Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
homem. Mas que arranquem com cuidado, sem o matar, para que doa bem. Depois,<br />
ainda vivo, corte-lhe as carnes <strong>de</strong>vagarinho, pedaço por pedaço. E que os bugres o<br />
assem e comam. Ah, Gaspar Dias, com que gozo havia eu <strong>de</strong> assistir a esse festim!<br />
Gaspar Dias sorriu. E atalhou:<br />
— Havia <strong>de</strong> ser um dia feliz para Vosmecê, D. Ana! Não há dúvida! Um dia<br />
tão feliz como o dia <strong>de</strong> hoje é para o nosso <strong>Príncipe</strong>.<br />
— É verda<strong>de</strong>, concordou logo D. Ana; é verda<strong>de</strong>! O nosso <strong>Príncipe</strong> está hoje<br />
nadando em felicida<strong>de</strong>! Eu nunca o vi assim tão contente.<br />
— Para mim, D. Ana, há outro motivo, além da aclamação <strong>de</strong> D. João IV,<br />
que o alegrou daquele jeito...<br />
— Outro motivo? Por que Vosmecê diz isso?<br />
Gaspar Dias fez um gesto <strong>de</strong> mistério. Olhou para D. Ana com o seu ar <strong>de</strong><br />
fuinha. Coçou a barbicha.<br />
— Ora, escute. Vosmecê sabe, <strong>de</strong> certo, que hoje, <strong>de</strong>pois da embaixada, o<br />
<strong>Príncipe</strong> entrou numa câmara com João Lopes, o enviado <strong>de</strong> Montalvão, e<br />
conversaram largo tempo em segredo?<br />
— Não soube, retorquiu com espanto a bela morena. Mas é estranho! O<br />
<strong>Príncipe</strong> a conferenciar em sigilo com João Lopes? Que segredos po<strong>de</strong>m lá ser<br />
esses, Gaspar Dias?<br />
— Não sei, D. Ana... Mas já da outra vez, na outra embaixada — Vosmecê<br />
se lembra? — também houve uma audiência em segredo. Que diabo será isso?<br />
Para mim, D. Ana, é ali que bate o ponto. É nesses segredos, que está o motivo<br />
daquela alegria do <strong>Príncipe</strong>.<br />
Não pô<strong>de</strong> continuar. Soou um toque <strong>de</strong> clarim. Rufaram caixas. Carlos<br />
Tourlon, aproximando-se da mulher, cortou ríspido aqueles cochichos:<br />
— Vamos, D. Ana! É a Fortaleza Ernesto que dá o sinal <strong>de</strong> recolher...<br />
Ao toque da fortaleza ergueram-se todos. E abalaram rumorosos da casa <strong>de</strong><br />
João Blaar.<br />
João Fernan<strong>de</strong>s Vieira<br />
Nessa mesma noite, a essas mesmas horas longe da Cida<strong>de</strong> Maurícia, vai<br />
uma cena bem diferente.<br />
É <strong>de</strong>ntro da mata bruta. Atufado entre a galhaça, misterioso e soturno, um<br />
rancho <strong>de</strong> sapé. Casota <strong>de</strong> pau-a-pique, barreada com meticulosos caprichos, sem<br />
frincha por on<strong>de</strong> coe réstia <strong>de</strong> luz, Nem há sequer, na mataria brava, vestígio <strong>de</strong><br />
carreador conducente àquela moradazinha selvática. Tudo cerrado, inóspito. Só<br />
mesmo um velho batedor <strong>de</strong> sertões, homem bem vaqueano naquelas brutezas,<br />
po<strong>de</strong>ria enveredar-se através do labirinto, rumo <strong>de</strong> ermo tão áspero.<br />
Dentro d0 rancho, no entanto, há dois vultos que discutem. Dois vultos<br />
estranhos, falando baixo, banhados sombriamente pelo clarão avermelhado do<br />
can<strong>de</strong>eiro. Um, o que veste um hábito <strong>de</strong> religioso, é quase velho, pálido, olhar que<br />
corusca; voz convincente. O outro, o que traz a cabeça um largo sombrero, é ru<strong>de</strong>,<br />
moreno-escuro, gestos fortes, cenho torvamente franzido. Um é Frei Manuel do<br />
Salvador. Outro, João Fernan<strong>de</strong>s Vieira.<br />
16