O Príncipe de Nassau - Unama

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www.nead.unama.br — Ora vejam! Vejam a que alturas anda o rapazinho que me trazia a carne de manhã! João Fernandes sentia aquilo. E pensou logo em atenuar a dolorosa hostilidade com que o tratavam os homens de prol. Era rico. Era poderoso. Era alta personalidade. Nada mais fácil do que aproveitar-se da situação. Correu os olhos pelos habitantes de Recife. Examinou-os um a um, com faro e ronha. Fixou-se afinal, muito habilmente, em Francisco Berenger de Andrade. Juiz ordinário, pessoa das mais relevantes, senhor de apelidos ilustres, com larga parentela na cidade, Francisco Berenger era o homem talhado para João Fernandes. O madeirense, com desassombro, meteu mãos à obra. Procurou-o, cortejou-o, assediou-o de mimos. Um dia, no Recife, estourou esta notícia surpreendente: João Fernandes ficara noivo de D. Maria César, filha de Francisco Berenger de Andrade! Foi uma bomba. Antônio Cavalcanti, ao saber da nova, sorriu com ferocidade: — Ora aí está! Como subiu o menino do açougue... Fez-se o casamento com pompa. Os parentes da noiva, que eram muitos e emproados, receberam de braços abertos o mimoso da fortuna. João Fernandes, o opulento senhor-d'engenho, ingressou desde então, vitoriosamente, entre as gentes afidalgadas do Recife. Correu o tempo... O aventureiro ambicioso não ficou aí. Aquela antipatia de Antônio Cavalcanti apunhalava-o. Era necessário vencer o orgulho do pernambucano. Como? João Fernandes tinha dois cunhados. Antônio Cavalcanti, duas filhas. O jeitoso escabino chamou um dia o sogro: — Por que Vosmecê não casa, Francisco Berenger, os seus filhos com as filhas de Cavalcanti? Berenger olhou o genro, sacudiu a cabeça, suspirou: — Já tenho pensado muita vez nessa aliança! Seria do meu agrado. Mas é difícil coisa, João Fernandes; muito difícil! Os rapazes nada têm. As moças nada têm. Como podem eles casar-se assim com as mãos abanando? — Se é isso o que tolhe o Vosmecê, Francisco Berenger, não se aflija. Ajuste o casamento e não pense no dote. Eu darei para cada um dos seus filhos um engenho de moer. — Um engenho?! — Um engenho. Não se embarace, portanto. Ajuste o casamento. Francisco Berenger falou com Antônio Cavalcanti. O orgulhoso pernambucano não podia recusar. Não havia ninguém, na província, mais nobre e mais reto do que Francisco Berenger de Andrade. Por isso, embora odiasse de morte o madeirense, Cavalcanti ajustou o casamento das filhas. Mas ajustou moído, o coração ralado. João Fernandes, ao ver o êxito do seu golpe, sorriu. Havia vencido o seu último inimigo! Culminara em prestígio. Era o homem maior, mais rico, mais importante do Recife. Naquela noite, dentro daquele rancho lúgubre, o madeirense discute agitadamente com Frei Manuel do Salvador. João Fernandes, há muito, não 18

www.nead.unama.br pernoitava no seu belo Engenho da Várzea Propalava-se no Recife, à boca pequena, que o madeirense andava metido numa vaga conjuração. O ladino senhord'engenho, muito precavido, começou a dormir pelo mato, temeroso duma cilada. Frei Manuel, no rancho, está a ferver: — É demais, João Fernandes! É demais! A crueza chegou ao extremo. Não há ninguém, por mais cristão, que possa agüentar tanto enxovalho. Impossível! Isto então que acaba de suceder hoje, a decisão dos escabinos contra Manuel Filipe, isto é de estarrecer a gente. Enlouquece um homem! Ali, à luz do candeeiro, punho cerrado, o frade põe-se a rememorar impressionadoramente aquele caso berrante, uma das injustiças mais ruidosas dos flamengos: — Vai um homem, homem honrado como Manuel Filipe, e topa um animal solto nas suas lavouras. Corre a Cidade Maurícia, dá parte aos escabinos, põe avisos por todo o canto. Não aparece ninguém! O pobre diabo, sem saber como desentalar-se, bota o macho de favor na pastaria de Vosmecê, não é verdade, João Fernandes? — É! — Eis que certo dia, por desgraça, Manuel Filipe, montando o macho, encontra com o taverneiro Snider no caminho. Pois sabe o que sucede? Mal avista o animal põe-se a urrar desaba1ado: Olhem o meu macho! Olhem o meu macho! Manuel Filipe apeia-se, corre ao berrador, repete-lhe a história do achado, prontificase ali mesmo a entregar a cavalgadura. Mas o flamengo emperra. Não quer só o animal; exige muito mais! Quer o pagamento do uso do macho, as duas patacas por dia, tim-tim por tim-tim, até aquela data! Manuel Filipe. furioso, emperra também em não pagar. E a coisa pegou fogo. Foram ambos aos escabinos. Principiou uma querela dos diabos. Uma roda viva! Mas, enfim. provou-se a coisa como a coisa era: tudo a favor de Manuel Felipe. Pois bem, apesar disso, os escabinos decidiram a demanda hoje, assim: foi Manuel Filipe condenado a pagar o preço inteiro do macho, mais as custas todas. e, ainda por cima — isto, sim! — a ser preso como ladrão! Vamos lá, meu amigo: pode haver acaso injustiça mais doída? 11 . — Vosmecê tem razão, frei Manuel. É demais! Não há nunca razão para os da terra. É só pisar, é só extorquir. Estes belgas são uns lobos carniceiros. — Diz muito bem, João Fernandes! Uns lobos carniceiros! Não sei se já existiu povo tão sangrento. Que raça! Vede esse bruto de Jacob Rabbi. Um europeu, homem civilizado, que teve o desbrio de casar com uma bugra, fazer-se chefe dos piores antropófagos do sertão. Um bárbaro que vive a aterrorizar a Província com a fama das suas selvagerias! É um monstro. Lembra-se do que ele fez a Antônio Baracho, aquele mancebo da Várzea do Capiberibe? Fervilhante de ódio, lusitano até à medula, Frei Manuel desanda com ira: — Não se contentou, o carniceiro, em condenar Baracho à morte. Morrer era coisa de somenos; carecia morrer com uma crueldade ainda não vista, a mais espantosa de que há memória em Pernambuco. Eu nem gosto de me lembrar. É 11 Fernandes Gama, Memórias Históricas da Província de Pernambuco, fls. 118, apêndice. 19

