformado, dum fuão Carrascon, cheio de todos os despropósitos de Lutero e de Calvino. Ah, 12 Castrioto Lusitano. 20

www.nead.unama.br meu amigo, o estrago que têm feito aquelas letras! Repare um pouco, João Fernandes, quanta gente, ao depois delas, é hoje da seita maldita... — É certo, atalhou João Fernandes; é desgraçadamente muito certo. Simão do Vale, homem que parecia tão assentado, já ficou protestante; Baltasar da Fonseca, pessoa honrada, também já se bandeou para lá, e se bandeou com mulher, e com filhos, e com escravatura, e tudo! Até o padre Manuel de Morais — um jesuíta! — teve o descoro de arrenegar a sua religião. Lá está agora nas suas lavouras, com a mulata Beatriz, a pregar a religião dos endemoniados... — Manuel de Morais... Grunhiu o frade entre dentes, que réprobo! — Mas não foi só ele a pessoa de qualidade que deu exemplo, continuou João Fernandes. Houve tanta! E D. Ana Pais? Que diz Vosmecê de D. Ana Pais, Frei Manuel? — Não me fale nessa dona, João Fernandes, tornou o frade com muxoxo de asco. É uma deslavada. É a mulher mais escandalosa de Pernambuco. Que cínica! Teve o descaro de se casar com protestante. Foi a primeira no Brasil! E nem só se casou com herege, como também (o que é o mais!) arrenegou publicamente a sua fé. E Frei Manuel, juntando as mãos, exclamava raivoso: — D. Ana Pais, a viúva de Pedro Correia, hoje mulher de Carlos Tourlon! Ora veja! Quem haveria jamais de supor tal despejo? — D. Ana Pais foi sempre assim, tornou João Fernandes; sempre desbragada, sempre espaventosa. Deu mais escândalos por aí do que aquela Clara Henriques, mulher meretriz, que tinha casa posta no Arrecife. — É verdade, João Fernandes!. D. Ana foi sempre assim. Sempre descarada. No entanto — sabe Vosmecê? — não se pode dizer tais coisas ao pé dos flamengos. Essa mulher é hoje o ai-jesus dos hereges. É a mulher mais poderosa da Capitania. Consegue tudo. O Príncipe de Nassau nunca lhe disse um não. Nunca! Que fascínio... Aquilo é mulher perigosa, João Fernandes; mulher de feitiços; mulher de enlouquecer homens. Repare, ainda agora, essa trama contra Carlota Haringue. Essa laçada contra Rodrigo Mendanha. Vosmecê bem sabe, como toda gente, que andou naquilo a mão de gato de D. Ana... — Não toque nessa ferida, Frei Manuel, aparteou Fernandes chocado. Foi isso, até hoje, o que mais me sangrou o coração. Uma crueza sem nome. Pobre Rodrigo! Mandei-o à Bahia com cartas para André Vidal. Ainda não voltou. Ainda não sabe da desgraça. Mas quando voltar — isso há de ser mais hoje, mais amanhã o rapaz vai endoidecer. Ah, que bruteza, Frei Manuel! Que falta de coração! Esses belgas são uns monstros... Frei Manuel deu uns passos pelo aposento. Estava agitado. Fitou João Fernandes bem nos olhos. E exclamou enfim, cruzando os braços: — Mas Vosmecê, Vosmecê, que está a presenciar tudo isto, quando se decide? Que é que o tolhe, João Fernandes? Por que Vosmecê não executa a traça combinada com André Vidal de Negreiros? João Fernandes olhou o frade e sorriu. Mas Frei Manuel, sem notar a nuança escarninha daquele sorrir, pôs-se a acutilá-lo exaltadamente: — Hoje, como Vosmecê sabe, é dia de glória para nós. Hoje Portugal é português. Hoje D. João IV está no trono. Hoje temos Rei, João Fernandes! Por quê não havemos de assentar hoje, definitivamente, a data de se romper o movimento? Que é o que a Vosmecê falta? Que é que o perreia? Vosmecê mesmo, Vosmecê 21

www.nead.unama.br<br />

meu amigo, o estrago que têm feito aquelas letras! Repare um pouco, João<br />

Fernan<strong>de</strong>s, quanta gente, ao <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>las, é hoje da seita maldita...<br />

— É certo, atalhou João Fernan<strong>de</strong>s; é <strong>de</strong>sgraçadamente muito certo. Simão<br />

do Vale, homem que parecia tão assentado, já ficou protestante; Baltasar da<br />

Fonseca, pessoa honrada, também já se ban<strong>de</strong>ou para lá, e se ban<strong>de</strong>ou com<br />

mulher, e com filhos, e com escravatura, e tudo! Até o padre Manuel <strong>de</strong> Morais —<br />

um jesuíta! — teve o <strong>de</strong>scoro <strong>de</strong> arrenegar a sua religião. Lá está agora nas suas<br />

lavouras, com a mulata Beatriz, a pregar a religião dos en<strong>de</strong>moniados...<br />