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pernoitava no seu belo Engenho da Várzea Propalava-se no Recife, à boca<br />

pequena, que o ma<strong>de</strong>irense andava metido numa vaga conjuração. O ladino senhord'engenho,<br />

muito precavido, começou a dormir pelo mato, temeroso duma cilada.<br />

Frei Manuel, no rancho, está a ferver:<br />

— É <strong>de</strong>mais, João Fernan<strong>de</strong>s! É <strong>de</strong>mais! A crueza chegou ao extremo. Não<br />

há ninguém, por mais cristão, que possa agüentar tanto enxovalho. Impossível! Isto<br />

então que acaba <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r hoje, a <strong>de</strong>cisão dos escabinos contra Manuel Filipe, isto<br />

é <strong>de</strong> estarrecer a gente. Enlouquece um homem!<br />

Ali, à luz do can<strong>de</strong>eiro, punho cerrado, o fra<strong>de</strong> põe-se a rememorar<br />

impressionadoramente aquele caso berrante, uma das injustiças mais ruidosas dos<br />

flamengos:<br />

— Vai um homem, homem honrado como Manuel Filipe, e topa um animal<br />

solto nas suas lavouras. Corre a Cida<strong>de</strong> Maurícia, dá parte aos escabinos, põe<br />

avisos por todo o canto. Não aparece ninguém! O pobre diabo, sem saber como<br />

<strong>de</strong>sentalar-se, bota o macho <strong>de</strong> favor na pastaria <strong>de</strong> Vosmecê, não é verda<strong>de</strong>, João<br />

Fernan<strong>de</strong>s?<br />

— É!<br />

— Eis que certo dia, por <strong>de</strong>sgraça, Manuel Filipe, montando o macho,<br />

encontra com o taverneiro Sni<strong>de</strong>r no caminho. Pois sabe o que suce<strong>de</strong>? Mal avista o<br />

animal põe-se a urrar <strong>de</strong>saba1ado: Olhem o meu macho! Olhem o meu macho!<br />

Manuel Filipe apeia-se, corre ao berrador, repete-lhe a história do achado, prontificase<br />

ali mesmo a entregar a cavalgadura. Mas o flamengo emperra. Não quer só o<br />

animal; exige muito mais! Quer o pagamento do uso do macho, as duas patacas por<br />

dia, tim-tim por tim-tim, até aquela data! Manuel Filipe. furioso, emperra também em<br />

não pagar. E a coisa pegou fogo. Foram ambos aos escabinos. Principiou uma<br />

querela dos diabos. Uma roda viva! Mas, enfim. provou-se a coisa como a coisa era:<br />

tudo a favor <strong>de</strong> Manuel Felipe. Pois bem, apesar disso, os escabinos <strong>de</strong>cidiram a<br />

<strong>de</strong>manda hoje, assim: foi Manuel Filipe con<strong>de</strong>nado a pagar o preço inteiro do<br />

macho, mais as custas todas. e, ainda por cima — isto, sim! — a ser preso como<br />

ladrão! Vamos lá, meu amigo: po<strong>de</strong> haver acaso injustiça mais doída? 11 .<br />

— Vosmecê tem razão, frei Manuel. É <strong>de</strong>mais! Não há nunca razão para os<br />

da terra. É só pisar, é só extorquir. Estes belgas são uns lobos carniceiros.<br />

— Diz muito bem, João Fernan<strong>de</strong>s! Uns lobos carniceiros! Não sei se já<br />

existiu povo tão sangrento. Que raça! Ve<strong>de</strong> esse bruto <strong>de</strong> Jacob Rabbi. Um europeu,<br />

homem civilizado, que teve o <strong>de</strong>sbrio <strong>de</strong> casar com uma bugra, fazer-se chefe dos<br />

piores antropófagos do sertão. Um bárbaro que vive a aterrorizar a Província com a<br />

fama das suas selvagerias! É um monstro. Lembra-se do que ele fez a Antônio<br />

Baracho, aquele mancebo da Várzea do Capiberibe?<br />

Fervilhante <strong>de</strong> ódio, lusitano até à medula, Frei Manuel <strong>de</strong>sanda com ira:<br />

— Não se contentou, o carniceiro, em con<strong>de</strong>nar Baracho à morte. Morrer era<br />

coisa <strong>de</strong> somenos; carecia morrer com uma cruelda<strong>de</strong> ainda não vista, a mais<br />

espantosa <strong>de</strong> que há memória em Pernambuco. Eu nem gosto <strong>de</strong> me lembrar. É<br />

11 Fernan<strong>de</strong>s Gama, Memórias Históricas da Província <strong>de</strong> Pernambuco, fls. 118, apêndice.<br />

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