— Manuel <strong>de</strong> Morais... Grunhiu o fra<strong>de</strong> entre <strong>de</strong>ntes, que réprobo!<br />

— Mas não foi só ele a pessoa <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>u exemplo, continuou<br />

João Fernan<strong>de</strong>s. Houve tanta! E D. Ana Pais? Que diz Vosmecê <strong>de</strong> D. Ana Pais,<br />

Frei Manuel?<br />

— Não me fale nessa dona, João Fernan<strong>de</strong>s, tornou o fra<strong>de</strong> com muxoxo <strong>de</strong><br />

asco. É uma <strong>de</strong>slavada. É a mulher mais escandalosa <strong>de</strong> Pernambuco. Que cínica!<br />

Teve o <strong>de</strong>scaro <strong>de</strong> se casar com protestante. Foi a primeira no Brasil! E nem só se<br />

casou com herege, como também (o que é o mais!) arrenegou publicamente a sua fé.<br />

E Frei Manuel, juntando as mãos, exclamava raivoso:<br />

— D. Ana Pais, a viúva <strong>de</strong> Pedro Correia, hoje mulher <strong>de</strong> Carlos Tourlon!<br />

Ora veja! Quem haveria jamais <strong>de</strong> supor tal <strong>de</strong>spejo?<br />

— D. Ana Pais foi sempre assim, tornou João Fernan<strong>de</strong>s; sempre<br />

<strong>de</strong>sbragada, sempre espaventosa. Deu mais escândalos por aí do que aquela Clara<br />

Henriques, mulher meretriz, que tinha casa posta no Arrecife.<br />

— É verda<strong>de</strong>, João Fernan<strong>de</strong>s!. D. Ana foi sempre assim. Sempre<br />

<strong>de</strong>scarada. No entanto — sabe Vosmecê? — não se po<strong>de</strong> dizer tais coisas ao pé<br />

dos flamengos. Essa mulher é hoje o ai-jesus dos hereges. É a mulher mais<br />

po<strong>de</strong>rosa da Capitania. Consegue tudo. O <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong> <strong>Nassau</strong> nunca lhe disse um<br />

não. Nunca! Que fascínio... Aquilo é mulher perigosa, João Fernan<strong>de</strong>s; mulher <strong>de</strong><br />

feitiços; mulher <strong>de</strong> enlouquecer homens. Repare, ainda agora, essa trama contra<br />

Carlota Haringue. Essa laçada contra Rodrigo Mendanha. Vosmecê bem sabe, como<br />

toda gente, que andou naquilo a mão <strong>de</strong> gato <strong>de</strong> D. Ana...<br />

— Não toque nessa ferida, Frei Manuel, aparteou Fernan<strong>de</strong>s chocado. Foi<br />

isso, até hoje, o que mais me sangrou o coração. Uma crueza sem nome. Pobre<br />

Rodrigo! Man<strong>de</strong>i-o à Bahia com cartas para André Vidal. Ainda não voltou. Ainda não<br />

sabe da <strong>de</strong>sgraça. Mas quando voltar — isso há <strong>de</strong> ser mais hoje, mais amanhã o<br />

rapaz vai endoi<strong>de</strong>cer. Ah, que bruteza, Frei Manuel! Que falta <strong>de</strong> coração! Esses<br />

belgas são uns monstros... Frei Manuel <strong>de</strong>u uns passos pelo aposento. Estava<br />

agitado. Fitou João Fernan<strong>de</strong>s bem nos olhos. E exclamou enfim, cruzando os braços:<br />

— Mas Vosmecê, Vosmecê, que está a presenciar tudo isto, quando se<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>? Que é que o tolhe, João Fernan<strong>de</strong>s? Por que Vosmecê não executa a traça<br />

combinada com André Vidal <strong>de</strong> Negreiros?<br />

João Fernan<strong>de</strong>s olhou o fra<strong>de</strong> e sorriu. Mas Frei Manuel, sem notar a<br />

nuança escarninha daquele sorrir, pôs-se a acutilá-lo exaltadamente:<br />

— Hoje, como Vosmecê sabe, é dia <strong>de</strong> glória para nós. Hoje Portugal é<br />

português. Hoje D. João IV está no trono. Hoje temos Rei, João Fernan<strong>de</strong>s! Por quê<br />

não havemos <strong>de</strong> assentar hoje, <strong>de</strong>finitivamente, a data <strong>de</strong> se romper o movimento?<br />

Que é o que a Vosmecê falta? Que é que o perreia? Vosmecê mesmo, Vosmecê<br />

21

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!